Fervo
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UNIVERSIDADE FUMEC
Belo Horizonte
Julho/2017
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Belo Horizonte
Julho/2017
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CDU: 613.885
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Prof. Dra. Vanessa Madrona, que, com sua calma e
paciência, esteve sempre presente para me tranquilizar e me direcionar de forma leve
nesta etapa tão importante da minha vida.
À minha mãe, que por dois anos me proporcionou todas as condições possíveis
para que eu conduzisse esta etapa da melhor forma. Obrigada por respeitar e
entender meu tempo. Obrigada pelos mimos, por cuidar da casa e de mim! Pequenas
coisas, como fazer minha comida favorita e assumir as minhas obrigações em casa,
tiveram papel fundamental nessa jornada. Sem você eu nunca conseguiria!
Aos amigos, por entenderem minha ausência durante esse período e por
estarem sempre de prontidão para desabafos e momentos de diversão.
6
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
3 POTENCIALIDADES FESTIVAS............................................................................................................. 60
3.2 O vogue como possibilidade de empoderamento ................................................................ 67
3.3 Dengue: close político ..................................................................................................................... 70
3.3.1 Primeira experiência ............................................................................................................ 70
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Dengue na gruta ................................................................................................... 41
Figura 2: Categoria pombagirismo comtemporâneo ............................................................ 45
Figura 3: Categoria lésbica futurística .................................................................................. 46
Figura 4: Dengue de rua ...................................................................................................... 48
Figura 5: Dengue de rua ...................................................................................................... 49
Figura 6: Dengue de rua ...................................................................................................... 50
Figura 7: Dengue de rua ...................................................................................................... 51
Figura 8: Dengue de rua ...................................................................................................... 51
Figura 9: Flyer dengue debate ............................................................................................. 53
Figura 10: Flyer Dengue ...................................................................................................... 55
Figura 11: Descrição no evento no facebook ....................................................................... 56
Figura 12: Flyer Dengue ...................................................................................................... 57
Figura 13: Flyer Dengue ...................................................................................................... 58
Figura 14: Flyer Dengue ...................................................................................................... 58
Figura 15: Dengue junina ..................................................................................................... 78
Figura 16: Dengue futurística ............................................................................................... 79
Figura 17: Categoria lésbica futirística inspiração Jo Calderone .......................................... 80
Figura 18: Lady Gaga em seu alter ego Jo Calderone ......................................................... 80
10
INTRODUÇÃO
No ano de 2014, na cidade de Belo Horizonte, MG, estive pela primeira vez em
uma festa que mudaria a minha vida. Mesmo sem contar com “olhos de pesquisadora”,
já que iniciaria o mestrado somente no ano seguinte, sabia que se tratava de algo
especial.
Assim que chegamos ao local, me chamou a atenção a hostess: uma drag
queen caracterizada como abelha, usando um salto-alto que a deixava com quase 2
metros de altura, que carimbava no braço a palavra “afeminada”, a qual só podia ser
lida se colocada sob luz negra. A marca era para que fosse possível entrar e sair do
local sem muita dificuldade.
Mal podia me socializar. Havia tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo em
que eu só conseguia observar a tudo com atenção. Ao entrar no espaço da festa, notei
pessoas “penduradas” por todos os lados, inclusive no teto e em uma escada usada
em construções, colocada de maneira despretensiosa no local, como parte da
decoração. No microfone, alguém dizia: “Vai, viado!”, “Mara o quê? Vilhosa!”, entre
outros bordões característicos da comunidade LGBT.
Por toda parte, notei pessoas que transitavam entre as categorias identitárias
de gênero com maestria, rompendo totalmente com os padrões binários. Essas
pessoas também dançavam fazendo poses que valorizavam a silhueta, e
eventualmente se jogavam no chão. Tudo ao som de house music, com suas batidas
bem marcadas. Era a primeira vez que eu presenciava uma exaltação à cultura LGBT
desse porte e uma ode à liberdade de expressão. Tratava-se do Duelo de Vogue, um
espetáculo à parte dentro da festa Dengue.
A Dengue remonta com originalidade a cena do Vogue1 dos Estados Unidos
nos anos 1980. Essa cena começou quando, nas casas que abrigavam sujeitos
1
O vogue é um movimento de contracultura, iniciado por volta dos anos 1960 nos Estados Unidos, em que
homossexuais, travestis e outros competiam entre si em “bailes”, ao som de house music, criando uma dança
marcada por poses e expressões de modelos de desfiles de moda, que eram veiculadas pela revista de moda
americana Vogue. Expulsos de casa devido a não aceitação da sexualidade ou identidade de gênero pela família,
esses indivíduos, majoritariamente negros e imigrantes, tinham como ponto de apoio casas que os abrigavam e
os aceitavam da forma que se reconheciam. Como espaço de livre expressão da cultura gay, criaram esses
“bailes”, onde ocorria a disputa dançante entre as casas, além de competições de melhor roupa em diversas
categorias. O documentário “Paris is burning”, ganhador de diversos prêmios nos anos 1990, produzido por
Jennie Livingston em 1991, retrata a cena Vogue dos anos 1980, nos Estados Unidos. Com diversos depoimentos
mostra que as festas organizadas não eram apenas um momento de diversão, mas principalmente um espaço
de transgressão e de subversão, visto que aquele era um dos poucos momentos em que aquelas pessoas
estigmatizadas (seja pela etnia, classe social ou orientação sexual) podiam extravasar sua personalidade, sem
medo de repressão ou ataques violentos.
