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Maio 9788575415092

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Ciência, política e relações internacionais

ensaios sobre Paulo Carneiro

Marcos Chor Maio (org.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MAIO, M. C. org. Ciência, política e relações internacionais: ensaios sobre Paulo Carneiro [online].
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Unesco, 2004, 339 p. ISBN: 978-85-7541-509-2. Available from:
doi: 10.7476/9788575415092. Also available in ePUB from:
http://books.scielo.org/id/fczgd/epub/maio-9788575415092.epub.

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INTER
ensaios sobre Paulo Carneiro
Ministério da Saúde

FIOCRUZ
rundação Oswaldo Cruz

Presidente
Representante da UNESCO no Brasil
Paulo Marchiori Buss jorge Werthein

Vice-Presidente de Desenvolvimento
Kepresentante Adjunto
Institucional, Informação e Comunicação Mohammed Bachtri
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Conselho Editorial
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Vanize Macedo

Coordenador Executivo
João Carlos Canossa P. Mendes
ensaios sobre Paulo Carneiro

MARCOS CHOR MAITO


Úrganizador
Copyright O 2004 dos autores
jodos os direitos desta edição reservados a
Fundação Oswaldo Cruz / Editora e Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura

ISBN: 85-7541-049-0)

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica:


Fernando Vasconcelos

Capa: criada a partir das fotos Aspecto geral de uma


conferência na Unesco em Genebra, s.d. (Photo Besson)
e Paulo Carneiro em Paris, 1960. (foto: Unesco), ambas
do Arquivo Mário Carneiro.
Preparação de Originais, Revisão e Copidesque:
Daiu Bastos e Paula Toledo

oupervisão Ediotorial:
Maria Cecilia G. B Moreira

Us autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação


dos fatos contidos nesta publicação e pelas opiniões aqui expressas,
que nao são necessariamente as da UNESCO e não comprometem
a Organização. As designações empregadas e a apresentação do
material não impiicam a expressão de qualquer opinião que seja,
por parte da UNESCO, no que diz respeito ao status legal de qualquer
pais, território, cidade ou área, ou de suas autoridades, ou no que diz
respeito à delimitação de suas fronteiras ou de seus limites.

Catalogação-na-fonte
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

M225c Maio, Marcos Chor (org.).


Ciência, politica e relações internacionais: ensaios sobre
Paulo Carneiro. / Organizado por Marcos Chor Maio, Rio de
faneiro : Editora Fiocruz e Unesco, 2004.
3540 p., ilus.

1.Ciência. 2.Cooperação internacional. 3 Relações raciais.


4. Iniquidade social, 5.Pessoas famosas. L Carneiro, Paulo
[N.UNESCO ILUNESCO HI. Título

CDID - 320

2004 Organização das Nações Unidas para a


“ 4 Educação, a Ciência e a Cultura
Editora Fiocruz
Edições UNESCO
Av. Brasil, 4056 — 1º andar — sala 112 —- Manguinhos 1d d
21040-361 — Rio de Janeiro — Ri Representação no Brasil
leis: (21) 3582-9039 e 3882-9041 SAS,Quadra5BlocoH,Lote6,
tax: (21) 3882-9007 E d . 9 º a n d a r .
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rax: (05 61) 3922-426]
E-mail: grupoeditorialêunesco.org.br
Autores

Aant Elzinga Paulo de Góes Filho


Físico, doutor em filosofia da ciência pela Sociólogo, doutor em antropologia social pelo
Universidade de Gôteberg (Suécia) e Museu Nacional/UFR] e assessor da Presidência
pesquisador do Departamento de Teoria da da Academia Brasileira de Ciências.
Ciência e da Pesquisa da Universidade de
Góteberg. Priscila Fraiz
Ana Maria Ribeiro de Andarade Socióloga, doutoranda em história social pela
Universidade de São Paulo e pesquisadora do
Historiadora, doutora em história pela Departamento de Arquivo e Documentação da
Universidade Federa! Fluminense e Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
pesquisadora do Museu de Astronomia e
Ciências Afins (Mast/CNPg). Mesa-redonda
Angela Atonso Alain Totraine
Socióloga, doutora em sociologia pela Sociólogo, doutor em ciências sociais e diretor
Universidade de São Paulo e professora do do Centro de Estudos dos Movimentos Sociais/
Departamento de Sociologia da mesma -»cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
universidade.
Bruno Gentil
Equardo Queiroz Reis
Representante emérito da Maison d' Auguste
Histortador e bolsista do Departamento de Comte.
Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.
Jean d' Ormesson
jornalista, escritor e membro da Academia
Francisco Barreto Araújo -rancesa.
Cientista soctal, mestrando em antropologia
social do Museu Nacional/UFR].
José Israet Vargas
Químico, doutor em química pela Universidade
Heloisa Maria Berto! Domingues de Cambridge, professor titular de físico-química
Historiadora, doutora em história social pela e química superior da UFMG e professor emérito
Universidade de São Paulo e pesquisadora do da mesma universidade, embaixador do Brasil
Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/ na Unesco (2000-2003).
CNPq).
Luiz Felipe de Alencastro
Magali Romero Sá Historiador, doutor em história pela
Bióloga, doutora em história e filosofia da Universidade de Paris-Nanterre e professor da
ciência pela Universidade de Durham, cátedra de História do Brasil da Universidade de
pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Paris-Sorbonne.
e professora do Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências da Saúde, Casa de tHuiz Hildebrando Pereira da Silva
Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Biólogo, doutor em parasitologia pela
Universidade de São Pauto e pesquisador do
Marcos Chor Maio (Organizador) Instituto de Medicina Tropical na Amazônia (RO).
Sociólogo, doutor em ciência política pelo
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janetro (luper)), pesquisador da Casa de Biobibliografia
Oswaldo Cruz/Fiocruz e professor do Programa Marcos Chor Maio
de Pós-Graduação em História das Ciências da
Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Retrato de Paulo Carneiro
Patrick Petitjean
Engenheiro, doutor em história das ciências pelo
Aline Lopes de Lacerda
Historiadora, doutoranda em História Social da
CNRS e pesquisador do REHSEIS/CNRS (Paris).
Universidade de São Paulo e pesquisadora do
Departamento de Arquivo e Documentação da
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Sumario

Prefácio 11

Apresentação 17

1. Raizes positivistas do reformismo dos anos 1930: o caso Paulo Carneiro 73


Angela Alonso

2 Paulo Carneiro e o curare: em busca do princípio ativo


Magali Romero Sá

3. Paulo Carneiro e a Casa de Augusto Comte


Priscila Fraiz e Eduardo Queiroz Reis

4. À Unesco e a politica de cooperação internacional no campo da ciência


Aant LEizinga

>. Demandas globais, respostas locais: a experiência da Unesco na


periferia no pos-guerra (1946-1952)
Marcos Chor Maio

6. Noções de ciência Internacional e nacional: as trajetórias de


Paulo Carneiro e Carlos Chagas Filho
Paulo de Goes Filho e Francisco Barreto Araújo
/. Paulo Carneiro: um cientista brasileiro na diplomacia da
Unesco (1946-1950)
Heloisa Maria Berto! Domingues e Patrick Petitjean

S. Os raios cósmicos entre a ciência e as relações Internacionais


Ana Maria Ribeiro de Andrade

Mesa-redonda: Paulo Carneiro, um brasileiro universal

Depoimento: Pauio Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista brasileiro,


cidadão do mundo 269

Biobiliografia: trajetória e produção intelectual de Paulo Carneiro 309


Marcos Chor Maio

Retrato de Paulo Carneiro


Aline Lopes de Lacerda
relo que a vocação universalista que Paulo Carneiro tão bem
imprimiu à Unesco tem origem na sua devoção, desde jovem,
ao positivismo de Auguste Comte, na possibilidade da paz, na
utilização da ciência como instrumento universal para estimular o desen-
volvimento e a tolerância entre os homens. Sua formação de cientista,
suas pesquisas com o curare no Instituto Pasteur, seu talento de orador,
enfim, todas as qualidades que o levaram a ser membro das Academias
Brasileiras de Ciências e de Letras, além da Academia de Ciências Mo-
rais da França, Paulo dedicou-as à Unesco.

Nos 28 anos em que esteve no Conselho Executivo, conviveu com


personalidades ilustres como Julian Huxley, Torres Baudet, Indira Gandhi,
Monsenhor Roncalli (futuro papa João XXIII), com quem redigiu a pri-
meira resolução sobre tolerância. Foi ele quem propôs a adoção de data
comemorativa do nascimento de Buda. Enfim, envolveu-se praticamen-
te em todas as atividades de relevo daquela organização, nos campos
cientifico, cultural e educacional.

Paulo foi instrumental — através de sua colaboração com Julian Huxley —


na introdução do “s” na sigla da Unesco, representando a ciência, não
só para evidenciar o papel terrivelmente negativo que a deformação do
uso da ciência nas mãos dos nazistas havia causado, mas também por
ser reconhecidamente faceta indispensável do desenvolvimento de um
mundo novo que todos acreditávamos belo, bom e sábio.
Inspirado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Na-
ções Unidas, a criação do Comitê de Convenções e Recomendações (CRE)
veio dar mais substância a esse ideal humanista embutido na origem da
Unesco. Paulo Carneiro foi bastante ativo na criação deste organismo
que, embora desconhecido da opinião pública pelo caráter secreto de
suas deliberações, tornou-se, especialmente durante a Guerra Fria, um
baluarte na defesa da liberdade de cientistas e intelectuais.

também podemos constatar essa visão resgatadora da história hu-


mana na participação de Paulo na campanha em prol da salvação dos
monumentos da Nubia, ameaçados pela construção da represa de
Assuan. Essa campanha, cujo momento mais expressivo foi o salvamen-
to do Iemplo de Abu Simbel, teve o mérito adicional de estimular, no
ambito da própria Unesco, toda uma série de iniciativas voltadas à prote-
ção do patrimônio histórico cultural, dos quais se destaca a consagrada
Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial.
Na área do meio ambiente, o papel de Paulo refere-se à criação do
programa O Homem e a Biosfera, no final da década de 1960. A elaboração
do conceito de desenvolvimento sustentável, discutido pela primeira vez
nas reuniões da criação daquele programa, precedeu a Primeira Confe-
rência sobre Meio Ambiente da ONU, realizada em Estocolmo em 19702.

Paulo foi também presidente do comitê de redação do projeto monu-


mental intitulado História do Desenvolvimento Cultural e Científico da
Humanidade, obra composta por nove volumes e para cuja realização
contribuiram diversos especialistas, - uma história sem heróis, sobre o
suor e as lágrimas dos homens que construíram o mundo em que vivemos.
Nos assuntos ligados ao Brasil, destaca-se a iniciativa de criação do
Instituto da Filéia Amazônica, que tinha por objetivo mobilizar o que
havia de melhor em capacitação científica para estudar aquela região. A
incompreensão do que era a Unesco fez com que resistências nacionalistas
se organizassem contra o projeto, julgado erroneamente como ameaça à
soberania nacional. O fracasso não invalida sua evidente pertinência e
atualidade.

Um outro fato, menos conhecido, foi a participação de Paulo na arti-


culação que trouxe ao Brasil uma missão de trabalho de cientistas de
alto nivel quando da criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas
(CDPF) pelo grande físico brasileiro César Lattes. Assim, por iniciativa
de Paulo, a Unesco enviou ao Brasil Giuseppe Ochialini, Ugo Camerini —
ambos de origem italiana —, Gert Moliére - alemão ligado ao grupo de
Heisenberg — e Gerhard Hepp - holandês, engenheiro da Philips.
Giuseppe Uchialini havia também se destacado como um dos princi-
pais atores do estabelecimento da física brasileira, na USP. Antifascita
convicto, chegou a alistar-se no exercito inglês durante a Segunda Guer-
ra, mas a sabedoria britânica, em vez de dar-lhe um fuzil, optou por
aproveitar sua capacidade nas pesquisas sobre o radar. O grupo iniciou
a construção de um acelerador de partículas em Niterói (RJ), projeto
coordenado por Lattes com a coiaboração de outro cientista de renome
internacional, o norte-americano Edwin Mattison McMiillan.
Permitam-me algumas recordações de caráter mais pessoal sobre o
nosso homenageado. Conheci-o inicialmente, ainda estudante em
Cambridge, de passagem por Paris, quando o procurei da mesma ma-
neira que faziam todos os estudantes e, talvez, todos os brasileiros que
por ali passavam, atraídos, sem dúvida, pelo renome e a generosidade
de Paulo. Ele me levou para almoçar no mesmo dia, no caro restaurante
D'Chez Eux, famoso pela sua cozinha do sudoeste. É também mais tarde,
a partir de 1961, quando passei alguns meses na Unesco na qualidade de
membro da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Participava da ava-
lação que fazia a Agência Internacional de Energia Atômica do estado
relativo de avanço das ciências nucleares nos diversos países da América
Latina, tendo em vista a composição da sua junta de Governadores —
evento um tanto ridiculo, visto de hoje.
O representante argentino no exercício, diga-se de passagem, havia
sido meu colega em Cambridge, assim como um cientista indiano que
estava no grupo de avaliação, presidida pelo físico dinamarquês Anders.
A razão de todo esse esforço era uma exigência dos Estados Unidos,
segundo a qual o assento que o Brasil ocupava na comissão deveria obe-
decer a um rodizio regional, candidatando-se, portanto, a Argentina.
Em tal ambiente, a tendência natural seria o empate, tendo porém o
Brasil vencido o pleito por um voto, do Iraque, no âmbito da Junta dos
Governadores. O então chanceler Santiago Dantas, intelectual brilhante
e diplomata ponderado, optou por ceder o posto ao nosso vizinho do
sul. Creio que foi uma decisão precursora das boas relações que temos
nesse campo com a Argentina, além de traduzir uma convivência fra-
ternal entre cientistas dos dois países, sobretudo entre os que estudaram
no Reno Unido.

Fraternidade, recorde-se, estimulada ainda mais pela presença de


Paulo Carneiro, demonstrada nesse e em muitos outros episódios de que
participou. Seu percurso deixou uma rara combinação de inteligência e
tolerância, que iluminou aqueles que o conheceram e seguirá como exem-
plo para as gerações futuras.
Saúdo a iniciativa do pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz,
Marcos Chor Maio, de organizar este livro sobre as contribuições de
Paulo Carneiro ao Brasil e à comunidade internacional, em que pode-
mos vislumbrar diversos traços dessa impressionante personalidade, em
particular, sua ação na Unesco.

jose Israel Vargas


Embaixador do Brasil na Unesco (2000 - 2003)
ste livro é uma homenagem a um cientista que dedicou mais de
três décadas à diplomacia nos campos da ciência, da cultura e da
“smdat
educação. Paulo Carneiro foi representante do Brasil junto à
Unesco e participou da formulação de políticas e implementação de pro-
jetos de relevo, na qualidade de membro do Conselho Executivo da ins-
tituição intergovernamental.
Ao longo dos artigos que constituem esta obra, surgem diversas fa-
ces das atividades de Paulo Carneiro, que procurou permanentemente
incluir o Brasil na discussão e na solução dos grandes desafios da huma-
nidade, a saber: fome, desigualdades sociais, desequilíbrios ambientais,
intolerância étnico-racial, conservação do patrimônio histórico das civi-
lizações, democratização da informação e do desenvolvimento científi-
co e tecnológico. Afora o empenho na construção de um mundo mais
digno, justo e fraterno, Paulo Carneiro lutou, ao longo de mais de cin-
quenta anos, pela preservação do legado positivista, parte constitutiva
de sua identidade familiar, intelectual e política.
Para abordar alguns aspectos da trajetória inicial de Paulo Carneiro,
Angela Alonso discute as idéias reformistas de Paulo Carneiro na década
de 1930 à luz da tradição positivista gestada no final do Império. Magali
Romero 5a analisa suas atividades científicas, especialmente os estudos
sobre o princípio ativo do curare. Priscila Fraiz e Eduardo Queiroz Reis
se atêm aos esforços envidados por Paulo Carneiro, desde o final dos
anos 1920, para a criação da Casa de Augusto Comte.
No que tange ao contexto da militância de Paulo Carneiro na Unesco,
Aant Elzinga apresenta uma análise abrangente da atuação da Unesco du-
rante cinquenta anos e privilegia as atividades do Departamento de
Ciências Naturais da organização. Marcos Chor Maio faz um estudo
comparativo entre a proposta de criação do Instituto Internacional da
Hiléia Amazônica e o “Projeto Unesco de Relações Raciais”, que tive-
ram em Paulo Carneiro um ator-chave no processo de formulação e
implementação dos respectivos planos de atuação da Unesco na periferia.
Paulo de Góes Filho e Francisco Barreto Araújo abordam as relações entre
ciência nacional e internacional, tomando como evidências as trajetó-
rias de Paulo Carneiro e Carlos Chagas Filho. Heloisa Maria Bertol
Lomingues e Patrick Petitjean investigam o papel do cientista brasileiro
nas iniciativas de cooperação científica internacional após a Segunda
Guerra Mundial, patrocinadas por agências intergovernamentais como
Unesco e ONU. Finalmente, Ana Maria Ribeiro de Andrade aborda os
intercâmbios científicos entre Brasil e Bolívia no campo da física, no
ambito das relações internacionais das décadas de 1940 e 1950, no qual a
U n e s c o e , e s p e c i fi c a m e n t e , P a u l o C a r n e i r o d e r a m i m p o r t a n t e c o n t r i -
buição à criação do Laboratório de Chacaltaya.
Em seguida, O livro traz os relatos apresentados na mesa-redonda
“Paulo Carneiro, um brasileiro universal”, organizada pela delegação
brasileira na Unesco, em outubro de 2001, em sua sede em Paris, por
ocasião do centenário de seu nascimento. Os participantes abordaram
aspectos políticos, ideológicos, científicos e pessoais do percurso trilha-
do pelo intelectual ao longo de sua vida. Fizeram parte da sessão, coor-
denada pelo físico José Israel Vargas, então embaixador do Brasil junto à
Unesco, o sociólogo Alain Touraine, o historiador Luiz Felipe de
Alencastro, o biólogo Luiz Hildebrando Pereira da Silva, o representan-
te da Casa de Augusto Comte, Bruno Gentil, eo escritor Jean d'Ormesson.

Da coletânea consta a edição do depoimento concedido por Paulo


Carneiro em 1979 ao Museu da Imagem e do Som (MIS), dentro dos
ciclos de Ciências e de Artes Plásticas. Participaram da entrevista o ad-
vogado e escritor Alberto Venâncio Filho, o escritor Josué Montello, a
atriz Maria Fernanda, o cientista da Fiocruz, Mário Viana Dias, e o então
diretor do MIS, José Carlos Monteiro. Paulo Carneiro discorre sobre sua
infância, carreira profissional, atividades científicas, atuação em vários
projetos da Unesco, criação da Casa de Augusto Comte e os contatos
com cientistas, intelectuais e políticos de seu tempo.
integra ainda esta publicação uma biobibliografia de Paulo Carnei-
ro, elaborada por Marcos Chor Maio, na qual se destaca sua trajetória
social e produção intelectual.
Por fim, o livro apresenta um caderno de fotografias, trabalho de
pesquisa iconográfica a cargo de Aline Lopes de Lacerda. Provenientes
do arquivo da familia Carneiro — parcialmente doado à Fundação
Oswaldo Cruz — as imagens selecionadas permitem traçar uma trajetória
de Paulo Carneiro, pois são hoje representativas tanto das variadas
areas em que atuou profissionalmente, quanto dos momentos comparti-
lhados em familia.

Este livro se soma aos esforços da Casa de Oswaldo Cruz, unidade


da Fundação Oswaldo Cruz que vem organizando o Fundo Família Car-
neiro, no qual se encontra o acervo de Paulo Carneiro. Sua publicação
SO foi possivel graças a iniciativa do embaixador José Israel Vargas, com
os apoios decisivos do diplomata João Batista Bo Lanari, da delegação
brasileira na Unesco, e do representante da instituição no Brasil, o soci-
Ólogo Jorge Werthein. Ao longo do trabalho, contei com a prestimosa
colaboração de Celio da Cunha, responsável pelo setor de publicações
da Unesco no Brasil. Nos arquivos da Unesco em Paris tive a coopera-
ção de seu diretor, Jens Boel, e de seu assistente, Mahmoud Ghander.
Oincentivo e a colaboração permanente de Nisia Trindade Lima, dire-
tora da Casa de Oswaldo Cruz, foi fundamental para selar o convênio
entre a Unesco e a Sociedade de Promoção da Casa de Oswaldo Cruz
(OPCOC), que resultou na produção deste livro. Gilberto Hochman, por
sua Vez, foi um importante colaborador no plano das idéias e sugestões
editoriais, e a equipe da SPCOC no apoio administrativo.
Da investigação realizada no Fundo Familia Carneiro participaram
Os auxiliares de pesquisa Renata Feno, Fernando Gil Vieira, Priscila
Mancuso, Bruno Mussa e Rodrigo Cesar da Silva Magalhães. Quanto à
pesquisa iconografica, contei com o apoio e a generosidade de Mário
Carneiro, filho de Paulo Carneiro, que nos cedeu diversas fotos.
Esta coletânea permite adentrar uma parte pouco conhecida da histó-
ria da intelliçentsia brasileira. Paulo Carneiro se destaca neste universo
por ter articulado de forma ampla e profícua projetos que contempla-
vam demandas giobais com interesses locais nas áreas da ciência, da
cultura e da educação. Sua atuação foi premonitória. Os temas e proble-
mas com os quais se envolveu continuam atuais. Mediante o estudo de
sua trajetória, pode-se compreender uma face importante da história das
relações entre ciência, política e relações internacionais no século XX.

O Organizador
Raizes positivistas do reformismo
dos anos 1930: o caso Paulo Carneiro

Angela Alonso

s estudiosos convergem em situar a Importância do posi-


tivismo brasileiro nas últimas décadas do Império. Ja na
República, de modo geral, atribui-se pouca ou nenhuma rele-
vância à sua “sobrevivência” — à exceção do Rio Grande do Sul. As bases
de legitimação da Primeira República e do governo Vargas costumam
ser reputadas um “pensamento político autoritario” sem conexão com o
pensamento político do Império (Lamounier, 1985). Ou então são vistas
como função da entrada de “novas correntes européias de pensamento”
no Brasil (Trindade, 1974). No primeiro caso, considera-se a criação ex
nihilo de uma linhagem de pensadores republicanos. No segundo, a
questão se coloca no plano da importação de ideias européias. Dos dois
angulos, a tradição de pensamento político nacional não ganha relevo
na analise.

Este artigo se orienta pela hipótese de que o pensamento político da


década de 1930 se alimentou de uma reflexão nacional anterior: a do refor-
mismo da geração 1870. Aqui me limito a apontar essa relação, enfo-
cando apenas uma de suas vertentes — o positivismo —, por meio do cotejo
dos projetos de reforma social dos positivistas na passagem do Império
à República com os escritos e atuação de Paulo Carneiro, funcionário do
soverno Vargas no início dos anos 30.

A tradição reformista brasileira

A literatura tem enfatizado o emprestimo de idéias européias por


parte do pensamento político da Primeira República e do varguismo.
Ciência, Política e Relações Internacionais

trindade (1974: 105) fala da “receptividade das idéias autoritárias” pe-


los intelectuais brasileiros da geração de 1930.! Fosse à direita, com o
fascismo, fosse à esquerda, com o comunismo, o cerne desse conjunto
de teorias seria o antiliberalismo.

Os que vislumbram “raízes brasileiras” para o varguismo recuam até


a Primeira República. Werneck Vianna (1978) aponta a continuidade entre
o antiliberalismo de Vargas e uma “matriz de pensamento autoritário”,
que viria avançando em setores da elite desde a primeira década do
século.

No mesmo sentido, Lippi de Oliveira (1983) e Sadek (1983) defendem


a permanência do pensamento político da Primeira República na déca-
da de 1930. Ambas seguem a caracterização de Lamounier para a pro-
dução intelectual da Primeira República. Por sua vez, Lamounier (1985)
distingue um grupo de “intelectuais”? que emergiu com a Primeira Repú-
blica e seria responsável pela gestação de uma “ideologia de Estado”,
cujo fulcro estaria no fortalecimento do poder público. Embora enfatize
O autoritarismo como traço definidor do grupo, ressalva que este “pensa-
mento político autoritário” teria oito características constitutivas: 1)
predominância do princípio estatal sobre o mercado; 2) visão “orgânico-
corporativa da sociedade” — aqui estaria a reação ao Iluminismo, ao
utilitarismo, ao individualismo e, em contrapartida, uma orientação
“mescla de organicismo-historicista e positivismo
comtiano” (Lamounier, 1985: 356); 3) “objetivismo tecnocrático”, isto é,
a política como matéria de planificação científica; 4) “visão autoritária
do conflito social”; 5) visão negativa dos partidos, defesa da não-orga-
nização da sociedade civil; 6) defesa da não-mobilização política; 7)
elitismo e o “voluntarismo golpista” como processo de mudança políti-
ca; 6) tutela do Estado sobre a sociedade.
vadek (1983) ressalta a continuidade desses temas nas décadas de
1920 e 1930, com ênfase na unidade nacional, na incorporação de novos
grupos sociais à arena política e na modernização autoritária. Lippi de
Oliveira (1983: 423) igualmente enfatiza o prolongamento dessa linha-
gem na frimeira República: “Os intelectuais dos anos vinte viviam sob a
egide de um pensamento cientificista, positivista (...), marcado por uma
Visão organicista (...), onde é fundamental a presença de uma elite estra-
tégica, uma minoria que arroga a si o privilégio do poder”.
diferença da interpretação de Trindade, que enfatiza a recepção da
doutrina fascista européia, Lamounier, Sadek e Lippi de Oliveira ressal-
Raízes positivistas do reformismo dos anos 1930

tam o caráter seletivo das fontes incorporadas e uma continuidade com


Oo pensamento brasileiro imediatamente anterior. Como se vê, tanto
Lamounier quanto Lippi de Oliveira identificam uma matriz positivista
para o pensamento político da Primeira República e da década de 1930.
lodavia, essas interpretações recuam pouco: não investigam o impacto
da tradição politico-intelectual imperial sobre a formação do pensamento
republicano. Os analistas, de modo geral, privilegiam as comparações
sincrônicas, acentuando as semelhanças do caso brasileiro com experi-
encias autoritárias coetãâneas.

tomando uma perspectiva diacrônica, gostaria de frisar inversamente


as bases intelectuais brasileiras do pensamento político da década de
1950. A maioria das caracteristicas apontadas por Lamounier nos pen-
sadores da Primeira República compõe o acervo de temas, problemas e
abordagens do reformismo da geração 1870 (Alonso, 2002). Para encon-
trar as fontes do pensamento político da década de 1930 não basta, pois,
atentar para suas fontes estrangeiras e para o passado recente, a Primeira
República. É preciso retroagir à reflexão política da geração 1870, crista-
lizada já como tradição reformista brasileira.
Embora se note o impacto difuso de vários membros da geração 1870
sobre as reflexões produzidas na década de 1930, este artigo se limita ao
reprocessamento de uma das vertentes do reformismo da geração 1870,
o positivismo, por um dos membros da geração de 1930, Paulo Carneiro.

O programa positivista de políticas de bem-estar


Uma das vertentes do reformismo da geração 1870 foi a autonomeada
igreja Positivista do Rio de Janeiro. Esse grupo apresentou nas últimas
decadas do Império uma crítica estrutural da formação social brasileira
e defendeu publicamente um programa reformista, que combinava re-
forma social e elitismo político.
Os positivistas abolicionistas (Alonso, 2002) exerceram ação política
em favor de suas idéias, em aliança tanto com grupos de orientação mais
liberal, como os novos liberais de Joaquim Nabuco, em favor da abolição
da escravidão, quanto com grupos antimonárquicos, como os fede-
ralistas científicos paulistas de Campos Sales, reclamando a instituição
de um Estado laico e republicano.
Essa ação politica de orientação positivista ganhou feições jacobinas
na Primeira Republica. Nesse momento, os positivistas se posicionaram
Ciência, Política e Relações Internacionais

a favor de um governo forte, de moralidade pública, que concentrasse o


poder politico, mas generalizasse benefícios sociais. Esse grupo teve in-
fluência na formação das primeiras leis republicanas (Carvalho, 1989) e
chegou a ocupar governos estaduais durante o mandato de Floriano.
Entre 1890 e 1915, 16 positivistas governaram nove estados e quatro fo-
ram prefeitos do distrito federal; 20 foram ministros (Nachmann, 1972).
O grupo de positivistas abolicionistas, sob direção de Miguel Lemos,
n o I m p é r i o , e d e Te i x e i r a M e n d e s , n a R e p ú b l i c a , t o m o u p a r t e a t i v a n o
debate político e intelectual. A plataforma geral do grupo está expressa
em suas publicações, sobretudo nas suas Circulares Positivistas, publicadas
regularmente desde 1881.
A tônica dessa atividade era a reforma social controlada. É o que se lê
no manifesto Apontamentos para a Solução do Problema Social no Brasil,
publicado em 1880, e em 4 Incorporação do Proletariado Escravo e o Recente
Projeto do Governo, lançado três anos mais tarde. Em ambos, uma análise
da história ocidental do ângulo do positivismo comparece para marcar
a situação de atraso relativo do Brasil. A civilização moderna estaria
consolidando uma sociedade industrial e urbana. Para atingi-la, o Bra-
sil tinha antes de mais nada de abolir a escravidão. Em seguida, deveria
adotar uma série de medidas modernizadoras: a secularização das ins-
tituições e a dilatação da cidadania, com a universali-zação de direitos
civis (o registro civil de nascimento, casamento e óbito, a liberdade de
exercicio publico de cultos e a separação Igreja/Estado); a
descentralização politico-administrativa e tributária; a modernização
econômica; a reforma das instituições políticas, com a instituição de um
regime federativo, ou melhor, uma confederação de estados indepen-
dentes, as “pátrias brasileiras”; uma política externa pacifista, em prol
da “fraternidade entre os povos”; a extensão da educação e um novo
regime de regulação do trabalho.
Esse programa reformista era carreado por praticamente toda a ge-
ração 18/0. Os positivistas exibiam duas peculiaridades: sua compre-
ensão do sentido do trabalho no mundo moderno e sua orientação auto-
ritária na política.
Para os positivistas abolicionistas, a espinha dorsal do “problema
social moderno” estava na “incorporação” econômica e moral dos ex-
escravos à sociedade nacional. Os positivistas viam o capitalismo como
fatalidade. Acreditavam que o mundo moderno transitava de um regime
econômico de base agricola para o industrialismo. Essa passagem gera-
Raizes positivistas do reformismo dos anos 1930

ria divisão do trabalho e urbanização, produzindo uma sociedade de


classes. Na sociedade “urbano-industrial”, ocorreria a mercantilização
do trabalho. O fim da escravidão levaria consigo o sistema de produção
econômica baseado na monocultura extensiva. Assim, argumentavam,
seria inócuo distribuir terras por meio de uma reforma agrária. O pro-
blema social se tornara urbano. Importava, por isso, defender o traba-
lhador nacional contra a exploração industrial:
Foi com isso em mente que idearam uma legislação protetora do traba-
lhador. De uma parte, fechando o mercado de trabalho. Ao contrário da maio-
ria dos grupos do movimento reformista da geração 1870, eram “antiimi-
erantistas', vendo na chegada de estrangeiros uma concorrência para a qual
o ex-escravo não estaria preparado. Havia aí um pendão nacionalista: a
imigração desfiguraria a identidade nacional. De outra parte, os positivistas
defenderam a criação de uma legislação trabalhista. A expropriação do
trabalho deveria ser compensada por um conjunto de proteções sociais para
o proletário e por uma regulação do trabalho urbano, uma espécie de pre-
vidência social: limitação da jornada de trabalho a seis horas, salário
“Justo”, domicilio, férias, ensino profissional, proibição do trabalho infantil.
Essa agenda está expressa na carta-programa que o lider do agru-
pamento positivista oficial do Brasil, Teixeira Mendes, encaminhou ao
chefe do governo provisório logo após o golpe republicano. A proposta
de legislação trabalhista, de dezembro de 1889, chamava-se 4 IÍncorpo-
ração do Proletariado na Sociedade Moderna. No documento, Teixeira Men-
des se dirigia ao “Cidadão Ministro”, “em nome dos proletários empre-
gados nas oficinas que a República dos Estados Unidos do Brasil man-
tém nesta capital” (são mencionados quatrocentos operários urbanos
que teriam discutido o projeto em “reuniões proletárias”), pedindo: res-
trições ao trabalho feminino, educação para os “filhos do proletariado” e
proteção social para os “anciãos”.
O projeto tinha 18 artigos. O primeiro definia igualdade de condi-
ções para Os operários independente da empresa em que se empregas-
sem. Os artigos 3, 4 e 9 tratavam de remuneração. Propunha-se a insti-
tuição de um salário-minimo, chamado de “parte fixa”, comum a todos
os trabalhadores, mas com valores variáveis conforme o custo de vida
em cada cidade (o preço dos aluguéis é usado como referência). Além
desse piso salarial, haveria uma “gratificação pró-labore”, que cresce-
ria conforme a produtividade do trabalhador (num gradiente com três
faixas salariais).
Ciência, Política e Relações Internacionais

Os artigos 6 e 7 regulamentavam o regime de trabalho: pagamento


de salário mensal; jornada de sete horas diárias, com descanso domi-
nical, nos feriados e dias santos da religião do operário; férias anuais de
Iô dias. Doenças, luto e casamento eram consideradas “faltas justi-
ficadas” (artigos 8, 9 e 10).
Os artigos 11 a 13 definiam a contratação por concurso público para
operários e a estabilidade depois de sete anos de serviço. Caso a empresa
demitisse, ficaria obrigada a pagar uma pensão vitalícia aos maiores de
42 anos referente à parte fixa de seu salário; aos demais, uma pensão por
sete anos. QU Estado deveria privilegiar esses demitidos em suas novas
contratações, eximindo-os de concurso.

Os artigos 15 a 18 instituíam uma previdência social: aposentadoria


por invalidez, por idade (63 anos) e, em caso de morte, pensão à viúva,
filhos menores de 21 anos e filhas solteiras. Desde que tivesse receita, O
Estado deveria arcar com a subsistência de “anciãos, viúvas e órfãos”.
Hnalmente, um conjunto de cinco artigos regulamentava o trabalho
dos menores, chamados de “aprendizes”: somente poderiam trabalhar
depois de completar 14 anos e apenas por quatro horas ao dia, cinco
dias por semana. Seu ingresso também se daria por concursos públicos.
Em suma, O projeto visava a proteger não só o operário, mas sua
tamília: “Amparar, portanto, os avós, a mulher e os filhos, tal é o tríplice
dever doméstico que a Pátria impõe a cada cidadão” (Teixeira Men-
des, 1889).
A quem caberia implementar tais medidas? “À burguesia — aqueles
que ja podem gozar dos benefícios da evolução humana”. Como fazê-
lo? Teixeira Mendes propunha distribuição de renda:

As Familias proletárias devem ser livremente sustentadas pelas


Famílias ricas (...). O salário não é então a paga do trabalho efetuado
(...). O salário é apenas o subsídio liberalmente dado pela sociedade a
cada cidadão, a fim de poder este manter a Família, que é a base de
toda ação cívica. (Teixeira Mendes, 1889: 8, grifo do autor)

Não se trata de nenhum programa socialista. Os positivistas tinham


uma concepção hierárquica da sociedade e da política. A família era a
célula nos dois campos. Em momento algum a hierarquia social é questio-
nada. Tratava-se de equilibrá-la, dar-lhe feições mais harmônicas. “O
problema (...) não consiste em enriquecer o pobre; consiste em dignifi-
Naizes positivistas do reformismo dos anos 1930

car a pobreza, eliminando dela a miséria. (...) se aos ricos compete insti-
tuir O salario (...) importa, por outro lado, que o pobre limite as suas
pretensões” (leixeira Mendes, 1889: 9).
A legislação social era apresentada como “proteção do fraco pelo
forte”. Garantindo condições justas de trabalho, julgavam que se evita-
ria o “conflito social moderno”, a luta aberta entre o capital e o traba-
lho. A superação da sociedade de classes era impensável: a hierarquia
social sempre se reporia, de modo que cada sociedade estaria 'inevitavel-
mente' dividida em uma classe superior, outra inferior (Lemos & Teixeira
Mendes, 1888).
A proteção ao trabalho era vista também como forma de manuten-
ção da ordem politica e da paz social. A preocupação com a ordem está
na raiz do proto-Estado do bem-estar positivista. Bosi (1992: 274) chega
mesmo a afirmar que o positivismo teria um “ideal reformista de Estado-
Providência: um vasto e organizado aparelho público que ao mesmo
tempo estimula a produção e corrige as desigualdades do mercado”. O
caminho para a paz social, argumentavam, consistia em evitar que a
desigualdade econômica redundasse em conflito social e em ruptura
revolucionâria.

A criação de direitos sociais extensíveis ao conjunto dos brasileiros


era contrabajançada por uma nova hierarquia das funções políticas. O
exercicio da política vinha definido como dever social, sendo o voto uma
função social, e não um direito individual. A reforma das instituições
políticas deveria instituir a República e culminar numa “ditadura” re-
publicana. Seu governo ideal teria um regime de moralidade pública:
um executivo forte, eleito por aclamação e ratificado por plebiscito. O sis-
tema de representação política do liberalismo perderia sentido. O legis-
tativo ficaria reduzido a fiscalização da execução orçamentária. A re-
lação entre o chefe do executivo — “ditador” em referência à República
romana — e os cidadãos se faria diretamente, numa prestação de contas
publica e anual. Acreditavam que só uma República presidencialista
forte e moralmente orientada pelo positivismo seria capaz de controlar
a modernização capitalista (Alonso, 2002). Esse regime de salvação na-
cional foi apelidado de jacobino por seus adversários.
O lema positivista “não se destrói senão aquilo que se pode cons-
truir” sintetiza o empenho em inventar novos princípios de organiza-
ção social e politica que ampliassem a cidadania civil, preservando a
merarquia sociopolítica.
Ciência, Política e Relações Internacionais

O programa de reformas dos positivistas enfatizava o desenvolvi-


mento econômico, era nacionalista e centralizador. Propunha um sistema
capitalista paternal, o progresso industrial levado a cabo pelo governo,
mas com a “incorporação do proletariado”, isto é, com a extensão de
direitos civis e sociais.

Esse paternalismo alcançava seu ápice na criação de uma elite ilus-


trada. À condução política da reforma social seria regrada. Os positi-
vistas temiam os efeitos disruptivos da entrada das massas na política.
Para refreá-la, recomendavam a concentração de poder em uma elite
tecnocrática. Assim, apresentavam-se como líderes intelectuais e morais
dos novos tempos. Apenas o positivismo poderia esclarecer o “povo” e
orientar os governantes (Lemos, 1884). Essa combinação de elitismo polí-
tico e defesa de reformas sociais compõe uma das facetas do “elitismo
benevolente” da geração 1870 (Alonso, 2002).
Essa plataforma, que germinou na última década do Império e pri-
meira da República, acabou solapada pela conformação liberal que a
República Velha tomou. Todavia, não desapareceu. Houve um desdo-
bramento regional dessa linhagem. No Rio Grande do Sul, várias pro-
postas da pauta positivista viraram leis tanto no governo do positivista
Julio de Castilhos quanto no do castilhista Borges de Medeiros. Foram
implementadas medidas como imposto territorial, isenções fiscais às
manufaturas locais, socialização dos serviços públicos, medidas de pro-
teção social, educação pública e equilíbrio orçamentário (Love, 1971).
De outra parte, embora não tenha se encarnado em instituições, esse
projeto de Estado forte com políticas de bem-estar social sobreviveu no
debate político. Comentando a atuação política dos positivistas na Pri-
meira República, Nachmann (1972: 74) conclui que “esse novo
paternalismo encontraria sua mais completa expressão no regime de
4
Getúlio Vargas”.

O reformismo da década de 1930

Na década de 1930 essa linhagem estava bem viva. O projeto nacio-


nal de modernização de Vargas é o ápice de um movimento de reação
antiliberal que começara em fins do Império e tivera fraca vigência nos
governos militares de Floriano e Deodoro. Evidentemente não se trata
de imaginar uma tradução direta da plataforma positivista em políticas
publicas. Não afirmo que as idéias positivistas tenham se cristalizado
Raízes positivistas do reformismo dos anos 1930

em política de Estado no governo Vargas. E da natureza da própria polí-


tica IMmpor constrangimentos e negociações aos projetos e volições dos
agentes. O que gostaria de salientar é esse tempero positivista do
varguismo, com sua preocupação com a extensão de políticas sociais e
seu gosto assemelhado pela centralização política.
Ha uma espécie de ar de família entre o positivismo e o varguismo.
Em seus próprios discursos de candidato e de presidente recém-eleito,
Vargas deixa transparecer essa semelhança. A tônica está na crítica ao
Estado liberal, sobretudo na ascendência do executivo sobre os dois ou-
tros poderes. Está também na denúncia da condução oligárquica da poli-
tica e da exclusão popular. O candidato fala mesmo em revolução: “a na-
ção em armas contra o despotismo” (apud Lippi de Oliveira, 1983: 429).
OQ presidente matiza esse radicalismo. Vargas pretende governar tendo
por base não o povo organizado, mas tutelado pelo Estado, o que Trin-
dade (1974) chamou de “autoritarismo desmobilizador”. Perdura, to-
davia, a preocupação para com os direitos sociais, cara ao positivismo.
As políticas sociais do governo Vargas tinham por ponto de fuga um
capitalismo com justiça social. Segundo Werneck Vianna (1978), de uma
parte, visavam a propiciar melhores condições de reprodução da força
de trabalho; de outra, incorporavam paternalmente o proletariado, ex-
pandindo direitos sociais e educação pública. Ao invés do livre jogo
entre capital/trabalho, postulado do liberalismo e base de desenvolvi-
mento do capitalismo europeu, regulava-se o conflito. A criação do Minis-
tério do Trabalho, da Indústria e Comércio em 1930 é exemplar: seu in-
tuito era justamente, segundo o próprio Vargas, substituir a luta de clas-
ses pela colaboração entre elas. O Estado se adiantava ao mercado ainda
em constituição, fornecendo um conjunto de proteções sociais à sua base
política: o povo — processo que Werneck Vianna (1978: 35) chamou de
“ideologia da outorga”. Nesse nível de extensão das políticas sociais,
podemos falar de um tipo peculiar de Estado de bem-estar.
lodavia, não ha a contraparte européia, a social-democracia. O pro-
jeto de desenvolvimento econômico deveria ser conduzido por uma elite
tecnocrática que controlasse seus possíveis impactos negativos sobre a
paz social. O Estado deveria tomar as rédeas do capitalismo, impedindo
a emersão do conflito, garantindo a harmonia social. Aí entravam em
cena os sindicatos e as cooperativas. O corporativismo é o modo pelo
qual a politica tutelar do Estado sobre o mercado de trabalho se materiali-
zava: o Estado organizava as próprias relações trabalhistas (Carneiro
Ciência, Política e Relações Internacionais

Araújo, 1995). Ai está a herança positivista e a distinção com a social-


democracia européia, numa reedição do elitismo benevolente da gera-
ção 18/0. À tuteia estatal é a versão da máxima positivista que admoesta
os fortes a proteger os fracos.
A legislação trabalhista tinha, assim, uma dupla face: era moderna,
rompendo com a ordem tradicional; era elitista e centralizadora, man-
tendo o controle da política nas mãos do Estado. As interventorias obe-
deceram a essa dinâmica: levando princípios modernos a rincões oligár-
quicos e, nesse sentido, afrontando elites locais. Mas nunca radicalizaram
a ponto de romper inteiramente as bases do antigo status quo. Foi nessa
atmosfera que Paulo Carneiro foi trabalhar na interventoria de
Pernambuco na decada de 1930.

O projeto de legislação social de Paulo Carneiro

Segundo seu próprio depoimento (Carneiro, 1979), Paulo Carneiro


nasceu numa famihia positivista. Seus pais se casaram conforme o rito
civil instituído por Comte e o educaram nesse universo. À moda positi-
vista, estudou em casa e na Igreja Positivista, onde recebeu ensinamentos
sobre ciências e humanidades diretamente de Cândido Rondon e de
teixeira Mendes,” a cujas “prédicas dominicais” comparecia. Também
em acordo com esses preceitos, empregou-se, na adolescência, como
aprendiz de fundidor. Essa formação positivista deixou marcas indelé-
veis em sua personalidade e em sua trajetória de homem público.
Liplomado em engenharia quimica pela Escola Politécnica do Rio de
Janeiro, partiu para um doutorado na Sorbonne. O positivismo se mani-
festou na eleição por Paris — capital do Ocidente, segundo a doutrina -,
na opção pela carreira científica e por um trabalho que tratasse de pro-
blemas locais e pudesse ter impactos práticos: Paulo Carneiro fez tese
sobre o guaraná. Em Paris, prestou homenagem a Comte, indo visitar-
lhe a casa. Acabou tornando-se responsável e financiador da publicação
dos manuscritos do mestre.

A carreira do estudante prosperou graças ao capital social dos pais.


A mãe vinha de uma familia maranhense de proprietários de engenhos
em decadência, o pai era um alto burocrata do Ministério da Agricultura.
lal posição social deve ter ajudado sua inserção profissional quando de
sua voita ao Brasil, em 1931. Inicialmente tornou-se professor da Escola
Normal e engrossou as fileiras de Fernando de Azevedo e seu movimento
Raizes positivistas do reformismo dos anos 1930

pela Escola Nova. Dois anos mais tarde se tornou livre-docente da Es-
cola Politécnica.

Latam dessa época suas relações com o governo Vargas, que ava-
liava com entusiasmo: “Esse período pós-revolucionário foi extrema-
mente fecundo no Brasil. Surgiram iniciativas científicas, tecnológicas
ce todos os lados” (Carneiro, 1979: 4)
Entre 1933 e 1935 Paulo Carneiro trabalhou para o governo Vargas.
deu pai, Mario Carneiro, mantinha conexões com o varguismo, tendo
chegado a ministro Interino da Agricultura. Paulo Carneiro foi eleito
diretor da Divisão de Matérias-Primas Vegetais e Animais do Instituto
Nacional de Tecnologia (Carneiro, 1979). Foi como emissário do gover-
no central que partiu para Pernambuco.
Carneiro levou na mala suas crenças na reforma social orientada pelo
positivismo. Espirito geral que também animava o ministro, como se
pode ver no fecho da carta de liberação de Carneiro: “saúde e frater-
nidade”, fórmula positivista ressuscitada da Revolução Francesa:
A 15 de abril de 1935, Carneiro foi nomeado pelo interventor de
Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, “a fim de estudar e orientar a
reorganização dos serviços agricolas do estado, para exercer, em comissão,
o cargo de secretário de estado dos Negócios da Agricultura, Indústria e
Comércio”.” A missão de Carneiro era instalar a estrutura burocrática e
tornar-se o primeiro secretário de Agricultura, Indústria e Comércio de
Pernambuco. “Fui com o objetivo essencial de dar a Pernambuco uma
dupla organização que lhe faltava: científica de um lado e social de outro”
(Carneiro, 1979: 2).
Do ângulo “cientifico”, o Paulo Carneiro da década de 1930, com trinta
anos ele também, trazia uma crença inabalável nas capacidades civili-
zatórias da ciência. Essa têmpera positivista está claramente expressa
em seu discurso de posse na Secretaria de Agricultura:

De acordo com as fatalidades naturais a que está sujeita a evolução


humana, tende cada vez mais o nosso espirito para as especulações de
ordem científica, únicas capazes de fundar, sobre bases estáveis, o re-
gime industrial adequado à crescente sociabilidade de nossa espécie.
(Carneiro, 07/9/1935: 8)

O positivismo comparece no discurso, vazado em vocabulário comtiano,


nas referências a seu panteão de ídolos — indo de Comte a Condorcet e
Ciência, Política e Relações Internacionais

Bacon — e no lema “prever para prover”. O positivismo estrutura so-


bretudo a visão de Paulo Carneiro no que diz respeito à relação entre ci-
ência e política. Via a ciência como o caminho e as instituições cientifi-
cas como instrumento indispensável do progresso.”
Carneiro defendia, como Comte, uma república de cientistas. A ne-
cessidade de condução da política por uma elite ilustrada fica patente
neste trecho: “Os grandes problemas da política moderna escapam (...)
à alçada dos parlamentos e dos gabinetes burocráticos: são problemas
de laboratório” (Carneiro, 07/9/1935: 12).
Foi com essas idéias em mente que Carneiro criou o Instituto de Pesqua-
sas Agronômicas de Pernambuco, em 1935. Seu modelo era o Instituto
Agronômico de Campinas e o Instituto Butantã em São Paulo. Carneiro
pretendia congregar ali uma elite ilustrada — “homens de ciências do
mundo inteiro” — que renovasse a economia pernambucana (Carneiro,
07/9/1935: 4).
A empreitada “social” a que Carneiro se lançou em Pernambuco tinha
também forte ressonância positivista. A questão candente para Carneiro
era a mesma de Teixeira Mendes: o trabalhador. Enquanto Teixeira Mendes,
escrevendo no Rio de Janeiro da virada do século XIX para o AX, vira
como questão crucial o trabalho urbano, Carneiro encontrou o atraso da
lavoura pernambucana e se chocou com a miséria rural. Diagnosticava
uma situação de penúria tanto entre trabalhadores rurais quanto urba-
nos: “míngua de alimentação, impropriedade das habitações, insufici-
ência de instrução, falta irremediável de assistência sanitária, mortali-
dade infantil desmesurada e (...) baixo rendimento econômico de cada
trabalhador” (Carneiro, 25/09/1935: 2). Esse quadro fomentava tanto a
decadência quanto a revolta social: “Está aí, em jogo, o futuro de nossa
nacionalidade, ameaçada (...) pelos germes de revolta que fermentam
em suas massas produtoras” (Carneiro, 25/09/1955: 4).
Para evitar essa hecatombe, propunha, na via positivista, “reforma
social lenta, mas ininterrupta”. Carneiro buscava uma maneira de melho-
rar as condições de trabalho de modo a evitar o êxodo de trabalhadores
para o Sudeste e a prevenir possíveis revoltas. “Como fixar este traba-
lhador rural? Esse foi o problema moral que se colocou a mim em termos
de administração” (Carneiro, 1979: 2). Foi então que redigiu um pequeno
projeto de legislação social, cuja justificativa e pontos centrais coinci-
dem com os de Teixeira Mendes.
Raizes positivistas do reformismo dos anos 1930

todavia, enquanto o projeto de Teixeira Mendes se concentrara na


regulamentação das condições de trabalho, Paulo Carneiro pensava em
politicas sociais stricto sensu. Seu programa trazia seis pontos, a saber:
educação, saúde, habitação, salários e cooperativas de consumo e segu-
rança alimentar, que seria o ponto de partida. Carneiro propunha a de-
finição de um “tipo normal de ração” a preço de custo, subsidiada por
empresas. Para extinguir os mocambos, previa a construção de “habita-
ções urbanas e rurais para famílias proletárias”. Apresentava um pro-
grama de saude pública de amplo espectro, com instalação de centros
de saude gratuitos. Propunha a expansão da escolarização, com escolas
diurnas e noturnas e programas de alfabetização de adultos. Finalmente,
no melhor espírito do varguismo, recomendava a organização de coope-
raivas de consumo para prover alimentação e vestuário. As cooperati-
vas seriam os “princípios da economia nova, orientada não mais no sen-
tido do lucro, porém no da harmonia” (Carneiro, 25/09/1935: 2). Organi-
zação econômica a ser completada por uma política salarial que levasse à
“gradual adaptação dos salários ao padrão de vida” (Carneiro, 25/09/1935:
9). Carneiro falava ainda em “fraternidade” no tratamento dos trabalha-
dores pobres como alternativa à repressão.
Carneiro conseguiu que seu projeto de cooperativas fosse apadrinhado
peto então ministro da Agricultura, Odilon Braga. Acabou incluído no
anteprojeto de Constituição então em debate. De outra parte, procurou
dar bases materiais para suas idéias, buscando financiamento. Nesse
sentido, conseguiu um empréstimo do Banco do Brasil para subsidiar as
“Cooperativas de crédito, consumo e produção” sob a forma de crédito
agricola (Carneiro, 25/09/1935). Carneiro vislumbrou ainda que a alter-
nativa econômica para Pernambuco estava na especialização econômica.
Foram nessa direção suas negociações para que o governo do estado
adquirisse controle sobre a “produção vegetal e animal” nacional (Car-
neiro, 25/09/1935).
Sua proposta incluía ainda a concessão de terras para agricultura:
“Propus então que se instituísse não uma divisão de terras, mas a atri-
buição, em cada grande propriedade agrícola, de uma área destinada à
alimentação da sua massa trabalhadora” (Carneiro, 1979: 2).
O projeto levantou grande reação. Embora não previsse desapropri-
ações de terra, contou com o desagrado dos senhores de engenho. De
outro lado, a oposição ao varguismo atacou o projeto: “Há dias na Cà-
mara mais de um orador da oposição (...) [tem apontado] o professor Paulo
Ciência, Política e Relações Internacionais

Carneiro como extremista” (O Globo, 12/05/1937). Em artigo no Diário da


Noite (21/10/1935), Austragésilo de Athayde sumarizou as razões da grita
contra O projeto: “Creio que o secretário da Agricultura de Pernambuco,
S+ Paulo Carneiro, vai ser tachado de vermelho, só porque voltou os
olhos para os 'mocambos” e quis melhorar a sorte dos operários das
usinas e dos engenhos”. No mesmo sentido, o Diário Carioca (22/10/1955)
apoiava O projeto, mas também lembrava: “Não faltará €.) quem o venha
axar de comunista”. As dificuldades brotavam, pois, não só do conteúdo
proposto, como também de sua associação com o comunismo.
Paulo Carneiro recorreu a duas estratégias de legitimação para salvar
seu projeto. De uma parte, lançou mão de uma tática inusitada. Postiti-
vista, assumidamente ateu, buscou o apoio da Igreja Católica.” Lançou uma
carta aberta às autoridades eclesiásticas do estado, intitulada “A Igreja e
o Estado em prol do trabalhador pernambucano: apelo ao clero católico”.
O Diário Carioca (22/10/1935) resumia que “seu apelo ao clero catolico
representa, antes de tudo, um gesto de defesa”. Carneiro pedia a bênção
dos bispos de Pernambuco às suas medidas de proteção social: “Cabe ao
poder sacerdotal o insubstituível papel de diretor de consciências, orI-
entando a opinião pública para aceitação das medidas (...) de incorpora-
ção social do proletariado” (Carneiro, 25/09/1935: 5-6). Carneiro pedia ainda
que a Igreja auxiliasse o Estado na tarefa. Todos os bispos responderam,
senão simpáticos, cordatos. A Igreja estava neutralizada como oposição.
De outra parte, Carneiro fez política institucional. Apresentou pus
idéias no Rio, durante a Conferência dos Interventores, como forma de
conter o êxodo rural? Com o mesmo objetivo, foi à Câmara defender
suas idéias.3 Declarou, na ocasião, que “todos os meus planos de or-
ganização técnica da administração pernambucana se ajustam aos qua-
Aros das nossas leis sociais, estando dentro do ambiente criado pela
própria Constituição”.!* Carneiro (1979) contou, segundo relata, com
ampla simpatia da 'mocidade”. E, como se pode ver pelas notícias Lis
culadas, também da imprensa, que tratou suas iniciativas como “um “teste
do Pernambuco novo, desperto da letargia dos engenhos para os come-
timentos audazes de culturas novas e de novas indústrias” (O Malho,
10/10/1935). O título que O Globo deu à matéria em que apresentava as
acusações a Carneiro é ilustrativa da simpatia que angariara: “Dentro
do trabalho, fora dos extremismos”.

Enquanto a oposição tentava associá-lo ao comunismo, Careiro apre-


sentava seu projeto como o de um “técnico apolítico”, apartado das ques-
Raízes positivistas do reformismo dos anos 1930

tões partidárias. O que o interessava, dizia, “não era o problema politi-


co no sentido partidário, mas social no sentido filosófico e humano”
Careiro insistia no caráter positivista de sua iniciativa: “Pessoalmente,
estou tão longe dos extremismos que toda a minha formação espiritual
toi feita debaixo das influências da escola positivista, à qual me filio na
medida das minhas forças”.º Todavia, a oposição à legislação trabalhista
de Carneiro várias vezes associou seu projeto positivista a um credo comu-
nista. Essa confusão, que Carneiro não logrou desfazer, alimentava-se da
dupla semelhança entre o comunismo e o positivismo: ênfase em direitos
sociais e crítica às instituições politicas liberais.

Queda

O projeto de legislação social de Carneiro não foi aprovado: “Passou na pri


meira discussão, na segunda, na terceira foi afastado” (Carneiro, 1979: 2).
A própria carreira politica de Carneiro seria também cortada na raiz.
Suas atividades à frente da Secretaria da Agricultura foram abrupta-
mente interrompidas com a Intentona Comunista de 1935. O próprio
Paulo Carneiro atribuiu o insucesso de seu programa reformista à
Intentona, que, “tão inoportuna quanto estúpida, quebrou completamente
a possibilidade de renovação num estado de vida política extremamente
complexa como a de Pernambuco” (Carneiro, 1979: 3).
Em Pernambuco, dois secretários de estado, Nelson Coutinho e Silvio
Granville da Costa, foram acusados de atividades comunistas e presos.
O então interventor federal, Carlos de Lima Cavalcanti, embora ausente
do estado durante os acontecimentos, foi tido como conivente com as
atividades de seus secretarios de “orientação rigorosamente marxista”
(O Globo, 12/05/1937) por libertá-los da prisão ao regressar ao Recife.
Pouco depois, o mterventor seria substituido por um governador interino,
Antonio Vicente de Andrada Bezerra, e alvo de processo penal “pelo
aliciamento consciente de pessoas declaradas e reconhecidamente co-
munistas para atuar em seu governo”, nos termos do despacho do procu-
rador responsável pelo caso em 16 de julho de 1934 (O Globo, 12/05/1937).
A situação de Paulo Carneiro tornou-se insustentável. Desde longo
tempo acusado de comunista por adversários políticos, em virtude de
suas propostas trabalhistas, o secretário viu-se associado publicamente
a tentativa malograda de golpe. Carneiro escreveu, então, uma carta
aberta de demissão, veiculada pelo Diário da Manhã em 27/11/1935 e pelo
Ciência, Política e Relações Internacionais

Diário de Notícias, no Rio de Janeiro, três dias mais tarde, em atendimento


a nota de próprio punho de Carneiro: “Peço que seja dada toda a publi-
cidade possivel, na imprensa, a esta carta, para evitar exploração”.” A
carta, dirigida ao novo interventor, e uma profissão de fe positivista. Acen-
tuando essa vinculação, Carneiro tentava a um só tempo afastar a pecha
d e c o m u n i s t a e r e a fi r m a r o “ a p o l í t i c o ” , t é c n i c o , d e s u a p a r t i c i -
pação no governo:

Quero espontaneamente declarar-lhe, neste documento público, que


sou de formação ideológica positivista, sem ligação com qualquer par-
tido (...). Como positivista, fiz voto de não-violência, sendo formalmente
contrário as reformas sociais impostas por motins ou revoluções. Nunca
tomei, nem tomarei, parte em quaisquer agitações da ordem. (Carneiro,
2//11/1955)

Carneiro se afastava da tentativa de golpe, mas, ao apresentar sua de-


missão, reafirmava O programa que procurara implementar na secretaria
e sua fidelidade ao governador deposto.
Houve reviravolta em Pernambuco, e Lima Cavalcanti retornou ao
cargo de governador ainda em 1935. Não obstante, a demissão de Paulo
Carneiro foi aceita. lalvez porque a tensão politica do ano de 1935 “me
fez dizer ao governador que ele próprio não tinha mais (...) a confiança
do parlamento e da opinião pública. Tudo que se faria a partir dali como
progresso social pareceria suspeito” (Carneiro, 19/79: 4).
Também em carta aberta, o governador agradeceu ao “prezado ami-
go” pelos “serviços que prestou” e “ao sentimento de lealdade” que lhe
devotara. O governador assegurou que garantiria a continuidade de suas
iniciativas, nomeando um técnico de carreira indicado pelo próprio Car-
neiro para substituí-lo (apud Diário da Manhã, 08/12/1935).
Vargas decretou estado de sitio em 1935 e, no ano seguinte, conse-
guiu aprovar no Congresso um conjunto de medidas de exceção. Em
1937 se imstalaria o Estado Novo.

Diante do novo quadro político, Paulo Carneiro preferiu uma espécie


de auto-exilio, pois “estava bastante malvisto nos meios políticos brasi-
leiros, suspeito das piores intenções porque havia tentado uma renovação
econômica e social em Pernambuco”. Conseguiu uma bolsa para retornar
a carreira científica no Instituto Pasteur, na França. Em entrevista, relata
auto-lrônico o desfecho de sua experiência no varguismo. Na conversa
Raizes positivistas do reformismo dos anos 1930

que teve com o ainda ministro Agamenon Magalhães quando de seu


retorno ao INT, disse: “Estou recebendo este convite [a bolsa no Pasteur)”,
e ele falou: “Parta o mais cedo possível” (Carneiro, 1979: 3).
Posteriormente, Carneiro tentaria reatar relações com o governo
Vargas. Em agosto de 1945, sugeriu ao Ministério da Agricultura a cria-
ção do Instituto da Hiléia Amazônica (Maio & Sá, 2000). A idéia não
andou. “Esse projeto, como era hábito do presidente Vargas, foi por ele
encaminhado para os serviços competentes e passou uns seis meses de
mão em mão no Ministério da Agricultura” (Carneiro, 1979: 24) até ser
finalmente rejeitado.
Alijado da política nacional, Carneiro voltou-se, então, para um pro-
jeto que teria feito brilhar os olhos de Comte: a constituição de uma elite
de cientistas a serviço da humanidade. E foi criar a Unesco.

Conclusão

A partir da reconstrução do projeto de legislação social de Paulo Car-


neiro na decada de 1930, procurei chamar a atenção para o caráter
constitutivo do positivismo na sua arquitetura. Creio que essa filiação à
vertente positivista da tradição reformista brasileira fica clara tanto nas
declarações de Carneiro quanto no cotejamento de suas propostas com
aquelas apresentadas por Teixeira Mendes cerca de 40 anos antes.
As semelhanças dos dois projetos, tanto no que concerne ao fim a
atingir — harmonia social pela expansão de direitos sociais —, quanto ao
meio pelo qual fazê-lo — a tutela estatal —, mostra que as características
que Lamounier, Sadek e Lippi de Oliveira identificaram no pensamento
político da Primeira República são mais antigas e enraizadas. Parecem
constituir uma tradição brasileira.
O elitismo benevolente está presente não só na via da mudança, as
reformas pelo alto, como também no seu resultado. A expansão de di-
reitos sociais é o meio de evitar a eclosão do conflito social, não de ins-
taurar igualdade. Mas mesmo essa via moderada, da qual Paulo Carneiro
foi adepto, parece ter sido, desde o Segundo Reinado até a década de
1950, por demais radical para encontrar acolhida junto às instituições
políticas brasileiras.
Agradeço a Marcos Chor Maio pelo convite e o estimulo para escrever este
artigo e aos pesquisadores responsáveis pelo acervo de Paulo Carneiro na
Fiocruz, pela ajuda na coleta de informações. Contei, como sempre, com a
leitura atenta de Fernando Limongi.

Notas

* Entre os quais se destacam Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Azevedo Amaral, Otávio
de Faria, Oliveira Vianna, Virgilio Santa Rosa, Afonso Arinos de Melo Franco, José Maria Belo,
Barbosa Lima Sobrinho, Martins de Almeida, Alcino Sodré, Ronald de Carvalho, Sérgio Buarque
de Holanda, Hélio Vianna, Candido Motta Filho, Paulo Prado, Capistrano de Abreu, Alcides
Gentil (Trindade, 1974).
* Com destaque para Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral.
? Para uma análise pormenorizada do esquema analítico e do projeto de reformas dos
positivistas abolicionistas durante o Império, ver Alonso, 2002: capítulo 2.
* Argumento semelhante aparece em Tocary Bastos (1965), que defende o prolongamento
da influência do positivismo até Vargas.
> A admiração de Carneiro por Teixeira Mendes se estendeu por toda a vida. Ainda em 1974,
propôs a criação de “uma cátedra destinada ao estudo de seus trabalhos, inserindo-a de modo
permanente no seu curriculum”, na Universidade do Maranhão. Discurso em homenagem a
Teixeira Mendes, 07/02/1974. Arquivo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 06.
* “Sua família tinha raízes nas elites políticas imperiais no Maranhão, Minas Gerais e Rio de
Janeiro” (Maio & 5a, 2000: 978).
* Agamenon Magalhães, então ministro do Trabalho, Comércio e Indústria, ministério ao qual
o Instituto Nacional de lecnologia (INT) era subordinado, liberou Paulo Carneiro dos serviços
federais, deixando-o “a disposição” da Interventoria Federal em Pernambuco.
º Despacho do ministro do Trabalho, Comércio e Indústria, Agamenon Magalhães, 02/02/1935.
Arquivo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 46, pasta 01.
? Despacho do Governador do Estado de Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, 15/04/
1935. Arquivo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 46, pasta 01.
1º “O Brasil emerge, pouco a pouco, de um longo passado sem história científica para a
vanguarda dos primeiros prélios” (Carneiro, 07/09/1935: 10). Razão pela qual festejou
Manguinhos e Oswaldo Cruz, laboratórios que estariam mudando o pais.
4 Note-se que na década de 1930 estavam ativas as ligas eleitorais católicas, que se carac-
terizavam pela “defesa dos preceitos católicos” e pelo combate ao comunismo (bem, como
ao divórcio e à laicização da educação) (Franco, 1983: 474).
'* Recorte de jornal não identificado noticiando a conferência dos interventores. Arquivo
Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 41.

1º O recorte de um jornal não identificado registra: “A sessão da Constituinte esteve bas-


tante movimentada. Compareceu o Sr. Paulo Carneiro, para responder às acusações de que
vem sendo alvo na imprensa oposicionista”. Arquivo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz,
cx. 41.

4 O Globo, sem data. Arquivo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 41.


Raízes positivistas do reformismo dos anos 1930

O Globo, sem data. Arquivo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 41.


16 Globo, sem data. Arquivo Família Carneiro, cx. 41.
comentário está anexo ao recorte do artigo do Diário da Manhã de 27/11/1935. Arquivo
Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 14.
18 “Sendo, como sou, um secretário da confiança exclusiva do governador Lima Cavalcanti,
sem o menor caráter político, deponho, nas mãos de V. Ex.º, o cargo que ocupo” (Carneiro,
Diário da Manhã, 27/11/1935).

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Paulo Carneiro e o curare: em busca do
principio ativo
Magali Romero Sá

Descoberta em Paris por um sctentista brasileiro a composição


do 'curare”. Solucionou o importante problema scientifico o sr.
Paulo Carneiro.

(Diário de Noticias, 13/4/1938)

fe s manchetes dos jornais dos dias 12 e 13 de abril de 1938


estampavam em suas primeiras páginas a descoberta do
a cientista brasileiro Paulo Estevão de Berrêdo Cameiro em Paris.
Trabalhando no Instituto Pasteur com o quimico Gabriel Bertrand,
Carneiro conseguiu isolar dois alcalóides de Strychnos lethalis — planta
da família das Loganiaceae — de poder curarizante. Esta descoberta con-
tribuiria para esclarecer antigas discussões sobre a composição quimica
do curare que perduravam havia quase um século.
Seu sucesso em Paris consolidava sua trajetória como cientista, ini-
ciada em fins da década de 1920, quando, pelo seu desempenho e pri-
meira colocação no curso de Quimica Industrial na Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, foi premiado por Lineu de Paula Machado com bolsa
de estudos para fazer seu doutorado em Paris.' Laureado tanto na França
como no Brasil por sua pesquisa pioneira em busca do principio ativo
do curare, Carneiro, contudo, despertou um ano mais tarde a radical
reprovação de alguns acadêmicos franceses, ao discordar de antigas Inter-
pretações em relação aos efeitos fisiológicos do veneno. No entanto, apoiado
por seu mestre Gabriel Bertrand e outros pesquisadores, conseguiu ven-
cer a resistência da Academia Francesa, tendo seu trabalho publicado
Ciência, Política e Relações Internacionais

nos anais do Instituto Pasteur e nos Comptes Rendus da Academia de Ci-


encias de Paris.

O presente artigo objetiva resgatar a memória dos estudos de Paulo


Carneiro a respeito do curare e a curarização, sob as perspectivas de sua
trajetória científica, formação familiar positivista, influência de seu pai
Mario Barbosa Carneiro e de mestres como Júlio Lohmann, no Brasil, e
Gabriel Bertrand, em Paris.

Formação profissional

Criado no seio de uma tradicional família positivista, Carneiro teve


rigida formação científica e humanista, norteadora de suas futuras ini-
ciativas acadêmicas e profissionais. Nascido em 1901, na cidade do Rio
de Janeiro, era filho de Mario Barbosa Carneiro, considerado funcionário
exemplar do Ministério da Agricultura e um dos primeiros adeptos do
positivismo no Brasil.
Após uma educação tutorial doméstica até o nível secundário, Car-
neiro ingressou, em 1921, no recém-criado curso de Química Industrial,
anexo à Escola Politécnica do Rio de Janeiro. À época, o estudo de química
se mostrava em franca ascensão, estimulado pelo florescimento indus-
trial do país e pela expansão de novas culturas agrícolas. Segundo
ochwartzman (1979), a ênfase dada à educação técnico-profissional se-
guia os ideais positivistas, que predominavam nos setores mais progres-
sistas do pais. Novos cursos criados no Brasil no início da década de 1920
eram regulamentados e subvencionados pelo Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio e tinham, como objetivo precípuo, a formação de
químicos profissionais para a indústria e os institutos de pesquisa apli-
cada (Rheinboldt, 1994).

N e s s e a m b i e n t e e s t i m u l a n t e , C a r n e i r o i r i a e n c o n t r a r, n o c o r p o d o -
cente, um de seus futuros mentores e amigos: o químico holandês Carlos
Ernesto Julio Lohmann. Este aportou no Brasil em 1906, acompanhado
de esposa e filha, devido a um convite feito pelo professor e parlamentar
baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida para estudar a cultura e O
beneficiamento do fumo no Instituto Agrícola de São Bento das Lages,
no Recôncavo Baiano. Chegou com uma bagagem científica sólida, for-
mada primeiramente na prática, quando se iniciou na profissão atuando
como assistente do Laboratório de Química Vegetal do Jardim Botânico
de Buitenzorg, em Java, onde desenvolveu estudos sobre a composição
Paulo Carneiro e o curare

quimica do chá. A consolidação teórica de seus conhecimentos se deu


quando estudante de doutorado na Universidade de Jena, na Alema-
nha, um dos centros europeus mais desenvolvidos na área de quimica.
A bagagem cientifica de Lohmann, associada à sua experiência no
estudo de grupos de plantas de interesse médico e econômico, fazia dele
o profissional ideal para dirigir o instituto. Entretanto, sua permanência
na instituição baiana não logrou êxito em virtude da resistência de téc-
nicos e fazendeiros locais às suas idéias inovadoras. Tão logo cumpriu
suas obrigações contratuais, de três anos, Lonhmann mudou-se para o
Rio de Janeiro, a fim de ocupar a chefia do Laboratório de Química Ve-
getal, no Museu Nacional, a convite de Roquette-Pinto. Ali iniciou pes-
quisa sobre o mate, tendo elaborado plano de estudos sobre plantas me-
dicinais e tóxicas.

Com a extinção do laboratório, não pôde dar continuidade a seus


estudos. Desse modo, aceitou o convite para dirigir uma Estação Cen-
tral de Quimica Agricola, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Porém,
devido a problemas burocráticos, a criação da estação não se concreti-
zou, não tendo Lonmam conseguido, também desta feita, levar a cabo
seu projeto. Finalmente, em 1916, surgiu a oportunidade para definiti-
vamente colocar seus conhecimentos em prática: foi aberto concurso para
o cargo de professor substituto para a cadeira de Quimica Geral e
lhorgânica da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Após dois anos atu-
ando interinamente, Lohmann foi efetivado como titular em 1918.

Segundo Carneiro, o curso ministrado pelo professor contribuiu para


imprimir um novo rumo ao ensino da quimica, especialmente por rom-
per com antigas tradições e desconsiderar rotinas ultrapassadas. No
curso, as experiências constituiam parte obrigatória de todas as aulas,
pois o trabalho prático em pequenos grupos, na intimidade do laborató-
rio, facilitava o convívio de Lohmann com seus alunos, o que estimulava
o dialogo e a troca de informações, sempre enriquecedoras.'
Entusiasmado com seu professor e sua disciplina, Carneiro atuou
como auxiliar gratuito de Lohmann antes mesmo de se formar. E, após
um ano, foi nomeado assistente das aulas teóricas e práticas da disciplina.
Em 1922, ainda estudante, Carneiro passou a lecionar na Escola Normal,
regendo a cadeira de Quimica. Dois anos depois, tornou-se responsável
pela cadeira de História Natural. Quando da colação de grau, foi esco-
lhido, entre sete formandos, para discursar como representante na ceri-
mônia de formatura e comemoração do 50º aniversário da Fundação da
Ciência, Política e Relações Internacionais

Escola Politécnica do Rio de Janeiro (Barata, 1973).º Concomitantemente


as suas atividades docentes, Carneiro iniciou suas pesquisas científicas
tão logo se formou. Entre 1924 e 1925, foi contratado como químico pelo
derviço Geológico e Mineralógico do Brasil.
Criado em 1907 sob a direção de Orville Derby, o Serviço Geológico
abrigava, segundo Jesus Soares Pereira (apud Schwartzman, 1979), um
grupo altamente esclarecido, “preocupado com temas de política
econômica, em uma linha nacionalista”. Com o falecimento de Derby,
em 1915, assumiu a direção do serviço Gonzaga de Campos, um dos
membros de sua equipe, até então encarregado de “investigar as possibili-
dades petrolíferas no território nacional” (Figueirôa, 1997: 226). Segundo
Figueirôa, durante sua gestão o geólogo procurou colocar em produção
o que fosse possível, investigando depósitos de carvão, ocorrências de
minerais, levantando as principais fontes de energia hidráulica e dando
continuidade ao levantamento petrolífero.” Após sua morte, em 1922, a
direção ficou a cargo de Eusébio Paulo de Oliveira.
Seguindo orientação do Serviço Geológico, Carneiro procedeu à aná-
lise de vários minérios e minerais durante os nove meses em que traba-
lhou no laboratório, tendo apresentado seus resultados em comunicação
intitulada “Estudos de minérios e rochas realizados no Laboratório do
derviço Geológico e Mineralógico do Brasil em 1924”. Em julho de 1925,
transferiu-se para o Instituto de Química com o cargo de químico auxiliar.
Dirigido pelo químico Mario Saraiva, o instituto havia sido criado
em 1918 e tinha originalmente o ensino da química como atividade prio-
ritária. Apesar de os cursos terem sido muito bem programados, não
foram jamais implantados, sendo extintos em 1921. Dessa forma, a pes-
quisa cientifica passou a ser prioritária e recebeu maior incentivo. Justa-
mente nessa instituição, Carneiro iniciou suas pesquisas sobre a flora
brasileira, visando a benefícios e aplicabilidades de seus estudos. Du-
rante os primeiros anos de trabalho experimental, desenvolveu pesqui-
sas sobre Óleos vegetais que originaram os trabalhos “Constantes
physicas, composição chímica e applicações industriaes do óleo de Anda-
Açu: (Johannesia princeps)” e “Constantes physicas e composição
chimica da essência de Nhamuhy”, do Instituto de Chímica, 1926-1927?
Em 1927, surgiu excelente oportunidade para que Carneiro pudesse
aperfeiçoar seus estudos sobre os produtos naturais brasileiros em um
centro de excelência no exterior. Beneficiado por uma bolsa de estudo
oferecida por Lineu de Paula Machado, em decorrência de seu desempe-
Paulo Carnetro e o curare

nho quando estudante do curso de Química Industrial, viajou à França


para estudar com Gabriel Bertrand* no Instituto Pasteur. Cientista de renome
e um dos mais ativos pesquisadores em propriedades químicas de plantas
como o café e o mate, Bertrand publicara, à época, seis trabalhos sobre o
assunto e desenvolvera um método próprio para a dosagem de cafeína,
posteriormente utilizado por Carneiro em suas experiências químicas.
Licenciado de seu cargo no Instituto de Química, Carneiro levou con-
Sigo um projeto de estudo relativo ao guaraná,” um dos principais pro-
autos nativos da flora amazônica, O qual, apesar de muito utilizado por
indigenas e a população em geral, não tinha ainda estabelecido comple-
tamente o seu conteúdo químico. Para desenvolver as pesquisas, Car-
neiro contou com a ajuda de seu pai, então diretor geral da contabilidade
do Ministério da Agricultura, que lhe providenciou o envio de amostras
de guaraná da região de Maués, Amazonas. Em suas pesquisas, Carnei-
ro concluiu ser a planta do guaraná constituída de cafeína em doses
extremamente altas. Portanto, tinha grande utilidade como estimulante
sem, contudo, causar maiores danos à saúde; ao contrário do café, que,
ao passar pelo processo de torrefação, gera substâncias mais nocivas do
que a própria cafeina (Carneiro, 1931). A tese apresentada à Faculdade
de Ciências da Universidade de Paris se intitulou Le Cuaraná et Paulinia
Cupana H. B.: contribution à Vétude des plantes à caféine.
O interesse de Carneiro pela composição química dos produtos natu-
rais brasileiros iria marcar indelevelmente sua trajetória científica, con-
solidando internacionalmente seu nome como um dos mais prestigiados
cientistas brasileiros.

Carreira científica

Ão regressar ao Brasil em 1931, Carneiro encontrou o país recém-


saido de uma revolução, sob um governo provisório, com os estados sob
intervenção federal e o povo com a mesma renda de países como
Bangiadesh, Marrocos e Polônia (Silva, 1999). Novos ministérios estavam
sendo criados, instituições eram reformadas e, em meio a essa turbu-
lência, emergia uma das grandes preocupações da economia nacional: a
substituição do petróleo, combustível escasso e caro, por alternativa que
libertasse o pais da dependência internacional. Como solução para o
Brasil, estudava-se a utilização do álcool etílico como combustível para os
motores a explosão (Schwartzman & Castro, 1985). Esses estudos se in-
Ciência, Política e Relações Internacionais

tensificaram com a adição de 5% de álcool à gasolina importada,


obrigatoriedade estabelecida em 1931 pelo governo provisório de Getú-
lio Vargas, que promoveu a criação de uma Comissão de Estudos sobre
o Álcool-Motor no Ministério da Agricultura.
Carneiro teria atuação de destaque nesse momento. Em janeiro de
19533, foi nomeado auxiliar de gabinete do ministro Juarez Távora
(2º ministro da Agricultura do governo provisório). No mesmo ano, fez
parte da comissão encarregada de estudar a questão do álcool-motor
como problema intimamente ligado à defesa da produção do açúcar,
trabalhando com Leonardo Truda, diretor do Banco do Brasil, Adrião Ca-
minha Filho, diretor de Fomento e Defesa Agrícolas, e Ernesto Fonseca
Costa, diretor da Estação Experimental de Combustíveis e Minérios. Além
disso, foi indicado para membro relator da comissão organizadora do Ins-
tituto do Açúcar e do Álcool, criado em junho de 1933.1º
Nesse periodo, as instituições brasileiras passavam por reformas
(Schwartzman, 1979). Algumas foram extintas ou incorporadas a ou-
tras, como o caso do Instituto de Óleos do Ministério da Agricultura,
onde Carneiro esteve lotado desde outubro de 1931, trabalhando como
chefe da seção de Pesquisas Industriais Agrícolas.” Em 1933, Carneiro
tor nomeado assistente-chefe do Instituto Geológico e Mineralógico do
Brasil (GMB). Porém, como no mesmo ano o IGMB se incorporou ao
recém-criado Instituto de Tecnologia (TT),!2 Carneiro foi absorvido pela nova
instituição com o mesmo cargo de assistente-chefe, indo atuar na
nova Divisão de Matérias-Primas Vegetais e Animais.

O Instituto Nacional de Tecnologia: os primeiros


estudos com o curare

Em dezembro de 1921, objetivando desenvolver a indústria nacional,


foi criada a Estação Experimental de Combustíveis e Minérios, subordi-
nada ao Ministério da Agricultura sob a gestão do ministro Luis Simões
Lopes. A medida do governo brasileiro sob a presidência de Epitácio
Pessoa foi alavancada principalmente pelos inúmeros contratempos sur-
gidos com a importação de produtos químicos básicos durante e após a
Primeira Guerra Mundial. À época, buscava-se atingir maior indepen-
dência da industria brasileira, com o desenvolvimento de uma instituição
de pesquisa voltada para os estudos dos recursos energéticos e das
matérias-primas minerais (Souza Mattos, 1966). Sob a direção do
Paulo Carneiro e o curare

engenheiro Ernesto Lopes da Fonseca Costa, a Estação Experimental de-


senvolveu inúmeras pesquisas originais para a utilização do carvão e do
alcool-motor, entre outras.
Em 1933, a Estação Experimental foi absorvida pela 7º Divisão do
Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil e logo depois desmembrada
e transformada em Instituto de Tecnologia, tendo este último ficado su-
bordinado à recem-criada Diretoria Geral de Pesquisas Científicas do
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, dirigida pelo cientista
Arthur Neiva.!! À frente do novo Instituto de Tecnologia, assumiu o
antigo diretor da Estação Experimental, Fonseca Costa.” Carneiro iria
então Integrar a instituição, com a incumbência de coordenar a nova
Divisão de Mateérias-Primas Vegetais e Animais.
Úito meses após assumir o novo cargo, Carneiro submeteu ao diretor
do instituto um ambicioso e avançado projeto de regimento interno da
nova seção. Esta teria como objetivo precípuo realizar estudos e inves-
tigações, quer de natureza cientifica, quer industrial, com vistas a des-
cobrir novos princípios ou melhores aplicações das matérias-primas
vegetais e animais do país.
deria organizada uma biblioteca para consulta corrente, indepen-
dente da biblioteca do instituto, com os técnicos mantendo a rotina de
fichar a bibliografia pertinente e traduzir a literatura científica francesa,
inglesa e alemã. A nova seção teria também a incumbência de organizar
cursos teóricos e práticos sobre os assuntos pesquisados, além de abri-
gar, em seus laboratórios, pesquisadores que se propusessem a desen-
volver teses ou trabalhos originais de investigação científica sob a ori-
entação do corpo técnico.
O programa de trabalho que acompanhava o regimento elaborado por
Carneiro para o ano de 1934 demonstrava seu interesse pelas plantas
tóxicas, oleaginosas e medicinais. Os estudos bioquímicos do curare e
dos produtos tóxicos do café estavam entre suas prioridades. Para tal, re-
quereu ao diretor do II a contratação de um assistente-técnico, o médico
Leopoldo de Lima e Silva, com experiência em pesquisas fisiológicas, para
auxilia-lo no desenvolvimento dos estudos.” Além desses interesses,
Carneiro voltou-se tambem para as antigas pesquisas com a cafeína no
café, guaraná, mate e chá — tema desenvolvido em sua tese de doutorado
em Paris.

Para dar inicio as pesquisas com o curare, seria necessária a obtenção


de matéria-prima com os indios da região Amazônica, o que foi conse-
Ciência, Política e Relações Internacionais

guido por intermédio do Serviço de Proteção aos Índios. Porém, os estu-


dos bioquimicos do curare só teriam início realmente alguns anos mais
tarde, com a mudança de Carneiro para Paris, pois, mal dera início a
seus estudos no IT, recebeu um convite do governador de Pernambuco,
Carlos Lima Cavalcanti, para dirigir a Secretaria de Agricultura, Indústria
e Comércio do Estado. À seção que acabara de organizar no IT ficou
então a cargo de Ruben Descartes de Paula (Schwartzman & Castro, 1985).
A temporada em Pernambuco foi bastante turbulenta. Carneiro havia
sido contratado em fevereiro de 1935 para estudar e orientar a reorgani-
zação dos serviços agricolas do estado, sendo designado, em março de
1955, para o cargo de secretário do Estado dos Negócios da Agricultura,
Indústria e Comércio. Durante sua curta gestão (de fevereiro a novembro
de 1935), criou o Conselho Agronômico Estadual, o Fundo de Fomento
da Produção e o Serviço de Pesca. Criou ainda o Serviço de Abasteci-
mento do Estado em carnes verdes, congeladas e refrigeradas, o
Entreposto e Mercado de Peixe, entre outros.”
Mas a revolta comunista eclodida em novembro afetou diretamente
a atuação de Carneiro em Pernambuco. Suas idéias em relação à reforma
agrária e à cooperativa de consumo, entre outras, ia de encontro aos
interesses da elite agrária da região. Vendo-se em uma posição delicada
em decorrência da situação política” do momento, foi forçado a aban-
donar seu projeto, retornando ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano.?

Exílio em Paris: estudos sobre o curare no Instituto Pasteur

Ão voltar à sua cidade natal, Carneiro não se sentiu seguro devido à


situação politica brasileira. Esse panorama, somado à incompreensão
Ce suas idéias após a tentativa de reforma em Pernambuco, fez com que
tomasse a iniciativa de se ausentar do país por algum tempo. Seu antigo
mestre, Gabriel Bertrand, enviou-lhe um convite formal por intermédio
da Embaixada do Brasil em Paris, oferecendo-lhe uma bolsa de pesquisa.
Com o apoio de Agamenon Magalhães, na época ministro da Agricultura,
Carneiro licenciou-se do INT e partiu para Paris em outubro de 1936.
Tão logo chegou à cidade, iniciou seus trabalhos no Instituto Pasteur.
Ventre as várias opções de estudo, incluíam-se os estudos bioquímicos
do curare e os dos produtos tóxicos do café, que estavam entre as suas
prioridades desde a época em que organizara a Divisão de Matérias-
Primas Vegetais e Animais do INT. Em depoimento,” Carneiro relembra
Paulo Carneiro e o curare

sua chegada a Paris carregado com troncos, flores e cabaças, além da


festiva recepção no laboratório de Bertrand.
Uirari, urare, urari, uiraeri e urali são algumas das denominações
existentes para O curare — veneno das flechas —, utilizado pelos indígenas
da região Amazônica para a caça. De ação paralisante, é extraído de plan-
tas das familias das estricnáceas (Loganiaceae) e menispermáceas
(Menispermaceae), que inclui as espécies dos gêneros Strychnos? e
Chondrodendron. O curare atua como um agente bloqueador neuro-
muscular, produzindo flacidez no músculo estriado. Para isso, compete
com a acetilcolina na terminação nervosa, impedindo os impulsos ner-
vosos de ativar os músculos esqueléticos ou voluntários. Em dosagem
alta, pode causar a morte por paralisia respiratória.
Na época em que Carneiro começou a estudar a composição química
do curare, muitas dúvidas perduravam sobre o veneno. Este era classifi-
cado de acordo com o recipiente em que se encontrava: tubos de bambu,
potes ou cabaça (Carneiro, 1945). Além disso, não estava ainda esta-
belecido com exatidão que plantas eram utilizadas pelos indígenas, nem
que ingredientes entravam na composição do curare. Sua feitura variava
de tribo para tribo, assim como em cada região. Os indígenas manti-
nham em segredo as espécies de plantas usadas, além de misturarem
arnumais na preparação.
Desde os primeiros relatos feitos no século XVI pelos exploradores
que chegaram à região do vale do Amazonas e Orinoco — como Pietro
d'Anghera, Alonso Perez de Tolosa e Christoval de Acuna, entre outros —,
o veneno dos indios vinha chamando a atenção dos viajantes. Em
1595, amostras de curare em flechas envenenadas foram levadas à Fu-
ropa por Walter Raleigh, que as obteve quando da expedição ao Orinoco.
La Condamine, em sua viagem pelo Amazonas, conseguiu dos ticunas
flechas envenenadas, com as quais fez demonstrações em galinhas, ao
chegar em Caiena, para o comandante da colônia, os oficiais e o médico
do rei. Repetiu a experiência para vários professores quando regressou
à Europa, mais precisamente em Leiden, na Holanda. La Condamine
(1992 [1745]: 121-122) descreveu o veneno como “um extrato produzido
por meio de fogo, do sumo de diversas plantas, e particularmente de
certas lianas onde entravam mais de trinta espécies de ervas ou raízes
na preparação do veneno”, não especificando as espécies usadas. Outros
viajantes iriam, depois, descrever com mais precisão o preparo do curare
e mesmo identificar as plantas usadas no fabrico do veneno.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Durante o século XIX, o interesse científico pelo curare se intensificou,


principalmente após os relatos de Humboldt e Bonpland, que, junta-
mente com von Martius e Schomburgk, atribuíram o efeito curarizante
as plantas do gênero Strychnos. Já Castelnau identificaria, além dos
estricnos, outra espécie do grupo das menispermáceas, que consideraria a
principal responsável pelo efeito curarizante. A presença de animais vene-
nosos na mistura elaborada pelos índios fizera ainda com que alguns
viajantes atribuissem a eles a toxidade do veneno.?
Aimda no seculo XIX, naturalistas brasileiros tentaram determinar a
composição botânica do curare. Nesse sentido, realizaram-se várias expe-
riências no laboratório de química do Museu Nacional e em laboratório
particular. Resultados divergentes deram origem a uma histórica polêmica
entre o botânico João Barbosa Rodrigues e o médico naturalista João
Batista de Lacerda, disputa mediada pela Academia de Medicina do Rio
de Janeiro.” Para Barbosa Rodrigues, somente espécies de Strychnos*
seriam responsáveis pela curarização; já Lacerda atribuía a toxidade do
veneno às menispermáceas.” Pesquisas futuras iriam comprovar que
ambos estavam corretos em suas convicções.

