O Amante Japonês
O Amante Japonês
O Amante Japonês
ALLENDE
O AMANTE
JAPONÊS
Tradução de
Ângela Barroqueiro
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O amante japonês
Isabel Allende
Título original:
El amante japonés
© 2015, Isabel Allende
Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem
transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico,
fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.
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urgentemente uma vaga no departamento de administração
e assistência, ela podia ser a substituta até conseguirem encon-
trar a pessoa adequada. Irina pensou que o que Hans Voigt
dizia dela poderia dizer-se dele: parecia um miúdo gorducho
com calvície prematura, para quem a responsabilidade de ad-
ministrar aquele lugar era excessiva. Com o tempo, a jovem
verificaria que o aspeto de Voigt à distância e com má lumi-
nosidade enganava, pois na verdade tinha cinquenta e quatro
anos e dera mostras de ser um excelente administrador. Irina
garantiu-lhe que a sua falta de habilitações era compensada
pela experiência no cuidado de anciãos na Moldávia, o seu
país natal.
O sorriso tímido da candidata sensibilizou o diretor, que
se esqueceu de lhe pedir uma carta de recomendação e pas-
sou de imediato a enumerar as obrigações do cargo; podiam
ser resumidas em poucas palavras: facilitar a vida aos hós-
pedes dos segundo e terceiro níveis. Os do primeiro não
faziam parte das incumbências dela, pois viviam de forma
independente, como inquilinos de um edifício de aparta-
mentos, nem os do quarto nível, designado de forma muito
adequada Paraíso, porque esses aguardavam a sua passa-
gem para o céu, passando a maior parte do tempo a dormir
e não necessitavam do tipo de serviço que ela deveria ofere-
cer. Irina deveria acompanhar os residentes às consultas de
médicos, advogados e contabilistas, ajudá-los no preenchi-
mento dos formulários da segurança social e dos impostos,
acompanhá-los às compras e outras tarefas semelhantes.
Com os do Paraíso, a única relação que teria seria organi-
zar os seus funerais, para o que receberia instruções porme-
norizadas de acordo com cada caso, disse-lhe Hans Voigt,
porque os desejos dos moribundos nem sempre coincidem
com os dos familiares. Entre os habitantes da Lark House
havia diversas crenças e os funerais costumavam ser ceri-
mónias ecuménicas algo complicadas.
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Explicou-lhe que apenas o pessoal doméstico, de cui-
dados e enfermaria era obrigado a usar uniforme, embora
existisse um código tácito de vestimenta para os restantes
funcionários; o decoro e o bom gosto eram os critérios rela-
tivamente a esse assunto. Por exemplo, a t-shirt estampada
com Malcolm X que Irina tinha vestida era inapropriada
para a instituição, disse de forma enfática. Na verdade a efí-
gie não era de Malcolm X, era de Che Guevara, mas ela não
o corrigiu, porque supôs que Hans Voigt nunca tinha ouvido
falar do guerrilheiro, que meio século após a sua epopeia
continuava a ser venerado em Cuba e por uma mão-cheia
de radicais de Berkeley, onde ela vivia. A t-shirt custara-lhe
dois dólares numa loja de roupa em segunda mão e estava
quase nova.
– Aqui é proibido fumar – advertiu-a o diretor.
– Eu não fumo nem bebo, senhor.
– É saudável? Isso é importante no contacto com os an-
ciãos.
– Sim.
– Há algum aspeto sobre si de que eu deva ter conheci-
mento?
– Sou viciada em jogos de vídeo e romances de mistério.
Do tipo, Tolkien, Neil Gaiman, Philip Pullman. Além disso,
trabalho a lavar cães, mas isso não me ocupa muitas horas.
– Aquilo que faz nos seus tempos livres é consigo, me-
nina, mas no seu trabalho não pode distrair-se.
– É evidente. Oiça, senhor, se me der uma oportunidade,
verá que tenho muito jeito com as pessoas idosas. Não vai
arrepender-se – disse a jovem com fingida altivez.