11
A complexidade dos fenômenos sociais faz com que conceitos uma vez dados
como estáticos e imutáveis, como gênero, raça e sexualidade, sejam questionados e
problematizados por vários autores, que passaram a refletir sobre as grandes
transformações sociais, históricas, políticas, econômicas e culturais do mundo
contemporâneo. Bauman, ao associar este momento da história da humanidade à
metáfora da liquidez, destaca que a modernidade líquida é o momento da dissolução
de tudo que era sólido: padrões, comportamentos, normas e identidades: “a
modernidade líquida é a arena de uma batalha constante e mortal travada contra todo
tipo de paradigma – e, na verdade, contra todos os dispositivos homeostáticos que
servem ao conformismo e à rotina, ou seja, que impõe a monotonia e o conformismo.”
(BAUMAN, 2011, p.17). Com o intuito de investigar estes aspectos, teóricos dos
Estudos Culturais propõem uma abordagem interdisciplinar em suas análises da
produção de significados na sociedade a partir de meados do século XX. Por volta
dos anos 1950, num mundo profundamente modificado pela barbárie das Guerras
Mundiais, um grupo de pesquisadores, inicialmente na Inglaterra, lança o olhar sobre
fenômenos diversos, com o intuito de questionar as formas de poder e as relações de
dominação que marcavam as produções socioculturais.
2 Stuart Hall foi diretor do Center of Contemporary Cultural Studies (CCCS) entre os anos de 1968 e
1979 e seu percurso acadêmico e sua própria história de vida coincidem fortemente com os temas
tratados pelos Estudos Culturais, como a resistência de subcultural e a comunicação de massa.
16
Foi nos anos 1970 que as diferenças de gênero foram incluídas nos temas de
relevância abordados pelos Estudos Culturais, através do feminismo. Hall alega que
“não se sabe, de uma maneira geral, onde e como o feminismo arrombou a casa. [...]
Como um ladrão no meio da noite, ele entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente,
tomou a vez, estourou na mesa dos Estudos Culturais” (HALL, 1996, p. 269). O
feminismo trouxe uma ruptura teórica de suma importância para os Estudos Culturais,
visto que lançou um novo olhar sob as relações de poder e dominação no viés das
categorias identitárias de gênero, abarcando as questões de âmbito pessoal para um
entendimento mais profundo do âmbito político.
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que este alguém é; o
termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero
da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas
porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou
consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece
interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais
de identidades discursivamente constituídas. (BUTLER, 2008, p. 21)
Com uma perspectiva crítica à normalização corporal, viabilizada por meio das
instituições e práticas corpóreas, os estudos Queer se atentam à cultura, às tramas
de significações identitárias e à produção de subjetividades compartilhadas, propondo
assim uma desconstrução dos padrões binários (masculino/feminino, hetero/homo),
que acabam por reduzir a complexidade relacionada à identidade. Estas tramas de
significados moldam-nos de forma a olhar o mundo de maneira generificada,
colocando a heterossexualidade como o padrão correto a ser seguido, o que é
bastante limitador, uma vez que não abrange as inúmeras possibilidades de
identidades sexuais e de gênero.
A partir dessas bases teóricas, os autores ligados aos estudos Queer teceram
críticas à forma pela qual a sociedade se organiza, tendo a sexualidade como um
dispositivo histórico de poder que marginaliza as identidades que se desviam da
norma heterossexual. Discorrem sobre as maneiras como as relações, as formas de
subjetivação e exteriorização pessoal e a sexualidade se formam, tendo a
heterossexualidade como padrão a ser seguido, e expressam as expectativas,
demandas e obrigações sociais, que acabam por limitar as experiências, uma vez que
difundem um padrão hegemônico: a heteronormatividade.