Adepto da concepção de Rodrigues, Carneiro seria um dos respon-


sáveis pela confirmação das estricnos como plantas curarizantes. Em
seu trabalho, relatou:

Diversos pontos, ainda obscuros no conhecimento de um produto


submetido há mais de um século à investigação científica, impunham
uma revisão do conjunto da questão. Servi-me, para empreendê-la, de
materiai colhido no Brasil com as necessárias garantias. Forneceu-me
o Jardim Botânico do Rio de Janeiro diversas espécies de Stricno trazidas
da Bacia Amazônica pelos botânicos Barbosa Rodrigues e Adolfo Ducke;
do mesmo gênero, recebi igualmente amostras do Instituto de Pesquisas
Agronômicas de Pernambuco, por mim fundado em 1935. Ao benemé-
rito e ilustre general Rondon e ao coronel Renato Rodrigues Pereira
devo os potes e cabaças de curare, oriundos do Amazonas, que utilizei
no decurso das minhas pesquisas. (Carneiro, 1945: 28)

Quando Carneiro iniciou seus estudos no Instituto Pasteur, poucos


trabalhos haviam sido desenvolvidos sobre a química e os efeitos fisio-
lógicos do curare.” Humboldt, impressionado com o que vira quando
na Amazônia a convite de Simon Bolívar, indicou em 1820 dois químicos
franceses, Roulin e Boussingault, para estabelecerem um instituto em Bo-
Pauto Carneiro e o curate

gota com o intuito de estudar os recursos naturais da Colômbia (Marini-


Bettolo, 1973). Desenvolvendo pesquisas com o curare, demonstrou-se
que este não possuia estricnina, mas um princípio ativo solúvel em água
e d e d i fi c i l c r i s t a l i z a ç ã o ; o b s e r v a ç ã o e s t a q u e r e p r e s e n t o u o p r i m e i r o
avanço para o entendimento das plantas que compunham o veneno.
Fouco avanço houve em relação à química do curare desde as pesqui-
sas iniciadas em Bogotá, até que o químico alemão Rudolf Boehm isolou,
em 1696, um alcalóide quaternário extremamente tóxico que denomi-
nou tubocurarina, além de outros dois terciários fisiologicamente inativos.
Assim, Boehm formulou uma classificação empírica sobre as variedades
de curare baseada essencialmente nos recipientes em que as mesmas
estavam contidas. Pesquisadores passaram a utilizar o método classi-
ficatório de Boehm, que não apresentava qualquer base científica? e,
segundo Carneiro (1945: 25), “era desprovido de qualquer fundamento
botânico, químico ou fisiológico.”
Em suas pesquisas, Carneiro utilizou potes e cabaças, além da casca
pulverizada de Strychno lethalis de Barbosa Rodrigues. Essa foi a primeira
vez que se fizeram comparações específicas com o curare obtido segundo
a classificação de Boehm (potes e cabaças) e o material obtido de exem-
plares bem identificados e com propriedades curarizantes previamente
estabelecidas. Esse trabalho pioneiro rendeu-lhe resultados surpreen-
dentes. Por meio de uma série de experiências, Carneiro conseguiu isolar
dois alcalóides encontrados em proporções variáveis nos potes, cabaças
e casca de Strychno lethalis. A esses alcalóides, denominou Stricnoletalina
e Curaletalina. Os resultados de sua pesquisa comprovaram que era
possível obter substâncias curarizantes sem o complexo ritual indígena
e que o principio ativo do curare não provinha dos animais adicionados
durante a preparação do veneno. O trabalho de Carneiro foi levado à
Academia de Ciências por Gabriel Bertrand e publicado em 1938 nos
Comptes Rendus des Séances da Academia (Carneiro, 1938), com imediata
repercussão na França e no Brasil.”

Em agosto do mesmo ano, a Caixa Nacional de Pesquisas Científicas


da França, instituição destinada a fomentar institutos técnicos e investi-
ações científicas, concedeu um prêmio, no valor de 6.000 francos, pelas
pesquisas desenvolvidas por Carneiro. Seguindo a iniciativa francesa, o
governo brasileiro, por meio do Decreto-lei n. 894, de 26 de novembro
de 1938, concedeu-lhe um prêmio de vinte contos de réis por sua desco-
berta. Além desses, em 1941 — em plena guerra —, Carneiro recebeu o
Ciência, Política e Relações Internacionais

prêmio Nativelle, da Academia de Medicina da França, por seus traba-


lhos quimicos e fisiológicos sobre os alcalóides extraídos do curare.*
Prosseguindo com seus estudos, o pesquisador iniciou experiências
sobre a ação fármacodinâmica desses alcalóides. Usou para a comparação,
alem da estricnoletalina, amostras de dois tipos diferentes de curare:
um proveniente dos indios ticunas e outro da coleção de Paul Bert, doada
pelo pesquisador do Instituto Pasteur, Paul Portier. Iniciou com a clássica
experiência de Claude Bernard em rãs, para comprovar que a estricno-
letalina e os curares que usava eram de fato curarizantes, ou seja, con-
servavam a sensibilidade e bloqueavam a motricidade. Pela primeira
vez, a experiência de Bernard foi desenvolvida com um alcalóide extraído
previamente de uma espécie estabelecida. Para Bernard, a ação do curare
acontecia somente sobre a placa motora — região intermediária entre o
nervo e o músculo.

Os resultados encontrados por Carneiro foram concordantes com


Bernard em relação à sensibilidade e à motricidade. Contudo, aquele
notou uma contradição em relação às observações do famoso fisiologista,
ao observar que o nervo ciático das rãs paralisadas continuava a trans-
mitir excitação elétrica ao gastronêmio. Revendo todos os conceitos ante-
riores, a explicação plausível encontrada foi de que Bernard ministrava
uma dose excessiva do veneno ao inserir subcutaneamente um fragmento
do curare, não tendo assim nenhum controle da dosagem usada. Conse-
quentemente, o nervo perdia a estabilidade por estar morto (Careiro, 1939).
De posse desses novos resultados, Carneiro passou a analisar a'cronaxia.

Conceito criado em 1909 pelo fisiologista francês Louis Lapicque,? a


cronaxia representa o menor tempo necessário para que uma corrente
eletrica coloque determinado músculo em ação. Contrário às asserções
de Bernard sobre a placa motora, Lapicque explicava o fenômeno do
bloqueio neuromuscular pela transmissão física do influxo nervoso. Para
ele, o curare provocava uma elevação da cronaxia muscular, quebrando
O Isocronismo (movimentos efetuados com intervalos iguais), que nor-
malilmente existe entre o nervo e o músculo.

Carneiro, em suas experiências, chegou a resultados contrários à teo-


ria de Lapicque. Observou que primeiro ocorria a paralisia do animal e
posteriormente a disjunção seguida da quebra do isocronismo neuro-
muscular. Sendo assim, concluiu ser a curarizacão “uma intoxicação
periférica que abole a transmissão do influxo oriundo dos centros
nervosos, mas não impede o efeito dos estímulos elétricos breves sobre
Paulo Carneiro e o curare

os nervos”. Dessa forma, Carneiro provou que o processo fisiológico da


excitação não é elétrico, mas quimico, podendo ser a “curarizacão con-
siderada como uma inibição da ação excitadora da acetilcolina” (Carneiro,
1939: 20).
Os resultados divergentes apresentados pelo pesquisador brasileiro
iriam causar grande desconforto no criador da cronaxia. Segundo relato
de Carneiro (1939), quando seu trabalho foi apresentado por Paul Portier
na Academia das Ciências, em janeiro de 1939, Lapicque opôs-se
peremptoriamente e pediu que este não fosse publicado nos Anais da
Academia. Mas Portier protestou contra a violação das tradições e da
liberdade científica, evitando, assim, que Lapicque interferisse na divul-
gação do trabalho.

Paulo Carneiro versus Louis Lapicque

Em resposta às afirmações de Carneiro, Lapicque apresentou a se-


guinte comunicação à Academia das Ciências de Paris, em 20 de março
de 1939, sob o título “Sur um soi-disant principe actif du curare”:

Há sete semanas, o Sr. de Berredo Carneiro publicou aqui, sob o


título “Curarização e Cronaxia”, uma nota afirmando que o princípio
ativo do curare, por ele isolado, paralisa a ra sem suprimir a excitabi-
lidade do músculo pelo nervo, e que assim age tambem o próprio curare.
Esta asserção está em contradição formal com todas as pesquisas sobre
o curare desde Claude Bernard; mais do que isso, tal como foi apre-
sentada, seria ela inconciliável com tudo o que sabemos do influxo
nervoso. O autor se deu perfeitamente conta da antinomia entre os seus
resultados e a fisiologia clássica; em consequência propôs a revisão
desta.

Carneiro reagiu, escrevendo:

Serão os fundamentos da teoria elétrica do influxo nervoso de tal


modo claros, precisos e consistentes que a sugestão de uma revisão
deles deva ser afastada 11 limine como anticientifica e absurda? Estou
persuadido de que não, tanto mais quanto me parece que a revisao
periódica das hipóteses e teorias de trabalho, mesmo as mais fecundas
e harmônicas, é uma operação normal e salutar no dominio das ciências
de observação. No caso concreto que nos ocupa, tudo me leva a pensar
Ciência, Política e Relações Internacionais

que um balanço geral das noções em jogo se impõe com especial urgên-
cia. Um exame crítico dos antecedentes históricos do conceito atual de in-
luxo nervoso tornará, a meu ver, irrecusável uma tal necessidade

Em 29 de março, sua resposta foi apresentada na Sociedade de Quí-


mica Biológica, confirmando todos os seus resultados. Lapicque foi con-
vidado a assistir às experiências no Instituto Pasteur (Société de Chimie
Biologique, sessão de 29 de março de 1939), o que ocorreu posterior-
mente. Menos de um mês depois, em 17 de abril de 1939, sob o título
“Physiologie: Strychnolethaline, curare et curarisation”, Carneiro apre-
sentou nota sobre os efeitos fisiológicos do alcalóide por ele isolado, res-
pondendo ao questionamento de Lapicque e relatando detalhadamente
suas experiências. Nela, demonstrou os pontos divergentes entre a
metodologia usada nas experiências de Lapicque e nas suas.

Nós passamos juntos duas meias-jornadas em atmosfera da mais com-


pleta cortesia e inteira lealdade. Exprimi meus sinceros a gradecimentos
ao or. de Berredo Carneiro, que teve a amabilidade de me remeter um
pequeno pote de sua estricnoletalina para que eu pudesse experimentar
quando quisesse em meu laboratório.

Porém, esse cenário cortês mudaria completamente nos meses seguin-


tes. Os resultados obtidos por Lapicque foram todos desfavoráveis a Car-
neiro. Buscando motivos que pudessem desmerecer ou mesmo invalidar
os trabalhos realizados pelo cientista brasileiro, Lapicque afrontou-o,
argumentando que o material estudado não tinha procedência confiável,
nem o alcalóide isolado por Carneiro era curarizante, invalidando os resul-
tados alcançados por este em relação à sua teoria física.
Ainda em outra oportunidade, Lapicque manifestou-se em público
contra Cameiro, propagando sua própria autoridade científica no assunto
e demonstrando o quanto as asserções feitas pelo adversário estavam
em total desacordo com o que acreditava. Em nota publicada a 16 de
maio de 1939, nos Comptes Rendus, relatou:

Considero as pesquisas do Sr. Carneiro sobre o princípio ativo do


curare como desprovidas de significação. A estricnoletalina tem sobre
o músculo uma ação inteiramente diferente daquela do curare e mes-
mo diametralmente oposta na primeira fase. É, portanto, impossível
reconhecê-la como o princípio ativo do curare.
Paulo Carneiro e o curare

As criticas de Lapicque não esmoreceram Carneiro, que se manteve


firme diante de toda a turbulência. Convicto de suas afirmações, sabia
que suas experiências comprovavam todas as suas asserções e que, so-
mente por seu caráter autoritário, Lapicque não admitia novas inter-
pretações. Por isso, levou avante as pesquisas no Instituto Pasteur, com
total apoio de Bertrand e Portier. Segundo Carneiro,” somente 14 anos
mais tarde as objeções levantadas ao processo clássico de curarização
seriam confirmadas por meio do trabalho apresentado à Société de
Biologie de Paris, por Benoit e Etgensperger.? Finalmente, com a introdu-
ção do uso do curare como adjuvante em anestesia geral, a pesquisa de
Carneiro em relação ao processo quimico da curarização não pôde mais
ser contestada.

Em 1942, três anos portanto após a apresentação do trabalho de Car-


neiro, O curare passou efetivamente a ser empregado clinicamente como
retaxante muscular. Segundo Griffith (1944: 144), “o curare age inter-
rompendo os impulsos nervosos ao nível da sinapse neuro-muscular,
provavelmente devido à neutralização da acetilcolina”, o que corroborava
o trabalho publicado por Carneiro anteriormente.“
Em agosto de 1939, o pesquisador viajou ao Brasil em visita à família
e aproveitou para obter novos materiais de pesquisa e organizar mos-
truários de matérias-primas brasileiras para o escritório de propaganda
comercial do Brasil em Paris.” Na ocasião, proferiu conferência na
Academia Brasileira de Ciências e em outras instituições, além de conce-
der entrevistas aos principais jornais do país. Retornou a Paris naquele
mesmo atio.

Com a carreira cientifica em plena ascensão, Carneiro foi forçado a


interromper suas pesquisas em virtude da ocupação da França pela Ale-
manha nazista. Junto com o embaixador Souza Dantas, atuaria firme-
mente na ajuda a membros da resistência francesa e da comunidade ju-
daica, tendo, inclusive, ficado 14 meses preso na Alemanha, em Baden-
Baden e Bad Godsberg (Maio & Sa, 2000).
A experiência profissional adquirida com os estudos relacionados às
materias-primas brasileiras desde o início de sua carreira incentivou
Carneiro a uma estreita ligação com os problemas nacionais. Com isso,
as trocas que efetivamente vinha fazendo com a comunidade científica
internacional, como no estudo do curare, levaram-no a buscar nas alianças
cientificas internacionais apoio para um projeto de desenvolvimento
nacional após a Segunda Guerra Mundial.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Profundamente envolvido com a cooperação intelectual da organiza-


ção cultural mundial do pós-guerra, Carneiro viu no clima de recons-
trução o momento para a elaboração de um programa de cooperação
cientifica internacional que visasse ao estudo dos produtos naturais da
Amazônia e de sua população indígena, em prol do desenvolvimento
científico da humanidade: o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica
(HA) Segundo Maio & Sá (2000: 981), para ele, “a Amazônia emergia
como uma possivel solução para os infortúnios causados pela Segunda
Guerra”, e “a construção de alianças científicas e políticas viabilizaria a
sua utopia Amazônica”.
Não conseguindo concretizar o seu objetivo de uma grande aliança
de cooperação científica internacional, Carneiro voltou-se para outros
projetos não menos importantes, como delegado permanente do Brasil
junto à Unesco.
duas pesquisas sobre o curare foram retomadas em 1956, quando
publicou, em parceria com pesquisadores do Istituto Superiore di Sanitã
— em Roma — um trabalho sobre alcalóide de Strychnos solimoesana
(Marini-Bettólo et al., 1956). Este foi seu último trabalho expressivo sobre
O veneno dos indios da Amazônia *?

Em agosto de 1957, Carneiro organizou na cidade do Rio de Janeiro —


junto com o cientista brasileiro Carlos Chagas Filho e o diretor do Museu
Nacional, José Candido de Melo Carvalho — um simpósio internacional
sobre o curare e substâncias curarizantes. O evento reuniu todos os
grandes nomes da pesquisa mundial sobre venenos.” Entre éles, en-
contrava-se Daniel Bovet - acompanhado de sua esposa Filomena Nitti-
Dovet —, que naquele mesmo ano fora agraciado com o prêmio Nobel de
Fisiologia e Medicina por sua descoberta relativa à síntese do curare.
Contemporâneo de Carneiro no Instituto Pasteur, Bovet, nascido na
Suiça em 1907, iniciou seus estudos no instituto em 1929 com Emille
Roux, no departamento dirigido por Ernest Fourneau. Trabalhou pri-
meiramente como assistente e mais tarde como chefe do laboratório de
Quimica Ierapêutica. Em 1947, transferiu-se para o Istituto Superiore di
anita, para organizar o Laboratório de Química Terapêutica. Com mais
de 300 trabalhos na área biológica, farmacológica, entre outras, dedicou-
se especialmente ao estudo da atividade de drogas no sistema nervoso
vegetativo e seus usos terapêuticos, incluindo-se aí o curare.
O Simpósio do Rio de Janeiro tornou-se um marco para os estudiosos.
As discussões realizadas repercutiriam nas futuras pesquisas sobre esses
Paulo Carneiro e o cutare

aicalóides. Pioneiro nos estudos químicos e na defesa do papel do me-


diador quimico no influxo nervoso em detrimento da então consagrada
teoria fisica, Carneiro foi reverenciado por seus companheiros. A ele,
McIntyre, pesquisador da Universidade de Nebraska e autor de um livro
sobre O curare, enviou uma carta em que exprimia suas impressões:

Foi de fato um grande prazer encontrar pessoalmente aquele de


quem tinha ouvido falar por tanto tempo. A conferência sobre o curare
foi certamente uma inspiração e uma valiosa experiência para todos
aqueles interessados no curare e os países de sua origem. Todos deixa-
ram o Rio plenos de gratidão pela alegre e interessante experiência
proporcionada pela conferência e muito agradecidos pela oportuni-
dade de encontrar tantos pesquisadores pessoalmente que até então
tinham sido somente meros nomes.“

Agradeço aos assistentes de pesquisa Vicente Saul Moreira dos Santos e Fabricio
Pereira da óliva, pelo levantamento das fontes primarias, e ao Instituto Nacional
de Tecnologia, pela atenção,
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

' Informação retirada do curriculum vitae de Paulo Carneiro. Fundo Família Carneiro, DAD/
COC/Fiocruz, cx. 41.

* Oriundo do Ministério da Marinha, Mario Carneiro iniciou sua carreira no Ministério da


Agricultura em 1910, quando o ministro era Rodolfo Miranda. Participou ativamente da orga-
nização do Ministério da Agricultura, com atuação firme e brilhante junto aos institutos e
departamentos subordinados. Convidado para o cargo de diretor geral da contabilidade do
ministério, atuou por diversas vezes como ministro interino da Agricultura. Segundo Jesus
doares Pereira, além de exemplar, Mario Carneiro “era homem de altíssimo padrão moral e
extrema dedicação” (Schwartzman, 1979: 140).
* Segundo Rheinboldt (1994), em fins de 1919 criaram-se diversos cursos de química industrial
como entidades didáticas independentes, anexos a instituições técnicas já existentes, visando
ao aproveitamento de seus docentes e laboratórios. Com dotação própria, os cursos passaram
a receber uma subvenção de cem contos. Foram inaugurados oito deles, distribuídos pelas
principais capitais do pais.

* Os dados biográficos de Julio Lohmann foram retirados de manuscrito escrito por Paulo
Carneiro em homenagem a seu mestre, por ocasião do primeiro centenário de seu nascimen-
to. Fundo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 74.

* Segundo Barata, o aniversário do cinquentenário da transformação da Escola Central em


Escola Politécnica foi comemorado em 1924 com a edição de um livro, tendo na ocasião dis-
cursado João Luiz Alves, Frontin, diversos paraninfos de turmas formandas, como Luiz
Cantanhede, Miguel Calmon e Maurício Joppert, e oradores representando os alunos, entre
eles, Paulo Carneiro pelo curso de Químicos Industriais, anexo à Politécnica.
* Para Mendes (1971), Gonzaga de Campos iria nortear os trabalhos futuros do Serviço Geoló-
gico para o estudo dos recursos minerais do país.
“Informação retirada do curriculum vitae de Paulo Carneiro. Fundo Família Carneiro, DAD/
COC/Fiocruz, cx. 41.

Químico e biologista, Gabriel Bertrand nasceu em Paris, em 1867, falecendo em 1962 na


mesma cidade. Iniciou seus estudos no Museu de História Natural de Paris, em 1886. De 1900
a 1262, trabalhou no Instituto Pasteur como chefe do Serviço de Química Biológica. Foi co-
fundador do Bulletin de [Institut Pasteur e professor de química biológica na Faculdade de
Ciências de Paris. Em 1920, elegeu-se presidente da Sociedade Química da França (disponí-
vel em: <www.pasteur.fr/infosci/archives/ber0.html>, Fundo Arquivo Gabriel Bertrand -
Instituto Pasteur, ref. FR IP BER.

“O guaraná, conhecido cientificamente como Paullinia cupana, é planta originária da região


equatorial da América do Sul, particularmente abundante ao longo dos rios Orinoco, Amazo-
nas, Negro, Madeira e Tapajós.
'º O documento de nomeação se encontra no Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz,
cx. 46 e o de indicação como relator, no curriculum vitae, cx. 41. Schwartzman e Castro (1985)
registram o envio de Carneiro à França, para estudar a tecnologia empregada pelos france-
ses na desidratação do álcool.

4 Mesmo com todas as suas atividades de pesquisa, Carneiro não abandonou o magistério,
tendo sido nomeado, em 4 de abril de 1932, professor de química orgânica da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, e, em 29 de abril daquele mesmo ano, nomeado para exercer
interinamente o cargo de professor assistente de química da Escola Secundária do Instituto
de Educação. Ver Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 46.
Paulo Carneiro e o curare

“ Oriundo da Estação Experimental de Combustível e Minérios, criada em 1922, o Instituto


d e Te c n o l o g i a f o i a s s i m d e n o m i n a d o e m m a i o d e 1 9 3 3 . E m 1 9 3 4 , a o s e r t r a n s f e r i d o d o
Ministério da Agricultura para o então recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, passou a Instituto Nacional de Tecnologia. Ver Fonseca Costa (1934).
'* Segundo Schwartzman e Castro (1985), o projeto da estação fazia parte de um conjunto
de criação ou reforma de novas instituições, como parte de um programa de reestruturação
dos serviços agricolas. Entre elas estavam incluídos os serviços de Inspeção e Fomento
Agricolas do Algodão, das Sementeiras, de Expurgo e Beneficiamento de Cereais, o Institu-
to Biológico de Defesa Agricola, o Instituto de Química, o Serviço de Meteorologia, a Direto-
ria Geral de Industria Pastorile a Estação Experimental de Combustíveis e Minérios, anexa
ao Serviço Geológico e Mineralógico.
“A DGPC foi extinta em 1934. Segundo Schwartzman e Castro (1985), aquela teria sido
uma primeira efêmera tentativa de criar uma agência central de pesquisas científicas no
pais.
“> Segundo Souza Mattos (1966), Mario Carneiro teve participação decisiva na conclusão
das obras da sede definitiva do INT, quando ministro interino da Agricultura em substi-
tuição a Assis Brasil (primeiro ministro da Agricultura do governo provisório de Getúlio
Vargas), conseguindo apoio de Vargas e recursos para o término das obras.
'º Cópia do projeto de organização no Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, ex. 5.
“ Ofício de Paulo Carneiro - assistente-chefe da Seção de Matérias-Primas Vegetais e Ani-
mais — para o diretor do IT. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 52.
'º Informações retiradas do curriculum vitae de Paulo Carneiro. Fundo Família Carneiro,
DAD/COC/Fiocruz, cx. 41.

“? Ver ofício de Agamenon Magalhães. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 46.
* Em setembro de 1935, Carneiro endereçou uma carta aos bispos de Pernambuco cha-
mando a atenção para a lastimável condição de miséria que atingia os trabalhadores urba-
nos e rurais da região. (“Igreja e Estado em pro! do trabalhador pernambucano”, 25 de
setembro de 1935).
“| Entrevista de Carneiro em 7/8/1979, no Museu da Imagem e do Som ublicada nesta
coletanea).
* Os princípios ativos do gênero Strychnos não são iguais no Velho e no Novo Mundo. Os
alcalóides contidos nas espécies que crescem na África e na Ásia são do grupo da estricnina
ou da brucina, por isso têm ação mais pronunciada quando administrados por via gástri-
ca. Ja os que crescem em nosso continente possuem alcalóides do grupo da curarina, que
agem mais intensamente ainda quando em doses mínimas injetadas na veia ou subcutane-
amente (FHoehne, 1939; Marini-Bettólo, 1959).
* McIntyre (1947) faz um detalhado apanhado sobre os naturalistas viajantes e os relatos
sobre O curare.

“* Em expedição à região amazônica em 1878, Scwacke e Jobert, naturalistas viajantes do


Museu Nacional, coletaram duas espécies diferentes de plantas que poderiam ser respon-
saveis pela toxidade do curare: a menispermácea Anomospermum grandifolium e a loganiácea
otrychnos castelnaei. Utilizando-se desse material para suas experiências, Lacerda atribuiu
poderes curarizantes somente para a menispermácea. Já Barbosa Rodrigues, que tinha
passado três anos em comissão na região amazônica coletando material botânico, identi-
ficaria varias espécies de Strychnos, atribuindo somente a elas a responsabilidade pela
toxidade do curare. Ver Jornal do Commercio, 24/8/1878, 30/8/1878 e 14/9/1878: O Cruzeiro 6e
9/9/1878; Progresso Médico, 1/9/1878; e Gazeta de Notícias, 9/9/1878.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Segundo Hoehne (1939: 229), as Stryclnos são espécies de plantas da família das Loganiáceas
onde predominam dois alcalóides de ação diversa: a estriquinina nas espécies do Velho
Mundo e a curarina nas espécies do Novo Mundo.
6 Das discussões entre os dois pesquisadores, resultaram dois trabalhos clássicos sobre o
assunto: Rodrigues. L uriraery ou curare. Bruxelas, 1903; e Lacerda. Curare preparé au moyen
ptante de la famille des Menispermées (Anomospermum grandifolium Eichl.): Archivos do
Museu Nacional, II 1901.

7 No Brasil podemos citar tese e trabalhos de Chagas Leite (1911) e Limongi (1938). O traba-
lho deste sobre o estudo etnológico, químico e farmacodinâmico do curare fora apresentado
no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e em aula da cadeira de Farmacologia, em
maio e outubro de 1936.

Trabalhos que vinham sendo desenvolvidos por Spáthe, Leithe e Ladeck, em 1928, e King,
em 1955, levaram o último a concluir que todos os alcalóides do curare provinham do
gênero Chondrodendron, da família das Menispermáceas (Carneiro, 1945). Contudo, o alcalóide
curarizante de King ainda não tinha sido obtido da própria planta, mas
sim do curare em tubos de bambu. Somente em 1943 ele foi isolado de Chondrodendror
tomentosum (Mclntyre, 1947),

? Todos os jornais do Rio de Janeiro noticiaram a descoberta de Carneiro, além de produ-


zirem matérias extensas sobre o assunto. Ver Diário da Noite, 12/4/1938; O Radical, 13/4/1938:
O Giobo, 13 e 14/4/1938; A Tarde, 12/4/1938; Diário de Notícias, 13/4/1938; Jornal do Commercio, 12/
4/1938, entre outros. Na França, o parisiense Le Journal também noticiou a descoberta, no
dia 12/4/1938. Nesse mesmo ano, o trabalho de Carneiro foi publicado nas Sociedades de
Quimica Biológica da França e do Brasil. Ver Carneiro (1938a, 1938b).
Ver Fundo Família Carneiro, DAD/COC Fiocruz, cx. 42.
** Para maiores detalhes, ver Carneiro (1945).
32 Nascido em Epinal em 1866 e falecido em Paris em 1952, Louis Édouard Lapicque foi
professor de fisiologia geral da Sorbonne e membro da Academia de Ciências de Paris.
tendo sua esposa (Marcelle Lapicque) como colaboradora, Lapicque contribuiu para o
clesenvolvimento da neurologia e da eletrofisiologia por suas pesquisas sobre as células
nervosas (www.fr.encyclopedia.yahoo.com/articles. Donnés encyclopédiques, 2001.
Hachette Multimédia) e propôs uma nova definição da excitabilidade dos tecidos nervosos.
No estudo da excitabilidade, adotou uma constante empírica: a cronaxia, que mede a influ-
encia do tempo na excitabilidade do tecido considerado. Para defini-la, partiu da intensi-
Gade liminar para os tempos longos, isto é, da intensidade abaixo da qual não é possível
descer, seja qual for a duração da passagem da corrente (reóbase). Quando se aumenta a
intensidade, a duração da passagem da corrente necessária para produzir a excitação
diminui. Partindo convencionalmente de uma intensidade dupla da reóbase, Lapicgue
procurou a duração de passagem da corrente para a qual se encontra o limiar da excitação.
Essa duração, arbitrariamente escolhida, é a cronaxia, muito variável de um tecido a ou-
tro, mas especifica para cada tecido em condições fisiológicas determinadas. Ver Fundo
Familia Carneiro, Acervo DAD/COC/Fiocruz, cx. 2.

Ve r “ N o t a s d e e s t u d o ” , e m F u n d o F a m í l i a C a r n e i r o , D A D / C O C / F i o c r u z , c x . 2 .
* Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 2.

2 Observação feita por Carneiro à margem do manuscrito sobre “Análise comparativa de


otricnos letális”. Ver Fundo Família Carneiro, DAD/ COC/Fiocruz, cx. 2.
* Ver também Griffith & Johnson (1942). Sobre o uso de sintéticos, ver Nunes (2003).
* Declaração feita por Carneiro ao Jornal do Brasil, em 27/8/1939.
Paulo Carneiro e o curare

* Para maiores detalhes sobre o projeto de Carneiro para a criação do Instituto Internaci-
onal da FHileia Amazônica, ver Maio & Sá (2000).
2 Após os trabalhos realizados por Carneiro, foram descobertos inúmeros outros alcalóides
de diferentes toxidades. Hoje a d-Tubocurarina é considerada como o principal alcalóide res-
ponsavel pelo bloqueio da transmissão da acetilcolina.
“O simpósio foi aberto no auditório do Ministério da Educação e Cultura com a presença do
munistro Clóvis Salgado. As sessões técnicas se realizaram no auditório do Museu Nacional.
oram seis dias de trabalhos intensos. As sessões se dividiram em Etnografia, Alcalóides
Curarizantes, Fisio-farmacodinâmica dos Curares e das Substâncias Curarizantes e Aplicação
Clinica dos Curares. Entre os participantes estrangeiros, encontravam-se Karrer, da Suiça;
V W i e l a n d , d a A l e m a n h a ; Vo e k e l h e i d e , d e R o c h e s t e r ; d e R o m a ; W i n t e r s t e i n e r,
de New Brunswick; Fessard, de Paris; Vellard, de Lima; Arbelaez, de Bogotá. Entre os brasilei-
ros, achavam-se Vital Brasil, Luiz Emygdio de Mello Filho, Darcy Ribeiro, Ducke, Rocha e
Silva (Simpósio Internacional Sobre o Curare e Substâncias Curarizantes - Fundo Família
Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 91).

* Em 1948, Bovet e Bovet-Nitti escreveram um livro que se tornaria um clássico dos estudos
sobre atividades farmacodinâmicas dos medicamentos do sistema vegetativo nervoso.
*- Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 20.

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Paulo Carneiro e à
Casa de Augusto Comte
Priscila Fraiz
Eduardo Queiroz Reis

ia extensa biografia de Paulo Carneiro, a atividade de guardião


| da Casa de Augusto Comte tem sido pouco explorada. Outras
à funções, como Os cargos que exerceu na Unesco e os
e projetos a ela vinculados, têm aparecido com muito mais fregiiência
na literatura acerca desse personagem.! Este artigo objetiva reconstituir a
trajetória de Carneiro à frente da Casa de Augusto Comte, cuja dedicação
se mostra evidente pelo tempo a ela consagrado — praticamente toda a sua
vida, de 1920 a 1980 -, sem prejuízo das demais atividades exercidas em
diferentes épocas. Procura-se demonstrar aqui a relevância dessa ativi-
dade na vida de Carneiro e de sua família, que inclusive servia de parâ-
metro para outras ações, dada a visão particular do papel que lhe cabia,
como positivista, no desenvolvimento da sociedade e da humanidade

Ao levantarmos essa trajetória, queremos chamar a atenção para o


vinculo que pode existir entre o cuidado de Carneiro com a administra-
ção da Casa de Augusto Comte e a preocupação com a manutenção e
organização do arquivo de sua própria família, doado ao Departamento
de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e utili-
zado como fonte privilegiada para esta reconstituição.? De fato, a acu-
mulação, a organização desse acervo por seus próprios membros — entre
eles, Carneiro —, abarcando três gerações, e a manutenção da Casa de
Augusto Comte dão a dimensão do peso da história e da memória na
vida de Carneiro.

E importante assinalar que a reconstituição pretendida sofre do fe-


nômeno da parcialidade por dois motivos principais: o primeiro ocorre
por nos basearmos quase exclusivamente em informações extraídas de
Ciência, Política e Relações Internacionais

seu arquivo pessoal e de sua família, bem como do depoimento prestado


por Carneiro ao Museu da Imagem e do Som — fontes que, por sua pró-
pria natureza, oferecem uma visão pessoalizada, não permitindo, via de
regra, comparação de idéias e confronto de fatos e evidências. Já o se-
gundo ocorre pela amplitude da pesquisa efetuada no arquivo.
É significativo ressaltar a dimensão invejável desse fundo, com 42
metros lineares de documentos textuais e cerca de quinhentos livros.
Praticamente metade do acervo ainda se encontra na fase de identifica-
ção sumária dos documentos, por caixa, chegando até o momento à soma
de 130 caixas, sobre as quais recaiu a investigação. Numa pesquisa su-
perficial — inerente a arquivos ainda não organizados —-, foram detecta-
das vinte caixas passíveis de conter documentos referentes ao tema em
questão. Dos cerca de dois mil documentos examinados (média de cem
documentos por caixa), somente 15% indicavam alguma relação com o
tema. Desses, selecionaram-se 62 que serviram de base à sistematiza-
ção de dados para a reconstituição.
Portanto, trata-se de uma pesquisa parcial e uma incursão inicial num
tema que merece continuar sendo explorado, permitindo, ao cabo, aná-
lises mais aprofundadas. Afinal, uma atividade tão cara a Carneiro e à
qual dedicou parcela considerável de sua vida pode ser potencialmente
tão relevante quanto o conjunto de sua biografia.

Antecedentes

O filósofo Augusto Comte (1798-1857) foi o criador de uma nova dou-


trina, caracterizada pelo impulso dado ao desenvolvimento de uma ori-
entação cientificista do pensamento filosófico, atribuindo à constituição
e ao processo do que ele chamava de ciência positiva importância capi-
tal para o progresso de qualquer parte do conhecimento. O positivismo
— como ficou conhecido o conjunto da doutrina, expressa em obras como
Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), Discurso Preliminar sobre o Conjunto
do Positivismo (1848) e Catecismo Positivista (1852) — sugere um forte teor
evolucionista e determinista, integrado a seu próprio tempo, quando a
crença na evolução da humanidade se apresentava como lei social
inquestionável.
O sistema comtiano estruturou-se em torno de três temas básicos.
Em primeiro lugar, uma filosofia da história, com o objetivo de mostrar as
razões pelas quais a filosofia positiva deveria imperar sobre os homens.
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

A filosofia da história pode ser sintetizada na célebre lei dos três estados,
em que ciência e espirito humano se desenvolvem por meio de três fases
distintas — inicialmente a teológica, depois a metafísica e finalmente a
positiva. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciên-
cias baseada na filosofia positiva. E finalmente uma sociologia que per-
mitia a reforma prática das instituições, determinando a estrutura e os
processos de modificação da sociedade (Giannotti, 2000).
Comte acreditava ser a filosofia positiva um instrumento para a ele-
vação intelectual do homem e consequentemente para a reorganização
de toda a sociedade. Nesse sentido, seus anseios de moralização do ho-
mem, como o abrandamento do egoismo dos capitalistas, acabaram por
ultrapassar os limites da política e se desenvolveram no sentido da for-
mulação de uma nova religião, conhecida como a religião da humanidade.
Isso ocorreu nos últimos 15 anos de sua vida, tornando-se fundamento
para as primeiras dissensões entre seus discípulos (Giannotti, 2000).
Entre os mais fiéis seguidores de Comte, destacaram-se Emile Littré e
Pierre Laftitte: o primeiro renegou a religião da humanidade e o segun-
do aderiu principalmente a essa última fase do pensamento de Comte.
Para Laffitte e os partidários da religião, Comte tinha uma áurea quase
mitica, sendo sempre tratado como o mestre, e tudo o que lhe pertenceu
tornou-se retiquia sagrada* No contexto dessa vertente de sacralização,
Comte deixaria ordens a serem cumpridas por seus discípulos após sua
morte, visando à conservação de seu apartamento e tudo que havia nele,
incluindo mobiliário e arquivos. Para isso, nomeou Laffitte como presi-
dente e organizador da execução testamentária.
O apartamento a ser preservado por seus discípulos situava-se na
rua Monsieur-le-Prince, 10, em Paris, onde morou de 1841 até sua morte,
em 1557. Em 1895, Laffitte decidiu comprar o imóvel, que estava para
ser vendido. Para adquiri-lo e garantir sua conservação, fundou uma
sociedade civil imobiliária —- a Sociedade Imobiliária Pierre Laffitte — e,
apos a compra, declarou extinta a execução testamentária, o que pro-
vocou seu rompimento com os testamenteiros. Com a morte de Laffitte,
em janeiro de 1903, a Casa de Comte e a Sociedade Imobiliária Pierre
Laffitte passaram a ser administradas por Jeannolle. Posteriormente, a
gestão dos interesses materiais que comportavam a possessão da casa
seria transferida para François Saulnier.!
Ainda segundo Giannotti (2000: 13), o positivismo encontrou solo
fértil no Brasil na segunda metade do século XIX, devido à associação da
Ciência, Política e Relações Internacionais

filosofia com a idéia de progresso. Os nomes mais conhecidos e respei-


tados como lideres do movimento no Brasil foram Benjamin Constant,
leixeira Mendes e Miguel Lemos. O vínculo direto entre Miguel Lemos e
Pierre Laffitte data de 1877, quando o brasileiro fez uma viagem a Paris
e tornou-se adepto da religião da humanidade, dirigida pelo francês.
Quando de seu retorno da França, em 1879, Miguel Lemos ingressou no
Clube Acadêmico Positivista, empreendendo mudanças que o levaram
à direção da sociedade. Junto com Teixeira Mendes, atraiu um número de
pessoas cada vez maior para assistir as sessões semanais. Ambos cen-
tralizaram a administração do Clube Acadêmico Positivista, que culmi-
nou na criação da Igreja Positivista do Brasil (IPB), em 11 de maio de 1881.
Procurando não só expandir o positivismo, mas também centralizá-lo
em sua figura, Miguel Lemos rompeu com Pierre Laffitte em 1883, acu-
sando-o de sofista, ou seja, de trair a filosofia de Comte (IPB, 1881), pois
a IPB priorizava a religiao positiva e a Sociedade Imobiliária Pierre
Laffitte, a filosofia positiva. Desse modo, a IPB considerou os adeptos
Ge Laífitte hereges da religião da humanidade.
Em 1893, ano do rompimento de Laffitte com os executores testa-
mentários, Miguel Lemos, em nome da IPB, restabeleceu a execução tes-
tamentaria e passou a apolá-la financeiramente, enviando contribuições
diretamente a seus membros na França. Em 1898, mediante intimação,
“tentou obter de Laffitte a guarda dos papéis de Comte, não obtendo su-
cesso. Em circular de 1903, a Igreja confirmava: “A testamentária do nosso
mestre continua na mesma situação; pois que as relíquias do nosso mes-
tre e o seu domicilio permanecem em poder dos usurpadores, adeptos
do Sr. Laíffitte” -

Miguel Lemos e leixeira Mendes adotaram uma política de pureza


doutrinária. Assim, declararam a independência da IPB para com qual-
quer centro positivista, afirmando que somente os seguidores de suas
ordens poderiam ser considerados verdadeiros positivistas. Segundo a
IPB, a versão de Miguel Lemos se tornara a oficial do movimento
positivista no Brasil (IPB, 1881).
Em 1903, ano da morte de Laffitte, Teixeira Mendes viajou a Paris e
comprou, em nome da IPB, a residência que havia sido de Clotilde
Jozefina de Vaux. O objetivo era alcançar maior reconhecimento inter-
nacional para a Instituição, além de preservar uma grande relíquia reli-
giosa, visto que Clotilde, nascida Marie de Ficquelmont (1815-1846), fora
a musa inspiradora da religião da humanidade e figura elevada por
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

Comte à qualidade de santa, a qual lhe permitiu expressar todos os seus


sentimentos e necessidades emocionais (Giannotti, 2000: 7). Em seu tes-
tamento, Comte exigira a publicação dos manuscritos de Clotilde como
textos sagrados. Por isso, tudo a ela referente possuía grande valor para
os adeptos da religião da humanidade, embora no testamento de Comte
não houvesse exigência de preservação da residência onde ela falecera.
No entanto, a residência de Clotilde foi erroneamente identificada
por teixeira Mendes, que, ao chegar em Paris, negou-se a pedir o ende-
reço aos “heréticos” da rua Monsieur-le-Prince, 10, preferindo fiar-se na
cópia do registro da igreja onde se celebraram as cerimônias fúnebres
de Clotilde. O documento, no qual o escrivão registrara o número 5 da
rua Fayenne como moradia da falecida, foi tido como veraz por Teixeira
Mendes. Em todos os outros documentos de Comte endereçados a Clo-
tilde consta o número 7 da rua Payenne, mas eles não foram vistos por
teixeira Mendes, já que pertenciam à Sociedade Imobiliária Pierre Laffitte.
Após a compra da residência, Teixeira Mendes tentou passar a pro-
priedade legal do imóvel para Miguel Lemos. Este, embora se reco-
nhecesse com direito sobre ele, não o aceitou, indicando-o a Otávio Car-
neiro, um dos membros mais moços da Igreja e integrante da família
Carmneiro.º Sua indicação surgiu sob o argumento de que o imóvel na
posse de uma pessoa jovem evitaria novas despesas com a papelada,
por ocasião da morte do proprietário.” Dois anos depois, Teixeira Mendes
consagrou a residência de número 5 da rua Payenne ao culto da Religião
Positiva. Assim, em junho de 1905 inaugurou-se nesse endereço uma
capela positivista, a Capela da Humanidade, onde Teixeira Mendes, vice-
diretor do Apostolado do Rio de Janeiro, fez a primeira prédica.
Em 1907, a IPB cessou a participação na subscrição geral instituída
pelos executores testamentários separados de Laffitte, por considerar o
grupo heterogêneo demais para manter suas obrigações. Na verdade, a
IPB não admitia independência de comportamento dos executores tes-
tamentaários, visto que eram, em boa medida, sustentados financeira-
mente pela Igreja desde 1893. Esta passou a agir isoladamente, sem par-
ticipação junto aos testamenteiros ou a qualquer outro grupo positivista.
A Sociedade Civil Imobiliária Pierre Laffitte sofreu seu primeiro revés
com a morte de seu fundador. Contudo, conseguiu funcionar adequada-
mente até 1906, com verbas depositadas regularmente. Após a Primeira
Guerra Mundial, a sociedade entrou em crise, devido à crescente falta
de colaboração de seus membros e ao aumento geral dos preços dos
Ciência, Política e Relações Internacionais

Serviços de reparação do imóvel e manutenção do apartamento de


Comte, que passaram a ser frequentes e por vezes urgentes.
Em 1922, Otávio Carneiro foi encarregado pelo próprio Teixeira Men-
des da superintendência de conservação da residência mortuária de Clo-
tide = de nº 5 -, já então transformada em Capela da Humanidade. A
idéia do líder positivista era a centralização em uma pessoa tanto da
propriedade legal do imóvel quanto de sua guarda.
Ate o momento, sobre esse período não foram encontrados no arquivo
documentos de contestação da família Carneiro às determinações da IPB.
Em uma primeira aproximação, pode-se concluir que Carneiro e fami-
ares estavam em harmonia com a instituição, não tendo qualquer partici-
paçaão nas polêmicas até então levantadas.

A entrada de Paulo Carneiro em cena

A postura de Carneiro parece ser de completa aceitação dos posicio-


namentos da IPB e de seu fundador Como afirmou, desde menino assis-
tia às palestras de Teixeira Mendes e ficava deslumbrado com o conheci-
mento do mestre:

Mas, ao mesmo tempo em que fazia minha formação interna ou-


vindo grandes homens do meu tempo ligados àquele movimento
[positivismo], a influência maior que recebi foi de Teixeira Mendes.
leixeira Mendes era matemático de formação e tinha um conhecimento
clentífico realmente universal, com o espírito mais enciclopédico que
encontre ate hoje. Ele nos pregava tudo que sabia. Aos domingos, em
conferências de três, quatro horas (...). A essas conferências devo real-
mente a minha vocação e a minha formação no sentido mais amplo da
palavra, porque me abriram o mundo. (Carneiro, 1979)

Carneiro chegou a Paris em 1927, como bolsista do governo brasileiro


para desenvolver pesquisas no Instituto Pasteur para sua tese de douto-
rado em quimica." Conforme seu depoimento, tencionava primeiramente
visitar a Igreja de Notre-Dame e, em seguida, a Casa de Augusto Comte.
Ali encontrou um apartamento em estado de abandono, com os arqui-
vos em total desordem:

Entrei naquela casa, que para mim, formado no meio positivista bra-
sieiro, tinha o valor de um santuário. Ali havia vivido um filósofo, um
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

renovador, que era ao mesmo tempo um lider espiritual, uma espécie de


profeta dos tempos novos. Mas achei tudo muito abandonado. Perguntei
ao gerente: “Em que pé estão os arquivos? Já foram inventariados? já foi
publicada uma lista? Onde estão os manuscritos de todas as obras que no
testamento ele declara que estão intactos?” Ele me disse: “Não houve in-
ventário. Os manuscritos estão guardados aqui, mas não estão encader-
nados. Estão envoltos em papéis”. Insisti sobre a necessidade disso, então
ele de repente me disse: “Nós somos poucos, somos velhos, o senhor quer
nos ajudar? De repente, por uma espécie de contágio afetivo, intelectual,
ofereceram-me a liberdade de ir quando eu quisesse tocar naqueles arqui-
vos, manuscritos, papéis, e classificá-los, inventaria-los (...).

Às sextas-feiras, no fim da tarde, depois de encerrado o meu trabalho


de laboratório, eu ia para lá; e passava o sábado inteiro remexendo nos
papéis, com uma grande unção. (...) Comecei a tocar aqueles manuscritos
com essa emoção, de quem está diante de um tesouro espiritual, de um
patrimônio. (Carneiro, 1979)

Carneiro organizou O arquivo, inventariou-o, reuniu e encadernou


17 obras de Comte, integralmente manuscritas e em perfeito estado, com
recursos de sua família; pensou também em reorganizar o apartamento
de Comte como era antes de sua morte: exigência do próprio em testa-
mento. Para isso, procurou por dois anos um inventário judicial feito
logo após a morte do filósoto, encontrando-o arquivado em um cartório
francês." Paralelamente à organização do arquivo de Comte e à recons-
tituição de seu apartamento, tentou conseguir com a família de Clotilde
a entrega, para publicação, de seu manuscrito, Wilhelmine, além de sete
cartas de Comte endereçadas a ela. Essa documentação seria levada entao
para a casa da rua Monsieur-le-Prince, 10, visto ser uma designação do
testamento de Comte. Na ocasião, Cameiro declarou estar agindo “em nome
dos positivistas brasileiros”.”
Mas a IPB se opôs a essas ações, ressaltando que o correligionário
não agia em nome da Igreja, já que a aprovação da ida dos papeis de
Clotilde ao apartamento de Comte implicaria o reconhecimento de uma
dignidade e mesmo de uma autoridade que a IPB não dava à Sociedade
Imobiliária Pierre Laffitte, detentora do “apartamento sagrado”, onde não
se venerava Comte e muito menos Clotilde. À ida dos documentos po-
deria significar a criação de um vínculo oficial entre a IPB e a sociedade
imobiliária. Mas Carneiro esclareceu, em carta aos membros da Dele-
Ciência, Política e Relações Internacionais

gaçao Executiva da IPB, que não agia como representante da IPB ao fa-
zer a inscrição como sócio-guardião do apartamento e dos arquivos de
Comte junto à sociedade imobiliária.” Do mesmo modo, não agia coma
representante da Igreja ao pedir à família de Clotilde a entrega para pu-
blicação de seu manuscrito e das cartas de Comte, reafirmando lealda-
de a IPB. Diz ele:

DUirigindo-vos esta carta, meu principal intuito é testemunhar-vos que


nunca consentir, nem consentirei jamais, que ações minhas possam com-
prometer, de uma maneira qualquer, a venerável Igreja que resume, a
meus olhos, as mais sagradas aspirações humanas, redentora Igreja em
que resplandecem as memórias de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, e se
confundem, minha família e minha pátria, sob a égide da humanidade.”

Ainda em 1928, organizando os arquivos de Comte, Carneiro desco-


briu que a residência da rua Payenne comprada por Teixeira Mendes em
1903 não fora a ocupada por Clotilde e que esta havia morado na resi-
ciência vizinha à Capela da Humanidade. Membros da Delegação Exe-
cutiva da IPB não aceitaram a descoberta. Assim, por se recusarem a
corrigir o erro que Carneiro considerava histórico, contestaram sua pes-
quisa e preferiram manter o que estava inicialmente determinado quan-
to a moradia de Clotilde. A Igreja o acusou de lafitista, por ter traído o
pensamento ortodoxo da instituição. Diante disso, um mês após Carneiro
ter escrito à IPB reafirmando sua lealdade, afastou-se da Igreja junta-
mente com sua familia, sem fornecer oficialmente um motivo. Contudo,
em carta à Delegação Executiva da Igreja, apresentou uma argumenta-
ção que demonstrava a existência de uma questão que envolveria a to-
dos, não existindo um juiz capaz de julgá-la no presente, somente na
“posteridade regenerada”.º
Em vista disso, a Delegação Executiva da IPB passou a exigir de Otávio
Carneiro a restituição dos direitos sobre o imóvel situado na rua Payenne, 5.
Em circular de 5 de abril de 1929, este esclareceu que ninguém tinha au-
toridade para cassar as incumbências que lhe haviam confiado Miguel
Lemos e leixeira Mendes, e que a delegação era apenas um órgão de deci-
sões coletivas, não podendo instituir-se como representante de ordem
espiritual. Mesmo assim, por responsabilidade pessoal, Otávio Carneiro
resolveu indicar como seu sucessor a Alípio Bandeira, amigo da família.!
No mesmo dia, a pedido de Carneiro, a família de Clotilde doou à
Casa de Augusto Comte aproximadamente 47 documentos que estavam
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

sob sua guarda. O exame desses documentos comprova que a residência


de Clotilde fora realmente identificada de forma errônea, levando a IPB
a contestar o fato e reprovar sua divulgação mais uma vez,
Rompido com a IPB, Carneiro concentrou seus esforços na conserva-
cão do apartamento de Comte. Diante da ameaça de destruição Iminente
do prédio, devido a uma reorganização urbanística de Paris, organizou
uma campanha internacional e, em dezembro de 1929, obteve seu tom-
bamento como monumento histórico da França.” Em 1930, passou a re-
construir, com a ajuda do inventário judicial recuperado, o apartamento
tal e qual Comte o deixara, restaurando os móveis às suas custas, ja que
À Sociedade Civil Imobiliária se encontrava incapaz financeiramente.“
Conseguiu ainda recursos de sua família para expelir um locatário e ocu-
par todo o andar térreo do prédio, a fim de adaptá-lo ao recebimento do
material que estava no apartamento de Comte e que fora acumulado por
Laffitte após a morte do filósofo. Embora não fizesse parte dos arquivos
de Comte, Carneiro o considerava importante para a história do movl-
mento positivista. Inaugurou-se o apartamento em março de 1951 — exa-
tamente como deixado por Comte antes de morrer — em um evento
para o qual Carneiro solicitara ampla divulgação à família.”
Carneiro voltou ao Brasil em 1931, após o término dos estudos sobre
o guaraná no Instituto Pasteur. Até 1935, exerceu o magistério no Insti-
tuto de Educação do Distrito Federal - quando participou do movimento
dos pioneiros da Escola Nova -, dirigiu a Divisão de Materias-Primas
Vegetais e Animais do Instituto Nacional de Tecnologia e, por fim, assu-
miu por nomeação o cargo de secretário de Agricultura, Industria e Co-
mércio de Pernambuco.? Durante esse período, acompanhou as démarches
relativas à Casa de Augusto Comte e à polêmica sobre a residência exata
de Clotilde. Quanto à última, em 1933, assinou uma petição encaminha-
da pelos positivistas na França, na figura de Augusto Paul Eáger (secre-
tário-geral da Sociedade dos Amigos de Augusto Comte), pedindo o tom-
bamento histórico da residência da rua Payenne, 7. No entanto, a IP6
permaneceu recusando-se a reconhecer que a casa de número 5 não ti-
nha sido o lar de Clotilde.”
Em 1936, Carneiro voltou a Paris para realizar estudos, agora sobre o
curare, na qualidade de bolsista de pesquisa no Instituto Pasteur. Assim,
retomou os trabalhos da Casa de Augusto Comte e, em 1939, inventariou
por completo seus arquivos.2 A partir daí, passou a publicar a corres-
pondência inédita de Comte, em coleção criada por ele com o titulo de
Ciência, Política e Relações Internacionais

Arquivos Positivistas. Os primeiros volumes, contendo uma centena de


cartas, apareceram já em 1939, ano do início da Segunda Guerra Mundial.
Em 1942, sucedeu a François Saulnier na gerência da Sociedade Civil
Imobiliária, pois este se encontrava à beira do desastre financeiro em
função da guerra. Para Carneiro, segundo Gentil (4/10/2001), foi “a honra
fa vida”, Nesse mesmo ano, quando o Brasil declarou Dolo dos
aliados, foi detido e levado preso para Baden-Baden e Godesberg, per-
manecendo 14 meses, período aproveitado para realizar estudos. mais
profundos sobre o positivismo e planejar sua vida finda a Suerta (Car-
neiro, 7/8/1979),
Fara Os positivistas, crentes de que a humanidade caminhava de for.
m a r u m o à r a z ã o , a r e a l i d a d e i n i m a g i n á v e l d o c o n fl i t o u m a
vocou um choque. Podemos atribuir isso ao fato de a filosofia positiva se
centrar em um conceito básico de progresso e evolução do gênero
o que facilitaria a previsibilidade de uma suposta “redenção
tirano no futuro inevitável. Ou seja, a certeza de que as transformações
Por que passava a humanidade teriam uma conotação evolucionista -
O que fatalmente levaria todos para um futuro estado de harmonia e Daz
— expressa. a Sociedade positiva” numa comunidade utópica. A crença
determinista de que o futuro traria a redenção acabava dando um sentido
a própria história, em que as transformações adquiriam uma caracteris.
t i c a c o n s t r u t i v a . P o r i s s o , a v i s ã o d e s o l a d o r a d e u m c o n fl i t o b é l i c o d e
Escala mundial com características genocidas, em pleno século XX, aca-
baria pondo em xeque os próprios preceitos básicos dessa filosofia
Carneiro também sofreu esse choque ideológico, mas não abdicou de
sua doutrina, ferramenta com que compreendia o mundo a sua volta
Fara ele, a Segunda Guerra Mundial teria provocado a falência da teolo-
gia, criando um desvio para a marcha da humanidade e tornando mais
o caminho até a redenção da sociedade positiva. Na condição de
exilado e diante do novo panorama político, econômico e intelectual
viu ser necessária a reelaboração dos projetos para o futuro. Assim, DED-
Euro por suas crenças, tendo na administração da Casa de Augusto
e de seus documentos a missão positivista maior em prol da evo-
lução da humanidade: conservar os escritos do mestre e difundir sua
douta, Podemos inferir esse cuidado extremado pelo exame das páginas
de um dos documentos escritos durante seu exílio, semelhante ao início de
um diário. Dentre os 24 itens arrolados por Carneiro como imprescindi-
veis ao cumprimento de seus planos para o pós-guerra, metade diz
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

respeito a sua missão como positivista, enfatizando a casa e os arquivos


de Comte, e a outra metade se refere à reorganização de sua vida familiar
e profissional.”
Em maio de 1944 voltou ao Brasil, e no final desse ano retornou a
Paris para dar continuidade a sua pesquisa sobre o curare e pôr em prá-
tica os planos idealizados em Godesberg para a Casa de Augusto Comte.
Sua familia o ajudou financeiramente e, para isso, seu pai — Mario Barbosa
Carneiro — criou a Associação Brasileira dos Amigos de Augusto Comte,
em agosto de 1945. Infelizmente morreu no ano seguinte, e a presidência
da associação passou ao seu filho Trajano Carneiro. À associação finan-
ciou as reformas do prédio da rua Monsieur-le-Prince de modo a evitar
sua venda, que resultaria na falência da Sociedade Civil Imobiliária.
No ano de 1946, Carneiro representou o Brasil na primeira Assem-
bleia das Nações Unidas e na comissão preparatória de criação da
Unesco, permanecendo no órgão recem-criado até 1978, exercendo fun-
ções de ministro, embaixador e delegado nas Conferências Gerais.”
Nesse momento, migrou da posição de cientista para a de diplomata,
cargo que fortaleceu as ações voltadas para a conservação da Casa de
Augusto Comte. Segundo Gentil,

ele sempre acreditou estar conduzindo uma missão sagrada, à qual não
podia se furtar, e à qual deveria consagrar uma parte essencial de sua
vida. Penso não estar desvalorizando-o ao dizer que no fundo sua ação na
Unesco e sua ação em prol de Comte configuravam um só e mesmo com-
bate. (4/10/2001)

Em 1953, finalmente Carneiro encontrou uma solução duradoura para


a instituição agindo em duas frentes. Inicialmente abandonou a estru-
tura de sociedade civil imobiliária, que já não convinha e fundou a As-
sociação Internacional Casa de Augusto Comte. Para isso, convenceu os
comtistas a transferirem a propriedade à associação e estabeleceu uma
parceria sugerida por Alain Touraine com a École Pratique des Hautes
Études, atual École des Hautes Études em Sciences Sociales. Graças a
seu vinculo com a Unesco e com a ajuda de seu amigo Charles Morazé,
negociou o contrato com a École, garantindo a ocupação progressiva do
prédio e sua conservação (Gentil, 4/10/2001).
A Ecole se comprometeu também a dar prosseguimento à publicação
da coleção Arquivos Positivistas, suspensa por ocasião da guerra. O pla-
Ciência, Política e Relações Internacionais

no consistia na edição de cerca de três mil cartas de Comte, integral e


em ordem cronológica, desde a época em que estudava na Escola Politéc-
nica de Paris até seus problemas sentimentais com Clotilde. Contaria
com ilustrações e comentários, mais introdução de Carneiro, perfazendo
oito volumes. Até 1976, lançaram-se sete volumes, tendo o último volume
previsto sido publicado bem posteriormente.
Em 1971, em cooperação com Pierre Arnaud, Carneiro publicou
Auguste Comte, Ecrits de Jeunesse, contendo textos da mocidade do filósofo,
de 1816 a 1828, seguido de A Cosmogonia de Laplace, apresentado por
Comte à Academia de Ciências de Paris, em 1835.2%

Em fevereiro de 1981, já doente, Carneiro assegurou sua sucessão,


como presidente da Associação Internacional Casa de Augusto Comte e
guardião de seu patrimônio, para seu irmão Trajano Carneiro, que pas-
Sou a ser o novo presidente. Dois meses depois, doou à Biblioteca Nacio-
nal da França os manuscritos de Comte, restaurados e encadernados
havia mais de 50 anos, por temer dispersão, roubo e incêndio. “O que
poderia ocorrer amanhã se eu morresse?” era a pergunta preocupante
que se fazia, após mais de cinco décadas de dedicação aos arquivos e à
Casa de Augusto Comte.”

Considerações finais

Podemos perceber a importância que a Casa de Augusto Comte re-


presentou para Carneiro quando observamos o quanto se dedicou à em-
preitada de organização dos arquivos, publicação das obras, restaura-
ção do imóvel e sua transformação em centro de estudos sobre o
positivismo, ação que se tornou uma verdadeira 'missão sagrada”. Não
e demais reafirmar que, em seu caso específico, a educação positivista
obtida no seio da IPB acabou contribuindo para o desenvolvimento de
um sentimento de veneração frente à casa onde havia morado Comte,
visto que seus pertences eram considerado relíquias sagradas pelos
adeptos da religião da humanidade. Vale realçar também o grau de im-
portância que os positivistas conferiam aos considerados grandes no-
mes da história, que, sempre venerados, alcançavam áurea de santos,
tornando-se imortais para a “posteridade regenerada”, o futuro — a socie-
dade positiva.” Em 1927, quando Carneiro se deparou com o “aparta-
mento sagrado” em total desordem, sua postura imediata foi de dedi-
cação e gerência. Estava diante de um problema cuja solução, em seu
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

ponto de vista, poderia levá-lo à “imortalidade”, visto que lidava com


um objeto sublime.
À despeito dessa vertente sagrada, Carneiro não era doutrinário, o
que o impulsionava a retornar as suas fontes básicas: o pensamento de
Comte. Sendo imperativo da filosofia comtiana formar uma elite intelec-
tual e científica que estivesse à frente da construção de uma sociedade
positiva, o cataclismo da Segunda Guerra Mundial tornou ainda mais
forte a visão elitista de organização da sociedade que Carneiro carregava,
como evidencia o documento escrito em Godesberg.?
Essa compreensão da realidade política e social imprimiu na vida
publica e privada de Carneiro uma marca indelével, da qual o próprio
projeto de dedicação à Casa de Augusto Comte é característica. Ao
transformá-la em centro de difusão de todo o potencial de pesquisa e
conhecimento em torno do pensamento de Comte, Carneiro procurou
consolidar sua imagem perante a elite intelectual, principalmente entre
os universitários. Assim, seu papel nessa “missão sagrada” seria o de
facultar as gerações futuras o conhecimento integral do patrimônio le-
gado pelo filósofo. Para ele, a posição de guardião e difusor do patrimônio
de Comte lhe bastava, já que sua obra o elevaria fatalmente à condição
de “imortal”.

Nesse contexto, pode-se entender que um homem da envergadura


de Carneiro tenha almejado marcar a história com algum feito capaz de
ser lembrado no futuro como de suma importância para a evolução da
humanidade. Até mesmo sua pesquisa científica pode ser vista como
ferramenta na tentativa de alcançar esse fim, manipulando a ciência não
como objetivo final, mas como meio para favorecer o projeto da socie-
dade positiva.
Por fim e para os propósitos do artigo, nada mais relevante do que
associar esse recorte histórico da biografia de Carneiro a sua obsessão (e
de sua familia) em acumular, organizar e preservar ao longo de uma
vida — que compreende três gerações — todos os documentos que lhe
servissem de prova de sua “missão telúrica' de servir ao positivismo,
com o fim de cumprir a “missão sagrada”: legar à posteridade o registro
de suas ações para “alcançar a imortalidade”.
Por outro viês, se o surgimento dos arquivos pessoais tem sua história
datada a partir da segunda metade do século XIX — plena afirmação
moderna do individualismo e da ciência — e seu valor histórico confir-
mado ao longo do século XX até nossos dias, não se pode, tout court,
Ciência, Política e Relações Internacionais

relacionar esse fenômeno ao positivismo. No entanto, podemos afirmar


que o fundo arquivístico da família Carneiro instiga a análise do fenô-
meno, motivo pelo qual se torna relevante examinar mais profundamen-
te esse aspecto da biografia de Carneiro — à frente da Casa de Augusto
Comte —, sob a Ótica privilegiada de seu arquivo familiar.
Confidencial: algumas páginas de íntima
reflexão escritas em Godesberg
(1945-1944)

Matura getas Godesberg


e t s e r v i r ” 4 de outubro de 1943

Núultla dies sine linea

Em meio à tormenta que me cerca sinto, mais do que nunca, estável e


confiante a unidade interna de minha vida. Dominando a desordem ex-
terior crescente, convergem cada vez mais meus sentimentos, meus pen-
samentos e meus atos para o culto e o serviço da humanidade. Embora
menos duro do que fui em minha mocidade, sou hoje mais enérgico e
mais terno. Ao sentimento espontâneo de solidariedade associa-se cons-
tantemente a preocupação de continuidade, consolidando-se assim a
fraternidade instintiva pela sociabilidade sistematicamente cultivada para
com o passado e o porvir. Para melhor servir meus contemporâneos,
vivo, principalmente, entre os grandes mortos que me guiam e [ilegível]
a que me consagro com o melhor das minhas forças. Afetam-me, por
isso, menos do que a outros os desmandos e os desastres que assisto;
enlutam-me, sem desesperar-me, porque tenho constantemente sob os
olhos o quadro redimido do futuro. Mais extensa do que profunda, a
recrudescência atual da imensa crise intelectual e política que penosa-
mente atravessa a humanidade, desde os fins da Idade Média, acelerará,
por certo, o surto da única solução que comporta. A violência material
do conflito que ensangúenta e arruína o mundo inteiro desvendará aos
mais cegos a necessidade imperiosa de uma profunda reorganização
espiritual. A falência completa da teologia e dos expedientes metafísicos
fica atestada pelo inominável crime dessa guerra total desencadeada por
falta de princípios e de chefes capazes de dirigir o mundo moderno.
Nada impedirá, provavelmente, uma forma transitória, mais ou me-
nos pronunciada, de comunismo entre as nações após a guerra. Nada
foi construido nestes últimos cem anos para evitá-lo. Terá sido necessária
mais esta provação para impor o positivismo ao porvir. Sem temer o
surto já inevitável da onda de anarquia que se avizinha, cumpre apro-
VERar o espírito social que a impele, por mais desordenado que seja.
Desprezando doravante os destroços da teologia, reduzidos à completa
impotência, urge preparar desde já as condições propícias para acelerar
o último passo da transição para o regime positivo, desenvolvendo nes-
se sentido as afinidades latentes do comunismo. Nessa luta decisiva ven-
cerá o positivismo porque só ele satisfaz simultaneamente a todas as
aspirações legítimas, quer de progresso, quer de ordem. Acabará assim
O comunismo por ser incorporado ao positivismo em tudo que encerre de
aspiração normal do espírito e de coração humano. A síntese final sur-
gira, definitivamente, após esta última depuração do lado revolucionário.
Antevejo assim a tensão que se imporá aos positivistas em face da
nova situação mundial. Nesse sentido empenharei todos os meus esfor-
ços para gradual implantação dos sentimentos, das doutrinas e dos há-
bitos [sic] sistematizados pela Religião da Humanidade. Através das
maiores tormentas marcha invariavelmente a espécie humana para seu
estado normal, sua busca da unidade e do equilíbrio de todas as suas
forças. Pela subordinação da análise à síntese, do progresso à ordem e
do egoismo ao altruísmo assegura-lhe o positivismo essa harmonia em
= [legível] pela teologia e pela metafísica. A tarefa que nos impõe é
pois puramente construtiva: demonstrar a superioridade das soluções
positivas a todos os programas empiricamente postos pelos retrógrados
e pelos revolucionários. “On ne détruit que ce que [ilegível] remplace”.
ÃO iniciar minha madureza completam-se e fortificam-se os planos
de minha mocidade. Toda a minha vida privada e pública, voto-a, com
esmo ardor, ao serviço do positivismo, convicto de que só assim pode-
rel ser util a minha família e a minha pátria — inseparáveis dos destinos
gerais da humanidade. Subordinando-a sempre a [ilegível] objeto, es-
forçar-me-ei por desenvolver, quanto possível, minha carreira científica,
base indispensável do [ilegível] social a que aspiro para prestigiar mi-
nha ação filosófica e religiosa.
a esse intuito cumpre-me a todo custo conservar os resultados já
obtidos, melhorando-os sob todos os modos. Posso, assim, no limiar de
meus 42 anos, resumir meus planos de porvir próximo:
1) I n s t a l a r - m e d e fi n i t i v a m e n t e e m P a r i s .
2) Melhorar as minhas condições materiais de existência
3) lrazer, para minha companhia, Corina, Beatriz e Mário
4) Empenhar todos os meus esforços para uma visita de mamãe e pa-
pal a Paris.
5) Assumir a direção efetiva da Casa e dos Arquivos de Augusto Comte,
confiados pelo Saulnier a meus cuidados em setembro de 1942. Orga-
nizar definitivamente o Museu e o Secretariado positivista. Consti-
tuir sob nova forma a Sociedade Conservadora da Casa de Augusto
Comte, dentro das normas concedidas às instituições de utilidade
pública e tanto quanto possível dentro do espirito da Execução les-
tamentária organizada por Augusto Comte. Constituir um fundo
especial para a conservação da Casa e de suas relíquias, de modo a
dispor de todo o prédio ao serviço do positivismo. Colocar nova placa
na fachada do rez [sic] do chão.
6) Manter e desenvolver a distribuição e venda das Obras de Augusto
Comte.

/) Empreender uma edição completa da Correspondência e da Obra


de A. Comte, segundo o modelo da Sintese Subjetiva, mediante uma
revisão geral dos textos impressos, à luz dos manuscritos. (Plano a
estudar e fixar em seus pormenores). (Para 1948).
O) Prosseguir na elaboração e publicação dos volumes sucessivos da
coleção “Archives positivistes” por mim criada em 1939: Publicar
em 1944 o vol. “Monuments et Reliques du Positivisme”. (Dedicado
a Mamãe e Papai).
9) Preparar, para 1946, uma edição, em fac-símile, da correspondência
entre Augusto Comte e Clotilde.
Formato da edição de “Willelmine”:

Clotilde de Vaux et Auguste Comte


Correspondance
Edition fac-simile
Textes présentés par Paulo E. de Berredo-Carneiro
1946
10, rue Monsieur-le-Prince Paris

Edição dedicada às memórias de Tleixeira] Mfendes] e Mliguel] Lfemos|.


edieDto

Edição ilustrada, em heliogravura, com retratos e reliquias de ambos.


Tentar obter de Charles de Rouvre e do Ahmed Marie os retratos,
documentos e relíquias que ainda possuam, relativos a Clotilde, para
incorporá-los aos arquivos de Aug. Comte, e eventualmente utilizar
na edição comemorativa do centenário do Ano sem par.
Preparar para 1945 o volume “Auguste Comte — Grand prêtre de
(as memórias de tio Silvio e tio Otavio).
Preparar para 1946 o vol. “Clotilde de Vaux”, sa vie et son rôle dans
la fondation du Positivisme. Celebrar em Paris o 1º centenário de
sua morte (5 de abril de 1946). (A memória de Vovó).
Preparar para 1948 o vol. “La grande Trilogie d' Auguste Comte” —
comemorando o 1º centenário de Discurso sobre o conjunto do
Positivismo e da fundação da Sociedade positivista (dedicado a Paula
Lopes).
Reconstituir nessa ocasião (março de 1948), a Sociedade positivista,
com os elementos gradualmente reunidos, até lá, para esse fim, con-
servando o cunho dado por Augusto Comte a essa instituição.
Organizar em 1948, em torno da Sociedade Positivista de Paris, o
Comitê Ocidental, com a constituição e as atribuições especificadas
por Augusto Comte.
Paralelamente a esses trabalhos positivistas, retomar, desde minha
volta a Paris, as pesquisas de química e de fisiologia no Instituto
Pasteur.

Instalar no quadro do Instituto] Pasteur uma seção de pesquisas


sobre plantas medicinais e tóxicas tropicais, sob o ponto de vista
quimico e farmacodinâmico, (Serviço do Fourneau), em colabora-
ção com os institutos de botânica, biologia e outros do Brasil (Jardim!
Botânico, Manguinhos etc., etc.)
Para tornar viável esse conjunto de projetos, pleitear por todos os
meios junto do governo brasileiro minha nomeação para Paris, sob
uma forma qualquer:

a) Delegado do Brasil junto ao Inst[ituto] de Coopf[eração] Intelectual.


b) Conselheiro Comercial junto à Embaixada.
c) Conselheiro especial junto à Embaixada.
d&) Diretor do Office du Brésil em Paris ou outra função que me quei-
ra atribuir O governo, incorporando-me ao quadro do Itamaraty,
mas com posto fixo em Paris.
19) tornar efetiva a promessa do Dl[epartamento] N[acional] [do] Clafé]
e do Polin [sic], assegurando-me a representação exclusiva, em F rança
e outros países, da fabricação e venda da “Catfelite”.
20) Caso não seja viável uma situação fixa em Paris junto ao Ifnstituto]
Internacional] [de] C[ooperação] ou à Embaixada, ten-
tar obter o posto de Delegado do D.N.C. em França.
21) Organizar cuidadosamente a formação cultural de Beatriz e Mário
Augusto, consagrando a ambos o melhor de meus esforços, de modo
a assegurar-lhes, graças aos recursos imensos que Paris oferece, uma
forte preparação estética, científica e filosófica, segundo as disposi-
ções e preferências que manifestarem.
22) Cercar Corina do máximo de carinho e de conforto, numa comu-
nhão mais intima de sentimentos e de pensamentos, partilhando
com ela todos os aspectos de minha vida, na esperança de que nossa
madureza nos traga, a ambos, as venturas sonhadas no alvorecer de
nossa mocidade.
23) Instalar-me num grande apartamento, em que possamos ter, todos
os quatro, nossos quartos independentes, além de uma sala de tra-
balho e biblioteca, com mobiliário nosso, de modo a criar uma at-
mostera intima e pessoal que a todos nos seduza, contribuindo para
o prazer da vida de interior. Escolher apartamento em ponto
aprazível em Paris, com vista sobre a cidade ou alguma de suas par-
ques [sic]. À margem do Sena, entre a Torre Eiffel e o Pont des Arts,
p. €X.
24) instalar na 1. Monsieur-le-Prince, acima do Ap. de Augusto Comte,
um gabinete de trabalho e um salão de recepção, que sejam a sede
da Sociedade Conservadora da Casa do Mestre. Para esse fim alu-
gar, por prazo longo, o apartamento em questão, fazendo todas as
adaptações e os arranjos necessários.
25)
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

* Ver Maio & Sá (2000); Maio (2001, 2002).


* Para informações mais detalhadas sobre o acervo familiar e o Arquivo de Carneiro, ver: Fraiz
(2000,2001).
* À Igreja Positivista do Brasil Fundada por Miguel Lemos e a Execução Testamentária de
Augusto Comte. Relatório da IPB sobre sua relação com a execução testamentária de 1893 até
1907. Rio de Janeiro, 1928. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.
* À esse respeito, ver: Projeto de Resolução Tomada pela Assembléia dos Executores Testamentários
de Augusto Comte. Paris, 1893. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 25: Circular da
Sociedade Imobiliária Pierre Laffitte. Paris, 1930. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz,
cx. 6; Casa de Augusto Comte. Relatório de Carneiro a sua família, sobre seu trabalho de
conservação e organização do apartamento de Comte. Paris, 29/3/1931. Fundo Família Car-
neiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.

? À Igreja Positivista do Brasil Fundada por Miguel Lemos e a Execução Testamentária de


Augusto Comte. Relatório da IPB sobre Carneiro e sua relação com a Execução Testamentária
de 1893 até 1907. Rio de Janeiro, 1928. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.

6 Otávio Carneiro (1875-1932) era engenheiro e tio de Paulo Carneiro. Ficou conhecido por
estimular a navegabilidade do rio São Francisco, conforme depoimento de Mario Augusto de
Berredo Carneiro a Abdala Farah Netto, em 31/7/2001. Relatório do Projeto Faperj/DAD/
COC/Fiocruz.

Carneiro, Mario Barboza. Casa de Clotilde. Rio de Janeiro, junho 1929 (folheto). Fundo Famí-
ha Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 31.

* Recorte de jornal sobre a inauguração de um novo templo positivista em Paris. Sem autoria,
S.1, 1905, Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30. Auguste Comte et le Positivisme.
Disponivel em: <http://www.augustecomte.org>, 2002.
* Circular da Sociedade Civil Imobiliária Pierre Laffitte sobre os problemas financeiros da ins-
tituição, com pedido de novas contribuições. Paris, 5/9/1930. Fundo Família Carneiro, DAD/
COC/Fiocruz, cx. 30.

“ Doutorou-se em 1931, com o estudo sobre a composição do guaraná.


“ Carta de Carneiro para a sua família. Paris, 28/6/1930. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/
FIOCIuZ, CX. 6.

“ Castro, Cláudio José de. Mais um dissídio entre positivistas. O País, Rio de Janeiro, 15/11/
1928. Fundo Familia Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 31.
'* Carta de Carneiro à Delegação Executiva da IPB. Paris, 3/10/1928. Fundo Família Carneiro,
DAD/COC/Fiocruz, cx. 6.

!4 Carta de Carneiro à Delegação Executiva da IPB. Paris, 3/10/1928. Fundo Família Carneiro,
DAD/COC/Fiocruz, cx. 6.

id Correspondência entre a família Carneiro e a Delegação Executiva da IPB. Rio de Janeiro, 7/


10/1928-26/11/1928. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.
'6 Circular de Otávio Carneiro a todos os positivistas. Rio de Janeiro, 5/4/1929. Fundo Família
Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 31.

Z À esse respeito, ver: Carta de Fernand Rousseau para Carneiro. Paris, 1929. Fundo Família
Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 20; Casa de Augusto Comte. Relatório de Carneiro para sua
familia, sobre seu trabalho de conservação e organização do apartamento que foi ocupado pelo
tundador do positivismo. Paris, 29/3/1931. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.
Paulo Carneiro e Casa de Augusto Comte

o Conforme palavras de Gentil atual presidente da Associação Internacional Casa de Augusto


Comte (Gentil, 4/10/2001).
2 Casa de Augusto Comte. Relatório de Carneiro para sua família, sobre seu trabalho de con-
servação e organização do apartamento que foi ocupado pelo fundador do positivismo. Paris,
29/3/1931. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 30.

O Curriculum vitae de Carneiro. Paris, s.d. Fundo Família Cameiro, DAD/COC Fiocruz, cx. 77.
* Identificação da Residência Mortuária de Clotilde de Vaux. Circular n. 35 da Execução Tes-
tamentária de Augusto Comte. Paris, 15/6/1933. Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz,
CX. 314.

*- Infelizmente, até o momento as cópias dos inventários elaborados por Carneiro não foram
encontradas na parcela já identificada do acervo.
* Por sua importância para os propósitos deste texto, o documento, devidamente referenciado,
esta integralmente transcrito em anexo.
** Ver Maio & Sá (2000).
º Conde, Elysio. Manuscritos de Comte foram doados à França. Jornal de Letras, Rio de Janei-
ro, maio 1981. Fundo Família Carneiro, DAD/COC Fiocruz.
** Citado por Gentil, 4/10/2001.
* Atualmente, a Casa de Augusto Comte abriga um centro de documentação e um museu
situados no primeiro andar do prédio. Os arquivos e a biblioteca são de consulta livre a pesqui-
sadores e universitários. Para maiores informações, consultar O site: http://
WWww. augustecomte.org.

Os Heróis da Humanidade e seus Respectivos Meses. Quadro sinóptico sobre o culto aos gran-
des nomes da história presentes no calendário positivista. s.l, s.d. Fundo Família Carneiro,
DAD/COC/Fiocruz, cx. 97.
29 Ver anexo.
“O Fundo Família Carneiro, DAD/COC/Fiocruz, cx. 65.

*! Documento incompleto. Assim no original.

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Deélégation du Brésil auprês de 1 Unesco, s.d.
A Unesco e a politica de cooperação
internacional no campo da ciência!
Aant Elzinga

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência


e a Cultura (Unesco) faz parte da família de organizações inter-
= E» SOVernamentais que surgiram com a Organização das Nações
Unidas (ONU). Assim, está próxima de celebrar seu sexagésimo aniver-
sario de fundação.
Quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, representantes
dos paises que viriam a ser os vitoriosos realizaram um encontro para
discutir o perfil de uma nova organização intergovernamental dedicada
a Intercâmbios internacionais nas áreas da cultura e da educação. Na-
quele momento, a ciência ainda não fora incluída nos debates. Foi prin-
cipalmente graças aos esforços de dois cientistas britânicos — Joseph
Needham e Julian Huxley, ambos profundamente comprometidos com
o desenvolvimento da cooperação internacional no campo científico — que
a nova organização incluiu o “s” — de science, ciência — nos seus estatutos
e na sua sigla.
Needham, um marxista cristão, era membro de um grupo de berna-
listas” e defendia a necessidade de um melhor planejamento e de mais
responsabilidade social, particularmente no que dizia respeito ao papel
social da ciência, incluindo-se aí o fortalecimento da independência, o
desenvolvimento econômico e a ampliação da base de conhecimentos
científicos naquelas partes do planeta que haviam sido colonizadas pelas
nações do Ocidente.
Huxley, biólogo famoso, filiado na década de 1930 ao movimento britã-
nico Responsabilidade Social da Ciência (Social Responsibility of Science),
tornou-se o primeiro diretor geral da Unesco, cargo que lhe possibilitou
Ciência, Política e Relações Internacionais

promover a mesma linha de pensamento de Needham, ao tentar fazer


da organização um meio de impulsionar ativamente a ciência e a coope-
ração cientifica para além das fronteiras da metrópole.
A atuação da Unesco de fato pode ser vista, ao menos em parte, como
uma janela para observar os avanços historicamente alcançados na direção
da cooperação internacional no campo da ciência ou os vários obstácu-
los que se colocam nesse domínio. A intenção declarada da Unesco é a
universalidade. No campo científico, isso se traduz pela proposição da
ciência como bem público que, em princípio, deve ser acessível a todos,
independentemente de raça, crença religiosa, classe ou localização geo-
grafica. Esse é o ideal.
Na prática, ele é dificilmente alcançado, pois a economia política dos
recursos necessários para o acesso à ciência tende sempre a favorecer as
nações industrializadas e traz grandes desvantagens para o Terceiro
Mundo. Os recursos, nesse contexto, não são apenas materiais, mas tam-
bém culturais, na forma de ensino superior e de treinamento em pes-
quisa, pré-requisitos para a apropriação dos conhecimentos científicos
mais avançados e para a sua aplicação em cada pais.
A superação desses problemas e o trabalho de base para que os diversos
paises atingissem um nível mínimo de capacitação científica eram obje-
tivos prioritários na agenda da nascente Unesco, logo após a guerra.
Uma das idéias propostas foi a de criar instalações e recursos científicos
verdadeiramente internacionais, que pudessem ser usados por pesqui-
sadores de qualquer país. Na verdade, ela só foi concretizada em casos
muito excepcionais e ainda hoje ressurge ocasionalmente, suscitando
novos debates e perspectivas sobre o que seria um futuro mais justo na
esfera da ciência.

O objetivo deste artigo é examinar alguns conceitos defendidos por


Needham e Huxley relativos à cooperação científica internacional e
acompanhar alguns dos esforços deles e daqueles que os seguiram na
tentativa de realizar sua visão de um mundo melhor. É importante estabe-
lecer logo de início uma distinção clara entre dois aspectos do interna-
cionalismo científico: o material/instrumental e o retórico, já que ambos
foram elementos importantes na legitimação dos esforços da Unesco no
campo da ciência.
Em um nível, a cooperação científica entre grupos e através das fron-
terras nacionais é motivada pela necessidade de desenvolver padrões
comuns de referência que possam ser aplicados na observação, na
A Unesco e a política de cooperação internacional...

montagem de bases de dados, na calibragem de instrumentos, nos proce-


dimentos e protocolos experimentais, na definição de constantes cienii-
fi c a s b á s i c a s e d e u n i d a d e s d e m e d i d a e t c . E l a c o n t i n u a a s e r u m a i m -
portante força motivadora do surgimento e desenvolvimento de asso-
ciações cientificas nacionais e internacionais

Em outro nível, a cooperação científica, especialmente quando se dá


Em nome do internacionalismo da ciência, assume caráter ideológico.
Faz-se referência ao ethos da ciência, como no esquema mertoninano das
quatro normas — comunismo intelectual, universalismo, desinteresse e
ceticismo organizado — que se supõe existirem como uma espécie de ci-
mento moral, na ausência do qual a ciência não poderia funcionar. Esse
ethos alimenta a noção de que a ciência é produto comum do gênero
humano e que o conhecimento científico é um bem público que existe
para o benefício de toda a humanidade. Apesar do fato de que essa cons-
trução simbólica de uma situação ideal frequentemente se afasta muito
da ciência real no mundo real, ao mesmo tempo em que é invocada como
se realmente existisse, refiro-me a ela como ideológica e retórica. Isso
não significa, no entanto, que tenha menos força como parte da mitolo-
gla da cultura científica, ou como um ideal perseguido pelos formuladores
de políticas.
Dentro da Unesco, o ideal internacionalista foi defendido de modo
bem diferente daquele com que o foi na organização que a precedeu
como lócus de cooperação transnacional, a saber, o Comitê Internacio-
nai de Cooperação Internacional (International Committee for Intellectual
Cooperation — ICIC), da Liga das Nações. A Unesco, além de explicita-
mente colocar a ciência em cena, procurou ampliar o escopo da coope-
ração Intelectual para além de um modelo eurocêntrico e também dar
maior ênfase ao nível material e instrumental, em comparação com o
nível retórico-ideológico. Neste artigo, não tratarei extensamente da his-
tória do Comitê, pois bastam algumas palavras para entender o que ele
representou como antecedente para a formação da Unesco.
O Comitê Internacional de Cooperação Internacional, criado sob os
auspícios da Liga das Nações, era uma organização elitista. Sua lógica
básica era a de que a plêiade das mentes mais brilhantes do mundo con-
seguiria elevar-se acima do conflito que normalmente dividia as nações
em blocos políticos, ideológicos e de outras naturezas. Para manter uma
aparência de unidade, ignoraram-se as questões mais controvertidas do
periodo entre as duas guerras mundiais. Como mostrou Catharina
Ciência, Política e Relações Internacionais

Landstrôm (1996), isso levou a uma situação de crescente impotência.


Numa conjuntura em que o fascismo avançava, o Comitê carecia da
agressividade necessária para deixar sua marca na opinião mundial.
Assemelhava-se a uma avestruz e sua neutralidade oficial era explorada
pelas nações agressoras para fabricar uma falsa imagem de civilização e
dedicação à cultura.