Assim que a entrevista terminou, o diretor mostrou-lhe as
instalações que acolhiam duzentas e cinquenta pessoas com
uma média de idade de oitenta e cinco anos. Lark House fora
em tempos a magnífica propriedade de um magnata do cho-
colate, que a doou à cidade e deixou uma generosa quantia
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para a financiar. Era composta pela mansão principal, um pa-
lacete pretensioso onde se situavam os escritórios, e as áreas
comuns, a biblioteca, a cantina e as salas para as atividades,
e uma série de agradáveis edifícios, revestidos com telhas de
madeira, que se harmonizavam com o parque, aparentemente
selvagem, mas na realidade bem cuidado por uma equipa de
jardineiros. Os edifícios dos apartamentos independentes
e os que albergavam os residentes dos segundo e terceiro ní-
veis estavam ligados entre si por largos corredores cobertos,
para se circular com cadeiras de rodas a salvo dos rigores do
clima, e com paredes laterais de vidro, para se poder apreciar
a natureza, o melhor bálsamo para as tristezas, em qualquer
idade. O Paraíso, uma construção de cimento isolada, se não
estivesse completamente coberto por heras trepadeiras, des-
toaria completamente do resto. A biblioteca e a sala de jogos
podiam ser utilizadas a qualquer hora; o salão de beleza tinha
horário flexível e nas salas de formação havia uma oferta de
diversos ateliers, desde pintura até astrologia, para aqueles
que ainda almejavam surpresas do futuro. Na Loja de Obje-
tos Esquecidos, como rezava o letreiro sobre a porta, atendida
por senhoras voluntárias, vendia-se roupa, móveis, joias e ou-
tros tesouros descartados pelos residentes ou deixados para
trás pelos defuntos.
– Temos um excelente clube de cinema. Fazemos proje-
ção de filmes três vezes por semana na biblioteca – disse
Hans Voigt.
– De que género de filmes? – perguntou-lhe Irina, com
a esperança de que fossem de vampiros e de ficção cientí-
fica.
– A seleção é feita por um comité e dão preferência aos
thrillers, adoram os de Tarantino. Aqui há um certo fascínio
pela violência, mas não se assuste, percebem que é ficção e que
os atores reaparecerão noutros filmes, bem e de boa saúde.
Podemos dizer que é uma válvula de escape. Um número
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considerável dos nossos hóspedes fantasia com a ideia de as-
sassinar alguém, geralmente da sua família.
– Eu também – replicou Irina sem vacilar.
Pensando que era uma brincadeira da jovem, Hans Voigt
riu-se agradado; apreciava quase tanto o sentido de humor
como a paciência entre os seus funcionários.
No parque de árvores antigas corriam esquilos e um nú-
mero pouco habitual de veados. Hans Voigt explicou-lhe
que as fêmeas pariam e criavam ali os pequenos cervos até
que estes chegavam à idade de sobreviverem sozinhos, que
a propriedade era também um santuário de pássaros, espe-
cialmente de cotovias, e daí a origem do nome: Lark House,
casa das cotovias. Existiam várias câmaras colocadas estra-
tegicamente de forma a vigiar os animais na natureza e, por
acréscimo, os idosos que pudessem perder-se ou magoar-
-se; no entanto, a Lark House não possuía medidas de segu-
rança. De dia as portas estavam abertas e apenas havia dois
seguranças desarmados que faziam a ronda. Eram polícias
reformados, um de setenta e outro de setenta e quatro anos,
respetivamente; não era necessário mais porque nenhum
meliante iria perder o seu tempo a assaltar velhos sem ren-
dimentos. Cruzaram-se com duas mulheres em cadeira de
rodas, com um grupo que transportava cavaletes e caixas de
pintura para uma aula ao ar livre e com alguns hóspedes
que passeavam cães tão estropiados como eles. A proprie-
dade ficava na margem da baía e quando a maré subia era
possível andar de caiaque, como faziam alguns dos residen-
tes que não tinham ainda sido derrotados pelos achaques.
«Era assim que eu gostava de viver», suspirou Irina, inspi-
rando profundamente o doce aroma dos pinheiros e lou-
reiros e comparando aquelas agradáveis instalações com
as guaridas insalubres por onde ela deambulara desde os
quinze anos.
– Por último, menina Bazili, devo mencionar-lhe a questão
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dos fantasmas, porque certamente será a primeira coisa que
lhe dirá o pessoal haitiano.