Lesbian and Gay Sexualities” publicado na revista Differences, o termo queer para
denominar os estudos sobre as minorias sexuais e de gênero, diferenciando-os dos
estudos gays e lésbicos. A palavra queer, oriunda da língua inglesa, era usada de
forma pejorativa para se referir aos sujeitos de sexualidade desviante, cuja tradução,
apesar de não haver uma exata para a língua portuguesa, é estranho, excêntrico,
esquisito. Vale lembrar que a homossexualidade já havia sido patologizada e
considerada crime no século XIX, e este termo de cunho depreciativo era utilizado
para designar esses indivíduos. O que a Teoria Queer fez foi potencializar o termo,
pois, nas palavras de Louro (2016):
Está, então, implícito que não é para o diferente que se deve olhar em busca
da compreensão da diferença, mas sim para o comum. A questão das normas
sociais é, certamente, central, mas devemos nos preocupar menos com os
desvios pouco habituais que se afastam do comum do que com os desvios
habituais se afastam do comum. (GOFFMAN, 2015, p.138)
Este termo foi empregado pela teórica Adrienne Rich, no texto publicado em
1980, Heterossexualidade compulsória e a existência lésbica. Nesse artigo, a autora
critica a valorização da heterocentricidade, que apagaria a existência lésbica dos
estudos feministas. Vale ressaltar que a heterossexualidade vista como compulsória
prioriza as relações entre homem/mulher, e coloca como desviante as relações
homossexuais, sejam elas masculinas ou femininas.
4“O abjeto é algo pelo que alguém sente horror ou repulsa como se fosse poluidor ou impuro, a ponto
de ser o contato com isso temido como contaminador e nauseante.[...] Quando alguém chama essa
27
pessoa de “sapatão” ou “bicha”, não está apenas dando um nome para esse outro, está julgando essa
pessoa e a classificando como objeto de nojo. A injúria classifica alguém como “poluidora”, como
alguém de quem você quer distância por temer ser contaminado.” (MISKOLCI, 2012, p.43)
28
2008, p.42). Assim, esses padrões de gênero normativo, isto é, que se fazem
congruentes ao sexo, foram instituídos culturalmente pela reiteração e pela repetição
de comportamentos ditos adequados aos sexos, como se resgatassem uma forma de
ser “original”. Assim, o gênero, para a autora se mostra como uma:
Ao se distinguir sexo de gênero, observa-se que “não há sexo que não seja já,
e desde sempre, gênero. Todos os corpos são generificados desde o começo de sua
existência social, o que significa que não há ‘corpo natural’ que preexista à sua
inscrição cultural.” (SALIH, 2015, p.88). Assim, o gênero se mostra não como algo que
somos, e sim fazemos; uma sequência de atos que reforçam, diariamente, os papéis
de gênero.
Nessa perspectiva, a forma pela qual se teoriza o gênero sofre uma mudança,
um novo direcionamento, cuja Teoria Queer propõe. Os dispositivos, os poderes
institucionais e até mesmo o bullying fazem de tudo para solidificar as identidades nos
lugares de gênero instituídos pelas normas e, sendo o gênero performativo, abre-se a
possibilidade de se apresentar de outra maneira, que se diferencie das definições
engessadas hegemônicas.
Então, o que a Teoria Queer propõe é uma nova política de gênero que lance
olhar para as normas que criam os sujeitos, fundamentadas em demandas cunhadas
pelos próprios indivíduos desviantes. Essa nova política deve partir de uma
30
5 Acrônimo utilizado para se referir às pessoas que subvertem as categorias de identidades sexuais e
de gênero, e não somente a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. A sigla
já sofreu diversas incorporações, como, por exemplo, LGBTQ (sendo o Q o queer), LGBTQI (sendo o
I intersexuais), e LGBTQI+ (sendo o + destinado a se referir às pessoas que não se identificam com
nenhuma das outras letras).
31
questões de gênero com frequência, e artistas que subvertem estas categorias vêm
ganhando cada vez mais destaque. Um fator que podemos destacar como de suma
importância para a difusão da cultura LGBT para o mundo foi o reality
show americano RuPaul’s Drag Race, realizado pela produtora World of Wonder, no
qual a icônica drag queen americana RuPaul6 escolhe a próxima super estrela drag
americana. Com diversos desafios, as competidoras devem mostrar seus talentos na
arte drag, por exemplo, confeccionando roupas, fazendo dublagem, dançando,
atuando etc. Este seriado teve repercussão mundial, e já está em sua nona
temporada, além de ter contado com duas edições extras, chamadas All Stars, que
contam com queens eliminadas em temporadas anteriores.
6
“Presença irreverente e icônica na cena LGBT norte-americana desde a metade dos anos 1980, a
figura andrógina de RuPaul Andre Charles – que posteriormente ficou conhecida apenas por
RuPaul – tornou-se um fenômeno de mídia após surgir como drag queen nos meios de
comunicação de massa dos Estados Unidos como ator, cantor e diretor numa variedade de filmes,
programas de rádio e de TV, propagandas, eventos sociais e casas noturnas, além dos videoclipes
musicais para promover álbuns gravados como cantora. Ganhou notoriedade ao estrelar
campanhas publicitárias, consagrada como supermodel, título do primeiro álbum de sucesso
musical: Supermodel of The World (1993). Numa sociedade marcada pelo racismo e pela
discriminação contra a população gay, RuPaul Charles é negro, homossexual assumido,
impulsionou o imaginário estético e subculturas drag queen e acumula, na trajetória profissional,
direção e atuação em produções cinematográficas, na televisão e no rádio, gravação de discos e
parcerias musicais, coordenação de campanhas sociais e engajamento político com bandeiras da
causa LGBT. Desde 2009, apresenta o seu próprio reality show, o RuPaul’s Drag Race, exibido na
TV por assinatura dos Estados Unidos, e assina uma variedade de linhas de produtos, como
cosméticos, livros e roupas.” (SANTOS, 2015, p.2)
32
2 O FERVO
2.1. O espaço da festa
Durkheim alega que os atores festivos têm acesso a uma vida “menos tensa,
mais livre”, a um mundo onde “sua imaginação está mais à vontade” (DURKHEIM
apud AMARAL, 2001, s/n). Esta efervescência é reforçada pelos elementos da festa
(linguagem), como, por exemplo, as danças, as músicas, as bebidas, os discursos, a
indumentária, o espaço onde se realiza, além da própria interação entre os indivíduos.