Essas lições negativas da experiência do Comitê não estavam esque-


cidas quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim. Ao con
trário, estavam bem presentes na consciência dos arquitetos do novo
fórum internacional para intercâmbios culturais e científicos - nomea.-
damente a Unesco, que sucederia o Comitê Internacional de Cooperação
internacional —, desde a fase preparatória, no segundo semestre de 1945,
A Reunião Fundadora da Unesco ocorreu em Londres, pouco depois da
Conferência Fundadora da ONU, realizada em São Francisco (EUA), na
qual fora apresentada a sugestão de se criar uma organização interna-
cional de caráter educacional

Muito antes que a guerra terminasse, já havia iniciativas entre os pa-


ises aliados no sentido de criar uma organização internacional por meio
da qual os governos pudessem interagir mais efetivamente e de modo
multilateral no campo da cultura e da educação. A inclusão do “s” na
Unesco foi uma inovação que só se deu no final do processo de sua fun-
dação, e como consegiiência das ações de lobby de um grupo de cientis-
tas britânicos muito bem articulados, com acesso ao ministro da Ediica-
ção do Reino Unido. Eram pessoas que tinham militado no movimento
Responsabilidade Social da Ciência, da década de 1930. Seu envolvimento
na criação da Unesco serviu como elo de continuidade com outra tradi-
ção de pensamento sobre o papel da ciência na sociedade, mais radical
do que aquela que dera origem ao ICIC
Evidentemente, as expectativas projetadas na Unesco não eram pu-
ramente altruisticas. Os aliados vitoriosos estavam decididos a usar a
nova organização — independentemente do perfil definitivo que tomasse
-— para promover as suas próprias noções de “sociedade aberta”. Era um
PASO em que se aguçavam as diferenças ideológicas quanto ao sig-
nificado de conceitos fundamentais, como democracia € liberdade
No campo da filosofia, a escola analítica anglo-saxã avançara na es-
teira da ordem militar e de segurança do pós-guerra e do Plano Marshall
de assistência. Os adeptos dessa escola propunham a análise linguística
e conceitual como ferramenta para eliminar as falhas de entendimento e,
A Unesco e a política de cooperação internacional...

portanto, as bases de conflitos. Tal análise era apresentada como imparcial


e objetiva, quando de fato revelava um viés bem forte em favor de con-
cepções liberais ocidentais, apresentadas com uma roupagem
umversalista. A ilustração cultural era igualada implicitamente com a
aceitação da norma do livre mercado como a mais racional
Us funcionários governamentais que trabalhavam na esfera da Unesco
nem sempre aceitavam os extremos dessa ideologia essencialmente capi-
talista, contudo tendiam a reforçar o cientificismo e o eurocentrismo
que a acompanhavam. À tensão principal tinha a ver com forças e con-
certos externos a esfera da Unesco, ou seja, a União Soviética, e, logo
depois, por extensão, a Europa Oriental, onde liberdade e democracia,
como conceitos fundamentais, seguiam uma lógica diferente.
Como a União Soviética só ingressou na Unesco após a morte de Stalin,
o conflito ideológico básico, no período imediatamente posterior à
guerra, foi em grande parte externalizado. Em seu lugar, destacaram-se
os conflitos ligados a rivalidades nacionais e às diferentes tradições cultu-
rais e políticas de Estados-membros da Unesco. Uma das diferenças
girava em torno de duas visões contraditórias sobre a organização: uma
defendia o seu caráter não-governamental, outra a sua natureza inter-
governamental. O elitismo inspirado pela antiga conexão francesa (ICIC)
coexistia com o pragmatismo e até com o populismo anglo-americanos.
O resultado foi que a Unesco não poderia, mesmo que assim desejas-
se, funcionar como mera extensão dos interesses políticos nas esferas da
cultura, educação e ciência. Cada uma dessas esferas tinha a sua própria
lógica de desenvolvimento, irredutível àquela, mais bruta, da política;
de forma que o jogo de conflitos na arena geopolítica passou, em cada
caso particular, por transformações complexas. Dentro do esquema geral
da perspectiva ocidental, havia algum espaço para iniciativas indepen-
dentes que iam contra as práticas usuais na esfera política. Isso foi parti-
cularmente verdadeiro no campo da ciência, já que ela era considerada
um território ideologicamente neutro, ao menos nos seus conteúdos
Ideais, ainda que nem sempre em seu funcionamento e seu impacto so-
cial. O Departamento de Ciência da Unesco foi um lugar onde alguns
residuos da linhagem mais radical de responsabilidade social, que re-
montava à década de 1930, tiveram certa continuidade, em grau impos-
stvel de se verificar nos campos da educação e da cultura.
A seguir, trataremos da Unesco tal como se apresentava por ocasião
de sua fundação, para depois nos concentrarmos em alguns detalhes
Ciência, Política e Relações Internacionais

dos primeiros quinze anos de existência. Veremos que, no início, O viés


ideológico ocidental era tão amplamente aceito pelos Estados-membros
que raramente foi objeto de contestação interna. Isso significou a ocor-
rência de um processo continuado de ampla tecnização.
Em 1954, com a entrada da União Soviética, o conflito ideológico con-
tinuou a ser evitado com um reforço ainda maior da visão instrumenta-
lista da ciência e da cultura. No Ocidente, isso coincidiu com a teoria da
convergência, a noção de que o desenvolvimento industrial e tecnológico
levaria a uma sociedade pós-industrial, a mesma em todas as partes do
mundo, independentemente de diferenças ideológicas e políticas. Do
lado soviético, essa noção se ajustava como uma luva a uma perspectiva
tecnocrática da teoria da revolução científico-tecnológica, que se tornou
peça central no que se chamava a “ciência da ciência”. Por sua vez, O
cientificismo se ajustava perfeitamente a filosofia dominante dentro da
Unesco, propagada por seu primeiro diretor geral, o biólogo Julian
Huxley. Portanto, também será a seguir focalizada a epistemologia
evolucionista de Huxley.

Gênese, herança dividida e viés pró-Ocidente

O convite para participar da Conferência de Fundação da Unesco já


assinalava a complexidade das manobras diplomáticas. Formalmente, o
convite aos Estados participantes foi feito em conjunto pelo Reino Unido
e pela França, em virtude do forte papel do primeiro como nação livre e
libertadora da Europa no fim da guerra, e, quanto à segunda, em reco-
nhecimento da continuidade com o antigo ICIC (aquela altura, já dissol-
vido). Durante as negociações em Londres, transpareceu a existência,
nos bastidores, de dois planos rivais para a nova organização: um, extra-
ido de planos britânicos e norte-americanos anteriores; outro, redigido
pelos franceses. O primeiro era uma fórmula conciliatória baseada no
pragmatismo e nos interesses das grandes potências, ao passo que o se-
gundo refletia os interesses de um governo mais disposto a incorporar
novas forças democráticas e a estabelecer a sede da nova organização
em Paris. Os observadores soviéticos presentes em negociações ante-
riores boicotaram o encontro; a vaga criada para a União Soviética só foi
ocupada a partir de 1954.
A dupla ascendência da Unesco marcou-a com duas abordagens bem
diferentes quanto à questão do intercâmbio internacional no campo
À Unesco e a política de cooperação internacional...

da ciência.” Uma delas vinha do Instituto Internacional para a Coopera-


ção Intelectual (IICI, sediado em Paris e afiliado ao já mencionado ICIC),
da França juntamente com algumas outras nações. A outra vinha da re-
cente Aliança Atlântica, através da Conferência dos Ministros da Edu-
cação dos Paises Aliados (Conference of Allied Ministers of Education —
CAME), de composição altamente pragmática e cujos integrantes se
reuniam em Londres desde 1942, com a presença de três ministros de
paises aliados e de pessoas que detinham responsabilidades similares
na área educacional dos governos em exílio (sediados em Londres) dos
países ocupados. A posição francesa era favorável à criação de uma
instituição com forte representação não-governamental; a posição
anglo-norte-americana favorecia a formação de uma organização de âm-
bito mundial fortemente controlada pelos Estados-membros, ou seja,
uma entidade intergovernamental.
Embora esta segunda proposição tenha saído vitoriosa, os interesses
franceses foram em parte atendidos pela incorporação de alguns funci-
onaários do velho ICIC à Comissão Preparatória incumbida de organizar
a primeira Conferência Geral. Isso ocorreu em Paris, onde a nova enti-
clade foi formalmente instalada em 4 de novembro de 1946, dia em que
seu estatuto passou a vigorar por força da ratificação pelo seu vigésimo
Estado-membro, a Grécia. O local escolhido para sede da Unesco tam-
peém era carregado de simbolismo: o Hotel Majestic, na Avenue de Kléber,
sede do governo alemão durante o período de ocupação. Posteriormen-
te, Julian Huxley (1973: 24) escreveu que seu escritório de diretor “tinha
a “distinção” de ter sido o escritório do notório comandante nazista de
Paris. Assim, a minha ocupação desse escritório simbolizou a transição
da guerra e do racismo para a paz e a cooperação cultural”.
Us primeiros membros da Unesco eram uma constelação de aliados
ocidentais e de países deles dependentes em várias regiões do mundo. O
governo pre-comunista da Polônia ingressou como vigésimo primeiro
membro. Ichecoslováquia, Hungria e Iugoslávia também estavam entre
os Estados fundadores. Depois que se aproximaram da União Soviética,
preferiram deixar de participar e se ausentaram voluntariamente da
Unesco até 1954. A Suécia, neutra, só se filiou em 1950. Quando a Itália
se filiou, em 1948, seguida do Japão e da Alemanha Ocidental, em 1951,
a posição ocidental fortaleceu-se ainda mais.
Clare Wells, em seu minucioso estudo das oscilações ideológicas
dentro da Unesco, notou que, naquela época, na ONU, “as decisões a
Ciência, Política e Relações Internacionais

respeito dos grupos que representavam legitimamente certos Estados,


ou mesmo a respeito das fronteiras de um Estado, também foram por
longo periodo uma prerrogativa das grandes potências, em especial dos
Estados ocidentais lideres” (Wells, 1987: 11). René Maheu, diretor geral
por ocasião do 25º aniversário da Unesco, também não fez rodeios ao
observar, em retrospecto, que “quaisquer que fossem as teorias ou as
intenções, a Unesco não deixou de ser, por dez anos, uma organização essen-
cialmente ocidental” (Unesco, 1972: 293).
No Ocidente, o próprio sistema da ONU tem sido interpretado como
a aplicação de doutrinas liberais-democráticas a instituições globais de
cooperação internacional. Dessa perspectiva, a Unesco também foi um
passo da história do liberalismo e da democracia (Laves & Thomson,
1957). Assim, oficialmente predominaram um liberalismo pragmático e
sua concomitante imagem da ciência na sociedade. Dentro da organi-
zação, no entanto, especialmente no setor de ciências naturais, parece
ter prevalecido uma perspectiva mais radical, promovida pelos diretores
do setor de ciências, com tendências socialistas: primeiro, Joseph
Needham; depois, Pierre Auger, seguido em 1959 por Victor Kovda.
Julian Huxley, nos anos em que foi diretor geral, assumiu o papel de
mediador entre as forças liberais pragmáticas e as forças esquerdistas
em embate no campo da política cientifica do pós-guerra. Foi precisamente
essa a razão de ter sido denunciado tanto pelos belicistas da Guerra Fria,
que aglutinavam forças na direita, quanto pelos comunistas, cujas posi-
ções se tornaram mais polarizadas no outro extremo do espectro político.
Em 1945, Huxley simpatizou com a formação da Federação Mundial de
Irabalhadores da Ciência (World Federation of Scientific Workers —
que representava um tipo distinto de internacionalismo científico,
mais explicitamente militante. Seu papel como organização não-gover-
namental concebida para mobilizar as fileiras da comunidade científica
internacional era visto como um complemento importante ao caráter
intergovernamental da Unesco, que lhe restringia o escopo de ação.
Contudo, a polarização e a cisão do antigo movimento Responsabili-
dade Social da Ciência em duas alas logo se refletiram na deterioração
das relações e na animosidade mútua entre a Unesco e a Federação, o
que teve efeitos muito negativos. A situação piorou depois que Huxley e
Needham deixaram seus postos-chave. Por sua vez, Bernal se tornou
um crítico aberto da Unesco, vindo a se referir a ela como “a frente ideo-
lógica da maioria liderada pela América do Norte nas Nações Unidas”
À Unesco e a política de cooperação internacional...

(Kolasa, 1962: 132-133). Bernal pensava que a Unesco, em termos gerais,


na sua própria concepção e ideologia, estava inextricavelmente ligada à
noção da superioridade da civilização ocidental.
Hoje, a Unesco tem mais de 160 Estados-membros. Devido à sua
estrutura, a Conferência Geral, que reúne todos os membros, tem in-
fluência considerável na escolha do Conselho Executivo e na designação
do diretor geral.

A primeira década (1945-1954)


Em agosto de 1945, o lançamento das bombas atômicas dos EUA so-
bre Hiroshima e Nagasaki ajudou a mostrar a importância de se explicitar
o papel dos cientistas, da colaboração científica e do intercâmbio de co-
nhecimento cientifico na era do pós-guerra. Isso ficou bem expresso nas
observações feitas pela ministra britânica da Educação, Ellen Wilkinson,
nos ultimos dias das negociações para a fundação da Unesco:

Nos dias que correm, quando todos nos indagamos, talvez de forma
apreensiva, sobre o que os cientistas nos farão a seguir, é importante
que eles estejam ligados intimamente com as ciências humanas e sin-
tam que têm perante a humanidade a responsabilidade quanto aos resul-
tados de seu trabalho. (apud Sewell, 1975: 78-79)

Como já indicado, os franceses queriam perpetuar o Instituto Inter-


nacionat para a Cooperação Intelectual (IICN. O termo “intelectual” era,
portanto, importante para eles, assim como o desejo de levar adiante o
trabalho educacional, científico e cultural com independência em relação
ao poder politico. Argumentavam que uma organização que priorizasse
a representação de governos poderia ter o funcionamento impedido pela
emergência de blocos que dificultassem ainda mais a cooperação mútua e
o entendimento implicados nos ideais a serem perseguidos.
Us defensores de um modelo mais puramente intergovernamental
argumentavam que, ao contrário, uma vez que o poder legal e econômico
pertence aos governos, uma organização gerida por indivíduos sem real
inserção política seria impotente. Uma organização desse tipo nunca iria
além do estágio da filosofia e da idealização, fato mais do que suficiente-
mente conhecido no periodo entre as guerras (M'Bow, 1986).
Numa reunião posterior, com caráter bem diferente, realizada em
fevereiro de 1946, com a finalidade de dissolver a Liga das Nações, o
Ciência, Política e Relações Internacionais

delegado francês George Scelle se opôs a visões similares, argumen-


tando que na verdade o IICI havia sido “prático, embora nunca tivesse
descido dos níveis mais elevados do pensamento humano”; mas agora,
admitia ele, as circunstâncias de fato eram outras e os intelectuais pre-
cisavam ser “instados a descer um pouco das elevadíssimas alturas”
(apud Kolasa, 1962: 129).
Nas negociações de fundação, a decisão majoritária foi que os mem-
bros da Conferência Geral da Unesco seriam Estados nacionais, e não
organizações transnacionais. Assim, a proposta francesa foi rejeitada —
seu contre-projet propunha que a maioria dos representantes viesse da
comunidade intelectual. Não obstante, fez-se uma concessão no tocante
a composição do Comitê Executivo, incumbido de dirigir os negócios
da Unesco entre as reuniões da Conferência Geral (CG) (Kolasa, 1962).
Eleito pela CG, cuja composição deveria ser política, o Comitê Execu-
tivo poderia ter membros individuais, escolhidos tanto quanto possível
dentre personalidades destacadas e especialistas altamente qualificados
nas areas das artes, da literatura, da ciência, da educação e da disse-
minação do conhecimento. Essa fórmula durou apenas cinco anos. Foi
questionada já na CG de 1947, na Cidade do México, e mais tarde foi
modificada — apesar da forte oposição francesa, belga e uruguaia — para
que o Comitê Executivo também representasse governos.
Em outras palavras, durante primeiros os anos a Unesco foi uma orga-
nização hibrida, com um princípio universalista, interpretado em termos
nãao-governamentais, enxertado numa estrutura intergovernamental. O
argumento contra as atividades não-governamentais como veículo pri-
mário para o avanço do internacionalismo dentro da estrutura da Unesco
foi o de que, em diversas ocasiões, na tentativa de se adotar tal modelo de
funcionamento, deixaram-se escapar oportunidades decisivas de ancorar
certas políticas nos níveis mais elevados dos governos (Maheu, 1966).
Quando a União Soviética entrou na Unesco, seguida por outros Estados
do bloco Oriental, a natureza intergovernamental da interação foi refor-
çada e fechou-se o espaço antes existente dentro da Unesco para a ação
não-governamental. Paralelamente, a interação transnacional com arenas
cientificas não-governamentais externas, como por exemplo o Conselho
internacional de Associações Científicas (International Council for
ocientific Unions — ICSU), tornou-se ainda mais importante para a Unesco.
A concepção francesa quanto à Unesco se distinguia também em
outros pontos. Havia uma proposta de se criarem padrões para o com-
A Unesco e a política de cooperação internacional...

portamento Eos membros participantes da nova organização, outra para


enfatizar Os direitos dos intelectuais e uma terceira para definir clara-
mente e desenvolver laços de colaboração bem estreitos com a ONU. Feta
ultima implicava fazer da Unesco um Conselho Educacional da ONU
uma especie de corpo de conselheiros de alto nível, embora as diretrizes
políticas viessem diretamente da Assembléia Geral da ONU. Os franceses
visavam ainda a uma base de recrutamento “mais democrática” e mais
ampla na formação das Comissões Nacionais de cada país, exigindo que
estas baseassem suas atividades na opinião pública e na pensée quotidienne
essas propostas foram derrotadas ao longo das negociações
em torno da fundação da Unesco. Algumas delas decorriam de valores
e aos olhos dos representantes de muitos outros países pre-
sentes, tinham sabor de intervencionismo, o que era inaceitável para
eles. Depois de todas essas derrotas, no ato final, Léon Blum, um socialisto
mas também forte defensor da França, aproveitou à oportuni
dade para discorrer sobre as grandes vantagens de se ter Paris como sede
da nova organização. O seu fervor nacionalista, no entamio. usava a Fou.
pagem retórica do que lhe era diametralmente oposto: o internaciona-
EO universalismo. Em suas palavras, “a cultura francesa foi Sempre
marcada por uma tendência à universalidade” (apud Sewell, 1975: 77),
O Bstaúuio da Unesco lhe conferiu a qualificação de Agência Especia-
lizada dentro da família de organizações das Nações Unidas, “dando.
lhe autonomia em seu próprio campo de iniciativas. Sua tarefa oficial era
a base moral e espiritual para alcançar a paz e sustentar os princi
pros democráticos da dignidade, da igualdade e do respeito en-
tre Os homens. Essa orientação se baseava nas idéias militantes contidas
Ro do estatuto, frequentemente citado: “Já que as omerras
começam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que a defesa
da paz deve ser construída”. Essas elevadas palavras refletem claramente
à dução extraída do período entre as guerras mundiais e da experiência
do ICIC — a neutralidade significava passividade.
longo da guerra, foram as ditaduras nazista e fascista que
conquistaram as mentes dos homens. Agora, findo o conflito, era hora
de uma Testauração espiritual, uma revolução cultural capaz de regenerar
eo tais Importante ainda — aplicar as idéias de liberdade, paz e frater-
nidade. O espírito e as ações do internacionalismo deveriam se contrapor
à força destrutiva do nacionalismo exagerado que predominara por mais
de uma década. Afirma-se que:
Ciência, Política e Relações Internacionais

uma paz baseada exclusivamente nos arranjos políticos e econômicos dos


não seria capaz de assegurar o apoio unânime, duradouro e sin-
cero dos povos do mundo, e que, portanto, a paz, para não fracassar, deve
ser baseada na solidariedade intelectual e moral da humanidade. (Laves
& Ihomson, 195/: x1x)

isso significa que “oportunidades integrais e iguais para todos”, “a


busca irrestrita da verdade objetiva” e “o livre intercâmbio de idéias e
conhecimentos” são três pilares fundamentais dessa solidariedade
(Kolasa, 1962: 1/5). A referência à busca da verdade objetiva reflete a
epistemologia dominante da epoca, dando uma forte base estatutária ao
racionalismo e evolucionismo científicos que emergiram como a “ideo-
logia da Unesco”.
A construção hibrida da Unesco deu margem considerável para ini-
ciativas tomadas a partir da visão francesa, com sua ênfase em elites não-
políticas. Julian Huxley, por ser um britânico algo inconformista, não
lhes fez objeções; na verdade, isso condizia com as suas prioridades na
promoção da paz relativa ao intelecto e à consciência, “ou o que po-
deria ser chamado de desarmamento mental e moral” (Wells, 1987: 45).
Ele procurou, com ardor, estabelecer a Unesco como uma consciência
mundial, o ápice das conquistas culturais da humanidade, num sentido
wellistano.

O papel da ética e as advertências quanto aos perigos implícitos do


“conhecimento destituído de moralidade” foram amplamente discutidos
durante a primeira Conferência Geral. Afirmava-se que a disseminação
e o intercâmbio de conhecimentos não deveriam ser promovidos em seu
próprio nome, mas a serviço da causa da paz e da segurança mundiais.
Para as nações ocidentais, isso significava uma reafirmação da “sociedade
aberta”, com “livre fluxo das idéias, na forma de palavras e imagens”.
O problema é que esses termos podem estar carregados de significa-
dos diferentes, quer instrumentalistas, quer essencialistas. A visão instru-
mentalista do “livre fluxo” faz da atividade em si uma virtude, como
por direito próprio. Não deve existir qualquer barreira — a informação
deve fluir livremente através das fronteiras. Segundo a posição essen-
cialista, não é a forma que conta, mas o conteúdo das idéias e a sua
ligação com o objetivo supremo da paz. Aqueles que transmitem as idéias
têm uma responsabilidade moral pelos conteúdos, assim, é preciso haver
algum controle para que se excluam idéias que possam reavivar as
À Unesco e a política de cooperação internacional...

chamas do nacionalismo ou encorajar as formas mais grosseiras de


egoismo, agressão e discriminação. Essas idéias, frequentemente vistas
na propaganda, são indesejáveis, ao passo que aquelas que se opõem às
deformações dos piores excessos do livre mercado são desejáveis. A res-
ponsabilidade pelo conteúdo pode, assim, ser usada como argumento justi-
ficador da necessidade de regulamentação da informação, com base em
critérios políticos e ideológicos democráticos de um tipo mais profundo.
Com a ascensão — em termos numéricos e de influência — dos países
do ferceiro Mundo, na década de 1970, essa interpretação foi revitalizada
e ganhou um novo conteúdo. Isso se deu especialmente em ligação com
o delineamento de uma nova ordem mundial da informação, que refletia
os interesses dos países do Terceiro Mundo na Unesco, e pode ser posto
em contraste com a situação em 1947, quando os delegados dos EUA
queriam usar a Unesco como uma plataforma, ao estilo da pretensamente
neutra rede radiofônica Voz da América, dirigida à União Soviética e à
turopa Oriental.
Evidentemente, a escolha entre as duas noções do “livre fluxo das
idéias” é em si mesma ideológica. Os apóstolos do mercado livre, dese-
jando vender seus valores individualistas, se opuseram a quaisquer fil-
tros e assumiram o ponto de vista instrumentalista, enquanto os socia-
listas, que davam prioridade aos bens coletivos e à solidariedade, se in-
cinavam a ver a questão de forma essencialista. De sua parte, Huxley
enfatizava a responsabilidade social, adaptando às condições do pós-
guerra o discurso da década de 1930 sobre ciência e sociedade. Naquele
momento, esse ponto de vista se tornara minoritário, imprensado entre
os defensores da doutrina Truman de contenção, de um lado, e a doutrina
otalin-Zhdanov dos dois campos (socialismo versus capitalismo) e das
duas visões de mundo, de outro. Com o adensamento da Guerra Fria, a
visão essencialista do “livre fluxo de idéias” foi gradualmente ofuscada
pela Interpretação instrumentalista mais técnica. No universo da cultura,
esta ultima era a contrapartida ideológica do princípio econômico do
inissez-faire.
Ão mesmo tempo, uma pesada cortina de segredo foi baixada
em torno de informações consideradas de importância estratégica para
a segurança; por exemplo, os “segredos nucleares” não deveriam fluir
livremente. O debate sobre os usos da energia nuclear no pós-guerra
ocorriam no âmbito do Conselho de Segurança da ONU e da Agência
Internacional de Energia Atômica (United Nations Atomic Energy
Ciência, Política e Relações Internacionais

Commission — UNAEC), de curta duração. Restava à Unesco a tarefa


de lidar com assuntos menos controvertidos: pelo lado ocidental, a Cor-
tina Nuclear tinha sido puxada vigorosamente, seguindo os mesmos li-
mites topográficos que a Cortina de Ferro da Europa Oriental.

A filosofia de um cidadão do mundo

OQ ctentificismo da concepção de Huxley para a Unesco merece exa-


me mais detalhado. Num ensaio filosófico de 1946 que se tornou um
clássico, ele delineou a sua visão radical, retratando a Unesco como a
mais avançada expressão da evolução psicossocial da humanidade. Mais
especificamente, defendia o controle populacional, a eugenia, o controle
da natalidade e amplos projetos de engenharia social, com cientistas
ocupando o papel de especialistas de competência global. Conseguiu
exasperar tanto os paises católicos quanto os políticos conservadores.
ouas propostas se revelaram demasiadamente radicais e, assim, esse
ensaio, que Huxley havia concebido como um documento oficial da
Unesco, acabou sendo publicado apenas em seu próprio nome.
A filosofia de Huxley incluia uma atitude pretensiosamente merito-
crática, que lembrava a idéia liberal pragmática de que as nações das
metrópoles cientificas carregavam o “fardo da civilização” * Do ponto
de vista de Huxley, a Unesco deveria empenhar-se para elevar o nível
cultural das raças e países “atrasados”. A instituição

deve estimular todos os estudos e todos os métodos utilizáveis para


assegurar aos homens os empregos certos e afastá-los dos empregos
errados (...) assegurando ao mesmo tempo que a sociedade não seja
sobrecarregada por pessoas que ocupam posições para as quais não
são adequadas ou, O que é pior, das quais tenderão a abusar.

Além do mais,

mesmo que seja bem evidente que qualquer política eugênica radical
sera nos próximos anos política e psicologicamente impossível, é impor-
tante que a Unesco faça com que a questão eugênica seja examinada
com o máximo de cuidado, e que a mentalidade pública seja informada
sobre o que está em questão, de forma que muito daquilo que é atual-
mente impensável possa ao menos se tornar pensável. (Huxley, 1946: 21)
A Unesco e a política de cooperação internacional...

Evidentemente, depois da guerra, na medida em que a higiene racial


foi objeto de descrédito moral e político, a genética humana se iniciou
«como uma alternativa científica profissionalizada e despolitizada
(Weingart, 1989: 262).
Na sua posição de embaixador global, Huxley acreditava que a Unesco
conseguiria transcender as contradições embutidas no “modo de vida
norte-americano versus russo; ou capitalismo versus comunismo; ou cristia-
versus marxismo: ou em meia dúzia de outras formas”, como “indi-
vidualismo versus coletivismo”. Huxley pensava que a Unesco poderia
fazer o trabalho de base para uma síntese evolutiva de nível mais alto e
esperava que a organização constituísse um passo na direção de um
governo mundial, no qual ela seria uma espécie de “cérebro do mundo”,
conforme Wells a designou (Sewell, 1975: 132). Outros se referiam a Unesco
como a “consciência do mundo”. Um filósofo francês chegou a dizer que
à ONU dava um “corpo” ao internacionalismo, enquanto a Unesco lhe
supria a “alma”.
Huxley se referia à sua própria filosofia como “humanismo cientifico”.
Um nome mais apropriado seria “cientificismo evolucionista . Irata-se
de uma evolução reflexiva, ou melhor, autoconsciente. Diz ele que a evo-
lução tem três fases: a primeira das quais pode ser vista no mundo, ou
“setor”, material; a segunda no “setor” biológico, e a terceira no “setor.
psicossocial, no qual a humanidade, com a ajuda da ciência, esta fadada
a guiar conscientemente todo O processo.

Um fator especialmente importante para a avaliação, pelo homem,


de sua própria posição na estrutura cósmica e de seu destino futuro €
que ele é herdeiro — na verdade, o único herdeiro — de todo o progresso
evolutivo ocorrido até o presente. Quando ele afirma ser o tipo mais
elevado de organismo, não incorre no pecado de vaidade antro-
pocêntrica, apenas enuncia um fato biológico. Além do mais, ele não é
apenas o herdeiro único do progresso evolutivo do passado, mas o unico
depositário de qualquer progresso evolutivo que venha a ocorrer no
futuro. (Huxley, 1946: 12)

De um ponto de vista evolutivo, o destino humano pode ser resumido


de forma bem simples: “realizar o máximo de progresso num prazo
mínimo. É por isso que a filosofia da Unesco precisa ter antecedentes
evolutivos, e é por isso que o conceito de progresso não pode senão ocu-
par uma posição central naquela filosofia” (Huxley, 1946: 12).
Ciência, Política e Relações Internacionais

-omo parte desse progresso evolutivo, a Unesco deveria representar


à Avilização mais alta, que progride com os avanços do conhecimento é
com O entendimento internacional. Como tal, a Unesco também se colo.
“Ava acima das ideologias locais. O princípio evolutivo implica que o
nacionalismo deve ceder ao internacionalismo e que o conceito de muitos
soberanias nacionais deve ceder ao de uma “soberania mundial
1946; 13). Para que isso se realizasse, não bastaria disseminar
téias unificadoras e fazê-las atravessar as fronteiras nacionais: seria neces.
sêriatambémaunificaçãopolítica,“querpormeiodeumgovernomun.
aa
l !úncio,querporoutromeo
i ,comoaúnciaformadeevtiaraguera”
“Joeyadmitequeaunidadepolíticamundialéumidealremoto,que
não está na esfera de competência da Unesco. Ainda assim, esta tem muito
à fazer para lançar as bases sobre as quais tal unidade poderá mais tarde
Sida, A Unesco deveria ser um veículo para transcender os
imites do nacionalismo e promover um espírito internacionalista baseado
nas Idéias de igualdade, democracia e dignidade do ser humano
Ao mesmo tempo, Ruxley afirma que a Unesco deve apoiar programas
o de ajudar = fazer com que o poder não caia nas mãos daqueles
De não devem possuí-lo — os que amam o poder pelo poder, os megalo:
maniacos,Oscareirstasexcessivamenteambiciosos,ossádicos,osapós:
Dos sensíveis e grosseiros do sucesso a qualquer preço” (Huxley, 1946
o. Essas palavras não foram bem recebidas, nem “Pelos A
“e nem por outros políticos de alto escalão. O mesmo pode
di respeito dos planos de Huxley de dar Poder ãos pa
atraves ae sua própria organização autônoma, munida deum mandato
para avaliar e monitorar Os políticos de todo o planeta (Sewell, 1975),
Na construção da organização, Huxley agiu ignorando os a

dente,edandoorigema“legiõesdeONGsparaajudarasuaorganização
Sooptando indivíduos resolutos e de pensamento indepen.

à avançar numa frente ampla” (Sewell, 1975; 109). Os seus conceitos


remetem É idéia do sociólogo Mannheim, de uma “imtelligentsia
flutuante”. Nesse sentido, Huxley afirma que

o Ein Or método de assegurar qualquer progresso imediato nessa dire-


ção ea Unesco corajosamente delegar uma parcela importante do seu
Tabalho a indivíduos particulares, escolhidos não como representantes
oficiais de governos, mas como líderes da civilização - destacados artistas
csenitores É cientistas, fortemente comprometidos não com asações mas
com departamentos da mente humana. (apud Sathyamurthy, 1964: 99)
A Unesco e a política de cooperação internacional...

Indo contra as concepções mais extravagantes de Huxley, o segundo


diretor geral, o diplomata e idealista mexicano Torres Bodet, contrapôs
uma concepção mais pragmática, empenhando-se em fortalecer o caráter
intergovernamental da Unesco. O mandato de Bodet durou até 1952.
oua ênfase recaiu sobre “a máquina do Estado” como uma ponte entre o
homem individual e a humanidade como um todo. Ele sustentava que
isso não colidia com o princípio da soberania nacional, já que a unidade
intelectual e a solidariedade moral não poderiam ser alcançadas por uma
elite que trabalhasse acima das nações. Elas exigiam a vontade e a coo-
peração dos povos e dos governos (Sathyamurthy, 1964). Mesmo tendo
menos interesse na ciência, Torres Bodet trabalhou no sentido de con-
centrar as energias da Unesco segundo três diretrizes: 1) a organização
da cooperação intelectual entre especialistas; 2) o aproveitamento de toda
e qualquer oportunidade oferecida pela ciência e pelo conhecimento para
permitir que todos os seres humanos contribuam para o progresso da
humanidade e para o compartilhamento dos seus benefícios; e 3) as
contribuições dos vários ramos da atividade intelectual para o entendi-
mento internacional.

Ciência: do centro para a periferia


A ciência na Unesco ficou inicialmente sob a direção de Joseph
Needham. Seguindo uma sugestão sua, fez-se imediatamente um acor-
do com o ICSU, criando-se os meios para que a nova organização rapida-
mente deitasse raizes numa comunidade científica mundial cujos vínculos
anteriores tinham sido rompidos durante a guerra. Em retribuição, o
ICSU recebeu apoio material e, evidentemente, acesso a assuntos inter-
governamentais. As relações entre a Unesco e o ICSU se tornaram terri-
tório de mediação entre as preocupações governamentais e os interesses
dos cientistas, o maior dos quais era preservar a própria independência
e ganhar reconhecimento universal para os seus direitos especiais como
profissionais.” Elas foram também a base da principal estratégia da
Unesco para estimular pesquisas em áreas de alta prioridade, nas quais
a ação governamental poderia ser essencial, como, por exemplo, em
hidrologia, biologia marinha, oceanografia, ensino da ciência, levanta-
mentos de dados em caráter multinacional e, mais tarde, a extensão de
serviços de ciência e tecnologia aos países em desenvolvimento.
Estudou-se a possibilidade de criar laboratórios especiais da ONU,
mas a manutenção de instalações próprias e modernas custaria caro e,
Ciência, Política e Relações Internacionais

mesmo que isso ocorresse, havia o risco de repetir esforços já desenvol-


vidos alhures. A Unesco logo decidiu dar ênfase à contratação externa
de tarefas, trabalhando com as estruturas existentes na comunidade cien-
tífica mundial e ajudando a criar novas estruturas em âmbito não-
sovernamental.
Para prover assistência aos países em desenvolvimento, recorreu-se a
uma inovação social do período da guerra: a formação de redes de coope-
ração. As grandes potências aliadas haviam conduzido intercâmbios atra-
vês de agências e missões científicas, para estimular a pesquisa militar e
ajudar a transcender as estruturas disciplinares clássicas que haviam domi-
nado o intercâmbio internacional no passado. Dentro da Unesco, isso se
tornou a base para escritórios regionais de Ciência e Tecnologia que ain-
da estão em funcionamento no Cairo (criado em 1947), em Nova Déli
(1946), Montevidéu (1949), Jacarta (1951) e Nairobi (1965) (Behrman, 1979).
No inicio, eles foram chamados de Escritórios de Cooperação Cientí-
fica e tinham a função de integrar instituições nacionais em redes regio-
nais, de modo que a Unesco pudesse manter-se em contato próximo
com universidades, organizações científicas locais, órgãos gover-
namentais e cientistas individuais. O nome dado a esses escritórios indi-
ca bem sua origem imediata nas idéias de Needham, que trouxe para a
Unesco a experiência, adquirida durante a guerra, de montar unidades
de serviço de extensão científica na Ásia, no período em que exercera na
China a função de diretor do Escritório Sino-Britânico de Cooperação
Cientifica. Já em 1943, coerentemente com o seu ideal, influenciado pelo
marxismo, de uma ciência socialmente responsável, Needham havia
proposto um Serviço Mundial de Cooperação Científica. Agora a ciên-
cia seria convocada para a luta contra a ignorância, a pobreza e a doença
no pós-guerra. Ela deveria assumir imediatamente uma função de escla-
recimento e de promoção do bem-estar.
Quando a subcomissão da Unesco para a ciência se reuniu pela pri-
meira vez, Needham se disse muito feliz por presenciar o encontro de
pessoas que nunca, na história da ciência, haviam se reunido. Referindo-
se à sua própria experiência na China durante a guerra, falou do efeito
entorpecedor e mesmo desmoralizador produzido pelo isolamento no qual
alguns cientistas são forçados a viver. “Os locais remotos carecem da aju-
da que normalmente poderia ser dada aos cientistas. Em certos países
há barreiras de casta, tradição ou de costumes entre os diferentes ramos
da ciência”. Needham chamou atenção também para o fato de que “em
À Unesco e a política de cooperação internacional...

regiões remotas, os cientistas, por serem em número reduzido, não têm


estimulo para desenvolver discussões com pares”, e comentou os efeitos
negativos da “falta de compreensão por parte dos encarregados locais”.
Ele distinguia uma zona iluminada ou “clara” do mundo, concentrada
nos paises metropolitanos, e alegava que era dever dos cientistas dessa
zona ajudar seus colegas das zonas “escuras” na luta contra o isolamento,
em favor da distribuição mais equitativa dos recursos naturais e dos
bens manufaturados, assim como de produtos médicos, numa escala
mundial (Unesco, 1946: 4-5):
Um delegado brasileiro, Miguel Ozório de Almeida, lançou mão da
metafora e, aproveitando a noção de Needham sobre a natureza ecumê-
nica da ciência, afirmou: “No mundo contemporâneo (...) a principal
função da Unesco é ampliar as “zonas claras” e iluminar as 'zonas escuras”,
acrescentando que havia nisso um importante problema histórico.
Alguns países que em épocas anteriores tiveram cientistas excelentes
acabaram regredindo para a “zona escura”. Por que isso ocorreu? Para
responder a essa pergunta, a Unesco deveria apoiar o estudo da história
da ciência, incluindo aspectos como o papel do nacionalismo. “Essas
questões sao um tanto delicadas, mas devemos levá-las em conta. Uma
especie de “imperialismo científico” é praticado por países que acredi-
tam apenas no que é feito dentro de suas próprias fronteiras, e que por
vezes desprezam o trabalho desenvolvido alhures” (Unesco, 1946: 11).
Num memorando que circulou em diversas versões a partir do verão
de 1944, Needham delineou sua própria crítica ao que chamava de teo-
ria laissez-faire das relações internacionais no campo da ciência. De acor-
do com essa teoria, deveria permitir-se que os contatos se desenvolvessem
espontaneamente e, no âmbito da ciência, direcionados por esta e sem
intervenção externa. Não haveria objeções quanto a isso se todos den-
tro do campo científico se conhecessem, mas, observava Needham, esse
já não era o caso. Um cientista polonês que deseje saber algo acerca da
frequência de ocorrência de um gene entre, digamos, os chineses ou a
população indígena do Peru, quase certamente não terá amigos na Chi-
na ou no Peru com quem possa entrar em contato por correio. Em casos
como esse, a Unesco poderia preencher uma função importante, na qua-
lidade de plataforma ou de uma espécie de câmara de compensação para
intercâmbios transnacionais. Da maior importância, portanto, era aquilo
que Needham chamava de “princípio da periferia”: o de ampliar as zo-
nas claras da ciência, das metrópoles para os países periféricos. Esse

1097
Ciência, Política e Relações Internacionais

principio deveria ser complementado pelo da interferência mínima ou


não-interferência (autonomia) nas próprias zonas claras.

O erro fundamental daqueles que acreditam no laissez-faire (...) é


olharem o quadro geral de um ponto de vista exclusivamente euro-
americano, ou seja, pensam em transitar entre Paris, Bruxelas, Lon-
dres, Nova York, Washington, Montreal e assim por diante. Não se dão
conta de que o retrato do mundo da ciência parece bem diferente quando
visto a partir da Romênia, Peru, Java, Sião ou China. Por razões histó-
ricas, dado que a ciência cresceu na Europa Ocidental, existe uma “zona
clara” que cobre a Europa Ocidental e a América do Norte, na qual
todas as ciências estão muito desenvolvidas e a industrialização está
muito avançada. São precisamente os cientistas e tecnólogos daquelas
regiões muito mais amplas, que existem para além da “zona clara”, os
que necessitam do apoio da ciência internacional. (Needham, 1945: 3)

A teoria do laissez-faire tendia também a reforçar as redes tradicio-


nais da ciência. Num comentário sobre o memorando de Needham —-
que, juntamente com o memorando de Cannon-Field sobre o ICSU,
escrito em Harvard, parece ter sido amplamente discutido em certos
circulos de cientistas destacados —, Richard Field nota que o principal
valor do relatório não residia tanto no seu modelo para a incorporação
da ciência pela Unesco, e sim no seu ethos. O problema real, como sempre,
não residia nas formas ou diretrizes organizacionais, mas na “tendên-
cia, bem natural, de respeitar um homem por seu prestígio, ao invés de
escolhê-lo por ser a pessoa na qual se confiaria numa crise como a atual”.
Assim, afirma Field, “exceto nos memorandos de Needham e no nosso,
creio perceber, em geral, uma expressão excessiva da importância que os
cientistas se atribuem, em vez de uma discussão fria de suas responsabi-
lidades quanto às mazelas da civilização”.
Em seu memorando, Needham reconhecia a importância de ONGs
cientificas como o ICSU, mas constatava que, durante a guerra, essas
agências internacionais tinham caído num “estado de latência”. Em
contraste, antes da guerra elas tinham sido prejudicadas pela falta de
recursos suficientes e de serviços adequados de secretaria. No entanto, a
guerra fez o que a paz não conseguira: estimulou o surgimento de escri-
tórios de intercâmbio científico e técnico nas principais capitais, orga-
nizações “em geral administradas de forma muito mais eficiente do que
tudo que existia na ciência internacional durante os anos de paz”
A Unesco e a política de cooperação internacional...

(Needham, 1945: 1). Com a exceção da Missão Científica Britânica em


Chungking, organizada pelo próprio Needham, esses escritórios lidavam
principalmente com a ciência nas suas relações com os esforços de guerra.

Esses escritórios de cooperação diferem da cooperação científica


internacional existente antes da guerra principalmente porque têm re-
cursos financeiros, secretarias e equipamentos adequados; além disso,
não estão confinados a uma única ciência, mas têm carta branca para
fazer tudo o que for preciso para apoiar uma cooperação científica
melhor entre os países por eles conectados. São, portanto, uma linha
inteiramente nova de atuação, que aponta o caminho do futuro (...) o
que precisamos hoje é, fundamentalmente, tentar combinar os méto-
dos que a ciência construiu espontaneamente para si mesma em tem-
pos da paz com aqueles que as nações tiveram de desenvolver sob as
tensões da guerra. (Needham, 1945: 1)

Não foi a ciência autônoma, mas sim a ciência a serviço de demandas


sociais (particularmente a guerra) que gerou novos arranjos institucionais
Importantes para a ciência e a sociedade.
Na Conferência Boyle, proferida em Oxford, em 1948, Needham afir-
mou que era auspicioso o fato de que, por meio da Unesco, a ciência
estivesse ligada a cultura e à educação.

No entanto, houve na ocasião quem pensasse que seria muito melhor


que a ONU tivesse uma agência especializada puramente em ciência
e tecnologia; se isso tivesse ocorrido, os acontecimentos que se segui-
ram teriam sido muito distintos. Os laços com assuntos educacionais e
culturais teriam sido mais tênues, e talvez se formassem laços mais
fortes com a indústria, o que, sem dúvida, teria trazido outras vantagens
e desvantagens. De toda forma, o curso dos acontecimentos não permitiu
que essa fosse uma proposição viável. (Needham, 1948: 21)

Uma das principais preocupações na época era o desenvolvimento


e uso bélico da bomba atômica. Esse terreno, nas palavras de Esther
brunauer, num estudo do Departamento de Estado dos EUA sobre o
ICSU, em 1945, “atraiu atenção para os aspectos internacionais da pesquisa
científica de base e provocou ampla discussão sobre o controle da apli-
cação do conhecimento cientifico de maneira a que ela sirva ao bem-
estar geral e a evitar desastres para a humanidade” (Brunauer, 1945: 12).
Ciência, Política e Relações Internacionais

A bomba atômica acentuou o interesse pela colaboração científica in-


ternacional. Foi nessa frente que se tornou mais evidente a tensão entre
os interesses proprios da ciência e os esforços governamentais de evitar
e controlar o livre intercâmbio de idéias e a contradição entre as agen-
das do internacionalismo e dos diversos nacionalismos.

Assim, a contradição congênita à Unesco entre elitismo e ação mais


ampla de caráter popular manifestou-se de diversas maneiras, não raro
envolvida por complexos fatores geopolíticos. No que diz respeito ao
principio da periferia, formulado por Needham, os norte-americanos
começaram, com o correr do tempo, a enfatizar a ajuda econômica aos
países subdesenvolvidos, temendo que, na ausência dela, a URSS lograsse
maior influência sobre eles. Por seu lado, os europeus tendiam mais a
fomentar a cooperação intelectual e sentiam que uma ênfase excessiva
na ajuda ao desenvolvimento do antigo mundo colonial significava me-
nos recursos disponiveis para as suas próprias prioridades. Além do mais,
a cooperação intelectual era uma atividade não partidária, enquanto a
ajuda aos Estados-membros era de caráter político.
Um debate sobre subsídios para ONGs científicas revelou outras di-
ferenças de opinião. Alguns pensavam que a cessão de recursos do or-
çamento geral para o ICSU e suas organizações não se encaixava no obje-
tivo da Unesco de trabalhar pela paz. Os cientistas não fariam mais do
que empregar os recursos para promover, de modo auto-referido, seus
interesses científicos, ignorando a dimensão extracientífica. Outros argu-
mentavam que o apoio dado à ciência natural pela Unesco era uma for-
ma indireta de apoiar a causa da paz, pois a ciência é internacional e a
cooperação intelectual em si mesma contribui para o entendimento inter-
nacional. Alem disso, muitos cientistas ocupam posições de liderança
em seus próprios países e isso poderia exercer influência salutar sobre
as politicas externas, no sentido de trazê-las para a causa da paz (Laves
& Ihomson, 1957).
Needham não compartilhava do otimismo de Huxley quanto às vir-
tudes do cientificismo e afirmara, na década de 1930, que esse era o “ópio
cla ciência” (Werskey, 1978: 203). Cético em relação ao elitismo em todas
as suas formas, Needham com certeza queria evitar o que chamava de
“mandarinismo” do antigo IICI, porque os objetivos dessa organização
eram “demasiado vagos, acadêmicos e contemplativos” (apud Sewell,
1975: 94). Needham destoava entre os esquerdistas por ser ao mesmo
tempo cristao e marxista ardoroso. Sua visão era a de uma rede voltada
A Unesco e a política de cooperação internacional...

para a ação, reunindo “cientistas missionários sem vínculos” (Sewell,


1975: 78). Dentro da Unesco, teve oportunidade de tentar traduzir em
realidade essa visão, de utilizar a presença ativa da organização em dife-
rentes partes do mundo para ampliar o escopo — em termos práticos — do
princípio universalista que supostamente formava o cerne do interna-
cionaiismo científico.

Em princípio, pode-se conceber um internacionalismo científico ba-


Seado na livre partilha de recursos e instalações. Um exemplo disso seria
uma instalação internacional de pesquisa sob a bandeira da ONU ou do
IC5U, em que cientistas de países pobres e ricos pudessem colaborar,
independente da parcela de participação de seus respectivos países no
investimento e nos gastos de manutenção. Essa idéia se materializou,
por exemplo, na montagem de estações de pesquisa autenticamente inter-
nacionais na Antártida, capazes de dar às nações desfavorecidas acesso
a um objeto de pesquisa que é singular e que em condições normais
estaria fora do seu alcance. Idéias assim, no entanto, ao serem propostas,
são muitas vezes motivadas pelos interesses dos países que as defendem,
no sentido de conseguir alguma forma de compartilhamento de custos.
Em contrapartida, existem obviamente muitas dificuldades práticas
devido a diferenças de organização política, barreiras linguísticas e tam-
bem a tradições culturais e intelectuais, e elas são usadas como argu-
mento contra a eficácia de tais arranjos. Recentemente, isso ficou bem
evidente na Antártida, onde o regime político é organizado com base num
tratado intergovernamental e oferece precondições únicas; mas mesmo aí
a colaboração se limita a arranjos bi e multilaterais, o que em alguns casos
se limita à logistica (Elzinga, 1993b). Em princípio, trata-se apenas de uma
repetição do que aconteceu quando a Unesco pretendeu catalisar uma
ampla colaboração intergovernamental na esfera da energia nuclear.
imediatamente depois da guerra, cientistas europeus se irritaram ao
serem excluidos das instalações e das descobertas científicas, em virtude
do véu de segredo militar e comercial que cercou grande parte da ciência
naquele periodo. Alguns haviam contribuído anteriormente para as li-
nhas de pesquisa que agora se fechavam a eles por causa de suas afiliações
politicas. Para enfrentar isso, o matemático britânico Levy Hyman, um
bernalista, sugeriu uma rede de instituições internacionais de pesquisa
localizadas em muitos países e abertas a pesquisadores de todas as nacio-
n a l i d a d e s . H e n r i L a u g i e r, o u t r o e s q u e r d i s t a f r a n c ê s , a n t i g o d i r e t o r d o
Centro Nacional de Pesquisa Científica (Centre National de la Recherche
Ciência, Política e Relações Internacionais

>cientifique — CNRS), que durante a guerra estivera no exílio em Mon.


treal (Canadá), propôs que tais laboratórios ostentassem a bandeira da
ONU. Needham e outros cientistas da Unesco apoiaram essa idéia no
imite do que os apoios políticos e financeiros permitiram. Quando a
idéia veio novamente à tona, em 1949, Pierre Auger lançou mão dela e
conseguiu ao menos inseri-la num processo decisório na arena européia,
onde se tornou um projeto europeu. A Organização Européia de Pesquisa
Nice (European Organization for Nuclear Research — CERN) foi o
mais importante resultado desse processo: criada em 1952, abrangeu
quatorze nações européias (Sewell, 1975).
A proposta de montar instituições internacionais de pesquisa sob os
auspícios da ONU retorna de quando em vez, mas sua concretização
ampla, no sentido proposto por Hyman e Laugier, nunca foi alcançada.
das iniciativas mais originais na fronte de montagem de instituições
e que mais se aproximou daquele ideal foi a criação do Centro Interna.
dlonal de Física Teórica (International Centre for Theoretical Physics),
a t u a l m e n t e s e d i a d o e m M i r a m a r e , p e r t o d e Tr i e s t e , j u n t o ã o M a r
Essa instituição resultou de uma cooperação entre o governo
italiano, a Agência Internacional de Energia Atômica (International
Atomic Energy Agency - IAEA) e a Unesco. Tendo por fundador e diretor
Abas Salam, o centro contava, em 1978, com um quadro de aproxie
madamente cem cientistas, recebendo cerca de 1.300 pesquisadores visi.
por ano, provenientes de 93 nações, oitenta deles de países em
desenvolvimento (Behrman, 1979). Ele tem ajudado cientistas do Terceiro
Miuimeo a manter contato com uma importante frente de pesquisa e
deteve um pouco a evasão de cérebros. Outra tática tem sido a de fazer
com que instituições de um dado país assumam uma função de liderança
internacional, como no caso do Museu Internacional de Solos, na Holanda
patrocinado pela Food and Agricultural Organization — FAQ — e pela
Unesco). Nesses casos, o envolvimento do governo do país-sede tem
sido um importante fator de sucesso

em 1948, Needham foi sucedido por Pierre Auger, físico francês de


tendências esquerdistas que saiu do Comitê Executivo para a Secretaria.
Vivera em Montreal durante a guerra, trabalhando com os canadenses
num dos primeiros programas de pesquisa nuclear. Como membro da
delegação francesa presente à primeira Conferência Geral da Unesco,
Apresemou uma visão a respeito da ciência em que enfatizava o infercâm-
bio de informação, a ajuda e a reconstrução no pós-guerra. A informação

1172
A Unesco e a política de cooperação internacional...

era necessária para quebrar o isolamento entre os cientistas, agravado


pela guerra. Além disso, era parte essencial da maquinaria de assesso-
ramento cientifico que estava sendo construída gradualmente pelos
governos no periodo do poôs-guerra.
Mais tarde, em 1950, Auger op0s-se ao que considerava um pessi-
mismo pernicioso evocado por pessoas como Einstein e Bohr. Segundo
Auger, ao criticarem o estudo do atomo, esses homens ajudavam a in-
suflar um movimento anticiência que permanecera latente em círculos
não-cientificos.

Por mais que eu aprecie as artes e a literatura, não posso pensar que
essas modalidades de atividade intelectual humana tenham as mes-
mas características [da ciência]; muito talento e esforço têm sido
despendidos na produção de obras que se mostraram efêmeras, ou
porque o material era perecível, como a pintura grega, ou simplesmen-
te porque os gostos ou estilos mudaram e não mais temos prazer em
contempla-las. (Auger, 1950: 9)

Na ciência, as coisas são diferentes — o esforço é cumulativo, e o pro-


egresso abunda. Auger previa que trezentos anos mais tarde o século XX
seria considerado “a era da ciência”; seria lembrado muito mais pelas
conquistas científicas do que por qualquer evento político (ou mesmo
artistico).
lai como Snow, aproximadamente à mesma época, Auger sustentou
a superioridade da ciência sobre a outra cultura, a das artes e humani-
dades (Snow, 1954; Hultberg, 1991: 177). Como Huxley, apelava para um
novo humanismo baseado na consciência da evolução, um humanismo
que fosse científico em essência.

Diante de seu próprio sucesso, diante de suas próprias máquinas


que se tornaram escravos mágicos, o homem tem medo, e o medo é um
mau conselheiro (...). Não sera agora o momento de restabelecer a har-
monia, a unidade da alma dividida desse homem? Para tanto, não deve-
riamos lançar as bases de um novo humanismo, um humanismo que
tosse total — incluindo a ciência — e que tomasse o lugar do humanismo
clássico, que também foi total na sua época? (Auger, 1952: 80)

À resposta ja estava dada. A cultura científica deveria ser aceita por


todos como um guia para o futuro.
Ciência, Política e Relações Internacionais

No fim da década de 1950, Auger foi designado para fazer um estu-


do das “tendências atuais” da pesquisa científica e esse veio a ser um
dos primeiros relatórios de previsão de pesquisas (Auger, 1961).
A clivagem entre ciência e humanidades — ou as “duas culturas” — já
tinha sido institucionalizada na Unesco, com a filosofia e as ciências
sociais colocadas sob o título de cultura, ao passo que as ciências humanas
estavam filiadas à ciência. Essa divisão, que ocorreu em 1946, foi uma
vitória para a funcionalização das ciências sociais. Huxley, ao se opor a
uma sugestao de que se esperassem alguns anos antes de institu-
cionalizar essa dicotomia, declarou o seguinte: “Para resumir, o que
estamos fazendo, por motivos puramente administrativos e práticos, e
para satisfazer as exigências da lógica administrativa, é separar a seção
de ciências sociais de uma parte da seção de filosofia humana” (Unesco,
1946: 10). Assim, forneceu uma defesa funcionalista pragmática para a
clivagem que era parte da estratégia posterior à Segunda Guerra Mundial
e que consistia em estimular as ciências naturais em função de seu va-
lor instrumental, e não por seu valor cultural.

Energia nuclear: uma tentativa fracassada de


intercâmbio equilibrado
O uso pacífico da energia atômica, conforme indicado, foi um dos
assuntos mais importantes discutidos no pós-guerra. Paralelamente à
Unesco, montou-se a Comissão das Nações Unidas para Energia Atô-
mica (United Nations Atomic Energy Comission - UNAEC), na espe-
rança de desenvolver a gestão global desse importante recurso, divi-
dindo informações e experiências para fins pacíficos e exercendo con-
troles que detivessem a proliferação do poder nuclear com fins milita-
res.º Infelizmente, a UNAEC não conseguiu cumprir sua missão e foi
declarada extinta em 1949.

Pouco tempo depois, realizaram-se debates sobre colaboração em


assuntos nucleares com fins pacíficos e sobre pesquisa sob auspícios da
Unesco. Isso foi visto pelos ingleses como manobra francesa para, atra-
vês da afirmação de uma identidade européia, ampliarem a esfera de
influência em assuntos nucleares. A seguinte declaração de um físico
inglês ilustra a suspeita inglesa quanto às motivações francesas nessas
questões: “Pelo que posso ver, todo esse plano [do CERN] é apenas uma
dessas idéias estratosféricas e malucas que saem da Unesco (...) se os
À Unesco e a política de cooperação internacional...

franceses querem ter um laboratório de pesquisa de física nuclear, por


que não vão em frente, com a cooperação de qualquer pais interessado?”
(apud Gowing & Arnold, 1974: 227).
Aparentemente, a afiliação à Unesco era vista como algo relativa-
mente suspeito em alguns circulos científicos e com mais intensidade no
campo da energia nuclear. Outro fator que depunha contra a Unesco era
o interesse dos EUA em assegurar para si uma sólida posição de contro-
le. Quanto a isso, depois de 1954 a Unesco já não era essencialmente a
“organização ocidental” que fora até então.
Auger teve um papel significativo nos acontecimentos que levaram,
em 1954, a criação do CERN — laboratório dedicado principalmente à
pesquisa básica em física de altas energias -, cuja base se localiza nas
imediações de Genebra. Atualmente, o CERN tem aproximadamente
3.900 funcionários e suas instalações são usadas por grande número de
visitantes estrangeiros, inclusive de países que não são membros, como
os EUA, o Japão, a antiga URSS, a China e países da Europa Central e
Oriental. O financiamento básico do CERN depende de alocações feitas
pelos quatorze governos europeus, que compartilham o encargo de uma
forma basicamente proporcional aos seus produtos internos brutos.
Muito ja se escreveu sobre a história do CERN, portanto podemos
ser breves aqui.” Para os nossos fins, será suficiente mencionar alguns
fatores gerais que mostram como a ciência, especialmente a Grande
Ciência, quando sujeita à cooperação transnacional, assume uma im-
portante dimensão política. De diversas maneiras, para cada uma das
nações envolvidas, a ciência em parte se torna a continuação da política,
por outros meios; nesse caso, tratou-se de uma forma preliminar de
“europolitica”, tanto vis-a-vis dos EUA, quanto internamente, entre
os paises envolvidos na montagem do CERN.
Originalmente, a idéia era criar um espaço para pesquisas em fisi-
ca nuclear em face da falta de recursos materiais, que impedia que
cientistas de muitos países se engajassem em programas de pesquisa
sobre a estrutura do atomo. Além disso, existia a Cortina Atômica, O
fechamento conspirativo de laboratórios no Leste e no Oeste, na URSS
e nos EUA durante a Guerra Fria. O plano preliminar para um centro
europeu de pesquisas nucleares foi desenvolvido pelo Secretariado da
Unesco. Embora o resultado não tenha sido um laboratório interna-
cional de acesso universal, a idéia foi aproveitada e transposta para
uma Iniciativa regional européia que ajudou um pouco a corrigir o
Ciência, Política e Relações Internacionais

desequilíbrio de Poder na física por conta da monopolização pelas


duas superpotências.

A partir do discurso de Eisenhower na ONU, sobre “átomos para a


paz , em dezembro de 1953, abriu-se outra linha de desenvolvimento,
que ISvoi à criação, em 1957, de um novo órgão dentro da pa em
ON U:a Agência Internacional de Energia Atômica (International Atomic
“Nergy Agency IARA). Ela assumiu algumas das funções pretendidas
para a antiga UNAEC. Em especial, armazenaria as futuras contribui.
ções que es países dariam a partir de seus estoques de urânio normal é
de materiais físseis, com a finalidade de reencaminhá-los para fins pac.
As atribuições específicas do novo órgão incluíam salvaguardas e
mao de materiais físseis (Skogmar, 1979). Algum tempo se
passou anos aa adesão da URSS, mas em dezembro de 1954 foi adotada
Damme uma resolução da ONU a respeito da“ cooperação inter.
nacional no desenvolvimento ena expansão dos usos pacíficos da energia
ear É.) para ajudar a eliminar os obstáculos da fome, da pobreza e
da doença” (Laves & Thomson, 1957),

à Hnesco dor mais lima vez deixada de lado, apesar de sua antiga
preocupação com a energia nuclear no nível da pesquisa básica e tam.
oem quanto aos seus impactos sobre a sociedade. Na prática, seu foco
limitou-se a quatro áreas: radioisótopos, efeitos da radiação sobre a vida
em geral, treinamento de pesquisadores e difusão de conhecimentos
especializados. Além do mais, a segunda dessas metas foi terceirizado
para o ICSU.

entro da Unesco, houve naturalmente considerável decepção quanto


0 papel. E possível que a orientação tecnológica da nova
tenha entrado em choque com a incumbência científica mais
Pura” da organização. Mas essa não foi a única razão. Ademais duran.
o esse periodo, à credibilidade da Unesco ainda estava sendo questiona-
da. Laves e Thomson (1957: 199) escreveram que

os lideres da política e da ciência ainda não tinham confiança suficien-


e na organização como um canal para o intercâmbio de informação
dentitica é como um estimulador de pesquisa básica sobre um proble-
ma pranto significativo ( ) A Unesco, diante da oportunidade para
uma ação construtiva e mais destacada, ganhou um papel secundário.

“osse qual fosse o motivo, a criação da IAEA foi interpretada como


uma derrota para a Unesco (Unesco, 1972).
A Unesco e a política de cooperação internacional...

Até sua saída da Unesco, em 1958, Pierre Auger continuou a estimu-


lar importantes iniciativas. Não é de admirar que, dados seu interesse
especial pela pesquisa nuclear e sua considerável experiência nesse cam-
po, O Secretariado da Unesco tenha se esforçado para desempenhar um
papei cada vez mais importante no desenvolvimento de usos pacíficos
da energia atômica na indústria, no transporte, na agricultura e na saú-
de — em contraste com as suas possibilidades destrutivas.
Ja destacamos o papel que a Unesco teve no lançamento da CERN.
tm 1955, a Unesco colaborou com a ONU na primeira Conferência In-
ternacionat sobre Usos Pacíficos da Energia Nuclear, realizada em Ge-
nebra, e em 1957 organizou a primeira Conferência Internacional sobre
o Uso de Radioisótopos na Pesquisa Científica. Para além disso, porém,
a informação nuclear continuou excluída do princípio da Unesco relativo
ao “livre fluxo das idéias”. A Cortina Nuclear continuou a existir depois
da extinção da UNAEC, em 1949. A tentativa da Unesco de se tornar O
fórum internacional para debates sobre a energia nuclear se revelou utó-
pica num mundo dominado pela realpolitik.

O ambientalismo: a exploração de recursos naturais e


a proteção do planeta

Nos primeiros anos da Unesco, a conservação da natureza foi outro


tópico importante. Também quanto a isso a Unesco tentou assumir o
papel de orquestradora global. Alguns dos seus primeiros projetos
mostraram-se fracassos completos, porém, mais tarde, quando a consci-
encia ambiental começou a se ampliar, a Unesco estava em boa posição
para assumir um papel de liderança.
Um dos primeiros projetos levou à fundação do Instituto Interna-
cional da Hiléia Amazônica, com sede em Manaus (Brasil). Foi a primei-
ra iniciativa relativa a pesquisas sobre a biosfera. A idéia era pesquisar a
bacia do rio Amazonas e a maior floresta tropical do planeta. Várias
agências interamericanas, a família Rockefeller e os governos da Grã-
Bretanha, França, Itália e Holanda nutriam grande expectativa quanto
aos beneficios econômicos da futura exploração da região. Huxley foi
pessoalmente contrário ao projeto, que mais tarde se esgotou por falta
de apoio financeiro e devido a constantes problemas políticos. Retrospec-
tivamente, o projeto é muitas vezes mencionado como um erro cons-
trangedor.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Mais bem-sucedida foi uma série de projetos para o estudo de zonas


aridas. Nesse caso, o esforço se desenvolveu por meio da estratégia de
contratação externa de uma rede de organizações não-governamentais,
sob o estimulo de Auger. O papel da Unesco foi o de catalisador, patroci-
nando uma série de simpósios e encontros sobre, entre outros assuntos,
nidrologia, suprimento de água, ecologia, fontes de energia como a eólica,
a solar e a geotêrmica. Climatologia de zonas áridas e técnicas de dessali-
nização foram tópicos posteriormente acrescentados. No campo da ecolo-
ela, introduzlu-se a distinção entre ecologia humana e ecologia animal.
Victor Kovda, um cientista de solos da URSS, foi o sucessor de Auger
na chefia do Departamento de Ciências Naturais, ocupando o cargo de
1958 a 1965. Durante seu exercício, tomaram-se várias outras iniciati-
vas na área da pesquisa ligada à proteção ambiental, inclusive a criação
da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (Intergovernmental
Oceanographic Commission — IOC), hoje importante ator na pesquisa
sobre a ampliação do efeito estufa e as suas possíveis implicações para o
clima global. Retrospectivamente, pode-se concluir que Kovda refletiu o
otimismo tecnológico da sua geração, acentuado por sua convicção de que
uma ciência da ciência poderia ser usada para direcionar o desenvolvi-
mento cientifico e manejar de forma mais racional a extração dos recursos
naturais. Parecia ilimitada a possibilidade de encontrar soluções tecno-
lógicas para qualquer impacto negativo do desenvolvimento industrial
Socialista declarado, e dotado de experiência em organizações inter-
nacionais não-governamentais, a posição de Kovda sobre a questão da
responsabilidade social da ciência era bem próxima das de Needham e
dos bernalistas (Unesco, 1972). Ele combinava um veio quase wellsiano
de visionarismo cientificista e um compromisso com a responsabilidade
social que sublinhava a importância de se estender o internacionalismo
cientifico a todos os países que se haviam livrado do jugo do colonialismo.
O desenvolvimento da infra-estrutura agora poderia ser financiado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (United Nations
Development Programme — UNDP), lançado pela Assembléia Geral da
ONU em 1959. O total de recursos geridos pela Unesco dentro desse
programa, entre 1960 e 1970, chegou a 208 milhões de dólares. Isso repre-
sentou dez vezes mais do que o investido em assistência similar pelo
Programa Ampliado de Assistência Técnica (Expanded Programme of
technical Assistance), um programa comparável executado durante a
decada anterior (Unesco, 1972).
À Unesco e a política de cooperação internacional...

Para dar uma noção do cientificismo entusiástico que marcou o espí-


rito e a abordagem de Kovda, citemos o cenário futurístico com que ele
concluiu um resumo sobre as atividades da Unesco na época:

A revolução cientifica e tecnológica amplia rapidamente o poder


do homem sobre a natureza e ao mesmo tempo aproxima cada vez mais
os Interesses dos diferentes continentes e nações. A necessidade de
cooperação cientifica internacional continuará a crescer e não há dúvida
de que os próximos trinta a quarenta anos testemunharão aconteci-
mentos que levarão a mudanças profundas que afetarão o mundo in-
teiro. Por essa época, a maioria dos países em desenvolvimento terá
completado a primeira fase da industrialização e da reorganização
agricola. As colheitas e a produtividade da criação de animais e das
atividades pesqueiras terão triplicado, e a estocagem e a distribuição
de alimentos terão sido racionalizadas. A crise de abastecimento de
alimentos e os problemas da fome e da deficiência de proteínas terão
sido superados. Os problemas relativos aos recursos hídricos também
terão sido resolvidos: as geleiras das montanhas e o gelo polar, gigan-
tescas usinas de dessalinização operadas com energia atômica e esta-
ções de bombeamento poderosas e bem localizadas suprirão novas re-
Servas de água fresca e pura. Às zonas áridas serão irrigadas e recupe-
radas. O homem alcançará controle sobre a condensação de vapores
atmosféricos e a retenção de umidade nas terras agrícolas. Grande
numero de perfurações extremamente profundas serão feitas para ex-
plorar a crosta terrestre, que será assim forçada a entregar os seus se-
gredos e oferecer novas fontes de energia geotérmica e novos recursos
minerais. A maior parte da poluição ambiental será contida. Haverá
amplo uso dos recursos oceânicos para responder às necessidades huma-
nas. Às ameaças de guerra serão repelidas e a justiça social triunfará em
todo o mundo. Serão estes sonhos utópicos? Não, são uma projeção
realista e o desenvolvimento de processos nos quais o homem se engajou
no século XX, os cientistas e todos aqueles que acreditam no progresso
devem lutar para assegurar que essas coisas venham a acontecer.
(Unesco,1972:93-94)

Em contraste com parte das tendências pessimistas e anticientíficas


que ganhavam raizes naquele momento, a visão de Kovda é uma admirável
continuação do evolucionismo de Huxley, traduzida aqui para o idioma
da teoria materialista dialética da Revolução Científica e Tecnológica.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Fo! nesse espírito que a Divisão de Ciências se envolveu no planeja-


mento da conferência da ONU intitulada Conferência das Nações Unidas
sobre Ciência e Tecnologia para o Benefício de Áreas Menos Desenvo!-
vidas (United Nations Conference on Science and Technology for the
Benefit of Less Developed Áreas — UNCSAT), realizada em 1963. Por sua
Vez, esse evento foi uma injeção de ânimo para o grupo da Unesco mais
ligado à ciência —- o orçamento da Divisão de Ciências cresceu 50%
naquele ano.

Depois disso, a ciência ganhou formalmente o mesmo status que a


educação. Continuaram a ser feitos estudos de zonas áridas e pesquisas
s o b r e m é t o d o s p a r a a s u a r e c u p e r a ç ã o , e n q u a n t o a h i d r o l o g i a e o s Te -
cursos de àgua potável cresceram em visibilidade. Desenvolveram-se
ainda a sismologia e o monitoramento de áreas sujeitas a terremotos. No
que diz respeito à ciência mais básica, recursos da Unesco ajudaram
indiretamente a planejar o Ano Internacional da Geofísica (1957-1958),
em que a Oceanografia, a Antártida, os progressos na ciência dos fogue-
tes e dos satélites e, por consegiiência, a pesquisa atmosférica se toras
ram assuntos importantes. Nas ciências marítimas, em particular, a coo-
peração entre o ICSU e a Unesco serviu para preencher uma lacuna im-
poriante (Baker, 1983). Com a adesão de quase cingiúenta países, a Co-
missão Oceanográfica Intergovernamental foi criada em 1961, diretamente
ligada à Unesco, tendo dentro da mesma um escritório que funcionava
como sua secretaria.

A estratégia de trabalhar através do ICSU levou a uma forte inflexão


no sentido da pesquisa básica. Isso refletia os interesses dos países in-
dustrialmente avançados. No pós-guerra, a cooperação internacional
avançou muito mais do que o padrão clássico de intercâmbio de infor-
mações, congressos internacionais, simpósios etc. Ela agora passava a
incluir um padrão mais abrangente de planificação, organização e execu-
ção de complexos projetos de pesquisa, desenvolvimento experimental,
coleta de dados, inventário de recursos naturais e análise de resultados
Essa tendência ganhou impulso por diversos fatores. Teoricamente,
desenvolveram-se a matemática aplicada, a análise operacional, a ciberné-
tica e a teoria dos sistemas. A “episteme cibernética” começou a deixar
sua marca nos diversos campos em que a abordagem sistêmica ajudava
reunir tinhas mutuamente isoladas de pesquisa disciplinar em esforços
interdisciplinares bastante abrangentes. No nível prático, isso foi
complementado pela necessidade de compartilhar os custos crescentes
A Unesco e à política de cooperação internacional...

cos programas de pesquisa e desenvolvimento. Além disso, houve neces-


sidade de ampliar em escala mundial o estudo científico de grandes sis-
temas globais - em campos como a meteorologia, hidrologia, oceano-
grafia e o estudo da biosfera. Nesse particular, a Unesco mostrou-se um
fórum importante para obter o apoio dos governos para pesquisas trans-
nacionais e voltadas para a resolução de problemas.
O mesmo se pode dizer da necessidade de preservar a vida humana e
a sua qualidade, questão que estava cada vez mais em evidência, dando
ensejo a novas abordagens em estudos ecológicos relacionados à prote-
ção, conservação e melhoria do meio ambiente, ao controle da poluição e
a medicina. Além disso, havia a necessidade de desenvolver legislação inter-
nacional em novos campos de trabalho, como o dos recursos marítimos.
Declarada em 1965, a Década Internacional da Hidrologia reuniu os
esforços de pesquisa de mais de cem países; seis anos depois foi instituído
o programa O Homem e a Biosfera (Man and Biosphere - MAB), estimu-
lado pela crescente preocupação com o meio ambiente. Um Mapa Mun-
cial de Solos (escala 1:5.000.000) foi completado no ano seguinte. Antes
disso, boa parte do trabalho realizado sobre a biosfera era feita com a
colaboração entre o ICSU e a Unesco, dentro do Programa Internacional
de Biologia (1964-1974), numa frente de atividades chamada A Base Bio-
lógica da Produtividade e do Bem-estar Humano (Baker 1986).º
Nesse periodo, uma frente fortemente articulada na estratégia da
Unesco era a da pesquisa básica voltada a um melhor entendimento
da biosfera e da crosta terrestre. Foi na esteira de uma conferência so-
bre a biosfera, promovida conjuntamente pela ONU, FAO e OMS, em
1268, com a presença de membros da Secretaria da Unesco, que os go-
vernos se decidiram a deixar que a Unesco e outras agências interessa-
das desenhassem um plano internacional e interdisciplinar de longo
prazo, o programa MAB, que mais tarde viria a influenciar o tema da
Conferência da ONU sobre o Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo.
Michel Batisse, da Unesco, escreveu que a questão levantada foi: “pode-
mos manter o planeta habitável?” (Sewell, 1975: 249).
Quando o Programa Internacional de Biologia se dissolveu, em 1974,
suas tarefas de pesquisa foram absorvidas pelo programa MAB, que ti-
nha uma abordagem mais ampla e mais voltada para a conservação, e
não apenas para a exploração da biosfera. A atenção se concentrou nos
cicios biogeoquimicos e na adoção da teoria geral dos sistemas e na
modelagem por computador, com vistas a previsões de mudanças de
Ciência, Política e Relações Internacionais

longo prazo — o que fez do programa O Homem e a Biosfera um precursor


do atual Programa de Mudança Global (Global Change Program — IGBP).
Victor Kovda já então articulava uma proposição relacionada ao efeito
estufa. “O homem está agora produzindo tanta energia, e o crescimento
desta foi tão grande, que os efeitos sobre o equilíbrio térmico, combi-
nados com a poluição da atmosfera e dos oceanos, podem bem levar a
mudanças drásticas no clima da Terra nos próximos 50 anos” (Laves &
lhomson, 1957: 199).

O MAB envolvia diversas organizações integrantes da família do


ICSU. O próprio ICSU se tornou um corpo consultivo permanente da
Unesco, especialmente com relação ao Programa de Ciências Naturais
cla entidade. Isso deu uma base mais sólida para os mecanismos de revisão
por pares dos projetos no âmbito da Unesco. A idéia era que o ICSU e a
Unesco se complementassem mutuamente na promoção da ciência e da
cooperação internacional em pesquisa científica. Por seu lado, a lideranca
do ICSU nem sempre estava satisfeita com esse relacionamento: à medida
que os projetos da Unesco tendiam a se orientar segundo as diversas
politicas, os pareceres baseados em critérios internos de controle de qua-
lidade corriam o risco de serem ignorados (Sewell, 1975: 7).
Nas geociências, o conceito da dinâmica das placas tectônicas desen-
cadeou uma revolução que provocou a aproximação entre muitas disci-
pinas. Nesse caso, a Unesco deu apoio ao estudo da parte sólida da
terra, especialmente o manto superior, através do Programa da Cama-
da Superior (Upper Mantle Programme — UMP), e mais tarde apoiou
estudos sobre a litosfera.

Ampliando a abertura ao Terceiro Mundo

A parceria entre a Unesco e o ICSU ajudou a mudar o foco do


internacionalismo científico, transferindo-o da pesquisa conduzida por
disciplinas para a pesquisa movida por políticas. Ao mesmo tempo,
tendeu a perpetuar-se um viés em favor dos países industrializados, que
agora começava a ser criticado. Consegientemente, na esteira do en-
contro da UNCSAT, dedicou-se maior esforço para se avançar numa outra
frente da estratégia da Unesco, que objetivava beneficiar os países do
Jerceiro Mundo.

O ano de 1964 marcou o início de uma “fase operacional” que


correspondia a uma consciência crescente nessa direção, inclusive entre

1272
A Unesco e a política de cooperação Internacional...

os cientistas. No entanto, a enfase maior no desenvolvimento trouxe um


elemento de controvérsia, na medida em que os critérios internos de
controle de qualidade na ciência tendem a ser atenuados quando critérios
externos de relevancia social se tornam mais proeminentes. O mesmo
ocorreu no ICSU, e com isso o interesse dos paises mdustrializados na
Unesco começou a decair, enquanto se intensificou a participação da
Europa Oriental e do Terceiro Mundo.
Essa frente específica da estratégia da Unesco incluia, entre outras
coisas, a extensão de serviços e padrões científicos ao Terceiro Mundo, e
o ICSU foi especialmente requisitado a dar mais atenção ao recrutamento
de cientistas dos paises em desenvolvimento para as suas associações.
Fizeram-se esforços especiais no sentido de dar assistência a esses paises
nos campos da metrologia (ciência da medição), dos padrões e da
instrumentação cientifica (Unesco, 1979). Os paises em desenvolvimento
tinham Interesse também nos modernos métodos de levantamento de
recursos naturais, em topografia, em pesquisas geológicas etc. Outra área
de Interesse, a partir de 1972, era o apoio infra-estrutural à informação
científica, empreendido sob os auspícios do Programa Intergover-
namental das Nações Unidas para a Cooperação Cientifica e Tecnológica
no Campo da Informação (United Nations Intergovernmental
Programme for Cooperation in the Field of Scientific and Technological
Information — UNISIST). Ele introduziu um conceito de informação siste-
mática em formulação de políticas para os paises em desenvolvimento,
para facilitar, entre outras coisas, comparações entre os sistemas
operacionais de informação nos níveis nacional e internacional.
Em 1965, a analise e o planejamento da politica cientifica começaram
a ser promovidos por um sistema que apresentava conferências regio-
nais, em nivel ministerial, sobre ciência e tecnologia: América Latina em
1965, Ásia em 1968, Europa e América do Norte em 1970, África em
1974, Estados Árabes em 1976 e Europa Oriental em 1978. Isso refletiu
tanto os interesses dos novos Estados-membros quanto uma tendência
gera! da política científica em muitos países naquele período, inclusive
nações ocidentais industrializadas. Entre 1965 e 1977, um total de 67
países criou ou fortaleceu mecanismos de planejamento e de politica cien-
tifica como consequência de missões da Unesco, e foram produzidos
cerca de 130 relatórios sobre o assunto (Cavallin, 1982).
De fato, a Unesco estava em posição privilegiada para fazer pesquisa
em políticas científicas, e na década de 1960 foi desenvolvida uma

17243
Ciência, Política e Relações Internacionais

unidade com esse fim. No entanto, apesar da alta qualificação do pessoal


envolvido, o resultado foi de qualidade relativamente limitada. Faltou
integração da área de ciência e tecnologia à planificação do desenvolvi-
e ocorreu uma forte tendência a imitar (mesmo que com certo
atraso) as mudanças de doutrina nos países industrialmente avançados
(Cavallin, 1982). Steven e Hillary Rose escreveram em 1969 que

Os documentos específicos sobre cada país, referentes à política de ciên-


cia, publicados pela Unesco nos anos recentes, e que poderiam ter uma
Função comparativa de grande utilidade, perdem sua força porque não
podem aparecer quaisquer palavras de crítica ou análise, já que os docu-
são compilados pelos próprios governos e, perante uma platéia
internacional, os Estados nacionais sofrem deuma conspicua ausência de
autocrítica. inevitavelmente, tais documentos são não apenas anódinos,
mas também virtualmente ilegíveis. (Rose & Rose, 1969: 187)

A politica científica é um assunto relativamente mais controverso


que a ciência per se e, nesse caso, o processo de diluição num denomina-
dor comum de generalidades dentro da estrutura intergovernamental
cumpriu sua tarefa. Mesmo os surveys e estudos nos quais a unidade
responsável pela política científica coordenou a participação de soció-
logos e outros profissionais contratados revelaram-se bem pouco críti-
Eos, Isso pode ser verificado no Estudo Internacional Compara-tivo da
Organização e Desempenho das Unidades de Pesquisa (International
Comparative Study on the Organization and Performance of Research
Units - ICSOPRU), programa que começou em 1971 com o objetivo de
apoiar a melhor gestão da pesquisa e do desenvolvimento nos países
que dele participavam.
Em sua fase inicial, essa importante inovação ajudou a disseminar
experiências na condução de inventários do desempenho da ciência,
com a finalidade de orientar a gestão e o planejamento. No entanto,
com o tempo, alcançaram-se insights da natureza contextual das
precondições socioculturais para a produção do conhecimento cien-
fico - uma visão que emergiu internacionalmente com a nova socio-
logia da ciência, mas que não foi levada em conta pelo projeto ICSOPRU.
Ão contrário, este manteve sua postura original um tanto positivista,
inspirada pela teoria dos sistemas e por uma visão cientificista da
Interface entre ciência e sociedade.

1724
A Unesco e a política de cooperação internacional...

O ICSOPRU envolveu a coleta de dados sobre vários parâmetros re-


lacionados a grupos de pesquisa (tamanho, organização, liderança, conta-
gens de publicações e de patentes obtidas etc.) em diferentes ambientes
institucionais e em diversos países, com base num conjunto de questio-
nários detalhados. Entre 1973 e 1986, dezessete países foram estudados
em quatro rodadas sucessivas: sete na primeira, seis na segunda, cinco
na terceira e quatro na quarta. Desde o início, o projeto assumiu uma
postura positivista, descontextualizada no estudo dos grupos de pes-
quisa. Assim, era basicamente defeituoso em seu objetivo de comparar
indicadores de desempenho por sobre fronteiras nacionais e culturais
Ignoraram-se diferenças significativas em termos de fatores externos,
assim como as mudanças que tais fatores sofreram ao longo do tempo
em todos esses países.
No início, participaram basicamente países da Europa Ocidental e dois
países da Europa Oriental. Na segunda rodada, o estudo focalizou ape-
nas paises da Europa Oriental e alguns do Terceiro Mundo. Na terceira e
na quarta rodadas, predominaram os países do Terceiro Mundo. Além
Gisso, em 1986, o foco de interesse e a principal legitimação desse exercício
já não eram os aspectos gerenciais e os argumentos políticos ligados à
pesquisa e ao desenvolvimento, e sim o desejo dos países do Terceiro
Mundo de obter softwares de computação e de aprender técnicas informa-
tizadas de pesquisa (Elzinga & Jamison, 1987-1988).
Uma avaliação realizada em 1988 concluiu que

em seus quase ZU anos de operação, [o ICSOPRU] gerou pouco input —


se é que gerara algum — para a formulação de políticas, ao mesmo tempo
em que reproduziu esquemas de análise social que não conseguem lidar
com os problemas especiais dos países em desenvolvimento. (Baark, Regis
& Jamison, 1988: 25)

A mudança gradual no perfil dos países participantes do exercício


do ICSOPRU é significativa, porque reflete a tendência mais geral na
Unesco depois de 1954: os países industrializados do Ocidente se desinte-
ressavam da Unesco, enquanto os países da Europa Oriental e do Terceiro
Mundo eram os que encontravam o maior uso prático para sua afiliação.
Um estudo sobre as vendas das publicações da Unesco no ano de
1268 indicou que as atividades da Unesco recebiam maior atenção na
América Latina, em comparação com a América do Norte, e registrou
na Europa (inclusive a URSS) o maior número de leitores (Sewell, 1975).
Ciência, Política e Relações Internacionais

Com a nomeação do senegalês Amadou Mahtar M'Bow para a direção


geral da Unesco, em 1974, iniciou-se novo período, caracterizado por
uma atenção ainda mais acentuada ao Terceiro Mundo e um enfra-
quecimento cada vez maior do interesse por parte de alguns países do
Ocidente. Esse afastamento em relação às metrópoles, implicando uma
abertura consistente ao Terceiro Mundo, se deu na esteira de mudanças
do padrão numérico do conjunto das afiliações.
Entre 1954 e 1974, o número de Estados-membros da Unesco quase
duplicou, de aproximadamente 70 para perto de 130. Parte substantiva
desse crescimento se deve ao processo de descolonização. No mesmo
periodo, o número de organizações não-governamentais filiadas à Unesco
cresceu de aproximadamente 120 para pouco mais de 300.
O influxo, primeiro, de países da Europa Oriental na década de 1950
e, depois, de sucessivas levas de países recém-independentes do Terceiro
Mundo trouxe consigo um apoio militante explícito a questões como a
introdução de uma Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação
(New Worid Information and Communication Order - NWICO), o que
representava, basicamente, um desafio à hegemonia ocidental nos cam-
pos da cultura e das novas tecnologias de disseminação da informação e
dos produtos culturais, assim como em outros campos.
Essa mudança na ideologia, precipitada pela influência crescente de
uma nova maioria, acabou causando a retirada britânica e norte-ameri-
cana da Unesco em meados da década de 1980. Também suscitou inten-
sos ataques da mídia à Unesco e ao seu diretor geral, Amadou Mahtar
M'Bow. Em 1987, M'Bow foi substituído por Frederico Mayor, da
Espanha, considerado (da perspectiva do Ocidente) uma pessoa mais
flexível. A retirada dos EUA e do Reino Unido, cujo objetivo foi paralisar
e subjugar a Unesco, implicou uma redução de um terço no orçamento
ca organização.
Está além do escopo deste artigo apresentar um relato detalhado dos
eventos mais notáveis da Unesco nesse período. Basta mencionar dois
episódios que indicam o tom dos conflitos ideológicos. Eles serão de
especial interesse para aqueles que estudam controvérsias científicas —
sendo que o estudo de controvérsias é reconhecidamente um ramo do
campo mais amplo dos estudos sobre a ciência (Martin & Richards, 1994).
Um deles é relativo a critica da Unesco a Israel e às escavações arqueoló-
gicas em Jerusalém Oriental, vistas como parte de uma política de desfi-
guração de monumentos culturais que são parte importante da história
A Unesco e à política de cooperação internacional...

do povo palestino. O segundo episódio diz respeito à questão das


tecnologias da mídia e de comunicação de massa, numa controvérsia
que teve como ponto culminante o polêmico Relatório MacBride, publi-
c a d o n a f o r m a d e l i v r o p e l a U n e s c o , s o b o t í t u l o d e M a n y Vo i c e s , O n e
World (Muitas vozes, um só mundo), em 1980.