– Não acredito em fantasmas, senhor Voigt.
– Felicito-a por isso. Eu também não. Os de Lark House
são uma mulher com um vestido de tule cor-de-rosa e um
menino de três anos. É Emily, a filha do magnata do choco-
late. A pobre Emily morreu de tristeza quando o filho dela se
afogou na piscina, no final dos anos quarenta. Depois dessa
tragédia, o magnata abandonou a casa e criou a fundação.
– O menino afogou-se na piscina que me mostrou?
– Nessa mesma. E, que eu saiba, não morreu mais nin-
guém lá.
Irina muito em breve iria alterar a sua opinião sobre os
fantasmas, ao descobrir que muitos dos idosos estavam per-
manentemente acompanhados pelos seus mortos; Emily e o
filho dela não eram os únicos espíritos residentes.
Na manhã seguinte, Irina apresentou-se ao trabalho com
as suas melhores calças de ganga e com uma t-shirt discreta.
Verificou que o ambiente da Lark House era descontraído
sem cair na negligência; assemelhava-se mais a uma residên-
cia universitária do que a um lar de idosos. A comida era
parecida com a de um qualquer restaurante respeitável da
Califórnia: dentro dos possíveis feita com alimentos de cul-
tura biológica. O serviço era eficiente e o de cuidados e de
enfermagem era tão amável quanto se pode esperar nestes
casos. Aprendeu em poucos dias os nomes e as manias dos
seus colegas e dos residentes a seu cargo. As frases em francês
e em espanhol que conseguiu memorizar serviram-lhe para
ganhar o apreço do pessoal, proveniente quase em exclusivo
do México, Guatemala e Haiti. O salário não era muito alto,
tendo em conta o trabalho duro que desempenhavam, porém
poucos faziam cara feia. «É preciso mimar as avozinhas, mas
sem lhes faltar ao respeito. O mesmo se aplica aos avozinhos,
mas a eles não se lhes pode dar muita confiança, porque
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ficam tolos», recomendou-lhe Lupita Farías, uma mulher
baixinha com cara de escultura olmeca, chefe da equipa de
limpeza. Como estava há trinta e dois anos na Lark House
e tinha acesso aos quartos, Lupita conhecia intimamente cada
ocupante, sabia como eram as suas vidas, adivinhava os seus
mal-estares e apoiava-os nas suas tristezas.
– Fica atenta às depressões, Irina. Aqui são muito fre-
quentes. Se te aperceberes de que alguém está isolado, anda
muito triste, fica na cama sem motivos ou deixa de comer,
vens imediatamente avisar-me, percebeste?
– O que fazes nesses casos, Lupita?
– Depende. Acaricio-os, agradecem sempre, pois os ve-
lhos não têm quem lhes toque, e vicio-os numa série de te-
levisão; ninguém quer morrer antes de ver o final. Alguns
sentem-se aliviados a rezar, mas aqui há muitos ateus e esses
não rezam. O mais importante é não os deixar sozinhos. Se
eu não estiver disponível, avisas a Cathy; ela sabe o que deve
fazer.
A doutora Catherine Hope, residente do segundo nível,
fora a primeira pessoa a dar as boas-vindas a Irina em nome
da comunidade. Com sessenta e oito anos, era a mais nova
dos residentes. Desde que ficara numa cadeira de rodas que
optara por ter a assistência e a companhia que a Lark House
lhe proporcionava, e já ali residia há dois anos. Nesse espaço
de tempo tornara-se na alma da instituição.
– As pessoas idosas são as mais divertidas do mundo. Já
viveram muito, dizem o que lhes vem à cabeça e estão a bor-
rifar-se para o que os outros pensam. Aqui nunca te vais
aborrecer – disse a Irina. – Os nossos residentes são pessoas
educadas e, se estiverem de boa saúde, continuam a apren-
der e a experimentar. Nesta comunidade existem estímulos
e pode-se evitar o pior flagelo da velhice: a solidão.