Vale ressaltar que todos esses aspectos apontam para qual tipo de
subversão/transgressão a festa se direciona, visto que, na festa Dengue, por exemplo,
todos estes elementos questionam os padrões hegemônicos de gênero e sexualidade.
Além disso, como alega Amaral, “Na festa (...) os indivíduos podem entrar em contato
direto com a fonte de “energia” social e dela absorver o necessário para se manterem
sem revolta e muita contrariedade até a próxima festa.” (AMARAL, 2001, s/d) Por esse
motivo, a periodicidade de uma festa é importante quando se tem um caráter de
contestação, uma vez que dá fôlego às reivindicações.
E o que ocorre com as normas societárias nesse espaço? Para Castro Júnior,
Para empreender uma leitura da festa Dengue, evento no qual ocorre o Duelo
de Vogue, optamos por construir um método de imersão através da abordagem
etnográfica e de entrevistas em profundidade, visto que
os problemas que melhor se ajustam a essa modalidade de pesquisa são
aqueles que podem ser interpretados como expressão de coletivos culturais,
como organizações e comunidades. Alguns dos problemas mais privilegiados
são, pois, os que se referem a desigualdades de classe, de gênero ou de idade,
barreiras culturais, estereótipos, cultura organizacional, subculturas e
representações sociais. (GIL, 2010, p.128,)
7
Espaço de “vanguarda na cidade nos eventos culturais atrelados às causas LGBT, feministas, entre outras
temáticas ligadas à liberdade individual, sexual e existencial, a Gruta ganhou notoriedade por fomentar iniciativas
culturais e oferecer espaço para ensaios, oficinas e realização de eventos.”. Disponível em
<https://goo.gl/RQqkBA> Acesso em: 1 nov. 2017.
8
“Localizada no Terminal Turístico JK (conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer, datado de 1952),
a Casa Cultural Matriz foi inaugurada no ano 2000, decretando o ponto de encontro da cultura alternativa,
underground, independente e urbana, em Belo Horizonte. Palco de diversas manifestações artísticas é o espaço
de fomento de várias tendências, estilos e gêneros. Festivais, música, mostras de cinema, exposições, teatro,
dança, performances e lançamentos de livros, são as principais manifestações culturais promovidas na Casa
Cultural Matriz. A pluralidade fez da Casa Cultural Matriz, espaço cultural e artístico expressivo que,
inevitavelmente, define os rumos da arte alternativa mineira.” Disponível em:
<http://www.matrizbh.com.br/matriz.html> Acesso em: 1 nov. 2017.
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sempre aberto para que sejam mencionados assuntos atuais, como a homo e a
transfobia, sempre no intuito de informar e resistir às heteronormatividades.
Em Belo Horizonte, pessoas envolvidas com a dança criaram o festival BH
Vogue Fever, que conta com workshops, aulas e um evento final, onde ocorrem os
duelos. Com participação de pessoas do Brasil e do mundo, nesse festival, referências
internacionais do estilo Vogue são convidadas para passarem seus conhecimentos
nas aulas e nos workshops e comandarem, junto ao organizador da Dengue, uma
festa onde ocorrem as competições.
Segundo o organizador da festa, a primeira edição da Dengue, em 2013, foi
realizada como uma festa de fim de ano da rádio pirata “Miss Dengue”. Uma vez por
mês, os mentores da rádio se reuniam e convidavam pessoas para dar entrevistas e
atendiam telefonemas e pedidos de música, o que acontecia em lugares itinerantes,
mas, em sua maioria, no galpão do Teatro Cine Horto.