Nos anos de 19/4 a 1976, a Unesco repentinamente ganhou notorie-


dade em virtude de críticas abertas feitas a Israel e ao sionismo, tendo
este sido equiparado ao racismo. Houve uma resolução que condenou a
ocupação israelense pelos efeitos adversos sobre os direitos dos palesti-
nos nas esferas da educação e da cultura, e foi solicitado que o diretor
geral se encarregasse de monitorar a situação. Uma segunda resolução
criticou as escavações arqueológicas israelenses feitas em Terusalém Ori-
ental, considerando-as alterações da natureza histórica e cultural do
terrtório ocupado e solicitando que o diretor geral se abstivesse de for-
necer quaiquer assistência a Israel até que o país acatasse resoluções
anteriores da Unesco sobre o assunto. Uma terceira resolução rejeitou a
pretensão de Israel de, tecnicamente, afiliar-se à Europa como categoria
orçamentária de atividades regionais (Wells, 1987). Isso precipitou uma
crise nas relações entre a Unesco e Israel, e a imprensa internacional deu
enorme destaque ao assunto, retratando a Unesco como agente inocente
do extremismo e que agora estava forçando Israel a sair de seu círculo.
A questão das escavações arqueológicas ainda está bem presente no cen-
tro da luta cultural em torno da interpretação da herança sírio-palestina
e mesmo do papel dos fenícios no início da história da Ásia Ocidental.
O desafio dos países não-alinhados às relações globais de poder levou
a reivindicação de uma Nova Ordem da Informação e da Comunicação
(NWICO), que ganhou apoio da maioria dos Estados-membros da
Unesco em 1976. Uma Declaração sobre a Mídia,!º de 1978, resultante
da iniciativa do bloco minoritário soviético — e consequentemente fácil
de desacreditar — foi seguida por um relatório solicitado pelo diretor
geral, M'Bow. À comissão que redigiu o relatório foi composta por
dezesseis figuras eminentes, sob a liderança de Sean MacBride; no côm-
puto final, o documento refletiu o ponto de vista dos países não-alinhados
(Wells, 1987).
Uma versão preliminar desse relatório provocou reações candentes
dos EUA e de alguns outros países ocidentais, especialmente a respeito
da questão da necessidade de um direito internacional de resposta e de
proteção para jornalistas. Também se levantaram questões como a da
Ciência, Política e Relações Internacionais

formulação de princípios a respeito do uso de satélites de comunicação


e a da distribuição mais equitativa de recursos naturais limitados, como
O espectro eletromagnético e as órbitas geoestacionárias, sobre os quais
as grandes potências exerciam um monopólio. Foi feito ainda um apelo
a correção da distorção injusta das capacidades de comunicação global,
ao aumento da responsabilidade dos controladores da mídia, à demo-
cratização da comunicação e à tentativa de se avançar no sentido da
NWICO. Finalmente, foi criticada a antiga doutrina do “livre fluxo” de
informações, expressa no Estatuto da Unesco. A Comissão MacBride foi
de opinião que, por mais generosas que fossem as aspirações da doutrina,
ela havia na prática servido a alguns interesses particulares, de âmbito
nacional e internacional.

A versão final do relatório foi consideravelmente abrandada; algumas


propostas, como a dos direitos dos jornalistas, foram cortadas e seu caráter
normativo diluiu-se, O que deu ao documento teor mais descritivo. Mesmo
assim, M'Bow manobrou de forma a evitar submeter-se ao Conselho
Geral. Na qualidade de diretor geral, expôs os achados e conclusões da
comissão, sendo adotada uma resolução que considerava o documento
uma “contribuição valiosa” para a discussão sobre a NWICO (Wells, 1987:
1929-207, Apêndice Il), o que, na prática, significava apenas um “tapinha”
nas costas e um engavetamento diplomático do relatório. Isso não evi-
tou que o Relatório MacBride se tornasse um documento amplamente
citado, capaz de ser mobilizado em análises mais críticas, mesmo hoje em
dia, como se pode ver no livro de Edward W. Said, Culture and I mperialism
(1995). À Unesco ajudou a mostrar que a nova mídia penetra de forma
mais profunda na cultura “receptora” do que quaisquer outras mani-
festações da tecnologia ocidental, produzindo contradições sérias nos
paises em desenvolvimento.

Mesmo escritores não inteiramente simpáticos a tal visão, como


Anthony Smith, autor de The Geopolitics of Information, admitem a serie-
dade da questão, e que no fim do século XX a nova eletrônica é uma
ameaça à independência maior do que o foi o próprio colonialismo.
(Said, 1993: 192)

Esse é um exemplo de que a Unesco, como organização intergover-


namental, tem se mostrado capaz de emprestar maior autoridade a certos
achados e a seus impactos na opinião pública do que talvez ocorresse
caso fosse uma organização não-governamental.
À Unesco e a política de cooperação internacional...

Mais recentemente, o tema do imperialismo cultural teve extirpado


seu jargão politico explícito para transformar-se num discurso descom-
prometido sobre a “globalização”. O termo-chave da teoria da globalização
nos estudos culturais é agora novamente usado de forma mais “neutra”
para se referir simultaneamente à “compressão do mundo e [à] intensi-
ficação da consciência do mundo como um todo” (Robertson, 1992: 8).

Conclusão

Alguém já afirmou que o Estatuto da Unesco, adotado em 16 de no-


vembro de 1945, foi o último grande manifesto do Iluminismo do século
XVII Era um documento utópico que refletia uma “crença fervorosa
nos fundamentos das democracias liberais que acabavam de triunfar sobre
O fascismo e depositando as esperanças em reformas alcançadas por via
da educação, da ciência e da razão” (Lengyel, 1986: 5). A idéia de ciência
e do internacionalismo como veículos da ordem e da justiça refletia uma
versão particular do liberalismo ocidental, articulada por intelectuais das
comunidades anglófonas. “A preferência anglo-saxã pelo pragmatismo
e pela orientação focalizada em problemas triunfou sobre a inclinação
francesa por abordagens culturais mais amplas” (Lengvel, 1986: 11). Além
disso, nas ciências sociais, a abordagem quantificadora dos EUA, Grã-
Bretanha, países escandinavos e Holanda venceu a “tradição latina
sintetizadora e moralizadora”.

O conteúdo do que se disseminou sob a rubrica de ciência podia ser


considerado neutro apenas à medida que se admitisse a superioridade e
a universalidade do cientificismo ocidental como padrão de referência
para as demais formas de vida intelectual e de conhecimento. Essa visão
instrumentalista foi reforçada com a entrada da URSS na Unesco. O for-
mato intergovernamental definitivamente prevaleceu sobre o modo de
interação não-governamental. A formação do movimento Pugwash,” pou-
co tempo depois, foi uma importante forma de compensação, dando
margem a Interações espontâneas significativas entre cientistas do Ori-
ente e do Ocidente. O mesmo se pode dizer de certas iniciativas não-
governamentais sob os auspícios do ICSU, como, por exemplo, o Conse-
lho Internacional de Estudos de Política Científica (International Council
for Science Policy Studies), comissão que funcionava sob a chancela da
União Internacional para a História e a Filosofia da Ciência (Union for
the History and Philosophy of Science). Também nesse caso o
envolvimento do Terceiro Mundo foi um aspecto importante.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Durante duas décadas, a partir de 1954, a Unesco conseguiu crescer e


estabilizar-se como uma burocracia do serviço público internacional. Em
ao décimo aniversário da organização, o então diretor geral Luther
úvans escreveu: A Unesco é definitivamente uma organização. intergover-
Ramentas, sujeita às limitações e aos procedimentos inerentes à ação oficial,
mas firmemente baseada nos mecanismos de governo inerentes aos nossos
Estados-membros, inclusive as comissões nacionais” (Sewell, 1975: 166).
Eyaris foi chamado de “o primeiro realista” da Unesco. O diretor ge-
ral que teve o mais longo mandato nesse período foi René Maheu, funcio-
nário público francês que fez carreira e ascendeu na organização. Ele muito
fez para dar um colorido especificamente francês a essa burocracia, in-
cluindo-se aí uma hierarquização. Excelente administrador, dotado de
perspicácia diplomática e talento para orquestrar vozes dissonantes,
conseguiu forjar consensos práticos em torno de planos de ação. Proen-
Fou também harmonizar as duas forças opostas que se mantinham em
Ame aquela que enfatizava a cooperação intelectual e a que prefe-
ria uma abordagem de base mais ampla e popular, enraizada no o
material. Conforme previsto por Needham , foi esta segunda cor
rente que se revelou mais imediatamente importante para os países em
desenvolvimento (Sewell, 1975).
Em 1976, a Unesco tinha também estabelecido relações com cerca de
oganizações não-governamentais, algumas especializadas
em diversos campos do conhecimento, outras representando setores
importantes da opinião pública (Laves & Thomson, 1957).
Contudo, os fatores mencionados, juntamente com a necessidade de
sublimar diferenças ideológicas entre Oriente e Ocidente, levaram a uma
ampla tecnicização, e o instrumentalismo pragmático domino a cultu.-
a da organização.'é Um resultado disso se expressou nos documentos,
Fela de tomada de posição e nas recomendações da Unesco, que
perderam qualquer conteúdo crítico que acaso tivessem anteriormente
apresentado; tinham de ser diluídos até atingir o mais baixo denominador
comum de concordância no âmbito de uma assembléia maior e ideo-
logicamente mais heterogênea. Em um livro sobre ciência e sociedade
publicado em 1969, Hillary e Steven Rose descreveram a situação:

pressões geopolíticas extracientíficas tendem a determinar, portanto, a


seleção do pessoal científico, enquanto uma estrutura pesadamente
burocratizada — que parece ser característica de tais organizações
A Unesco e a política de cooperação internacional...

governamentais Internacionais — assegura que a maioria das atividades,


mesmo valiosas, se desenvolvam num compasso inexoravelmente lento.
(Xose & kose, 1969: 187)

Em sua avaliação, a prática da Unesco a afastara muito do ideal origi-


nal de um centro de reflexão altamente independente e crítico, um comité
de sages fora da influência da complexa rede de preocupações e conflitos
intergovernamentais.
Durante o mandato de M'Bow como diretor geral, afora as alegações
de inspiração ocidental quanto à incompetência, a principal crítica à
Unesco era a de que ela se havia “politizado”. No entanto, Clare Wells
demonstrou que a imagem negativa popularizada pela mídia é na ver-
dade uma representação muito equivocada. O que aconteceu pode ser
entendido como um processo de “destecnicização” pelo qual a agência
foi, de certa forma, levada de volta ao espírito original, mais ativista, de
Seus estatutos; com a diferença de que, dessa vez, o conteúdo e o ímpeto
principais não mais refletiam o viés tendencioso eurocêntrico e de Guerra
Fria que envolvera a Unesco durante os primeiros anos de existência.
A divisão do trabalho e a funcionalização das atividades assumidas
pela ONU após sua formação tinham, ademais, contribuído para uma
espécie de setorização, que começou a ser questionada. Uma vez que a
Assembléia Geral da ONU lidava com questões políticas, as várias agên-
cias especializadas, como a Unesco, foram vistas no período subsegiiente
à guerra como meras implementadoras de políticas ditadas a partir do
centro. isso também ajudou a reforçar a máscara inicial de “neutrali-
dade”, tão importante para a ideologia de que “as ideologias morreram”
ou, como Fuxley preferia chamá-la, um sistema de crenças que, à medida
que a humanidade progredia, era criado de modo sintético com base em
uma visão de mundo cientifica. Em 1950, ele a chamou de “nossa ideolo-
gia evolucionista” (Huxley, 1957: 123).
René Maheu, mais tarde, descreveu a “ideologia da Unesco” como “um
racionalismo científico que deriva tanto do positivismo quanto do evolu-
cionismo”. Fez também notar que a controvertida marca secular original
da organização tornou-se mais “aceitável” com a roupagem de um —-
ainda secular — “humanismo” que fazia referência à Declaração Universal
dos Direitos Humanos adotada pela ONU em 1948 (Unesco, 1972: 283-284).
Com o afloramento do antiimperialismo que reverberou em vários
movimentos sociais radicais a partir de 1968, esses tipos de premissas
Ciência, Política e Relações Internacionais

tacitas foram sujeitas a uma densa reavaliação na década de 1970, tanto


em termos filosóficos quanto políticos. Com o abandono do positivismo
e a revitalização das visões hermenêuticas e marxistas da ciência e de
FAS relações sociais, as próprias noções de neutralidade e de objetivi-
dade foram colocadas em xeque.
No periodo inicial, a Unesco havia conseguido apresentar-se com uma
imagem “objetiva” e “técnica”, porque os planos das potências líderes
do Ocidente não eram questionados dentro da própria organização.
Mesmo nessa fase, no entanto, tal imagem foi com mais força ainda desa-
fiada, e mesmo atacada, fora da organização, especialmente pelo bloco sovié-
tico, no qual a doutrina de Zhadnov de “dois mundos e dois campos de
guerra | era, em 1947, a imagem invertida da doutrina de contenção defen-
dida por Truman e George Kennan. Um ponto de inflexão ocorreu depois
da Guerra da Coréia e da morte de Stalin.” No espirito da convivência
pacífica, emergiu a teoria da convergência, associada com as doutrinas da
sociedade pós-industrial, e uma ideologia mais explícita de que “as ideolo-
gias morreram” criou raízes também fora da Unesco, reforçando ainda mais
a “tecnicização” da organização, pelo menos até meados dos anos 1970.
No início da década de 1970, a Unesco tornou-se gradualmente um
fórum no qual os países do Terceiro Mundo podiam levantar sua voz e
desafiar a dominação dos EUA e do Ocidente e a maneira com que a
ciência e as novas tecnologias estavam sendo usadas para reforçar o
imperialismo cultural. Isso se deu paralelamente a uma tendência ge-
ral, promovida pela China e pelo Grupo dos 77, determinados a buscar
uma nova ordem mundial nas relações econômicas, no manejo global
dos recursos naturais, nos códigos legais relativos às plataformas conti-
nentais, reservas minerais e hidrocarbonetos situados no fundo dos ocea
nos e no continente Antártico, em 1980.2 Dentro da Unesco, o apoio à
ciência se manteve, mas agora ocorriam casos em que as diferenças ideo-
lógicas afetavam alguns projetos específicos. Começou a ser atacado não
tanto a ciência e a tecnologia como tais, mas seu envolvimento em ope-
rações politicas pouco aceitáveis.
A Conferência das Nações Unidas sobre Ciência, Tecnologia e Desen-
volvimento (United Nations Conference on Science, Technology and
Development - UNCSTD), em 1979, em Viena, permite visualizar a arti-
culação de uma grande divisão entre, de um lado, os países do Terceiro
Mundo e de outro, principalmente os EUA e outras grandes potências
do Ocidente, mais o Japão. Em princípio, a Unesco estava numa boa
A Unesco e a política de cooperação internacional...

posição para se tornar um ator-chave na preparação da conferência e,


de fato, houve especulações de que seu diretor geral adjunto presidiria as
S e s s õ e s d o e n c o n t r o . N o e n t a n t o , i s s o n ã o c h e g o u a s e d a r. M a n o b r a s
marginalizaram a Unesco, e o encontro acabou sendo orquestrado de
Nova York, para garantir o controle do bloco ocidental, evitando uma
mudança radical da agenda em favor dos defensores da filosofia da nova
ordem mundial na arena de Ciência e Tecnologia (C&T). Afora a deriva
ideológica cada vez mais “duvidosa”, é claro que se poderia alegar que
atribuição específica da Unesco era a ciência, e não a tecnologia - E
paçao básica do encontro de Viena. Além do mais, os resultados desse
encontro foram decepcionantes para aqueles que o encaravam como uma
alavanca para uma “nova ordem científica e tecnológica”. Nada seme-
lhante se materializou no nível intergovernamental; no entanto, no nível
não-governamental o encontro estimulou um “novo diálogo” entre os in-
teresses das políticas de C&T e os do desenvolvimento socioeconômico.
o encontro engendrou ainda uma nova conceituação na qual a prioridade
das políticas de C&T, principalmente nos países em desenvolvimento,
era Vista como, acima de tudo, a “construção de capacidade endógena”
(Daark, Regis & Jamison, 1988: 3).

objetivo deste texto foi o de contrastar e expor algumas das tensões


existentes entre o ideal e a realidade política da cooperação intelectual
relacionada à ciência nas atividades da Unesco. Constata-se que ma
agência transnacional como essa, cujo objetivo é alcançar universalisimo
Ha representação, serve como plataforma para compensações enire os
interesses de nações individuais e os de blocos geopolíticos. Como um
fórum de natureza intergovernamental e, portanto, transnacional a Unesco
tem ida e lógica próprias. Essa autonomia formal abre um espaço em
que os ideais internacionalistas podem ser expostos e, assim, influenciar
a opinião pública, mesmo que estejam em contradição constante com o
po mais pragmático ditado pelos interesses da realpolitik
aos Estados-membros e das suas coalizões. Nos primeiros tempos da
Unesco, grandes personalidades de todo o mundo podiam usá-la como
Plataforma para aderir ao ideal do internacionalismo científico, ao
que Os representantes de governos enfatizavam a necessidade de abar-
donar o elevado reino dos sonhos utópicos para encarar a realidade crua
das dificuldades daquilo que era possível (a realpolitik).
O movimento Responsabilidade Social da Ciência, da década de 1930,
apresentava duas imagens que se contrapunham ao ideal liberal mais
Ciência, Política e Relações Internacionais

clássico da torre de marfim. Algumas das principais idéias do movi-


mento conseguiram se inserir no Estatuto da Unesco, ainda que de uma
forma que trazia a marca de um contexto geopolítico particular. Outro
ponto importante foi a experiência de Julian Huxley, Joseph Needham,
Pierre Auger, Victor Kovda e outros cientistas com o conflito entre Os
modos de funcionamento não-governamental e intergovernamental. O
universalismo, alcançado em termos numéricos devido à quantidade de
Estados-membros, nem por isso o foi, automaticamente, em termos mais
qualitativos — mesmo segundo uma avaliação que siga as normas que
em geral compõem o chamado ethos científico (Mulkay, 1979).
A ciência é supostamente internacional e universal. Esse ethos
comumente aceito é alimentado internamente por exigências episte-
mológicas e materiais incorporadas nas práticas científicas — padronização
de instrumentos, calibração de unidades fundamentais, métodos de
medição e consenso sobre metodologias e conceitos preferenciais, assim
como divisão de trabalho entre grupos científicos, instituições e nações.
Isso é especialmente verdadeiro no tocante aos megaprojetos científicos
atuais e na pesquisa sobre a ampliação do efeito estufa.
Externamente, há motivo institucional para usar a ciência como veí-
culo para a política, o que provoca situações em que a retórica do
internacionalismo e a apresentação das demandas de conhecimento como
algo independente do tempo e do espaço podem se transformar no seu
exato oposto (nacionalismo e interesses enraizados em agendas locais e
particulares). À ciência, por não ser uma entidade destacada das demais,
e sim uma considerável força material, transforma-se na continuação da
politica por outros meios.
Isso não significa que a ciência se reduza pura e simplesmente à polí-
tica bruta. Ao contrário, trata-se de uma prova tanto do seu valor instru-
mental material quanto do seu valor instrumental simbólico. O apelo à
sua pureza é usado para dar poder aos atores que o acionam. Os valores
materiais e simbólicos são descontados em arenas políticas, tanto no
nível global quanto no local, Em outras palavras, o ciclo de credibilidade
da tomada de decisões políticas apresenta ascendência ou declínio de
acordo com o ciclo epistêmico (interno) de credibilidade da ciência, ba-
seado no reconhecimento, na autoridade e nos processos de revisão por
pares. Estes vêm se tornando solidamente formalizados e institu-
cionalizados. Isso pode ser verificado no Painel Intergovernamental de
Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change —
A Unesco e a política de cooperação internacional...

IPCC), criado em 1988 pelo United Nations Environment Programme


(UNEP) e a Organização Internacional de Meteorologia (World
Meteorological Organization — WMO). O IPCC tenta alcançar um con-
senso giobal, combinando ancoragem no aprofundamento disciplinar e
abrangência geográfica, sendo que as elites do Norte devem garantir a
primeira, e a participação do Sul, a segunda.
A estrutura de avaliação do IPCC em 1995 reflete o esforço consciente
de se obter ampliação e aprofundamento internos e externos do exer-
cício, por um lado, dando-se mais atenção do que antes à paleocli-
matologia, às ciências da Terra, às reações bióticas a mudanças climáticas
e aos feedbacks no Grupo de Trabalho I, e, por outro, cooptando cientistas
da Africa, Ásia e América Latina para ocuparem posições como co-
responsáveis e supervisores do processo de orquestração. Assim, o GTI
(“Ciência”) é dirigido conjuntamente por pessoas do Reino Unido e do
Brasil, o GT II (“Impactos, Mitigação e Adaptação”), por pessoas dos
EUA e do Zimbábwe, e o GT HI (“Economia e Cenários de Emissões”),
por pessoas do Canadá e da Coréia.” Fica claro, pela documentação dis-
ponivel, que o trabalho do GT 1 é o mais desenvolvido sistematicamente:
assim, todo o exercício aparenta estar sendo orientado pela ciência, pois
Os resultados são usados como pontos de partida pelos dois outros GTs.?
isso indica que o papel dos cientistas do Terceiro Mundo não é o de
gerar bases de conhecimento independentes, mas focalizar os impactos
nacionais e regionais, informação que será retrabalhada num formato
preestabelecido.” Além do mais, isso também ajuda a explicar a ten-
dência a direcionar o financiamento para o treinamento, em prejuizo de
esforços de pesquisa realmente independentes no Terceiro Mundo.
Us relatórios do IPCC fornecem revisões abrangentes do conhecimento
atual sobre muitos aspectos das mudanças climáticas. Seu status de au-
toridade deriva de um procedimento pelo qual cada capítulo é escrito
por um grupo cuidadosamente selecionado, encabeçado por dois autores
principais. Autores individualmente reconhecidos como especialistas em
problemas especificos escrevem pedaços e partes de textos que são
depois trabalhados conjuntamente. Antes da publicação, o texto final é
enviado para exame por um ou dois especialistas, num processo conven-
cional de revisão por pares. À regra é que a variedade de trabalhos cien-
tificos citados nos capítulos esteja por sua vez solidamente ancorada em
trabalhos que passaram por avaliações de pares antes de chegarem às
páginas de revistas científicas de “prestígio internacional” em cada um
Ciência, Política e Relações Internacionais

dos campos pertinentes. O formato do relatório, com detalhamento de


capitulos e seções, é decidido pelo Grupo de Trabalho, ao qual é devolvida
a versão final, para discussões e mais emendas. O conteúdo do Sumário
para Formuladores de Políticas, assim como o Sumário Executivo (que
tem importância política), é finalizado ao longo de negociações que
ocorrem em sessões plenárias, nas quais são representados os variados
interesses das partes envolvidas.
Assim, verificamos hoje uma repetição das mesmas tensões e contra-
lições entre modalidades não-governamentais e intergovernamentais do
internacionalismo na ciência, as quais estavam ostensivamente em pauta
nos primeiros anos da Unesco, quando a confluência do cientificismo e
de um neocolonialismo condescendente se expressou de forma esplêndida
nos escritos de Julian Huxley. A mútua influência entre ciência e política
pode ser representada esquematicamente em termos de dois ciclos imbri-
cados de credibilidade, o primeiro baseado no reconhecimento científico,
O segundo no dinheiro e no poder político (Latour & Woolgar, 1979; Rip,
1988; Barnes, 1985). Existe um mecanismo de compensação entre ciên-
cia e política. Os cientistas são estimulados a se dedicarem à pesquisa
básica (estratégica), já que são os resultados desse tipo de pesquisa que
contam como meio de troca na arena política. Já a pesquisa formulada a
partir da motivação própria ao ambiente de uma instituição, por exemplo,
tem um valor simbólico-instrumental no contexto político mais amplo.
Assim, há dois ciclos de credibilidade que se reforçam mutuamente. Para
que possa funcionar como continuação da política por outros meios, a
ciência tem que ser aceita como ciência de qualidade por uma comu-
nidade cientifica internacional. A credibilidade científica é necessária
para garantir a credibilidade política (Elzinga, 19934).
O reconhecimento é capital simbólico que dá poder e prestígio na
arena cientifica, mas também pode ser convertido fora dela, no palco
político, nas lutas por financiamento e no contexto do aconselhamento
as tomadas de decisão. Quanto mais fortes as alegações de pureza e uni-
versalidade do conhecimento, maior a taxa de câmbio para a moeda da
ciência. Inversamente, resultados controvertidos, contestados ou que
careçam do apoio de parcelas substanciais da comunidade científica terão
menor valor de troca no processo de tomada de decisões políticas. O
alto nivel de autoridade das avocações de conhecimento, apresentadas no
ciclo interno de reconhecimento científico, juntamente com o amplo con-
senso na comunidade científica darão forte legitimidade política no
A Unesco e a política de cooperação internacional...

ambito do ciclo extracientifico de credibilidade. O inverso ocorrerá em


relação à ausência de respaldo altamente autorizado, às controvérsias e
ao baixo nivel de consenso na comunidade científica. Tenta-se reverter
esta Ultima situação com a ampliação e o aprofundamento da ancora-
gem das alegações de conhecimento, internamente e, por consequência,
externamente.

Para que o poder da pureza funcione, é importante que tanto cientistas


como politicos mantenham linhas demarcatórias socialmente construídas
e muito claras entre eles e entre suas respectivas esferas de responsabili-
dade. Idealmente, essas delimitações devem aparecer como fronteiras
naturais e inquestionáveis. Além disso, a diferenciação funcional de ta-
refas persiste no interior da esfera da ciência, na forma do reconheci-
mento de distintas especialidades que têm peso especial. Apenas certos
praticantes da ciência têm voz privilegiada ou contam como porta-vozes
confiáveis com respeito a aspectos específicos dos problemas em debate.
Em seu modo normativo, assumido por cientistas auto-aclamadamente
superiores, o modelo estipula que as deliberações cientificas devem
ocorrer antes e distintamente das (e, de preferência, de modo institu-
cionalmente imune as) deliberações políticas a que serão aplicados seus
resultados.

É evidente que o processo de consulta sobre o aquecimento global,


lançado pelo IPCC, é baseado nos aspectos típico-ideais do esquema com
que tentamos explicar anteriormente a interface ciência-política. Isso é
confirmado pelas opiniões de vários cientistas de renome que partici-
pam do processo. À linguagem predileta da ciência é a de um discurso
universalizante, que se transfere para a arena política através da dis-
tinção cuidadosamente gerenciada entre aquilo que se sabe com certeza,
aquilo que está sujeito a debates e aquilo que ainda é considerado forte-
mente incerto. Para estabilizar as avocações de conhecimento, é vanta-
joso que elias sejam apresentadas em termos descontextualizados e
desincorporados. Isso explica em boa parte por que a quantificação, a
análise numérica e a modelagem em computadores, como no caso dos
modelos globais de circulação atmosférica (GCMs), têm um papel tão
central na pesquisa sobre o efeito estufa. E é também um importante
tator subjacente à atual divisão de trabalho entre os cientistas do Primeiro
Mundo e do Terceiro Mundo.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Quero registrar minha profunda gratidão aqueles que me ajudaram no manu-


seio dos arquivos da Unesco e do International Council of Scientific Unions
U C S U ) , M a r k k u J a v i n e n e J e n s B o e l , n a U n e s c o , e Ti s h B a h m a n i F a r á , n o e s c r i -
tório da ICSU em Paris.

Notas

, Artigo originalmente * publicado no livro: Petitjean, Patrick (org.). Les Sciences Coloniales: figu-
es er institutions. Paris: Orstom Editions, 1996. Traduzido do original em inglês por José Augusto
Urummond e revisado por Amir Geiger e Priscila Vizeu Moncuso.
. o termo “bernalistas” refere-se às idéias do físico britânico John Desmond Bernal (1901-
PAZ). Bernal era marxista e escreveu extensamente sobre a função social da ciência e a orga-
nização da pesquisa científica.

Um terceiro ponto de ancoragem poderia ter sido o Bureau Internacional de Educação, em


Genebra, onde trabalhava Jean Piaget, mas essa opção foi eliminada por manobras dos france-
ses. Outra fonte de idéias foi a Assembléia Internacional de Londres, criada em 1941 como
uma organização não-governamental “para servir à causa comum de todas as nações que re-
sistem a agressão”. Ela tinha um projeto de cooperação intelectual que levou a um relatório
escrito por Swilym Davies intitulado: United Nations Permanent International Organization
in Education. Davies escreveu também a brochura Intelectual Cooperation between the two Wars
(1943). Ver mais sobre o assunto em Kolasa (1962).

O termo “wellsiano” refere-se a Herbert George Wells (1866-1946), romancista, jornalista,


visionário científico e enciclopedista britânico. Estudou biologia com Huxley cessa formação
Fentiica marcou sua intervenção na literatura contemporânea. Wells procurou participar das
principais discussões internacionais que sucederam à Primeira Guerra Mundial. Embora fosse
um crítico da Liga das Nações, defendeu a idéia de unificação mundial como única altemativa
a um conílito devastador. Seu pensamento busca uma síntese do evolucionismo, do
pragmatismo e de vários tipos de socialismo.
, Fardo da civilização, em inglês, white man's burden, termo da época imperialista, espécie de
justificativa ideológica para o pretenso papel civilizador da dominação branca ocidental sobre
populações nativas.

* Auger trabalhou no Commissariat a V'Énergie Atomique (CEA), do qual se demitiu na pri-


ii de 1948, depois que Frédéric Joliot se negara a promovê-lo aum cargo mais elevado.
Dois anos mais tarde, o próprio Joliot foi dispensado da CEA, por ter expressado de forma
Gemasiadamente clara as suas simpatias pela URSS, em conexão com a Conference of the
Movement of Partisans ; for Peace, em Estocolmo, onde presidiu o encontro e foi o primeiro
signatário do Apelo de Estocolmo. Ele convocou os cientistas à prática da desobediência civil.
exortando-os a se recusarem a trabalhar em qualquer tarefa que pudesse ter ligação com as
instituições militares, já que isto era visto como uma contribuição para a preparação de uma
guerra contra a URSS (Goldsmith, 1990).

“Em 1951, as subvenções dadas aorganizações não-governamentais internacionais represen-


taram 5,2% de orçamento total da Unesco. Essa cifra caiu para 5% em 1961 e para 2,2% em
1971. Evidentemente isso foi compensado pela substancial ampliação dos contratos firmados
com essas organizações, uma forma de ajuda que implicava alguns compromissos (Maheu,
1966: 295, nota 1).
À Unesco e a política de cooperação internacional...

* Mais tarde, Needham mudou a sua terminologia, referindo-se à “zona que ainda não é muito
luminosa”.

? Correspondência de Richard M. Field ao Dr. Cannon, sem data, provavelmente de fim de


setembro ou inicio de outubro de 1945. Essa é parte de uma correspondência provocada
pelo pedido feito por H. T. Tizard a Cannon — um dos autores do chamado Memorando
Cannon-Field sobre o ICSU (ver Cannon & Field, 1945) -, para que se fizessem comentários
Pois Os perigos que a introdução da ciência na Unesco poderia trazer para uma organiza-
ção muito burocrática. Na resposta ao colega (Cannon), Field nota como Tizard sequer
mencionou Needham. (Correspondência do arquivo do ICSU em Paris).
“ Para um estudo detalhado da ascensão e queda da UNAEC, ver Regis Cabral (1994).
“1 Para um relato das dificuldades ocorridas desde o início nas tentativas de mobilizar as na-
ções fundadoras no sentido de executarem de fato o projeto, ver, por exemplo, Hermann, A
et al. (1990).
2 Uma revisão histórica útil sobre o tema Ciência & Tecnologia na Unesco, escrita durante
esse periodo, éade Hemptinne (1964); a Parte I desse documento lida explicitamente com a
cooperação internacional.
o Os resultados internacionais do IBP foram publicados na forma de uma série em 26 volumes.
tema disso, os resultados nacionais obtidos em diferentes países foram publicados à parte,
sendo que num país o total superou trinta volumes (Baker, 1988)
O evento inicial foi a conferência intergovernamental na Unesco, realizada entre 4e 13 de
setembro de 1986, que veio a ser conhecida como o Congresso da Biosfera. Além da ONU, da
PÃO e da OMS, o evento envolveu a cooperação da IUCN (The World Conservation Union) e
ão International Biological Programme do JCSU. Compareceram mais de trezentos delegados
de sessenta países. o trabalho apresentado por Victor Kovda tinha um escopo bem amplo,
enfrentando a questão do que hoje chamamos de “desenvolvimento sustentável”
to Grande parte da responsabilidade de envolver o primeiro grupo de países deve ser atribuída
ão então diretor da Unidade de Política Científica, Hemptinne, que tinha uma ampla rede de
contatos pessoais nesse campo.

8O título completo da Declaração sobre a Mídia é: Declaração de Princípios Fundamentais a


respeito da Contribuição da Mídia de Massa para o Fortalecimento da Paz e do Entendimento
Internacional, paraa Promoção dos Direitos Humanos e para o Enfrentamento do Racismo,
do Apartheid e do Incitamento à Guerra.

“Em 1955, Bertrand Russell e Albert Einstein elaboraram um manifesto — assinado por Max
born, Percy Br idgman, Leopold Infeld, Frederic Joliot-Curie, Herman Muller, Linus Pauling,
Cecil Powell, Joseph Rotblat e Hideki Yukawa — conclamando cientistas de todas as tendências
políticas a se reunirem para discutir a ameaça posta para a civilização com o advento das ar-
mas termonucleares. Os encontros estimulados por esse manifesto foram originalmente pa-
trocinados pelo filantropo norte-americano Cyrus Eaton e até hoje se realizam na cidade natal
de Eaton, Pugwash, no Canadá. Até o fim de 2002, haviam sido realizadas mais de 275 confe-
rências, simpósios e workshops, reunindo mais de dez mil pessoas.

Para melhor entender a filosofia de René Maheu, ver seu livro de 1966, sugestivo já no
titulo: A Civilização do Universal: inventário do futuro (no original, La Civilisation del “Universel:
inventaire de Vavenir).

o Durante a Guerra da Coréia, a Unesco foi mobilizada para “educar” as pessoas com a visão
de mundo dos EUA e do Ocidente. Sobre a emergência da Guerra Fria, ver Wittner (1974), à
doutrina de Zhdanov sobre os dois campos é apresentada no seu discurso no encontro do
Cominform, em 1947 (Proceedings Cominform 1947).
Ciência, Política e Relações Internacionais

x O ingresso da República Popular da China, em 29 de outubro de 1971, para substituir


Taiwan, foi um evento de grande importância no âmbito da Unesco; sobre o caso da Antár-
tica, ver: Elzinga 1993a e 1993b.

* O formato e o plano detalhado dos capítulos, os pontos a serem focalizados e os autores


principais foram decididos na reunião do IPCC, em Harare (Zimbábwe), entre 11 e 13 de
novembro de 1992.

dé Para um esquema da estrutura e dos tópicos propostos para os três relatórios, ver: Apêndice
ao relatório da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA).
e “O “Grupo dos 77' (G 77) - que atualmente é integrado por 126 países — não é de maneira
alguma um grupo homogêneo. No que toca à avaliação científica, existe obviamente uma ten-
dência naturala focalizar problemas particulares que eles consideram importantes” (Bolin, 1993).

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Demandas globais, respostas locais:
a experiência da Unesco na periferia no
pos-guerra (1946-1952)!
Marcos Chor Maio

ogo após o fim da Segunda Guerra, a Organização das Nações


Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) consti-
tuiu-se em (locus privilegiado da discussão de temas científicos e
políticos ainda sob os efeitos do conflito mundial, como: fome, refugia-
dos, desequilíbrios ambientais, desenvolvimento socioeconômico, into-
lerância racial, entre outros. O interesse pela pesquisa da riqueza bioló-
gica e ecológica dos biomas de florestas úmidas tropicais e a luta contra
o racismo foram alguns dos pontos da agenda da instituição que se
traduziram em projetos como o da criação de um laboratório científico
internacional na Amazônia e o ciclo de pesquisas sobre as relações
raciais no Brasil.

500 os auspícios da Divisão de Ciências Naturais, o plano de funda-


ção do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA) foi um dos
quatro principais projetos da Unesco para o ano de 1947. O programa
de investigações inter-raciais, por sua vez, foi organizado pelo Departa-
mento de Ciências Sociais. Cabe destacar que o representante do Brasil
na Unesco, o cientista Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, foi um ator-
chave no decurso da gestação, decisão e implementação dos dois proje-
tos (Maio, 1997; Maio & Sá, 2000).
Não obstante serem empreendimentos de importância, natureza e obje-
tivos bem distintos, são vistos reiteradamente como investimentos
malsucedidos da Unesco. Há uma espécie de consenso na literatura acerca
do alegado fracasso do IIHA em função das dificuldades políticas en-
trentadas no Brasil, na medida em que o plano foi considerado uma
ameaça à soberania nacional. Esse fato seria um indicador preciso da falta
Ciência, Política e Relações Internacionais

de experiência política da Unesco em seus primórdios em face de um


projeto de tal magnitude e, sobretudo, da importância das forças nacio-
nalistas no Brasil (Laves & Thomson, 1957).
Na mesma linha de raciocínio, o “Projeto Unesco de Relações Raciais”
teria se baseado num equívoco. Quando em 1950, como parte de sua
agenda anti-racista, a Unesco optou por uma pesquisa no Brasil, o resultado
final foi frustrante. A expectativa inicial era de que os estudos pudessem
oferecer um modelo paradigmático de interações étnico-raciais harmo-
niosas. Contudo, os resultados da pesquisa revelariam um outro cenário.
A partir de então não seria mais possível considerar o Brasil como um
pais imune à discriminação racial, uma suposta democracia racial, como
a Unesco originaimente procurou comprovar (Skidmore, 1974).
As versões sobre o “fracasso” perdem de vista um processo bem mais
complexo e matizado.” Este artigo, por conseguinte, tem por objetivo
apresentar alguns aspectos da recepção de dois projetos da Unesco no
pós-guerra, observando como se desenvolveram as interações entre de-
terminadas demandas giobais e as respostas locais. Sugere-se que deter-
minadas propostas internacionais foram centrais na formulação de pro-
jetos nacionais, os quais, no entanto, não se confundem com as concep-
ções originais, seguindo, até certo ponto, uma lógica autóctone. Nesse
sentido, o plano de criação do Instituto da Hiléia e o programa de pes-
quisas inter-raciais foram catalisadores de temas e problemas que mobi-
lizaram em graus diversos a sociedade brasileira.

Os primórdios da Unesco e o internacionalismo científico

A Unesco faz parte da rede de instituições intergovernamentais criada


no pos-guerra. À declaração de princípios contida no preâmbulo da sua
Constituição reflete a busca de inteligibilidade dos motivos que levaram
ao conflito mundial. Conforme a visão liberal da organização, na medida
em que “as guerras começam nas mentes dos homens, é nas mentes dos
homens que os baluartes da paz devem ser erguidos” (Huxley, 1946: 5).
Para realizar tal tarefa, os líderes da agência internacional julgavam ne-
cessário “assegurar para todos pleno e igual acesso à educação, à livre
busca da verdade objetiva e a livre troca de idéias e de conhecimentos”
(Finkielraut, 1995: 53). À Unesco postulava, dessa forma, a superação da
ignorância, do preconceito e do nacionalismo xenófobo, por meio da
educação, da cultura e da ciência, e erigia como seu objetivo a criação de
Demandas globais, respostas locais

um consenso em torno de um mundo mais convergente (Sathyamurthy,


1964). Assim, mediante um enfoque iluminista e universalista, a institui-
ção apostava no pluralismo ideológico e político alicerçado numa soli-
dariedade moral e intelectual. Afinal, o racionalismo e o humanismo,
que permeavam tanto os ideais do capitalismo liberal quanto os do socia-
lismo marxista, encontravam-se em radical oposição ao nazi-fascismo
(Mobsbawn, 1996).
Nesse processo, a ciência assumiria papel central na construção de
um mundo liberal-democrático. No plano das ciências naturais, mesmo
antes do término da guerra, cientistas liderados pelo bioquímico inglês
Joseph Needham participaram de uma série de fóruns, na perspectiva
de assegurar que o primado da colaboração científica internacional viesse
a ser assegurado no pós-guerra (Needham, 1949). A introdução da ciência
em igualdade de condições com a educação e a cultura nessa discussão
sobre a estrutura da nova agência, que redundaria na Unesco, resultou,
em grande parte, da tragédia produzida pelas bombas atômicas norte-
americanas em solo japonês. Em novembro de 1945, no discurso de aber-
tura da Conferência de Londres, que instituiu a Unesco, Ellen Wilkinson,
ministra da Educação da Inglaterra, declarava que

nestes dias, quando todos imaginam, talvez apreensivamente, o que os


cientistas farão conosco em seguida, é importante que eles estejam pró-
ximos das ciências humanas e que devam se conscientizar de suas res-
ponsabilidades perante a humanidade no que tange aos seus afazeres ci-
entificos. (apud Finnemore, 1996: 48)

Esse discurso chancelava a inserção da ciência na Unesco. Era um


indicador preciso da força da comunidade científica internacional e de sua
habilidade, no plano mundial, em lidar com questões como Hiroshima e
Nagasaki. A Unesco deveria ser um importante instrumento para fo-
mentar determinados constrangimentos éticos e morais às atividades
dos cientistas, já que a associação entre ciência e Estado em tempos de
guerra havia gerado uma série de efeitos perversos.
Para cientistas-intelectuais como Julian Huxley ou Joseph Needham,
engajados na construção da Unesco, o desafio se encontrava no difícil
arranjo institucional entre uma agência intergovernamental e o princípio do
não-governamentalismo. Para eles, a ciência não deveria ser controlada
pelos Estados-membros. O desenvolvimento e a difusão do conhecimento
científico não estariam limitados às fronteiras nacionais. Tratava-se de
Ciência, Política e Relações Internacionais

um empreendimento transnacional. Além dos perigos presentes na


possibilidade de o Estado explorar descobertas científicas para fins mili-
tares, havia também um antigo consenso, que inspirava uma “ideologia
da ciência”, analisada pelo sociólogo Robert Merton (1942), de que a in-
terferência estatal inibia o progresso científico. A ciência seria mais eficaz
na medida em que suas atividades estivessem sob o controle dos pró-
prios cientistas.
O programa da Divisão de Ciências Naturais aprovado na 1º Sessão da
Conferência Geral da Unesco, em novembro de 1946, confirmava o princi-
pio da não-intervenção estatal. Ele se expressou nas seguintes propostas
aprovadas: 1) estabelecer uma ampla rede de escritórios de cooperação
cientifica; 2) apoiar financeiramente associações científicas e ajudar seus
membros em pesquisas; 3) coordenar o trabalho de divulgação, de circu-
lação de informações científicas; 4) informar as implicações internacio-
nais das descobertas científicas ao público de todos os países; 5) criar
novas formas de cooperação científica internacional como, por exem-
plo, laboratórios científicos (Finnemore, 1996). Por fim, é importante res-
saltar que esse programa tinha uma forte inspiração no “princípio de
periferia”, formulado pelo bioquímico Joseph Needham, diretor da Di-
visão de Ciências Naturais da Unesco entre 1946 e 1948.

A experiência de Needham na China durante a Segunda Guerra


Mundial (modernização de laboratórios, atualização de bibliotecas, pu-
Dlicação de produção científica chinesa em revistas especializadas do
Ucidente etc.) sedimentou a crença no projeto de irradiação da ciência
do centro para a periferia em escala ampliada, sob a chancela da Unesco.
Esse movimento em direção à periferia estava identificado com as cren-
ças socialistas que norteavam a militância de Needham (Werskley, 1978).
O projeto do Instituto da Hiléia Amazônica — apresentado por Paulo
Carneiro por ocasião das discussões a respeito da organização da Divi-
são de Ciências Naturais da Unesco — era a outra China a ser descortinada
pelo “princípio de periferia” (Maio & Sá, 2000).

Uma utopia científica na Amazônia? Controvérsias em


torno do Projeto IHIHA

Em maio de 1946, a proposta do engenheiro químico brasileiro Paulo


Estevão de Berrêdo Carneiro (1901-1982) de criação de um centro de
pesquisas na Amazônia foi inserida no programa científico em elaboração
Demandas globais, respostas locais

pelo Comitê de Ciências Naturais da Comissão Preparatória da Unesco,


sob a coordenação do bioquimico inglês Joseph Needham. Referindo-se
a magnitude da regiao Amazônica, à importância de suas reservas
hidricas, florestais e, em especial, ao seu valor científico e econômico,
Paulo Carneiro ressaltava a urgência de se realizarem pesquisas no cam-
po da botânica, da zoologia, da quimica, da geologia, da meteorologia,
da antropologia e da medicina. Mencionava ainda a relevância de se es-
tudar a população indigena da região. A proposta incluía os países com
i n t e r e s s e s i m e d i a t o s n a á r e a : B o l í v i a , P e r u , C o l ô m b i a , E q u a d o r,
Venezuela, França, Gra-Bretanha e Paises Baixos.
O plano tinha as marcas da trajetória científica e política de Paulo
Carneiro, oriundo de família que deitava raizes na elite imperial, educa-
do em ambiência positivista, formado pela Escola Politécnica do Rio de
Janeiro e pesquisador dos principios ativos do guaraná e do curare, com
experiência de estudo e trabalho em Paris (Sorbonne e Instituto Pasteur).
Paulo Carneiro exerceu tambem atividade politica na década de 1930 como
secretário de Agricultura de Pernambuco, quando procurou imple-
mentar políticas redistributivas (produção de alimentos a baixos custos e
reforma agraria). No plano internacional, viveu a experiência da Segunda
Guerra Mundial, sofrendo a “internação” na Alemanha nazista junto
com Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França.
Ao retornar ao Brasil, participou de missões de cooperação intelectual
e de criação de instituições intergovernamentais (ONU e Unesco), tor-
nando-se representante do Brasil na Unesco em 1946. Suas preocupa-
ções com a Amazônia vinham desde os anos 30, quando, na condição de
pesquisador do Instituto Nacional de Tecnologia, apresentou um plano
de modernização do plantio e comercialização da borracha e da castanha
na regiao Amazônica ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio
(Maio, 2001b). A proposta do Instituto da Fliléia Amazônica vinha ao
encontro do debate acerca da redefinição do papel da ciência e da atuação
dos cientistas no interior da Unesco.

Na 1º Sessão da Conferência Geral da Unesco, em novembro de 1946,


em Paris, Joseph Needham destacou os problemas do desenvolvimento
da ciência em países subdesenvolvidos, em função do isolamento, do
reduzido número de cientistas, sem estímulo e sem interlocução, das
barreiras sociais e culturais (casta, tradição e costumes) e da falta de
apoio por parte do poder público. A divisão do mundo needhamiano
entre “zonas luminosas” e “zonas escuras” (Ásia, África e partes da América
Ciência, Política e Relações Internacionais

do Sul) devia-se apenas a circunstâncias históricas, portanto, caberia


aos cientistas do mundo desenvolvido cooperarem na superação não
somente do isolamento dos seus colegas das regiões periféricas, mas
também das respectivas disparidades materiais e sociais.
Dos cinco representantes brasileiros nessa conferência, três eram cien-
tistas e mantinham estreitos vínculos com o Instituto Oswaldo Cruz
OC): Miguel Ozorio de Almeida, Carlos Chagas Filho e Olympio da
Fonseca. Miguel Ozorio de Almeida, expoente da fisiologia experimental,
não concordava com a configuração do mundo da ciência desenhada
por Needham, que desconhecia a existência de instituições científicas
de excelência nas denominadas zonas escuras. Ele propunha estudos
no campo da história da ciência para tornar inteligíveis os fatores que
limi-tavam e/ou favoreciam o desenvolvimento da ciência na periferia.
Miguel Ozorio se indagava também acerca da plena aceitação, por par-
te dos cientistas, da universalidade da ciência. Mesmo que se admitisse
que os cientistas percebiam a ciência como resultado da cooperação
Internacional, não se poderiam abstrair os sentimentos de pertença na-
cional que encarnariam esses mesmos cientistas. Sem enfrentar esses
desafios com base em investigações históricas, continuar-se-ia a prati-
car uma especie de “imperialismo científico” afeito aos países que só va-
lorizavam o que seria realizado dentro das chamadas zonas luminosas:
Assinalava ainda a importância das relações entre ciência e nação, que,
no caso da América Latina e particularmente no Brasil, passava obriga-
toriamente pelo Estado. O diagnóstico de Miguel Ozório antecipava di-
vergências futuras, como a que ocorreu por ocasião da indicação do coor-
denador do projeto amazônico.
Em dezembro de 1946, aprovou-se na Conferência de Paris o projeto
do IIHA e autorizou-se a criação de Escritórios de Cooperação Científica
em diversas regiões subdesenvolvidas - América Latina, Ásia e África —,
materializando assim o “princípio de periferia”. A principal missão do
Escritório Latino-Americano de Cooperação Científica (ELACC) era a
implementação do projeto HA:
Desde o segundo semestre de 1946, depois de diversos contatos com
colegas da Universidade de Cambridge e do Escritório de Representação
das Colônias Britânicas (Colonial Office), Joseph Needham, com a
anuência de Julian Huxley, diretor geral da Unesco, convidou Edred John
Henry Corner para assumir a direção do ELACC. Comer, botânico inglês
com larga experiência em flora tropical, formara-se pela Universidade
Demandas globais, respostas locais

de Cambridge e fora pesquisador do Jardim Botânico de Cingapura, sob


mandato britânico, entre 1929 e 1946. Durante a Segunda Guerra Mun-
cial, notabilizara-se pelos esforços de preservação de bibliotecas, cole-
ções e Instituições científicas e históricas na Malásia, no contexto da
dominação japonesa no Sudeste Asiático. Assumiu a direção do ELACC
em março de 1947.º
Needham julgava que sua bem-sucedida experiência chinesa era
atribuida em parte ao trabalho coletivo empreendido por cientistas de
países desenvolvidos em estreito contato com os colegas das zonas peri-
féricas. Acreditava ainda que, em países caracterizados por uma frágil
institucionalização da ciência e por uma estrutura política que atribuia
pouca importância aos afazeres científicos, os dirigentes dos Escritórios
Regionais da Unesco deveriam estar atentos ao perigo de lidarem apenas
com burocratas, em vez de estabelecerem estreitos contatos com os “ver-
dadeiros batalhadores da ciência” (Science and Unesco, 1946: p.19-20).
Contudo, no caso da América Latina, certas contradições despontaram
na implementação dos princípios needhamianos.
Em abril de 1947, o conselho executivo da Unesco decidiu que o IHA
passava a ser considerado um dos quatro principais projetos a ser
implementado naquele ano. Na ocasião, Paulo Carneiro e outros repre-
sentantes latino-americanos se opuseram a indicação de Corner, em vir-
tude de sua falta de familiaridade com a América do Sul, sua cultura e
sua vida politica. Carneiro fazia restrições à forma como estava sendo
aplicado o “princípio de periferia”. Para ele, à frente do Instituto da
Hiléia deveria estar um cientista de prestígio da América Latina. Em
carta a Huxley, logo após a reunião do conselho executivo da Unesco,
em Paris, Paulo Carneiro alertava: “Não esqueça, senhor diretor geral,
que os paises sul-americanos são bastante exigentes e não apreciam ter a
impressão de serem tratados como colônias às quais são enviadas mis-
sões de estudo das quais eles não façam parte desde o início”.
Paulo Carneiro percebia um acento colonialista na visão da conexão
inglesa (Huxley, Needham), que pouco conhecia a América Latina e sua
comunidade de cientistas, como já havia assinalado Miguel Ozorio de
Almeida. Ele acabou por ser indicado por Julian Huxley como “con-
sultor especial” para estabelecer os elos de ligação entre a Unesco, a
comunidade cientifica e o Estado brasileiro.”
A partir da 1º Sessão da Conferência Geral da Unesco, o plano do
UMA deixou de ser apenas a proposta de um centro de pesquisas
Ciência, Política e Relações Internacionais

predominantemente voltado para a ciência básica, conforme previsto


no projeto original. Por pressão dos países latino-americanos, passou a
envolver educação, cultura e saúde. Esse novo perfil causou certas preo-
cupações por parte da Divisão de Ciências Naturais da Unesco, uma vez
que transcendia suas competências e exigia apreciáveis recursos.!º
As divergências no processo de estruturação do projeto HA prosse-
guiram na Conferência Científica de Belém, realizada entre 12 e 18 de
agosto de 1947, que definiria as pesquisas a serem desenvolvidas e o
formato da nova instituição. Com a presença de instituições nacionais e
estrangeiras, representando os países que tinham interesses na região, o
fórum de Belém ofereceu subsídios ao programa do futuro Instituto da
Hiléia, a partir do trabalho de três comissões: ciências naturais, ciên-
cias sociais e educação, nutrição e ciências médicas.! Algumas das pro-
postas da Conferência de Belém diziam respeito à necessidade de amplo
inventário faunístico e florístico, a criação de reservas florestais e sua
exploração racional, a descoberta e a utilização de plantas de valor econô-
mico, a cultura em terras inundáveis, o desenvolvimento da piscicultura
para fins alimentares, a criação bovina (em especial as raças adaptáveis
ao meto amazônico), a pesquisa dos conhecimentos etnobotânicos dos
povos indigenas, a realização de pesquisas antropológicas sobre as comu-
nidades da região, a elaboração de inquéritos sociais tendo em vista O
atendimento de demandas nos campos da educação e da saúde e o fortale-
cimento de instituições científicas locais. Foram propostos estudos
interdisciplinares a longo prazo, parcerias com instituições congêneres
e com programas em curso, como o dos institutos e estações experimen-
tais agricolas já existentes na região. As propostas se assemelhavam a
uma espécie de agenda de consenso sobre a Amazônia.!
As elites locais encaravam o projeto ILHA como uma alternativa a
curto prazo, porque os recursos previstos pela Lei n. 199 da Constituição
brasileira de 1946 ainda estavam no terreno das promessas. O discurso
“Internacionalista” do governador do Pará, coronel Moura Carvalho,
quando da abertura dos trabalhos da Conferência de Belém de 1947,
revelava bem as preocupações amazônicas:

A Amazônia é nossa, mas a serviço do mundo, a serviço da ciência,


como fonte de trabalho e de bem-estar geral, como potencial capaz de
produzir tudo quanto seja necessário aos outros povos, dentro do regi-
me de fraternidade universal que deve presidir a todas as intenções na
vida internacional. (Carneiro, 1951: 24)

1592
Demandas globais, respostas locais

Apos a reunião de Belém, Corner elaborou um relatório para o secre-


tariado da Unesco. Nele, o botânico chamava a atenção para os poucos
estudos sobre a Hiléia e a falta de pesquisadores com a diversificação de
conhecimento pretendida pela Unesco. A seu ver,
ff PF
() a
em Unesco é o que todos desejamos (...). S representa a ciência,
quer sejam abstrações sobre prótons, genética ou sistemática, e não (...)
tecnologia. Assim que o projeto científico for iniciado, não se deve per-
mitir sua degradação com o fim de conseguir apoio. Considero lamen-
tavel que a agricultura (que é uma política) e a educação (que é um
fetiche histórico) ganhem precedência sobre a sede de conhecimentos
sobre a região Amazônica, a qual é uma atração interminável para ci-
entistas *

O relatório de Corner gerou apreensões no centro decisório da Unesco.


A empolgação latino-americana expressa na agenda de pesquisas for-
mulada em Belém escapava às expectativas e aos recursos da Unesco. A
partir do momento em que se tentou transformar uma demanda inter-
nacional (criação de um amplo centro de pesquisas) em projeto para
solucionar problemas de uma região ávida por políticas públicas volta-
das para o desenvolvimento regional, a direção geral da Unesco se viu
diante de pressões especialmente dos Estados Unidos. Os latino-ameri-
canos tinham um peso político expressivo nos primórdios da Unesco!
como se pode verificar não apenas pelos receios da direção da Unesco
de criar qualquer tipo de suscetibilidade entre esses países, mas tam-
bém pelo volume de recursos aprovados (cem mil dólares) para o projeto
HAHA na 2º Conferência Geral da Unesco, realizada na Cidade do
Mexico em novembro de 1947, a despeito da oposição norte-americana.”
Responsáveis por parte substanciosa do orçamento da Unesco, os
Estados Unidos estavam atentos ao binômio paz-segurança. Nutriam
uma enorme dose de desconfiança em relação à intelliçentsia interna-
cionalista unesquiana, representada por Julian Huxley e Joseph Needham,
e cobravam uma ação mais pragmática da instituição em face do con-
texto da Guerra Fria, da reconstrução européia e do avanço do socialis-
mo. Pregavam a estreita relação política da Unesco com a ONU (Maio,
1998).'º Nesse sentido, a Amazônia ocupava, naquele momento, plano
secundário aos olhos da política externa norte-americana, que primava
pela visão ortodoxa do livre-comércio, reiterando a posição do Brasil
como exportador de matérias-primas estratégicas. Qualquer projeto
Ciência, Política e Relações Internacionais

voitado para o desenvolvimento regional era indesejado (Malan, 1984:


Moura, 1990). Não à toa, logo nos primórdios da estruturação do projeto
HA, o botânico Corner informava a Paulo Carneiro que o futuro centro
de pesquisas se assemelharia ao Smithsonian Institution para que não
restassem dúvidas aos norte-americanos de “que o Instituto da Hiléia
estajria sendo] planejado para o aumento e disseminação do conheci-
Memo, 440 originalmente para o desenvolvimento econômico” (grifo de
Corner). ? Nesse sentido, no final de 1947, na interpretação da represen-
tação norte-americana na Unesco, o perfil do projeto IIHA fugia à idéia
de se constituir apenas em laboratório científico internacional, deman-
dando recursos apreciáveis da instituição em cenário cheio de
imprevisibilidades.
Apesar das adversidades enfrentadas, na Conferência do México foi
estabelecido um cronograma de atividades que incluía a realização de
uma convenção para estabelecer o estatuto legal do Instituto da Hiléia -
ocorrida na cidade peruana de Iquitos — e a definição de um conjunto de
pesquisas a serem efetuadas ao longo do ano de 1948.18 Os constantes
sinais de boas-vindas ao projeto HA, por parte de alguns países — Boli-
v i a , E q u a d o r, P e r u , C o l ô m b i a - , n ã o p a s s a r a m d e a t o s f o r m a i s e
Iinconclusos. Instabilidade política, ausência e/ou desencontro de infor-
mações, expectativas incompatíveis com as possibilidades materiais da
Unesco, desconfianças acerca dos propósitos da organização interna-
cional, resistências dos sul-americanos na alocação de recursos para o
plano amazônico, disputas políticas entre o Brasil e o Peru pela hegemonia
do projeto foram alguns dos aspectos presentes na Conferência de Iquitos,
realizada em abril de 1948. Países como Holanda, Inglaterra e Estados
Unidos não atribuíram maior importância à reunião de Iquitos. Apesar
da presença de uma ou outra personalidade sintonizada com o traba-
lho da Unesco ou mais especificamente com o projeto HHA, como era o
caso do etnólogo francês Paul Rivet, o fato é que a agência intergover-
namental era pouco conhecida na América Latina e mobilizava na região
limitados recursos humanos e financeiros.” O fórum de Iquitos revelou
as fragilidades da proposta do Instituto da Hiléia na fronte interna
latino-americana.

Á crise do projeto IIHA no âmbito da Unesco acrescente-se a contenda


gerada pela mensagem enviada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra,
em setembro de 1948, ao Congresso Nacional, na qual solicitava a ratifica-
ção do estatuto jurídico do futuro IIHA, elaborado pela Convenção de
Demandas globais, respostas locais:

Iquitos, que deveria ser assinada por, pelo menos, cinco paises envolvi-
dos diretamente com a proposta. Esse fato gerou um enorme impacto
no parlamento brasileiro, bem como na opinião pública, mobilizando
militares, cientistas, jornalistas, intelectuais e entidades da sociedade civil.
Radicalizaram-se as posições entre aqueles que defendiam a importân-
cia da cooperação internacional para a Amazônia e os que concebiam o
projeto ILHA, sob a liderança do ex-presidente Arthur Bernardes, como
a expressão dos interesses imperialistas sobre a região. Artigos e dispo-
sitivos da Convenção de Iquitos foram encarados como uma ameaça à
soberania nacional, seja em função do grau de autonomia do IHIHA em
relação aos Estados-membros, seja porque minimizavam o peso político
do Brasil no projeto. Houve até a assinatura de um protocolo adicional
ao texto original, com o aval das Forças Armadas, para dirimir quais-
quer dúvidas em face das supostas ameaças à segurança nacional. No
entanto, no início da década de 1950, a polarização política inviabilizou
a criação do IHA (Crampton, 19/2).
A politização do projeto da Hiléia em solo brasileiro ocorreu no mo-
mento em que a Unesco já havia reduzido significativamente seus 1n-
vestimentos no plano. Estava longe de representar a “cobiça internacio-
nal”. Ademais, verificava-se um processo de redefinição das relações
entre ciência, sociedade e Estado no Brasil, em função dos desdobra-
mentos da Segunda Guerra Mundial. À emergência da questão nuclear,
da defesa do petróleo e dos recursos minerais estratégicos como funda-
mento de um ambicioso projeto de superação do subdesenvolvimento e
de afirmação do Brasil, por meio da ciência, como nação moderna, so-
mou-se o debate em torno da criação de agências de fomento à pesquisa
e o surgimento de novas associações científicas. Esse contexto gerou um
efeito não previsto, ou seja, a criação do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia, sob a chancela do CNPg, em 1952.

A Unesco e a agenda anti-racista


Desde sua criação, a Unesco havia assinalado a gravidade do racis-
mo, como se pode observar no preâmbulo da sua Constituição: a grande e
terrível guerra que terminou agora só foi possível pela negação dos prin-
cípios democráticos de dignidade, igualdade e respeito mutuo entre os
homens, e a propagação, no lugar deles, por meio da ignorância e do
preconceito, da doutrina da desigualdade dos homens e das raças
(Unesco, 1951).
Ciência, Política e Relações Internacionais

As doutrinas raciais que sustentaram ideológica e politicamente a


dominação hitlerista foram vistas pela Unesco como um sistema anti-
racional de pensamento em franco conflito com as tradições humanistas,
concebidas como inerentes à cultura ocidental. O ódio e os conflitos
raciais estariam embasados em falsos postulados científicos (Métraux,
1950: 384). O nazismo seria uma espécie de descarrilamento do Ocidente.
A Unesco, portanto, teria a missão de promover uma ampla campanha
contra as bases ideológicas do racismo.
De inicio, temas referentes ao preconceito e à discriminação racial
estavam vinculados ao projeto Tensions Affecting International
Understanding, aprovado na 2º Sessão da Conferência Geral da Unesco,
na Cidade do México, em 1947. O projeto tinha propósitos abrangentes,
procurando Investigar as múltiplas razões que levavam às guerras, às
rivalidades nacionais e à criação de estereótipos.2
Em 1949, surgiu um plano mais específico de luta contra o racismo.
Q Conselho Econômico e Social (ECOSOC), agência especializada vin-
culada â Organização das Nações Unidas, sob o impacto da divulgação
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948
propôs a Unesco, por meio da Subcomissão de Prevenção à Discri-
minação e Proteção de Minorias, a criação de um programa de combate à
discriminação racial. Eram quatro as propostas do ECOSOC: 1) divul-
gar informações e estudos sobre tensões sociais; 2) estabelecer parce-
ras entre a ONU e a Unesco na formulação de um programa educa-
cional de combate à discriminação racial; 3) adotar um programa de
divulgação de fatos científicos com o propósito de eliminar o precon-
ceito racial; 4) criar um comitê de lideranças mundiais no âmbito da
educação para estudar a proposta de uma educação democrática e uni-
versal, de modo a combater qualquer espírito de intolerância ou hostili-
dade como os que ocorrem entre nações e grupos (Wirth, 1949).
As sugestões encaminhadas pelo ECOSOC à Unesco em 1949 refletiam
um novo momento da realidade mundial, em que se conjugaram pelo
menos dois importantes fatores políticos: o primeiro, a luta contra o racis-
mo traduzia uma atitude de afirmação dos países subdesenvolvidos,
muitos deles recém-criados no processo de descolonização africana e
asiática. O segundo era a pressão da União Soviética sobre os Estados
Unidos, no contexto da Guerra Fria, mediante a denúncia do racismo
norte-americano, buscando assim o então líder do mundo socialista soli-
darizar-se com países do Terceiro Mundo (Lauren, 1988; Malik, 1996).
Jemandas globais, respostas locais

am abril de 1949, o diretor interino do Departamento de Ciências Sociais


da Unesco, o psicólogo social Otto Klineberg (1949:11), alertava para os
Perigos das “bombas atômicas, cortinas de ferro, alianças defensivas
chauvinismo, racismo, acusações e contra-acusações na Guerra Bria o
tudo isso faz com que nos demos conta da realidade do perigo”.
Atendendo à solicitação do ECOSOC, a 4º Sessão da Conferência Ceral
da Unesco em Paris, em 1949, introduziu em seu programa de ciências
Sociais um capítulo especial (“Estudo e disseminação de fatos científicos
PERSAS a questões de raça”) em que três pontos destacavam-se:
e coletar materiais científicos referentes a questões raciais: di.
Vulgar amplamente as informações científicas coletadas e preparar uma
campanha educacional baseada nessas informações.
À Unesco realizou três atividades inspiradas na proposta do ECOSOC:
à Primeira delas foi a convocação de uma reunião de antropólogos (físi-
cos e culturais) e sociólogos com o intuito de elaborar um manifesto
científico a respeito do conceito de raça. A segunda decisão referia-se à
realização de uma pesquisa sobre as relações raciais a Brasil? Por “mu.
Ao mesco publicou uma série de Pequenos estudos sobre biologia,
genética, antropologia, história e psicologia social com o intuito de dar
maior publicidade a certos conhecimentos científicos a respeito do tema
raça e relações raciais (Maio, 1998).
Essas propostas foram gestadas no momento em que Arthur Ramos
(1205-1949), um especialista em culturas afro-brasileiras, dirigia o De-
de Ciências Sociais da Unesco. Em sua breve aluação na
instituição, º antropólogo brasileiro privilegiou “o desenvolvimento [de
nos países da América Latina, e especialmente o Brasil onde à
ação da Unesco ainda não se faz sentir de uma maneira eficaz” 2 Veriti.
cou ainda que a antropologia cultural exercia papel secundário no ór.
gão da Unesco, quando comparada com a sociologia, a ciência política é
à Psicologia social. Julgava que a antropologia deveria assumir im pa-
pet central, particularmente no que tange ao debate sobre raça e rela-
ções raciais. Creditava à disciplina a responsabilidade de conduzir uma
ampla pesquisa sobre a vida ea cultura de povos não-europeus, com
na equal fosse possível, em seguida, compará-las com os Principais
aspectos constitutivos da civilização européia. A proposta de Arthur
damos inha por objetivo discutir a situação dos índios e negros nas
e sua inserção na cultura ocidental * Ao citar explicitamente o
caso de grupos marginalizados, tinha em mente o problema da incorpo-
Ciência, Política e Relações Internacionais

Fação de determinados estratos sociais à modernidade, um tema recor-


rente na agenda política e intelectual da intelligentsia brasileira.

Da Bahia para o Brasil: o Projeto Unesco de relações raciais


Na virada da década de 1940, a Unesco definia sua agenda anti-racista,
Nesse momento, a luta contra a intolerância racial teve dois movimentos
bastante significativos. Em primeiro lugar, a realização de uma
de especialistas, com o predomínio de cientistas sociais, com = objetiva
debater o estatuto científico do conceito de raça. A 1º Declaração
sobre Raça (Statement on Race), publicada em maio de 1950, por ocasião
Ea Sessão da Conferência Geral da Unesco, foi o primeiro documento
com àpoto de uma instituição de ampla atuação internacional a negar
qualquer associação determinista entre características físicas, compor
Farm sociais e atributos morais, ainda em voga nas décadas de 193
e 1240. O segundo movimento foi a escolha do Brasil como objeto de
pesquisa sobre as interações inter-raciais, com o objetivo de oferecer ao
und uma nova consciência política que primasse pela harmonia en-
tre as raças (Maio, 1998b).

Re início, O interesse pelo estudo das relações raciais no Brasil era


Foncepido em perspectiva comparada, confrontando a experiência bra:
dos Estados Unidos e da África do Sul. Só a partir desse
cotejo, o Brasil era concebido como cenário bem-sucedido em matéria
de Telações Todavia, não houve consenso, em princípio, quanto à
Escolha do Brasil na 5º Sessão da Conferência Geral da Unesco, em Flo.
rença, Alguns países propuseram a inclusão de outros que tives-
sem Periis étnicos semelhantes para que se pudesse, comparativamen-
te, avaliar se haveria padrões distintos de relações ciais na América
Latina (Maio, 2002).

Em determinado momento do debate, o representante brasileiro na


Unesco, Paulo Carneiro, destacou a importância de a pesquisa ser reali.
zada no Brasil si função do processo de miscigenação de populações
indigenas, africanas e de imigrantes brancos “com uma notável ausência
de tensões”, Indo além, acreditava que a Unesco encontraria no país
um tico campo de estudos e poderia contar com a eficiente ajuda das
brasileiras”. Paulo Carneiro, ao associar a importância da
pesquisa dé um povo mestiço ao respaldo do aparato estatal, reiterava
à Ideologia que permeava a sociedade brasileira e que havia se transforma.
Demandas globais, respostas locais

do em politica oficial do Estado. Por sua vez, o cientista político norte-


americano Robert Angeil, diretor interino do Departamento de Ciências
Sociais da Unesco, lembrou o fato de que a investigação deveria ser desen-
volvida em um país no qual as relações raciais fossem “boas”, haja vista a
existência de vasto conhecimento das experiências negativas nesse terreno.”
Em junho de 1950, a Conferência Geral da Unesco aprovou a resolução de
organizar no Brasil uma Investigação piloto sobre contatos entre raças
ou grupos étnicos, com o objetivo de determinar os fatores econômicos,
sociais, políticos, culturais e psicológicos favoráveis ou desfavoráveis à
existência de relações harmoniosas entre raças e grupos etnicos.?

Para além das imagens positivas, a “opção Brasil” guardava intima


relação com o quadro internacional da época. A persistência do racismo,
especialmente nos EUA e na África do Sul, em contexto de Guerra Fria,
manteve a atualidade da questão racial. Nesse sentido, o Brasil repre-
sentava a preferência por um pais capitalista periférico que poderia su-
postamente salvar a imagem do mundo ocidental.
A partir do segundo semestre de 1950, Alfred Metraux, diretor do
Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da Unesco
e com larga experiência de trabalho etnológico na América Latina, tor-
nou-se o responsável pela estruturação do projeto de pesquisa a ser rea-
lizado no Brasil, auxiliado pelo antropólogo brasileiro Ruy Coelho, ex-
aluno de Roger Bastide, na Universidade de São Paulo, e de Melville
Herskovits, na Universidade de Northwestern (Maio, 2001a).
O Projeto Unesco incluiria, em principio, apenas a Bahia (Meétraux,
1950). Para isso, concorreu a existência de uma tradição de estudos so-
bre o negro na cidade de Salvador desde o final do século XIX, na qual se
destacava o exame da forte influência da cultura africana. O cenario
baiano parecia adequado aos propósitos da Unesco. À cidade, com ex-
pressivo contingente de negros, havia atraído, nas décadas de 1950 e
1940, diversos pesquisadores estrangeiros (Donald Pierson, Ruth Landes,
Melville Herskovits, Franklin Frazier, Roger Bastide).
Contudo, diferente de certa visão inicialmente idealizada da Unesco
sobre o Brasil, alguns cientistas sociais, cientes de que determinadas
demandas haviam sido incluidas na pauta de discussões da agência in-
ternacional em regiões subdesenvolvidas — como os temas da industria-
lização, educação e ciência —, procuraram alargar o perfil da pesquisa,
com a inclusão da região Sudeste (5ã0 Paulo e Rio de Janeiro).
Ciência, Política e Relações Internacionais

Útto Klineberg, um dos responsáveis pela criação do Departamento


de Psicologia da Universidade de São Paulo, entre 1945 e 1947, foi o pri-
meiro a se manifestar. Trabalhava na interface antropologia e psicologia
social e, desde a década de 1920, influenciado pelo antropólogo Franz
Doas, encontrava-se na linha de frente do combate ao racismo nos EUA,
tendo participado da pesquisa de Gunnar Myrdal, “An American
dilemma”, Klineberg teve papel de destaque no processo de organização
do Departamento de Ciências Sociais da Unesco e nutria enorme simpatia
pelo Brasil. Concebia o programa de pesquisas sobre as relações raciais no
Brasil de forma mais abrangente. Em sua opinião,

São Paulo e Salvador são tão diferentes em tantos aspectos que o fato
de serem ambas cidades de grande porte me parece quase irrelevante
neste caso. Acredito que seria muito importante estudarem-se as rela-
ções raciais sob um certo número de condições distintas e, nesse caso, é
imprescindivel que, mais uma vez, o estudo não fique restrito à situação
na Bahia e à sua volta. (Klineberg, 1950: 4)

Na mesma linha de reflexão de Klineberg, o antropólogo Charles


Wagley se indagava sobre a especificidade da realidade baiana quanto ao
quadro de tensões raciais. Wagley era um dos coordenadores do convênio
Universidade de Columbia/Estado da Bahia. Tratava-se de um projeto
idealizado por Anísio Teixeira, então secretário estadual de Educação e
Saúde, na gestão de Otávio Mangabeira (1947-1951), para conhecer a
vida social de três comunidades rurais próximas a Salvador, com o obje-
tivo de colher subsídios para o desenvolvimento de futuras políticas pú-
blicas de modernização dessas áreas (Wagley, Azevedo & Costa Pinto,
1950). Nesse sentido, conforme Wagley, o “projeto Unesco” deveria in-
vestigar outras situações como as do Rio de Janeiro e São Paulo. Charles
Wagley foi incorporado ao novo projeto da Unesco e sugeriu a inclusão
do estudo da cidade de Salvador, que ficou sob a responsabilidade do
meédico-antropólogo Thales de Azevedo.”
O sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto também se posicionou pela
ampliação do projeto da Unesco. Foi um dos participantes do debate acerca
do estatuto científico do conceito de raça que resultou na 1º Declaração
sobre Raça chancelada pela Unesco (maio de 1950). Em correspondência
com Alfred Métraux, manifestou o interesse de que a Unesco e o Depar-
tamento de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia, vinculado
a então Universidade do Brasil (atual UFRJ), chegassem a um acordo no
Ciência, Política e Relações Internacionais

na região. Nessas comunidades, nas quais vive um expressivo número de


negros e pardos, haveria uma enorme distância social entre brancos e não-
brancos e uma limitada mobilidade social. As análises histórico-socio-
lógicas realizadas no Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro), região que sofreu
intenso processo de modernização e a presença maciça de imigrantes, evi-
denciaram um racismo mais visível em relação aos negros e mestiços.

Conclusão

Ão se analisar a recepção de dois projetos patrocinados pela Unesco,


procurou-se escapar da dicotomia êxito vs fracasso. A proposta de criação
de um centro de pesquisas internacional de excelência na região N orte
do Brasil colocou a Amazônia na agenda política e científica nacional
no pós-guerra. Apreensões de organizações intergovernamentais em face
dos resultados da Segunda Guerra Mundial, apostas desenvolvimen-
Listas, apelos nacionalistas e ditames da Guerra Fria transformaram o
espaço amazônico num pólo de atração em distintos planos. Os afazeres
científicos não seriam mais vistos apenas como instrumentos de civili-
zação, assumiriam funções estratégicas nas esferas do desenvolvimento
econômico e do planejamento.
Nos primórdios da Unesco, uma intelligentsia universalista (Julian
Huxley, Joseph Needham) alça a diversidade natural amazônica à con-
clição de bem coletivo no quadro dos efeitos da Segunda Guerra. A ciência.
liderada pela comunidade científica internacional, sob os fantasmas de
Hiroshima e Nagasaki, poderia, em outro momento, vir a transformar a
Amazônia numa fonte incalculável de conhecimento e de riquezas para
E superação de diversos males sociais, especialmente nas zonas peri-
féricas. Paralelamente, a iniciativa de transformar a Hiléia em
da humanidade” deparou-se com visões, no plano nacional, que preten-
diam superar o saber fragmentado em matéria amazônica, procurando
conhecê-la em seu conjunto, por meio da ciência, na esperança de desen-
volver a Hiléia e, desse modo, inseri-la no concerto das regiões modernas.
indo além, essas interpretações da Amazônia, esse imaginário social inspi-
rado em Euclides da Cunha, vinham associadas ao debate sobre o papel
da ciência no pós-guerra e, em especial, à centralidade conferida pela
coletividade dos cientistas no Brasil -- à semelhança das comunidades
cientificas dos países centrais — à ciência básica como principal funda-
mento para a formulação de qualquer projeto consistente de desenvolvi-
1672
Demandas globais, respostas locais

mento. As tensões entre desígnio global e tradução local estiveram pre-


sentes em diversos momentos da trajetória da proposta do Instituto da
Hiléia e, subsequentemente, na criação do criação do Instituto Nacional
de Pesquisas Amazônicas (Inpa).
O “Projeto Unesco de Relações Raciais”, por sua vez, desenvolvido
no inicio da década de 1950, tornou-se um marco na história das ciên-
cias sociais no Brasil. O ciclo de pesquisas ofereceu novos diagnósticos
sobre o país, apresentando uma forte correlação entre cor/raça e status
socioeconômico. Além disso, enfocou as tensões entre tradição e
modernidade, as disputas entre a antropologia e a sociologia, a relação
entre intelectuais e vida pública. Desse modo, o projeto Unesco permite
tanto a analise do processo de institucionalização das ciências sociais
no Brasil quanto a revelação, mais uma vez, da busca permanente e sem-
pre inacabada de interpretar a sociedade brasileira.
Em suma, na origem da pesquisa da Unesco ocorreu um “processo
antropofágico”. Uma instituição internacional, criada logo após o Holo-
causto, momento de profunda crise da civilização ocidental, procurou,
na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com reduzida taxa de
tensões etnico-raciais, com a perspectiva de tornar universal o que se
acreditava ser particular. Por sua vez, cientistas sociais brasileiros e estran-
geiros haviam assumido como desafio intelectual não apenas tornar in-
teligível o cenário racial brasileiro, mas também responder à recorrente
questão da incorporação de determinados segmentos sociais à moder-
nidade. Enfim, uma suposta visão idílica, um propalado ethos nacional, é
transformado em problema nacional (desigualdades sócio-raciais, desafio
da integração de segmentos excluídos).
Tanto a proposta do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica quanto
o Frojeto Unesco de Relações Raciais” revelam aspectos distintos da
formulação e recepção de demandas globais em contextos locais, tema
que contribui para o atual debate acerca da circulação de idéias, proje-
tos e políticas em agências e fóruns internacionais e as interseções no
plano nacional.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

* Este artigo é resultado da pesquisa “A Unesco e o desenvolvimento da ciência no Brasil”, que


recebeu apoio do CNPa.
* A versão mais recente da idéia de fracasso do projeto IIHA encontra-se em Petitjean &
Domingues (2000).
» Unesco/C/Prog. Com./S.C.Nat.Sci./V.R.1, p.4-5 (Arquivo Unesco).
* Unesco/C/Prog. Com./S.C.Nat.Sci./V.R.2, p.10-11 (Arquivo Unesco).
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º Carta de Paulo Carneiro a Julian Huxley, 16 abr. 1947, p.2-3, REG 330.19 (8) A 01 IIHA, Parte
1 até 31/XI[/1947 (Caixa 166, pasta 1, Arquivo Unesco).
? Unesco/CO/Cons.Exec./23 Sess./S.R.5/1947 (rev.), 7.5.1947, p. 13-4 (Arquivo Unesco); Huxley,
Julian. Memorandum on Question of Special Consultant from Brazil for the Hylean Amazon
Project, 25 abr. 1947; carta de Huxley a Paulo Carneiro, 12 maio 1947, em REG 330.19(8) A 01
HA, Parte 1 até 31 dez. 1947 (Caixa 166, pasta 1, Arquivo Unesco).
º Memorandum of Instructions to dr. Corner for guidance at the Meeting of the Belem
Commission, inciuding Notes on the Agenda, 30 jul. 1947, em REG 330.19 (8) À 01 UHA,
Parte 1 ate 51 dez. 1947 (Caixa 166, pasta 1, Arquivo Unesco).
“4 Ao fórum de Belém vieram representantes do Museu Nacional, da Escola Nacional de Agro-
nomia, do Museu Paulista, do Instituto Agronômico do Norte, do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE) e do Instituto Nacional de Tecnologia. Participaram os seguintes
paises: Bolivia, Brasil, Colômbia, Equador, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Peru e
Venezuela. Além da Unesco, estiveram presentes as seguintes instituições internacionais: Or-
ganização Mundial de Saude (OMS); Instituto Interamericano de Agricultura (1AIA); Organi-
zação para Alimentação e Agricultura (FAO); Repartição Sanitária Pan-Americana (PASB) e
União Pan-Americana (PAU). General Conference, Second Session, Report Presented by the
International Commission for the International Hylean Institute, Paris, 26 set. 1947, 2C/18,
p.1-3 (Arquivo Unesco).
'* Projeto do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica - Relatório da Comissão Científica
Internacional reunida em Belém de 12 a 18 ago. 1947, p.16-34, em Correspondência/Diversos
no Exterior/ Unesco (Delegação Brasileira)/Oficios (recebidos)/1947-1948/AHI — 80/4/01.
!3 Carta de Corner a Purnell, 3 set. 1947, p.2, em REG 330.19 (8) A 01, IIHA, Parte 1 até 31 dez.
1947 (Caixa 166, pasta 1, Arquivo Unesco).
!4 Dos 32 Estados-membros da Unesco no final de 1947, por ocasião da 2º Sessão da Conferên-
cia Geral da Unesco, doze eram latino-americanos, ou seja, mais de um terço da composição
da instituição intergovernamental (Director General Activities 1997-1998. Paris, 1998, Arqui-
vo Unesco).
2 Carta de Huxley a Laves, 22 set. 1947, em REG 330.19 (8) A 01, HA, Parte 1 até 31 dez.
1947 (Caixa 160, pasta 1, Arquivos da Unesco); carta de Malina e Purnell a Needham, 1 set.
1947; carta de Corner a Purnell, 3 set. 1947, p.4; carta de Huxley a Leland, 18 set. 1947, p.3;
carta de Huxley a Laves, 22 set. 1947, em REG 330.19 (8) A 04 IHA, Parte 1 até 31 dez. 1947
(Caixa 166, pasta 1); Cons. Sess./Sr 2 (ver.), 15/91947, p.4 (Arquivo Unesco); Gene-
Vemandas globais, respostas locais

ra Second Session, Report Presented by the International Commission for the


qHyleanInstitute,Paris,26set.1947,2C/18,20p.;Unesco,GeneralConference
E SORA! Sei International Hylean Amazon Institute, “suggestion presented to o
Board by Paulo E. de Berredo Carneiro, Mexico City, 20/99, 8 nov. 1947; Unesco
Board, Fourth Session, Cons. Exec./4e Sess./SR/7, p.9:12; Cons. Exec,/e Ses /SR/7
ni o nov. 1947; Unesco, General Conference, Second Session, Working Party L - Natural
2C/LISR4,15nov.1947,p.2-10;RecordsoftheGeneralConferenceoftheUnesco
Session, Mexico, 1947, v. 1, Proceedings. Paris, Unesco, 1949, p.417-20, 525.30 (AL
quivo Unesco).

am 9 ano de 1947, os EUA foram responsáveis por 44,03% do orçamento da Unesco. No

evogicacomoprojetoILHA,osnorte-americanostinhamsobsuaresponsabildadequase
ano ce 1088, Ea cifra passou a ser de 41,88%. Ou seja, nos anos em que a Unesco esteve raio

metade Ho orçamento da agência intergovernamental (Archibald, 1993),

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+ Gaita de Corner a Paulo Carneiro, 28 maio 1947, Fundo Família Carneiro, DAD/COC Fiocruz

r0o ,raa
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89equatorianoAnibalBuitróneogeógrafonorte-americanoEdwinDoran;2)umestudedo
do empreendido em Gurupá (Pará) pelo antropólogo norte-americano Charles

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i doMuseuNaco
i naE
,l duardoGavlãoE
.e
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tou-sea
tmbémumapes.
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o e a n a p r e s e n t a d o à l a Te r c e r a C o n f e r e n c i a G e n e r a l d e l a U n e s c o , 2 0 . o u t d o s
aa em RES o (8) a 01 HHA, part. Hb (Caixa 167, pasta 2, Arquivo Unesco)

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oo a Eu Fernandes, 26 dez. 1947, Fundo Família Cameiro, DAD/COC/Fiocruz,
o O R E a P u r n e l l , 1 9 n o v. 1 9 4 7 ; c a r t a d e C o r n e r a P u r n e l l , 1 9 d e z . 1 9 4 7 e m R E G

Work, em REG 330.19 (8) A 0 HA, Parte 31 dez, 1947 (Caixa 166
pasta t, Arquivo Unesco).

o A d o p t e d b y ! t h e G e n e r a l C o n f e r e n c e d u r i n g i t s S e c o n d S e s s i o n . M é x i c o , n o v. -
dez.1947.Paris,Unesco,abr.1948,p.25(ArquivoUnesco),
— of the General Conference of the United Nations Educational, Scientific and Cultu-
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102. Part I (Box REG 146, Arquivo Unesco).

e Programme of Unesco Proposed by the Executive Board, Part Il- Draft Resolutions for
1951. Paris, 1950, p-40 (Arquivo Unesco),

x pie Piu Famosa Clemente Mariani, 14/10/1949, Coleção Arthur Ramos, 1:35, 17,
248º, Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional

* Courier, v. II, sept. 1949, p. 28.

o General Conference —Sth Session, Florence, 1950, Records, Proceedings, nov. 1950, v. 45,
P.381-382 (Arquivo Unesco).

a the General Conference of Unesco, Fifth Session, Florence, 1950, Resolutions.


Paris, jul. 1950, p. 40 (Arquivo Unesco).

me de Charles Wagley a Ruy Coelho, 6 set. 1950, Pp. 2; carta de Ruy Coelho a Charles
Wagley, 27 jul. 1950, p2. REG 323.1. Part oi up to31 jul. 1950 (Caixa 145, Arquivo Unesco)
Ciência, Política e Relações Internacionais

“* Carta de Luiz de Aguiar Costa Pinto a Alfred Métraux, 31 jul. 1950, p.1. REG file 323.12 A
102. Part | (Caixa 146, Arquivo Unesco).
o Carta de Roger Bastide a Alfred Métraux, 13 maio 1950; carta de Alfred Métraux a Roger
Dastide, 18 ago. 1950; carta de Roger Bastide a Alfred Métraux, 9 set. 1950. REG 323 1. Part TI
up to 31 Jul. 1950 (Caixa 145, Arquivo Unesco).

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Ciência, Política e Relações Internacionais

amenas o cisma que as originou e por produzir híbridos com o objetivo


de conciliar esses pares de opostos.
tentando agregar, ao aspecto estrutural e sincrônico da análise, uma
perspectiva histórica e diacrônica, seguimos, tanto quanto possível, uma
ordem cronológica, traçando um panorama da formação dos universos
político e científico, dentro dos quais transitaram Paulo Carneiro e Carlos
Chagas Filho. Privilegiamos o impacto das duas guerras mundiais e da
criação do sistema de organizações internacionais que lhes sucedeu,
momento em que as conferências internacionais sobre a ciência tiveram
papel central.