Irina conhecia o espírito progressista das pessoas da Lark
House, porque fora notícia em diversas ocasiões. Existia uma
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lista de espera de vários anos para se ser admitido e seria
ainda mais longa se muitos dos candidatos não tivessem fale-
cido antes de chegar a vez deles. Aqueles idosos eram a prova
contundente de que a idade, com as suas limitações, não
impede as pessoas de se divertirem ou de participarem no
bulício da existência. Vários deles, membros ativos do mo-
vimento Anciãos pela Paz, reservavam as sextas-feiras pela
manhã para protestar nas ruas contra as aberrações e injusti-
ças do mundo, especialmente as do império norte-americano,
pelo qual se sentiam responsáveis. Os ativistas, entre os quais
havia uma dama de cento e um anos, marcavam encontro
numa esquina da praça do bairro em frente à esquadra da
polícia, com as suas bengalas, andarilhos e cadeiras de rodas,
empunhando cartazes contra a guerra e o aquecimento glo-
bal, enquanto o público os apoiava dentro dos carros com
buzinadelas e assinando as petições que os furiosos bisavós
lhes punham à frente. Os revoltosos apareceram por diversas
vezes na televisão, enquanto a polícia, fazendo uma figura ri-
dícula, tentava dispersá-los com ameaças de gás lacrimogé-
neo, que nunca se concretizavam. Emocionado, Hans Voigt
mostrara a Irina uma placa colocada no parque em honra
de um músico de noventa e sete anos, que morrera em 2006
preparado para a luta e num dia de sol, depois de sofrer um
derrame cerebral fulminante enquanto protestava contra
a guerra do Iraque.
Irina crescera numa aldeia da Moldávia habitada por ve-
lhos e crianças. Todos tinham falta de dentes, os primeiros
porque os tinham perdido com o uso e os segundos porque
estavam a mudar os de leite. Pensou nos seus avós e, como
tantas vezes nos últimos anos, arrependeu-se de os ter aban-
donado. Na Lark House era-lhe dada a oportunidade de
dar a outros o que não pudera dar-lhes a eles e, com esse
propósito em mente, preparou-se para cuidar das pessoas
a seu cargo. Rapidamente conseguiu a confiança de todos
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e inclusive de alguns residentes do primeiro nível, os inde-
pendentes.
Alma Belasco despertou-lhe a atenção desde o primeiro
instante. Destacava-se das outras mulheres por causa do seu
porte aristocrático e do campo magnético que a isolava do
resto dos mortais. Lupita Farías garantia que Belasco não en-
caixava na Lark House, que ia ficar por muito pouco tempo
e que a qualquer momento a viria buscar o mesmo motorista
que a trouxera ali num Mercedes Benz. Mas os meses foram
passando sem que tal acontecesse. Irina limitava-se a obser-
var Alma Belasco de longe, porque Hans Voigt lhe ordenara
que se concentrasse nas suas obrigações para com as pessoas
dos segundo e terceiro níveis, sem se distrair com os inde-
pendentes. Ela já estava bastante ocupada a atender os seus
clientes – não se chamavam pacientes – e a aprender os por-
menores do seu novo emprego. Parte da sua formação con-
sistia em estudar os vídeos dos funerais recentes: uma judia
budista e um agnóstico arrependido. Por seu lado, Alma Be-
lasco não teria prestado atenção a Irina, se as circunstâncias
não a tivessem convertido em pouco tempo na pessoa mais
polémica da comunidade.
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AJAP-2
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O francês
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vez, enviuvara duas e nunca lhe tinham faltado apaixonadas
que seduzia com truques de ilusionista. Certo dia, há pouco
tempo, calculara que se tinha apaixonado sessenta e sete
vezes; registou-o no seu caderno de notas para não se esque-
cer do número, visto que começava a esquecer-se dos rostos
e dos nomes dessas felizardas. Tinha vários filhos legítimos
e um ilegítimo de uma mulher cujo nome não recordava,
além de sobrinhos, todos uns ingratos, que contavam os dias
para o verem partir para o outro mundo para herdarem os
seus bens. Corria o rumor de que possuía uma pequena for-
tuna amealhada com muito arrojo e poucos escrúpulos. Ele
mesmo confessava, sem sombra de arrependimento, que pas-
sara algum tempo na prisão, de onde trouxera tatuagens de
embusteiro nos braços, que a flacidez, as manchas e as rugas
tinham apagado, e que ganhara somas avultadas a especular
com as poupanças dos guardas.