O nome da rádio, que depois se tornou o nome da festa – Dengue – foi inspirado
em um antigo personagem do programa Xou da Xuxa, exibido pela Rede Globo na
década de 1980, conforme explicou o organizador da festa a autora deste trabalho,
em conversa informal. Este personagem – um homem caracterizado como mosquito
e portando uma guitarra – era apenas um coadjuvante, e a ideia, segundo o
organizador, foi alçá-lo à condição de protagonista: Miss Dengue
É interessante pensar no nome escolhido para a rádio que deu nome à festa,
visto que se destina a dar protagonismo a quem não está sob os holofotes. Ao transpor
isso para a vida real, a festa direciona esses holofotes para iluminar uma minoria
sexual e de gênero não hegemônica, historicamente estigmatizada. Segundo ele, a
festa foi criada destinada à comunidade LGBT:
Eu acho que a princípio eu pensei pras gay, bem! Pras gay e pra comunidade
LGTB. Pensei em um lugar assim: vem ser o que você quiser, aquilo que
sempre quis ser, sabe? Porque quando eu vou nas boates, quando ia nas
festas gays, era tipo assim: todo mundo tão bem vestido, todo mundo com o
mesmo corte de cabelo, todo mundo igual, todo mundo dançando igual. Ai eu
pensei: quero uma festa que eu vou me divertir, sabe? Que eu possa ir do
jeito que eu quiser né, que eu já fui até vestida de noiva, vestida de qualquer
coisa, eu pego assim e vou e eu acho que tem muito disso na Dengue. Foi
criado assim, 2013 quando ela surgiu, não era para ser uma festa periódica
era pra ser uma festa de final de ano. Vem gente pra gente dançar Madonna,
principalmente que não tinha nenhum lugar mais que dançava Madonna.
43
A primeira edição gerou tanta repercussão que, após a festa, todos saíram sem
entender o que tinha acontecido. Foi, segundo ele, uma verdadeira celebração da
diferença e, devido ao sucesso, outras edições foram organizadas. Em seus quatro
anos de existência, a festa Dengue passou por diversas mudanças, mas sempre com
o intuito de fazer da diferença e da liberdade seu aspecto central.
É pra mostrar pra pessoas que elas podem ser livres, porque também tem
um bloqueio pessoal. Eu lembro que por exemplo, no princípio foi muito difícil
para as pessoas gritarem viado. Sabe assim. Esse foi o maior tema dos
eventos, emails, facebook, as pessoas falando que era como se eu exaltasse
o preconceito e a homofobia, porque viado não pode falar, né. E hetero não
podia falar viado, né. Os homens ficavam meio assim né, de falar viado. E
pra mim o mais interessante é isso, que bom que você pensou tudo isso não
importa se você gritou ou não só de você ficar negociando com seu próprio
preconceito, sabe? É isso que nós estamos fazendo. É isso o mais importante
quando você para e reflete no negócio e aí você vai embora pensando
naquilo. Tanto é que eles escrevem né, mas aí você volta e na terceira você
vai sentindo uma liberdade que você: Vai viado! E ai te dá uma liberdade, e
eu acho que tem a ver com isso assim, e agora eu peço mais licença mas
antes eu já tacava, agora vocês quem tem que resolver esse problema. Por
exemplo, na categoria lésbica futurística a gente vai gritar o quê? Buceta?
Mas eu não posso falar. Posso gritar viado na cara dura mas e daí, a gente
pode gritar buceta, pode gritar o que quiser? Como que é isso né? Mas é
também uma ideia de pensar . Aí o que você acha então pode ser. Vai ser
buceta hoje depois a gente muda.
46
Além disso, outra forma de abrir para novas possibilidades era sair para outro
espaço: para a rua, coabitando. É também interessante pensar que ambos os públicos
(Duelo de Mcs e Dengue) sofrem preconceito por diversos motivos, e colocá-los,
juntos, no espaço público, é de grande valor para as lutas diárias. Barbero (2008, p.8),
nesse sentido, destaca que “o que os novos movimentos sociais e as minorias
demandam não é tanto ser representados, mas, sim, reconhecidos: fazerem-se
visíveis socialmente em sua diferença”. Estar nas ruas, e não nos guetos, às margens,
“dentro do armário”, é uma ferramenta de suma importância para lograr mudanças. O
organizador da festa mencionou sua vontade de realizar o evento na rua, e justifica:
9
O duelo de Mcs é um evento que acontece na cidade de Belo Horizonte, organizado pelo coletivo Família de
Rua, no qual ocorrem as batalhas de rimas características do meio hip hop. É interessante pensar que este
movimento, assim como a Dengue, reivindica e coloca em questão assuntos relacionados à realidade vivida por
seus agentes.
10
“Lá da favelinha” é um projeto destinado à promoção da arte e da cultura no Aglomerado da Serra, em Belo
Horizonte. Esse projeto conta com oficinas dos mais diversos temas, pensados e destinados aos moradores das
comunidades.
48
Trazer um evento tão múltiplo e diverso como este para a rua tem inúmeros
pontos positivos, o que não exclui a necessidade de lidar com a própria diversidade
presente na rua. Em uma das edições, que aconteceu pouco tempo após a notícia de
um estupro coletivo repercutir em todo o mundo, a festa tomou caráter de protesto.
Tanto as apresentações quanto as roupas faziam menção ao ocorrido, com objetivo
de demonstrar a indignação perante o fato.