Q artigo culmina na análise das biografias de Carneiro e Chagas Fi-


lho, enfocando as estratégias que adotaram ao longo de suas vidas, no
transladar entre a ciência e a política. Suas biografias constituem objeto
de interesse, uma vez que possibilitam a compreensão de algumas das
especificidades históricas que condicionaram o surgimento deste debate
no contexto brasileiro e dos reflexos que tiveram na forma de conceber o
d e s e n v o l v i m e n t o c i e n t í fi c o n a c i o n a l

Ciência e política: a gênese

oe a constituição moderna inventa uma separação entre poder


científico encarregado de representar as coisas e o poder político
encarregado de representar os sujeitos, não devemos tirar disto a
conclusão de que os sujeitos estão longe das coisas.
(Latour, 1994: 35)

Alguns autores que estudaram recentemente a emergência do nacio-


nalismo atribuem papel preponderante ao aparecimento de uma
intelligentsia laica para a formação do Estado-Nação. Situam o surgimento
da idéia de nação no século XVIII, como decorrência do processo de ex-
pansão da sociedade capitalista e de consolidação do Estado moderno
como forma hegemônica de organização das comunidades políticas.
Grande importância é também conferida nesse processo ao surgimento
da esfera pública, como mostrou Habermas (1984).
Por sua vez, alguns historiadores da ciência costumam estabelecer a
epoca desde o fim da Idade Média até o século XVII como o período em
que a ciência experimental vai progressivamente sendo institucionalizada
Noções de ciência internacional e nacional

e O conhecimento cientifico se emancipando da matriz de crenças de tradi-


ção aristotélico-tomista. De fato, durante o século XVII assistiu-se a uma
grande busca no sentido de melhor delimitar o campo científico, distin-
guindo mais claramente a ciência da não-ciência (ou da pseudociência).
OQ modelo cognitivo formulado por Descartes, ainda no século XVIL
sobre o qual se assenta a ciência moderna, ao separar a ciência da filoso-
fia, contrariou frontalmente a proposta helênica de um saber uno. Pro-
cessou-se, assim, uma crescente compartimentação do conhecimento
em áreas, deixando a unidade a cargo de um estrito modelo de racio-
nalidade a ser partilhado por todos os ramos do conhecimento sobre o
mundo natural, o que garantiria, por si só, os nexos entre as diversas
dimensões do saber. O progressivo enrijecimento dos critérios de
cientificidade findou por expurgar, do campo científico, não só dogma-
tismos, mas também formas não-sistemaáticas de conhecimento, atribu-
indo crescente prestigio ao método experimental, que passou a ter nas
ciências físicas seu modelo inspirador (Elias, 1982).
A consolidação da hegemonia deste discurso sobre a aquisição e trans-
missão do conhecimento contribuiu para a emancipação do “campo cien-
tifico” (Bourdieu, 1994) e acarretou o surgimento da comunidade científica
como um grupo de agentes interessados portadores de um ethos próprio.
Este foi sintetizado por Merton em 1973, e seus elementos constitutivos
(universalismo, comunismo como sentimento de solidariedade comuni-
taria, ceticismo organizado e desinteresse) expressam, ainda hoje, a auto-
imagem de muitos membros dessa comunidade.
Desde sua gênese, as noções de ciência e nação tiveram referenciais
distintos. Enquanto os princípios da nacionalidade recorreram ao parti-
cularismo e a fabricação de crenças em mitos fundadores, tidos como
“laços primordiais” ou “princípios formadores” das identidades nacio-
nais, o ethos da ciência se fundamentou no universalismo, no desinteresse
e no ceticismo com relação à verdade do conhecimento estabelecido.
O processo pelo quali se legitimou a supervalorização da racionalidade
buscou reservar a ciência uma esfera autônoma — o pensamento racional +,
assegurando seu isolamento e, assim, protegendo-a da “influência espú-
ria” das demais formas de pensamento. Mas o artifício da separação
desta esfera da razão contribuiu para o surgimento de uma outra, oposta,
a das “humanidades”, na qual se incluiram não só a possibilidade do
erro mas também a dimensão dos valores. Dessa divisão derivou a sepa-
ração dos conceitos modernos de ciência e política, um correspondendo
Ciência, Política e Relações Internacionais

ao mundo da “razão pura” e o outro ao universo das “práticas”. Conce-


beu-se, então, a ciência como forma de internalizar a lógica dos objetos e
a politica como forma de externalizar as aspirações dos sujeitos. Ao
mundo externo não corresponderia o mundo interno e ao saber não es-
tariam associados valores.

O particularismo na ciência

Embora possamos aceitar que existam aspectos teóricos e pro-


fissionais de uma ciência universal e que essa ciência universal
produza conhecimento que lhe é “interno”, existem muitas formas
pelas quais a ciência não é apenas afetada pelo contexto envolvente
ou externo, mas também transborda diretamente para esse contexto.
(Iambiah, 1995: 143)

A consolidação da ciência e o surgimento do conceito de nação em um


mesmo contexto social geraram conflito no interior de um mesmo grupo
de atores sociais — os intelectuais -, que se viram divididos entre lealda-
des a dois tipos distintos de “comunidades”. Surgem duas perspectivas
principais quanto à forma de interpretação do caráter da ciência e de seu
papel social: uma visão internacionalista e uma visão nacionalista
Até 0 século XIX, há a idéia de que o conhecimento científico é, por
princípio, internacional. Lembram Rose & Rose (1970: 179) que, iá no
fim do século XVIII “o sentimento de que o cientista estava acima das
nacionais não poderia sobreviver à crescente integração da
ciência na estrutura total das sociedades individuais”. Cómo conse-
quência, formas explícitas e institucionalizadas de relacionamento entre
os cientistas passaram a ser necessárias.
Petitjean mostra como na virada para o século XX começaram a ser
nos países europeus, organismos formalmente estruturados para
estabelecer “relações intelectuais” com a função de

organizar os intercâmbios científicos, para tirar proveito mais rapida-


mente dos últimos progressos das ciências e de suas aplicações, e isso
diz respeito, antes de tudo, às relações entre metrópoles: tecer redes de
aliados políticos a partir de uma influência cultural e política, tanto como
meio de penetração econômica, como para ter o apoio desses aliados
nos enfrentamentos das grandes potências. (Petitjean, 1996: 91)
Noções de ciência internacional e nacional

O estabelecimento dessas teias de relações e, na percepção do autor, a


gênese do que se poderia conceituar como “uma diplomacia da ciência”.
F o i s o b r e t u d o a p a r t i r d a P r i m e i r a G u e r r a q u e fi c o u m a i s e v i d e n t e a
relação entre o conhecimento científico e a capacitação tecnológica, o
que tornou a atividade cientifica objeto de atenção do Estado. Essa pre-
ocupação fez com que a atividade cientifica passasse a ser um tema das
relações internacionais, expresso não somente no crescimento do núme-
ro de associações cientificas dissociadas do Estado, mas também na
criação dos primeiros instrumentos intergovernamentais de relaciona-
mento entre cientistas?
O tema da ciência nacional se torna especialmente crítico durante a
Segunda Guerra, quando a ciência passa a ser reconhecida como parte
do discurso politico. Intensificam-se também as discussões a respeito
do planejamento cientifico, que têm seu ápice na década de 1970, quando
se verifica a célebre polêmica entre Polaniy (1968) e Bernal (1971).
Um outro e importante aspecto a ser lembrado, no caso do relaciona-
mento entre ciência e nacionalidade, é a formação dos intelectuais nacio-
nalistas nas sedes das metrópoles coloniais, onde principalmente aqueles
dedicados às ciências exatas e naturais incorporam o ethos científico, que
muitas vezes se contrapõe aos princípios constitutivos das lealdades nacio-
nais (Morazé et al. 1979). Mas nas ciências sociais, que muitas vezes atuam
como coadjuvantes privilegiados da produção dos discursos nacionalis-
tas, as tensões parecem ser de outra ordem: caso clássico seria o da dis-
tinção entre a política e a ciência como vocação, em Weber (1970).
Progressivamente consolida-se a ideia de uma ciência nacional, vin-
culada à proposta de formação de uma “massa critica” de cientistas
capazes de romper com a dependência em relação a metrópole ou ven-
cer as barreiras da dependência colonial, ou do subdesenvolvimento, atra-
ves da produção de uma tecnologia autóctone. Trata-se sem dúvida de
um projeto político (Dedijer, 1968; Price, 1963), mas, nos países perife-
ricos, a bandeira do nacionalismo na ciência apresenta-se, na maioria
das vezes, apenas como um projeto de reprodução das trajetórias e dos
“modelos de desenvolvimento” dos paises centrais.
Dentro dessa perspectiva, a questão do desenvolvimento científico
Iinscreveu-se no centro das percepções “epocalistas” dos movimentos
nacionalistas, ou seja, nas tentativas de conciliação da tradição com a
modernidade, já que o pleno desenvolvimento científico seria uma
precondição para que as antigas colônias pudessem integrar, em igual-
Ciência, Política e Relações Internacionais

dade de condições, os demais países no “mundo das nações” (Geertz,


19/5). Constrói-se, consequentemente, uma associação entre o domínio
do conhecimento científico e a soberania nacional, com implicações
multiplas. Muitas expressões são encontradas no discurso das comuni-
dades cientificas emergentes para traduzir essa associação: ciência
engajada vs ciência alienada ou ciência nacional, ligada à soberania, vs
ciência internacional, destituída desse tipo de compromisso.
A concepção de que a ciência deveria ser liberada de “comprometi-
mentos” de ordem política e vista como algo que se sobrepunha às no-
ções de pátria e nação exigiu que os agentes estabelecessem uma clara
distinção entre a ciência pura, ciência pela ciência, e a ciência aplicada,
passível de servir ao interesses nacionais. A criação do conceito de ciên-
cia aplicada, um conceito híbrido, permite preservar a idéia da existência
de uma ciência pura, assim como estabelecer uma via de interlocução
entre a ciência e a política, entre o “mundo do conhecimento” e o “mundo
das práticas”.

O universalismo na política

Dizer que há condições sociais para a produção da verdade sig-


nifica dizer que há uma política da verdade, uma ação de todos os
instantes para defender e melhorar o funcionamento dos universos
sociais onde se exercem os princípios racionais e onde se gera a
verdade.
(Bourdieu, 1990: 46)

Depois de vermos os aspectos da ciência que são condicionados por


seu carater nacional, resta-nos examinar mais detidamente os processos
pelos quais nos últimos cingiienta anos se consolidou a dimensão poliíti-
ca da vida internacional que buscou conciliar as diversas visões nacio-
nais sobre a ciência e, simultaneamente, restabelecer o universalismo
cientifico.

Na medida em que se ampliaram as distâncias entre os níveis de


desenvolvimento científico dos diferentes Estados, a ciência precisou
ser objeto de um processo de “reuniversalização”, encontrando nos
organismos internacionais um campo privilegiado onde, desde então,
se travam lutas entre distintos grupos de agentes que pretendem legi-
timar universalmente as suas concepções, seja pela afirmação da crença
Noções de ciência internacional e nacional

no seu valor intrinseco ou por uma orientação pragmática ligada aos


interesses nacionais.

Em que medida as organizações internacionais estão sendo capazes


de oferecer tempos, lugares e um espaço de relações que viabilizem trans-
formações nas maneiras de conceber o “fazer ciência”?
Como em outras esferas da vida social, categorias e mesmo discipli-
nas são criadas para pensar contradições. O caso da ciência não foi uma
exceção: a moderna sociologia do conhecimento ocupou o espaço ne-
cessário para criar um vinculo entre o pólo da concepção do conheci-
mento como atividade neutra e destacada do mundo dos homens e o
outro extremo, que preconizava a fusão e a redução total de todas as
formas de conhecimento a um único paradigma, derivado do jogo de
poder politico e econômico. Se o problema teórico da sociologia do conhe-
cimento foi estabelecer como o conhecimento tem sido gerado, de fato,
condicionado, em seu conteúdo e em suas condições de produção, pelos
diversos contextos sociais, coube à antropologia problematizar a pró-
pria separação entre o conhecimento e o seu contexto social, resgatando
os espaços, tempos e relações por meio dos quais esses conhecimentos
são culturalmente naturalizados.

A antropologia mostra que os procedimentos de imposição de deter-


minados conceitos que pretendem se consolidar como princípios uni-
versais tendem a naturalizar seus pressupostos através de processos de
longa duração que, muitas vezes, adotam características rituais. Para
lambiah (1985), o ritual é um sistema de comunicação simbolicamente
estabelecido, que tem seu conteúdo fundado em determinados cons-
trutos cosmológicos.
Em recente trabalho (Goes Filho, 2003), procuramos demonstrar que,
no ambito das organizações internacionais e das Nações Unidas em
particular, as Assembléias Regulares e principalmente as conferências
especificas, como as Conferências Mundiais sobre Ciências, vêm-se cons-
tituindo como momentos fundamentais na reconfiguração de antigos
temas e na instituição de novos conceitos.
lustraremos brevemente como se vem dando o processo de configu-
ração de principios “universais” relativos à ciência, por meio da análise
de eventos políticos que tiveram lugar em três situações distintas: “The UN
Conference on the Application of Science and Technology for the Benefit of
Less Developed Areas”, ocorrida em Genebra em 1963; “The UN
Conference on Science and Technology for Development”, que ocorreu
Ciência, Política e Relações Internacionais

em Viena em 1979, e “The World Conference on Science”, realizada em


Budapeste, pela Unesco, em 2000.
Como demonstra Maio (1997), a Unesco surge, seguindo os propósi-
tos da Organização das Nações Unidas (ONU), como uma agência inter-
nacional com o objetivo de conciliar os interesses divergentes dos diver-
sos Estados membros, em que se almeja gerar o universal a partir da
multiplicidade de interesses particulares. Para o primeiro diretor geral
da organização, Sir Julian Huxley,” a agência deveria adotar uma concep-
ção que procurasse associar o progresso ao humanismo, informado pela
ciência. À plataforma de Huxley, derrotada pelos interesses dos Estados,

contemplava os esforços dos seres humanos na direção de uma socia-


bilidade que primasse pela cooperação. Julian Huxley concebia a Unesco
como um fórum privilegiado para a atuação dos cientistas das diversas
areas, dos intelectuais em geral e das organizações não-governamentais,
a partir de uma agenda variada que estivesse norteada pela perspectiva
de “o mundo como um só”. (apud Maio, 1997: 19 - grifos nossos)

Essa percepção ainda prevalece nas primeiras conferências sobre


ciência, no âmbito da ONU, particularmente na de Genebra, pressupon-
do uma hierarquia “natural” entre as nações. Nessa ocasião, havia uma
visão segundo a qual o desenvolvimento das nações, sobretudo o eco-
nômico, estaria inteiramente condicionado pelo desenvolvimento cientí-
fico e tecnológico. Dessa maneira, existiria um único caminho para O
progresso, que os chamados países em desenvolvimento, ou subde-
senvolvidos, deveriam aprender, sem questionamentos, com os mais avan-
çados. Naquela oportunidade, o conferencista argentino Bernardo A.
Houssay expressou bem esta visão em seu pronunciamento:

Ciência e tecnologia são nos dias de hoje a chave para o progresso de


qualquer nação, por delas dependerem sua saúde, produção industrial e
agricola, bem-estar e riqueza, desenvolvimento cultural, colocação e pres-
tígio, poder e mesmo a sua independência. (...) Os países subdesenvol-
vidos estão compelidos a escolher entre dois caminhos — ciência e pobreza.
(UN, 1963: 26)

Essa percepção coincidia com a de outro diretor geral da Unesco,


jaime lorres Bodet, que afirmou que o sucesso desta dependeria da su-
peração do atraso ao qual estavam submetidos os países em desen-
Noções de ciância internacional e nacional

volvimento (Maio, 1997). Essa visão era certamente idealista, como mos-
trou Cooper ao criticar a Conferência de Genebra:

Tudo isto contribuiu para um sentimento de um ingênuo otimismo, pelo


menos entre os advogados da ciência & tecnologia. Não só isto tornou
facilintroduzir a ciência e a tecnologia nos países subdesenvolvidos, mas
era também óbvio, ou parecia na época, que um pouco mais de ciência e
tecnologia iria abrir uma ampla perspectiva de novas possibilidades de
produção.

Ounico problema difícil de resolver era de ordem tecnocrática: como


decidir quais tipos de atividade seriam prováveis de ter um alto bene-
ficio social quando não havia maneira de medir os seus resultados em
termos econômicos. (Cooper, 1973: 1-2)

Havia a consciência de que a mera vontade política de superar os obstá-


culos para o desenvolvimento pela adoção de ciência e tecnologia consti-
tuia-se em condição necessária, mas não suficiente para obter progresso
econômico. Passou-se então a perceber que a relação entre ciência, tecnologia
e desenvolvimento não é linear, nem a disposição para “transferir tecno-
logia” é um desiderato universal. O próprio Carlos Chagas Filho reconhe-
cia essa dificuldade e explicitou essa preocupação em sua biografia:

Foi nessa ocasião, em Genebra, que conheci de perto o que é a difi-


culdade de convivência de homens de opiniões e raças diferentes, mui-
tas vezes obcecados por filosofias políticas e até mesmo religiosas que
os tornam inimigos intratáveis. Vi também que se os homens têm esse
comportamento indesejável, o mesmo se pode observar entre as na-
ções, pois uma das maiores dificuldades que tive durante todo o traba-
lho foi o de tentar harmonizar as potências que se julgavam prejudica-
das por decisões que eu havia tomado e que eram impostas pelas cir-
cunstâncias. (Chagas Filho, 2000: 152-153)

A solução encontrada para superar o impasse foi a de progressivamente


enfatizar a noção de cooperação técnica em detrimento da de assistência
técnica, que prevalecera até 1959 (Plonsky, s.d.: 7). Passou-se, então, a
pensar em termos de um diálogo entre os chamados países desenvolvi-
dos e os países em desenvolvimento, desconstruindo-se a idéia de uma
via de mão única, onde caberia aos primeiros o papel de provedores e aos
Ultimos, o de meros absorvedores de conhecimento em bases concessionais.
Ciência, Política e Relações internacionais

A Conferência de Viena (1979) consagrou a noção de cooperação in-


ternacional: buscou-se enfatizar a crescente interdependência entre as
nações, bem como suas consequências. Na ocasião, foram discutidos os
impactos socioeconômicos da implementação de novas tecnologias, ainda
vistas como resultado da atividade cientifica, nos países em desenvolvi-
mento. Ao mesmo tempo em que se aumentava a pregação da interde-
pendência mundial, crescia a preocupação com o desenvolvimento de
tecnologias autóctones por parte dos países periféricos. As discussões
demonstraram uma crescente preocupação com a disparidade que carac-
terizava as relações entre os chamados países em desenvolvimento e os
países desenvolvidos (UN, 19/79).
Contudo, o paradigma no qual se baseou a Conferência de Viena pre-
cisava de ajustes para dar conta da realidade, a medida que esta se tor-
nava mais complexa. A multiplicação das organizações não-governa-
mentais, bem como o crescimento do número de corporações transna-
cionais, trouxe para a discussão uma série de agentes cujas referências
não eram necessariamente as fronteiras nacionais. As discussões inter-
nacionais adquirem uma maior capilaridade social. O surgimento de
novos recortes, que se sobrepõem, sem contudo anular os já existentes,
implicou o surgimento de uma nova forma de se gerar o universal e
conceber o papel da ciência.
Durante a Conferência de Budapeste (2000), as preocupações com o
meio ambiente, que ja haviam sido demonstradas nas demais conferên-
clas, aparecem envolvidas na linguagem do desenvolvimento sustentável,
assim como os direitos dos individuos inscrevem-se no âmbito das pre-
ocupações com os direitos humanos. Essas são questões que adquirem
crescente centralidade mesmo em conferências temáticas relacionadas
ao desenvolvimento científico. Embora o paradigma da interdepen-
dência, sobre o qual se baseou a Conferência de Viena, permaneça vi-
sente, dá-se em Budapeste mais ênfase à interdependência entre indivi-
duos do que entre nações. lalvez isso se deva ao fato de esta ter sido a
primeira grande conferência sobre ciência posterior à Guerra Fria, quando
o pensamento liberal já se constituía em pensamento hegemônico. Além
disso, a conferência foi convocada não apenas pela Unesco, mas tam-
bem pelo International Council for Scientific Unions (ICSU), hoje uma
organização não-governamental chamada International Council for
Science, fato que deu ao evento um caráter “híbrido” inédito em reu-
niões dessa natureza (Unesco, 2000).
Noções de ciência internacional e nacional

Ressurgem no debate internacional questões como ciência e ética, o


restabelecimento das relações entre as diversas formas de conhecimento
— renomeado como multidisciplinaridade -, a inserção da ciência na socie-
dade e o papel das ciências sociais. A Conferência de Budapeste oferece
um campo para o ressurgimento de uma velha luta entre novos agentes
(funcionários, organizações não-governamentais e especialistas) em um
novo espaço no qual o Estado e a Nação perdem importância, mas ainda
desempenham um papel central (Unesco, 2000).
De fato, a criação das grandes conferências sobre ciência significou o
surgimento de uma instância da política internacional que pretensamente
privilegia o ideário universalista do avanço da humanidade pela ciência
em detrimento dos interesses dos Estados Nacionais. A política, que po-
deria ser definida modernamente como disputa de interesses, cria, atra-
vês desta brecha conceitual, um espaço onde se permitem incorporar os
valores da ciência.

Entre a política e a ciência: uma ciência nacional de


padrão internacional

Us eventos biográficos se definem tanto como locais quanto


como deslocamentos no espaço social, ou seja, mais precisamente,
como os diferentes estados que se sucedem na estrutura da distri-
buição das distintas espécies de capital social que estão em jogo
dentro do campo em consideração.
(Bourdieu, 1994: 88).

Ão tratarmos das relações entre o pensamento científico e as concep-


ções de identidade nacional, enfocamos a oposição entre um pretendido
universalismo e ceticismo científico com respeito à verdade do conheci-
mento estabelecido e a gênese dos princípios de nacionalidade, que se
i d e n t i fi c a m c o m o p a r t i c u l a r i s m o , c o m o “ i n t e r e s s e n a c i o n a l ” e c o m a
afirmação da singularidade. Observamos que essa é uma relação tensa,
mas hã outra igualmente reveladora da tentativa de conciliação entre
discursos de diferentes estatutos: a que busca amalgamar ciência e
humanismo.

Como visto, a evolução dos movimentos nacionalistas, particular-


mente nas antigas colônias, foi profundamente marcada pela presença de
intelectuais que, operando em diversos campos, tiveram um papel fun-
Ciência, Política e Relações Internacionais

damental na construção da idéia de nação. A progressiva consolidação


do conhecimento científico como forma hegemônica de percepção da
realidade e os notáveis avanços produzidos pela tecnologia no período
de expansão do capitalismo, no século XIX (Hobsbawm, 1977, 1988),
colocam a ciência e o domínio da tecnologia no cerne das preocupações
dos atores interessados na criação das nações, não só no Ocidente euro-
peu, mas também naquelas que estavam emergindo no processo de
descolonização.
No Brasil o desenvolvimento das ideologias científicas e os diferentes
projetos de nação são contemporâneos. Outra especificidade do caso
brasileiro reside no fato de que a relação entre ciência nacional e ciência
internacional nunca deixou de estar no âmago do debate, muitas vezes
de forma acirrada, fator que contribuiu para que a preocupação em es-
tabelecer um elo entre ciência e humanismo permanecesse como uma
aspiração de alguns eminentes cientistas brasileiros, sobretudo aqueles
de maior projeção internacional. A adesão aos valores universalistas da
ciência, traduzidos na expressão “uma ciência nacional de padrão inter-
nacional”, cunhada por Carlos Chagas Filho, talvez possa ser interpre-
tada como um possivel projeto para uma ciência brasileira pautada por
valores universalizantes e que pudessem se traduzir em benefícios para
a nação,
agora da atuação na política científica internacional de
dois grandes brasileiros, intelectuais, homens de ciência e de política,
representantes do que hoje se chama diplomacia da ciência: Paulo Car-
neiro e Carlos Chagas Filho. O estudo desses personagens nos oferece
um ângulo privilegiado para a observação das inter-relações entre polí-
tica e ciência, tanto na esfera nacional como na internacional. Confor-
me nos mostrou Elias (1996), a trajetória de vida de determinados indiví-
duos evidencia aspectos fundamentais da cultura, da sociedade e do
momento histórico em que viveram. Cabe ao cientista social buscar tais
aspectos sem incorrer em um reducionismo que acabe por condicionar
Os aspectos macroestruturais à singularidade de uma trajetória.

Para Franco Ferrarotti (1983), por exemplo, cada vida pode ser vis-
ta como sendo, ao mesmo tempo, singular e universal, expressão da
história pessoal e social, representativa de seu tempo, seu lugar, seu
grupo, sintese da tensão entre liberdade individual e o condiciona-
mento dos contextos estruturais. (apud Goldemberg, 2001)
Noções de ciência internacional e nacional

As trajetórias de Carneiro e Chagas têm numerosos pontos em co-


mum que ilustram, de forma exemplar, os conflitos e tensões mencio-
nados anteriormente. O primeiro desses pontos refere-se à opção pelos
objetos de pesquisa no início das carreiras dos dois pesquisadores; o
segundo diz respeito à participação de ambos na esfera pública interna-
cional, particularmente no âmbito das organizações internacionais, e O
terceiro refere-se as tentativas de conciliação entre ciência e humanismo.

As carreiras científicas de Carneiro e Chagas


tanto Paulo Carneiro quanto Carlos Chagas iniciam suas carreiras
em especialidades que estavam longe de serem consideradas opções
preferenciais para os que entravam nos cursos de Engenharia e Medicina.
O primeiro opta pela Química Industrial, o segundo pela Física Biológica,
que não eram nem fonte de prestígio profissional ou acadêmico nem
areas de conhecimento plenamente desenvolvidas no Brasil (Oswaldo
Cruz, 2002; Góes Filho, 1996). Como decorrência, tanto Paulo Carneiro
quanto Chagas foram estimulados a prosseguir sua especialização no
exterior. Carneiro chega a Paris em 1927, onde permanece por quatro
anos no instituto Pasteur, enquanto Chagas vai para Paris depois de
prestar concurso para Professor Catedrático na Faculdade Nacional de
Medicina, em 1937. Ambos se interessam por concentrar seus estudos
em produtos ou modelos brasileiros. A tese de Carneiro na Sorbonne
versou sobre o guaraná; como resultado de seu trabalho em Paris, no
Institut Maray, Chagas decidiu trabalhar com o poraquê.
Competir com a ciência estrangeira era difícil mas não impossível,
desde que se utilizassem técnicas de fronteira em modelos autóctones.
Experiências com curare já haviam sido realizadas por Batista de Lacerda
e a oferta de um novo produto “exótico” no mercado dos objetos de
investigação científica era uma oportunidade a ser aproveitada. As pes-
quisas na França com o guaraná e o peixe-elétrico constituíam de fato
uma questão de fronteira. A combinação de um duplo apelo, de serem
“modelos” ou “produtos” brasileiros e de serem capazes de atrair a aten-
ção internacional, possivelmente explica o interesse de Carneiro pelo
Faullinea cupaneae e o de Chagas pelo Electophorus eletricus.

Foi por isso que escolhi como modelo de trabalho o peixe-elétrico.


“e não tivesse sido o peixe, o modelo que eu escolheria seria a preguiça.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Não sei quando, mas certamente bem no começo de meu trabalho e que
surgiu esse tipo de orientação, que cada vez mais se enraíza em mim, de
que nos países subdesenvolvidos devemos usar as técnicas mais avança-
das em modelos autóctones (...).

Trabalhei com peixe-elétrico e com curare porque eram modeios bra-


sileiros, com os quais eu poderia lidar com facilidade. Por isso pratica-
mente todos aqueles que se formaram no Instituto de Biofísica, pelo me-
nos os da primeira e segunda geração, passaram algum tempo traba-
lhando com o peixe-elétrico. (Chagas Filho, 1985: 96)

O curare é o outro produto que desperta o interesse dos cientistas na


mesma direção: a da adoção de um modelo nacional. Este foi o objeto de
estudo de Paulo Carneiro em sua segunda estada no Instituto Pasteur, em
que desenvolve a fase final de sua atividade científica, entre 1956 e 1741
(Osvaldo Cruz, 2002). Sua volta à França deveu-se a uma insatisfação
com o clima político quando, em 1935, desempenhava o cargo de secreta-
rio de Agricultura, Indústria e Comércio em Pernambuco, depois de ter
exercido as funções de professor de Química Geral da Escola Politécnica,
em 1932, e chefe do Laboratório de Química Vegetal e Animal do
Instituto Nacional de Tecnologia, em 1955.
Depois do estágio em Paris, Chagas volta ao Brasil e assume a catedra
de Física Biológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil,
onde, até seu falecimento, exerce, com alguns interregnos, as funções de
diretor do Instituto de Biofísica e pesquisador.
A participação dos dois pesquisadores nos primórdios da implanta-
ção da “moderna ciência” no Brasil e a opção de ambos por adotarem
modelos brasileiros em suas pesquisas marcarão indeleveimente suas
carreiras na esfera internacional.

Carneiro e Chagas no mundo das nações


Nesta seção trataremos brevemente do papel que Carneiro e Chagas
desempenharam em organizações internacionais nas quais exerceram
funções de grande relevância e prestígio, particularmente na Unesco.
Não se trata de examinar de forma exaustiva as trajetórias de ambos em
organizações científicas internacionais, mas de examinar seu papel no
espaço extremamente específico, que é o das organizações internacio-
nais criadas no pós-guerra. O aspecto mais relevante dessas instituições
Noções de ciência internacional e nacional

é o fato de serem organizações intergovernamentais e, portanto, pauta-


das por regras que regem o relacionamento entre Estados Nacionais.
Nelas, o papel de representantes autorizados cabe aos diplomatas, ou
seja, a hegemonia das negociações passa pela dimensão política do re-
lacionamento entre os Estados, embora estejam também presentes espe-
cialistas, funcionários internacionais e organizações não-governamen-
tais, entre outros agentes.
O ethos do cientista internalizado por Carneiro e Chagas, embora re-
presentasse um capital fundamental para o exercicio de suas tarefas e
para a concepção de seus projetos, nem sempre correspondeu de forma
linear as expectativas dos Estados em relação a seus representantes.
Não caberia aqui esgotar todas as contradições derivadas da necessi-
dade de conciliar essa dupla identidade de cientistas e diplomatas, mas
alguns episódios exaustivamente estudados por Maio (1997), Maio & Sá
(2000) e Goes Filho (1999) são ilustrativos de tentativas de conciliar o
nacional e o universal.
Comecemos nossa sucinta analise pela trajetória de Paulo Estevão
de Berredo Carneiro na Unesco.
Um telegrama do então ministro das Relações Exteriores, João Neves
rontoura, desvia Paulo Carneiro da carreira acadêmica e o lança defini-
tivamente, em 1946, na àrea da política cientifica internacional. Carnei-
ro era então convidado a tornar-se delegado permanente do Brasil junto
à Unesco. Já tivera contato com a área em janeiro daquele mesmo ano,
ao ser designado delegado adjunto do Brasil na Conferência das Nações
Unidas, realizada em Londres. Mas prolongaria sua carreira na Unesco
na condição de delegado até 1958 e, de então até 1965, já no cargo de
embaixador. Durante todo este período teve uma atuação destacada, exer-
cendo marcante liderança internacional (Vargas, s.d.).
O projeto de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica
(HMA) foi um dos projetos que mais envolveu Paulo Carneiro. Em 1945
encaminhou a primeira proposta do ILHA para o governo brasileiro e,
anda em 1946, encaminharia o projeto à Unesco, que o aprovou pronta-
mente na primeira seção de sua Conferência Geral. O IIHA teve sua
implementação malograda pela forte contraposição dos nacionalistas e
pelas parcas relações da Unesco com a comunidade científica brasileira,
ainda que em 1948, em Iquitos, no Peru, tivesse sido aprovada a conven-
ção criando o instituto. As discussões suscitadas pelo projeto constitu-
em um privilegiado objeto para a análise das relações entre ciência e
Ciência, Política e Relações Internacionais

nacionalidade. Os debates passam a ocorrer entre os que exaltam a opor-


tunidade de desenvolvimento que seria possibilitada pelo IIHA e os que
detratam o projeto por crê-lo fruto de interesses escusos de nações es-
trangeiras e um risco para a soberania nacional. De fato a discussão sina-
lizava as diferentes posturas que surgiam com relação ao papel da ciência
no pós-guerra (Maio & Sá, 2000).
A emergência de sentimentos de nacionalismo exacerbado ocorre lado
a lado ao florescimento do ideário universalista de organizações como a
Unesco. As duas concepções se constroem por um processo de oposição
mútua.

Alguns aspectos biográficos de Paulo Carneiro são necessários para


entendermos a forma pela qual as concepções de nacionalidade e
universalismo científico se conformam na elaboração do projeto do ILHA,
e também para que possamos posteriormente compreender como a
dissociação entre tais categorias acaba por determinar o seu fim.
Filho de Mário Barbosa Carneiro, um positivista que lutou pela aboli-
ção e tomou parte na proclamação da República, Paulo Carneiro desde
muito novo teve contato com a doutrina comteana. Aderia a uma con-
cepção positivista de nação, cunhada pelas elites brasileiras durante a
fundação da República, na busca de um Brasil racional, científico e civi-
lizado. O Brasil ideal da belle époque, de uma República que emerge como
um verso parnasiano, na busca da perfeição formal, no vocabulário cul-
to, no objetivismo e no apego a uma distante tradição clássica, assim
como no extremado racionalismo (Venâncio Filho, 2002).
Não é de estranhar, portanto, que Paulo Carneiro passasse sempre
pelo universal para chegar ao nacional, buscando através do “universalismo
cientifico” enfatizar a relevância de temas brasileiros, como vimos an-
teriormente: quando realizava seus estudos no Instituto Pasteur, na França,
optou pelo estudo de produtos nacionais. Essa mesma estratégia se re-
petia com a tentativa de integrar a Amazônia ao Brasil por meio da “Repú-
blica Universal dos Cientistas” (apud Maio & Sá, 2000). Contudo, o uni-
versalismo da ciência já estava em xeque, particularmente devido ao papel
estratégico exercido pela ciência em relação aos Estados durante o pe-
riodo da Segunda Grande Guerra. Somava-se a isso o contexto da Cuerra
Fria, quando se exacerbavam as discrepâncias político-ideológicas, tor-
nando inviável a posição conciliatória de Paulo Carneiro, não só de pro-
duzir uma ciência nacional de padrão internacional, mas de mobilizar a
ciência internacional para problemas, objetos e questões nacionais.
Noções de ciência internacional e nacional

O projeto do ILHA, ao centrar-se nas relações Brasil-França, reafir-


mando a nossa tradicional influência intelectual francesa, conflitava com
a crescente ascendência científica e cultural americana, que passou a se
dar a partir do pós-guerra. O deslocamento para o âmbito da Unesco de
um projeto dessa envergadura não só se explica pela tentativa de manter
ativos os laços franco-brasileiros, mas também pela nascente esperança
quanto ao papel das organizações multilaterais. A Unesco, que surge
em novembro de 1945, entre o pós-guerra e o começo da Guerra Fria,
tem o objetivo de recuperar, no conturbado campo das relações interna-
cionais, a idéia de humanidade, enfatizando a ciência e a democracia
For seu contexto histórico peculiar, a instituição pretendeu agregar o
melhor da tradição européia e a ascendente perspectiva americana, cons-
tituindo-se em palco privilegiado, onde os países vitoriosos buscavam
formatar um novo mundo (Maio & Sá, 2000).

Apesar da não concretização do projeto IIHA, o debate proporciona-


do pela Unesco foi, sem dúvida, profícuo, uma vez que trouxe a questão
da Amazônia para o âmbito das discussões, tanto no plano nacional
quanto internacional. Em 1951, com a criação do Conselho Nacional de
Pesquisas (CNPq), tendo como seu primeiro presidente o almirante ÁI-
varo Alberto, é proposta a criação do Instituto Nacional de Pesquisas
Amazônicas (Inpa), em grande parte baseada no projeto do HA, ou
Seja, há a apropriação nacional de um projeto internacional. O Inpa foi
criado em 1952, com a participação de Paulo Carneiro, refletindo me-
lhor as relações entre ciência e política que apontavam para o naciona-
lismo e para a preocupação com o resguardo da soberania nacional, carac-
teristicas das relações entre militares e cientistas (Maio & Sá, 2000).
Outro papel de importância desempenhado por Paulo Carneiro foi
presidir, pela Unesco, a comissão que elaborou a História do Desenvol-
vimento Científico e Cultural da Humanidade, empreitada que revela
com clareza sua faceta humanista. Certamente a tarefa de escrever a
contribuição de cada região, de cada época e de cada povo, para o de-
senvolvimento científico e cultural da humanidade, se apresentava como
tarefa apropriada para o gênio de Paulo Carneiro. Homem de um
positivismo arejado pela brisa quente dos trópicos e refinado segundo
Os rigores da matriz européia, tinha uma visão da unidade humana sem,
contudo, obliterar as diferenças. Agregava à rígida visão científica uma
apurada compreensão do fenômeno cultural que apontava para um novo
humanismo.
Ciência, Política e Relações Internacionais

A atuação de Paulo Carneiro na Unesco é exemplar da emergência de


um novo tipo de ator social, que busca conciliar valores Winiversais com
questões nacionais. Foi um predecessor de um tipo de agente social que
irá multiplicar-se na segunda metade do século XX, particularmente nas
organizações internacionais não-governamentais, envolvido com a arti-
culação do local com o global.

Paulo Carneiro foi sucedido no posto de embaixador na Unesco por


Carlos Chagas Filho,? cuja trajetória apresenta um interessante
Pomitaponto a de Cameiro. Se 0 primeiro concebe seus projetos a partir
da esfera pública internacional, em função das contingências de sua tra-
jetória, Chagas percorre o caminho inverso. Sua percepção é marcada
pela permanência no Brasil por quase toda a vida, o que talvez explique
o seu entendimento de que a adoção de “modelos” brasileiros para a
ciência constituía, mais do que a mobilização do “universalismo cen-
tifico” para tratar de temas brasileiros, uma forma particularmente bra-
de se produzir esta ciência universal”, Na já citada entrevista, logo
apos afirmar a universalidade do método científico, Chagas diz:

Agora, os cientistas dos países em desenvolvimento devem se pre-


ocuparem empregar esses metodos, seja para aumento do conhecimento,
seja para aplicações de ordem prática, utilizando o mais possível mo-
delos que lhes estão disponíveis. Com isto o cientista se volta natural-
mente para o meio em que vive. Sua escolha indica se ele está voltado ou não
para os problemas do país. A ciência é uma parte da cultura do país, de modo
que nós não devemos fazer uma ciência igual ou copiada, em todos os setores,
aa ciência dos Estados Unidos por exemplo. Não porque haja falta de dinheiro
nas porque a cultura brasileira é diferente da cultura americana. (Chagas
Filho, 1983: 57 — grifos nossos)

Com o término da Segunda Guerra, iniciaram-se as atividades de


Chagas junto aos organismos internacionais. Em 1946, ele viaja para a
França como convidado do governo francês para as cerimônias de cele-
bração do cinquentenário da morte de Pasteur e para participar, “como
representante brasileiro, da Primeira Conferência Geral da Unesco. A
parir da renovação dos contatos que travara na Europa quando de sua
primeira viagem, inicia suas atividades como participante do que elas
FINOS de diplomacia da ciência. Já no ano seguinte volta a participar
da delegação brasileira na Segunda Conferência Geral da Unesco.
Noções de ciência internacional e nacional

A primeira atuação de Chagas no espaço da “relações científicas inter-


nacionais” tem lugar em 1956, quando é enviado como delegado do
brasil junto ao Comitê da ONU para o Estudo dos Efeitos das Radiações
Atômicas. Deste evento resultou a criação do Comitê de Estudos das
Nações Unidas sobre “Kfeitos das Radiações lonizantes sobre os Seres
Vivos”, que presidiu entre 1950 e 1962.
As atividades Internacionais mais significativas exercidas por Cha-
gas foram: o cargo de secretário geral da | Conferência das Nações Uni-
das para Ciência e Tecnologia, em Genebra, de 1962 a 1966; a presidên-
cia do Comitê para a Aplicação da Ciência e da Tecnologia para o De-
senvolvimento, do Conselho Econômico e Social da ONU, entre 1966 e
1970; a chefia, como embaixador, da Missão Permanente do Brasil junto à
Unesco (1966 a 1970) e a presidência da Academia Pontifícia de Ciências
(19/72a1988).
No exercicio da Secretaria Geral da Conferência de Genebra, Chagas
se viu confrontado com as mais diversas contradições que marcam o
espaço das relações internacionais. A necessidade de exercer o papel de
mediador, num momento da história brasileira caracterizado pela rup-
tura do regime democrático, marca profundamente a sua atuação. Con-
tudo a sua escolha fora, segundo o próprio, o resultado de uma opção
entre um “técnico”, um economista, indicado pelo governo brasileiro, e um
“cientista”, ele. Essa visão busca estabelecer, através da universalidade
da ciência, uma neutralidade com relação ao regime político vigente.
Chagas assume o posto numa conjuntura particularmente delicada,
por ser cunhado de Afonso Arinos, chanceler na época do governo de
Jânio Quadros, quando se iniciou um movimento de aproximação do
Brasil ao bloco dos não-alinhados, reconhecido como antecessor da cha-
mada política externa independente do governo Goulart e das posterio-
res preocupações exacerbadas dos militares com a segurança nacional.
A experiência em Genebra como “cidadão do mundo” segue-se a
aceitação do cargo de embaixador brasileiro junto à Unesco. Ao fazer a
opção pelo posto da Unesco em detrimento de sua posição anterior, adota
uma estratégia que pode ser considerada como exemplo perfeito da
reconversão do capital acumulado no decorrer de sua vida científica e
acadêmica ao campo do poder. Reconversão que ocorre segundo um
sistema de trocas visto como “lícito”, na medida em que fortaleceria, de
forma inequívoca, as instituições a que estava vinculado, a saber: a Acade-
mia Brasileira de Ciências, a Faculdade de Medicina e a Universidade,
Ciência, Política e Relações Internacionais

criando dessa forma uma “dívida” dessas instituições com relação ao


seu gesto.

Fara Chagas, a ida para a Unesco como representante do governo é a


oportunidade de exercer plenamente seu papel de mediador entre a di-
mensaão internacional da cultura e o Brasil. Nesse tocante, dois relatórios
produzidos por sua iniciativa foram particularmente relevantes, embora
não tenham sido “aproveitados” pelo governo: o primeiro, um projeto
de revisão para o Patrimônio Histórico, e o segundo sobre política cultural.
Além das organizações já citadas, Chagas foi vice-presidente do
I n t e r n a t i o n a l C o u n c i l f o r S c i e n t i fi c U n i o n s , e n t r e 1 9 6 8 e 1 9 7 2 , e a i n d a
membro fundador e vice-presidente da Third World Academy of
ociences. Simultaneamente a essa intensa atividade no plano interna-
cional, continuou a exercer uma série de cargos e a desenvolver um amplo
conjunto de atividades no campo da administração científica no Brasil.
A trajetória internacional de Chagas foi marcada pela permanente
preocupação em valorizar o caráter universal da ciência, bem como em
atribuir à ciência que fazia um caráter de “cultura nacional”.
Paulo Carneiro e Carlos Chagas são exemplos de um processo de
conciliação não só entre a ciência nacional e a ciência internacional, mas
também entre a ciência e os valores éticos do humanismo, o que é hoje
uma das mais significativas questões da esfera pública internacional.
Sua originalidade consistiu no pioneirismo do desígnio de conciliar o
I n t e r n a c i o n a l e o n a c i o n a l , o u n i v e r s a l e o p a r t i c u l a r. N ã o s e t r a t a d e
tazer aqui uma apologia da ciência sem fronteiras: enquanto existirem
os Estados Nacionais, permanecerão os conflitos de interesse e as dispu-
tas. Irata-se, no entanto, de resgatar a idéia de uma ciência nacional de
padrão internacional, da pluralidade contida na universalidade.

Conclusão

Os conceitos de ciência e Estado-Nação surgem em um continuum


cultural: constituindo-se por uma relação de oposição e comple-
mentaridade, em que a criação de uma cisão entre sujeito e objeto (sub-
jetividade e objetividade) condiciona a separação entre o “universo da
razão pura” e o “mundo das práticas”, há a idealização dos conceitos
modernos de ciência e política. Concebe-se a ciência como o processo de
internalizar a lógica dos objetos e a política como o processo de exter-
nalizar as aspirações dos sujeitos. Essa divisão condiciona a criação de
Noções de ciência internacional e nacional

hibridos que buscam superar a estanqueidade dos conceitos de ciência


e politica, permitindo a interlocução entre as duas esferas. No caso, a
concepção de uma ciência que, apesar de sua pureza e universalidade
essenciais, serve aos interesses nacionais, e de uma política que, embo-
ra, por definição, envolva a disputa de interesses, pretende-se
universalista na pregação do avanço da humanidade pelo desenvolvimen-
to cientifico.

Paulo Carneiro e Carlos Chagas Filho foram dois ilustres cientistas


brasileiros que buscaram superar essas dicotomias. Suas formas de tran-
sitar entre o particular e o universal, e entre o nacional e o internacional
podem ser bem expressas pela imagem topológica da superfície de
Móbius, na qual se confundem o externo e o interno, como elementos
mutuamente constitutivos. Ao optarem por uma ciência nacional de cará-
ter Internacional, Carneiro e Chagas Filho adotaram estratégias que lhes
permitiram conciliar os valores universais com os interesses nacionais.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

! Aqui entendido como membro de uma sociedade nacional.


* Não pretendemos fazer aqui uma revisão exaustiva da história e da sociologia da ciência,
mas apenas apresentar um pano de fundo que permita ao leitor perceber que existem espaços
não necessariamente acadêmicos, em especial o espaço da política internacional, que contribuem
para reconfigurar as relações entre a produção do conhecimento e sua apropriação. O que nos
parece relevante é chamar a atenção para este aspecto. Os outros condicionantes já foram
amplamente explorados na literatura sobre ambas as disciplinas.
* E válido lembrar que a antinomia que se constitui entre o universalismo e o particularismo
não é, de forma alguma, simétrica, posto que o universalismo a que nos referimos, de inspira-
ção e ele próprio fruto de uma humanidade muito particular.
* Segundo Marcel Mauss, a palavra nação, ao menos com o sentido que lhe atribuímos, tem
um emprego bastante recente. É válido lembrar que “nem todos os historiadores, porém, acei-
taram o correitato desta visão, qual seja, a modernidade da nação” (Smith, 2000: 202), havendo
um grupo mais antigo de historiadores que, tomando a idéia de nação como uma verdade
ontológica, reclama a sua existência já na Idade Média ou ainda entre povos da Antiguidade.
“Por un error de dialéctica de las contradicciones, como existen tantas en la historia de las
ciencias, la sociologia, alternativamente, ha considerado todas las sociedades, hasta las más
primitivas, bajo el aspecto de naciones modernas” (Mauss, 1969: 296). O presente ensaio busca
expressar uma concepção hermenêutica e, assim, não incorrer no erro que, entendemos, cons-
titui a descontextualização histórica de conceitos.
5 À medida que no século XIX a ciência se especializa, aumenta o número de sociedades in-
ternacionais, voltadas para o intercâmbio de conhecimentos. Durante a Primeira Guerra exis-
tiam cerca de 53 instituições. Depois da Primeira Guerra, criou-se um Conselho Internacional
de Pesquisas, cuja composição limitava-se aos cientistas dos países aliados ou neutros. Essa
Instituição foi substituida pelo ICSU. Na década de 70, essas instituições somavam cerca de
trezentas.

º Nos eventos considerados como rituais, algumas instâncias paradigmáticas estão sempre
presentes: o sentido de ordem e as regras de procedimento, uma ação comum intencional, a
limitação do tempo e do espaço, a repetição e a alternância, a disputa por um resultado, seu
caráter de representação e a percepção de que são distintos dos eventos cotidianos. Para
lambiah, ritual e um sistema de comunicação simbólica, socialmente construído, ou seja, seu
conteúdo cultural estã fundado em determinados construtos cosmológicos ou ideológicos, e a
combinação entre forma e conteúdo é essencial para o caráter performativo e para a eficácia
do ritual.

* Julian Sorell Huxley nasceu em fevereiro de 1887 e morreu a 14 de fevereiro de 1945. Foi o
primeiro diretor geral da Unesco, onde tentou adotar um programa cosmopolita, centrado na
relação ciência/educação e cultura. Para uma visão de sua trajetória, ver <http://www.rice.edu/
tondren/woodson/mss/ms50/index.htmltbio>.

º De fato, a análise das trajetórias pessoais nos permite agregar às abstrações sociológicas uma
compreensão mais próxima de nosso cotidiano, permeada de afetos e dúvidas, que revelam
aparentes inconsistências, mesmo quando pautadas por um projeto (Velho, 1981).
? A descrição da trajetória de Chagas baseia-se no material bibliográfico e nas fontes que
serviram de base à pesquisa de Paulo de Góes Filho para sua dissertação de mestrado (Góes
Filho,1996).
Noções de ciência internacional e nacional

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1993
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro na
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Heloisa Maria Bertol Domingues
Patrick Petitjean

O terminar a Segunda Guerra, uma pergunta calava nos cien-


tistas do mundo inteiro: que ciência fazer para redimir-
se das consequências da guerra e manter a paz? Ficava muito
claro, então, o papel social das ciências.
Mesmo antes do final do conflito internacional, os diferentes fóruns
internacionais existentes haviam começado a discutir a questão da fun-
ção social e internacional das ciências. Particularmente, as Conferências
de Maio de 1945, em São Francisco, quando foi criada a Organização das
Nações Unidas (ONU), e a de Londres, em novembro do mesmo ano,
que criou a Unesco, discutiram o papel das ciências e colocaram em pauta
a fundação de laboratórios internacionais de pesquisa científica. Tanto o
Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), como a Unesco — que
incluiu o “s” em seu nome evidenciando o quanto valorizava a ciência —
discutiram essas questões. A ONU fixou como objetivo, no artigo 55 da
sua Carta, “favorecer a alta do nível de vida e o pleno emprego; favorecer
a solução dos problemas internacionais nos domínios econômico e social
e na saude pública; favorecer a cooperação internacional nos domínios
da cultura e da educação” Para o mundo capitalista em geral, havia a
ameaça de uma flama de desemprego e do comunismo que se avizinhava.
A política na Europa, sob inspiração do New Deal e de Keynes, definia
que era preciso conter o risco das crises econômicas.
Entre 1943 e 1945 tudo parecia possível. A Unesco também esta-
beleceu como um dos seus princípios diretores a criação de instituições
internacionais para a educação e as ciências. No programa de ação para
o primeiro ano de atividades, 1947, a Unesco se impunha a tarefa de,
Ciência, Política e Relações Internacionais

“em cooperação com outras instituições e organizações privadas, coor-


denar e concentrar todos os esforços para conduzir uma vigorosa cam-
panha mundial em favor da reconstituição da educação, da ciência e da
c u l t u r a ” . Ta l c a m p a n h a v i s a v a a i n c e n t i v a r o o f e r e c i m e n t o d e r e c u r s o s ,
de infra-estrutura e de serviços para as regiões devastadas.? A fim de
viabilizar esse programa, previu, através da sua Divisão de Ciências
Naturais, a criação de Escritórios de Cooperação Científica (Field
oclentific Cooperation Offices — FSCO) em diversas partes do mundo
(China, Índia, América Latina e Oriente Médio), paradoxalmente, luga-
res que não haviam sido atingidos diretamente pela guerra.
Porem, entre 1946 e 1949, os projetos de criação das instituições inter-
nacionais foram prejudicados pela bipolarização política que tomou conta
do mundo. Os mecanismos da Guerra Fria dificultaram em todos os
sentidos a realização dos projetos de internacionalização e os instru-
mentalizaram. Após 1950, os imperativos estratégicos e os interesses
nacionais de segurança passaram a primeiro plano. Vários fatos concor-
reram para que isso acontecesse. Por exemplo, em novembro de 1945 a
URSS recusou-se a participar da Unesco; em 5 de março de 1946,
Churchill discursou em Fulton (Canadá) sobre a Cortina de Ferro. Entre
1947-1949, o frio e uma crise econômica galopante assolaram a Europa,
o que trouxe, em consequência, o Plano Marshall. Além disso, houve a
independência da Índia, a divisão dos blocos em Berlim, a criação da
Urganização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a bomba “A” sovié-
tica, a criação da República Democrática Alemã (RDA), a comunização
da Europa do Leste, a revolução chinesa e a independência da Indonésia.
As dificuldades para a internacionalização pela paz foram inúmeras.
A manutenção da paz encontrava tantos obstáculos que o Congresso
de Intelectuais para a Paz, realizado em Wroclaw? (Polônia), em agosto
de 1948, acabou por marcar a bipolarização cultural. Nessa conferência,
a URSS quis fundar uma segunda Unesco, mais universal e mais autô-
noma em relação aos governos, dando um papel central aos intelectuais.
Mas a proposta foi muito mal recebida. Sartre foi chamado de hiena:;
Huxley, diretor geral da Unesco, que participou a título individual, dei-
xou a reunião antes do fim. Nenhum diálogo foi possível. Houve um
duplo fracasso: dos soviéticos de montar um organismo concorrente à
Unesco e da Unesco de ser universal. As alianças saídas da guerra e as
frentes populares” caducaram. Para a URSS, a Unesco se tornara um
instrumento do imperialismo americano (Rist, 1996).
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

Do outro lado do Atlântico, os países da América do Sul integravam-se


nesse processo a seu modo. O Brasil, participe das reuniões da Unesco
desde o período preparatório, nomeou o bioquímico Paulo Berrêdo
Carneiro seu representante diplomático. Paulo Carneiro estava vivendo
no meio intelectual francês havia longos anos e identificou-se com a orien-
tação impressa àquela organização internacional pelos seus primeiros
dirigentes, que, como ele, professavam o humanismo positivista eo
evolucionismo como ideologias norteadoras de seu pensamento e de suas
atuações. Nesse pensamento, destacava-se a idéia de que a ciência, po-
liticamente neutra e universal, tinha o poder de corrigir todos os males que
afligiam o mundo, tão maltratado pela guerra, pela ameaça da fome, pela
explosão demográfica, pela disseminação de doenças, pela desertificação.
Ao se instituir a Unesco, em fins de 1946, Paulo Carneiro em seguida à
sua nomeação pelo Itamaraty como representante do Brasil, foi também
guindado ao posto de conselheiro executivo na instituição internacional.

Iniciativa para a implantação da ciência universal e o Brasil

Ao fim da guerra, a cooperação científica internacional era percebida


como um compromisso político e econômico importante para os orga-
nismos internacionais a serem estruturados. O sistema da ONU e das
Suas agências especializadas foi definido na Conferência de São Francisco
em 1945. Esse sistema tinha vários lugares para as ciências: o ECOSOC,
para a política científica e suas relações com as questões sociais e a eco-
nomia, a Unesco, para a ciência em geral, as relações com a cultura e a
educação, e também como um suporte para a paz; as agências espe-
cializadas em saúde, em agricultura e alimento, como a Food and
Agricultural Organization (FAO), que tinha competência para as aplica-
ções práticas das ciências nesse domínio.
Uma nova forma de cooperação científica estava sendo instalada no
mundo. Até então esta havia se realizado em associações de cientistas,
era interdisciplinar ou se dava em grandes associações, nas quais ciên-
cia e politica eram atuações distintas para os cientistas (Domingues, 2001).
As exigências do pós-guerra transformaram as ciências em um instru.
mento político por excelência e, mais do que nunca, as relações sociais
das ciências preocuparam os cientistas.
tanto a ONU quanto a Unesco trabalharam intensamente pela
internacionalização das ciências. Uma das primeiras ações da ONU, em
Ciência, Política e Relações Internacionais

sua primeira reunião, em janeiro de 1946, foi criar a Comissão das Na-
ções Unidas para a Energia Atômica (UNA EC). Essa comissão tinha como
objetivo organizar as questões dos segredos em matéria de pesquisa
nuclear para fins pacíficos. Rejeitava a construção de armamentos atô-
micos. Porém, a Guerra Fria bloqueou o funcionamento da UNAEC e
vários países passaram a trabalhar para a construção da bomba atômica.
O Brasil tinha assento na UNAÉC e seu representante era o almirante
Álvaro Alberto, que veio a ser, em 1951, o primeiro presidente do Con-
selho Nacional de Pesquisas (CNPq).
O Conselho Econômico e Social da ONU criou, em 1948, a Comissão
Econômica para a América Latina (Cepal), por sugestão dos membros
do Conselho Interamericano Econômico e Social.

À Unesco, como foi dito, incluiu um “s” em sua sigla e criou setores
específicos para as ciências naturais e para as ciências sociais. Desde a
sua origem, instituiu a Divisão de Ciencias Exatas e Naturais, tendo
Joseph Needham como diretor. Do mesmo modo que as demais priori-
dades da Unesco (cultura, educação, reconstrução), a organização inter-
nacional das ciências se beneficiou de meios e de um reconhecimento
sem igual à época, por parte da Sociedade das Nações. Sua criação
marcou uma linha de ruptura entre o laisser-faire de antes da guerra e
uma política voluntarista concebida de um ponto de vista internacional.
A Divisão de Ciências foi a primeira a desenvolver projetos operacionais
e pôde beneficiar-se de uma das partes mais importantes do orçamento
da Unesco nos primeiros anos. O Conselho Internacional das Uniões
Científicas (ICSU) foi um dos principais beneficiários (Petitjean &
LVomingues, 2000).
O International Committee of Scientific Unions (ICSU) reconstituiu,
logo após a guerra, o seu Comitê de Ciências e Relações Sociais e lançou,
junto aos cientistas, uma pesquisa de opinião sobre a importância das
ciências e da cooperação científica para a paz. Responderam setenta
cientistas próximos das instituições internacionais e o resultado, de certo
modo, refletiu tal posição. As respostas davam a entender que o trabalho
cientifico favorecia o internacionalismo e que a ciência poderia contro-
lar o aumento da população ou poderia desenvolver os recursos natu-
rais e, ao mesmo tempo, o progresso deveria ser acessivel a todos os
povos. À fim de facilitar o acesso às ciências, a Unesco criou, na Reu-
rnião Geral realizada no México, em 1947, o Comitê para a Popularização
da Ciência e suas Implicações Sociais, presidido por Joseph Needham.
Ciência, Potítica e Relações internacionais

informações, sem recomendar uma política específica. Em setembro de


1948, a Unesco, consoante a proposição da França, organizou a Confe-
rência de Fontainebleau, que deu origem à União Internacional para a
Proteção da Natureza (IUPN), instituição que existe até hoje.
Os paises criaram junto aos seus órgãos de diplomacia, como previsto
na Carta constitutiva da Unesco, adotada em novembro de 1945, as Co-
missões Nacionais para a Educação, a Ciência e a Cultura, a fim de que
intelectuais, cientistas e educadores e suas associações participassem mais
diretamente da vida e das ações da Unesco. No Brasil, foi criado, no
itamaraty, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC)
e, com o objetivo de fazer a ponte entre o Itamaraty e o Poder Executivo,
foi criada a Comissão de Organismos Internacionais (COD.
O Brasil acabou sendo o primeiro país a cumprir os dispositivos da
Convenção de Londres, criando a Comissão Nacional para atuar na Con-
ferência Geral, iniciativa que foi consubstanciada pelo Decreto-lei n. 9.290,
de 24 de maio de 1946, que criou a Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e pelo Decreto-lei n. 9.355,
que criou o IBECC, em 13 de junho do mesmo ano, no Itamaraty. O IBECC,
integrado à idéia da Unesco de “organizar a infra-estrutura intelectual da
civilização moderna em toda a sua universalidade”, tinha um ambicioso
desiderato. A Unesco, ao lançar a campanha desses institutos nacio-
nais, pretendia dar um sentido “ecumênico” à cooperação intelectual,
abarcando os múltiplos e complexos problemas culturais do mundo.
O IBECC deveria funcionar eficientemente, a fim de realizar os proje-
tos da Unesco no pais, bem como obter apoio para os serviços que se
esperava que a Unesco pudesse prestar ao Brasil. Assim, em 1948, Paulo
Carneiro escrevia ao secretário-geral do Instituto Brasileiro dizendo que
deveriam tomar uma atitude quanto à infra-estrutura de seu funciona-
mento, nomeando um funcionário que pudesse organizar e convocar as
reuniões, manter a correspondência com a Unesco em dia etc., pois, sem
estar organizado e mantendo os vínculos entre Itamaraty e Unesco, não
se justificaria o apoio desta ultima aos projetos que pretendiam levar
avante. “A Unesco conta com ele e nele tem de se apoiar para aplicar seu
programa no brasil, e este sem esse apoio ficará ao desamparo”, dizia
Paulo Carneiro na carta citada, datada de 8 de outubro de 1947. Paulo
Carneiro estava atento aos interesses da Unesco no Brasil, assim como
aos ganhos que o Brasil poderia auferir mantendo esses vínculos inter-
nacionais naquele momento.
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

Os Institutos de Educação, Ciência e Cultura em um pais como o Bra-


sil significavam a ponte para atingir a “pacificação pela cultura”, à qual
a Unesco se dedicava. Funcionavam para exterminar não somente os fa-
tores de guerra, mas também os graves males das perturbações sociais.
Assim, além das ciências naturais serem beneficiadas pelos seus proje-
tos, O eram também a educação e as ciências sociais. Estas se ocupariam
da ecologia, das questões de urbanismo, das tensões sociais, nacionais e
internacionais, que entendiam como advindas da incompreensão pela
diversidade de orientações e diferenças de culturas.
O empenho de Paulo Carneiro para manter vivos os laços do Brasil
com a Unesco pode ser constatado pelo fato de ter passado muitos anos
como representante do Brasil na instituição. Em 1948, falando em nome
da Unesco, ele dizia que a contribuição financeira desta ao país somente
se justificaria “a luz dos serviços que dela possamos receber e do con-
curso que lhe possamos prestar”.” O IBECC era o elemento de ligação
para esse duplo fim. Paulo Carneiro identificava-se com os principios
idealistas e funcionalistas que regiam a Unesco naqueles primeiros anos
do pós-guerra."
Da mesma forma, Paulo Carneiro identificou-se com os princípios
internacionalistas que regiam as relações entre os paises ao apresentar
na Unesco o seu projeto de criação de um instituto internacional para
pesquisar cientificamente a Amazônia. Foi reconhecido como o principal
defensor do projeto. Participou de inúmeras reuniões institucionais para
divulga-lo. Nessas reuniões, mostrava a maneira como a

Unesco agia no terreno da coordenação da pesquisa cientifica no


plano internacional, e especialmente sobre a grande experiência de
aproveitamento cientifico da Amazônia, a qual tinha por fim demons-
trar até que ponto a colaboração de zoólogos, botânicos, geólogos,
médicos, biólogos, antropólogos ou geógrafos dos vários paises envol-
vidos com a região podia, isoladamente ou por meio de instituições
governamentais, contribuir para a recuperação da vasta região selva-
gem de sete milhões de quilômetros quadrados.”

Não somente a Unesco visava a desenvolver planos de ataque às con-


dições socioeconômicas dos países considerados subdesenvolvidos, mas
também o Conselho Econômico e Social da ONU foi estruturado para
combater os obstáculos ao capitalismo desenvolvimentista. Em 3 de feve-
reiro de 1947, o fornal do Commercio do Rio de Janeiro abriu sua primeira
Ciência, Política e Relações Internacionais

página com uma matéria sobre a quarta sessão do ECOSOC, que se re-
alizava em Lake Success (EUA), com o título: “O Brasil na ONU: suges-
tões sobre o melhor aproveitamento das riquezas naturais dos países”.
A matéria trazia como palavra de ordem o desenvolvimento e dizia que,
se este deveria ser iniciativa de cada governo, ao ECOSOC caberia
apresentar um plano completo de desenvolvimento a cada um deles e
sendo assim, guardaria para si autonomia para executar as primeiras
práticas desses planos. A representação brasileira, concorde com os obje-
tivos do ECOSOC, afirmou que o papel do mesmo seria o de integrar o
projeto de desenvolvimento nacional na engrenagem internacional. Com
Isso, estaria alerta aos sinais de desequilíbrio na produção de matérias-
primas e gêneros alimentícios, pois seus planos abrangeriam ainda o
desenvolvimento de novos produtos, novos gêneros, novas matérias-
primas, fontes de energia, transportes ou novas indústrias. O Conselho
Econômico da ONU integraria, no plano internacional, os projetos econô-
micos e sociais das demais instituições atuantes no país, uma vez que o
objetivo era o “desenvolvimento geral do mundo”, conforme afirmara
para aquele jornal o representante do Brasil nesse órgão da ONU.
Foi também em agosto de 1947 que se realizou a Conferência do Rio
de Janeiro (Petrópolis), uma iniciativa da União Pan-Americana que con-
tou com a presença do presidente americano, Truman. Essa conferência
tinha a finalidade de firmar as forças que comporiam o bloco americano
de “segurança regional”, especialmente para fazer frente à Europa Oci-
dental. + O pan-americanismo instalava-se formando um elo que integrava
Os paises da América que, como o Brasil, eram vistos como significativos
de tal epiteto. Isso, sem dúvida, empanava o internacionalismo das de-
mais instituições, da ONU ou da Unesco, que lutavam exatamente contra
a bipolarização. Uns e outros, no entanto, vendo essas nações como sub-
desenvolvidas, esbarravam nos nacionalismos. Paulo Carneiro emergiu
nesse contexto usando toda a sua diplomacia.

Diplomacia, política e internacionalização das ciências

No ano de 1948, a Reunião Geral da Unesco realizou-se em Beirute e


elegeu para diretor geral o mexicano Jaime Torres Bodet, que derrotou a
candidatura dos brasileiros Miguel Ozorio de Almeida e Paulo Berrêdo
Carneiro. Ambos eram internacionalistas, portanto contra a bipolarização
do mundo, não podendo ver com bons olhos a “americanização” do país.
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

As campanhas para a eleição das representações dos paises, tanto


na ONU como na Unesco, eram acirradas e se faziam atravês do Minis-
tério das Relações Exteriores. Em 1947, o Brasil entrou no processo de
eleição para ter o seu representante no ECOSOCL, tendo sido enviada
correspondência para as legações diplomáticas de vários paises. Porém,
embora houvesse um compromisso oficioso da parte de muitas dessas
nações, não lhes era exigida uma promessa formal, por escrito, deixa-
v a m d o m i n a r, a s s i m , o s u s p e n s e s o b r e o a p o i o a o c a n d i d a t o b r a s i l e i r o ,
que não se elegeu naquele ano.”
Da mesma forma, em meados de 1948 Paulo Carneiro iniciou campa-
nha para as eleições de diretor geral da Unesco, através de correspon-
dência do Itamaraty para várias embaixadas estrangeiras no país. O
Itamaraty enviou correspondência aos paises da América Latina lem-
brando a alguns o apoio que haviam recebido, em outros momentos, da
representação brasileira e pedindo apoio para os brasileiros que esta-
vam concorrendo as eleições da Unesco daquele ano: Miguel Ozorio de
Almeida e Paulo Berrêdo Cameiro. Nem todos respondiam, o que gerava
alguns protestos da parte dos brasileiros.“ Em julho de 1948, o Conselho
Executivo da Unesco fez uma primeira seleção de três nomes, entre os 21
candidatos apresentados: Jaime Torres Bodet (teve apoio dos países latino-
americanos, exceto o Brasil), Ramaswan Mudaliar (diplomata indiano
apoiado pelos Estados Unidos) e ôi1r Konald W. Walker (australiano); os
dois brasileiros foram descartados. O Itamaraty retirou então a candida-
tura de Miguel Ozorio de Almeida para tentar, sem sucesso, relançar a
de Paulo Carneiro. O Conselho Executivo que precedeu a Conferência
Geral de Beirute optou por um so nome, o de Torres Bodet, escolha
ratificada quase unanimemente pela Assembléia Plenária dos delegados.
Em ofício ao ministro das Relações Exteriores, Paulo Carneiro relata as
condições nas quais se desenrolou o episódio do processo eleitoral à
Direção Geral da Unesco, em Beirute.” Esse documento é ilustrativo do
jogo de forças políticas que imperava no interior da Unesco. Paulo Car-
neiro dava a entender que, apesar de no cenário internacional a Unesco
ter adquirido rapidamente uma importância consideravel — em virtude,
talvez, da influência que estava destinada a exercer sobre as elites e as
massas dos diversos paises -, no interior da Unesco as divergências po-
líticas ainda não haviam permitido que essa importância internacional
superasse os interesses nacionais, ou os interesses dos blocos políticos
em jogo. Segundo ele, nenhuma outra agência especializada das Nações
Ciência, Política e Relações Internacionais

despertava tão grande interesse no State Department, no Foreign


Office ou no Quai d"Orsay. O prélio travado em torno da eleição do ovo
diretor geral dizia: “revestiu-se de um caráter exclusivamente político,
em que a consideração com as pessoas concorrentes ficou sempre num
segundo plano”. Ainda segundo Paulo Carneiro, Torres Bodet foi eleito
com Apoio do bloco dos países hispano-americanos, que haviam imposto
o nome dele pela força numérica que representavam na Unesco e tam-
Dem nas demais organizações internacionais. “Este 'test' de prestígio e
influência”, dizia Carneiro, “arrastando consigo primeiro os estados
árabes, depois as grandes potências, terá certamente repercussões na
política do nosso continente, senão na política mundial” 16
Inicialmente, Paulo Carneiro não percebera a força da política pre-
porém esta logo se manifestou, revelando a “extrema precariedade
da posição do Brasil”. O que se passou na Unesco com a candidatura do
Brasil já sucedera anteriormente no Bureau Internacional do Trabalho,
quando o ministro Hélio Lobo perdeu para um peruano, de mérito e
titulos absolutamente inferiores aos dele, a presidência do Conselho de
Administração, e se reproduziu na Organização Mundial de Saúde
(OMS), em que, por pura interferência política, a presidência do conse-
lho deixou de ser atribuída, como era de justiça, ao Dr. Geraldo de Paula
pioneiro dessa organização, para cair nas mãos de um egípcio
ao menos qualificado para tal. Paulo Carneiro lembrava que sempre
dera apoio às delegações latino-americanas no sentido de defender seus
interesses, como por exemplo quando da campanha para a criação do
Centro Regional da Unesco em Havana, ou para a eleição de um novo
membro, o representante da Colômbia, para o Conselho Executivo 7 Sem
o apoio dos países vizinhos na eleição geral da Unesco, Paulo Carneiro
ao aceitou ser presidente do Conselho Executivo, por achar que não
deveria haver outro latino-americano com cargo de direção na instituição
e indicou o indiano S. Radakrishnan 18

Fqulo tinha tamanha preocupação diplomática - bem lembrada por


Torres Bodet em suas memórias — que, mesmo havendo perdido a eleição
paia Bodet, nunca deixou de dar apoio às iniciativas deste que considerava
importantes para implementar o projeto da Unesco. Em várias passagens
de suas memórias, Bodet lembra as atitudes condescendentes de Carneiro
para com as suas propostas. Uma das manifestações de Carneiro em favor
de Bodet foi quando este fez uma crítica à fraqueza das reações dos Estados
membros em relação às decisões centrais da Unesco (Bodet, 1981, v.2).
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro.

Paulo Carneiro mostrava-se coerente com suas idéias em relação à


prioridade da missão “humanista” da Unesco, que defendia veemente-
mente contra as divergências poliítico-ideológicas. Foi defendendo esta
posição que criticou o caráter “político” das eleições da Unesco, quando
fora candidato juntamente com Bodet.
Era também por uma Unesco “despolitizada”, mais “humana”, me-
nos dependente das intrigas diplomáticas e muito mais baseada nos
laços diretos entre os cientistas, que defendera o projeto do Instituto
Internacional da Hiléia Amazônica. Porém, com este tampouco obtivera
êxito, não conseguindo evitar que os objetivos político-econômicos, mais
do que os sociais, o suplantassem. Talvez esse fato tenha feito com que
ele não esboçasse qualquer reação contrária à transferência do Escritó-
rio de Cooperação Cientifica da Unesco de Manaus para Montevidéu, o
que ocorreu em 194% e que pode ser tomado como um indício forte do
esvaziamento do seu projeto para a Amazônia, na Unesco.
Na solenidade de abertura do Escritório da Conferência Científica
Latino-Americana, organizada pela Unesco, realizada em setembro de
1948, em Montevidéu, o presidente de honra da reunião, o uruguaio
Oscar Secco Ellauri, salientou que ali estava sendo criado um espaço de
reunião para os paises da América Latina, com o fim de desenvolver o
progresso da ciência e da cultura e, por seu intermédio, realizar a orga-
nização do trabalho científico, a cooperação e a sua coordenação, nesta
ordem. Declarou aberta a reunião dizendo que a idéia generalizada de
que a ciência era responsável pelos males do mundo era errônea, porque
a ciência, bem empregada, significava o futuro e o porvir das nações
jovens da América Latina. “O progresso universal da ciência às vezes se
exerce e se põe a serviço do mal e da destruição, mas o porvir da ciência
não é levar ao mal, ao caos; a ciência começa e sua aurora está sob o
signo da Nessa reunião estiveram representados países
da América Latina — Brasil, Equador, Colômbia, Venezuela, El Salvador,
República Dominicana, Cuba, Argentina, Bolívia, além do Uruguai -; a
União Pan-Americana; a Smithsonian Institution, da Rockefeller
Foundation, e a própria Unesco.
As discussões na reunião foram basicamente voltadas para a estru-
turação das atividades científicas. Os diversos subcomitês em que se
dividiram os cientistas presentes (de Bibliografia, Organização de
Simpósios, Bolsas de Pesquisa para Cientistas e para Estudantes, Im-
plantação do Regime de Dedicação Exclusiva e Estação de Cooperação
Ciência, Política e Relações Internacionais

Científica na América Latina) mostravam bem que o foco das discussões


concentraram-se nos melhores meios para o desenvolvimento cientifi.
co dos seus países. Da mesma forma, estabeleceram como conclusão da
reunião que, em linhas gerais, deveriam criar meios de suprir a necessi-
dade e divulgar a informação científica por meios bibliográficos, dar
incentivo e apoio às instituições já existentes e ao desenvolvimento de
outras,principalmenteligadasàbiologia,mastambémàfísicaeàquí-
mica do solo. Concluíram ainda que era necessário que a coordenação
dessas atividades e das instituições se fizesse através de associações
incentivando que as sociedades para o progresso da ciência
fossem Eriadas onde ainda não existiam e que se vinculassem às agências
internacionais, como o Conselho Internacional de Uniões Científicas ou
2 Associação Internacional de Trabalhadores da Ciência. Os países de-
veriam também buscar instituir fundos nacionais de pesquisa, a exem-
plo do que já vinha acontecendo em São Paulo, onde se dedicava uma
parcela da arrecadação estadual para a pesquisa científica.
Tudo isso mostrava que, preferencialmente, as relações científicas
a deveriam se dar através das agências políticas dos: Estados e sim
das instituições científicas. O IBECC era percebido como uma
muito dependente do Itamaraty, não adaptado às relações
FME No novo escritório, à Unesco caberia a coordenação geral
Ras atividades de cooperação e a sua viabilidade, Por meio unicamente
da atuação do escritório de Montevidéu. Assim, ua influência abrar.-
Beria os Países da América Latina e se faria no sentido da manutenção
de relações diretas com entidades nacionais, oficiais e privadas, bem
como entre os homens de ciência dos respectivos países. Além disso, 08
Subcomitês em Montevidéu reconheceram a importância do Instituto
Nternacional da Hiléia Amazônica, tendo estabelecido que deveriam
manter relações, sem prejuízo da autonomia de ambas as instituições
dutro indício da mudança do papel das ciências no quadro social da
científica foi a sugestão de incentivar a criação eo desenvol.
vimento das associações nacionais de pesquisa, as sociedades para O pro
da ciência, feita por um dos representantes do Brasil, Maurício da
Socha e Silva, na mesma reunião de Montevidéu. Essas sociedades, que
ja existiam desde o fim do século XIX, principalmente nos Estados Uni.
dos, e Grã-Bretanha e na França, constituiriam antenas por meio das
quais a se informaria dos acontecimentos locais mais imporiam-
tes para o progresso da ciência e da educação científica nesses países.
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

Nos anos 1930, foram elas a ponta-de-lança da reflexão sobre a fun-


ção social e internacional das ciências.” Elas haviam liderado campa-
nhas pela promoção da pesquisa, seu financiamento e sua organização,
bem como ações de popularização da ciência. Sua ação tinha contribuído
para a criação da Unesco.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), fundada
com ramificações em todo o pais em 1949, introduziu nos seus estatutos
a possibilidade de afiliar-se oficialmente à Unesco, assim como ao ICSU.
Desde o início, a SBPC foi muito favorável à Unesco e à sua atuação em
prol da cooperação científica internacional. As primeiras publicações
de Ciência e Cultura falam muito da Unesco e do seu escritório científico
regional em Montevidéu. O tema da Conferência de Abertura da Segunda
Reunião Anual da SBPC (novembro 1950) foi a própria Unesco. A SBPC
estabeleceu ainda ligações diretas com Angel Establier, chefe do escritó-
rio regional da Unesco e, por isso, foi criticada pelo IBECC, bem como o
foi Establier.? Justamente, a questão era saber se a Unesco podia ter liga-
ções com cientistas brasileiros sem passar pela diplomacia brasileira. Na
época, o Estatuto da Unesco era “híbrido”: o acordo da Conferência Inau-
gural em Londres, em 1945, criara a Unesco como um organismo
Iintergovernamental, mas com um conselho executivo teoricamente com-
posto de intelectuais, que atuavam como pessoas privadas e não como
representantes dos seus governos; e as ONGs tinham um papel reco-
nhecido. Os americanos queriam acabar com esta ambigiiidade e fazer
da Unesco uma organização apenas intergovernamental, o que acabou
sendo referendado em 1954, na Conferência Geral de Montevidéu. Como
se vê, esta era uma questão bastante discutida, e a tomada de uma decisão
definitiva sobre ela mostra que pelo menos os cientistas pareciam estar
buscando vínculos mais diretos com a Unesco, sem a intervenção do
Estado. Queriam “despolitizar-se”.
Na verdade, à saida da guerra o modelo de cooperação científica in-
ternacional, proposto por cientistas como Joseph Needham e Henri
Laugier, articulava objetivos sociais e objetivos propriamente científicos.
Um e outro consideravam a ciência “politicamente neutra” e, por isso,
pensavam que os cientistas eram os melhores para superar as diferenças
culturais e as barreiras nacionais.” Para eles, os cientistas eram esponta-
neamente internacionalistas e, paradoxalmente, seria possível apoiar-se
sobre a suposta neutralidade da ciência para melhor realizar os objeti-
Vos sociais, ou seja, políticos, como, por exemplo, privilegiar as ações
Ciência, Política e Relações Internacionais

científicas internacionais para o dito Terceiro Mundo. Era a idéia de uma


comunidade internacional acima das particularidades nacionais.
Needham, particularmente, pensava que seria possível apoiar-se em
organizações internacionais, ou mesmo intergovernamentais, como a
Unesco, para ultrapassar os limites de cada governo e estabelecer rela-
ções diretas entre os cientistas, sem depender das lógicas diplomáticas.
Ele cnegava mesmo a propor um “passaporte científico internacional”,
equivalente ao passaporte diplomático, permitindo a livre circulação dos
cientistas por todos os países.
todos os diferentes projetos de Needham e Laugier foram marcados
por essas idéias, em particular, os projetos de criação dos laboratórios
internacionais de pesquisa, tal como era o projeto do IIHA. Em seu rela-
tório da reunião preparatória da Unesco, em 1946, Joseph Needham fa-
lou da importância da criação de laboratórios internacionais para desen-
volver a cooperação científica, embora reconhecesse que a idéia não era
sua. À idéia tinha sido dos delegados brasileiros (particularmente Paulo
Carneiro), mexicanos, franceses e norte-americanos, e tinha sido defen-
dida “com um vigor surpreendente”, segundo as palavras do próprio
Needham. Seis dominios, estritamente científicos, tinham sido propostos.
QU primeiro deles foi o ILHA, proposto por Paulo Carneiro, para o Brasil.
Outra proposta, que partiu da França, era a da criação de um Centro de
Computação e Matemáticas Aplicadas. Needham desejava criá-lo na Ásia
— mantendo a sua fidelidade aos princípios de desenvolvimento cientifi-
co periférico —, mas os Estados Unidos acabaram por impô-lo na Europa
(no Brasil, foi criado, em 1951, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada).
lendo em vista que o problema da fome era mundial, foram propostos
ainda institutos para nutrição — proposição conjunta da França, do Brasil
e dos Estados Unidos -; institutos de parasitologia e imunologia - México,
França e Brasil —: observatórios astronômicos e laboratórios de meteo-
rologia — Estados Unidos.
Nem todos os projetos propostos puderam ir adiante na Unesco e,
mesmo os que se concretizaram em seguida, como foi o caso do HA,
acabaram naufragando na onda da conjuntura da época. O projeto da
Hileéia, como foi dito, foi um dos laboratórios internacionais que a Unesco
tentou estabelecer, na verdade, o primeiro com tais dimensões. Ele dei-
xou mas lembranças na Unesco, tanto como no Brasil. A Unesco se viu
acusada de colonialismo por um projeto que fora iniciativa de um brasi-
leiro e que não tivera apoio forte dos países considerados colonialistas,
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

como a Inglaterra ou a França. Os Estados Unidos manifestaram-se


contrários ao projeto desde a Conferência Geral de México, em 1947. A
partir de 1950, o HHA foi, para a Unesco, o antimodelo que deveria ser
evitado. Paulo Carneiro, embora não tivesse abandonado o seu projeto,
passou a apoiar outras atividades culturais na Unesco.
Outro projeto de laboratório internacional vitorioso a duras penas
foi o Centro de Computação, proposto em novembro 1946, na Unesco,
com a concordância dos Estados Unidos. A idéia de Needham era criar
O laboratório fazendo uma dupla colaboração entre a China e a Índia.
Fara ele, os matemáticos e físicos asiáticos eram muito competentes e
precisavam desse laboratório. A sua construção foi interpretada como
uma compensação necessária à destruição do síncrotron japonês, ocor-
rida durante a Segunda Guerra Mundial, por ação dos americanos. Este
seria, se realizado, a concretização do princípio de periferia de Needham.
Mas os americanos não aceitaram o laboratório na Ásia e, depois da
saida de Needham, em 1948, levaram o projeto adiante localizando-o,
inicialmente, num “pequeno país europeu”, e finalmente em Roma, na
Itália. A concretização do projeto do Centro de Computação foi muito
difícil e a inauguração deu-se somente nos anos 60.
Em 1949, a ONU patrocinou uma reunião de especialistas para dis-
cutir a questão da cooperação científica internacional, dos laboratórios e
das especialidades que seriam prioritárias nesses. Dessa reunião partici-
param, entre outros, Needham, Pierre Auger - sucessor de Needham na
Unesco —, Henri Laugier, Miguel Ozório de Almeida, Claude Lévi-Strauss
e o astrônomo americano Harlow Shapley. Um dos temas mais debati-
dos foi a localização dos laboratórios. A prioridade em localizá-los em
paises não-europeus foi defendida por Miguel Ozório, Laugier e
Needham, contra a opinião de Lévi-Strauss e Shapley, para quem o úni-
co critério a ser levado em conta deveria ser o científico, jamais o políti-
co (o HHA toi considerado um bom instituto, mas não foi incluído porque
ja estava criado). A reunião estabeleceu três prioridades: o Centro de
Computação, um instituto sobre o cérebro e um instituto sobre ciências
sociais. Shapley insistiu muito neste último, pois era uma proposta de
psicólogos americanos que tinha promessa de receber verbas do “Ponto
4” de Iruman, mas, por isso mesmo, foi fortemente combatida por Lévi-
otrauss. Em segundo lugar, foram escolhidos para serem criados o Insti-
tuto do Câncer, o Instituto sobre Zonas Áridas, o Instituto Meteorológico
e observatórios astronômicos.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Na 11º Sessão do ECOSOC, em agosto 1950, foi discutido o relatório


dos especialistas, que teve a oposição dos ingleses, americanos e sovié-
ticos, inviabilizando a perspectiva de laboratórios internacionais da ONU,
cujo dossiê foi devolvido para a Unesco.”
A Unesco, que já havia vivido o fracasso do IIHA, contabilizava agora
O fracasso da proposta de criação de outras instituições congêneres.

Conclusão

Cabe indagar até que ponto essa dicotomia entre internacionalismo


politico e científico não decretou o fracasso das iniciativas da Unesco
em favor das ciências naqueles seus primeiros anos. À política de
Needham e Huxley na Unesco, bem como a de Henri Laugier no
ECOSOL, que contava com a anuência de Paulo Carneiro, assim como
dos demais representantes brasileiros, não obtiveram sucesso, por inú-
meras razoes.

OU contexto político da época não era favorável à cooperação científica,


pois o início da Guerra Fria, sem transição depois da paz, marcou a
bipolarização e a crescente dominação política dos Estados Unidos no
mundo do pós-guerra. Além disso, a crise financeira dos países euro-
peus e a diminuição de verbas para a Unesco, enfraquecendo-a, agrava-
ram a situação, contrariando as tentativas de união internacional

As contradições da própria comunidade científica também favore-


ciam a resistência dos cientistas liberais (muitos ingleses), que defen-
diam o laissez-faire e privilegiavam o International Council of Scientific
Unions, subestimando a criação, nos países do Sul, de novos laboratórios
internacionais ligados à Unesco. Esses cientistas queriam que fossem
utilizados os laboratórios dos países do Norte, já existentes. Porém, nem
ao menos quanto ao uso desses laboratórios havia consenso. Por exemplo,
a Inglaterra se posicionou contra a criação do Centro Europeu de Pes-
quisas Nucleares (CERN), “uma outra idéia da Unesco”, mesmo sendo
o CERN um laboratório regional na Europa. Mas este se concretizou e
foi o primeiro laboratório internacional da instituição. Entretanto, estava
longe de se realizar o “princípio de periferia”. O segundo laboratório in-
ternacional a entrar em operação foi o Centro de Computação, em Roma.
Há também de se levar em conta as contradições do próprio Needham
sobre o eurocentrismo. Visto hoje, eurocentrismo era também parte do
modelo convencional de uma ciência neutra, desligada dos contextos
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro...

culturais. No tempo de Needham, os cientistas viam a neutralidade das


ciências sob o foco de um modelo difusionista, isto é, uma ciência única,
partindo dos centros científicos da Europa.
À época, essa forma difusionista dificultou em muito a percepção da
necessidade de articular agendas ou programas locais, regionais e nacio-
nais com programas internacionais; era dificil reconhecer as caracteris-
ticas especificas dos niveis regional e nacional.
Por fim, a questão da política hegemônica que os Estados Unidos
impunham ao mundo ocidental atingiu o modelo de cooperação cienti-
fica, particularmente os países da América Latina. Com base no “Ponto
4” do seu plano de governo, Iruman definiu a cooperação como assis-
tência técnica. lal proposta pode ser vista como o elo que faltava para
unir produção científica e interesses politicos. O projeto do presidente
americano correspondeu a melhor das aspirações das elites. Significava
compatibilizar o modelo e o nível de vida dos Estados Unidos com um
modelo de desenvolvimento que subordinava as ciências ao desenvolvi-
mento econômico. Isso representou a instrumentalização da ciência,
vendo-a como um utensilio técnico a serviço da concepção capitalista
do mundo. O “Ponto 4” correspondeu à crença de que se podia realizar
o desenvolvimento econômico com a ciência, sem resolver as questões
sociais. É essa acabou sendo a concepção dominante das ciências. Nesse
sentido, o “Ponto 4” do discurso de posse de Truman, em janeiro 1949,
corroborou o conceito de subdesenvolvimento.

Nesse contexto, Paulo Carneiro optou por se afastar do movimento,


dedicando-se, na Unesco, aos projetos de educação para os países asiáti-
cos e orientais e aos programas de salvaguarda do patrimônio da huma-
nidade. Ele também permanecia fiel às suas aspirações de neutralidade
científica, acreditando, como acreditavam os cientistas que começavam
a se articular em torno das novas associações cientificas —- as sociedades
para o progresso da ciência por exemplo -, que a prática científica podia
se realizar acima das querelas politicas e ideológicas.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

* Disponível em: <www.un.org/abountun/charter>.


E Unesco/Prog/1/1947 (ver.). 3 de maio de 1947. Primeira parte, p.1 (Arquivo Unesco, Paris).
* Wroclaw é também conhecida como Breslau.
* As frentes populares eram coligações de partidos e de intelectuais liberais, socialistas e
comunistas tipicas dos anos 1930 e da época da guerra antinazista.
? Representante do Brasil desde agosto de 1946 (Brasil - Ministério das Relações Exteriores,
Departamento de Administração, Divisão de Pessoal, Anuário 1960 e 1961); eleito membro
do Conselho Executivo da Unesco na primeira Conferência Geral, em Paris (novembro/1946).
Sobre Paulo Carneiro e o ambiente intelectual franco-brasileiro nos anos 1930, ver: Petitjean
(2001); sobre Paulo Carneiro, a Unesco e a ciência, ver: Carneiro (1951, 1970).
º Correio do IBECC., Rio de Janeiro: Unesco, 1986 (Biblioteca do IBECC, Palácio do Itamaraty).
* Memorandos 1942-1949 — Paulo Carneiro ao secretário-geral do IBECC (Arquivo Itamaraty,
Brasilia).

* Relatórios do Presidente do IBECC, Boletim do IBECC, n. 1 (1947), p.155 en. 2 (1948), p.7-17
(Biblioteca do IBECC, Rio de Janeiro).