Apesar das atenções de várias senhoras da Lark House,
que lhe deixavam pouco espaço para entusiasmos amorosos,
Jacques Devine não resistiu aos encantos de Irina Bazili desde
o primeiro dia em que a viu deambular com o seu quadro-
zinho de notas e o seu traseiro arrebitado. A rapariga não
tinha nem uma gota de sangue caribenho, e por isso aquele
traseiro de mulata era um prodígio da natureza, garantia
o homem depois de beber o primeiro Martini, surpreendido
por mais ninguém ter notado. Passara os seus melhores anos
a fazer negócios entre Porto Rico e a Venezuela, onde ganhara
o gosto de apreciar as mulheres por trás. Aquelas nádegas
épicas tinham-lhe ficado gravadas para sempre na retina; so-
nhava com elas. Via-as por todo o lado, inclusive num sítio
tão pouco propício como a Lark House e numa mulher tão
magricela como Irina. A sua vida de ancião, sem projetos nem
ambições, de repente ficou preenchida por aquele amor tardio
e absoluto, o que alterou a paz das suas rotinas. Pouco tempo
depois de a ter conhecido, demonstrou-lhe o seu entusiasmo
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oferecendo-lhe um escaravelho de topázio e brilhantes, uma
das poucas joias das suas defuntas esposas que conseguira
salvar da rapinagem dos descendentes. Irina não quis aceitá-
-lo, mas a recusa dela fez com que a tensão arterial do apaixo-
nado subisse até às nuvens e ela própria teve de o acompanhar
durante a noite inteira no serviço de urgências do hospital.
Com um saco de soro espetado na veia, Jacques Devine, entre
suspiros e repreensões, confessou-lhe o seu sentimento de-
sinteressado e platónico. Apenas desejava a companhia dela,
alegrar a vista com a sua juventude e beleza, ouvir a sua voz
diáfana, imaginar que ela também o amava, ainda que fosse
como uma filha. Podia também gostar dele como de um bi-
savô.
No dia seguinte à tarde, de regresso à Lark House, en-
quanto Jacques Devine degustava o seu Martini ritual, Irina,
com os olhos vermelhos e olheiras azuis, causados pela noite
em claro, contou o imbróglio a Lupita Farías.
– Isso não é novidade nenhuma, miúda. Estamos sempre
a surpreender os residentes em camas alheias, e não são só
os avozinhos, também as senhoras. À falta de homens, as
pobres têm de se contentar com o que há. Toda a gente pre-
cisa de companhia.
– No caso do senhor Devine trata-se de um amor plató-
nico, Lupita.
– Não sei o que seja isso, mas se for o que imagino, não
acredites. O francês tem um implante na pila, uma salsicha
de plástico que incha com uma bombinha disfarçada nos
tomates.
– Que estás para aí a dizer, Lupita! – riu Irina.
– Isso mesmo que tu estás a ouvir. Juro. Eu não vi, mas
o francês fez uma demonstração ao Jean Daniel. É impres-
sionante.
A boa mulher acrescentou, para aconselhar Irina, aquilo
que tinha observado em muitos anos a trabalhar na Lark
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House: a idade por si só não faz ninguém melhor nem mais
sábio, simplesmente evidencia aquilo que as pessoas sempre
foram.
– Sabes, um miserável não se torna generoso com os anos,
Irina, torna-se mais miserável. Certamente Devine foi sempre
um libertino e por isso agora é um velho fresco – concluiu.
Como não podia devolver o alfinete do escaravelho ao
seu pretendente, Irina levou-o a Hans Voigt, que a informou
acerca da proibição absoluta de aceitar gorjetas e prendas.
A regra não se aplicava aos bens dos moribundos recebi-
dos pela Lark House, nem aos donativos feitos por baixo da
mesa pelos familiares para colocar um parente no topo da
lista de candidatos a entrar, mas disso não se falou. O dire-
tor recebeu o horrendo bicho de topázio para o devolver ao
seu legítimo dono, como disse, e entretanto enfiou-o numa
gaveta do seu escritório.