51
não, que isso era puro machismo que dava pra ver que eles só queriam que
as bichas ganhassem e as meninas não tinham vez. E aí tinha não sei quem
que falava, mas aí isso tudo era um jogo que era assim, e começou a ficar
meio difícil as relações e ai o pessoal ficava: Guilherme fala com ela,
Guilherme fala. Ai eu falei nos vamos sentar todo mundo um dia que eu não
consigo fazer tudo sozinho, vamos fazer um debate, sobre tudo isso que esta
acontecendo que não é só na festa né gente, isso acontece na vida. Então
vamos lá botar pra fora e tal e foi muito legal. No inicio foi meio roupa suja
mas depois eu acho que a gente entendeu e conversamos sobre os
problemas. Mas eu percebi muito que os problemas eram meio que
individuais mesmo, mas é sempre bom a gente prestar atenção nas relações
e nos problemas. E eu acho que a convivência ficou muito melhor depois no
sentido de vamos entender se era o machismo mesmo, se tava rolando
preferência para os homens, de gays e como que é isso. E aí a gente prestou
mais atenção nessas coisas eu acho que o tipo de comentário que as pessoas
faziam, aconteciam, e ai eu achei bom.
A diva pop Madonna é uma paixão do organizador da festa, e houve uma edição
da Dengue em homenagem a ela. Nessa festa, os frequentadores apresentaram uma
cartela bem variada dos icônicos looks da cantora. É interessante relacionar a escolha
desse tema com o seriado americano RuPaul’s Drag Race11 que, em algumas
11
“Presença irreverente e icônica na cena LGBT norte-americana desde a metade dos anos 1980, a figura
andrógina de RuPaul Andre Charles – que posteriormente ficou conhecida apenas por RuPaul – tornou-se um
fenômeno de mídia após surgir como drag queen nos meios de comunicação de massa dos Estados Unidos como
ator, cantor e diretor numa variedade de filmes, programas de rádio e de TV, propagandas, eventos sociais e
casas noturnas, além dos videoclipes musicais para promover álbuns gravados como cantora. Ganhou
notoriedade ao estrelar campanhas publicitárias, consagrada como “supermodel”, título do primeiro álbum de
sucesso musical: Supermodel of The World (1993). Numa sociedade marcada pelo racismo e pela discriminação
contra a população gay, RuPaul Charles é negro, homossexual assumido, impulsionou o imaginário estético e
subculturas drag queen, e acumula, na trajetória profissional, direção e atuação em produções cinematográficas,
na televisão e no rádio, gravação de discos e parcerias musicais, coordenação de campanhas sociais e
57
engajamento político com bandeiras da causa LGBT. Desde 2009 apresenta o seu próprio reality show, o RuPaul’s
Drag Race, exibido na TV por assinatura dos Estados Unidos, e assina uma variedade de linhas de produtos, como
cosméticos, livros e roupas.” (SANTOS, 2015, p.2)
58
que faz os flyers: não coloca gente normal na sua arte. Tem que ter um trem
estranho!
3 POTENCIALIDADES FESTIVAS
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Cisgênero é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos,
com o seu "gênero de nascença”.
62
previsão de sua avó sobre como ele seria tratado após assumir sua condição não
hegemônica
Depois que aconteceu isso, a minha avó, que me criou, sentou comigo e
conversou: – “olha, você tem que ter noção de que as pessoas vão te odiar,
elas vão rir de você, elas eventualmente vão querer te agredir”. Ela foi muito
dura pra falar comigo, mas ela foi muito real. Ela me preparou para a vida que
eu ia levar, e ela falou assim: – “quando eu observo você, eu vejo que você é
assim, que você não tem um estilo tão convencional, que você é diferente
dos seus outros colegas, e você vai ter que entender que essas pessoas não
vão te aceitar, nem é porque você tem um caráter ruim, é porque você é
assim, as pessoas vão odiar você.” (ENTREVISTAD@ 2)
eles já chegam e vão lidar diferente, mas pelo menos é melhor mais
respeitoso, não vou ficar ouvindo aquelas piadinhas de gay porque eles
sabem que eu sou gay, então não vão ficar fazendo essas piadinhas, pelo
menos vão começar a ter esse senso. (ENTREVISTAD@ 6)
biológico pra que, pra no final descobri que eu não era aquilo que eu achava
que eu era. Eu falo que a minha transição foi doce infernal porque eu não
lembro onde porque também eu não tive referência de mulher trans. Eu até
tive, mas na época a referência de mulher trans era a Roberta Close e eu não
me via na Roberta Close, gente não sou eu, essa mulher! E eu não lembro
onde que eu vi que o hormônio poderia mudar minha forma física e eu
comecei a tomar por conta própria e é aquela coisa eu passei por todas as
fases que as meninas passam do primeiro sutiã e eu até falo que o sutiã que
as feministas queimaram eu peguei de volta, que o sutiã queimado foi o meu
nascimento enquanto mulher. E eu lembro que eu fui encontrar um grande
amigo que hoje não esta aqui mais entre nós, ele foi assim um grande
parceiro durante a minha transição, ele foi na loja comigo e a gente ficou, eu
entendo que, assim, foi um ato de luta, um ato de socorro mesmo, de alívio,
peso tirado das minhas costas. Eu juntei todas as roupas masculinas queimei
tudo, fiz uma grande fogueira. Acendi uma grande fogueira queimei tudo,
todas as fotos daquele momento o menino, eu tava matando o menino porque
na verdade ele já tava morto eu só tava enterrando aquela pessoa que nunca
existiu para que outra pessoa pudesse nascer. E [esse amigo] ele foi comigo
e comprou o sutiã e eu lembro que eu cheguei em casa louca para usar meu
primeiro sutiã, assim, eu queria muito ver o meu seio em um sutiã e eu lembro
que foi uma situação tão assim de outro mundo, que assim que eu pus o sutiã
aquela pessoa que existia em mim sumiu desapareceu, foi pra onde ele tinha
que ter ido, por isso que eu falo que eu acho que o meu maior legado é isso,
liberdade. (ENTREVISTAD@ 3)
A gente não tem que tirar isso da cota do que é legal e do que não é legal.