* Memorandos 1942-1949 — Paulo Carneiro ao secretário-geral do IBECC (Arquivo Itamaraty,


Brasilia).

“ Funcionalismo: doutrina de certas correntes pacifistas e internacionalistas, surgida no final


do século XIX, segundo a qual o meio de luta mais eficaz contra os nacionalismos e as guerras
era multiplicar as organizações transnacionais em todos os domínios: as fronteiras acabariam
por desaparecer por si mesmas. No final da Segunda Guerra Mundial, essa doutrina teve um
vezo de poptilaridade, principalmente nos Estados Unidos. Os cientistas estavam no centro da
doutrina, a ciência era considerada universal e internacional por natureza, os cientistas se viam
e eram considerados os mais perfeitos internacionalistas (sobre o histórico da doutrina, ver
ochroeder-Godenhus, 1975).

“ Ata de Reunião do IBECC - maio 1947. Nessa reunião, o projeto do IIHA foi apresentado a
um grupo de intelectuais brasileiros, numa iniciativa do presidente do IBECC, Lévi Carneiro.
2 Iornal do Commercio, 30/07/1947.

* Memorandos 1942-1949 (Arquivo Itamaraty, Brasília).


4 Novembro - 1948, Correspondência 1947-1948 (Arquivo Itamaraty, Brasília).

2 Ofício de Paulo Carneiro ao ministro Raul Fernandes, Paris, 26/01/1949 (Unesco/97, Arquivo
Itamaraty).

é Ofício de Paulo Carneiro ao ministro Raul Fernandes, Paris, 26/01/1949 (Unesco/97, Arquivo
Itamaraty).
“” Uma criação à qual os Estados Unidos, com apoio do representante brasileiro na União
Pan-Americana se opôs, preferindo conservar a preeminência da União Pan-Americana so-
bre a Unesco (Correspondência-Arquivos do State Department, RG 59, Decimal Files 1945-
1949, 501.PA, cartões 2.259 a 2.263). O centro regional da Unesco em Havana foi finalmente
inaugurado em fevereiro de 1950 (Arquivo Nacional dos Estados Unidos, College Park [MD)).
'8 Ofício de Paulo Carneiro ao ministro Raul Fernandes, Paris, 26/01/1949 (Unesco/97, Ar-
quivo itamaraty).
2 Conferência de Expertos Científicos da América Latina, Montevidéu, Unesco (LACDOS/
Latin America Conference for the Development and Organization of Science). Atas da 1º Ses-
são. Unesco/DEÓO/CO. 21-6/9/1948 (Arquivo Unesco, Paris).
Paulo Carneiro: um cientista brasileiro.

* Rocha e Silva, proposta apresentada à Reunião de Especialistas em Montevidéu, Unesco


DEÓO/CO. 20-04/09/1948. (Arquivo Unesco, Paris).
+ Sobre a American Association for the Advancement of Science, ver Kuznick (1987); sobre
a Association Française pour "Avancement des Sciences, ver Weart (1980); sobre a British
Association for the Advancement of Science, ver MacGucken (1984) e MacLeod & Collins
(1961).
+ Registro de correspondência do presidente Lévi Careiro (expedida), v. 3, 1950. Cartan. 612
para Establier, 23/02/1950; carta n. 613 para Torres Bodet, 24/02/1950. Ver também relatório
do presidente do IBECC para 1949/1950, Boletim do IBECC, n. 3 (1952), Biblioteca do IBECC,
Rio de Janeiro.
* Ver, neste artigo, a nota 10, sobre o funcionalismo.
* Documentos E/1694 (19/05/1950) e E/1699 (24/05/1950), 11º Sessão: E/SR.410 (14/08/1950),
E/5R.411 (14/08/1950) (Arquivo do Conselho Econômico e Social da ONU, Genebra),

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Os raios cósmicos entre a ciência e
as relações internacionais
Ana Maria Ribeiro de Andrade

uando em 1947 Chacaltaya ganhou as páginas da Nature,


foi revelado que este monte eternamente coberto de neve
na cordilheira dos Andes bolivianos era um lugar privile-
glado para a observação de fenômenos naturais que atingem a Terra
com a radiação cósmica.

De dimensões desprezíveis em comparação com qualquer objeto


macroscópico, os raios cósmicos são particulas subatômicas que, ao pene-
trarem na atmosfera terrestre, chocam-se contra núcleos atômicos e pro-
duzem uma cascata de partículas secundárias. As interações nucleares
produzidas pelos raios cósmicos são da ordem de alguns trilhões de
elétrons-volt (eV) e quanto maior a energia mais raros se tornam os eventos,
exigindo uma grande área de sensores para experimentos.
Porém, na Bolívia, até meados do século XX não havia pesquisa em
física moderna e o meio era inóspito para o trabalho científico: a univer-
sidade só oferecia cursos para a formação de profissionais; a economia
do pais estava alicerçada na exploração de minas de estanho, latifúndios e
Importação de produtos industrializados; a expectativa de vida era tão-
somente de 40,4 anos, e o analfabetismo alcançava 68% da população,
de imensa maioria indígena. Além disso, a oligarquia dominante era
marcada pela influência dos ideais nazi-fascistas e se considerava etni-
camente superior. O resultado da eleição de 1951, quando Paz Estensoro
não obteve a maioria dos votos e uma junta militar assumiu o poder,
alimentou o sentimento de frustração nacional e abriu caminho para um
forte impulso reformador. As desigualdades sociais e o quadro político-
econômico fortaleciam, além das esquerdas sindicais e movimentos de
Ciência, Política e Relações Internacionais

camponeses de inspiração trotskista, o Movimento Nacionalista Revo-


lucionário (MNR).
Assim, para os físicos de raios cósmicos que estiveram na Bolívia
entre 1952-1956, somavam-se às longas viagens e dificuldades inerentes
para se fazer ciência na América Latina, a fragilidade da economia, a
instabilidade da ordem política e os obstáculos das esferas material e
cultural. Faltava quase tudo, mesmo para os que estavam acostumados
com as restrições dos paises subdesenvolvidos: luz elétrica, biblioteca,
pão, carne, cinema, e até as festas cívicas eram adaptadas às circunstâncias.
O Exército havia sido dissolvido, as companhias de mineração, nacio-
nalizadas e os latifúndios, divididos. Afora os esforços individuais de
uns poucos professores bolivianos e europeus - que lá se estabeleceram
no contexto da Segunda Guerra Mundial para escaparem da prisão ou
para apagarem a identificação ideológica de seus currículos —, a realidade
impunha uma única alternativa ao desenvolvimento da ciência: a parti-
cipação em projetos internacionais. Para isso, o aval do Estado e o apoio
de instituições estrangeiras eram imprescindíveis.)
Pela convergência de interesses entre ciência e política exterior, o Brasil
Se apresentou como um forte aliado. Para o Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas (CBPF), criado em 1949, Chacaltaya apresentava condições ideais
para a pesquisa sobre os raios cósmicos e, para a diplomacia brasileira, a
ciência poderia ser usada como uma forma de propaganda do Estado,
para o qual a política muitas vezes está acima das decisões técnicas e
cientificas. Isto não significou que a convergência de interesses entre
ciência e relações internacionais estivesse inserida em um projeto político.
Enquanto o Ministério das Relações Exteriores aproveitava um programa
de cooperação científica para facilitar a execução de tratados interna-
cionais, Os físicos brasileiros procuravam a chancela do Estado para ter
garantias do investimento de capital científico. Na interação dos parceiros
no jogo, cientistas e diplomatas estiveram juntos; porém, quando os
objetivos se distanciaram, os primeiros tiveram de ceder diante do
desequilíbrio na ostensiva relação de poder entre eles.
Partindo do pressuposto de que a ciência está vinculada a sistemas
de poder e a processos internacionais amplos, é impossível desvincular
as duas dimensões neste artigo. De um lado, a formação de uma tradição
cientifica na área da física e em contexto periférico: Brasil e Bolívia. De
outro, o desenvolvimento dessa disciplina e de subárea de pesquisa em
países adiantados. Logo, o que está em cena são questões inerentes ao
(Ds ratos cósmicos entre a ciência...

desenvolvimento da ciência, bem como questões de ordem material,


cultural, tecnológica e politica. O desafio desta história é compreender
os problemas decorrentes da ausência dessa tradição e os esforços de
inserção de cientistas em programas de cooperação científica, quando o
mundo da ciência já se encontrava dividido. O seu roteiro envereda no
emaranhado da politica internacional, acompanha a trajetória dos prota-
gonistas e o desenvolvimento de tecnologias que interferiram no estudo
da radiação cósmica, objetivando comprovar que, em lugar de autono-
mia, manifestou-se a heteronomia do campo científico. O trabalho, toda-
via, não encerra a controvérsia acerca da contribuição do Laboratório
de Chacaltaya para o desenvolvimento da ciência na Bolívia.

A ciência e lazer criativo

Até 1942, o monte de Chacaltaya era explorado apenas pelos índios


aimaras e pelos associados do Club Andino Boliviano. Os esportes de
inverno não eram uma tradição do pais. Somente depois que o governo
transformou a regiao montanhosa — na qual se situavam os montes de
Huyana Potosi, Laguna Milluni e Chacaltaya — em parque nacional, o
Ministério da Educação ofereceu o primeiro curso de esqui a estudantes.
A sugestão partiu do meteorólogo Ismael Escobar Vallejo,? secretário do
Club Andino e diretor do Servicio Meteorológico Boliviano, cujas tare-
fas tecnicas eram favorecidas pelas suas atividades de lazer.
A estação central da rede de meteorologia foi instalada na Escuela
Central Militar de Aviación, onde Escobar lecionava. Tal coincidência
lhe permitiu fazer sondagens da atmosfera superior até 7.000 metros em
um bimotor. Por sua vez, alpinistas do Club Andino instalaram mais
duas estações da rede de meteorologia em Chacaltaya, a 5.200 e a 5.600
metros de altitude. Os equipamentos da primeira se destinavam à medi-
ção do tempo e da intensidade da radiação solar e, desde 1943, foi possi-
vel iniciar na estação superior observações sobre o clima para melhorar
a analise da dinâmica das massas de ar e, consegiientemente, as previsões
meteorológicas para o aeroporto de La Paz. Esse aeroporto está situado
entre dois picos sempre nublados, por entre os quais as aeronaves são
forçadas a passar, tinha muitos de seus vôos interrompidos na colonial
Santa Cruz de la Sierra.

Ismael Escobar conheceu Cesar Lattes? em 1947, na Bolívia. Membro


do grupo de Bristol,* Lattes foi ao monte Chacaltaya para confirmar a
Ciência, Política e Relações Internacionais

existência do méson-p na radiação cósmica. Distante cerca de 20 km da


capital, a estrada para Chacaltaya não chegava às estações meteorológicas.
O físico brasileiro seguiu pela trilha dos alpinistas para dispor pequenas
pilhas de sensíveis placas fotográficas na segunda estação meteorológica,
na realidade, uma tosca instalação de madeira. Lá, as também denomi-
nadas placas de emulsão nuclear receberam milhares de vezes mais par-
ticulas do que acontecera no experimento anterior, realizado no
Observatoire du Pic du Midi (Pirineus franceses, 2.800 metros). Um mês
depois, a altitude de Chacaltaya confirmou nas placas fotográficas a pre-
visão teórica da existência do méson-p ou píon (Andrade, 1999).
A posterior confirmação experimental de outras partículas não teve
o mesmo impacto da descoberta do méson-p, evidenciando que a con-
juntura do pós-guerra favoreceu a difusão dessa descoberta e os investi-
mentos na área da física. Sob o impacto da bomba atômica, a confir-
mação da previsão teórica do píon significava maior compreensão das
forças nucleares e crescentes possibilidades de retorno político-militar
para os paises promotores da ciência. E, uma vez reconhecidos entre os
pares, Os fisicos autores dessa construção da ciência tornaram-se capa-
zes de arregimentar diferentes forças em distintos contextos geopolíticos.
No processo de acumulação e de mobilização de capital científico, o
cientista reinveste os benefícios diretos ou indiretos na sua própria car-
reira, bem como na instituição científica ou grupos a que está vinculado
(Bourdieu, 1997; Andrade, 1999b).

O itinerário dos mésons na Bolívia

No Brasil e na Bolívia, a credibilidade obtida por Cesar Lattes, princi-


palmente após detectar a produção artificial do píon no acelerador do
Radiation Laboratory of Berkeley (EUA), foi investida na institu-
cionalização da pesquisa. No Brasil, o capital científico acumulado por
Lattes foi investido na fundação do CBPF e do então Conselho Nacional
de Pesquisas (CNPq). Na Bolívia, este mesmo capital propiciou a cria-
ção do Laboratório de Física da Universidad Mayor de San Andrés
(UMSA), assim como favoreceu a promoção de Ismael Escobar a cate-
dratico.* No entanto, Escobar começou a interagir com a comunidade
científica ao colaborar com o reconhecido físico italiano de raios cósmicos
Bruno Rossi no Massachusetts Institute of Technology (MIT), durante o
periodo acadêmico de 1950-51.
(Ds raios cósmicos entre a ciência...

Cesar Lattes acompanhou o processo do Rio de Janeiro. Cientistas


europeus e americanos manifestaram o mesmo interesse, conforme ex-
pressaram os representantes da Unesco as autoridades da UMSA. A
Unesco pretendia criar institutos internacionais para desenvolver a ciên-
cia na América Latina, dentre os quais um laboratório de fisica em alta
altitude em Morococha (Peru). Por tras dessa iniciativa, estavam Andrea
Wataghin e Georges 5chwachheim, da Universidade de São Paulo (USP),
que la estiveram para estudar a estrutura dos grandes chuveiros de raios
cósmicos em 1951.º

O Conselho Universitário da UMSA aprovou a fundação do Labora-


tório de Física Cósmica de Chacaltaya, “centro de investigaciones,
ensenânza y observaciones meteorológicas” (apud Aguirre, 1996: 14) para
ser administrado em parceria com o Servicio Meteorológico Boliviano,
1951. O Ministério da Agricultura facilitou a concessão de uma autoriza-
ção especial do presidente da República, general Hugo Ballivian, posto
que o laboratório se localizaria no parque nacional recém-criado. As
negociações foram encetadas pessoalmente por Escobar e a tramitação
do processo foi conduzida com rapidez pela UMSA, talvez temendo a
concorrência com o Laboratório de Morococha.

Ismael Escobar foi designado diretor do laboratório em janeiro de


1952, acumulando o cargo com a direção do Servicio Meteorológico.
Sucessivos reitores da UMSA deram apoio a iniciativa e a Revolução de
1952 não interferiu diretamente nos rumos da Instituição. Contudo, a
universidade arcou apenas com as despesas para a construção de uma
modesta cabana de madeira e instalação de um velho motor a diesel.
Escobar conseguiu um abrigo de alumínio para servir de casa para os
pesquisadores, instalado a 9.200 metros de altitude pelos associados do
Club Andino, e os primeiros equipamentos de pesquisa vieram dos Es-
tados Unidos. Destinavam-se ao desenvolvimento do projeto de Bruno
Rosst sobre a anisotropia leste-oeste da intensidade de meésons positivos
e negativos no equador magnético (Aguirre, 1996).
Ainda em 1952, começaram a desembarcar pesquisadores estran-
geiros para expor chapas de emulsão fotográfica ou simplesmente avaliar
as condições de pesquisa em Chacaltaya: Frank Harris (orientando de
Bruno Rossi no MIT); Maurice Shapiro (Naval Research Laboratory de
Washington); Marcel Schein (Universidade de Chicago); Herman Yagoda
(National Bureau of Standards) e Hervásio de Carvalho, Ugo Camerini,
Giuseppe Occhialini, Cesar Lattes e Roberto Salmeron (CBPF). Alguns
Ciência, Política e Relações Internacionais

experimentos foram marcados por acontecimentos inusitados, outros


nem puderam ser realizados.
Hervásio de Carvalho, Shapiro, Schein e Yagoda não tiveram sorte.
As Placas de emulsão nuclear deixadas no monte Sajama (6.542 m) pelos
alpinistas do Club Andino foram encobertas pela neve. Outras placas
deixadas em várias profundidades do lago Titicaca também se perde-
ram. À hipótese aventada é que os flutuadores de madeira presos às latas
com as chapas fotográficas teriam sido retirados (Lattes, 1996).
Devido à Revolução Boliviana de 1952, iniciada em 9 de abril, Frank
Harris, chegando em abril, passou três dias no sótão da residência em
La Paz. Situação semelhante foi vivenciada por Lattes e Salmeron ao
serem impedidos de sair do Hotel Sucre. Milícias de mineiros, operários e
cidadãos armados tomaram as ruas da capital durante três dias, na mais
sen revolução do país. A junta militar, chefiada pelo general Hugo
Ballivian, foi deposta, o Exército dissolvido e Víctor Paz Estensoro assu-
miu a presidência.” Dez dias depois do início da quartelada incitada pelo
ministro do Interior de Ballivián, foi fundada a Central Obrera Boliviana
que atuou como um Estado paralelo e com as suas próprias milícias,
impondo novas normas, condutas e reformas políticas.
Á central de trabalhadores participava como um co-governo do MNR
que, no plano econômico, nacionalizou as minas de estanho (três grandes
famílias controlavam a economia boliviana), iniciou a reforma agrária,
diversificou a economia e implantou programas de colonização e a Mar-
cha para o Oriente. No campo organizativo e político, o MNR impôs a
criação de “sindicatos campesinos” e estabeleceu o voto universal e à
cidadania para a maioria indígena analfabeta, em 1956. O discurso do
nacionalismo revolucionário apregoava o início do “progresso e da civili-
zação naquela região dos Andes. À medida que o Estado oligárquico
era substituído por um novo grupo dirigente, entravam em contradição
Os interesses das classes sociais, inclusive da crescente classe média urbana
A Revolução de 1952 refundava o Estado-Nação mestiço e homogêneo.
No plano da educação, a prioridade foi multiplicar as escolas rurais.
Mesmo faltando recursos financeiros para o ensino superior e para a
pesquisa, não se retirou o apoio político a mais uma tentativa no conti-
nente latino-americano para emancipar a atividade científica e criar
ambiente de pesquisa. Lattes e Salmeron, por exemplo, concluíram que
as instalações do Laboratório de Chacaltaya eram inadequadas. Embora
a pesquisa nesse fascinante setor da física nuclear de altíssimas energias
Os raios cósmicos entre a ciência...

tosse de baixo custo, não havia na Bolívia tradição científica, grupos de


pesquisa, técnicos em eletrônica, equipamentos e laboratórios de pes-
quisa (Salmeron, 1998; Barros, F., 2003).

Diante dos obstáculos, Salmeron” preferiu fazer o doutorado em


Manchester com bolsa da Unesco, e Lattes se empenhou para formalizar
um programa de cooperação com a UMSA.

A construção do laboratório em ar rarefeito

Como no Brasil não existem altas montanhas, Chacaltaya era consi-


derado o lugar ideal: relativamente perto, acessível e comprovadamente
com ótimas condições para a realização de experimentos. Para a pesquisa
em radiação cósmica, a principal vantagem era a altitude, que permite a
produção de chuveiros atmosféricos extensos por raios primários da
ordem dos 10!*'eV e a redução da metade dos efeitos secundários da
radiação, dada a pequena espessura da camada atmosférica. A posição
de “frente” do centro da galáxia e a localização no equador geomagnético
tavoreciam o estudo das variações temporais da radiação cósmica e a
observação de fontes pontuais de raios cósmicos nos dois hemisférios
(Aguirre, 1996). Como até então não havia aceleradores que pudessem
produzir particulas com essa energia, a proposta de cooperação científica
apresentada por Cesar Lattes foi aprovada pelo CBPF e CNPq.
Tudo transcorreu rapidamente. O material científico montado nas
oficinas do CBPF foi levado para a Bolívia e os representantes da UMSA
e do CBPF assinaram o convênio de cooperação.” O convênio estabele-
ceu que o CBPF poderia utilizar as instalações de Chacaltaya por dez
anos, na qualidade de hóspede, e construir edificações que passariam
de imediato à propriedade da UMSA. Em contrapartida, deveria oferecer
cursos de fisica e de matemática na UMSA e conceder duas bolsas anuais
no Brasil para estudantes bolivianos se especializarem em raios cósmicos.
Os trabalhos elaborados no laboratório deveriam, ao ser publicados, regis-
trar o convênio UMSA/CBPF. Previa-se a substituição desse convênio por
outro que permitisse a criação de um laboratório internacional de radiação
cósmica no local 1!

oiImultâneo ao interesse da divisão econômica do Ministério das Re-


lações Exteriores do Brasil (MRE) pelo assunto, Lattes sugeriu ao presi-
dente do CNPq, o contra-almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva,
que se firmasse um Acordo de Cooperação Científica e Cultural Brasil-
Ciência, Política e Relações Internacionais

Bolívia.” O Conselho Deliberativo do CNPg constituiu então uma co-


missão integrada por Edmundo Barbosa da Silva (MRE), Cesar Lattes e
Alvaro Difini 2º

Enquanto a iniciativa de Lattes deve ser interpretada como a preo-


cupação de um cientista em legitimar o seu papel, definir relações, posições
de dominância e subordinação, a atuação do CNPq e a do Itamaraty
eram próprias da função de Estado. De um lado, como no convênio CBPF/
UMSA estavam previstas despesas de capital e custeio com recursos do
CNPq em pais estrangeiro, fazia-se necessário redobrar a atenção para
evitar futuros litígios relacionados com o direito de propriedade e utiliza-
ção de equipamentos do CBPF. De outro lado, ao atrelar um convênio de
cooperação entre Instituições científicas de países distintos a um acordo
bilateral de cooperação científica e cultural firmado entre países, a questão
deve ser examinada como uma estratégia de política externa dos países
envolvidos.

Para o Brasil, a ampliação do significado do convênio de cooperação


CDBPr/UMSA era de interesse do Ministério das Relações Exteriores, po-
dendo favorecer futuras negociações — como será examinado mais adi-
ante —, ou seja, uma ação diplomática aparentemente rotineira que, no
plano interno, equacionava conflitos entre o nacionalismo e a necessida-
de de controle de alianças não-tradicionais durante o segundo governo
de Getúlio Vargas e, noutra direção, o uso da ciência como forma de
propaganda do Estado.'* Sob este último aspecto, uma ação política deli-
berada, cujos resultados não são imediatos. O Brasil ensaiou os primei-
ros passos na gestão de Rio Branco” e a diplomacia da Bolívia conside-
rava vantajosos os acordos de intercâmbio intelectual e científico com o
Drasil, desde 1938.1º

Alem do material científico levado para a Bolívia, o CBPF construiu


três edificações em Chacaltaya para a permanência do pessoal técnico e
científico durante a semana, laboratórios e oficina. No andar superior da
edificação principal ficavam os laboratórios e, no inferior, os quartos.
Como o gerador de eletricidade não atendia à demanda e o óleo muitas
vezes congelava, era extremamente difícil suportar a temperatura nega-
tva. O frio e a qualidade das refeições tornavam árdua a adaptação dos
brasileiros à escassez de oxigênio, metade do que há no nível do mar.
Isto porque, com o aumento da altitude, o corpo humano amplia o rit-
mo da respiração, podendo fazer ajustes que resultam em um cresci-
mento vertiginoso do número de glóbulos vermelhos. O soroche, como
(Os ratos cósmicos entre a ciência...

denominam os bolivianos, condicionava o ritmo das atividades e mui-


tos precisavam recorrer a oxigênio suplementar (Barros, S., 2003).
O custo de uma linha de transmissão exclusiva a partir de La Paz era
inviável para a UMSA. A construção de uma rede para levar eletrici-
dade a Chacaltaya só foi possível com a decretação da falência de uma
das companhias norte-americanas que exploravam estanho no pais.
Como o banco estatal boliviano era um dos credores — inclusive finan-
ciara a rede de alta-tensão para a mina de estanho —, o governo de Paz
Estensoro consentiu na cessão da linha para o laboratório. As operações
politica e técnica não foram fáceis, diante do litígio do Estado com a
empresa norte-americana e da necessidade de ligação da linha à rede
que abastecia a capital, onde a energia estava racionada. A conjuntura
econômica dificultava a compra de transformadores, postes, fios de co-
bre e complementos elétricos que precisavam ser substituídos. Foi pre-
ciso transportar mais de 160 km de fios de alta-tensão no velho cami-
nhão que pertencera às Forças Armadas bolivianas, deslocar dez pessoas
do laboratório para esse trabalho e utilizar material sucateado. Somente
em 1954 a primeira fase ficou pronta, mesmo assim devido à capacidade
técnica de Juan Hersil e à surpreendente habilidade de Escobar para
negociar com membros do novo governo (Aguirre, 1996).
Us instrumentos de pesquisa fundamentais (detectores Geiger-Miiller)
e os circuitos eletrônicos de alto poder discriminativo eram construídos
no CBPE, cuja capacidade técnica instalada permitia acompanhar de perto
os avanços tecnológicos da eletrônica no começo da década de 1950. Os
próprios pesquisadores, técnicos ou estudantes de física transportavam
os equipamentos até Chacaltaya, a bordo de um DC-3 do Correio Aéreo
Nacional. Uma verdadeira expedição de caminhonete foi realizada entre
o kio de Janeiro e Chacaltaya para levar esse veículo e uma pesada e
volumosa câmara de Wilson construída nos Estados Unidos. O avião do
Correio Aéreo não suportaria o peso do equipamento (Marques, 1994;
Andrade, 1999a).

À internacionalização de Chacaltaya
A formação e os contatos dos pesquisadores do CBPF com institui-
ções estrangeiras precederam a sua fundação, incitando os físicos do
Rio de Janeiro a reproduzirem na cidade o modelo adotado em universi-
dades estrangeiras e na USP. Estabelecido sob a forma jurídica de sociedade
Ciência, Política e Relações Internacionais

de direito civil, o delegado brasileiro na Unesco, Paulo Berrêdo Carneiro,


toi sócio-fundador (Andrade, 1999a; Petitjean & Domingues, 2000).
Cientista no exercício de cargo político e entusiasmado com a reper-
cussão dos trabalhos de Cesar Lattes, Paulo Carneiro foi responsável
pelo sucesso das negociações do primeiro acordo de assistência técnica
celebrado entre a Unesco e o governo brasileiro, em 18 de abril de 1951.
O acordo favoreceu exclusivamente o CBPF, por meio da concessão de
bolsas para pesquisadores visitantes estrangeiros, formação de pesqui-
sadores brasileiros no exterior, auxílio para a aquisição de material de
pesquisa e periódicos.” Segundo Paulo Carneiro, o apoio ao CBPF resul-
tou de um acordo básico, pois esse tipo de colaboração estava se tornando
comum naquele período. Já tinham sido oficializados com Estados mem-
bros da Unesco vinte acordos semelhantes, dos quais oito beneficiaram
países da América Latina.!
Com a falta de investimento e financiamento estrangeiros para os
paises subdesenvolvidos no pós-guerra, inclusive para promover o in-
tercâmbio científico, as subvenções da Unesco permitiram o renascimento
da cooperação internacional no domínio das ciências exatas e naturais 1º
Ciências Física e Quimica foi a área mais beneficiada entre 1950-52, rece-
bendo em 1950, 27,78%; em 1951, 28,03%; e em 1952, 24,37% do total do
orçamento da Unesco.”
A Unesco não restringia seu raio de atuação: investiu na divulgação
cientifica, na promoção de eventos e cursos diversos e na educação. Para
despertar o interesse pela ciência na América Latina — cuja maioria da
população era analfabeta -, organizou clubes de ciência e, em 1950, pa-
trocinou uma exposição itinerante de física e astronomia montada no
MIL“ Examinou também a criação de um centro bibliográfico de física
e matematica na região e, para discutir as prioridades, reuniu em Paris
representantes de associações para o progresso da ciência de catorze
países.?
Em 1951, chegaram da Europa os primeiros pesquisadores visitantes
selecionados pela Unesco para atuar no CBPF: Giuseppe Occhialini,?
trazendo um processador de emulsão nuclear e vinte fotomultiplicadores;
o holandês Gerard Hepp, especialista em eletrônica fina da Philips
Research Laboratory, empresa que vendera um gerador eletrostático para
o CBPE; o alemão Helmut Schwartz, perito em tecnologia de vácuo, e O
brasileiro Ugo considerado um caso particular. Ele recebeu
uma bolsa de valor superior e ficou encarregado da compra de emulsão
(Os raios cósmicos entre a ciência...

nuclear. Gert Moliere, físico teórico especialista na teoria das colisões,


da Universidade de Tiúbingen (Alemanha), chegou em 1952. Todos tam-
bêm recebiam diárias do CNPg, pois o auxílio “faz parte da política de
intercambio cultural e científico do Conselho” 2%

Paulo Carneiro visitou o CBPF em outubro de 1951 e, fascinado com


as atividades de Camerini e Hepp, escreveu ao diretor geral encami-
nhando outras solicitações: “L' importance grandissante des travaux de
CBPF dans le cadre de I'économie du Brésil me fait espérer (...) que vous
donnerez votre appui”.* O dinamismo do CBPF se refletiu no Simpósio
sobre Novas Técnicas de Física (Rio de Janeiro e São Paulo, jul. 1952),
realizado com o apoio do Centro de Cooperação Científica da América
Latina, representação da Unesco sediada em Montevidéu. Dois temas
predominaram no conjunto de trabalhos apresentados nas sessões do
Rio de janeiro: aceleradores de partículas e raios cósmicos. Questões
teóricas e experimentais sobre a física de raios cósmicos foram abordadas
por Occhialini, Lattes, Moliêre e Manuel Sandoval Vallarta (México). *?”
Atualmente, considera-se que a física nuclear possui uma fronteira
externa comum, em parte, com a física de partículas. Naquele tempo,
englobando a física de raios cósmicos, teoria dos campos e mecânica
quântica, foi a primeira subárea da física experimental no Brasil a ter
um desenvolvimento sistemático com financiamentos do CNPag, Unesco
e Fundação Rockefeller. Como no governo Vargas a corrente “desen-
volvimentista nacionalista” permeava as ações do Estado, e a física experi-
mental tinha o alcance das aplicações tecnológicas, o CBPF e a USP de-
senvolviam programas de aceleradores e de raios cósmicos (Andrade,
1929a). Porém, a montagem do Laboratório de Chacaltaya era uma espécie
de contrapartida exigida pelo CBPF em troca do apoio ao ambicioso pro-
jeto de construção de um ciclotron, apresentado pelos militares.
O periodo em que Cesar Lattes esteve à frente do empreendimento
na Bolívia foram anos de intensa atividade. Fez-se de quase tudo: poli-
tica científica, investimento em infra-estrutura, engenharia e ciência, com
a participação de fisicos do MIT, USP e Universidade de Chicago. Além
dos respectivos projetos de investigação se adequarem às possibilidades
técnicas e financeiras, tinham objetivos precisos: determinar a vida mé-
dia do píon; medir a densidade e o espectro de energia dos chuveiros
extensos, entre os quais se encontram o méson V e outras partículas
pouco conhecidas, e determinar o segundo máximo da curva de Rossi
(Marques, 1973; Costa Ribeiro, 1994).
Ciência, Política e Relações internacionais

O CNPq concedeu regularmente bolsas e auxilios ao CBPF. Ou mais


do que isso: o CNPq garantiu o pagamento de todas as despesas admi-
nistrativas, de folha de pagamento do pessoal técnico e científico, diarias,
passagens, ajuda de custo para pesquisadores e família, da mesma for-
ma que concedeu bolsas a estudantes bolivianos, conforme os termos do
convento.

A inserção de Marcel Schein se deu através do CBPF, ao ceder uma


grande câmara de Wilson, que foi levada pelo CBPF para Chacaltaya
com apoio da Unesco.? Como o CBPF e a UMSA não receberam finan-
ciamento com essa finalidade, é possível aventar que a Universidade de
Chicago foi beneficiada por meio de um acordo entre a Unesco e os Es-
tados Unidos.

Os grupos de pesquisa
O período da montagem do Laboratório de Chacaltaya é caracterizado
pela construção da infra-estrutura para a pesquisa e pela presença de
cinco grupos de pesquisa. Os interesses se mesclavam: Cesar Lattes
interagia com os diversos grupos de pesquisa e Ismael Escobar se dedi-
cava sobremaneira às articulações com as autoridades bolivianas, subs-
tituindo os aliados do governo destituído para garantir as contrapartidas
previstas no convênio UMSA/CBPF.
O grupo de Ismael Escobar incluía Juan Hersil e os estudantes Oscar
Troncoso, Rafael Vidaurre e David Tejada. Todavia, Escobar quase não
subia para Chacaltaya, por cuidar da gerência administrativa do labora-
tório em La Paz. O grupo desenvolvia um projeto de pesquisa sugerido
por Bruno Rossi e dava suporte ao grupo do CBPF na montagem da
infra-estrutura. Era o CBPF que arcava com as despesas com pessoal e
custeio deste grupo.”
O grupo do MIT era integrado por Frank Harris e George Clark,
orientandos de Bruno Rossi, com a colaboração de Juan Hersil. O projeto
sobre os chuveiros atmosféricos extensos, de Rossi e Clark, foi o experi-
mento pioneiro do laboratório. Harris publicou com Escobar os resulta-
dos dos experimentos sobre a intensidade dos mésons na atmosfera e da
assimetria leste-oeste da mesma partícula no equador geomagnético.*
Identificou-se a presença de um terceiro grupo de físicos americanos
— Gottleb e Hertzler, ambos da Universidade de Chicago —, que utiliza-
vam uma pequena câmara de Wilson para medir o caminho livre médio
Os raios cósmicos entre a ciência

da colisão em carvão e outros elementos. Outros cientistas americanos


EStiverara em Chacaltaya apenas para conhecer o laboratório ou para
Expor chapas de emulsão nuclear. Dependendo do experimento,
retornavam para buscá-las um ou mais meses depois, analisando o a
tertal em seus respectivos laboratórios. As instituições americanas não
Investiram no laboratório.

quarto grupo de pesquisa foi organizado no Departamento de Física


da USP. Centro precursor da investigação em raios cósmicos no Brasil
Os resultados publicados sobre os chuveiros penetrantes de mésons fize-
ram com que a fisica produzida no Brasil tivesse alcance internacional
desde a década de 1930. Vinte anos depois, o entrelaçamento de físicos,
unidos pela solidariedade política e estímulo científico mútuo, contribuiu
para a constituição de um novo grupo de pesquisa na USP David Bohm!
ion Kurt Sitte”? para liderar o grupo de raios cósmicos, do qual
fizeram parte Andrea Wathagin e os recém-graduados Klaus Stefan
lausk* e Susana Lerrer?!

As atividades do grupo se iniciaram no final de 1953, com a chegada de


Sa Sitte trazendo equipamentos eletrônicos de válvulas pesadas, pois
os contadores Geiger-Miiller eram fabricados no Brasil. Durante dois me-
ses, ele preparou a equipe — todos bolsistas do CNPq - com o auxílio de
Fans Albert Meyer? Kurt Sitte e Andrea Wataghin chegaram à Bolívia
em janeiro de 1954, abominando a viagem no trem de Corumbá a Santa
tua de la Sierra. Eles transportaram os equipamentos de eletrônica.
que Susana Lerrer aprendeu a montar e a operar com Tausk.
oltte retornou aos Estados Unidos, com o seu equipamento, no mes-
mo ano. susana e Tausk continuaram os experimentos até 1956, Andrea
Yataghin se associou a Georges Schwachheim% (CBPF) para o estudo da
dependência dos chuveiros penetrantes com a altura. Os resultados do
do grupo de Sitte sobre os chuveiros extensos foram publi-
cados em co-autoria no Nuevo Cimento 3

Bob à liderança de Ugo Camerini e Cesar Lattes, participaram do grupo


do CBPF, entre 1953-55: Alfred Hendel,* Theodore Bowen? e estudantes
que começaram as carreiras no CBPF como estagiários, como Fernando
de Souza Barros, Rudolph Charles Thom e Ricardo Palmeira - estudantes
de engenharia em Recife - e Alfredo Marques — estudante de física na
PINTA, Os três últimos iam esporadicamente à Bolívia e a viagem Era con
siderada tão pitoresca que até o físico teórico Gert Moliére esteve 144
Ciência, Potítica e Relações Internacionais

Cesar Lattes tentava conciliar a pesquisa com os cargos de diretor


científico do CBPF e do Projeto dos Sincrociclotrons, conselheiro do CNPq
e professor da Universidade do Brasil, enquanto o grupo de pesquisa se
dedicava à montagem e aos testes para operar a grande câmara de Wilson
construida na Universidade de Chicago. Se os estudantes de engenharia
brasileiros tiveram a oportunidade de aprender muito sobre eletrônica
com Bowen e Hendel, faltavam condições locais para solucionar os com-
plexos problemas diários de aparelhos eletrônicos sofisticados (Barros,
F., 2003). Gerard Hepp esteve na Bolívia para auxiliar, mas também nada
pôde fazer. Erros do projeto técnico do instrumento inviabilizaram o
seu funcionamento (Marques, 2003), impedindo a observação de eventos
raros, isto é, eventos de altas energias relacionados com os mésons ou
com as chamadas partículas V de Rochester e Butller. Apesar de esse
experimento ter sido realizado por outros grupos com equipamento
semelhante operado ao nível do mar, somente em altas altitudes era pos-
sivel observar as colisões iniciais sem a ocorrência de muitas partículas
secundárias (Barros, F., 2003; Marques, 1973).
A participação de Occhialini se limitou à elaboração do programa de
pesquisa, deixando na Bolívia o processador de emulsão nuclear que
construira na Itália. O fato de ninguém ter sido capaz de operá-lo mos-
tra a distancia entre a periferia e um centro produtor de ciência, a Itália.
Problemas de ordem tecnológica obstaram a produção de ciência em
Chacaltaya pelo grupo do CBPF, apesar de haver sessenta contadores
Geiger-Muller disponiveis.” A cooperação entre instituições estrangei-
ras e latino-americanas não foi suficiente para superar todas as etapas
do processo de construção do conhecimento cientifico na década de 1950.
A UMSA e a Unesco promoveram cursos e eventos para tentar supe-
rar as deficiências locais. O 1º Curso Interamericano de Física Moderna
(La Paz, 1955) reuniu físicos e matemáticos da Argentina, Bolívia, Chile,
Equador, Paraguai e do Brasil, representado apenas por Ugo Camerini e
Guido Beck.“ Era mais um indício de que o CBPF pretendia sair da “rede
de Chacaltaya”, mesmo permanecendo como o principal mantenedor
do laboratório. Lattes estivera na Bolívia pela última vez em 1954 e,
nesse ano, Escobar pediu emprego ao diretor geral da Unesco.”
Os pesquisadores seniores do grupo do CBPF trocaram a Bolívia pe-
los Estados Unidos sem abandonarem a física de raios cósmicos e de
particulas. Alguns aderiram à nova técnica de exposição de emulsões
nucleares, que consistia no envio de equipamentos com as placas a ele-
Os raios cósmicos entre a ciência...

vadas altitudes em vôos de balões estratosféricos. Lattes fez este expe-


rimento na Universidade de Chicago, em 1955; Ugo Camerini se fixou
na Universidade de Wisconsin (Madison); Theodore Bowen trocou a Uni-
versidade de Chicago pela Universidade de Michigan; e Alfredo Hendel
foi para a Universidade do Arizona.

Us estagiários promovidos a assistentes de pesquisa do CBPF segui-


ram uma trajetória diferente de seus orientadores. Ricardo Palmeira fez
o doutorado no MIT com Bruno Rossi, trabalhou na Nasa e no National
Institute for Space Research (INPE); Fernando de Souza Barros — que
permaneceu na Bolivia por mais tempo -— e Alfredo Marques, depois do
doutorado na Inglaterra em física nuclear foram, respectivamente, para
a UFRJ e o CBPE; Rudolph Thom fundou a Braselle, indústria de instru-
memos científicos. Do grupo de São Paulo, Tausk trocou a física experi-
mental pela teórica ao retornar à USP e Susana Souza Barros foi a única
exceção. Ela optou pelo mestrado em física de raios cósmicos na Uni-
versidade de Manchester (UK), onde defendeu a dissertação sobre o
decaimento anômalo do méson-p.“
Os grupos de pesquisa do CBPF e da USP foram substituídos por
grupos do US Naval Research Laboratory, da Universidad de Nuevo
México e do Physical Research Laboratory de Ahmedabad (Índia). Pierre
Auger foi o responsável pela presença de pesquisadores indianos em
Chacaltaya (Aguirre, 1996). Ele era físico de raios cósmicos e diretor do
Uepartamento de Ciências Exatas e Naturais da Unesco.
Lattes e Escobar se reencontraram no Congresso Internacional de Raios
Cósmicos em Guanajuata (México, 1955), promovido pela Comissão de
Raios Cósmicos da International Union of Pure and Applied Physics. Os
grandes nomes da física de partículas, altas energias e raios cósmicos
foram convidados. Pierre Auger se envolveu tão diretamente que, nas
respostas aos pedidos à Unesco, abordava questões relativas aos resul-
tados de seus experimentos em Pic du Midi e fazia planos de realizar
experimentos em Madagascar.”
Ismael Escobar manteve o discurso otimista na correspondência com
O diretor da Unesco, Pierre Auger: solicitava informações sobre projetos
e EVENTOS, registrava a chegada de equipamentos americanos e pedia
apoio para a contratação de um especialista em câmara de Wilson .& Não
medindo esforços para recompor o quadro científico e prevendo a saída
dos últimos remanescentes do CBPF, o ministro da Educação da Bolívia
reiterou as solicitações de Escobar à Unesco: um pesquisador experiente;
Ciência, Política e Relações Internacionais

bolsas para professores e estudantes; recursos para reequipar o labo-


ratório; contratação de Rafael Armenteros (grupo de Patrick Blackett no
Fc du Midi), Herbert Bridge (MIT) e Martin Annis (Universidade de
Pádua).

Em 1956, Ugo Camerini modificou o organograma do Departamento


de Física Experimental do CBPF, dada a disparidade entre o desenvolvi-
mento da pesquisa em raios cósmicos no CBPF e no Laboratório de
Chacaltaya. Criou uma divisão autônoma para as atividades de Chacaltaya,
para a qual transferiu Alfredo Hendel e os assistentes Juan Hersil
Fernando Souza Barros e Ricardo Palmeira (os três em programa de pós-
graduação no exterior), sob a chefia de Escobar. À medida administrativa
foi emprestado o caráter de promoção científica: Escobar ficou respon-
sável pelas atividades do Ano Geofísico Internacional.” Na prática,
Camerini buscava desvincular as instituições para facilitar o controle.
Porém, as despesas do CBPF na Bolívia continuaram crescentes, e sem a
correspondente produção de resultados científicos na América do Sul
Na verdade, o CBPF financiava grupos de pesquisa de países muito mais
ricos do que o Brasil,
Escobar não esmorecia diante das críticas. Viajava para participar de
eventos científicos nos EUA e na Europa e, em 1957, realizou 0 1º Simpósio
Interamericano de Raios Cósmicos em La Paz. Com o apoio da Unesco,
reuniu físicos da Argentina, Brasil, Chile, Peru, Estados Unidos e Ingla-
terra (Aguirre, 1996).

As questões diplomáticas entre o Brasil e a Bolívia


A partir de 1958, o CBPF decidiu formalizar a sua saída da “rede de
Chacaltaya”, sob os protestos do Ministério das Relações Exteriores do
Brasil. No governo Juscelino Kubitscheck, procurava-se projetar a lide-
rança do país na região e rever as relações deste bloco com os Estados
Unidos, muito embora a diplomacia permanecesse atrelada aos interesses
desse país e das grandes potências européias e continuasse a apostar
mais no pan-americanismo do que no latino-americanismo (Cardoso,
19/8, Moura, 1991).

A preocupação do Brasil em manter a Bolívia sob a sua área de influ-


ência remonta a dois importantes tratados de 1938 (vinculavam a explo-
ração de petróleo em território boliviano à ligação ferroviária entre
Corumbá-Santa Cruz de la Sierra) e ao tratado de 1928, que regulamentava
Os raios cósmicos entre a ciência...

a delimitação das fronteiras comuns. Em 1952, houve troca de notas


diplomáticas entre os dois países a respeito da delimitação da área de
exploração pela Comissão Mista Brasileiro-Boliviana de Petróleo. Uma
carta reversal toi assinada no ano seguinte, na qual o Brasil se compro-
metia a destinar recursos para a exploração do petróleo na Bolívia. Por
ocasião da inauguração do último trecho da ferrovia construída pelo
Brasil para ligar os dois países, Paz Estensoro registrou o descumprimento
dessa outra parte do tratado; em 1957, o governo boliviano solicitou a
revisão de tais tratados (Cervo & Bueno, 2002).
OQ embaixador Teixeira Soares esteve à frente de uma missão brasilei-
ra em La Paz, sem obter resultados na solução do impasse entre os dois
paises. O Conselho de Segurança Nacional e o Estado-Maior das Forcas
Armadas (EMFA) se manifestaram contrários à revisão dos acordos. Em
1958, os chanceleres do Brasil e da Bolívia, respectivamente José Carlos
de Macedo Soares e Manuel Barran Peláez, reuniram-se em Corumbá e
em RKoborê para dar início às renegociações. Foram assinados então 31
instrumentos diplomáticos executórios, as Notas Reversais ao Tratado
de Roboré, que se tornaram alvo de inúmeras críticas do Congresso
Nacional. À solução encontrada pelo Itamaraty, independentemente das
pressões de grupos de interesses, amplificou o debate político na im-
prensa e no Congresso Nacional, uma vez que assuntos estratégicos
teriam sido decididos pelo Ministério das Relações Exteriores sem pré-
via consulta ao Legislativo.
Ao modificarem substancialmente os tratados anteriores, as Notas
Reversais de 1958 foram duramente criticadas pelos partidários da cor-
rente do pensamento econômico desenvolvimentista nacionalista,>! in-
clusive pela ala dos militares, sob alegação de beneficiarem as compa-
nnias petrolíferas norte-americanas em detrimento da política energética
do pais e da Petrobras. O Brasil cedia territórios, passava a ser obrigado
à construir um oleoduto e um gasoduto, perdia 60% da área para explo-
ração do petróleo a ser realizada por empresas mistas brasileiro-bolivia-
nas e, com as reversais, passou a poder ser feita por empresas brasileiras.
Enfim, empresas estrangeiras se associariam a brasileiras para a explo-
ração do petróleo, uma vez que foi introduzida a proibição de participação
de empresa estatal estrangeira no Código de Minas da Bolívia.
OU então Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE), representado
por Roberto Campos, ficou encarregado da licitação de empresas a par-
tr de normas estabelecidas por um grupo de trabalho representativo
Ciência, Política e Relações Internacionais

de outras instâncias governamentais, como Carteira de Comércio Exte-


rior (Cacex), Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), Minis-
tério das Relações Exteriores e da Viação e Obras Públicas, Conselho
Nacional do Petróleo e Conselho de Segurança Nacional (Campos, 1994,
v. 1). Irês empresas associadas ao capital americano foram qualifica-
das, ao passo que duas outras deram início a batalhas jurídicas. O
resultado conflitou com interesses de grupos econômicos, reforçou o
antagonismo entre os desenvolvimentistas nacionalistas e os não-
nacionalistas e desagradou setores organizados da sociedade.2 A mani-
festação oposicionista ganhou as ruas da antiga capital federal, o Rio
de Janeiro, a Comissão Parlamentar de Inquérito constituída para exa-
minar a política do petróleo ganhou fôlego, e até mesmo o conservador
Carios Lacerda aderiu ao protesto de estudantes, deputados, militares
e intelectuais em seu jornal, Tribuna da Imprensa. Forjou-se neste contexto
a alcunha de Bob Fields para o diretor do BNDE (Campos, 1994, v. 1).
Em meio aos desdobramentos da oposição às notas reversais ao Acor-
do de Roboré, Cesar Lattes propôs o fim da Divisão de Chacaltaya, em
reunião de colegiado. Salientou que as pesquisas na Bolívia não estavam
beneficiando os pesquisadores brasileiros, defendeu a transferência dos
recursos destinados a Chacaltaya para a construção de uma nova sede
para o CBPF e esclareceu que a interrupção das atividades de pesquisa
não representava o fim do convênio CBPF/UMSA. Na proposta de Lattes,
O pessoal técnico e administrativo de Chacaltaya deveria ser dispensado
a partir de 30 de abril de 1958, mas o CBPF continuaria concedendo
bolsas a estudantes bolivianos.

Cesar Lattes foi apoiado por Jaime Tiomno, Luis Márquez e José Leite
Lopes; Ismael Escobar se opôs e Francisco de Oliveira Castro advertiu
que a medida teria negativa repercussão política. O Conselho Técnico-
Científico (CTC) aprovou a proposta de Lattes, com a garantia de Escobar
permanecer vinculado ao CBPF por mais um ano.
A Universidad Mayor de San Andrés foi notificada pelo CBPF, mas a
pressão partiu do Itamaraty e da Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN). O presidente da CNEN, almirante Octacílio Cunha, pediu o
reexame da questão, informou que o órgão financiaria a Divisão de Rai-
os Cósmicos do CBPF e procurou o seu presidente, general Edmundo de
Macedo Soares. Este, por sua vez, foi contatado pelo ministro das Rela-
ções Exteriores, assim como Edmundo Barbosa da Silva (chefe da Divi-
são Econômica e da Divisão Política do Itamaraty e conselheiro do CNPq)
Os raios cósmicos entre a ciência...

solicitou a documentação referente ao convênio CBPF/UMSA. À embai-


xada do Brasil em La Paz foi recomendado evitar a “exploração poli-
tica da decisão do CBPF, visto que as bolsas de pós-graduação para
estudantes bolivianos de física e matemática seriam mantidas 34
As pressões do Itamaraty e da CNEN deram resultado. O CBPF re-
considerou a questão e concordou que continuaria pagando dois pesqui-
sadores do Laboratório de Chacaltaya, mediante a aprovação de um pro-
grama de pesquisa e auxílio financeiro específico da CNEN e do CNPq.*
À negociação refletia a tensão existente entre a autonomia interna e rela-
tiva da ciência e o condicionamento exterior à produção de conheci-
mento científico ou, noutras palavras, a necessidade de a ciência negociar
com outros sistemas de poder a fim de garantir a sua reprodução e infra-
estrutura. Pelo mesmo motivo, essa negociação deixou evidente que,
quando está em jogo a manutenção do local protegido para a produção
de ciência, a disputa interna entre projetos concorrentes passa para O
segundo plano e uma aliança entre colegas é temporariamente construída.
Em lugar de desaparecer do organograma, a Divisão do Laboratório
de Chacaltaya foi transformada em um departamento autônomo e Ismael
Escobar permaneceu na chefia. Porém, ele era chefe apenas de Juan
Hersil.* Evidentemente, foi um novo rearranjo administrativo decor-
rente da perda de autonomia do CBPF para outros sistemas de poder,
revelando a tensão entre os interesses da ciência e da política externa
brasileira. De um lado, a mudança resultou da pressão do Itamaraty
exercida pela CNEN, que financiava outros projetos de pesquisa do CBPF.
De outro, a separação entre o Laboratório de Chacaltaya e o Departa-
mento de Física Experimental tinha por objetivo deixar patente que as
atividades na Bolívia estavam à margem dos interesses científicos do CBPE.
Isto é, a redefinição de fronteiras entre as instituições (Chacaltaya e CBPF)
objetivava atenuar a pressão de outros grupos de pesquisa que recea-
vam perder financiamento do CNPq e da CNEN para os seus respectivos
projetos, quando fosse examinado o montante de recursos anuais des-
tinados ao CBPF

Fara o CBPF, 1959 foi um ano trágico. Além do incêndio que destruiu
a biblioteca e a Divisão de Emulsões Nucleares, a questão de Chacaltaya
incomodava cada vez mais os pesquisadores titulares diante da impos-
sibilidade de controlar a qualidade das atividades científicas realizadas
na Bolivia, ainda com o aval do CBPF, O problema foi reencaminhado
por Lattes ao CTC, que aprovou a extinção do Departamento de
Ciência, Política e Relações Internacionais

cabendo ao CBPF intermediar um acordo direto entre a


CNI EN e a UMSA. José Leite Lopes, todavia, convenceu os membros des.
5 c o l e g i a d o d e q u e a a l t e r n a t i v a n ã o c o n v i n h a a o C B P F. P a r a e l e , s e a
+ NEN e O Itamaraty tinham interesse em que o país mantivesse à aju-
da aa Laboratório de Chacaltaya, deveriam tomar para si todos os en-
cargos.” Politicamente, não havia solução.
po o tempo foi capaz de solucionar a questão: Ismael Escobar se licen-
dou so CTC aceitou o pedido de demissão de Juan Hersil, com base em
Flidadoso parecer técnico de Georges Schwachheim. Temia-se nova ten.
são nas relações com a CNEN. Como Escobar se Fixou nos Estados Uni.
dos para ocupar um cargo no recém-criado Banco Interamericano de
— senvolvimento (BID), sobrou apenas o caráter diplomático da questão
d i H o p o d e r i a s e r r e s o l v i d o n o â m b i t o d a C N E N e d o C B P F. c o m o
não o foi até a década seguinte.

Conclusão

A do Laboratório de Física Cósmica de Chacaltaya é marcada

*Perguimentotemporário,comasubstiuiçãodeprogramasdecoope-
pelo contraste entre os anos iniciais de intensa atividade, crises e

raçãointernacional.Pode-seadiantarque,aolongodequarentaanosas
possibilidades de sucesso das atividades científicas realizadas no monta
de Chacaltaya estiveram estreitamente relacionadas E avanço de
*ecnologias para a pesquisa em raios cósmicos e contaram com &
intermediação de Cesar Lattes. Como se viu, a criação do Laboratório x
hacaliava está associada ao fato de Lattes ter o domínio do uso das
nucleares e de ter sido capaz de transferir recursos do Brasil
Cro é montagem de infra-estrutura de pesquisa na Bolívia e atrair am
Pos de cientistas de outras nacionalidades, que, com equipamentos fabri.
em seus laboratórios de origem, produziram novos conheci.

deparcítua
lsa52
.00mertosdeau
tildeparaoesu
tdodarada
içãocós.
mentos. Nao bastava a natureza privilegiada ea instalação de detectores

aa partículas. Saber fazer os próprios aparatos eletrônicos ou saber


operar aqueles refugados nos laboratórios dos países desenvolvidos mar.
ou à diferença entre os grupos de pesquisa que passaram por Chacaltava
em tim período de dez anos, a pesquisa em raios cósmicos se desen.
com a inovação da Placas de emulsão nuclear, o envio de equipa:
mento com as emulsões em vôos de balões estratosféricos e O exito do
()s ratos cósmicos entre a ciência...

Os satélites artificiais marcaram a corrida espacial tanto quan-


to modificaram as investigações na área da física. Se este avanço tecno-
lógico interferiu na disputa travada no campo ideológico durante a Guerra
Fria, Os satélites modificaram as possibilidades de conhecimento e explo-
ração do espaço exterior pelos físicos, acirraram a disputa no campo
cientifico — com o fortalecimento de instituições voltadas para a pesqui-
sa espacial —- e aumentaram a distância entre os países produtores de
ciência e aqueles que têm pouca tradição. O Laboratório de Chacaltaya
entrou em colapso com a perda de recursos oriundos do Brasil e a prefe-
rência dos físicos pelas instituições cientificas americanas.
Paises sem tradição científica enfrentam enormes dificuldades para
produzir conhecimento mesmo quando há participação em projetos for-
mulados em outros centros. O convênio entre o CBPF e a Universidad
Mayor de San Andrés mostra que a prática científica não está dissociada
de outros sistemas de poder e dos movimentos da sociedade. Houve
conflitos e o CBPF precisou ceder diante das pressões exercidas pelo
Ministério das Relações Exteriores. Assim, a saída do CBPF da “rede de
Chacaltaya” foi dificultada porque coincidiu com os interesses da política
externa brasileira. Em lugar de autonomia, manifestou-se a heteronomia
do campo científico, uma vez que questões políticas interferiram direta-
mente nas decisões do Conselho Técnico-Científico do Centro. Os cien-
tistas tiveram de ceder diante do desequilíbrio na ostensiva relação de
poder entre ciência e relações internacionais, pois cultura, tecnologia e
ciência sempre foram formas de propaganda do Estado e de dominação.

Registro a colaboração de Elaine Rezende de Oliveira (bolsista AT/CNPq e


mes-tranda na UFRJ), a participação de Anna Paula Oliveira, Roberto Farias e
Vanessa Albuquerque (bolsistas IC/CNPg) no levantamento de dados e o apoio
do CNPq. Agradeço a Jens Boel (Arquivo Unesco), João dos Anjos (CBPF), ar-
quivistas e bibliotecárias do MAST, pelo acesso à docu-mentação consultada;
a o s e n t r e v i s t a d o s ; a O l i v a l F r e i r e J r. , E l i s a F r o t a P e s s o a , J a i m e Ti o m n o , O s w a l d o
P e s s o a J r. R a m i r o d e l a R e z a e A n t o n i o A u g u s t o V i d e i r a , p e l a s i n f o r m a ç õ e s
complementares; e especialmente a Marcos Chor Maio, pelo apoio em várias
etapas deste trabalho.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Notas

' Recorreu-se a Aguirre (1996), que utiliza fontes primárias de acervos bolivianos. O ambi-
ente do laboratório, as características da sociedade e o cotidiano dos cientistas brasileiros
na Bolivia foram construídos com base em entrevistas com Barros, S. (2003); Barros, F.
(2005); Lattes (1996, 2003); Salmeron (1998) e Marques (2003).
* Refugiado político da Guerra Civil Espanhola na Bolívia: funcionário do Comité Fiscal de
Fomento Agricola y Regadio, onde criou o Servicio Meteorológico Boliviano (1942); profes-
sor de cosmografia e meteorologia da Escuela de Ayudantes Técnicos da UMSA. Laites
(2003) não o considera um cientista.

* Graduado pela USP (1943), onde também foi professor (1944-49; 1960-67); pesquisador da
Universidade de Bristol (1946-47), do Radiation Laboratory of Berkeley (1948-49), do Institute
for Nuclear Studies Enrico Fermi da Universidade de Chicago (1955-56) e da Universidade de
Minesota (1956-57); fundador e diretor científico do CBPF (1949-1955); conselheiro do CNPq
(1951-55) e professor da Universidade do Brasil (1949-67) e da Unicamp (1967-84).
“O grupo de Bristol fazia parte do H. H. Wills Laboratory da Universidade de Bristol. Era
integrado por C. Powell (líder), G. Occhialini e Lattes — co-descobridores do méson-p - e
Ugo Camerini. Ver Andrade (1999).
? CBPF. Ata da 35º Sessão da Diretoria, 29 nov. 1951 (Arquivo CBPF).
* Unesco - Organisation des Nations Unies pour !' Éducation, la Science et la Culture. Rapport
au Directeur Général sur VActivité de "Organisation d'avril 1951 a jul. 1952. Présenté à la Conference
Générale lors de sa 7º" session, Paris, nov.-dez. 1952, p.153 (Arquivo Unesco).
/ Paz Estensoro governou a Bolívia entre 1952-56, 1960-64 e 1985-89.
* Há uma profusão de pequenas publicações sobre os movimentos camponeses nos An-
des e a respeito da inversão estrangeira na América Latina: as obras clássicas de André
G u n d e r F r a n k , C e l s o F u r t a d o e o u t r o s a u t o r e s d a C e p a l , e a n á l i s e s m a i s r e c e n t e s . Ve r :
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Lista de discussão: auge de los partidos campesinos. Disponível em: http://aymara.org/
a c e s s o e m a b r i l d e 2 0 0 3 .

* Graduado em engenharia e física (USP e FNFi), pesquisador e chefe da Divisão de Raios


Cósmicos do CBPF (1950-52) e pesquisador aposentado do CERN. Ver: Salmeron (1998);
CBPP. Ata da 30º Sessão da Diretoria, 7 jun. 1951; CBPF. Ata da 31º Sessão da Diretoria, 20
jul. 1951, CBPF. Ata da 46º Sessão da Diretoria, 10 fev. 1953 (Arquivo CBPF); Fellowships
1946-1956. 376(81) “56” Salmeron/TA (Arquivo Unesco).
“ CBPF. Ata da 41º Sessão da Diretoria, 2 out. 1952 (Arquivo CBPF).
“ A minuta do acordo foi discutida pela diretoria do CBPE, em 1951 e 1952. Ver: CBPE. Ata
a 56º Sessão da Diretoria, 21 dez. 1951; CBPF. Ata da 37º Sessão da Diretoria, 3 jan. 1952
(Arquivo CBPF). Informações sobre o convênio CBPF/UMSA foram enviadas paraa embai-
xada do Brasil em La Paz. Ver: Ofício de Alfredo Hendel a Paulo Vidal da Embaixada do
Brasil, 19 nov. 1953. Livro de Cartas, Telegramas. Itamaraty/La Paz 1949-1953. Cod. 23/
218, Livro de Correspondência diversa recebida pela Embaixada do Brasil em La Paz.
1952-53. Cod. 453/4/17 (Arquivo Histórico do Itamaraty).
é Ofício de E, P. Barbosa da Silva, chefe da Divisão Econômica do Itamaraty, para o CBPF em
3 out. 1953. Livro de Ofícios do Itamaraty para Associações Científicas, 1949-55. Cod. 111/5/3
(Arquivo Histórico do Itamaraty).
()s ralos cósmicos entre a ciência...

!3 Alvaro Difini era professor da Universidade do Rio Grande do Sul. Ver: Andrade, 1999a:
116; Anais da 136º Sessão do Conselho Deliberativo do CNPa, 29 tan. 1953, p.31; Anais da 157º
Sessão do Conselho Deliberativo, 30 jan. 1953 (Arquivo CNPq); Oficio do CNPq ao Itamaraty, 4
fev. 1953. Livro de Ofícios das Associações Científicas para o Itamaraty, 1952-53. Cod. 111/4/
10; Ofício do Ministério das Relações Exteriores ao CBPF, 3 jan. 1953; Ofício de Álvaro Alberto
ao Ministério das Relações Exteriores, 4 fev. 1953. Livro de Ofícios das Associações Cientificas
para o Itamaraty, 1952-53. Cod. 111/4/10 (Arquivo Histórico do Itamaraty).
!4 Sobre a política externa brasileira nos anos 50, ver: Bandeira, 1989: 27-47, 73-100; Moura,
1991: 23-43: Cervo & Bueno, 2002: 269-30/7.

> No 3º Congresso Científico Latino-Americano (Rio de Janeiro, 1905), a ciência foi utilizada
como propaganda politica pelo Itamaraty. Ver: Andrade, 2002.
16 Documentos referentes ao Convênio de Intercâmbio Cultural, assinado em 1939, entre Bo-
lívia e Brasil. Lata 1091, maços temáticos 20.775 e 20.776 (Arquivo Histórico do Itamaraty).
7 Carta de Paulo Carneiro ao diretor geral da Unesco, T. Bodet, 16nov. 1951.53 (81) A 031 TA
115 AMS — CBPE; Fellowships 1946-1956. 376(81) “56” Ribenboim/TA; Idem. Salmeron/TA
(Arquivo Unesco); Ribenboim (2002); Salmeron (1998). Em 1959, Carneiro conseguiu bônus
para a reconstrução do acervo da biblioteca destruido por um incêndio. Ver: Unesco. Conseil
Exécutif. Résolutions et Décisions Adoptées par le Conseil Exécutif en sa 54º"º Session. Paris, 1-12
jun, 1959. Résolution 94/8.8; lelegrama de Cesar Lattes a Paulo Carneiro em 1959; Idem. Te-
legrama de Cesar Lattes ao diretor geral Unesco, Rene Maheu, 23 jun. 1959. 53 (61) AOSI TA
115 AMS — CBPF (Arquivo Unesco).
'8 Carta de Paulo Carneiro ao diretor geral da Unesco, T. Bodet, 31 jan. 1951.53 (81) A 031 TA
115 AMS-— CBPF; Unesco. Kapport du Directeur Gêneral sur V Activité de [ Organisation pendant
Année 1953. Présenté aux ÉEtats Membres et à la Conference Générale lors de sa 8ºMe session.
Montevidéu, nov.-déc. 1954, p.190 (Arquivo Unesco); Oficio de Paulo Berredo Carneiro ao
ministro das Relações Exteriores do Brasil, 20 abr. 1951. Livro de Ofícios da Unesco 1949-54.
Cod. 80/4/2 (Arquivo Histórico do Itamaraty).
9 Unesco. Rapport du Directeur Général sur |" Activité de |" Organisation lors de sa 4º"º Session.
Paris, sept.-oct. 1949, p.43 (Arquivo Unesco).
20 Unesco — Organisation des Nations Unies pour I' Education, la Science et la Culture. Rapport
du Directeur Gênéral sur [' Activité de "Organisation d'avril 1951 a jul. 1952. Présenté a la Conference
Générale lors de sa 7º" session. Paris, nov.-dez. 1952, p.46 (Arquivo Unesco).
“1 Hervásio de Carvalho (1994) dirigiu a atividade no Peru, Equador e Cuba. No final da
década de 1950, a Unesco se empenhou na divulgação e utilização da energia nuclear. Ver:
Unesco. Rapport du Directeur Général sur "' Activité de ' Organisation lors de sa 5" Session. Paris,
mai-juin 1950, p.44-45; Idem. Comité Consultatif International de la recherche dans le
programme des sciences exactes et naturelles de Unesco. Rapport sur la 2ºme Session. Itália,
20-21 avr. 1955; Idem. Comité Consultatif International de la recherche dans le programme
des sciences exactes etnaturelles de 1 Unesco. Rapport sur la 3º" Session du Comité Consultatif.
Paris, 9-6 avr. 1956.

** A reunião foi presidida por Maurício Rocha e Silva. Unesco. Rapport du Directeur Général sur
[" Activité de Organisation d'avril 1950 à mars 1951. Presente a la Conference Generale lors de
sa 6ºMe session. Paris, juin-juil.1951, p.47, 48, 53, 59, 114; Unesco. Rapport Complémentaire du
Directeur Général. Paris, 8 juin 1951, p.45 (Arquivo Unesco).
“Itália (1907-1993). Graduado em física pela Universidade de Florença (1929); pesquisador
do Laboratório de Arcetri (1930-37) e bolsista no Cavendish Laboratory (1931-34), onde cola-
borou com P. Blackett; professor da USP (1937-44); pesquisador da Universidade de Bristol
(1945-47); professor da Universidade Livre de Bruxelas (1948-49); diretor do Instituto de Fisi-
Ciência, Política e Relações Internacionais

ca da Universidade de Gênova (1950-51); professor e pesquisador da Universidade de Mi-


tão(1952-93),doCBPF(1951-52)edoMIT(1960).
a Graduado em física pela USP, Universidade de Bristol (1947-52); CBPE (1952-57), onde
era o chefe do Departamento de Física Experimental; Universidade de Wisconsin-Madison
(1957-2003). Ver: CBPF. Ata da 34º Sessão da Diretoria, 11 out. 1951; CBPE. Ata da 36º Sessão
da Diretoria, 21 dez. 1951; CBPF. Ata da 38º Sessão da Diretoria, 30 maio 1952: Idem. 47º
da Diretoria, 26 mar. 1953 (Arquivo CBPF); Carta de Paulo Carneiro ao diretor geral da
Unesco, 1 Bodet, em 24 maio 1951. 53 (81) A 031 TA 115 AMS - CBPF (Arquivo Unesco); Mar-
ques, 1993: 11.

* Consideração de]. Costa Ribeiro. CNPq. Anais da 136º Sessão do Conselho Deliberativo, 29 jan.
1905 (Arquivo CNPq); Andrade, 1999a: 100.
*º Carta de Paulo Carneiro ao diretor geral da Unesco, T. Bodet, 16 nov. 1951. 53 (81) A 031
TÃ 115 AMS- CBPF (Arquivo Unesco).

A Andrade, 1999a: 25, 135-137; Costa Ribeiro, 1994: 211-12; Unesco — Organisation des
Nations Unies pour VÉducation, la Science et la Culture. Rapport du Directeur Général sur
de "Organisation d'avril 1951 a jul. 1952. Présentéâla Conference Générale lors de sa 7êrm:
session. Paris, nov.-dez. 1952, p.62; LASCO - Symposium “Modern Research Techniques in
Physics”, Rio de Janeiro 1952 — org. by Lasco. 53 A 064 (81) “52”: e o relatório de Charles
Ehresmann sobre o evento em 378.4 (81) TA/A 187 (Arquivo Unesco).
8 CBPF. Ata da 33º Sessão da Diretoria, 6 set. 1951 (Arquivo CBPF).
* Cf. CBPF. Ata da 42º Sessão da Diretoria, 28 out. 1952; Processos n. 148/ 1953, n. 163/1953 n.
164/ 1953, n. 1747 1953, n. 193/ 1953 apud CBPF. Ata da 45º Sessão da Diretoria, 8 jan. 1953;
idem, Ata da 49º Sessão da Diretoria, 20 maio 1953 (Arquivo CBPE).
= Os resultados foram publicados nas Notas de Física, preprint do CBPF, e em periódico inter-
nacional. Ver: Escobar, IV. Harris, F. B. East-West asymmetry of positive and negative mesons
at the geomagnetic equator. Notas de Física, v. 2, n. 10, 1955; Escobar, LV. Harris, EB. Directional
Intensities of positive and negative mesons in the atmosphere. Notas de Física, v.3,n.5, 1956;
Physical Review, v. 104, n. 2, 15 out. 1956; G. Schwachheim, G. Clark & J. Hersil. Polarization of
cosmic ray u-meson: experiment. Notas de Física, v. 3, n. 25, 1957.

“E Físico teórico da Universidade de Princeton, veio para o Brasil porque era vítima do
macarthismo. F aziam parte de seu grupo Ralph Schiller e Mario Bunge. Ver: CNPq. Anais da
par Sessão do Conselho Deliberativo do CNPq, 21 mar. 1951; CNPq. Anais da 97º Sessão do Conse-
Ho Deliberativo do CNPg, 30 maio 1952; Processos CNPq: 567-51 e 572-52 (Arquivo CNPq/
Acervo MAST); Freire Jr. (2003) e Pessoa Jr. (2000).

o Físico experimental, foi aluno de Guido Beck na Universidade de Praga, em 1934. Veio da
Universidade de Siracuse (EUA) com bolsa do CNPq. Ver: CNPq. Anais da 164º Sessão do Con-
selho Deliberativo, 30 jul. 1953; Processo n. 243/53 (Arquivo CNPq/Acervo MAST); Barros, S.
(2003); Havas (1995).

3 Físico experimental brasileiro e professor da USP. Ver: CNPq. Processo n. 578/51, corres-
pondência anexa de 29 jan. 1951 (Arquivo CNPq); CBPF. Ata da 45º Sessão da Diretoria, 8jan.
1953 (Arquivo CBPF).
di Depois Souza Barros, foi aluna de Guido Beck na Universidade de Buenos Aires e inte-
grou o grupo de Sitte por influência de Bohm e Bunge. Ver: Barros, S. (2003).
? Conhecido por Jean Meyer, colaborou na construção de duas câmaras de Wilson para O
laboratório do Pic du Midi e na pesquisa sobre os mésons V. Tinha bolsa da Unesco na École
Polytechnique de Paris. CNPq. Processo 1964 anexado ao Processo 578/51 (Arquivo CNPq/
Acervo MAST); Fellowships 1946-1956. 376(81) “56” Meyer/TA (Arquivo Unesco).
(Os ralos cósmicos entre a ciência...

“8 George Schwachheim se transferiu da USP para o CBPF em 1953. CNPg. Processo n. 578/
91, correspondência anexa de 50 set. 1952, 1 out. 1952, 3 ago. 1953 (Arquivo CNPq/ Acervo
MAST).
7 K. Sitte, S. S. Barros, A. Hendel, A. Wataghin. Nuevo Cimento, v. 8, 1958.
8 Alfredo Hendel era da UMSA e contratado do CBPF para a gestão administrativa do
projeto. Ver: CBPF. Ata da 40º Sessão da Diretoria, 7 ago. 1952 (Arquivo CBPF).
“2 Físico experimental da Universidade de Chicago, membro do grupo de raios cósmicos
tiiderado por Marcel Schein. Impressionou os colegas brasileiros por ser um hábil físico
experimental e ter se integrado totalmente à cultura dos aimarás. CBPF. Ata da 23º Sessão
do CTC, 22 mar. 1954 (Arquivo CBPF); Barros, F. (2003); Barros, S. (2003).
CBPF. Ata 40º Sessão da Diretoria, 7 ago. 1952; Processos n. 101/1952 en. 111/1952 (Arqui-
vo CBPE); Marques (2003); Barros, 5. (2003).
* A bolsa Unesco de Occhialini foi de um ano. CBPF. Ata da 40º Sessão da Diretoria, 7 ago.
1952 (Arquivo CBPF).
“A Unesco acompanhou o convênio através de minuciosos relatórios. Ver: Unesco —
Organisation des Nations Unies pour Education, la Science et la Culture. Rapport du Directeur
Gêneral sur Activite de [Organisation d'avril 1951 a jul. 1952. Présenté à la Conference Générale
Jors de sa 7º" session. Paris, nov.-dez. 1952, p.154-155; Unesco. Rapport du Directeur Général sur
[' Activité de [Organisation pendant Année 1953. Présenté aux États Membres et à la Conference
Générale lors de sa 8º session. Montevidéu, nov.-déc. 1954; e dossiê 53 (8DAO3ITA 115
AMS (Arquivo Unesco).
** Aguirre (1996); Contrato Unesco/UMSA, 537.59. A 072 (84) “55” LASCO (Arquivo Unesco).
* O papel do CBPF e da Unesco na manutenção das atividades em Chacaltaya é enfatizado em
relatório de 14 dez. 1956. 523.16 (84) AMS Bolívia-Cosmic Rays (Arquivo Unesco).
*º Carta de I. Escobar a M. Adiseshiah, diretor geral da Unesco, 4 jan. de 1954. 523.16 (84)
AMS Bolivia-Cosmic Rays (Arquivo Unesco).
6 CBPF. Anuário 1955-1956. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1957, p.10 (Arquivo CBPF);
Barros, 5. (2003).
* Dossiê Cosmic Rays Congress, México. Rays Cosmic Meeting 1955. 523.16 A 06 72 “55”;
Carta de Pierre Auger a Ismael Escobar em 26 maio de 1955 e Carta de Cesar Lattes a Pierre
Auger, 9 ago. de 1955.537.59 AQO72 (84) “55” LASCO (Arquivo Unesco). Sobre Pierre Auger,
ver também Elzinga (1996).
** Carta de I. Escobar a P. Auger, diretor do Departamento de Ciências Exatas e Naturais, em
29 jun. 1955. 523.16 (84) AMS Bolivia-Cosmic Rays (Arquivo Unesco). Ver também: Conseil
Exécutif. Résolutions et Décisions. Bolivie. 65/8.4 (Arquivo Unesco).
*? Carta do ministro da Educação da Bolívia ao diretor geral da Unesco, 10 fev. 1955. 523.16
(84) AMS Bolívia-Cosmic Rays (Arquivo Unesco).
UP CBPF. Ata da 54º Sessão do Conselho Técnico-Científico, 1 dez. 1956: CBPF. Ata da 1102
Sessão do Conselho Tecnico-Cientifico, 21 set. 1956; CBPF. Ata da 120º Sessão do Conselho
Técnico-Cientifico, 24 jan. 1957 (Arquivo CBPF).
* Os desenvolvimentistas de orientação nacionalista (ou estatizantes) se contrapunham
aos desenvolvimentistas adeptos da inversão de capital estrangeiro no governo JK. Ver:
lanni (109-138) e a classificação de Bielschowsky (1988).
2 O Acordo de Roboré pode ser examinado na perspectiva dessas duas correntes, respec-
tivamente, em Passos (1959) e Campos (1994, v. 1).
Ciência, Política e Relações Internacionais

** CBPF. Ata da 138º Sessão do Conselho Técnico-Científico, 6 jan. 1958 (Arquivo CBPF).
É CBPF. Ata da 127º Sessão da Diretoria, 4 fev. 1958; CBPF. 128º Sessão da Diretoria, 11 fev
1958; (Arquivo CBPF). Ofício do ministro José Carlos de Macedo Soares à Embaixada Brasilei.
ra em La Paz, 22 jan. 1958. Livro de Despachos do Itamaraty — La Paz 1950-58, Cod. 23/5/3:
Ofício do CBPF ao chefe da Divisão Cultural do MRE, 22 jan. 1957. Livro de Ofícios recebidos
das associações científicas 1958-59. Cod. 111/4/13 (Arquivo Histórico do Itamaraty).
2 CNPq. Processo n. 2415/58. Minuta do acordo entre o CNPg, a CNEN e o CBPF para a
manutenção do Departamento do Laboratório de Chacaltaya (Arquivo CNPq- Acervo MAST).
é CBPF. Ata da 139º Sessão do Conselho Técnico-Científico, 20 mar. 1958: CBPF. Ata da 142%
o do Conselho Técnico-Científico, 5 maio 1958 (Arquivo CBPF). Sobre o organograma
do Centro de Física, consulte: CBPF, Anuários 1954-1958 (Arquivo CBPF).
* CBPF. Ata da 160º Sessão do Conselho Técnico-Científico, 12 e 18 mar. 1959 (Arquivo CBPF).
* CBPF. Ata da 171º Sessão da Diretoria, 5 jan. 1960; CBPF. Ata da 177º Sessão do Conselho
técnico-Científico, 27 ago. 1959; CBPF. Ata da 176º Sessão da Diretoria, 5 abr. 1960 (Arquivo
COPE).

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SALMERON, R. Entrevista concedida a Ana Maria Ribeiro de Andrade. Paris,
1998.
Paulo Carneiro,
um brasileiro universal!

Jose Israel Vargas: Senhoras e senhores, senhora presidente do Conse-


lho Executivo, embaixadora Sônia Mendieta de Badaroux, a quem gos-
taria de agradecer as palavras pronunciadas ontem na sessão que o
Conselho Executivo tomou a iniciativa de organizar para rememorar a
passagem de Paulo Carneiro por este organismo. Gostaria de agrade-
cer também ao senhor Assad Sayad, que representa esta noite o diretor
geral da Unesco. Esperando ainda a presença do embaixador do Brasil,
senhor Marcos Azambuja, que veio do Brasil especialmente para esta
sessão. É com prazer que anuncio a presença do senhor Mário Barbosata
Carneiro, que representa a família de Paulo, e de um grupo de colabo-
radores e amigos próximos de Paulo ao longo de toda a sua vida
dedicada à Unesco: senhora Viviane Morel, segundo membro da dele-
gação brasileira em 1946; senhora Adriane Macedo, secretária de Paulo
durante vários anos; senhor Rao, antigo funcionário da delegação india-
na, filósofo, administrador e grande amigo de Paulo; nosso caro amigo,
senhor Sayad, antigo presidente do Conselho Executivo da Unesco: além
do venerável Sobita, grande amigo de Paulo.
Faulo Carneiro foi formado pela ciência, atividade que esteve de
certo modo na origem de sua curiosidade e de seu desejo de conheci-
mento de alcance universal, capaz de englobar os diversos saberes à
maneira de Comte, que ele adotou ao longo de toda a vida. Sua dedica-
ção ao projeto da História do Desenvolvimento Cultural e Científico da
Humanidade também pode ser considerada uma herança do posi-
tivismo de Comte. A idéia segundo a qual a ciência deve estar a serviço
do homem sempre guiou sua ação na Unesco. Sirva de exemplo a

! Evento realizado na sede da Unesco em Paris, no dia 4 de outubro de 2001, em homenagem


ao centenário de nascimento de Paulo Carneiro.
Ciência, Política e Relações Internacionais

criação do Comitê de Convenções e Recomendações (CRE), pouco co-


nhecido pelos não iniciados na Unesco, mas que cumpriu sempre um
papel extremamente importante na proteção dos direitos do homem.
Ele trabalhou junto com a senhora Indira Gandhi, membro do Conse-
lho Executivo, com João e várias outras personalidades de todas
as linguas, religiões e orientações políticas, sempre com a mesma tole-
râancia, a mesma competência, a mesma dedicação total ao homem e
suas relações com a natureza. Foi também um pioneiro: 16 anos antes
da Conferência de Estocolmo, lançou o projeto de estudos da Amazônia,
da Bacia Amazônica, com todos os países da região, e todos sabem que
pagou muito caro por esta iniciativa, no momento em que o Brasil caiu
sob um regime discricionário e violento.
A relação de Paulo Carneiro com a Unesco remonta a 1945, quando
da assinatura do seu ato de constituição. Tal relação durou 37 anos,
desde sua participação na delegação brasileira da Conferência de 1946
até seu falecimento, no início de 1982. Podemos dizer que sua vida se
confunde com os projetos e as causas da Unesco, cuja grande missão
deveria ser, segundo ele, a realização da paz entre os homens, fundada
na solidariedade intelectual e moral da humanidade. Ele afirmava que
o problema mais importante para a paz era encontrar uma unidade
fundamental dos sentimentos, pensamentos e atos ou, noutros termos,
uma certa homogeneidade na diversidade que resultasse numa opi-
nião pública favorável a um esforço construtivo. Num mundo dividido
por tantas doutrinas, é preciso, dizia ele, buscar a unidade por meio da
aliança de todas elas num programa mínimo comum. É preciso, enfim,
buscar um terreno de concórdia que, para ele, ganhava na Unesco sua
expressão mais clara.
Em sua trajetória de 37 anos na Unesco, Paulo Carneiro permane-
ceu fiel à Idéia do terreno de concórdia. Como é de conhecimento dos
senhores, foi Paulo quem introduziu o aniversário de Buda como uma
das grandes datas comemoradas pela Unesco, assim como introduziu,
com joão XXIII, a resolução sobre a tolerância, tão atual e importante
nos dias de hoje. No Conselho Executivo, na Conferência Geral ou nos
outros fóruns da Unesco, era ele quem resolvia as questões difíceis, os
impasses, e era ele quem orientava as discussões finais rumo ao con-
senso. Esteve ligado alias à criação do Drafting and Negotiation Group
(DING), instrumento indispensável para garantir tal consenso nas Confe-
rências Gerais, que, por vezes, atravessavam dias e noites, sem cessar.
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

Grande orador, ele sabia defender suas convicções respeitando os dife-


rentes pontos de vista, o que lhe granjcava a confiança de seus pares.
Antes de iniciarmos a mesa-redonda, assistiremos a um breve filme
sobre a salvaguarda dos monumentos da Núbia, uma questão que sus-
citou a paixão de Paulo Carneiro. Ele presidiu o comitê que promoveu os
trabalhos da Unesco para salvar esta herança extremamente importan-
te da humanidade. No filme, ouvimos a voz de Paulo Carneiro, gravada
por ocasião dos trabalhos de salvaguarda daqueles monumentos. Tra-
ta-se de um fragmento, uma lembrança de Paulo entre as centenas, tal-
vez milhares de horas (gravadas desde 1968) de suas intervenções na
Unesco sobre as mais variadas questões. Este acervo inclui também fil-
mes que permanecem depositários de uma história importante da orga-
nização, que ainda esta para ser feita.

[Projeção do filme!

Acabamos de receber do senhor Jean Clousel, secretário vitalício da


Academia de Ciências Morais e Políticas (a qual pertencia Paulo Car-
neiro), uma mensagem na qual ele se desculpa por sua ausência e evoca
'o combate travado por Paulo Carneiro em favor da compreensão muú-
tua entre os povos, do desenvolvimento e da cultura; o papel ativo que
ele desempenhou na salvaguarda dos monumentos nubianos ameaça-
dos pelas águas do Nilo, retidas pela barragem de Assuan. Preservar a
beleza nascida do gênio humano para permitir que a civilização inteira
progrida a cada dia e para impedir que esqueçamos os autores capazes
de atingir o espirito — tal foi a tarefa assumida por Paulo Carneiro”.
Gostaria de agradecer mais uma vez a todos os que contribuiram
para a realização deste evento, partilhando com a delegação brasileira
o desejo de celebrar o centenário de Paulo Carneiro. Senhores embai-
xadores, senhoras e senhores, tenho a honra de apresentar os ilustres
participantes desta mesa-redonda, que vieram partilhar conosco suas
reflexões sobre Paulo Carneiro: à minha direita, o senhor Alain Touraine,
sociólogo renomado, profundo conhecedor das questões brasileiras e
do Brasil — onde esteve inumeras vezes —, lecionou na Universidade de
São Paulo e é sócio-correspondente da Academia Brasileira de Letras,
que, alias, organizou em novembro último um importante ciclo de quatro
conferências comemorando o centenário de Paulo Carneiro; senhor Luiz
Felipe de Alencastro, renomado professor de História do Brasil na
Sorbonne; senhor Bruno Gentil, representante emérito da Maison
Ciência, Política e Relações Internacionais

d'Auguste Comte; senhor Luiz Hildebrando Pereira da Silva, biólogo e


pesquisador do Instituto de Medicina Tropical na Amazônia, do Insti-
tuto Pasteur e da Universidade de São Paulo; senhor Jean d'Ormesson,
destacado escritor, jornalista, membro da Académie Française e grande
amigo de Paulo Carneiro.
Com a palavra, Alain Touraine.

Alain Touraine: Senhoras e senhores, depois destas imagens, princípios


e projetos que nortearam a vida de Paulo Carneiro, hesito um pouco
em começar por uma anedota, mas os senhores verão que ela não é
completamente estranha a algumas das principais preocupações de
nosso amigo. Certa feita, atravessando o lago Titicaca, voltando da Bo-
livia ao Peru, conheci um jovem brasileiro de espírito literário e, ainda
por cima, monarquista, Como lhe falei de diferentes problemas, ele me
aconselhou a visitar Paulo Carneiro no Rio.

Naquele momento, como responsável pela Casa de Augusto Comte


em Paris, Paulo Carneiro estava às voltas com um embaraço dos maio-
res, pois não queria alugar a casa, mesmo que por um bom preço, te-
mendo que ela virasse uma lavanderia ou um café. Por outro lado, não
podia assumir os encargos pesados desse imóvel antigo. Foi, então, que
lhe sugeri uma solução que correspondia exatamente ao que ele que-
ria: um acordo com a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais ou,
mais precisamente, com a Maison des Sciences de 1 Homme, presidida
por Fernand Braudel, ele mesmo um grande amigo do Brasil. E foi o
que ocorreu. Aquela casa acabou sendo ocupada, pouco a pouco, pela
Escola de Altos Estudos: térreo, primeiro andar (não o andar dos ins-
trumentos musicais, que ficaram na coleção), quinto andar... Vários
membros da escola acabamos trabalhando ali. Raymond Aron traba-
lhou anos a fio embaixo (podíamos vê-lo da rua), assim como eu mes-
mo e, em seguida, Pierre Bourdieu, o Grupo do Centro de Estudos
Indigenistas etc.
Irata-se de uma anedota, mas não de um detalhe insignificante.
Afinal, aquela casa se tornou um elemento importante da base imobili-
aria, por assim dizer, da Escola de Altos Estudos, e sua quase doação
por Faulo Carneiro patenteou seu desprendimento e representou uma
ajuda considerável à nossa instituição. Ele me deu, de resto, ocasião de
visitar toda a Maison, o Museu dos Instrumentos Musicais e ainda à
Casa de Clotilde de Vaux, na rua Payenne, onde se passaram cenas
Pauio Carneiro, um brasileiro universal

emocionantes, mas num imóvel que mais tarde descobrimos não ser
bom (tinhamos nos enganado, aquele era um imóvel para desenvolver
o culto, que não era no número 10 ou 12, pouco importa). A personalida-
de de Paulo Carneiro, encontrada assim através do positivismo, des-
pertava em mim muito interesse. Suas convicções eram extraordinaria-
mente fortes. Ele nos contava, a mim e a cada um de nós, as guerras de
travesseiros travadas na infância com seus primos, uns gritando “Viva
Maria!” ou “Viva Jesus!”, os outros respondendo “viva o pai Auguste!
e viva tia Clotilde!”