Uma semana mais tarde, Jacques Devine entregou a Irina
cento e sessenta dólares em notas de vinte e desta vez ela di-
rigiu-se diretamente a Lupita Farías, que era partidária das
soluções simples: devolveu-os à caixa de cigarros onde o galã
guardava o dinheiro, certa de que ele não se recordaria de
o ter retirado de lá nem de quanto tinha. Deste modo Irina
solucionou o problema das gorjetas, mas não o das apaixo-
nadas missivas de Jacques Devine, nem o dos seus convites
para jantar em restaurantes caros, nem o do seu rosário de
pretextos para a chamar ao quarto e para lhe contar factos
exagerados que nunca tinham acontecido, e nem finalmente
o da proposta matrimonial. O francês, tão ágil no vício da
sedução, tinha regressado à adolescência, com a sua dolorosa
carga de timidez, e em vez de se declarar pessoalmente deu-
-lhe uma carta perfeitamente legível, porque foi escrita no seu
computador. O envelope continha duas páginas repletas de
rodeios, metáforas e repetições, que podiam ser resumidas
em poucos pontos: Irina renovara a sua energia e o seu desejo
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de viver; podia oferecer-lhe uma vida confortável, por exem-
plo na Florida, onde havia sempre sol, e quando enviuvasse
ficaria segura em termos económicos. A sua proposta, vista
de qualquer dos ângulos, deixava-a sempre a ganhar, escre-
veu, pois a diferença de idade era uma vantagem a favor dela.
A assinatura era um gatafunho. A jovem absteve-se de infor-
mar o diretor, por temer ver-se na rua, e deixou a carta sem
resposta com a esperança de que tal proposta se eclipsasse
da memória do noivo, só que desta vez a memória a curto
prazo de Jacques Devine funcionou. Rejuvenescido pela pai-
xão, continuou a mandar-lhe missivas cada vez mais urgentes,
enquanto ela procurava evitá-lo, rezando a santa Parescheva
para que o ancião desviasse a sua atenção na direção da dúzia
de damas octogenárias que o perseguiam.
A situação foi-se agravando e acabaria por ser impossível
de disfarçar caso um acontecimento inesperado não tivesse
posto fim a Jacques Devine e, por arrasto, ao dilema de Irina.
Nessa semana o francês tinha saído duas vezes de táxi sem dar
explicações, uma coisa pouco habitual no caso dele, porque
se perdia na rua. Acompanhá-lo fazia parte dos deveres de
Irina, mas ele saiu às escondidas, sem dizer uma palavra sobre
as suas intenções. A segunda viagem deve ter posto à prova
a sua resistência, porque regressou à Lark House tão perdido
e fragilizado que o motorista teve de o tirar do táxi quase ao
colo e entregá-lo como uma encomenda à rececionista.
– O que é que lhe aconteceu, senhor Devine? – pergun-
tou a mulher.
– Não sei, foi como se estivesse fora de mim – respondeu.
Depois de o examinar e de verificar que a tensão arterial
estava normal, o médico assistente considerou que não havia
necessidade de o mandar outra vez ao hospital e deu ordem
para que descansasse e ficasse na cama durante dois dias, e in-
formou ainda Hans Voigt de que Jacques Devine já não es-
tava em condições mentais para continuar no segundo nível,
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chegara a hora de o transferir para o terceiro, onde dispunha
de assistência permanente. No dia seguinte, o diretor decidiu
comunicar a mudança a Devine, uma tarefa que o deixava
sempre com um sabor amargo na boca, porque ninguém ig-
norava que o terceiro nível era a antessala do paraíso, o andar
sem retorno. Foi, porém, interrompido por Jean Daniel,
o funcionário haitiano, que apareceu de rosto transfigurado
com a notícia de que tinha encontrado Jacques Devine teso
e frio quando fora ajudá-lo a vestir-se. O médico propôs que
fosse feita uma autópsia, já que quando o examinara no dia
anterior não notara nada que justificasse aquela desagradável
surpresa, mas Hans Voigt opôs-se; que necessidade havia de
lançar suspeitas sobre algo tão previsível como o falecimento
de uma pessoa de noventa anos? Uma autópsia podia man-
char a respeitabilidade intocável da Lark House. Ao saber o
que acontecera, Irina chorou durante um bom bocado, por-
que apesar de tudo acabara por sentir carinho por aquele
patético Romeu; no entanto, não conseguiu evitar um certo
alívio, por se ver livre dele, e vergonha, por se sentir aliviada.