Eu não sou obrigada. Eu decidi na minha vida que eu não sou obrigada a
conviver com pessoas que têm preconceitos, principalmente preconceitos
muito enraizados nela, mesmo se for da minha família, mesmo se for a minha
mãe. E eu não tava aguentando mais olhar na cara da minha mãe, eu não
tava mais suportando a presença da minha mãe. E eu falei: se eu quero algum
dia ter um bom relacionamento com a minha mãe eu tenho que sair da minha
casa agora. E saí, com 14 anos. Quando eu comecei a andar maquiada perto
do meu pai ele se incomodava, hoje em dia é como se eu tivesse sem nada.
Meu pai não tem vergonha de andar comigo na rua, minha mãe já tem, fica
receosa, fica assim, ai os outros estão olhando, eu falo, querida deixa olhar.
(ENTREVISTAD@ 2)
Sabe qual a realidade da mulher trans em BH sendo muito fria, muito direta?
É dormir de dia pra fazer programa à noite, a realidade de uma pessoa trans
em BH é ter medo, não sair de dia e sair de noite com medo, a gente tem
medo de sair na rua. É exatamente isso das pessoas trans de BH é que a
gente tá cercada de medo, eu não vou mentir, eu tenho coragem de abraçar
a minha luta, mas eu tenho medo de viver em sociedade, é tão difícil você ter
tanta coragem pra falar, viver e tentar passar uma imagem e mesmo assim
ter medo do lugar onde você mora. Eu saio daqui agora e um cara me dá um
tapa na cara no meio da rua do nada, isso já aconteceu um cara do nada fez
isso, e eu tinha 16 anos. Eu não sabia nada da vida. Mesmo já morando
sozinha eu tava aprendendo. (ENTREVISTAD@ 2)
definir querida, eu sei me definir muito bem. Na hora que eu fui relatar o que
tava acontecendo, ele fazia piadinha, ele achava engraçadinho. Assim: ai
meu Deus, um cara te horrorizando na rua, porque tá fazendo um BO por
causa disso, perdendo meu tempo. Aí ele virou pra mim e falou a seguinte
frase: por que você não deu porrada na cara dele?. Aí eu falei: porque quem
taria fazendo um BO aqui seria ele e não eu. E com certeza eu estaria presa,
porque eu sou trans. Eu sou ex-periférica, porque hoje em dia eu moro no
centro, não posso falar que eu sou periférica, mas eu sou ex-periférica, eu
sou negra, eu sou classe baixa, com certeza ele daria um jeito de me prender
e você teria o prazer de me prender, você me prenderia rindo. Eu reclamei,
eu fui na policia civil, eu fui na investigação, mas só que aí tudo ficou parado
e aí as minhas próximas agressões eu não fiz BO porque eu fiquei
desmotivada. (ENTREVISTAD@ 2)
O vogue, movimento de contra cultura surgido nos Estados Unidos, por volta
dos anos 60, foi uma dança criada pelos sujeitos homossexuais, majoritariamente
negros e imigrantes latinos, no intuito de enaltecer aspectos da cultura LGBT. A dança,
que deu origem à música homônima da Madonna, consistia em uma performance que
representava as poses das modelos das capas de revistas. É interessante pontuar
que estes sujeitos carregavam na construção de suas identidades, uma carga de
estigma, muito mais forte que atualmente. Dessa forma, utilizavam do luxo e do
glamour representados pelas revistas de moda no intuito de relativizar a realidade
vivida por eles.