Como todos sabemos, o positivismo cumpriu - independentemente,


se podemos dizer assim, de ter sido uma doutrina filosófica e sociológica
(Comte foi o inventor deste estranho termo “sociologia”, metade latino
e metade grego) —, um papel considerável na América Latina: no Brasil,
na Argentina, no Chile e em vários outros países. E vale lembrar que,
na América Latina, a modernidade veio não de baixo, mas de cima.
Não houve ali o fenômeno à inglesa da modernização do campo com o
deslocamento para as cidades de mão-de-obra e capitais, como na Grã-
Bretanha. Em compensação, num país imenso como o Brasil, que carecia
de elementos de unidade interna (os meios de circulação eram muito
rudimentares), a idéia positivista cumpriu um papel essencial na cons-
tituição do que podemos chamar de uma ideologia republicana e laica.
O fim da escravidão e a derrubada da monarquia pelos partidários
da nova República marcaram o início da grande influência dos
positivistas no Brasil entre civis e entre os militares — não como milita-
res, mas como criadores do Estado. E é a força desse Estado que aproxi-
ma o Brasil da França, pois ambos foram um Estado antes de serem
uma nação. À integração nacional se deu ao mesmo tempo contra as
oligarquias regionais e contra a influência do clero e, como os senhores
sabem, a América Latina conheceu lutas pela laicidade que assumiram
formas extremas, como no México — no momento das medidas mais
anti-religiosas e na guerra de Clisterlos, no Chile e em vários outros
paises. Em resumo, para ficarmos no caso do Brasil, no qual os elemen-
tos centrifugos eram numerosos e fortes, eu diria que os positivistas lhe
forneceram um princípio de unidade de que careceram os outros países.
Eu acrescentaria que, a exemplo de Auguste Comte, os positivistas,
em geral, e Paulo Carneiro, em particular (como lembrou o senhor
embaixador), foram grandes defensores da ciência e do espírito científi-
co. Lembramos que as ações de Paulo Carneiro na Amazônia e noutros
Ciência, Política e Relações Internacionais

lugares tiveram efeitos duráveis e lhe permitiram exercer seus talentos


de quimico. Paradoxalmente, porém, o Brasil (como a Argentina) não
chegou a pôr em prática neste ponto a inspiração dos positivistas, e eu
afirmaria mesmo que não há no mundo país inspirado pelo positivismo
que tenha chegado a dar à ciência e à tecnologia a importância concreta
que elas ganharam na Inglaterra ou na Alemanha, por exemplo.
de assistirmos ao filme sobre Abul Simbel, em que constata-
mos como esse templo foi salvo e respeitado, e depois de vermos a luz
sobre suas estátuas, cabe lembrar sempre que é, sobretudo, a Paulo
Carneiro que devemos sua salvaguarda. E não se trata somente desse
monumento, mas de todos os outros que estavam na ilha de Philae,
onde meus amigos epigrafistas não cessam de se admirar com a riqueza
das inscrições, que ainda não foram completamente reconstituídas.
Estou contente em refletir com os senhores, nesta sala da Unesco,
sobre os criadores desta instituição cuja historia já é longa. É emocio-
nante pensar hoje em Julien Huxley e, permitam-me, dado o interesse
que tenho pela América Latina, no papel trágico de Jaime Torres Bodet.
Não creio que possamos separar esses dois nomes dos de Paulo Carneiro
e Charles Morazé. Creio que podemos, sem querer excluir ninguém,
considerar os quatro os verdadeiros fundadores desta instituição, onde
fico feliz de evocar seus nomes.

José Israel Vargas: Muito obrigado, professor, pelas palavras como-


ventes e tão evocadoras de Paulo e suas obras. Passo imediatamente a
palavra ao senhor Bruno Gentil, presidente da Casa de Auguste Comte.

Bruno Gentil: Fico feliz que o professor Alain Touraine tenha se referido
à Casa de Auguste Comte e tenha também lembrado sua atualidade. É
na condição de presidente da Associação Casa de Auguste Comte, fun-
dada em 1953 por Paulo Carneiro, que fui convidado a evocar seu traba-
lho de 50 anos na salvaguarda do patrimônio do filósofo. Pretendo então
rememorar aqui as atividades de Paulo Cameiro ao longo desse traba-
lho, para em seguida comentar o espírito com o qual ele as desenvolveu.
Por não ter convivido com Paulo Carneiro, recorri ao testemunho
de membros ativos da associação que o conheciam bem, sejam os seus
familiares, sejam os amigos de sempre. Entre outros, cito o senhor Michel
Duchein, aqui presente, atual vice-presidente da associação, de cuja
aventura velo a participar a convite de Paulo Carneiro; senhora Charles
Morazê, a quem visitei levando em conta o importante papel desempe-
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

nhado pelo professor Morazé na evolução da associação; as colabora-


doras de Paulo Carneiro, Viviane Morel, Adriane Macedo e Isabelle
Pratas Frescata, citadas há pouco pelo senhor embaixador, e que são
de fato testemunhas preciosas. Recorri também aos arquivos, exami-
nando os numerosos pronunciamentos em que Paulo Carneiro expli-
cava sua ação. Tudo isso me permitiu dimensionar a imensa divida que
temos para com ele, bem como a honra e o desafio de lhe suceder, de-
pois do seu irmão Trajano, na presidência da associação que ele criou.
A propósito, penso que deveriamos associar seu irmão à homenagem
que lhe rendemos pela sua ação em prol do patrimônio de Comte. De-
pois da morte de Paulo, Trajano soube conduzir de modo firme a asso-
ciação e chegou mesmo a consolidá-la.
Meu relato começa em 1927, quando Paulo Carneiro chega em Paris
como bolsista do governo brasileiro para desenvolver pesquisas no Ins-
tituto Pasteur, onde vai preparar sua tese de doutorado em quimica.
Seu primeiro gesto é visitar (não sei se numa peregrinação) a Casa de
Auguste Comte. O que chamamos de Casa de Auguste Comte e trans-
formamos em museu é, na verdade, um apartamento que Comte ocu-
pou de 1841 até a morte, em 1857. Tudo o que havia então no aparta-
mento (mobiliário, manuscritos de Comte, documentos, arquivos) cons-
titui hoje a Casa de Auguste Comte.
Os executores testamentários estavam encarregados de preservar
esse patrimônio e, em 1897, seu presidente, Pierre Laffite, decide com-
prar o imóvel, que iria ser vendido. Para compra-lo e garantir sua con-
servação, ele cria uma sociedade civil imobiliária. Depois de sua morte,
um novo guardião é nomeado e, em seguida, depois de um segundo,
François Saulnier. É com este último que Paulo Carneiro vai ter ao en-
contrar o apartamento num triste estado. Os associados escasseavam e
a desordem reinava no apartamento. François Saulnier e seu colaborador
Fernand Rousseau recebem com muito prazer a proposta do jovem
Carneiro, e desde então ele tem a convicção de que deve participar de
uma missão essencial: criar um museu que eternize a lembrança de
Auguste Comte e, ao mesmo tempo, reativar um centro capaz de con-
gregar os positivistas do mundo todo em torno da documentação e da
pesquisa acerca da obra de Comte e de seus discípulos.
Paulo Carneiro organiza o inventário, que nunca fora feito, e passa
os fins de semana arrumando os arquivos (pois trabalhava no Instituto
Pasteur durante a semana). Em seu esforço de ordenar, faz o repertório
Ciência, Política e Relações Internacionais

de todas as cartas de Comte e publica uma centena de cartas inéditas


na Coleção dos Arquivos Positivistas, que criou junto com a École Pra-
tique des Hautes Etudes. Em 1930, diante da ameaça iminente de des-
truição do prédio, Paulo Carneiro organiza uma campanha interna-
cional e obtém o seu tombamento como monumento histórico. O projeto
municipal de alinhamento é então engavetado e Paulo Carneiro diz
que, “a partir deste momento, a cidade de Paris zela pelo futuro deste
monumento”. A mudança é crucial. Desde então, Paulo Carneiro se
propõe a reconstituir o apartamento tal e qual Comte o deixara. A des-
coberta do inventário judicial que se seguiu à morte de Comte o ajuda
a restituir a autenticidade do apartamento que, segundo suas próprias
palavras, “se tornou verdadeiramente a morada do filósofo, na qual
tudo voltou ao seu lugar primitivo. Se entrasse hoje em sua casa, Comte
teria a impressão de nunca havê-la abandonado”.
Paulo Carneiro faz tudo isso às suas próprias custas, ou quase. Res-
taura Os tapetes e os móveis para deixá-los exatamente como eram no
tempo de Comte. Em meio às dificuldades financeiras, percebe que a
sociedade civil imobiliária é incapaz de arcar com os custos de conser-
vação desse prédio do século XVIII. Depois da guerra, Paulo Carneiro
sucede a François Saulnier na gerência da sociedade. Sua preocupação
e uma só: evitar o desastre financeiro. Para tanto, sua família se cotiza e
a Associação Brasileira dos Amigos de Auguste Comte (criada por seu
pai) financia as reformas do prédio, de modo a evitar a falência da
sociedade civil, que resultaria na sua venda.
É preciso, porém, encontrar uma solução duradoura, e esta terá vindo
talvez do encontro com o professor Touraine no Brasil. Antes de fechar
O acordo, sugerido por Touraine, com a École Pratique des Hautes
Etudes, Paulo Carneiro pensa em abandonar a estrutura de sociedade
civil imobiliária, que já não convinha. Para isso, funda, em 1953, a Asso-
ciação Internacional Casa de Auguste Comte e convence, o que não é
pouco, os associados a devolverem a propriedade à Associação. Só então
é que, com a ajuda do seu amigo Charles Morazé, e graças talvez ao
seu vínculo com a Unesco, vai negociar o famoso acordo com a École
Pratique des Hautes Études, rebatizada mais tarde de École des Hautes
Etudes en Sciences Sociales. A École ocupa progressivamente o prédio,
cuja conservação o contrato lhe atribui. Esse contrato garante ainda hoje
(e espero que continue assegurando por muitos anos) a conservação do
prédio.
Pauto Carneiro, um brasileiro universal

Ao mesmo tempo, sempre com a École des Hautes Études en Sciences


Sociales, Paulo publica os escritos de juventude de Comte e os sete vo-
lumes de sua correspondência. Cada volume traz uma longa introdu-
ção que situa a correspondência na obra e na vida de Comte. São textos
notáveis, nos quais Paulo Carneiro mostra um conhecimento profundo
do filósofo e de sua vida. Ele foi auxiliado por grandes universitários
franceses: o professor Pierre Arnaud, que seria substituído por Arbousse
Dastide, e Angel Kremer Marietti. Graças aos seus dons de diplomacia,
Paulo Carneiro obtém então dos herdeiros de Clotilde de Vaux os ma-
nuscritos de Comte que ela lhes legara, assim como o romance
Wilheimine, que ela deixara inacabado, e sobretudo as últimas cartas
que Comte lhe escrevera antes de morrer. Os herdeiros de Clotilde de
Vaux cedem à Casa de Auguste Comte todos esses manuscritos.
Em 191, um ano antes de morrer, Paulo Carneiro consegue final-
mente salvar os manuscritos de Comte (que ele havia encontrado, res-
taurado e encadernado) dos riscos de dispersão, roubo e incêndio, ao
depositá-los na Biblioteca Nacional da França (BNF), declarando sole-
nemente que cabe à França e ao seu governo assumir a conservação do
inestimável patrimônio. Escolheu a BNF por julgar que só uma institui-
ção estatal de caráter permanente e de natureza estritamente cultural
ofereceria as garantias necessárias. À entrega dos manuscritos ocorre a
S de abril de 1981, na presença do primeiro-ministro Raymond Barre e
da ministra das Universidades Alice Saunier-Seité.

deu ultimo ato foi tratar de sua sucessão como presidente da associ-
ação e como guardião do patrimônio. Sentindo-se atingido pela doen-
ça que o levará embora, faz eleger, em 19 de fevereiro de 1981, a seu
irmão Irajano como seu sucessor na presidência da associação. Nessa
assembleia (da qual alguns dos presentes participaram), Paulo Carneiro
declara: “Meu irmão é o melhor dos homens. Sempre se mostrou muito
dedicado a Comte, e é hoje o responsável pela Associação Brasileira dos
Amigos de Augusto Comte, que herdou de nosso pai”. Para Paulo Car-
neiro, era importante que seu sucessor fosse um brasileiro capaz de
aglutinar os esforços dos positivistas do mundo inteiro. Sou, portanto,
com muita honra, o primeiro presidente não-brasileiro da associação.
Talvez não seja fácil avaliar hoje o que representou essa ação obsti-
nada de Paulo Carneiro ao longo de 50 anos. Pode parecer irrisória para
alguns. Para avaliá-la corretamente, porém, devemos lembrar o clima
reinante na decada de 30, marcado por dissensões e querelas infindáveis
Ciência, Potítica e Relações Internacionais

entre os diversos grupos positivistas em cada país. Disputavam a he-ran-


ça patrimonial e espiritual de Comte, as ações de uns atrapalhando as
dos outros, tanto antes quanto depois da guerra. Para piorar, Comte não
suscitava naquela altura um grande interesse no meio intelectual e culti-
vado da França. Num quadro assim adverso, só um homem da enver-
gadura de Paulo Carneiro poderia levar a cabo a tarefa que ele assumiu.
Só um homem com a força de sua convicção, com a sua diplomacia, com
a sua capacidade de inspirar confiança ao mesmo tempo nos positivistas
brasileiros e nos universitários franceses e, com o prestígio decorrente
de seu papel na Unesco, poderia levar tal tarefa a bom termo.
Gostaria de terminar com três observações sobre a obra de Paulo Car-
neiro. Em primeiro lugar, observo que ele sempre acreditou estar condu-
zindo uma missão sagrada, à qual não podia se furtar, e à qual deveria
consagrar uma parte essencial de sua vida. Penso não o estar desvalori-
zando ao dizer que, no fundo, sua ação na Unesco e sua ação em prol de
Comte configuravam um só e mesmo combate. Numa carta de 1931,
Paulo Carneiro escrevia a seu pai: “Ninguém senão eu pode hoje cum-
prir corretamente a missão de conservar a Casa de Auguste Comte em
boas condições. Quando em toda parte vacilam ou desmoronam os es-
torços de tantas gerações positivistas, salvemos pelo menos o primeiro
templo da nova fé, ele mesmo gravemente ameaçado. Velemos sobre o
fogo sagrado da casa do mestre, e as luzes apagadas se reacenderão,
mas custe o que custar não abandonarão Paris”. Essa missão lhe é oficial
e solenemente atribuída (e essa legitimidade contava muito para ele)
quando François Saulnier lhe confia sua sucessão. Ele dirá mais tarde
que “ter sido escolhido como sucessor de François Saulnier na direção
desta casa foi a honra da minha vida”. É em nome dessa missão que cria
a associação em 1953, persuadido de que uma sociedade civil imobiliária
ja não é adequada para salvaguardar o patrimônio. Aliás, queria criar
uma fundação, mas acabou dissuadido. É também em nome dessa mis-
são sagrada que, aos 80 anos, transmite seu mandato a seu irmão. Pode-
mos senti-lo ainda obcecado pela sobrevivência do depósito sagrado, e
ele mesmo fala das suas preocupações, que se tornavam “uma obsessão
com o que poderia ocorrer amanhã se eu morresse”.
E Isso me conduz a retomar, numa segunda ordem de considerações, a
questão do positivismo de Paulo Carneiro. Se ele era, como dizia seu ir-
mão lrajano, um positivista consumado, não era porém um doutrinário.
Por outro lado, se foi levado, como notava seu amigo Rodolfo Paula Lopes
Paulo Carneiro, um brasileiro universa!

no momento de sua morte, a considerar como supérfluos ou prematuros


certos aspectos da Religião da Fiumanidade, nunca renegou o seu con-
junto. Pelo contrário, inspirou-se nela durante toda a sua vida, mas com
uma largueza de vista que lhe permitia tolerar e compreender todas as
convicções e aspirações humanas. Donde sua irritação, aliás, diante das
querelas entre os diferentes grupos positivistas. Para ele, o que contava
era o retorno as fontes, e o retorno às fontes era o retorno ao pensamento
de Auguste Comte, que ele dizia complexo, vivo e evolutivo. Numa en-
trevista a um jornalista brasileiro por ocasião da entrega dos manuscri-
tos, afirmou: “Não concebo o que teria sido minha vida sem Auguste
Comte. Lutei toda a minha vida por seu ideal de liberdade e justiça soci-
at. Comte representa o melhor de mim, e se lhe consagrei 50 anos de
minha vida, restituíi apenas uma infima parte de tudo o que dele recebi”.
Como ultima observação, ressalto que Paulo Carneiro concebia sua
missão não como chefe espiritual do positivismo (muita gente reivindi-
cava essa posição), mas muito modestamente como guardião do
patrimônio legado por Auguste Comte. Pensava que o museu e o centro
de documentação e pesquisa que havia criado deviam se abrir o mais
possivel a todos os pesquisadores universitários e intelectuais do mun-
do inteiro. Para ele, a associação é um órgão de conservação do
patrimônio intelectual e moral que pertence à humanidade inteira, e
merece ser legado à posteridade. Foi por isso que recorreu desde cedo
a grandes historiadores, a sociólogos, a pesquisadores e a filósofos. Em
seu importante discurso de 3 de setembro de 1951, no momento de
criar a associação, dizia que “é preciso buscar um público muito mais
amplo do que o de quando Comte morreu. Comte cresceu na consciência
dos homens, e deixou de ser simplesmente o chefe de um grupo ou o
fundador de uma religião cujos adeptos o cercam. É muito mais uni-
versal neste momento. Busquemos o apoio de todos os que são capazes
de compreender a importância da obra de Comte, mesmo que não sejam
positivistas, e mesmo que não estejam ligados à obra que universaliza
o grande pensador”.
Para terminar, invocarei uma frase do professor Morazé, que acom-
panhou Paulo Carneiro na história da associação, e que não era nada
positivista. Numa assembléia geral, tempos depois da morte de Paulo
Carneiro, o professor Morazé dirá: “Entrei na associação segundo a von-
tade de Paulo Carneiro, não para mumificar o pensamento de Auguste
Comte, mas para lembrar aos seus herdeiros — isto é, a todos os pesqui-
Ciência, Política e Relações Internacionais

sadores em ciências humanas que a prolongam, diversificam e enrique-


cem — que Auguste Comte existe e que existe uma associação a ele
dedicada que devemos aos nossos amigos brasileiros, que nos ajuda-
ram a conservar a lembrança deste grande homem e que merecem nos-
sa gratidão”. Obrigado.

Jose Israel Vargas: Muito obrigado. O professor Morazé não pôde estar
conosco esta noite, mas sua esposa veio representá-lo, e eu gostaria de
lhe agradecer, antes de passar a palavra ao professor Luís Hildebrando
Pereira da Silva.

Luis Hildebrando Pereira da Silva: Costumamos dizer que o mundo é


pequeno, mas não sei se é verdade. Costumamos dizer também que os
caminhos das pessoas acabam se encontrando. Isso talvez seja ainda
menos verdadeiro. Quando penso na vida de Paulo Carneiro, tais afir-
mações me parecem encerrar uma certa verdade. Venho de Rondônia,
na Amazônia brasileira, onde dirijo um instituto de pesquisas depois
de ter trabalhado trinta anos no Instituto Pasteur. Rondônia fica na
fronteira com a Bolívia, numa região da Amazônia inteiramente isolada,
a .0ULKkm do Rio. Foi colonizada por um militar positivista do Brasil, o
marechal Rondon, um dos ilustres personagens a que se referia Alain
touraine. Rondon cumpriu um papel muito importante na direção do
Estado republicano do Brasil em seus inícios, e foi o principal responsá-
vel pela criação de Serviços de Proteção aos Índios. Pois bem, o marechal
Rondon foi padrinho de batismo de Paulo Carneiro na igreja positivista.
Fartilho com Paulo Carneiro a experiência de ter sido pesquisador
no Instituto Pasteur. Trabalhei lá mais tempo do que ele, mas talvez
com menos brilho. Ele veio para a França em 1936 quase como um
exilado. Embora não tenha sido um revolucionário, Paulo estava próxi-
mo das idéias e das propostas que guiaram a revolução da Aliança
Nacional Libertadora em 1935, o que lhe trouxe problemas em segui-
da. Essa foi uma das causas de sua vinda para a França. De minha
parte, fui exilado em 1964 por razões semelhantes. O mundo é pequeno.
Gostaria de apresentar-lhes algumas reflexões sobre Paulo de
Dberrêdo Carneiro, cientista no Instituto Pasteur. Em Rondônia, são
registrados muitos casos de tétano por ano, sobretudo entre os cam-
poneses. As taxas de mortalidade entre os pacientes atingidos pela doen-
ça e hospitalizados é algo da ordem de 70%. No sul do país, porém, a
mortalidade por tétano caiu a zero, graças ao acompanhamento dos
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

doentes nos centros de tratamento intensivo, onde eles são 'curarizados'


e submetidos à respiração artificial. Este é, aliás, o procedimento ado-
tado nos paises avançados, onde o tétano é muito raro, graças à vacina-
ção sistematica das populações. A primeira referência a esse procedi-
mento é, em todo caso, do pasteuriano Paulo Carneiro. Em sua comu-
nicação de 21 de fevereiro de 1939 à Academia de Ciências, Paulo diz
que “soluções equivalentes, quimicamente intituladas 'curare' e
Sstricnoletalina”, agem exatamente da mesma forma. De resto, a respi-
ração artificial me permitiu salvar animais paralisados (rãs, cobaias e
coelhos) por doses mortais tanto de um quanto da outra”.
Paulo foi, portanto, o primeiro a lançar mão da respiração artificial
para controlar a paralisia provocada pelo curare. Parece paradoxal que
uma paralisia provocada pela toxina tetânica possa ser tratada por uma
substância que produz, ela também (assim como o curare), uma parali-
Sta muscular. Hoje em dia, o aparente paradoxo foi esclarecido, graças
ao progresso do nosso conhecimento sobre os diferentes tipos de
sinapses nervosas e neuromusculares: sabemos que a toxina tetânica
age ao nível de um tipo de sinapse nervosa, provocando a contratura
muscular, e que o curare age ao nível pós-sináptico dos músculos
esqueléticos, provocando uma paralisia sem contratura. O curare blo-
queia, portanto, indiretamente o efeito da toxina tetânica e permite
etiiminãáâ-la.

Os resultados originais dos estudos sobre os efeitos do curare em-


preendidos no Instituto Pasteur por Paulo Carneiro foram, porém, mal
recebidos pelos neurologistas e electrofisiologistas da época. Ao che-
gar do Brasil em 1936, Paulo concentrara seus esforços na purificação
do produto ativo do curare. Ele já era um químico competente e reco-
nhecido, e essa era sua segunda experiência de pesquisador no labora-
tório de química biológica do Instituto Pasteur. Na primeira, ele havia
preparado, sob a direção de Gabriel Bertrand, chefe do laboratório, sua
tese de doutorado, defendida em 1931, na qual ele determinara a com-
posição em cafeina e teobromina das diferentes partes da Paulinea
cupana, planta de onde vinha o guaraná dos índios da Amazônia. Ao
retomar, cinco anos depois, as pesquisas no mesmo laboratório, Paulo
as direcionou para sua nova paixão, o curare (sempre um produto dos
indios da Amazônia).
Após dois anos de trabalho intenso, consegue isolar a stricnoletalina
e a curareletalina. As propriedades físicas e as fórmulas elementares de
Ciência, Política e Relações Internacionais

composição que ele descobre definem tais substâncias como alcalóides,


que podem ser encontrados em proporções variáveis nas amostras de
curare examinadas e nas cascas da stricnos letalis. De acordo com suas
composições, elas diferem dos alcalóides já assinalados por King (1935),
sob o nome de tubocurarina, e por Wieland (1936), sob o nome de
toxiterina. Depois de identificar os produtos 'curarizantes”, Paulo pro-
cede ao seu estudo farmacológico e farmacodinâmico, e é então que en-
tra em conílito com os cientistas da época, e especialmente com um dos
maiores, o professor Louis Lapicque, criador da teoria da cronaxia.
Em seus estudos farmacodinâmicos, Paulo reproduz as experiências
clássicas de Claude Bernard com a rã: efetuando uma ligadura da cir-
culação arterial da pata posterior da rã, mas deixando intactos os nervos
que ligam seus membros à sua medula espinhal. Paulo confirma os
resultados de Claude Bernard que indicavam uma conservação da sen-
sibilidade e uma abolição da motricidade. Contrariamente a Claude
Bernard, porém, Paulo observa que os ciáticos da rã, inteiramente para-
continuam a transmitir a corrente elétrica. Interpreta essa diver-
gência à luz dos produtos usados em cada caso: enquanto Claude
Bernard havia usado o curare bruto, Paulo havia usado a stricnoletalina
purificada — o que permitiu, segundo ele, uma maior precisão na dosagem
e uma utilização de vias mais diretas de aplicação dos produtos ativos.
A reação de Louis Lapicque a esses resultados, comunicados à Aca-
demia de Ciências em 30 de janeiro de 1939, foi virulenta. A princípio,
tentou Impedir a publicação da nota de Paulo Carneiro, apresentada
por Faui Portier. Não conseguindo, Lapicque exigiu e obteve a publica-
ção de algumas observações, que foram anexadas à nota de Paulo. Ne-
las, Lapicque dizia: “Sejam quais forem as constatações experimentais
do senhor Carneiro, a noção de excitabilidade indireta de um músculo
curarizado é inadmissível. Uma paralisia que se produza respeitando
tal excitabilidade não é uma curarização”. Desafiado a verificar os re-
sultados experimentais de Paulo, Lapicque conclui que eles se expli-
cam por um eteito central do produto usado e purificado pelo pesqui-
sador brasileiro.

Mas Paulo Carneiro não se deixou impressionar. Um mês depois,


numa nova comunicação de 21 de fevereiro de 1939, começa citando
em epigrafe uma declaração do próprio Claude Bernard, segundo a
qual “nós sacrificaremos hipóteses e teorias quando elas forem invali-
dadas pela descoberta de fatos novos, que serão as únicas realidades
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

indestrutíveis sobre as quais a ciência positiva deve se fundar e se er-


guer pouco a pouco”. Em seguida, Paulo diz que “quando o senhor
Lapicque afirma estar certamente diante de uma ação nervosa central,
sua afirmação resulta de um raciocínio errado, pois se as rãs submetidas
as suas experiências respondiam ainda ao curativo de um membro,
não estavam então paralisadas. A condição fundamental da experiência
de Claude Bernard não estava portanto satisfeita”.
Vevemos reconhecer que ambos, Paulo e Lapicque, estavam parci-
almente certos e parcialmente errados. As observações iniciais de Claude
bernard e de seu aluno Wulpien mostravam que o efeito tóxico do curare
não atinge nem os músculos nem os nervos, mas se observa no nível da
junção neuromuscular. Anos mais tarde, o inglês John Newport demons-
traria que, nesse nivel, encontra-se um acúmulo de uma substância
receptora da substância contrátil. Foi preciso esperar muitos anos para
identificar a natureza desses receptores e dessas substâncias contráteis.
rioje, isso já está feito, e já somos capazes de estabelecer uma caracteri-
zação molecular dos diferentes receptores pós-sinápticos e dos respec-
tivos neuromediadores. Curiosamente, no caso dos mediadores dos
receptores de nicotinacetilcolina, próprios das sinapses colinérgicas dos
musculos esqueléticos (aqueles sensíveis ao curare), vieram também
do Instituto Pasteur as contribuições decisivas para a determinação da
natureza agonista da nicotina e antagonista do curare. Primeiro, Daniel
Bouvet obteve os primeiros curares sintéticos. Depois, Jean-Pierre
Changeux descreveu em detalhe, ao longo dos últimos 30 anos, a estru-
tura molecular e as propriedades funcionais das sinapses colinérgicas.
O mundo é pequeno.
A originalidade dos trabalhos de Paulo Carneiro reside, sobretudo,
no fato de ele dirigir suas pesquisas para a bioquímica e a farmacologia
das interações das moléculas agonistas e antagonistas com os recep-
tores, num momento em que a eletrofisiologia nascente explicava os
fenômenos de condições nervosas por propriedades devidas à cronaxia
(quem se lembra hoje da cronaxia?). E foi finalmente graças aos estudos
sobre a eletroplaca dos peixes elétricos e das interações irreversíveis da
alfatoxina da cobra sobre o receptor que pudemos purificar, analisar e
em seguida clonar os gens codantes para os receptores colinérgicos, es-
tabelecer sua estrutura e suas propriedades funcionais de ativação e
desativação. Paulo Carneiro se situa, portanto, na linha direta dessas
descobertas que abrem hoje grandes perspectivas para a produção de
Ciência, Política e Relações Internacionais

remédios contra a ansiedade, a dor, a degenerescência nervosa e outras


patologias humanas. Obrigado.

José Israel Vargas: Muito obrigado. Passo imediatamente a palavra ao


senhor Luiz Felipe de Alencastro, historiador e professor da Sorbonne.

Luiz Felipe de Alencastro: Senhoras e senhores, fui incumbido de falar


brevemente do positivismo no Brasil, um tema vasto e já abordado pelos
ilustres colegas desta mesa. Serei então breve, para falar um pouco tam-
bem do próprio Paulo Carneiro, que tive a sorte de conhecer em Paris.
Quando o positivismo se estrutura na França, o Brasil é a única
monarquia da América, e aparece como o representante do sistema
europeu, monárquico, num continente em que predomina o sistema
republicano americano — aliás, naquele momento as repúblicas eram
muito mais numerosas no Novo Mundo do que na Europa. A idéia
mesma da América Latina (nascida da diplomacia do Segundo Impé-
rio) se associava à idéia de Augusto Comte, que previa para o Brasil um
lugar importante no futuro da humanidade e um peso também impor-
tante na política internacional. Segundo Comte, o Brasil estava desti-
nado a contrabalançar a potência dos Estados Unidos da América, e
sobretudo a influência anglo-saxã no mundo. É portanto também como
representante da cultura latina que o Brasil recebe no esquema de Comte
uma posição importante nas relações internacionais.
A influência do positivismo era muito grande nessa época, em que
o Brasil ainda não fixara suas raizes americanas (o que só ocorrerá mais
tarde, na República). Mas ela não era a única. De fato, o positivismo
entrou no Brasil junto com o kardecismo (o espiritismo) e a homeopatia.
Por que as três influências vinham juntas? O kardecismo, como já nos
ensinou Roger Bastide, aparecia como uma religião laica, que dava
importância ao transe, recusado pelo catolicismo vigente no Brasil (e
pelo cristianismo em geral), mas tido em alta conta pelas religiões afro-
brasileiras. O kardecismo fornecia uma maneira de organizar o além
ou, dito de outro modo, permitia concebê-lo de modo estruturado. A
homeopatia, por seu turno, reabilitava a fitoterapia, a medicina popular
brasileira, em que se misturavam os tratamentos à base de plantas bra-
sileiras transmitidos pelos ameríndios e os elementos provenientes das
culturas africanas e portuguesa. O peso da medicina homeopática fran-
cesa foi grande, como nos mostram as estatísticas disponíveis de certas
cidades brasileiras. Em Campinas, por exemplo, na fronteira do café
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

em 1899, existiam cinco médicos, três dos quais homeopatas... A


homeopatia aparecia também como uma contribuição para a cura de
doenças a partir de medicamentos simples ao alcance de todos, bem
conhecidos nas práticas medicinais tradicionais do Brasil. Essa tripla
influência ajuda a explicar por que as primeiras gerações de positivistas
da República eram ao mesmo tempo positivistas, kardecistas e
homeopatas. Isso era uma constante naquele momento.
Os militares positivistas cumpriram, como lembrou o professor
louraine, um importante papel na proclamação da República em 1889
(e poderiamos lembrar aqui os papéis análogos desempenhados por
Teófilo Braga em Portugal e Tomás Masaryk na Tchecoslováquia). Eles
introduziram no Exército uma certa visão do Estado, transmitida pelo
marechal Rondon, que incluia o respeito pelos índios e uma nova con-
cepção das fronteiras e do povoamento. No seio do humanismo e da
retigião do progresso propugnados pelos positivistas, o culto à ciência
e as disciplinas científicas vai reverter completamente toda a tradição
ibérica fundada no juridicismo e no ensino literário. Esse é o momento
(cujo representante maior é Euclides da Cunha) no qual o engenheiro
ganha o primado na política brasileira, em detrimento da tradição de
advogados. Essa influência se espalha, e poderíamos talvez surpreender
um de seus ecos longínquos na atuação de Fernand Braudel em prol da
ocupação da Casa de Auguste Comte pela Escola de Altos Estudos.
lendo como amigo mais próximo no Brasil o grande filósofo positivista
João Cruz Costa, podemos dizer que Braudel estava duplamente moti-
vado a tomar a iniciativa de ocupar, em Paris, a Casa de Comte.
Para dimensionarmos a força da influência positivista no Brasil, basta
entrar na internet, no site (que é francês) dos positivistas, onde encon-
tramos um levantamento, por país, das associações e da bibliografia do
e sobre o positivismo no mundo. O elenco dos países inclui Alemanha,
Argentina, Bélgica, Brasil, Chile, Dinamarca, França, Inglaterra, Irlan-
da, Hungria, Japão, México, Países Baixos, Polônia, Portugal, Rússia,
o u é c i a , R e p ú b l i c a Tc h e c a , E s l o v á q u i a , Tu r q u i a , E s t a d o s U n i d o s e
Venezuela. Os três países que possuem mais referências são a França, a
Inglaterra (considerada junto com a Irlanda) e o Brasil. É aí que a influ-
encia de Comte permanece ainda hoje mais forte.
Ão empreender a organização e a publicação da correspondência
de Comte, Paulo Carneiro mostrou aos que o cercavam na época todas
as suas qualidades, salientadas, aliás, pela excelente plaquete editada
Ciência, Política e Relações Internacionais

pela delegação brasileira junto à Unesco: seu universalismo (a plaquete


e muito bem intitulada “Um brasileiro universal”, e não “cosmopolita”,
o que teria conotado o diletantismo de certa elite latino-americana, e
nem tampouco “internacionalista”, o que também redundaria em contra-
senso), seu humanismo, seu largo interesse por todos os debates e pro-
Dlemas, sua visão premonitória. Sobre esta última, peço licença para
ler um trecho de uma carta sua de 1947 a Julien Huxley (a página 7 da
brochura), em torno de uma estação científica que a Unesco queria fun-
Gar em certos paises latino-americanos. Nessa carta, Paulo diz a Huxley,
de uma maneira premonitória: “Não se esqueça, senhor diretor geral, de
que os países sul-americanos são muito exigentes e não gostam nada
de se sentir considerados como colônias as quais se envia missões de
estudo das quais eles não participam. Penso, de resto, que a China, o
Extremo Oriente e o Oriente Proximo terão o mesmo sentimento diante
das estações cientificas que a Unesco pretende criar em seus respectivos
territórios”. Trata-se de uma carta premonitória, em relação às dificul-
dades e perseguições de que mais tarde o próprio Paulo será vitima no
Brasil, quando da organização da estação de estudos sobre a Amazônia.
É como se ele pressentisse de onde poderia vir o ataque, e, de fato, 20
anos mais tarde pagou um alto preço por essa iniciativa aos setores
mais limitados de um nacionalismo brasileiro que assumiu naquele
momento um perfil autoritário.
Durante o regime ditatorial instalado em 1964 no Brasil, Paulo foi
um dos que receberam todo mundo aqui em Paris, com muita consi-
deração e atenção. Graças à mediação do seu filho Mário Carneiro (grande
fotografo de cinema e cineasta ligado ao movimento do Cinema Novo),
Paulo pôde retomar pela primeira vez depois de sua chegada em Paris
um contato mais continuo com uma nova geração de jovens. Foi então
que pôde mostrar a muitos de nós a importância do positivismo e tam-
bêm a da sua própria obra (esta só fomos perceber mais tarde).
OÚrganizando a correspondência de Comte, deparou-se com as car-
tas escritas ao mestre por seus discipulos e admiradores. Entre elas,
uma permanecia ainda fechada, pois chegara do Brasil meses depois
da morte de Comte, em 1857. Fora-lhe endereçada por um músico fran-
cês que visitava o Rio de Janeiro na excursão de uma ópera. Paulo abriu
a carta com emoção e a leu. O músico positivista se mostrava chocado
pela cidade do Rio, que se pretendia francesa e parisiense, mas que,
metade africana e majoritariamente negra, seguia sendo na verdade a
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

maior concentração urbana de escravos do mundo (a escravidão urba-


na teve no Brasil um enorme desenvolvimento, sobretudo no Rio). A
carta estava cheia de observações sobre essa extravagância social. Ao
l ê - l a , P a u l o c o m e ç o u p o r s o r r i r, m a s e x p e r i m e n t o u e m s e g u i d a u m
momento de tristeza, pensando no destino paradoxal de seu país. Ape-
sar da nota um pouco dissonante, eu gostaria de encerrar minha comu-
nicação com essa cena, que é reveladora do sentimento agudo que ele
tinha pelo seu pais, bem como do seu sofrimento diante da distância
entre a aspiração universal e o atraso real do Brasil. Numa palavra,
cliante do impasse sempre renovado que se apresenta como a imagem
mesma do destino do Brasil. Muito obrigado.

Jose Israel Vargas: Muito obrigado, senhor Alencastro. Last but not least,
tenho o prazer de passar a palavra ao senhor Jean d'Ormesson, que dis-
pensa apresentações, sobretudo aos brasileiros.

Jean d'Ormesson: Obrigado, senhor embaixador. Serei extremamente


breve, pois já é tarde e tudo já foi dito pelos que me precederam. Gosta-
ria de dizer por que estou aqui nesta mesa com os senhores, que são
muito mais competentes que eu. Estou aqui para pagar uma dívida. Há
cinquenta anos, Paulo Carneiro já era uma figura legendária em Paris, e
eunão era ninguém. É ele foi de uma bondade, de uma generosidade, eu
quase diria de uma afeição sem par. Por isso, depois de cada encontro
com ele, eu me perguntava como poderia pagar aquela dívida de gratidão
que só se acumulava. E é por essa razão que estou aqui.
Não me recordo mais de como encontrei Carneiroki, mas tenho a
impressão de que desde que eu (que não era nada) cheguei nesta casa,
ele (que era tudo) me acolheu sob sua asa protetora. E eu via que eu não
era o único, e que ele representava algo de excepcional para dezenas, cente-
nas de pessoas em Paris. Por que excepcional? Por quatro razões, e não
consagrarei aqui mais de um ou dois minutos a cada uma delas: ele era
brasileiro, ele era positivista, ele era um sedutor e ele era elogiente.
Ele era brasileiro, e isso representava muito para nós, senhor embaixa-
dor. Fui educado na lembrança de uma longa linhagem de brasileiros,
de Machado de Assis a Jorge Amado (meu amigo recentemente falecido),
passando por muitos outros. Para citar apenas os mortos (não gostaria
de citar nenhum vivo), lembro que Afrânio Peixoto, Miguel Ozório de
Almeida, Alceu Amoroso Lima foram nomes que me embalaram durante
toda a minha infância, e a alta estatura de Carneiro me apareceu natural-
Ciência, Política e Relações Internacionais

mente como uma força protetora e tutelar. Depois dele e antes de Vossa
Excelência, senhor embaixador, houve um outro grande brasileiro em
Paris: Carlos Chagas Filho, e estou certo de que esta casa deve muito tam-
bém a Chagas. Em todo caso, quem reinava na época era Paulo Carneiro.
Naquela epoca, e sobretudo durante a Guerra Fria, havia muita gente nesta
casa. Conheci aqui soviéticos maravilhosos, americanos inesquecíveis,
ingleses por quem eu era louco, africanos que sabiam tudo, que me reci-
tavam a liada, a Odisséia e os poetas franceses, enquanto eu era incapaz de
fazê-lo. Era um deslumbramento permanente. Paulo Carneiro era o Brasil
em Yaris, e era ao mesmo tempo o mais parisiense dos parisienses. Se eu
tivesse mais tempo (mas não tenho), lhes explicaria como um brasileiro
se transformou num parisiense e como este parisiense se tornou universal.
Ele era positivista. Eu supunha conhecer um pouco de filosofia, e nada
sabia do positivismo, do qual não vou falar depois das considerações tão
eloquentes do meu amigo louraine. Lembro apenas que Paulo Carneiro
me arrastava para toda a parte e me explicava o positivismo. E direi ape-
nas duas coisas. Uma é anedótica, mas de uma anedota tão profunda que
se poderiam escrever romances inteiros em torno dela. Ele me parecia
como um historiador, um filósofo, quase como um homem político ou um
escritor. Descobri com espanto que ele chegara em Paris como químico e
biólogo. E ele me contava que, bem jovem, fora encarregado de uma
missão, a Casa de Auguste Comte. Estupefato, eu via aquele homem se
transformar em arquivista, agente imobiliário, jurista, caminhoneiro.
Transportava papéis consigo e lançava mão de uma energia espantosa.
Eu pensava comigo: “Eis ai uma carreira e uma vida inteiramente guia-
das por uma idéia trazida da infância”. Outro aspecto deve ser salientado:
eu o vijunto de muitos marxistas, muçulmanos, budistas, cristãos. Ele acre-
ditava profundamente no positivismo, mas era incrivelmente aberto a tudo
o que não era positivista. Foi ele quem me ensinou que talvez seja preciso
acreditar muito profundamente em algo para aceitar que outros acredi-
tem em outras coisas. Vez por outra, eu me dizia: “Ele não é positivista!”.
Engano meu, ele era positivista. Mas era tão forte que compreendia tudo o
que não era positivista.
Ele era um sedutor. Não descerei às anedotas, poderia lhes contar
tantas... Havia uma verdadeira Internacional de amigos e amigas de
Paulo Carneiro, que encontrei na China, em Pequim, no Vaticano, em
Nova Iorque e nas regiões mais remotas da África, da América Latina e
da Ásia. Ele arrastava atrás de si todos os corações. Muitas mulheres o
Paulo Carneiro, um brasileiro universal

amavam, mas muitos homens igualmente, e também eu o amava. É quan-


do eu estava com ele no pequeno apartamento em que tinha a bondade
de me acolher, ficava como que fascinado e compreendia logo a sedução
que ele podia exercer sobre as pessoas dos dois sexos (e dos três ou qua-
tro sexos, se existissem três ou quatro sexos!) que me falavam dele com
tanta emoção.
Creio que foi Giraudoux quem disse que “nenhum mudo nunca se-
duziu nenhuma mulher”. Paulo Carneiro não era mudo. Era eloquente,
e sua eloquência era algo extraordinário. Eu acabava me dizendo que ele
poderia falar de qualquer coisa. E os senhores sabem, isto era uma lenda
naquela época. Esta casa teve lendas. Penso num afegão maravilhoso
que era uma lenda; penso em tantos russos que eram extraordinários,
em um inglês — esta casa era cheia de pessoas excepcionais, que a cons-
truiram. Costumamos dizer que os cemitérios estão cheios de pessoas
insubstituíveis. É verdade, mas elas não são de fato substituídas. E Car-
neiro não pode ser substituido. Eu me lembro que quando se anunciava
um pronunciamento de Paulo Carneiro sobre coisas tão tediosas quanto
o aluguel das organizações não-governamentais cujo pagamento à
Unesco estava em atraso, iamos correndo à Conferência Geral para vê-lo
falar de questões puramente materiais de 250 francos que não tinham
sido depositados, pois punha tanta emoção, tanta paixão nisso que era
maravilhoso. Mas o mais extraordinário é que a elogquência se elevava às
maiores questões do século que passou. Os senhores viram esse filme.
Ouvi Paulo Carneiro falar da Libia, do Egito, da fraternidade entre as
nações, dos pobres, dos paises do Terceiro Mundo, da paz, da filosofia.
Eu me envolvi num dado momento com uma organização que se
chamava Conselho da Filosofia. Este só pôde existir graças à ação de
Paulo Carneiro. Ele era um sedutor e ao mesmo tempo um profeta.
Essa conjunção é muito rara. Era um erudito e um senhor. Era um ho-
mem pertencente à elite mais seleta de seu pais, e encarnava maravi-
lhosamente os pobres e os miseráveis deste mundo.
Senhor embaixador, creio que nós, franceses, podemos nos orgu-
lhar de o termos acolhido. Voces, brasileiros, podem se orgulhar deste
homem que desempenhou um papel tão grande por toda parte onde
passou, e notadamente na Unesco. Para além do Brasil, para além do
positivismo, para além mesmo de sua sedução e de sua eloquência, ele
encarnou maravilhosamente o universal, do qual foi sempre um servidor.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Jose Israel Vargas: Em nome não só da delegação brasileira, mas de to-


dos os “unesquianos”, agradeço-lhe de coração por estas palavras tão
calorosas e comoventes.
Paulo Estevão de Berredo Carneiro,
cientista brasileiro, cidadão do mundo!

Os primeiros tempos
Nasci no seio de uma familia positivista, muito ligada ao movimento
comteano no Brasil. Meu pai [Mario Barbosa Carneiro] foi um dos pri
meiros adeptos do positivismo, sob a direção de Miguel Lemos, leixeira
Mendes, Benjamim Constant, por ocasião da Abolição da Escravatura e
da Proclamação da República. Surgi de um casamento que se realizou
no Templo da Humanidade, à Rua Benjamim Constant, em 1900. Essa
circunstância predestinou um pouco o rumo que teve a minha educação.
Nunca fui a um colégio. Recebi toda a minha instrução primária e se-
cundária em casa, de modo que não sofri um embate da infância con-
temporânea. Fui um menino muito protegido nas suas primeiras idades,
nas suas primeiras expansões, até que nos exames secundários entrei
em contato com os professores de Matemática, Física, Quimica, Bio-
logia, e realizei no Colégio Pedro Il, como era então hábito, os exames de
admissão ao ensino superior. Aí é que tive o primeiro contato realmente
com o meio exterior. Até então eu tinha vivido naquele casulo que era o
meio positivista da Rua Benjamim Constant.
Mas, ao mesmo tempo em que fazia minha formação interna ouvindo
grandes homens do meu tempo ligados aquele movimento, a influência
maior que recebi foi de Teixeira Mendes. Teixeira Mendes era matemático
de formação e tinha um conhecimento científico realmente universal,
com o espirito mais enciclopédico que encontrei até hoje. Ele nos pregava

! Depoimento de Paulo Carneiro no Museu da Imagem e do Som (MIS), em 7/8/1979, dentro


dos ciclos de Ciências e de Artes Plásticas. Participaram como entrevistadores: o escritor Josué
Montello, a atriz Maria Fernanda, o cientista Mário Viana Dias, o advogado e escritor Alberto
Venâncio Filho e o então diretor do MIS, jornalista José Carlos Monteiro. A edição da entrevis-
ta foi realizada por Marcos Chor Maio e josé Augusto Drummond.
Ciência, Política e Relações Internacionais

tudo que sabia. Aos domingos, em conferências de três, quatro horas, o


menino, avido de experiências de saber, assistia a essas prédicas em que
todos os assuntos vinham à baila intempestivamente, a propósito ou
tora de propósito, o jorro luminoso de dados históricos, científicos, filo-
sóficos. À essas conferências devo realmente a minha vocação e a minha
formação no sentido mais amplo da palavra, porque me abriram o mun-
co. Por ali eu soube que havia Aristóteles, que havia toda a filosofia
cientifica grega, que havia Idade Média, que havia São Tomás de Aquino.
Cheguei a ler todos os clássicos da literatura francesa e inglesa, tudo isso
sob O bafejo, a inspiração, o estímulo daquelas pregações em que toda a
cultura humana vinha à baila.

Mas ao mesmo tempo, segundo os mesmos preceitos comteanos, o


menino da burguesia que eu era foi introduzido na classe proletária fa-
zendo experiências e ensaios que duraram dois anos nas oficinas de cons-
trução de material rodante no Engenho de Dentro. Fui ferreiro, apren-
diz de ferreiro, aprendiz de fundidor, convivi com os pretos, os mula-
tos, OS filhos de portugueses, os filhos de italianos, os meninos desvali-
dos que ali estavam desde os 14, 15, 16 anos malhando ferro. E ali passei,
como um complemento educacional e muito intencional, dois anos de
minha vida com grande interesse. Saía de casa às seis horas da manhã,
tomava o trem que parava na estação de Engenho de Dentro e lá estava
incorporado aquela coletividade, totalmente diferente mas à qual me
senti muito ligado afetivamente. Então fazíamos competições: o menino
um pouco mimado que eu havia sido e os meninos mais fortes do que
eu, porque formados num meio mais rude, malhando ferro. Havia um
famoso malho que era formado sexta-feira ao qual poucos resistiam de-
pois de quatro, cinco ou seis viravoltas, e desse contato — é por isso que
aludo a ele — ficou um sentimento de fraternidade muito real, com o
problema proletário, que até hoje me acompanha.

O estudo sobre o guaraná em Paris e os primórdios das atividades


de pesquisa

Quando terminei o curso de engenheiro químico, na Escola Politéc-


nica do Rio de Janeiro, um curso que depois desapareceu e se fundiu na
Escola de Quimica, ganhei um prêmio de viagem. Esse prêmio me permi-
uu partir do Rio recém-casado, em 1927, com o propósito de fazer o
doutorado em Paris. Inscrevi-me para isso na Sorbonne e comecei a fazer
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

uma tese. Essa tese, como todas as outras que fiz, versava sobre proble-
mas brasileiros. Estudei a planta do guaraná, então completamente des-
conhecida. Usava-se guaraná sem saber absolutamente o que ele conti-
nha — não o guaraná das garrafas, que não contém nada senão produtos
artificiais, mas o guaraná indígena, o pó raspado na língua de pirarucu.
E» consegui, graças a meu pai, que era diretor do Ministério da Agricul-
tura, raiz, caule, flor, folha, fruto dessas lianas do Amazonas, de onde os
indigenas extraem o guaraná.
Depois de um estudo relativamente rápido — durou dois anos -, veri-
fiquei que toda a planta do guaraná (Paulinia cupana), classificada pot
Martius e Bonpland em mil oitocentos e pouco, era constituída de cafe-
ina e teobromina em doses extremamente grandes, era a planta mais
rica em cafeína. Em geral eu via o guaraná sendo usado como uma subs-
tância não-tóxica e que se podia consumir abundantemente. Realmente
e extremamente útil como estimulante e tem a vantagem de não sofrer,
como o cafe, um fenômeno de torrefação em que se formam substâncias,
essas realmente tóxicas, que não são a cafeína, são derivados dos ácidos
gordos e dão origem a uma porção de substâncias muito mais nocivas
do que a cafeina.
De volta de Paris, fiz um concurso em 1933 para a Escola Politécnica
do Rio, como livre-docente da cadeira de Química Geral, com a qual
estava endividado, porque toda a minha formação científica, durante o
meu curso, havia sido patrocinada, dirigida, estimulada, nutrida por
um grande professor, que foi o maior dos mestres que tive no Brasil:
Carlos Ernesto Júlio Lohman, holandês que se havia dedicado a pesquisas
de Biologia e Química Tropical em Java. Miguel Calmon, fazendo uma
viagem pelo Oriente, descobriu esse cientista, que tinha então uns trinta
anos, e o convidou a vir fundar na Bahia uma estação experimental de
cana-de-açucar. Tentado pela miragem do Brasil, Lohman veio e, ao che-
gar à Bahia, verificou que não havia nem laboratório, nem pessoal, e de
início ficou perdido, sem saber que destino dar à sua vida científica.
Depois de uns seis meses de agonia, veio para o Rio de Janeiro, contratado
pelo Museu Nacional, por Roquette-Pinto. Fez um concurso para a Es-
cola Politécnica e se tornou um professor extraordinário, o grande reno-
vador do ensino da Química no Brasil, porque trazia a experiência da
Universidade de lena, na qual tinha feito seu doutorado, e trazia tam-
bém toda uma experiência de pesquisa. De modo que Carlos Ernesto
Júlio Lohman, depois de meu curso na França, tomou-me como assis-
Ciência, Política e Relações Internacionais

tente e quis fazer de mim o seu herdeiro e sucessor na cátedra. Por isso e
para isso fiz o concurso para livre-docente, no qual fui aprovado em 1933.

À experiência na Secretaria de Agricultura de Pernambuco (1935)


rui a Pernambuco para instalar uma secretaria nova na estrutura
administrativa do estado. Foi Carlos de Lima Cavalcanti - a quem acom-
panhei quando veio ao Sul, iniciando-o nas possibilidades que São Pau-
lo propiciava a uma renovação tecnológica — que me convidou a ser se-
cretário de Agricultura, Indústria e Comércio. Fui com o objetivo essen-
cial de dar a Pernambuco uma dupla organização que lhe faltava: cientifi-
ca, de um lado, e social, de outro. Para a primeira, criei o Instituto de
Pesquisas Agronômicas em Pernambuco, chamando para ele homens
de ciências do mundo inteiro, do Brasil, de São Paulo, de Minas, da Fran-
ça, dos Estados Unidos, um fitopatologista da Rússia. Atendeu-se, com a
criação desse instituto, em 7 de setembro de 1935, a um quadro geral de
necessidades fundamentais de renovação da economia agrícola
pernambucana.
Ão mesmo tempo, levei a noção clara, precisa de que o drama de
Pernambuco era o nomadismo da sua população rural, dos seus traba-
lhadores. Ora do htoral para o sertão, ora do sertão para o litoral, e em
grande massa de Pernambuco para São Paulo, de Pernambuco para Mi-
nas. Como fixar este trabalhador rural? Esse foi o problema moral que se
colocou a mim em termos de administração. Propus então que se insti-
tuísse não uma divisão de terras, mas a atribuição, em cada grande propri-
edade agrícola, de uma área destinada à alimentação da sua massa traba-
lhadora. Não desapropriava, mas era uma área que ficava reservada
institucionalmente, 1%, 5%, 10%, segundo cada caso particular, para o
fim exclusivo de assegurar aos trabalhadores o essencial para a sua sub-
sistência, através de cooperativas de consumo. Esse projeto foi incluído
na discussão da Constituição que se estava então elaborando. Passou na
primeira e na segunda discussão, na terceira foi afastado; houve um
movimento de rebeldia dos grandes senhores de engenho, mas ficou o
germe. Hoje está mais ou menos orientado nesse sentido através de me-
didas que o Instituto do Açúcar e o Álcool pôde introduzir tardiamente.
Esses foram os dois pontos essenciais que me ligaram a Pernambuco
com uma certa repercussão, maior do que eu imaginava, porque naque-
le momento os secretários de governo tinham o direito e mesmo o dever
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

Re Te à Assembléia Legislativa justificar os seus atos e apresentar os


programas de governo. De modo que os discursos que lá fiz impressio-
Sra um Pouco a mocidade de então e, até hoje, quando eles me vêem,
talam sobre o assunto.

Para coroar esta ação e ajudar em sua execução, diminuindo tanto


quanto possivel os atritos inevitáveis com as classes possuidoras dos
grandes latifúndios de Pernambuco, fiz um apelo à Igreja. Sou livre-pen-
sador, como positivista, e fiz um apelo ao clero de Pernambuco, numa
carta pública que se chama “A Igreja e o Estado em prol do trabalhador
pernambucano”, dirigida aos bispos de Pernambuco, chamando a aten-
ção deles para o dever permanente da Igreja — isso em 1935 -— de ser à
igreja do pobre. Recebi imediatamente a visita de um padre do interior
de Pernambuco, que se tornou depois muito conhecido, Dom Távora, que
e disse: “Sr. secretário, o senhor se enganou de endereço. Não é aos
BISPOS que o senhor devia se ter dirigido. Os bispos não querem nada
O seu programa. U senhor devia ter se dirigido ao clero pobre de Per-
nambuco, a esse como eu, que anda errante por aí sem anseio nenhum” .

untretanto, ele se enganava. Recebi respostas de todos os bispos de


extremamente edificantes. De modo que esse apelo teve
HE SEO maior do que eu esperava. Tudo se teria encaminhado no sentido
de uma renovação da economia pernambucana, num espírito de con-
atacando os problemas reais, com a colaboração inclusive dos
proprietários, que já estavam sentindo que eu ia a eles não para cansar
lhes dano, mas para orientá-los numa maneira mais racional de explorar
Os seus próprios bens. Tudo isso teria ido longe se não tivesse ocorrido a
intentona Comunista, que, tão inoportuna quanto estúpida, quebrou
completamente a possibilidade de renovação num estado de vida política
extremamente complexa como a de Pernambuco. O que me fez dizer ao
governador que ele próprio não tinha mais aquele instrumento de que
te necessitava para levar avante um programa tão inovador, que era a
Fontiança do parlamento e da opinião pública. Tudo que se faria a partir
dali como progresso social pareceria suspeito. Voltei então ao Rio ia
mei minha vida de ciência.

O movimento da Escola Nova

Devo meu vinculo à Escola Nova essencialmente a Francisco


Venâncio Filho, que, depois de ter sido meu professor de Física e de
Ciência, Política e Retações Internacionais

Quimica no curso secundário, conduziu-me pela mão a um meio que eu


desconhecia completamente ao voltar de Paris em 1931: o dos renovado-
res da edu-cação no Brasil. Conheci, graças a ele, Fernando de Azevedo,
A n i s i o Te i x e i r a , L o u r e n ç o F i l h o . A o f a z e r u m a c o n f e r ê n c i a n a A s s o c i a -
ção Brasileira de Educação sobre a Estatística na Educação, à luz da
ciência e da tecnologia, encontrei Cecilia Meireles, que eu não conhecia.
Venâncio foi o guia, e participei então intensamente dos primeiros
Congressos Brasileiros de Educação, em Niterói, e entrei na intimidade
da administração escolar brasileira como professor do Instituto de Edu-
cação. Liguei-me de uma amizade que nunca se atenuou com Anísio
Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, e recebi deles esse in-
fluxo admirável, que exprimi agora mesmo ao participar da 27º Confe-
rência do Bureau Internacional de Educação em Genebra, há um mês,
chefiando a delegação do Brasil. Evoquei então a Conferência de 1948,
do mesmo Bureau Internacional da Educação, por mim presidida. Apro-
veltei para recordar o impacto que havia produzido no Brasil o Instituto
Jean-jacques Rousseau e o Bureau Internacional da Educação, em torno
desses nomes: Carneiro Leão em Pernambuco, Francisco Campos em
Beio Horizonte, Fernando de Azevedo em São Paulo e, na Bahia e no
Rio, Anísio Teixeira — todos eles em torno do que se chamava então,
expressão improvisada, a musa da educação nova, que era Cecília
Meireles. De modo que, ao evocar esse movimento na Conferência de
Genebra, fiz sentir aos presentes o quanto havia sido fecunda essa ação
dos grandes renovadores Edward Claparede, Adolph Ferried, Jean Piaget,
Madame Montessori. Graças a Venâncio, recebi todos esses livros com
aquelas deliciosas dedicatórias que ele fazia e fui aprendendo, apren-
dendo a ensinar.

A descoberta da composição do curare, as controvérsias


cientificas e o Instituto Pasteur

Depois de fazer concurso para a Escola Politécnica, fiquei adstrito a


um instituto que se havia também criado. Esse periodo pós-revolucio-
nário foi extremamente fecundo no Brasil. Surgiram iniciativas cientifi-
cas, tecnológicas de todos os lados. Fui eleito diretor de um departa-
mento do Instituto Nacional de Tecnologia cujo título era Divisão de
Matérias-Primas Vegetais e Animais. Tive o prazer de conhecer Mário
Viana Dias. Miguel Ozório de Almeida trabalhava num departamento
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

ao lado, e eu, à procura de assunto novo, comecei a reunir material sobre


o curare. Às primeiras pesquisas foram feitas no meu laboratório no Ins-
t i t u t o N a c i o n a l d e Te c n o l o g i a , n a A v e n i d a Ve n e z u e l a . A s s i m t r a b a l h e i
de meados de 1933 a 1935, quando essa fase de pesquisa sobre o curare
no Brasil foi interrompida com o convite para eu ir para Pernambuco.
Aquela miragem de uma atividade de larga escala fez-me sustar o curso
dos trabalhos. De volta de Pernambuco, me encontrei de novo com o
meu material, as minhas cabaças de curare, as minhas lianas que tinham
vindo do Amazonas, por intermédio do Serviço de Proteção aos Índios.
Nesse momento, o Instituto Pasteur, com o qual eu havia mantido
contatos epistolares, com o mestre que tinha dirigido a minha tese de
doutorado, em torno do guaraná e do pH — influência do pH sobre a
vegetação —, escreveu-me dizendo: “Já que você está de novo voltado
para a ciência, por que não volta ao Instituto Pasteur? Nós te oferecemos
uma boisa de pesquisa”. Eu, que estava bastante malvisto nos meios
politicos brasileiros, suspeito das piores intenções, porque havia tentado
uma renovação econômica e social em Pernambuco, fui a Agamenon
Magalhães, que se tinha afeiçoado muito a mim e de quem eu dependia,
porque ele era o ministro ao qual pertencia o Instituto de Tecnologia, e
lhe disse: “Estou recebendo esse convite”. Ele respondeu: “Parta o mais
cedo possivel”. Assim, facilitou a minha viagem.
Cheguei a Paris carregando troncos, flores, cabaças, tudo o que pude
levar. Fui acolhido festivamente e iniciei então as minhas pesquisas, que
me conduziram em 1938 e 1939 a apresentar à Academia de Ciências de
Faris os primeiros resultados de ordem química e, depois, de ordem
fisiológica. (...) Encontrei resistência na parte fisiológica. Isso é interes-
Sante, porque dá uma imagem de como o meio científico francês estava
e, por vezes, ainda está sob o controle ditatorial dos patrons, dos chefes
de laboratórios. Quando apresentei os meus primeiros trabalhos, que se
referiam à composição do curare — trabalhos que estavam sendo realiza-
dos ao mesmo tempo por três ou quatro pesquisadores fora da França,
na Suiça, na Alemanha -, não houve problema nenhum. A Academia de
Ciências registrou, publicou, e tive com isso uma certa repercussão, a
ponto de receber da Academia de Medicina de Paris um prêmio, a láurea,
o prêmio Nativelle, que era concedido aos cientistas que descobrissem
principios ativos novos das plantas tóxicas e medicinais. (...)
Comecei a fazer meu trabalho com material previamente purificado,
não mais com o curare bruto, massa indefinida constituída de produtos
Ciência, Política e Relações Internacionais

dos mais variados — como faziam as experiências de Claude Bernard,


Paul Berr e todos os seus continuadores. Passei a fazer as mesmas expe-
riências com uma solução titulada de um alcalóide puro do qual eu sa-
bia exatamente quantos milesimos de miligramas estava empregando
a cada momento sobre uma ra. Dessa forma, os resultados experimen-
tais divergiram profundamente dos resultados classicos de Claude
Bernard. Era um problema ligado à transmissão do influxo nervoso do
nervo motor ao musculo que, segundo Claude Bernard, era interrompi-
do pela curarização. Com isso ele definia a curarização: ela se realiza
quando não se pode mais fazer a transmissão dos fluxos nervosos do ner-
vo motor ao músculo estriado. Ai se havia juntado uma teoria física —
exclusivamente física — de Lapicque, que identificava no influxo nervo-
so a corrente elétrica e observava que, sempre que ocorre essa interrup-
ção da transmissão do influxo nervoso do nervo motor ao músculo
estriado, uma corrente galvânica também não passa do nervo motor ao
muscuio estriado.

Com as minhas experiências, entretanto, um animal perfeitamente


paralisado, durante três horas imobilizado sem que nenhuma das rea-
ções habituais produzisse a menor contração, mas aplicando uma exci-
tação nervosa sobre o gastronêmio da ra, o musculo estriado reagia. Isso
causou um susto, uma surpresa. Aventei então o que ja estava no ar: que
essa transmissão do influxo nervoso ao músculo estriado não era um
fenômeno físico, mas que envolvia mediadores químicos, como final-
mente ficou fortemente estabelecido. Ai Lapicque levantou os braços e
começou a opor-se de todos os modos a essa forma de interpretação
determinada pelas condições mesmas em que a experiência nova se fazia.
Ao ser apresentada à Academia de Ciências pelo professor Portier, a
minha Memória, em que isso tudo vinha exposto, Lapicque se levantou e
pediu que a Memória não fosse inserta nos Anais da Academia de Ciências,
sob a alegação, extremamente honrosa para mim, de que violava cin-
quenta anos de fisiologia francesa. Levantou-se Portier, que por felicidade
minha era inimigo pessoal de Lapicque, e protestou energicamente con-
tra essa violação de todas as tradições da liberdade cientifica. Por unani-
midade, em seguida, a Memória foi publicada.
Isso revela como é complexa a vida cientifica num pais de grande
tradição como a França, em que os chefes exercem um despotismo silen-
cioso, mas terrível. Quando fiz essa experiência no laboratório do Portier,
onde havia aparelhagem melhor, estava uma senhora que trabalhava
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

com ele, mas nada tinha a ver comigo. Assistiu à experiência e eu disse a
ela: “Venha ver este resultado aqui, tome...”. Ela assistiu e ficou espantada.
Fuíi-me embora. Na manhã seguinte, indo eu muito cedo para o meu
l a b o r a t ó r i o n o I n s t i t u t o P a s t e u r, e n c o n t r e i a m o ç a e m q u e s t ã o , m e s u r -
preendi! Ela me disse: “Vim pedir-lhe que em hipótese alguma mencione
o meu nome a propósito da sua experiência, porque não quero que me
atribuam qualquer participação. Isso pode custar a minha carreira. Re-
cebo uma bolsa que é dada pelo Lapicque”. Eu lhe respondi: “Mas, minha
FF
senhora, não há o menor motivo....”.

O Instituto Pasteur tinha, entre os seus pesquisadores, talvez 80% de


estrangeiros, e todos muito bem recebidos. Quando havia um conflito
desse tipo, era o mesmo que se passaria com um francês. Muito mais
grave teria sido o conflito se eu fosse francês. De modo que não havia
nenhuma espécie de discriminação em relação aos estrangeiros, senão
talvez a favor do estrangeiro, que despertava sempre um interesse, pela
cultura que trazia, pela possibilidade de irradiação da ciência francesa
no pais de origem. De modo que a atitude era muito favorável e muito
simpática. O ambiente no qual vivi — afinal de contas, foram muitos anos,
no total a minha convivência com o meio científico francês se estendeu
por praticamente dez anos — foi irreprochável, sem a menor dificuldade.
O Instituto Pasteur me permitiu, ao mesmo tempo, medir a capaci-
dade criadora dos homens de ciência mais importantes, a começar pelo
meu mestre Gabriel Bertrand, que normalmente teria sido um Prêmio
Nobel, porque fez descobertas fundamentais, uma das quais está aí até
hoje: a dos oligoelementos, que são substâncias metálicas que, em doses
infimas, infinitesimais, exercem uma função de importância capital no
organismo animal, catalisando reações que, sem um traço de cobalto ou
de níquel ou de zinco, não se realizariam. Houve uma experiência que
me impressionou muito na época em que todos os carneiros da Nova
£elândia estavam morrendo e ninguém sabia por quê. Estudou-se, sob
todas as formas, rios, solos etc... Dizimados os rebanhos, Gabriel Bertrand
foi se ocupar do assunto e verificou que a terra daquela grande área, rica
em tudo, não tinha o menor traço de cobalto, elemento ao qual ninguém
atribuira até então nenhuma função vital importante. Mandou fazer uma
experiência irrigando uma grande área com uma solução de um milio-
nésimo de sal de cobalto. Cresceram as plantas, os carneiros que lá foram
postos com elas se alimentaram e nenhum deles morreu. Era esse traço
de cobalto que era indispensável à vida desse rebanho.
Ciência, Política e Relações Internacionais

O ambiente no Instituto Pasteur mostrou-me também o quanto é pru-


dente o cientista francês. Assisti às primeiras comunicações sobre o BCG,
que constituiram um fenômeno biológico e social fundamental. Assisti à
primeira comunicação e sai da conferência num estado de grande exci-
tação. Encontrei um grande cientista que assistira à mesma reunião e
vim a conversar com ele um pouco juvenilmente, ardente, e ele me disse:
“Meu amigo, só leve a sério a causa que conseguir manter-se importante
pelo menos por dez anos”.

A Casa de Augusto Comte e o Movimento Positivista

Ao chegar a Paris, no dia 18 de outubro de 1927, o meu primeiro


choque emocional foi a igreja de Notre-Dame. Saia eu de casa sem saber
bem o rumo que tomava e, de repente, no táxi, vejo levantar-se à minha
esquerda uma sombra negra. Peço ao choter que me diga o que é, e ele,
levantando os ombros, falou naquele sotaque de chofer francês:
“Monsieur c'est Notre-Dame, monsieur”, e eu disse: “Pare, pare!”. Desci
e fiquei num estado de êxtase. Era um reencontro, como tudo o que vê
em Paris quem teve uma formação de inspiração francesa.
A segunda grande emoção ocorreu dois dias depois, indo à Rua
Monsieur Le Prince em busca do número 10, onde Auguste Comte tinha
passado os ultimos dezesseis anos de sua vida e onde havia morrido.
Bati à porta, fui recebido por uma senhora e lhe disse: “Gostaria de visitar
o apartamento de Auguste Comte”. Ela respondeu: “Só com uma auto-
rização do gerente, Monsieur Saunier. O Sr. escreve a ele e depois volta”.
Fiz tudo isso e, dias depois, o próprio gerente estava lá à minha espera.
Entrei naquela casa, que para mim, formado no meio positivista brasi-
leiro, tinha o valor de um santuário. Ali havia vivido um filósofo, um
renovador, que era ao mesmo tempo um lider espiritual, uma espécie de
profeta dos tempos novos. Mas achei tudo muito abandonado. Perguntei
ao gerente: “Em que pe estão os arquivos? Já foram inventariados? Já foi
publicada uma lista? Onde estão os manuscritos de todas as obras que
no testamento ele declara que estão intactos?” Ele me respondeu: “Não
houve Inventário. Os manuscritos estão guardados aqui, mas não estão
encadernados. Estão envoltos em papéis”. Insisti sobre a necessidade
disso, então ele de repente me disse: “Nós somos poucos, somos velhos,
o senhor quer nos ajudar?” De repente, por uma espécie de contágio
afetivo, intelectual, ofereceram-me a liberdade de ir quando eu quisesse
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

tocar naqueles arquivos, manuscritos, papéis, e classificá-los, inventariá-


tos. Fiquei surpreso: “Mas isso é um tesouro imenso, estou chegando, o
senhor não me conhece!”

À s s e x t a s - f e i r a s , n o fi m d a t a r d e , d e p o i s d e e n c e r r a d o o m e u t r a b a -
lho de laboratório, eu ia para lã; e passava o sábado inteiro remexendo
nos papéis, com uma grande unção. Sempre me lembro das palavras de
um dos biógrafos de Dante: “Com que emoção nos poríamos de joelhos
se encontrássemos um manuscrito de Dante, do qual não se tem ne-
nhum”. Comecei a tocar aqueles manuscritos com essa emoção, de quem
esta diante de um tesouro espiritual, de um patrimônio. Então iniciei,
pouco a pouco, a grande renovação desse espólio que se estava guar-
dando mas sem conservação adequada. Obtive recursos de casa, da fa-
milia, de meu pai, de meus tios, para mandar encadernar todos os ma-
nuscritos do Comte, ou seja, dezessete obras integralmente manuscritas,
em estado perfeito. Creio que é um exemplo único na História de uma
grande obra que está conservada em manuscrito em perfeito estado.
Mas o apartamento tinha sido pouco a pouco desvirtuado: morria
um positivista aqui, punha-se um retrato dele, morria um outro acolá,
punha-se outro retrato. Havia perdido a autenticidade que o Comte pe-
dira no seu testamento aos que o quisessem conservar. Mas como tirar
tudo aquilo, com que critério, o que seria contemporâneo do Comte e
posterior a ele? Achei um pequeno papel em que se falava num inventário
judiciário que havia sido feito dias depois da morte dele. Onde estaria
esse inventário? Levei dois anos para achar. Estava num notário francês
arquivado, esquecido. De posse disso, pude então reconstituir o apar-
tamento do Comte tal como ele estava no dia 5 de setembro de 1857, quando
o Comte morreu. Ai então o apartamento adquiriu o sentido histórico
perfeito. Mas para isso era preciso achar um lugar para guardar aquilo
tudo. Consegui recursos também daqui, também da minha família, para
expelir um locatário de todo o andar térreo e adaptá-lo a receber esse
material todo, que, embora espúrio, era importante para a história do
movimento positivista.
Assim fui ficando, até que a guerra chegou e o gerente, prevendo a
gravidade dos acontecimentos, instituiu-me seu sucessor. Passei então a
ser O responsável por aquele patrimônio, sem gue até hoje ninguém te-
nha tomado conhecimento juridicamente do que tenho nas mãos, do
qual eu poderia dispor arbitrariamente se me acontecesse amanhã um
transvio qualquer de loucura. Mas, prevendo o futuro, em 1957 trans-
Ciência, Política e Relações Internacionais

formei aquela sociedade muito vaga que existia até então — e que era
proprietária do imóvel, não só do apartamento, mas do imóvel todo -
em uma associação internacional: “Casa de Auguste Comte”, registrada
e que se compõe hoje de umas 38 a 40 pessoas que fui recrutando entre
os historiadores que se ocupavam de Comte, membros da Academia de
Ciências Morais e Políticas, membros da Academia Francesa. Lá estão
hoje o Henri Gullier, o principal biógrafo de Comte, o professor Bastide,
que é um dos grandes historiadores do pensamento educacional de
Comte, o jovem membro da Academia Francesa D'Ormeson — digo jo-
vem porque é o mais moço de todos na Academia Francesa —, que é
também um amigo pessoal. (...)
Uma vez os arquivos todos inventariados e dispondo de inúmeros
inéditos, passei a publicar uma coleção que tem o título de Arquivos
Positivistas, em francês. Os primeiros volumes foram publicados em 1939
com o título Novas Cartas Inéditas. Depois disso, fui reunindo material
para uma obra de maior vulto, que é a correspondência integral do
Comte, em ordem cronológica. O Conselho Federal de Cultura tem rece-
bido volume após volume. Já foram publicados três volumes e o quarto
está no prelo. Preciso viver ainda uns cinco anos para chegar ao oitavo
volume, que completará a coleção de umas três mil cartas, ilustradas,
comentadas, com uma introdução grande minha e notas de um colega
meu, Pierre Arnaud, professor da Universidade de Grenoble e também
comteano. Dessa edição, a difusão é grande sobretudo nos Estados Uni-
dos, porque, contrariamente ao que se pensa no Brasil e alhures, há hoje
um movimento muito interessante de teses de Ciências Sociais em torno
de Comte, sobretudo nos Estados Unidos. Talvez porque a mina Comte
não tenha sido suficientemente explorada. Os jovens que querem matéria
para teses vão procurar onde encontram possibilidades. Uma estatística
que li registra umas cinquenta teses por ano feitas nos Estados Unidos
em torno de temas extraídos aqui e ali das obras de Comte.
No ano atrasado [1978], realizamos um colóquio que teve uma parti-
cipação muito grande de universitários franceses, em torno da “Lei dos
lrês Estados”, que é a peça-mestra da obra de Comte. No ano passado
fizemos um novo colóquio, na Unesco, em torno do Conselho Internaci-
onal de Filosofia e Ciências Humanas, sobre a concepção de poder espi-
ritual do futuro na obra de Comte. No ano que vem vamos fazer um
grande colóquio comemorando os 150 anos do Curso de Filosofia Positiva.
Ve modo que, em torno da casa de Comte, que é hoje visitada por um
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

grande número de universitários do mundo inteiro, do Japão, da China,


dos Estados Unidos, realmente se consolidou a imagem do Comte, a
ponto de o governo francês ter criado no ano passado, na Escola Poli-
técnica de Paris, um instituto ao qual deu o nome de Instituto Auguste
Comte, cujo objetivo é oferecer aos representantes da indústria — que em
grande parte são antigos alunos da Escola Politécnica - uma formação so-
ciológica. Os cursos têm esse conteúdo, sob o título de “Ciências da Ação”.

Paris, a França ocupada e a internação na Alemanha nazista

Estabeleceu-se de mim para Paris e de Paris para comigo um diálogo


permanente, um dialogo a todas as horas. (...) Andar pelas ruas de Paris
é conviver com a História, é entrar nela, é participar de tudo que se fez
de grande na evolução humana, por isso é uma aprendizagem contínua
de humildade e um sentimento de grandeza, e que se desenvolve ao
lado de tudo que aquela cidade representa. Cheguei a Paris já intoxicado
por Paris, não podendo me libertar de Paris. Com o tempo, essa ligação,
essa intimidade não cessou de aumentar. Os anos de felicidade, de um
convívio ameno, foram seguidos por anos de tormenta, em que Paris
sofreu mutilações, injúrias que repercutiram em mim. Passei a sofrer
quando o soldado alemão entrava pelas ruas de Paris, quando as bom-
bas ameaçavam Paris, quando os próprios parisienses se iam corrom-
pendo sob a pressão de uma ocupação militar, quando o Exército francês
capitulou sem dever capitular. A desorganização política da França evi-
tou e impediu sobressaltos aguardados no momento decisivo. Uma for-
ma de decadência se manifestou indiscutivelmente, da qual fui testemu-
nha, como todo o mundo penalizado, mas impotente.

Ão mesmo tempo em que essa Paris viva sofria altos e baixos, mo-
mentos de triunfo e momentos de revés, foram surgindo forças novas. A
primeira grande força foi o general De Gaulle. Eu estava em Bordeaux,
depois de um grande bombardeio, em junho de 1940, quando se ouviu
inesperadamente a famosa declaração dele pelo rádio, vinda de Lon-
dres, foi um sobressalto extraordinário. Depois veio o período difícil da
ocupação, em que, contrariamente ao que se diz, a maioria da população
francesa se portou com muita dignidade, as mulheres sobretudo. As
mulheres são a meu ver a melhor parte da França, são a melhor parte do
mundo, mas especialmente da França. Tenho sempre a impressão de
que o homem não tem aquele valor moral, de devoção, de resistência
Ciência, Política e Relações Internacionais

mesma, as provações. Vi as mulheres às cinco horas da manha, inver-


nos de dois a três graus abaixo de zero, fazendo filas para ter um litro de
leite para as crianças. Vi Paris vazia, o êxodo de Paris foi um dos espetá-
culos mais aterradores que vi. Vi uma cidade que, de repente, sofre uma
Sangria por todas as suas portas, perde cinco milhões dos seus morado-
res no periodo de uma semana e subitamente vira uma cidade morta.
Acompanhei tardiamente, depois da cidade vazia, o embaixador Souza
Dantas, que devia juntar-se ao governo francês e ir para Bordeaux. Vi
aquelas estradas cheias de automóveis derrubados, de gente a pé, a ca-
valo, de bicicleta, saindo da cidade por todos os meios imagináveis. Era
uma cidade em pânico, e foi um espetáculo terrível. Ver uma das cidades
mais nobres do mundo transformada em pânico coletivo é inexprimível.
Quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha, fomos levados
para Baden-Baden. Aí foi um período curto. Depois fui levado para Lis-
boa, tal como todo o grupo que estava em Paris. Chegando a Lisboa,
estando eu ainda incumbido de trabalhos e estando a França com metade
do seu território livre — a chamada França livre —, o nosso embaixador,
estando em Vichy, sendo um dos meus maiores amigos, chamou-me por
telefone: “Venha, estamos aqui todos”. Fui para Vichy. Lá fiquei durante
um ano e meio, até o dia 11 de novembro de 1942. A famosa zona livre
foi ocupada pelas forças alemãs. (...) Eu estava com o embaixador Souza
Dantas no hotel ao lado da embaixada, tomando um café depois de um
ligeiro almoço, quando toca o telefone. Era o Tavares Bastos, nosso poeta
e amigo, que dizia: “Embaixador, os soldados alemães acabam de entrar
na embaixada armados”. O embaixador pega o chapéu, desce as escadas
como um furacão, sem pronunciar palavras até chegarmos em frente da
embaixada. Ele toca a campainha e ninguém abre. Ele esmurra a porta.
No final, depois de uns minutos, a porta se abre. Eram dois soldados
alemães com fuzil e uns oficiais, que estavam no fundo. Ele entra aos gritos
e protesta: “O que estão fazendo aqui? Isto aqui é minha casa. Os senho-
res não têm o direito de penetrar na Embaixada do Brasil. Isto aqui é um
território neutro. Os senhores não estão aqui para obedecer às ordens do
seu Fuhrer. Estão aqui para obedecer às ordens do governo brasileiro,
que é o unico dono aqui. Vão embora... passez, monsieur, passez!”.
O oficial alemão, cansado de ouvir injúrias, pegou o revólver, botou
em cima da mesa e disse: “Assez, monsieur!”, Peguei o Dantas pelo bra-
ço e disse a ele: “O senhor já disse tudo o que podia dizer e mais do que
poderia ter dito, vamos embora”. Entramos e saímos e ninguém nos
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

impediu objetivamente, porque tudo isso se passava diante de um grupo


brasileiro que estava num canto da sala, assustado com tudo que estava
se passando. O Dantas inteiramente indiferente aos riscos e perigos, in-
sultando ate o ultimo instante esse oficial alemão.

Saimos pela porta afora e fomos ao gabinete do chefe do governo


francês, que era então o presidente Laval, com o qual o Dantas tinha
relações de amizade hã vinte anos. Eles se tuteavam. Com o mesmo furor
com que ele entrou na Embaixada do Brasil, subiu as escadas do presi-
dente do conselho sem dar explicações a ninguém, dizendo: “Vou ver o
Laval, vou ver o Laval”. Chegamos a ele e eu estava ali, na frente do Laval,
sentado no seu bureau, e o Dantas invectiva: “Você é ainda chefe de
governo, você sabe o que se está passando nas embaixadas, e na minha?”.
Laval, atordoado, ficou silencioso durante uns minutos — o Dantas pálido
de cólera — e em seguida disse simplesmente: “Monsieur Dantas, é muito
duro ser vencido. Não posso fazer nada”. Então, saímos dali e fomos pro-
curar o Nuncio Apostólico, que também era perfeitamente impotente.
Vinte e quatro horas depois fomos todos presos e levados. Mas admi-
rei a energia do embaixador, a coragem física, de que ninguém em geral
tem idéia, porque era um homem ameno, polido, generoso, mas tam-
bém um modelo de coragem. Assim ele se portou ao chegarmos a
Godesberg. A autoridade alemã disse a ele: “Ninguém pode sair senão
acompanhado por policiais, mas esta regra não se aplica ao senhor”, ao
que ele respondeu: “Se se aplica aos outros, com mais razão aplica-se a
mim”. Nunca mais eie saiu do hotel em que estavam os presos sem es-
coita e submeteu-se à mesma disciplina que os demais (...).
Ficamos em Godesberg quatorze meses. Ali a grande figura foi o
embaixador Souza Dantas. Eramos 140 latino-americanos, 25 brasileiros.
Ele era o decano do corpo diplomático e foi o chefe sereno, generoso,
que durante todo esse tempo presidiu aquele convívio forçado de ho-
mens, mulheres e crianças, criados, papagaios, tudo que a família latino-
americana leva consigo. Levei um caixote de livros. Um dia decidi abri-lo,
o que provocou grande celeuma. Alguém dizia: “Com isto tudo você dá
a Impressão de que vamos ficar aqui muito tempo. Nós vamos embora
dentro de quinze dias”. E quinze dias foram quatorze meses, e esses
livros acabaram servindo a todo mundo. Criei um curso. Ensinei um
pouco do que eu sabia e do que eu não sabia a uma juventude adoles-
cente que estava precisando de leituras...
Ciência, Política e Relações Internacionais

Ya atividade científica à diplomacia da Unesco

su Estava trabalhando no Instituto Pasteur quando surgiu a ameaça


de guerra, ameaça que durante muito tempo ficou latente, “diante de
uma especie de ceticismo e de inconsciência. Os acontecimentos foram
se agravando e nós trabalhando, como se nada houvesse além do Insti-
tuto Fasteur em 1939, 1940, até que aquela fase se transformou realmente
a conflito. O Brasil não estando em guerra e o professor Gabriel
Bertrand estando quase desprovido de seus assistentes e assessores o
que Foram mobilizados, um para aqui, outro para ali -, apegou-se muito
a Fara e me disse: “Você pode ficar aqui?”, ao que respondi: “Posso”.
Continuamos em condições muito difíceis o trabalho, com um rendi.
mento minimo. Já não havia possibilidade de receber documentação,
ASA die irradiar os trabalhos, mas lá fiquei. Estourou a guerra, a França
Foi invadida, a França capitulou. Só quando o Brasil entrou em ouerra é
que am obrigado a deixar Paris, onde passei, durante cerca de dois anos,
à vida da ocupação de Paris. Fui levado para a Alemanha. Lá passei
quatorze meses de internação.
Voltei ao Brasil, chegando aqui no dia 13 de maio de 1944. Eu estivera
no Prasil pela última vez em outubro de 1939. De modo que foi um longo
periodo de ausência e de choque profundo, choque emocional, e senti à
necessidade de contribuir de algum modo para que uma catástrofe se-
melhante ta guerra] não se pudesse realizar. Chegando ao Brasil fui indu.
zido a colaborar num grupo que o Itamaraty havia instituído, “como
meu querido amigo Roberto Assumpção, com Roguette-Pinto, com
Miguel Ozorio, de criação de uma organização nova, que propiciasse a
paz atraves da educação, da ciência e da cultura, Os minisiros da Edu.
cação de países aliados se reuniam então em Londres. Não tinha ainda
terminado a guerra, mas o projeto de tal entidade estava em curso. Par-
ciper da comissão brasileira incumbida de enviar sugestões a Londres
o ano de 1944 para criação dessa entidade, cujo nome não estava
ainda nem definido, mas que visava ao estabelecimento de condições de
paz através de um processo cultural.

terminada a guerra, volto a Paris, sempre em missão do governo bra-


Sleiro, para retomar um pouco o curso dos meus trabalhos. Nada tinha
sido tocado, minha mesa de laboratório estava intacta, minhas amos.
Tas, meus trabalhos novos. Logo ao chegar, recebo um convite inespe-
rado para participar da Delegação Brasileira à Conferência das Nações
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

Unidas que se realizava em Londres, onde esse projeto de criação de


uma entidade nova destinada à paz pela educação, a ciência e a cultura
I r i a s e r d e fi n i t i v a m e n t e c o n s t i t u í d o .

lomei parte da delegação, que era composta do meu queridíssimo


mestre, incomparável amigo embaixador Souza Dantas, com o embai-
xador do Brasil em Londres, com o embaixador Ciro de Freitas Vale,
com Vasco Leitão da Cunha, que era então ministro, e participei durante
um mês dos trabalhos que deram origem à Unesco. Pensei que, termina-
do o trabalho, voltaria ao meu laboratório - embora já estivesse muito
motivado por essa fase de renovação política através de entidades desse
tipo. É então que recebo um telegrama do ministro João Neves da
rontoura, que me dizia: “De acordo com a estrutura da nova organiza-
ção, haverá delegados permanentes. A organização vai para Paris, con-
vido você para ser delegado permanente do Brasil junto à Unesco”. Acei-
tei pensando que podia partilhar o meu tempo entre o Instituto Pasteur
e a Unesco, mas verifiquei que a Unesco era voraz. Então adotei uma
expressão que os cientistas usavam de que a ciência é monogâmica, não
permite infidelidades.
live, portanto, que optar. Esse foi um momento realmente crucial,
hesitei muito. A balança pesou ora para aqui, ora para ali. Eu tinha, sem
vaidade excessiva, uma perspectiva científica muito boa, mas aí pesou
mais a angústia com tudo que eu havia visto. Eu havia visto as cidades
destruídas, havia visto Londres naquele estado doloroso em que ficou:
aberta, ferida, destruida; tinha assistido à destruição total de Colônia,
quando estava instalado em Bad Godesberg, a 10 km em linha reta. Essa
sensação de que era mais importante assegurar à nova geração condi-
ções de trabalho científico, em que os laboratórios não fossem destruídos,
em que os cientistas não fossem massacrados. Pelo menos uns dez dos
meus colegas judeus no Instituto Pasteur tinham sido massacrados nos
campos de eliminação, de modo que esse ambiente desesperante para
quem tinha vivido nele contribuiu muito para essa miragem, não sei o
que dai resultará, mas foi a minha motivação para optar pela Unesco.