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Devine explicou que o seu cliente lhe dera por telefone as
indicações de alterações no testamento e depois apresentara-
-se duas vezes no seu escritório, primeiro para rever os pa-
péis e, em seguida, para os assinar perante o notário, e que
se tinha mostrado seguro do que queria. Os descendentes
acusaram a administração da Lark House de negligência,
perante o estado mental do ancião, e aquela Irina Bazili de
o roubar com aleivosia. Deram a conhecer a sua intenção de
impugnar o testamento, denunciar o advogado como incapaz,
o notário como cúmplice e a Lark House por danos e prejuí-
zos. Hans Voigt recebeu o tropel de parentes frustrados com
a calma e a cortesia adquiridas ao longo de muitos anos a di-
rigir a instituição, embora por dentro fervesse de raiva. Não
esperava semelhante embuste de Irina Bazili, que julgava in-
capaz de matar uma mosca, mas estamos sempre a aprender,
não podemos confiar em ninguém. Num aparte perguntou ao
advogado qual a quantia de dinheiro e descobriu que afinal
o que existia eram umas terras secas no Novo México e ações
de várias companhias, cujo valor não estava ainda avaliado.
A soma em dinheiro vivo era insignificante.
O diretor pediu vinte e quatro horas para negociar uma
saída menos dispendiosa do que lutar na justiça e convocou
perentoriamente Irina. Pensava gerir o imbróglio com luvas
de pelica. Não era conveniente para ele desentender-se com
aquela rameira, mas quando se viu diante dela perdeu as es-
tribeiras.
– Muito gostava eu de saber como raios conseguiste en-
ganar o velho! – repreendeu-a.
– Está a falar de quem, senhor Voigt?
– De quem havia de ser?! Do francês, evidentemente!
Como é que isto pôde acontecer debaixo do meu próprio
nariz?
– Desculpe, não lhe disse nada para não o preocupar,
pensei que o assunto se iria resolver por si só.
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– Ah, sim, e resolveu-se muito bem! Que explicação vou
eu dar à família?
– Não há nenhuma razão para o saberem, senhor Voigt.
Os anciãos enamoram-se, o senhor sabe disso, mas as pessoas
de fora sentem-se chocadas.
– Dormiste com o Devine?
– Não! Como pode pensar uma coisa dessas?
– Então não percebo nada. Porque é que ele te nomeou sua
herdeira universal?
– O quê?
Abismado, Hans Voigt percebeu que Irina Bazili não tinha
conhecimento das intenções do homem e que ela era a mais
surpreendida com o testamento. Ia avisá-la de que seria
muito difícil ficar com algum dinheiro, porque os herdeiros
legítimos lutariam até ao último centavo, mas ela anunciou
à queima-roupa que não queria nada, pois seria um dinheiro
mal ganho e traria má sorte. Jacques Devine tinha perdido
o juízo, disse, como qualquer pessoa na Lark House podia
testemunhar; o melhor seria resolver as coisas sem conflitos.
Um diagnóstico de demência senil passado pelo médico seria
suficiente. Irina teve de repetir tudo para que o desconcer-
tado diretor compreendesse.
De pouco serviram as precauções para manter a situação
em segredo. De um dia para o outro todos tiveram conheci-
mento do que acontecera e Irina Bazili passou a ser a pessoa
mais polémica da comunidade, admirada pelos residen-
tes e criticada pelos funcionários latinos e haitianos, para
quem recusar dinheiro era pecado. «Não cuspas para o ar,
que pode cair-te em cima», sentenciou Lupita Farías, e Irina
não conseguiu encontrar uma tradução para romeno deste
criptográfico provérbio. O diretor, impressionado com o des-
prendimento desta modesta imigrante de um país difícil de
localizar no mapa, passou-a a efetiva, com quarenta horas se-
manais e com um ordenado superior ao da antecessora; além
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disso, convenceu os descendentes de Jacques Devine a darem
a Irina dois mil dólares como forma de agradecimento. Irina
não chegou a receber a soma prometida, mas como era inca-
paz de a imaginar, rapidamente essa ideia lhe saiu da cabeça.
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