O projeto do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica

Muito me interessa o projeto da Hiléia, para esclarecê-lo. Antes de


participar dos trabalhos da Unesco, enviei ao presidente Getúlio Vargas,
com o amparo e o interesse de Luiz Simões Lopes, que era secretário
Ciência, Política e Relações Internacionais

geral ou chefe de gabinete de Vargas, um projeto exclusivamente brasi-


leiro de estudos amazônicos. Esse projeto encarava a possibilidade de
uma iniciativa do nosso governo, com a participação de homens de ciên-
cia do mundo inteiro, sob exclusiva responsabilidade e controle do go-
verno brasileiro. O projeto, como era hábito do presidente Vargas, foi
por ele encaminhado para os serviços competentes e passou uns seis
meses de mão em mão no Ministério da Agricultura, até receber um
parecer que é um documento tristíssimo de incompetência. O parecer
dizia simplesmente que não havia a menor razão de se criar um órgão
novo, quando havia em Belém do Pará um Instituto Agronômico do
Norte. (...) À vista dessa recusa, O presidente mandou arquivar.
Fassaram-se uns dois anos, quando participei da primeira conferência
geral da Unesco, e surge essa instituição com as missões de cooperação
internacional em todos os campos e especialmente no campo científico.
Viscutia-se então uma idéia que germinara havia pouco nas próprias
Nações Unidas: a dos laboratórios internacionais. Havia a idéia de um
laboratório internacional para o estudo do cérebro, de um laboratório
Internacional para estudo de várias questões, de Matemática e outras, e
me veio à ideia de retomar o meu projeto abortado. Em 1946, apresentei,
com aplauso do ministro do Exterior, João Neves da Fontoura, um projeto
a primeira comissão cientifica da Unesco, autorizando o diretor geral a
promover estudos no sentido de criação de um instituto internacional
de pesquisas para a Hiléia Amazônica, em consulta com os Estados-
membros da região.
Assim se fez e o assunto foi discutido no Brasil, como foi discutido na
Colômbia, no Peru, no Equador, na Venezuela, e de todos esses países
vieram respostas entusiásticas e favoráveis. No Brasil, a comissão brasi-
leira, dirigida por Levi Carneiro, promoveu reuniões de cientistas, uns
trinta, comigo presente, que aplaudiram sem reservas. Quando isso se
passou, o ministro do Exterior já não era João Neves, era Raul Fernandes,
que patrocinou com muito interesse o projeto. Chegou-se à criação de
uma comissão que se reuniu em Iquitos para elaborar uma convenção
que pusesse o meu projeto em execução. Não participei dessa reunião.
Era uma reunião de juristas, para a qual o ministro Raul Fernandes enviou
um grande professor de Direito Internacional, Lineu de Albuquerque
Melo, que foi o responsável principal pela redação do projeto. Portanto,
O projeto progredia com uma sanção jurídica brasileira e um patrocínio
integral até aquele momento do governo brasileiro.
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

Assinada a convenção ad referendum do Congresso Nacional, recebi


O texto e fiquei felicissimo. Dona Heloísa Alberto Torres havia partici-
pado da reunião de Iquitos, como consultante, com uns quatro ou cinco
homens de ciência do Brasil. O ministro do Exterior enviou ao presiden-
te da República Eurico Gaspar Dutra uma mensagem sob a sua respon-
sabilidade — era um grande jurista internacional, Raul Fernandes —-, so-
licitando ao presidente que encaminhasse o projeto ao Congresso. Com
a assinatura do presidente Dutra, chegou esse projeto ao Congresso e
parecia que seria sancionado por todas as forças válidas do Brasil, ho-
mens de ciências, juristas e militares. Chegando ao Congresso, coinci-
diu que o Brasil se estava dilacerando em torno do “Petróleo é nosso” e
criou-se o slogan “A Amazônia é nossa”. Eu disse no escrito: “Só será
nossa quando essa mancha verde tomar um sentido econômico e for em
primeiro lugar conhecida, analisada, estudada”.
Misturaram-se então as hostilidades — problemas do petróleo trans-
formaram-se em problemas da Amazônia -, e o ex-presidente Arthur
Bernardes, movido por fatores de diversas ordens, dirigiu uma campa-
nha em que fui acusado de estar vendendo a Amazônia. Não sabia bem
a quem: Fara uns, eu estava vendendo a Amazônia especificamente aos
Estados Unidos, que não participaram de nenhuma reunião em torno
do assunto, ou vendendo aos países socialistas, soviéticos, que iriam in-
vadir o Brasil. Foram ditas as coisas mais extraordinárias. O projeto foi
desfigurado de tal modo que se tornou impossível trocar idéia com quem
quer que fosse, porque falavam-se coisas distintas. Quando eu dizia Hiléia
Amazônica, um via os Estados Unidos entrando no Brasil, o outro via a
Rússia ameaçando a soberania nacional, mas nenhum lia os textos claros,
limpidos, em que a soberania brasileira estava 100% preservada.
Para a cobertura máxima, o ministro do Exterior solicitou ao Estado-
Maior das Forças Armadas um parecer. Esse documento foi assinado pelo
general César Obino. É um parecer luminoso, em que se lê: “Perfeito, ini-
cativa admirável, felicitemos os promotores”. “Eu sugeriria”, diz o gene-
ral César Obino, “para tornar mais claro o texto da Constituição, que a
letra “C” do parágrafo tal seja expressa de modo diferente do que está,
acentuando bem que, no território de qualquer dos estados signatários,
nenhum trabalho se fará sem a aprovação direta do estado em questão”, o
que estava implícito inteiramente no texto, mas assim foi feito. Vim de
Paris e promovi uma nova reunião de todos os signatários, para adaptar o
texto a essa ligeira adição que o Estado-Maior sugeriu. Assinaram todos.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Parecia que o problema estava resolvido. Foi remetido tudo ao Con-


Bresso e dorme até hoje não se sabe em que gaveta, não se sabe em que
comissão, desde 1953 ou 1954. Enquanto isso, a Amazônia cai aos peda-
ços, as areas já destruídas são imensas. Criou-se um fantasma em torno
do projeto, com a cumplicidade, devo dizer, do próprio Ministério do
Exterior, que, tendo sido berço do projeto, patrocinado por dois de seus
mais eminentes ministros, João Neves da Fontoura e Raul Fernandes,
não toca no documento por medo de ferir algo que está no ar e que nin-
guem sabe bem o que é.
Por iniciativa do ministro Azeredo da Silveira, foi criado o Pacto Ama-
zônico, de forma admirável. O texto é excelente, mas era o momento obri-
gatório de evocar um antecedente que correspondia, quase que palavra
por palavra, ao objetivo do Pacto Amazônico, que prevê primeiro que a
cooperação se fará no nível científico, que se criarão instituições comuns
para o estudo dos problemas, com a eventual participação dos organis-
mos internacionais que correspondam aos objetivos do Pacto Amazônico.
De modo que a questão está de novo em aberto. Se alguém tiver coragem
de pronunciar junto do presidente da República o nome de Hiléia Ama-
zônica, ele provavelmente terá um sobressalto. Se ele tiver tempo para
ler o texto do projeto, verá que perdemos, de 1954 até hoje, um tempo
precioso em que nenhum dos estudos então previstos — e que teriam
permitido uma eventual utilização da floresta Amazônica — foi à frente
Afinal, a floresta Amazônica não pode ser um museu. As florestas
do mundo inteiro, da Suécia, da Rússia, da França são utilizadas. O proble-
ma e racionalizar a utilização dessa floresta, à luz do estudo ecológico
aprofundado dessa grande área. Eu me felicito de ter tomado essa ini-
ciativa. Penitencio-me um pouco talvez por não ter sacrificado mais tem-
po à luta em favor dessa idéia, mas achei que era o momento de deixar o
Brasil livre para se pronunciar, já que os meios científicos também se
mostraram muito tímidos. A Academia de Ciências nunca tomou uma
atitude de análise fria do problema. O Conselho Nacional de Pesquisas
(CNPq), dirigido pelo meu querido amigo Álvaro Alberto, chamou-me
num dado momento, dizendo: “Olha, aquele seu projeto, que achamos
excelente, tornou-se inviável em virtude desse clima. Pedimos que colabore
conosco para criar O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia”. Vim
e colaborei como pude para a constituição do Inpa, sabendo de antemão
que ele não teria nem recursos, nem pessoal para abordar o problema
com aquela amplitude; mas era uma iniciativa decorrente já do projeto
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

inicial e dentro do nível das possibilidades de então. É possível que à


luz do Pacto Amazônico se possa ampliar as atribuições do Inpa, religa-
lo à institutos similares dos países vizinhos, para empreender então uma
tarefa de natureza global na região.

O trabalho de salvação dos monumentos históricos


Eomos solicitados em 1949, pelo ministro da Cultura do Egito, em
carta muito comovente em que ele anunciava o risco que estavam cor-
rendo os vinte templos faraônicos situados ao longo do Nilo, entre a
primeira e a terceira catarata. O risco era causado pelo plano de Consta
ção da nova barragem do Nilo, que ia elevar as águas do rio até O
da segunda catarata de sessenta metros, submergindo todos esses LEA
para sempre. Solicitou a atenção da Unesco ea possibilidade de
uma cooperação internacional para salvação desses monumentos.
Parti para o Egito ao encontro do presidente Nasser, que me recebeu
muito entusiasticamente. Pôs à minha disposição o iate dele, e fiz a pri-
meira excursão subindo o Nilo, de Assuã até a fronteira do pais mais
próximo, fazendo a naveta de uma margem à outra do Nilo, errante
dias. Acompanhavam-me quatro arqueólogos, etnográfos egipcios
Tamos fazendo ma reconhecimento do que merecia ser salvo, até che-
garmos ao grande monumento de Ramsés II, o templo de Abu Simbel,
realmente maravilhosos.
De volta, estive de novo com o presidente Nasser e disse a ele que iria
promover uma campanha internacional. Surgiram assim, nas
cias de 1950, 1951, 1952 da Unesco, os primeiros movimentos, Os primeiros
apelos para reunir fundos que se avaliavam desde logo como De
fato, foram necessários ao todo, até este momento, cerca de 40 milhões de
dólares, que foram doados. Nunca se retirou do orçamento obrigatório da
Unesco, formado pela contribuição dos estados membros, um cêntimo.
Foram todas contribuições voluntárias, em grande parte, como sempre
acontece, dos Estados Unidos, que ofereceram praticamente a metade des-
ta soma, por doações privadas ou por doações publicas.
Em certo momento a situação financeira tornou-se muito grave, por-
que as contribuições prometidas nem sempre chegavam a tempo Ea obra
não podia sofrer atraso, nem interrupção. Os Estados Unidos tinham
oferecido dez milhões de dólares e haviam dado uma parte, mas era
preciso complementá-la com urgência. Eu, como presidente da comissão
Ciência, Política e Relações Internacionais

de salvação dos monumentos históricos, fui a Washington. Ao chegar


la, onde estava sendo esperado do modo mais acolhedor possível, o sub-
secretário de Estado me disse: “O senhor chegou num dia desastrado. A
nossa embaixada no Cairo foi ontem apedrejada e queimada. Com que
animo vou solicitar ao governo norte-americano os dez milhões que o
senhor espera? Sei que o senhor está aqui para isso, mas não é possível,
o senhor mesmo há de compreender que o momento é o pior possivel”.
Parti frustradissimo. Cheguei a Paris, comuniquei-me com o Cairo e
anunciei que ia imediatamente entender-me com o presidente Nasser,
que me recebeu. Tivemos um diálogo que se tornou no fundo muito
cordial, porque ele era um homem de fair play. Eu lhe disse: “Presidente,
estou com uma incumbência muito penosa. É de lhe pedir que, quando
tiver que destruir uma embaixada americana, me avise previamente,
para que eu não chegue aos Estados Unidos no próprio dia, o que é
totalmente incompatível com a minha missão”. Ele me olhou num tom
forte que ele tinha, mas, ao mesmo tempo, simpático e me disse: “How
night you are”. Então eu lhe disse: “Precisamos de um modo de nos en-
tender. Além disso, o presidente Kennedy fez-me saber que o senhor
deve respostas a três cartas dele”. Ele pensou um pouco e disse: “É ver-
dade”. Continuei: “Para salvar essa situação, seria necessário que o se-
nhor escrevesse uma carta ao presidente Kennedy dizendo, de um modo
categórico, que o senhor reputa a contribuição americana para salvação
dos monumentos da Núbia como um assunto prioritário. Uma carta espe-
cifica sobre isso”. Ele parou de novo, pensou e respondeu: “Uma carta só
sobre Isso não lhe prometo, mas um grande parágrafo sobre isso na mi-
nha proxima carta será feito”. Eu disse: “Então, peço simplesmente que
me faça saber quando a sua carta for expedida, porque só voltarei aos
Estados Unidos depois dessa mensagem sua apaziguando a situação”.
De fato, um mês e meio depois, comunicou-me a delegação junto à
Unesco que a carta tinha seguido. Dois ou três meses depois voltei aos
Estados Unidos, que concedeu a quantia que faltava sem dificuldade. A
generosidade americana é muito maior do que se diz e se pensa. Apesar
das relações muito tensas com o Egito durante esse período quase todo,
manteve-se a solicitude do povo americano, com doações privadas e
coletas de dinheiro nas instituições; talvez uns cinco milhões de dólares
provêm de contribuições individuais americanas. A fortuna ajuda, mas
ha também um grande sentimento de solidariedade.
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

A Comissão de Preservação dos Monumentos na Unesco foi consti-


tuida e, desde então, eu a presido. Já faz vinte anos que sou presidente
dela. Salvamos todos os monumentos que estavam inventariados como
merecedores disso, e cada um deles está no seu lugar, a salvo do desapa-
recimento. O maior, o mais belo, o mais importante são os dois templos
de Abu Simbel, hoje abertos à visita do público e conservados de tal
maneira que ninguém se dá conta de que tudo aquilo foi cortado em
quatro ou cinco mil pedaços e reajustado com exatidão, precisão. Uma
das provas é que os pássaros que tinham seus ninhos num recanto par-
ticular do templo continuam a encontrar lá os seus ninhos, embora a
sessenta metros de altura e a dois quilômetros do ponto em que se encon-
travam. Dentro da mesma orientação em relação ao sol, todas as carac-
teristicas físicas e astronômicas do templo foram rigorosamente respei-
tadas. Falta um único templo, que será removido em novembro deste
ano. Estava situado na ilha de Philae e vai para a ilha de Agilka, muito
próxima, mas mais alta.
Esse foi um esforço internacional, talvez o de maior vulto que já se fez
de cooperação voluntária, através de equipes técnicas extraordinárias, com
grande contribuição de homens de ciências, de engenheiros de uns vinte
paises. Hoje esse esforço está coroado, creio eu, do maior êxito. Na última
Conferência Geral da Unesco, realizada no ano passado [1978], fui incum-
bido pelo Conselho Executivo, do qual fazia parte, de apresentar duas
moções que foram aprovadas, felizmente por unanimidade. Uma tenden-
te a prolongar a missão do comitê que presido desde 1960, para concluir
as obras em curso e para que este mesmo comitê promova a construção
de um museu em Assuã, que reúna tudo que foi descoberto e achado nas
escavações realizadas pela primeira vez ao longo do Nilo, entre a primeira
e a segunda catarata, numa extensão de cerca de quinhentos quilômetros
de cada lado. Achou-se uma multidão de coisas diferentes, desde igrejas
cristás do século VII — descobertas intactas, com as suas pinturas mu-
rais, com as suas estátuas, por uma missão arqueológica polonesa — até
os instrumentos mais primitivos da pré-história. Todos eles indicam que
aquela àrea foi um entrecruzamento de civilizações extraordinariamen-
te diversificadas. Disse-me um dos escavadores holandeses, ao termo
dessa grande campanha, que foi empreendida por um grupo de univer-
sidades do mundo inteiro, inclusive da Argentina: “Aprendeu-se mais
sobre a civilização egípcia nesses 25 anos em que essas últimas escava-
ções foram feitas do que se sabia até então”, o que é uma dimensão enorme.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Esse museu previsto para Assuã reuniria tudo que foi descoberto de
Importante nessas escavações e tudo que de algum modo se relacione
com esses templos. O Egito é um museu em si mesmo, e o Museu do
Cairo foi criado em 1900 também por uma iniciativa internacional. O
prédio atual foi construído por subvenção internacional, em 1900. Hoje
é um depósito poeirento, inteiramente indigno das riquezas que hospe-
da. Propusemos então que, uma vez terminada essa campanha, uma vez
concluido o Museu de Assuã, que se empreendesse um plano de cons-
trução de um novo Museu Faraônico, exclusivamente faraônico, num
outro lugar do Cairo, que já está mais ou menos escolhido, numa grande
ha no centro do Nilo. Ele servirá para albergar o que há de mais impor-
tante no velho museu, e o que possa provir dessas descobertas novas e
que, de preferência, se situe no grande Museu do Cairo, ficando o anti-
so, que estã sendo também reconstituído materialmente, como um cen-
tro de formação de especialistas, arqueólogos, egiptólogos, no sentido
jato da palavra, deixando ao novo museu a função de mostruário, de
exibição, de exposição permanente.
(...) À medida que o programa de salvação dos monumentos da Núbia
se tornava conhecido, a Unesco passou a receber solicitações Inúmeras.
Ha hoje talvez uns trinta projetos de proteção e salvação de monumen-
tos naturais ou monumentos históricos em paises dos mais diversos do
mundo. No momento, estamos trabalhando na Indonésia, com o grande
templo budista de Borobudu, que é o maior templo, materialmente de
grande beleza, e que estava extremamente comprometido pela ação do
tempo, da umidade, de ligeiros tremores de terra. Mas não é só lá! Toda
a bacia do Mediterrâneo Oriental está sendo também objeto de recons-
truções. Na lunisia, na Argélia e na Síria. Para a América Latina, os pri-
meiros socorros da Unesco foram feitos no Peru, em Cuzco. Depois, quan-
do houve uns tremores de terra naquela área, a Unesco também deu um
auxilio muito grande.
A situação do Brasil é boa, embora o país tenha custado muito a rati-
ficar a convenção de Proteção Internacional dos Monumentos. Afinal
Isso Ocorreu, e os primeiros pedidos que recebi, há muitos anos, quando
chefiava a delegação do Brasil na Unesco, vieram do Museu Nacional,
por intermédio de D. Heloisa Alberto Torres, que se interessou pessoal-
mente por um auxilio de especialistas que vieram colaborar em vários
projetos pequenos, mas importantes, do museu. Depois veio o proble-
ma da Bahia, com o Pelourinho. Neste caso a ação da Unesco foi muito
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

importante, porque orientou o projeto, a reconstituição. Mandamos mis-


soes. Vocês conhecem os resultados.

Foram feitas publicações muito importantes — uma missão global,


dando um balanço dos museus, e documentos artísticos, históricos do
brasil, um fascículo muito importante, dando ao mundo conhecimento,
por esse inventário, do que temos a salvaguardar. Depois, foram feitos
estudos específicos sobre Parati, sobre o Pelourinho (Bahia), sobre
Alcântara (Maranhão), mas a Unesco não dispõe de recursos próprios
para atender. É preciso a cada vez promover uma campanha de contri-
buições voluntárias de doações, com a participação dos governos. O Egito
não ficou alheio às despesas do salvamento desses monumentos da Núbia
e contribuiu em tudo, com pelo menos um terço das despesas. De modo
que é preciso que o governo brasileiro assuma uma atitude parecida.
Primeiro, de interesse capital, dando prioridade aos seus pedidos de
cooperação com a Unesco e dispondo de recursos, pelo menos na base
de um terço das despesas previstas. (...) E preciso que a formulação às
Conferências Gerais leve a garantia de uma contribuição e de uma con-
unuidade de ação por parte do governo brasileiro. Foi a Unesco que
indicou esse arquiteto português que prestou a Ouro Preto um serviço
enorme, fazendo um inventário do que era realmente do século XVII
em Ouro Preto.

O projeto da História do Desenvolvimento Científico e Cultural


da Humanidade

A idéia deste projeto nasceu desde o princípio da Unesco. O seu pro-


motor real foi o primeiro diretor geral da Unesco, Julian Huxley, que,
sendo um grande cientista, era ao mesmo tempo um grande humanista.
Ele sempre teve a preocupação de ligar a evolução social à evolução
cientifica e de ver no desdobramento do progresso cultural e científico
uma melhor maneira de apreciar a evolução humana no seu conjunto,
tora dos conflitos militares, fora dos fatores puramente econômicos.
Huxley sugeriu, em 1947, na primeira conferência que a Unesco realizou
tora de Paris, no México, que se constituísse uma comissão que preparasse
um anteprojeto de uma História Científica e Cultural da Humanidade.
Essa idéia despertou vivo interesse. Fui logo escolhido como um dos
participantes da comissão preparatória. Miguel Ozorio de Almeida foi
solicitado, por sugestão minha, para apresentar um anteprojeto. Dois
Ciência, Política e Relações Internacionais

ou três outros homens de letras e homens de história receberam a mes-


ma solicitação. Esses documentos foram todos reunidos, discutidos, ana-
lisados e, desse conjunto de sugestões, o professor Lucien Fébvre fez
outro. Nasceu um esboço de plano, em que se constituiria uma comis-
são que teria o seu presidente, o seu secretário geral, composto de historia-
dores, de homens de letras e de homens de ciência, em distribuição ge-
ográfica equitativa. Em 1950 se formou a comissão preparatória. Fui eleito
presidente dessa comissão. Organizei, como técnica de trabalho, a dis-
tribuição da tarefa a um grande número de consultores, distribuídos no
mundo inteiro. Chegamos a ter uns trezentos consultores especiais. No
Brasil, tivemos Miguel Osório, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque de
Holanda e José Honório Rodrigues, que contribuíram em graus diversos.
Em cada pais formou-se um grupo que enviava propostas, sugestões. (...)
Ão mesmo tempo, organizamos uma revista, para a qual contribuiu
Alberto Venâncio Filho com um artigo sobre aspectos políticos da for-
mação do Brasil. Essa revista se chamava Cadernos de História Mundial,
com quatro números por ano. Chegamos a publicar quatorze anos su-
cessivos dessa revista (The World History), que constituíram subsídios
para a elaboração dos textos. À luz das consultas, à luz dos artigos nessa
revista, um grupo restrito de homens foi escolhido para redigir, em pri-
meira mão, os volumes. O primeiro texto era um versão preliminar que
circulava entre os vários consultores para receber comentários, críti-
cas, demolições; e, pouco a pouco, se juntavam notas a esses textos, no-
tas muitas vezes contraditórias com o texto de base. Isso dava ao texto
final uma abertura muito grande: ao lado da redação formulada pelo
responsável do volume, encontram-se notas em contradição, em oposi-
ção a ela. De modo que é a primeira vez talvez em que, no mesmo volume,
lado a lado, se encontram as contestações que outros historiadores, jun-
tamente com os mesmos méritos pessoais, façam a um texto inicial inte-
grado. Essa edição finalmente ficou pronta em manuscrito em torno de
1960, a última penada dos volumes que vêm da pré-história até o ano
de 1960. Foi publicado em francês, em inglês, em sérvio-croata, em grego,
em hebreu, mas não consegui que se publicasse em português (...).
Hoje decidimos fazer uma reedição da História, retomando-a do co-
meço ao fim, com plena liberdade de análise crítica, de modo que surja
uma História que seja parente muito próximo da inicial, mas com com-
plementos a cada volume. Por exemplo, o primeiro volume, que é dedi-
cado em grande parte à pré-história, está sujeito a várias retificações,
Ciência, Política e Relações Internacionais

Em busca da paz mundial

Aqui se encontra o grande drama da Unesco e das organizações in-


ternacionais: o conflito mais ou menos latente, mais ou menos patente
entre os paises ricos e os países pobres, o que se chamou depois de Ter-
cetro Mundo. Foi quando lancei um projeto de criação de um fundo in-
ternacional para a educação, a ciência e a cultura destinado a acelerar
esse processo de cooperação internacional que, de acordo com a filoso-
fia da Unesco, conduziria a uma paz, à paz dos espíritos; porque éra-
mos guiados em tudo pela linha inicial do estatuto da Unesco. As guerras
nascem no espirito dos homens, é no espírito dos homens que se devem
estabelecer os fundamentos da paz, tese antimarxista por excelência,
porque dá preponderância aos fatores de ordem espiritual sobre os fa-
tores de ordem material e temporal. É a filosofia que reina e que nos
domina até hoje. Então propus essa medida na conferência que se reali-
zou em Montevideu [1954], evocando o problema da América Latina, e
confirmei quando, depois da conferência de Montevidéu, fomos para a
Índia [1955], onde o espetáculo era o mesmo.
Essas duas conferências da Unesco estabeleciam um contraste tão
terrível entre o mundo pobre e o mundo rico que recebi um grande apoio
ao meu projeto, mas uma recusa formal, veemente dos Estados Unidos,
da Inglaterra (a Alemanha não estava ainda na Unesco nesse momento),
da França e dos seus satélites ricos. O projeto nunca pôde entrar em
execução. Um motivo maior é que a maioria com que eu contava era
muito pequena, porque os estados africanos ainda não estavam na
Unesco. Hoje esse projeto está tomando vulto, porque temos entre países
pobres uma maioria de quase dois terços, que pode impor à minoria
decisões que a princípio eram por ela recusada.
Na Conferência Geral da Unesco de 1962, promovi o projeto que cha-
mei de Organização Racional da Paz. O projeto foi apresentado por mim
a titulo pessoal e depois sancionado por uma comissão ampla, presidida
por Noel-Baker, um Prêmio Nobei da Paz na Inglaterra que o aceitou e
aplaudiu. Era um projeto preliminar, era em primeiro lugar um esforço
para libertar o exame do problema da paz dos constrangimentos políticos
que ele sofre. Falar de paz cria sempre em torno de certos países um
sentimento de inquietação ou de repulsa, porque cada um pensa que
está expondo a sua soberania a riscos se aceitar um programa de paz,
ora porque essa paz não pode ser controlada, ora porque não acredita
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

na paz. Mas essas pressões políticas são um dos fatores determinantes


dessa estagnação em que estão os estudos sobre a paz. Porque a paz não
pode nascer de uma declaração. A paz é um estado sociológico que deve
ser criado pondo em jogo as mais diversas forças sociais.
Então sugeri que se promovesse antes de tudo um campo de estudo e
um grupo de estudo sem ligação política com nenhum país, e que fosse
constituído dos homens mais eminentes em Filosofia, em História, em
Ciências Sociais, em Ciências Humanas. Sugeri tambem que a esse grupo
fosse confiado, pela Unesco, a título pessoal, o exame meticuloso de to-
das as condições necessárias para que se pudesse encarar um sistema de
paz universal, não criado por uma convenção, não criado por um de-
creto, mas que surgisse de uma renovação intelectual, moral, educacio-
nal. Um pouco como o estado de saúde se cria no organismo humano,
Não é a força de remédio, é a força de regime que cria condições para
que esse conjunto de órgãos funcione normalmente, sem conflito um
com o outro, em harmonia com o meio exterior. Essa harmonia é de
cada um com a sua coletividade e dessa coletividade com o metido físico.
Tudo isso é um mecanismo de uma extrema delicadeza, de uma extrema
complexidade. Toda tentativa de solução que não leve em conta todos
esses elementos seria tão arbitraria quanto querer criar num homem um
estado de perfeita saúde cerebral e fisica sem nutri-lo como ele precisa
ser nutrido, sem o repouso de que carece, sem todas as circunstâncias
em que ele deve ser envolvido. Ora, nada disso se faz quando se discute
a paz. É um tumulto político em que se debatem interesses de ricos, de
pobres, de Oeste, de Leste, em que todos desconfiam uns dos outros, em
que todos têm medo uns dos outros. É nesse ambiente de terror, de
desconfiança que subitamente se quer criar um desarmamento. É total-
mente irrealista. Se não se cria previamente uma atmosfera de confiança,
de serenidade, de eliminação do terror, não há desarmamento possivel.

Ora, não creio que isso se possa fazer daqui ao ano 2000. Vejo as difi-
culdades imensas e vejo que a nossa sobrevivência — enquanto não se
encara o problema sob esse aspecto de revolução coletiva, psicológica,
biológica, econômica, concordante, convergente, enquanto não se faz
esse estudo e um planejamento racional — está acontecendo por acaso.
Tenho a impressão de que estamos viajando num navio que pode en-
contrar um iceberg a qualquer momento, sem meios de proteção. Creio
sinceramente que esse problema da paz ficara em suspenso enquanto
não se der ao problema a sua fundamentação sociológica real.
Ciência, Política e Relações Internacionais

À demissão do cargo de embaixador do Brasil na Unesco

Nao tenho nenhum escrúpulo em mencionar esse caso, que foi um


pouco dramatizado pelas circunstâncias especiais em que o Brasil se
encontrava. A qualquer momento, qualquer presidente da República,
estando eu num cargo de confiança pessoal e em comissão, poderia exo-
nerar-me normalmente, sem nenhum problema, porque compete ao pre-
sidente da República nomear um embaixador que não é da carreira e, ao
mesmo tempo, demiti-lo. O que tornou grave esse ato foi a circunstân-
cia. Meu filho, que é artista, que é arquiteto, tinha tomado parte numa
manifestação junto ao Hotel Glória, quando se celebrava uma reunião
dos Estados Americanos à qual compareceu o presidente Castelo Bran-
CO. No momento em que o presidente chegava, o pequeno grupo do
qual ele fazia parte abriu uma bandeira dizendo: “Abaixo a ditadura”.
foram todos presos e levados num caminhão; passaram uns quinze dias
presos sob interrogatório etc. Todos os jornais declararam: “O filho do
embaixador Paulo Carneiro, rebelde, sublevando, manifestando-se etc”.
V1 essa notícia um pouco com pesar. Primeiro, pelas circunstâncias
em que o meu filho se encontrava, achando que tinha sido um gesto
pouco refletido. Porque uma manifestação desse tipo não tem, no fun-
do, eteito maior, como não teve, receando mais pela carreira dele do que
pela minha. Estávamos chegando ao fim do ano. O meu grande amigo
no ministério então era Vasco Leitão da Cunha, que me escreveu dizen-
do: “Nada disso diz respeito a você”. Mas ele deixou o cargo e foi nome-
ado embaixador em Washington. Dias depois, o ato de minha exonera-
ção chegou a Paris, sob uma forma um pouco rude: era um telegrama
dando aqueles agradecimentos protocolares e substituindo-me pelo meu
velho e querido amigo Carlos Chagas, ao qual enviei imediatamente um
telegrama dizendo que me dava grande satisfação ser nesse posto subs-
tituido por um homem da estatura intelectual e moral dele
Mas isso criou um mal-estar em torno dele, em torno de mim, em
torno de amigos comuns, sem que as nossas relações tivessem sofrido
um minimo arranhão com isso. A minha demissão foi considerada um
gesto injusto porque de todos os lados a imprensa brasileira se manifes-
tou solicitando, com um calor que me comoveu, a minha manutenção
no posto, evocando os serviços prestados. O objetivo do governo, que
alias compreendo, era eliminar de um posto muito importante um pos-
sível elemento suspeito. Além disso, nunca deixei de cumprir para com
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

o ex-presidente Juscelino Kubitschek os deveres que me parecem ine-


rentes a um homem que exerceu esse posto e que se encontrava isolado
em Paris. Nunca deixei de cumprimenta-lo, nunca deixei de visitá-lo, e
isso também contribuiu para tornar-me um pouco suspeito de um even-
tual espírito de rebeldia, de revolução, que não era absolutamente no
meu caso. Eu achava que as circunstâncias em que o movimento de 1964
se produzira haviam sido tão dramáticas, a desordem era de tal ordem,
a anarquia tinha chegado a tal ponto que qualquer coisa deveria ter sido
feita, mas sem nenhuma rebeldia da minha parte. Toda a Unesco se abalou
muito, e fui obrigado a passar a defender o ato para não comprometer
demais o meu pais.

As relações com a Igreja


Eu não poderia deixar de me referir ao papa João XXIII. Ele era núncio
apostólico em Paris quando se criou a História do Desenvolvimento Cienti-
fico e Cultural da Humanidade. Criou-se uma campanha surda, alegando
que essa comissão era composta de ateus: Julian Huxley, Paulo Carneiro
e dez outros que eram livres-pensadores. Essa campanha ia tomando
corpo no Instituto Católico Francês, que era muito poderoso na França.
Procurei o núncio apostólico, o futuro papa João XXIII, monsenhor
Roncalli. Expus a ele a situação. Ele me disse: “Deixe por minha conta.
Aceite o convite que o reitor do Instituto Católico Francês vai lhe fazer
para um debate. Vou dar a ele uma surpresa: ao chegar lá, serei eu que
presidirei o debate”. E assim fez monsenhor Roncalli. Com espanto meu
e ternura minha, ele presidiu o debate e liquidou o assunto em uma hora
de discussão. Parti com o seu beneplácito e a sua benção.
Pouco depois, ele me chama e diz: “Quero ser, como a Santa Sé quer,
observador oficial da Santa Sé, não do Vaticano, junto à Unesco. O Vati-
cano é uma cidade que não tem importância. É a Santa Sé”. Mas o esta-
tuto da Unesco é intergovernamental e os juristas da Unesco diziam: “Só
pode ser membro ou observador o Estado, o Estado do Vaticano pode
ser, a Santa Sé não pode ser”. Então, de acordo com o Roncalli, fui a
Roma com o roteiro por ele indicado: “Você vai ser recebido por
monsenhor lardine. Não se assuste, ele é muito agressivo. Depois vai
ser recebido por monsenhor Montine. Esse é um principe florentino do
seculo XVl e você vai se entender muito bem com ele. Depois desses
dois encontros, você será recebido por Pio XII, e agora ponha a sua ima-
ginação em exercicio e descubra uma solução”.
Ciência, Política e Relações Internacionais

F u i m u i t o m a l r e c e b i d o p o r m o n s e n h o r Ta r d i n e , c o m o e l e p r e v i a :
“Vocês são todos uns hereges”. E fui muito bem recebido por monsenhor
Montine, que depois se tornou Paulo VI e ficou sendo muito meu amigo.
Uma conversa encantadora em que lhe disse: “Não vejo solução jurídica
à rigor, mas vejo uma solução política. Sou presidente do conselho; ao
voltar a Paris, convoco o conselho e faço uma declaração escrita que
figurara nas atas do conselho e que ninguém tocará, em que digo: “O
presidente do conselho, a convite de sua santidade Pio XII foi em visita
à Santa Sé e, de acordo com o santo padre, designa como representante
da Santa Sé junto à Unesco o monsenhor Roncalli””. Tudo isso era arbi-
trário do ponto de vista rigorosamente constitucional da Unesco. O con-
Sselho não iria se opor a essa fórmula de transação. Torres Bodet era o
cliretor geral da Unesco, tão herege quanto eu e por isso tão amigo da
vanta Sé quanto eu, não temos o menor preconceito. Achamos, ao con-
trario, que devemos prestigiar essas organizações. E assim foi feito até
hoje, de modo que fiquei muito bem-visto na Santa Sé, especialmente
por monsenhor Roncalli, que se tornou João XXIII, depois por Montine.
A tal ponto que, quando estava fervendo aqui o conflito sobre o Ins-
tituto da Hiléia Amazônica e eu estava ameaçado de todos os lados, o
cardeal de São Paulo [cardeal Mota], forte amigo pessoal do presidente
Dernardes, tinha anunciado que iria fazer uma pastoral acusando-me de
estar faltando aos meus deveres em relação ao Brasil junto à Unesco no
tocante a esse projeto. Eu ignorava tudo, mas vim ao Brasil e então fi-
quei sabendo que a pastoral estava redigida, mas que aconteceu uma
coisa inesperada.
Nesse interim, monsenhor Montine, que era então só secretário de Es-
tado, mandou uma carta ao cardeal do Rio de Janeiro em que dizia: “Cha-
mo a atenção para essa figura admirável que é o representante da Unesco
no Brasil, com a qual a Igreja brasileira deve colaborar, que nos prestou
um grande serviço resolvendo esse problema que era dificílimo, do nosso
observador junto à Unesco”. Aconteceu então outra coisa inesperada. Era
bispo adjunto Dom Helder Câmara, que eu nunca tinha visto, mas que
estava muito bem informado sobre o que se projetava em São Paulo, e por
respeito à carta que ele acabava de receber do monsenhor Montine, ba-
teu-se para São Paulo e disse ao cardeal: “Olhe que é o homem contra o
qual o senhor está promovendo esta campanha difamatória”. Tudo se
desarmou. Cito esse exemplo para mostrar como os acontecimentos se
entrelaçam inexplicavelmente, inesperadamente na vida de um homem.
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

A eleição para a Academia Brasileira de Letras

Nunca pensei na Academia. Meu querido amigo e cunhado Ivan Lins,


membro dos mais brilhantes da Academia, um dia me disse: “Por que
você não se candidata à Academia?”. Eu lhe respondi: “Há tanta gente
que quero ver nessa academia antes de mim, e um dos que eu mais queria
ver na academia era Anisio leixeira”. Fiz saber a Anísio que eu não me
apresentaria a Academia enquanto ele não fosse membro. Anísio também
não tinha intenção de se candidatar e a minha candidatura foi lançada
um pouco à minha revelia. Até que um dia recebo em Paris um telegrama
de amigos muito fiéis a Anísio e a mim, no qual me pediam para renun-
ciar em favor da candidatura de Anísio, porque eles estavam forçando o
Ânisto a aceitar.

imediatamente mandei um telegrama ao presidente pedindo que re-


tirasse o meu nome da lista, e que desse toda a ênfase a candidatura de
Anísio Teixeira. Fiz mal porque isso foi a causa involuntária da morte de
Anisio. Quando ele aceitou, depois de muita relutância íntima, começou
a fazer as visitas de protocolo. Numa dessas visitas, em casa de um dos
acadêmicos que morava em Botafogo, ele subiu a um andar errado, deu-
se conta que não estava no andar certo e voltou ao elevador. À inominável
desidia brasileira tinha deixado o elevador numa condição em que a
porta se abria sem que o elevador estivesse no andar correspondente.
Em confiança, Anísio abre a porta e precipita-se no vácuo e ninguém
sabe do paradeiro dele. Na véspera, ele tinha estado em minha casa. A
família tenta encontrá-lo lá, me chama e criou-se aquele desespero. Morre
Aniúsio, enterra-se Anísio e no momento do enterro aqueles mesmos acadê-
micos que tinham pedido que eu renunciasse à minha candidatura em
favor de Anísio me solicitaram que reapresentasse a minha candidatura.
O tempo era curto, era necessário fazê-lo e foi assim, por um conjunto
de circunstâncias, que afinal fui eleito por larga maioria para a acade-
mia, para substituir um homem pelo qual eu tinha grande admiração e
grande estima, que era o Clementino Fraga.
O meu discurso de posse na academia foi de louvor aos predeces-
sores: Leófilo Dias, Conde de Afonso Celso e o próprio Clementino Fraga.
O discurso de Ivan Lins foi uma biografia muito terna da minha própria
vida. Hoje sou na Academia um membro esporádico, pois vivo no exte-
rior e venho à academia duas vezes por ano, no máximo. Tenho feito
conferências sempre que posso. Fiz uma conferência sobre Francisco
Ciência, Política e Relações Internacionais

Venâncio Filho, outra sobre os monumentos históricos e artísticos, ou-


tra sobre Os grandes missioneiros de proteção aos índios.

O legado positivista e a experiência internacional


Fiquei muito fiel ao pensamento fundamental de Auguste Comte, que
é o pensamento de renovação, o qual está longe de ser um pensamento
de estabilização, como muita gente pensa, que se tem que alimentar do
que cada geração traz. O programa do Comte não é um programa final,
e um programa inicial. Ele começou uma revolução. Essa revolução tem
que se desenvolver, tem que se alimentar de todas as contribuições cien-
Hficas, estéticas, filosóficas que vão surgindo de geração em geração. O
espírito humano não estanca de repente num ano, num século. De modo
que eu chamaria o meu positivismo de um positivismo evolutivo, pois
que se baseia num conjunto de conceitos fundamentais e que se enrique-
ce de ano para ano com as contribuições que, dentro do espírito positi-
vo, dentro dessa norma do real, do verdadeiro, do útil, vai crescendo.
Nesse sentido, o meu convívio internacional tem contribuído muito.
live a felicidade de viajar a serviço da Unesco. De país em país, entran-
do em contato com as suas elites e ao mesmo tempo tendo um campo de
observação dos estados de civilização desse grande mosaico humano
que é o mundo de hoje, em níveis de cultura e de civilização tão diversi-
ficados, e que me serviam de base para comparar com o próprio proble-
ma brasileiro. Quando se sai da Índia, todos os problemas brasileiros
parecem ser de uma simplicidade extrema, porque lá tudo isso é multi-
plicado por 400 milhões, e isso encoraja também. Mas ao mesmo tempo
a minha sensibilidade se foi aguçando diante da miséria humana, dos
sotrimentos humanos, das esperanças humanas, dos desesperos que se
toram multiplicando através de cada viagem, de cada contato. Até que
hoje me sinto um homem integrado na comunidade humana, na comu-
nidade internacional, como certamente não era há quarenta anos atrás,
embora a minha formação me tivesse predisposto a uma aceitação e a
uma participação. Mas hoje tudo que se está passando reage dentro de
minhas entranhas com uma força enorme, pelos contatos que cada gera-
ção dessas proporcionou. Devo muito à Unesco, não só por me ter per-
mitido colaborar e dar de mim mesmo o melhor que possuo em devo-
ção, em esforço intelectual, em esforço criativo, mas por ter recebido
esse impacto do nosso tempo por intermédio das suas melhores perso-
nalidades, das suas melhores personificações.
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista...

Um cidadão do mundo

Os meus ídolos são realmente seres de elite do nosso tempo, com os


seus defeitos e dentro das circunstâncias que lhes foram impostas. Começo
pelos meus ídolos brasileiros, que são os mais numerosos. Com a maior
singeleza, mas com a maior sinceridade, digo que o meu primeiro ídolo
fol o meu pai, porque foi um funcionário extraordinário e um educador
Severo, mas carinhoso e ilustrativo. Eu o via como diretor geral do Mi-
nistério da Agricultura, de volta do seu dia de trabalho, às nove horas
da noite, terminado o jantar, com uma pilha de papéis assinados do
lado esquerdo, e, por vezes, no dia seguinte, às seis da manhã, via-o no
mesmo lugar com a pilha do lado direito — tinha passado a noite traba-
lhando, despachando. Nunca tirou um mês de férias, nunca tirou uma
licença, durante quarenta anos trabalhou sem parar, ocupando-se ao
mesmo tempo dos negócios públicos com o maior fervor, dentro do
movimento republicano, dentro do movimento positivista, lutando pela
liberdade e pela justiça em todos os setores, de modo que foi uma im-
pressão de dia e de noite que comandou muito a minha atuação.
Vepois, filosoficamente, devo citar o papel preponderante do ensino
de Teixeira Mendes, que era um jorro de cultura e de luz. A terceira gran-
de figura que exerceu sobre mim uma ação fascinante foi Rondon, pela
obra que realizou e pela sua pessoa humana, que conheci muito de perto,
porque era um fraternal amigo de meu pai, meu padrinho. Acompanhei a
vida dele passo a passo, porque inúmeros dos meus primos foram mem-
bros da Comissão Rondon: uns morreram flechados, outros sobrevive-
ram, e essa epopéia que foi a missão Rondon teve um valor extraordinário
na minha imaginação de adolescente. Eu percorria os sertões brasileiros
com Koquette-Pinto, com Rondon na minha imaginação; as conferências
que o Rondon fez, os primeiros filmes que mostrou, um jovem índio que
ele trouxe com oito ou nove anos, colhido na selva, perdido, e que foi
morar lã em casa. Recebemos esse menino como quem recebe uma apari-
ção pré-histórica. Procuramos dar surpresas a esse indiozinho, criar um
estado emocional nele. Nós o levamos subitamente no mar em Copacabana
e ele se mantinha impávido, diante dos bondes ele continuava impávido,
mas quando chegava em casa e abria uma torneira e via água cair, inun-
dava a casa, € quando riscava um fósforo, incendiava a casa se pudesse.
Era um menino de uma grande inteligência que se tornou, dois anos de-
pois, primeiro aluno do Colégio Lafayette, onde havia dois mil estudan-
tes. Toda essa epopéia Rondon exerceu sobre mim um poder fascinante.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Em seguida, menciono o meu professor de Matemática, pouco co-


nhecido hoje, mas que era um homem admirável como professor e como
homem cívico - o seu nome era Raul do Nascimento Guedes. Era uma
figura um pouco do século passado, pela sua maneira de ensinar, pelo
ardor com que se dava à Algebra ou à Geometria, como se fossem seres
vivos que ele impregnava com uma paixão enorme. Depois menciono
Francisco Venâncio, que foi um companheiro mais velho do que eu, uns
sete ou olto anos a mais, mas que se tornou meu mestre real, porque me
abriu os olhos para um mundo que o meu enclaustramento na seara
positivista não tinha conhecido. Ele rompeu esse cerco, mostrando-me
essas avenidas novas que se abriam. Depois vem o meu professor na
Escola Politécnica, ao qual devo a minha carreira científica, cujo nome
era Júlio Ernesto Carlos Lohman.
Essas foram as figuras que exerceram uma influência concreta e direta
sobre mim, na minha formação. A seguir recebi a influência cientifica e
carinhosa de Miguel Ozorio, que a meus olhos passou a ser, enquanto
viveu e enquanto comigo conviveu, a maior figura da ciência brasileira.
Mas não é só nesse mundo que a influência se exerceu. Houve uma in-
fluência feminina também muito grande na minha vida. Não falarei ja-
mais de meus amores de adolescente — amores, como todos os amores
de adolescência, um pouco pecaminosos, um pouco idealistas -, mas
nas admirações que tive já na idade madura. O carinho de minha mãe
foi enorme. Eu disse uma vez em uma dedicatória a ela que ela me ensi-
nou a amar, e que não hã dom maior que um homem possa receber. Ela
me ensinou a amar pelos atos de amor que praticava a todo momento.
Ate hoje sou um homem amoroso de tudo que me cerca, e em grande
parte ouvindo aquela voz do norte do Brasil, muito suave, muito doce.
live grandes admirações. Uma grande admiração foi a minha avó.
Minha avo nasceu em 1849, viveu 87 anos com lucidez e memória. Era
uma mulher extraordinária que, nascida no meio burguês e rural de Ouro
Preto, proprietária de fazenda —- o governador da província era o pai
dela —, quando se casou recebeu de presente dois escravos. De repente,
ela se emancipou de tudo isso, tornou-se republicana, aderiu ao movi-
mento positivista e viajou, foi à Europa aos setenta e tantos anos. E exer-
ceu sobre a minha geração, de netos, uma influência fascinante, por essa
criação, por essas transformações que ela própria sofreu e que a aproxi-
mavam muito de nôs, jovens, que estávamos vendo tudo isso pela pri-
meira vez. Ao mesmo tempo em que ela me descrevia a primeira via-
Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, cientista brasileiro...

gem que fizera, na inauguração da estrada União e Indústria, de


Petrópolis a Juiz de Fora, ao lado da princesa Isabel, que era menina
como ela. já tinha voado em avião, tinha assistido às grandes manifesta-
ções da guerra. Foi uma influência muito grande.
Se tivesse que fazer um julgamento histórico das minhas afeições fe-
mininas, eu diria que a mulher mais importante que conheci, aquela que
considero mais dotada de todos os dons, de cultura, de sensibilidade,
toi Cecilia Meireles. Se eu tivesse que fazer uma hierarquia feminina,
certamente a colocaria no ápice de uma pirâmide, porque ela me fez
viver a poesia — não ler a poesia, mas sentir a poesia viva, andando,
praticando em todos os seus gestos, em todos os seus atos, e esse convívio
de muitos anos, quando essa menina tinha apenas três ou quatro anos,
enriqueceu-me de um modo extraordinário. Hoje em dia os livros dela
ainda me acompanham por toda parte, como uma espécie de cantilena
brasileira do mais alto nível, sobretudo o poema admirável que ela cons-
t r u i u s o b r e a I n c o n fi d ê n c i a M i n e i r a . N e s s a h i e r a r q u i a d e v a l o r e s , e u
poderia acrescentar certamente outras tantas figuras, mas as predomi-
nantes são essas.

Fora do Brasil, tive a sorte de conhecer os grandes intelectuais da


Europa, os grandes intelectuais do mundo. Apertei a mão de Einstein —
o que me da anda hoje uma sensação de emoção -, apertei a mão de
madame Curie, ouvi lições de um e de outro, apertei a mão de Nehru,
apertei a mão do Dalai Lama, apertei a mão do rei da Etiópia, mas aper-
tei a mão também dos grandes líderes do sindicalismo europeu e conheci
os grandes promotores de todos esses movimentos de extrema-esquerda
e de extrema-direita. Visitei a Rússia, conheci de perto todos aqueles
representantes desse movimento dramático, com todas as suas realiza-
ções positivas e negativas, vi também de perto essa tremenda expansão
técnica e cultural dos Estados Unidos. De modo que os homens que fui
encontrando, e também as mulheres eminentes, se tornaram os centros
em torno dos quais a minha vida interior se constituiu, se concentrou,
Nunca me senti só, nunca me senti isolado, vivendo muitas vezes meses
so em Paris, porque tinha em torno de mim essa coorte, esse invisível
coro de que fala um poeta inglês, e que vou selecionando à medida que
o tempo vai passando, e que vela um pouco pelos meus atos, procurando
corrigir-me, melhorar-me na medida do possível.
Irajetória e produção intelectual
de Paulo Carneiro

Marcos Chor Malo

aulo Estevão de Berredo Carneiro nasceu no Rio de Janeiro a 4 de


o u t u b r o d e 1 9 0 1 , fi l h o d e M a r i o B a r b o z a C a r n e i r o e M a r i a
Teodora de Berrêdo Carneiro. Sua família tinha raizes nas elites
políticas imperiais do Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Esse
ambiente familiar gerou políticos, diplomatas e cientistas. Seu pai, funcio-
nário público, era adepto do positivismo e teve uma participação desta-
cada na luta pela abolição da escravidão e pela instalação de um regime
republicano no Brasil. Como funcionário do Ministério da Agricultura,
criou, junto com o também positivista marechal Cândido Rondon, o Ser-
viço de Proteção ao Índio. Posteriormente, durante o primeiro governo
de Vargas, ocupou interinamente o Ministério da Agricultura.
Paulo Carneiro iniciou seus estudos no âmbito familiar, sob a égide
do positivismo. Antes mesmo de concluir sua formação universitária,
em 1922, ingressou na Escola Normal como professor de química e his-
tória natural, função que desempenharia até 1927. Diplomou-se em quí-
mica industrial pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1923, ano
em que ingressou na instituição na qualidade de assistente da cadeira de
quimica geral, cargo que ocuparia até 1927. Combinando atividades de
ensino com as de pesquisa, em 1924 ingressou como químico no Serviço
Geológico e Mineralógico do Brasil, órgão do Ministério da Agricultura.
Nessa função, dedicou-se à análise de minerais, tarefa que continuou a
realizar a partir de 1925, como químico auxiliar do Instituto de Química.
Em 1927, por meio da Escola Politécnica e do Ministério da Agricul-
tura, Paulo Carneiro obteve uma bolsa de estudos para realizar seu dou-
torado na Sorbonne, sob a orientação de Gabriel Bertrand, especialista
em pesquisas sobre as propriedades químicas de plantas como o guaraná
e o mate. Como pesquisador do Instituto Pasteur, Bertrand franqueou a

1099
Ciência, Política e Relações Internacionais

Paulo Carneiro o acesso ao Laboratório de Quimica Biológica da institui-


ção, no qual ele realizou toda a investigação científica necessária à con-
clusão de sua tese, que versava sobre a composição quimica do guaraná
(Paulinia cupana), planta originária da região equatorial da América do
Sul. Paulo Carneiro permaneceu em Paris até 1931, quando se doutorou.
Foi nesse periodo que, em contato com positivistas franceses,
teveacesso aos papéis deixados por Augusto Comte. Obteve permissão
para pesquisar os manuscritos e inventariá-los. Ademais, criou as con-
dições para o futuro estabelecimento da Casa de Augusto Comte, a orga-
nização do acervo do fundador da doutrina positivista, o resgate de seu
mobiliario e a publicação de inúmeros documentos do filósofo francês.
De volta ao Brasil no início da década de 1930, Paulo Carneiro
reassumiu o cargo de professor de quimica e história natural na Escola
Normal, além de ingressar no curso pré-médico da Faculdade de Medi-
cina do Rio de Janeiro como professor de quimica orgânica. Em 1933,
assumiu novamente a função de professor assistente de quimica geral
da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. No ano seguinte, mediante con-
curso público, tornou-se livre-docente da cadeira de quimica inorgânica
da mesma instituição.
Entre 1932 e 1934, foi nomeado chefe da Seção de Pesquisas Agricolas
e Industriais do Instituto de Oleos do Ministério da Agricultura, assis-
tente-chefe do Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil e chefe do
Departamento de Matérias-Primas Vegetais e Animais do recém-criado
Instituto Nacional de Tecnologia (INT), vinculado ao Ministério da Agri-
cultura. É no exercício desse cargo que Carneiro começa a pesquisar as
propriedades químicas e fisiológicas do curare, veneno utilizado pelos
indigenas da Amazônia na ponta das flechas para capturar suas presas.
Carneiro exerceu também a função de auxiliar técnico do Gabinete
de Juarez Távora, então ministro da Agricultura. Suas atividades em
Orgãos governamentais devem-se, em grande medida, ao prestígio de
seu pai, funcionário de longa data do Ministério da Agricultura.
Em fevereiro de 1935, Paulo Carneiro interrompeu as pesquisas sobre
o curare que realizava no INT, uma vez que foi convidado pelo interventor
federal em Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, para assumir a Secre-
taria de Agricultura, Indústria e Comércio do estado. Seu objetivo era
reorganizar a agricultura pernambucana. Em linhas gerais, sua atuação
se pautou pela tentativa de modernizar o setor agricola com base na
experiência de São Pauio e de alguns paises desenvolvidos. Diversos téc-
trajetória e produção intelectual...

nicos e cientistas nacionais e estrangeiros foram contratados, assim


como criaram-se cooperativas e implementaram-se políticas para diver-
s i fi c a r a s a t i v i d a d e s p r o d u t i v a s , a r e d u ç ã o d o s c u s t o s d a a l i m e n t a ç ã o
do trabalhador rural, além da proposta de uma reforma agrária no esta-
do. Durante sua gestão surgiram alguns órgãos importantes, como o
Instituto do Açúcar e do Álcool, a Escola de Agronomia e Veterinária de
Pernambuco, o Instituto de Pesquisas Agronômicas, o Serviço de Fomento
da Produção Vegetal e o Serviço de Organização Social do Tra-balho
Agricola, que se destinava a implantar as cooperativas.
Contudo, o projeto das cooperativas e o da diversificação da produ-
ção valeram a Carneiro a oposição da elite agrária de Pernambuco. Some-
se a isso O fato de que, em meio a um clima de repressão oriundo da
fracassada revolta comunista de 1935, os opositores ao governo passa-
ram a fazer acusações de que o secretariado do governo de Pernambuco
era composto por comunistas, o que acabou resultando na renúncia de
Paulo Carneiro. Assim, apenas nove meses depois de assumir o cargo de
secretário de Agricultura, Indústria e Comércio de Pernambuco, retornou
ao kio de Janeiro.
No então Distrito Federal, restabeleceu os vínculos com o INT e, em
tace do fechamento político que veio a resultar no golpe de 1937, deci-
diu retomar suas atividades científicas sobre o curare no Laboratório de
Quimica Biológica de Gabriel Bertrand, no Instituto Pasteur em Paris,
em 1936. Nesse mesmo ano, assumiu O cargo de assistente-técnico do
Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil. Com suas
pesquisas, e contando com o apoio de Bertrand — que, além das depen-
dências de seu laboratório, ofereceu-lhe uma bolsa de pesquisa para que
desenvolvesse seu trabalho -, Carneiro investigou a composição do curare.
Us resultados dessa experiência foram apresentados à Academia de
Ciências de Paris e publicados em alguns periódicos científicos, o que
lhe rendeu grande prestígio. Suas descobertas repercutiram na impren-
Sa e nos meios científicos brasileiros, o que lhe valeu a designação de
membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Por esse estudo, Paulo
Carneiro recebeu, além de um prêmio do governo brasileiro e da Caixa
Nacional de Pesquisas Científicas da França, o Prêmio Nativelle, conce-
dido pela Academia de Ciências de Paris aos cientistas que descobris-
sem principios ativos novos de plantas tóxicas e medicinais.
O periodo da vida de Carneiro que vai de 1936 a 1942 é muito rico em
atividades desenvolvidas em diversos fóruns realizados na França e em
Ciência, Política e Relações Internacionais

outros paises, notadamente sobre assuntos científicos e sobre o


positivismo, bem como em atividades politicas e econômicas. Enquanto
continuava suas atividades de resgate da memória de Augusto Comte,
participava da Il Conferência do Trabalho dos Estados da América Mem-
bros da Organização Internacional do Trabalho e organizava a exposição
de produtos brasileiros no Escritório de Propaganda, ocorrida em 1941.
Além disso, em 1939 o Ministério da Fazenda o encarregou de realizar
nos Estados Unidos experiências em escala semi-industrial com a cafelite,
um material plastico derivado do café.
Em 1942, Paulo Carneiro assistiu à ocupação da França pelas tropas
nazistas e viveu tempos dificeis. Nessa época, estreitou sua amizade com
o embaixador Francisco Souza Dantas, que, representante da diplomacia
brasileira na França durante décadas, desempenhou papel fundamental
na liberação de vistos de entrada de judeus no Brasil durante a Segunda
Guerra Mundial.

Com a declaração de guerra do Brasil contra as forças do Eixo, Paulo


Carneiro mterrompeu suas atividades como pesquisador e representante
brasileiro em diversos fóruns. Esteve preso na Alemanha nazista por
duas vezes. A primeira em Baden-Baden e a segunda em Bad-Godesberg,
por quatorze meses, Juntamente com o embaixador Souza Dantas, ou-
tros brasileiros e alguns diplomatas latino-americanos. Essa experiência
durará até março de 1944, quando, por um acordo mediado pelo governo
português, o grupo brasileiro é libertado em troca da repatriação de pri-
siONEeIros alemaes.

De volta ao Brasil em 1944, Paulo Carneiro ministrou várias confe-


rências, a maior parte delas sobre a situação da França durante a guerra,
e participou de diversos fóruns. Esteve envolvido nos trabalhos da co-
missão brasileira encarregada do envio de sugestões ao projeto de cons-
tituição da Organização das Nações Unidas para a Reconstrução Cultu-
ral e Educacional, que tinha sede em Londres e seria o embrião da futura
Unesco. Essa comissão brasileira era composta, entre outros, por Miguel
Ozório de Almeida, Arthur Ramos e Roquette-Pinto. Ainda em 1944, no
mês de outubro, participou da delegação brasileira que esteve no Uru-
guai em missão de cooperação científica e intelectual. Na ocasião, profe-
riu uma conferência sobre a missão de cooperação intelectual na organi-
zação mundial futura.
Em 1945, Carneiro acompanhou Souza Dantas na Conferência do
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, realizada em Lyon. Nes-
Trajetória e produção intelectual...

se mesmo ano, assumiu as funções de vice-diretor do Escritório de Pro-


paganda e Expansão Comercial do Brasil. Em 1946, foi escolhido dele-
gado do Brasil na primeira Assembléia das Nações Unidas, em Londres.
Tendo novamente a companhia de Souza Dantas, nessa assembléia
Paulo Carneiro assumiu posições anticolonialistas que destoavam das
linhas gerais da política externa do Itamaraty, de alinhamento automá-
tico à política externa dos Estados Unidos. Ainda nesse ano, envolveu-
se com as atividades de estruturação da Unesco e passou a representar
o Brasil na Comissão Preparatória da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Paulo Carneiro tornou-se representante permanente do Brasil na
Unesco, primeiro como ministro (1946-1958) e depois como embaixador
(1958-1965). Durante um longo período, integrou o Conselho Executivo
da instituição. Dentre suas diversas funções, destaca-se a coordenação
do projeto de elaboração de uma “História do Desenvolvimento Cienti-
fico e Cultural da Humanidade”, que mobilizou uma ampla gama de
cientistas e Intelectuais e rendeu vários volumes. Outro projeto
implementado durante sua gestão à frente do Conselho Executivo da
Unesco foi a criação de um comitê destinado à conservação dos sítios e
monumentos históricos. Graças à atuação desse comitê, frente à cons-
trução da barragem de Assuã, no Egito, a era faraônica foi preservada,
especialmente os templos de Abu Simbel, construído no reinado do faraó
Ramsés Il. Com base na experiência desse comitê, em 1962 constituiu-se
o Comitê Executivo para a Proteção dos Monumentos da Núbia, do qual
Paulo Carneiro foi eleito presidente. Esse comitê se tornou o órgão da
Unesco encarregado de coordenar a salvaguarda de monumentos histó-
ricos da humanidade.

Paulo Carneiro foi responsável também pelo apoio da Unesco a di-


versos Investimentos científicos e intelectuais, à criação de instituições e
ao desenvolvimento de programas de pesquisa em solo brasileiro. Dentre
esses projetos, destaca-se, ainda nos primórdios da Unesco, a tentativa
de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA), um
centro de pesquisas envolvendo diversos países da região. A proposta
se impôs como uma das quatro principais atividades da Unesco para o
ano de 1947 e transformou-se em objeto de intensas controvérsias. A
discussão em torno da proposta de um centro internacional de pesquisas
na Amazônia, no contexto da Guerra Fria, resultou na criação, sob a
chancela do CNPq, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Ciência, Política e Retações Internacionais

Na decada de 1950, Paulo Carneiro desempenhou importante papel


na decisão da Unesco de realizar um ciclo de pesquisas sobre as rela-
ções raciais no Brasil que se tornou um marco na história das ciências
sociais no pais. Obteve o apoio da agência internacional para as ativi-
dades cien-tificas dos primórdios do Centro Brasileiro de Pesquisas Fí-
sicas (CBPF), para a criação do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Do-
cumentação (IBBD) e do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ci-
encias Sociais (CLAPCS).
Concomitante às suas atividades de representante do Brasil na Unesco
e de membro de seu Conselho Executivo, Paulo Carneiro participou de
outros projetos e instituições de carater internacional, como a União
Latina. Empenhou-se também na construção da Casa do Brasil, que ti-
nha por finalidade abrigar os estudantes brasileiros na Cidade Universi-
taria de Paris, e participou das discussões dos projetos arquitetônicos e
das decisões que levaram à construção da nova sede da Unesco em Paris,
na decada de 1950.

Em janeiro de 1966, a ditadura militar, por meio do presidente Mare-


chal Castelo Branco, demitiu Paulo Carneiro do cargo de embaixador do
Brasil na Unesco e o substituiu pelo cientista Carlos Chagas Filho. Em
que pese esse fato, Carneiro, em função de seu prestígio, permaneceu na.
Unesco como membro do Conselho Executivo, cargo para o qual foi
reeleito em 1968. Dessa forma, participou de várias conferências gerais
ocorridas após o seu desligamento compulsório da delegação brasileira.
Em 1971, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Faleceu
no Rio de Janeiro, no dia 17 de fevereiro de 1982. Era casado com Corina
Lins e óilva, com quem teve dois filhos.
Trajetória e produção intelectual...

Publicações

Tese de doutorado

Le Guaraná et Paulinia Cupana H. B. & K. Contribution à l'étude des plantes à


caféine. Paris: Jouve, 1931.

Artigos em livros
Preface. In: Histoire du Développement Culturel et Scientifique de L'Humanité,
v. 1. Faris: Unesco, 1967, p.10-14.
Por uma história intelectual das criações. In: Cológuio sobre Criatividade.
Conselho Estadual de Cultura Guanabara. Rio de Janeiro: Americana,
19/4, p.20-25.
O exemplo e a lição de Eugênio Gudin: traços de sua personalidade. In:
Eugênio Gudin Visto por seus Contemporâneos. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1979, p.1-18.
Une expérience politique d'inspiration comtienne au Brésil: la premiere
Constitution de de Rio Grande do Sul (1891-1923). In: Meélanges
en de Charles Morazé: culture, science et développement -
contribution à une histoire de Vhomme. Toulouse: Privat, s. d., p.503-511.
Francisco Venâncio Filho: homem de ciência e educador (1894-1946). In:
VENÂNCIO FILHO, Alberto (org.). Francisco Venâncio Filho: um edu-
cador brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.97-112.

Artigos em revistas cientificas e culturais


Quimica — notas e citações/introdução; 1 — Das ciências e dos métodos.
Organum: Publicação Enciclopédica do Instituto Lafayette, n. 8, jun. 1924,
p.509-812.
Quimica — notas e citações/introdução; II — Das ciências e dos métodos.
Organum: Publicação Enciclopédica do Instituto Lafayette, n. 9, ago. 1924,
p.911-915.
Quimica — notas e citações/introdução; HI. Organum: Publicação Enciclo-
pedica do Instituto Lafayette, n. 10, nov. 1924, p.1003-1006.
Etude comparative du dosage de la caféine. Annales des Falsifications, n.
2685-284, jul.-ago. 1932, p.1-4.
Le 14 Juliet: sa projection dans "Histoire. Supplément Littéraire et Artistique
de la Revue Française du Brésil, supl. n. 2, anexo do n. 33, jul. 1936, p.1-7.
Ciência, Potítica e Relações Internacionais

Le rôle d'Auguste Comte et du positivisme au Brésil. Cahiers de Politique


Etrangêre. Institut des Études Américaines, n. 47, p.1-11, 1938.
Princípios ativos do curare. Revista da Sociedade Brasileira de Química, v.
VI n. 3, set. 1938, p.160-162.
Les principes actifs du curare. Chimie Biologique, Paris, abr. 1938 (extraído
de Comptes Rendus des Séances de Académie des Sciences, sessão de 11/
4/1938), t. 206, p.1202.
Les principes actifs du curare. Bulletin de la Société de Chimie Biologigue,
1959, t. XXI, n. 2, p.282-293.
Physiologie - Curarisation et chronaxie. Comptes Rendus des Séances de
[Académie des Sciences, sessão de 30/1/1939, t. 208, p.382.
Physiologie — Strychnoléthaline, curare et curarisation. Comptes Rendus
des Séances de [Académie des Sciences, sessão de 17/4/1939, t. 208, p.1249.
Principes actifs du curare. Annaes da Academia Brasileira de Sciencias, t. XL
n. 2, 30/6/1939, p.91-1083.
Curarisation et chronaxie. Annales de L'Institut Pasteur, t. 63, 1939, p.93.
Le rôóle d' Auguste Comte et du positivisme au Brésil. Annales de L'Institut
Pasteur, 1939.
Social sciences in Latin America. International Social Sciences Bulletin,
v. IV, n. 3, 1952, p.427-429.
Richerche sugli alcaloidi curarizzanti delle Strychnos del Brasile (co-
autoria de G. B. Martini-Bettoio e G. C. Casanovi). Gazzeta Chímica
Haliana, v. 86, Roma, 1956, p.1148-1161.
Richerche sugli alcaloidi curarizzanti delle Strychnos del Brasile (co-
autoria de G. B. Martini-Bettolo e G. C. Casanovi). Rendiconti
dell Instituto Superiore di Sanita, v. XX, Roma, 1957, p.342-57.
Gli alcaloidi della 5. solimoesana Kruk (co-autoria de G. B. Martini-Bettolo
e G. €. Casinovi). Extratto daí rendiconti dell Instituto Superiore di
Sanita, v. XX, Roma, 1957.
Le rayonnement de Poeuvre d'Auguste Comte au Brésil. Bulletin de la
Société Française de Philosophie, número especial, Paris, 1958, p.32-38.
Auguste Comte et le Brésil. Revue des Travaux de V' Académie des Sciences
Morales é& Politiques et Comptes Rendus de ses Séances, 111º ano, n. es-
pecial, 1958, p.207-221.
e produção intelectual...

LV Academie du Monde Latin. Revue des Travaux de 1 Académie des Sciences


Morales & Politiques et Comptes Rendus de ses Séances, 4º série, 1º se-
mestre 1968, p.185-192.
lexte du discours prononcé par le Professeur Paulo E. de Berrêdo Carnei-
ro, President de la Commission Internationale pour une Historie du
Developpement Scientifique et Culturel de !Humanité au cours de la
sixieme séance de la quatre-vingt-troisiême session du Conseil Exécutif
de "Unesco, le mercredi 24 septembre 1969. Cadernos de História Mun-
dial (Unesco), v. XII n. 3, Editions de la Baconnieêre, 1970, p.337-343.
OQ Centenârio de Maria Montessori. Boletim Informativo do Inep, n. 93-94,
set.-dez. 1970, p.4-8.
La protection des Indiens au Brésil. Revue des Travaux de "Académie des
ociences Morales & Politiques et Comptes Rendus de ses Séances. 4º série,
1º semestre 19/1, p.141-59.
La protección a los indios del Brasil. Anuario Indigenista. México: Institu-
to Indigenista Interamericano, v. XXXI, dez. 1971, p.103-116.
Un grand penseur, patriarche de l'indépendance du Brésil: José Bonifácio
de Andrada e Silva. Revue des Travaux de V Académie des Sciences Morales
& Politiques et Comptes Rendus de ses Séances. 4º série, 2º semestre 1972,
p.41-56.
| Université de Coimbra et le Brésil. Arquivo do Centro Cultural Portugu-
ês. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, v. IV, 1972, p.316-337
De la découverte et des démonstrations de la Loi des Trois États d'aprês
les textes d' Auguste Comte que s'y rapportent. Les Études
Philosophiqgues, n. 3. Paris: Presses Universitaires de France, jul.-set.
19/4, p.299-314.
An experiment in Brazil based on Comte's philosophy: the first
Constitution of Rio Grande do Sul (1891-1923). International Social
ôciences journal, v. XXXI, n. 1, 1979, p.169-174.

LIVIOS

O Curare: veneno das flechas na Amazônia. Lisboa: Biblioteca de Altos


Estudos, 1945. 62p.
O Instituto Internacional da Hiléia Amazônica: razões e objetivos da sua criação.
Rio de Janeiro: s. n., 1950. 110p.
Vers un Nouvel Humanisme. Paris: Editions Pierre Seghers, 1970. 400p.
Ciência, Política e Relações Internacionais

Obras organizadas

Augusto Comte: nouvelles lettres inédites. Paris, Maison d' Auguste Comte,
1959, 274 p. (Collection Archives Positivistes). Introdução de Paulo
Carneiro, p. v-xii.
Auguste Comte: systême de philosophie positive - préliminaires généraux et
conciusions, precedes dextraits de lettres de 1818 à 1857). Paris: Maison
d'Auguste Comte, 1942. 1 v. (Collection Archives Positivistes).
Auguste Comte: écrits de jeunesse, 1816-1828 - suivis du mémoire sur la
cosmogonie de Laplace de 1835. Co-organizada por Pierre Arnaud.
Faris: La Haye, 1970, 608 p. 1 v. (Collection Archives Positivistes).
Augusto Comte: correspondance générale et confessions, t. 1, 1814-1840. Co-
organizada por Pierre Arnaud. Paris: Mouton-La Havye, École Prati-
que des Hautes Etudes, 1973, 437 p. (Collection Archives
Positivistes). Introdução de Paulo Carneiro, p. vii-xxxi.
Augusto Comte: correspondance générale et confessions, t. IL avr. 1841- mars
Co-organizada por Pierre Arnaud. Paris: Mouton-La Haye,
cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1975, 461 p.
(Collection Archives Positivistes). Introdução de Paulo Carneiro, p
VHM-XXXVI,

Augusto Comte: correspondance générale et confessions, t. III, avr. 1845 - avr


1846. Co-organizada por Pierre Arnaud. Paris: Mouton-La Havye,
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1975, 445 p.
(Collection Archives Positivistes). Introdução de Paulo Carneiro, p.

Augusto Comte; correspondance générale et confessions, t. IV, 1846-1848. Co-


organizada por Pierre Arnaud. Paris: Mouton-La Have, École des
HMautes Etudes en Sciences Sociales & Librairie Philosophique]. Vrin,
1981, 334 p. (Collection Archives Positivistes). Introdução de Paulo
Cameiro, p. Vii-cxiv.
Augusto Comte: correspondance générale et confessions, t. V, 1849-1850. Co-
organizada por Paul Arbousse-Bastide. Paris: Mouton-La Have,
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales & Librairie
Philosophique J. Vrin, 1982, 352 p. (Collection Archives Positivistes).
Introdução de Paulo Carneiro, p. vi-c.
Idéias Políticas de Júlio de Castilho. Brasília, Senado Federal/Casa de Rui
Barbosa, 1982, 511 p.
Trajetória e produção intelectual...

Augusto Comte: correspondance gênérale et confessions, t. VI, 1851-1852. Pa-


ris: Mouton-La Haye, École des Hautes Études en Sciences Sociales
& Librairie Philosophique J. Vrin, 1984, 491 p. (Collection Archives
Positivistes).
Augusto Comte: correspondance génerale et confessions, t. VII, 1853-1854.
Paris: Mouton-La Havye, École des Hautes Études en Sciences
sociales & Librairie Philosophique J. Vrin, 1987, 326 p. (Collection
Archives Positivistes).
Augusto Comte: correspondance generale et confessions, t. VII, 1891-1852.
Paris: Mouton-La Havye, École des Hautes Études en Sciences
Sociales & Librairie Philosophique J. Vrin, 1990, 606 p. (Collection
Archives Positivistes).

Livretos

Auguste Comte e Mme. Nisia Brasileira (correspondance). Col. Religion de


Paris: Librarie Aibert Blanchardá, 1928.
A Casa de Clotilde de Vaux em Paris: coleção de documentos provando que Clo-
tilde de Vaux habitou, de 1844 até sua morte, a casa nº 7 da Rua Payenne.
Rio de Janeiro: Editor Otávio Barboza Carneiro, 1930.
Discurso do secretário de Agricultura, Indústria e Comércio Dr. Paulo
E. de Berrêdo Carneiro. In: Instituto de Pesquisas Agronômicas, Secreta-
ria de Agricultura, Indústria e Comércio, Estado de Pernambuco, 7/
9/1935,p.9-14.
A Igreja e o Estado em Prol do Irabalhador Pernambucano. Apello ao Clero
catholico por Paulo É. de Berredo Carneiro, Secretário de Agricultura, Indius-
iria e Comércio. Estado de Pernambuco, 25/9/1939, p.3-6.
União Pan-Americana. Mensagem-da Associação Brasileira de Educação as
Repúblicas Americanas por Paulo E. de Berredo Carneiro. 14 de abril de
1936. Rio de Janeiro, typ. do Jornal do Commercio, 1936. 9p.
La Puissance Economique du Brésil. Encarregado pelo diretor do Escritório
de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Paris, 1941.
Oração a Mario Barboza Carneiro. In: Mario Barboza Carneiro: in memoriam.
Rio de Janeiro: Associação Brasileira dos Amigos de Auguste Comte,
1947, p./5-80.
Election de son Excellence Monsieur le Professeur Paulo E. de Berredo
Carneiro à la présidence de la conférence: allocution du Président
Ciência, Política e Relações Internacionais

lors de son élection. In: Douziême Session de la Conferénce Générale.


Paris: Unesco, nov./dez. 1962, p.5-17.

Abu Simbel; addresses delivered at the ceremony to mark the completion


of the operations for saving the two temples. In: Abu Simbel, 22/9/
1968, Unesco, p.21-29.
Roquette-Pinto. 2.ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 1970.
25P.
Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras. 4/10/1971. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras, 1971, p.3-41.
Mario Barboza Carneiro: primeiro centenário de um grande servidor público
(18/2-1972). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1972, 21p.
teixeira Mendes na Academia Maranhense de Letras. Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras, Departamento de Imprensa Nacional, 1973. Pp.
Atlocutions Prononcées lors d'une Cérémonie à la Mémoire de Jaime Torres Bodet
(Directeur Générale de ONU). Paris: Unesco, 1974, p.19-29.
A salvaguarda dos Monumentos Artísticos e Históricos da Humanidade. Rio
de Janeiro: Acadêmica, 1974. 25p.
Allocutions Prononcées lors d'une Cérémonie à la Mémoire de Julian Huxley
(Directeur Général de VONU). Paris: Unesco, 1975, p.27-36.
oumário dos Volumes Publicados de Archives Positivistes. Augusto Comte:
cuvres de jeunesse (1816-1828), suivies d'un mémoire sur la cosmogonie
de Laplace (1835). Organizado em conjunto com Pierre Arnaud. Paris,
1975.

Francisco Venâncio Filho: homem de ciência e educador (1894-1946). Contfe-


rência pronunciada na Academia Brasileira de Letras a 2/10/1976,
Rio de Janeiro: Coleção Acadêmica, ABL, 1976. 20p.
Recepção de Roger Caillois como Membro Correspondente da Academia Brasi-
eira. Co-autoria com Roger Caillois. Rio de Janeiro: Academia Bra-
sileira de Letras, 1977, p.15-28.
Trajetória e produção intelectual...

Artigos na Imprensa

A vida científica na França ocupada. O Jornal, 26 e 27/7/1944.


Instituto da Hiléia Amazônica, seus objetivos e planos. Digésto Econômico,
1949,p.50-46.
O futuro da cooperação intelectual entre os povos latinos. Correio da
Manhã, 18/6/1967.
Mario Barboza Carneiro: primeiro centenário de um grande servidor
público. Jornal do Brasil, 16 e 17/4972.
O Brasil no Congresso Indigenista Americano. Jornal do Brasil, 6/8/1972.
No turbilhão dos livros. Jornal do Brasil, 17/9/1972.
José Bonifácio em Paris. Jornal do Brasil, 18/9/1972.
Rumo à África. Jornal do Brasil, 23/10/1972.
Elos culturais. Jornal do Brasil, 04/12/1972.
Dante e o Brasil. Jornal do Brasil, 13/1/1973.
Inventário brasileiro de Ferdinand Denis. Jornal do Brasil, 271/1975.

Um apóstolo no campo de concentração. Jornal do Brasil, 11/3/1975.


Teixeira Mendes na Academia Maranhense de Letras. Jornal do Brasil,
6/6/1973.
Duguay-Trouin. Jornal do Brasil, 23/7/1973.
Brasil mostra a indianistas como trata tribos do Xingu. Jornal do Brasil, s. d.

4727
Foto 6 — Paulo Carneiro, Maurice
Wolff, Benoit Azinieres, Paulo Lopes
Filho na biblioteca da Casa de
Augusto Comte. Paris, cerca de 1927.
HFoto: Henri Manuel
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto / — Familia Carneiro: em pé, da


esquerda para a direita: Bernardo
(1º), o irmão de Mario Carneiro,
Otávio (3º), Paulo (4º). Sentados, da
esquerda para a direita: Irajano (2º),
Sofia (3º), Dorinha (9º), Mário
(ultimo), década de 1920.
(Acervo Iconográfico da Casa de Oswaldo
Cruz).

Foto 8 — Paulo Carneiro discursa em


cerimônia no tâmulo de Augusto
Comte. Paris, 5 de setembro de 1930.
(Acervo Iconográfico da Casa de Oswaldo
Cruz).

Foto 9 — Paulo Carneiro em um dos


laboratórios do Instituto Pasteur,
durante seus estudos. Paris, 1930.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 10 — Paulo Carneiro
(o 2º, sentado, da esquerda para a
direita), seu tio Otávio Barbosa
Carneiro (o 5º, sentado), irmão de
seu pai Mário. Em pé, no mesmo
sentido, Edgar Serra do Vale Pereira
(1º), Erancisco Venâncio Filho
(2º), Ivan Lins (terno branco e
óculos), o químico Rubem Descartes
de Garcia Paula (ao lado esquerdo
de Ivan Lins), Vinicius de Berrêdo
(lado direito de Ivan Lins), Trajano
Carneiro (de gravata borboleta). Rio
de Janeiro, provavelmente início da
década de 1930.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 11 — Paulo Carneiro (ao centro,


de terno escuro) quando era livre
docente de quimica geral na Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, 1933.
A seu lado direito, Rubem Descartes
Garcia Paula.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 12 — Paulo Carneiro e Corina
com os filhos Mário e Beatriz
Clotilde. Rio de Janeiro,1933-1934.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 13 — Mário e Paulo Carneiro,


quando o último era Secretário de
Agricultura, Indústria e Comércio
do governo de Pernambuco, 1935.
(Acervo Iconográfico da Casa de Oswaldo
Cruz).

Hoto 14 — Paulo Carneiro, Secretário


de Agricultura, Indústria e
Comercio de Pernambuco, observa o
cumprimento entre o presidente do
lIribunal Kegional e o governador do
estado, Lima Cavalcanti, 1935.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 15 — Paulo Carneiro com seus
irmãos Trajano, Bernardo e Sofia,
cerca de 1920.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 16 — François Saulnier,
responsavel pela Casa de
Auguste Comte, e Paulo
Carneiro. Paris, 1939.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 17 — Paulo Carneiro em
seu apartamento em Yaris,
1939.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 18 — Casa de Auguste


Comte. 10, rue Monsieur Le
Prince. Paris.
(Acervo Iconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz).

Foto 19 — Embaixador Hélio


Lobo (5º a partir da .
esquerda), Rodolfo Paula
Lopes (4º) e Paulo Carneiro
(8º) provavelmente reunidos
por ocasião de reunião do
Bureau Internacional do
Trabalho. Suiça,
provavelmente no final dos
anos de 1930.
Foto: J. Cadoux.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 20 — A partir da
esquerda, em pé: Trajano
Carneiro (1º), Plinio
Sussekind Rocha (2º),
Francisco Venâncio Filho (3º),
Rubem Descartes de Garcia
Paula (penúltimo). Sentados:
Corina Carneiro, Paulo
Carneiro, Dina Venâncio,
Mario Barbosa Carneiro,
provavelmente decada de
1930.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 21 — Paulo Carneiro aos
OEdada 41 anos em Monte Cario,
64 de setembro de 1942.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 22 — Paulo Carneiro, de volta
da Alemanha, onde esteve preso
durante a Segunda Guerra Mundial,
cumprimenta o presidente Getúlio
Vargas no Palácio Itamarati.
Rio de Janeiro, 1944.
Foto: Agência Nacional.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 23 — Desembarque de Paulo


Cameiro no porto do Rio de Janeiro,
após 14 meses de prisão na
Alemanha, 1944.
(Arquivo Mário Carneiro).
rFoto 24 — Mario Barbosa Carneiro
(ao centro, de bigode), pai de Paulo
Cameiro, na criação da Sociedade de
Amigos de Auguste Comte, da qual era
presidente. Rio de Janeiro, 1945.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 25 — Edred John Henry Corner,
botânico inglês, secretário executivo do
projeto de criação do Instituto
Internacional da Hileéia Amazônica,
patrocinado pela Unesco. A seu lado,
Paulo Carneiro, idealizador do projeto,
194/-1948.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 26 — Paulo Carneiro, representante
do Brasil, por
ocasiao de uma sessão de trabalho da
Unesco. Londres, 5 de julho de 1946.
(Acervo Iconográfico da Casa de Oswaldo Cruz).
Foto 27 — Paulo Carneiro, ao lado
de Miguel Ozorio de Almeida,
durante uma das primeiras
conferências patrocinadas pela
Unesco. Paris, 1946.
Eoto: Éclair - Continental
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 28 — Paulo Carneiro durante a
Conferência Cientifica de Belém,
organizada para a definição de
uma agenda de pesquisas a ser
desenvolvida pelo futuro Instituto
Internacional da Hileia Amazonica.
Da esquerda, Paulo Carneiro (1º),
Basile Malamos (2º), Senhora
Malamos (3º), Edred John Henry
Corner (5º), 12 de agosto de 1947.
Foto: Nazaré. (Acervo Iconográfico da
Casa de Oswaldo Cruz).

Foto 29 — O “arquivista” Paulo


Carneiro organizando os arquivos
do Museu Augusto Comte. Paris,
decada de 1940?
(Acervo Iconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz).

Foto 30 — Festa de comemoração


dos 75 anos de vida e 50 de
diplomacia de Souza Dantas, na
Maison de [| Amérique Latine,
17 de fevereiro de 1951. Na foto, o
embaixador abraça o presidente do
Conselho George Bidault, que
felicita O aniversariante em nome
do governo francês. Atrás,
segurando uma pequena medalha,
Paulo Carneiro.
Foto: Vachon. (Arquivo Mário Carneiro).
Foto 31 — Paulo Carneiro toma
posse no cargo de consultor
científico da presidência do então
Conselho Nacional de Pesquisas,
(CNPq), visando a estruturação do
Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (Inpa). Na foto,
cumprimenta Alvaro Alberto da
Mota e óilva, idealizador do CNPq
e seu primeiro presidente, na
presença de Carlos Chagas Filho
(o 2º da esquerda), do Coronel
Orlando Rangel (3º), do
matemático Lélio Gama (9º), entre
outros. Rio de Janeiro, 30 de janeiro
de 1953.
(Acervo Iconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz).

3435
Foto 32 — Paulo Carneiro
durante aimoço em sua
homenagem e em homenagem
a Richard Feynman e Marcel
Schein, do Centro Brasileiro
de Pesquisas Físicas, no
restaurante do aeroporto
Santos Dumont. Presentes, da
direita para a esquerda, na
segunda fila, Paulo de Goes
(1º), Ugo Camerini (2º), Cesar
Lattes (3%, Paulo Carneiro
(4º), Joaquim Costa Ribeiro
(5º), Nelson Lins de Barros
(6º), Helmut Schartz (7º) e
Gerard Hepp (8º). Na
primeira fila, Gabriel Fialho
(2º), Richard Feynman
(3º), Marcel Schein (4º), Jose
Leite Lopes (5º), Hervásio de
Carvalho (6º), Leopoldo
Nachbin (7º) e Mauricio
Mattos Peixoto (8º), cerca de
1953.
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 33 — José Leite Lopes e


Paulo Carneiro em solenidade
promovida pela Unesco.
Paris, 1953-1994.
(Acervo Iconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz).

Foto 34 — Paulo Carneiro em


Londres, 1957-1958.
Foto: Mario Carneiro
(Arquivo Mário Carneiro).

Foto 35 — Paulo Carneiro em


seu gabinete de trabalho na
Unesco, entre pinturas de
Cicero Dias e Antonio
Bandeira, 1959.
Foto: Unesco.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 36 — Carlos Lacerda
(O segundo, a partir da
esquerda), Paulo Carneiro e o
arquiteto Zerfhuss, um dos
responsáveis pela construção
do prédio da Unesco em Paris,
1960.
Foto: Unesco.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 37 — Pauio Carneiro
com o embaixador Roberto
Assumpção. Egito, decada de
1970.
(Arquivo Mário Carneiro).
Foto 38 — Paulo Carneiro na
Academia Brasileira de
Letras, com Hermes Lima
(o 1º, da esquerda) e Ivan
Lins (o 4º), 20 de maio de
1971.
(Acervo tconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz).

Foto 39 — Cerimonia de
lançamento da pedra
fundamental do Museu de
Antiguidades da Núbia, no
Jardim Joyau du Nil.
Presente, Paulo Carneiro,
presidente do comitê
executivo para a
salvaguarda dos
monumentos da Núbia,
região situada ao sul do
Egito, 11 de março de 1980.
Foto: Unesco.
(Acervo Iconográfico da Casa de
Oswaldo Cruz),

Foto 40 — Paulo Carneiro


com seu filho Mário, em
Paris, 1980.
(Arquivo Mário Carneiro).
Formato: 16 x 23cm
Hpologia: Palatino Linotype (miolo)
Palatino Linotype e Franklin Gothic Condensed (capa)
Papel. Print Max 90g/m? (miolo)
Cartão Supremo 250g/m” (capa)
Fotolitos: Graftipo Gráfica e Editora Ltda. (capa)
Impressão e acabamento: Imprinta Gráfica e Editora Ltda.

Kio de Janeiro, outubro de 2004.

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