68
Eu sempre conheci vogue porque a amiga da minha tia, drag, ela dançava
vogue e antes dela morrer de AIDS, porque ela não se cuidava, ela era muito
doidona, ela escolheu, ela morreu feliz, antes de morrer ela falou isso. Na
minha vida eu presenciei muitas mortes importantes, eu tinha a minha avó,
eu perdi a minha avó, eu perdi a Lifa, que era essa drag, o nome dela era Lifa
Oliver, muito loucona. Diz ela que ganhou esse nome em Boston uma drag
muito foda deu esse nome pra ela e ela adotou. Eu perdi uma prima de câncer
e eu perdi o meu melhor amigo, eu presenciei muitas mortes na minha vida e
todas elas me deixaram alguma coisa de positivo, eu acho que eu sou o que
sou hoje, essas pessoas me tornaram, elas foram me montando, eu sou um
quebra-cabeça de todas as peças que as pessoas foram deixando na minha
vida. E ela me mostrou “Paris is Burnning”, ela dançava, ela era muito
oldwayzona assim, e eu sempre fui muito femme, muito garota, muito buceta
e aí ela me mostrou, eu fui falando eu preciso disso, mas só que eu nunca vi
nada na minha vida relacionado a isso.(ENTREVISTAD@ 2)
Olha eu não sabia tanto sobre esse duelo, mas eu já era familiarizada com a
dança vogue. Eu amo Madona, a grande deusa na noite. Assim quando eu vi
ela falando sobre sexualidade que não existe distinção sexual ela me libertou
de tal maneira também, então é isso eu já era familiarizada com dança por
conta da dança vogue e eu já tinha, antes de saber da festa já tinha
pesquisado sobre a dança já tinha lido muita coisa, tem até um filme que
chama “Paris is Burnning” que eu amo, foi assim, esse filme, e foi engraçado
quando eu vi esse filme foi exatamente quando eu tava na minha transição,
eu tava na minha transição então assim eu sou apaixonada por esse filme e
eu já tinha visto ele eu já tinha lido algumas coisas então quando eu soube
eu não lembro quem me falou, alias eu acho que nem falou, foi um dia que
eu resolvi ir na Gruta e coincidentemente tava acontecendo o duelo de vogue,
um dos primeiros. (ENTREVISTAD@ 3)
das juradas e pedi pra tirar uma foto com ela, dei uma sondada nela e tal, e
depois eu cheguei em outra menina, e ela falou tem a página Miss Dengue,
aí tipo assim a página tinha 30 likes, eu fui e dei like e lá já tinha um evento
que ia ter o próximo, e eu falei vou ter que ir nesse rolê. Fui lá me inscrevi, aí
me disseram você nunca duelou não, eu disse não, nunca duelei. Aí eu fui a
primeira vez, eu fiquei em 3º lugar. Eu dançava vogue, mas eu não dançava
o que eu danço hoje, o que eu danço hoje é muito diferente do que dançava.
O que eu conhecia de vogue era, tipo quando você fala que gosta de funk,
mas só sabe fazer uns dois passinhos ali, era isso que eu sabia fazer e foi. E
eu lembro que, isso me marcou muito, eu tava duelando e o organizador da
festa falava, gente ela é virgem no duelo, só isso que me faltava, aí eu pensei,
meu Deus o que é isso, eu preciso disso e aí eu comecei a ir em todos os
duelos. (ENTREVISTAD@ 2)
Meu primeiro duelo, e foi sem querer que descobri, eu tava parada na dança
por um tempo, e por algum motivo eu precisei ficar sem fazer aula, eu
comecei a procurar as baladas relacionadas às danças. E aí eu vi uma
divulgação da festa eu vi que as meninas iam ta lá, nem sabia que era júri
que era duelo, nada, cheguei assim, completamente sem saber o que tava
acontecendo e aí um amiga minha que é bailarina clássica que também não
conhecia muito sobre o vogue, virou e falou assim, eu descobri que se a gente
subir no palco, a gente ganha off, só que eu to com muita vergonha de subir
sozinha, sobe comigo. Falei, tá, subi e o organizador anunciou que era um
duelo, era eu contra ela, a[i eu olhei para as meninas e fiquei meio que tipo
assim, o que eu tenho fazer, e a música tocou e eu comecei a me movimentar
e eu acho que foi vogue que saiu e foi maravilhoso. Eu não tinha ainda um
contato técnico, especifico sobre o vogue, eu não sabia o que era o vogue
como estilo e como movimento eu já tinha ouvido falar, que era uma
referência das danças que era um movimento muito novo perto das outras.
Nada muito especifico. Eu simplesmente me identifiquei com a cena, com o
movimento, eu me senti bem, eu me senti feliz em ta ali, e nunca mais parei
de ir. (ENTREVISTAD@ 5)
Ela discute uma coisa não tão fácil de entender, que é a identidade, a
orientação sexual, e ela discute isso de uma forma tão branda, tão menos
pesada, tão tranquila. Eu não me lembro de encontros de discussão de
identidade sem ser tenso, sem não me toques, e a Dengue discute isso de
cara limpa e com coragem. Vamos discutir sobre essas identidades que estão
por aí vivendo por que assim elas estão por aí vivendo não adianta falar que
não existe porque há, elas existem elas estão aí. E a Dengue discute isso
com leveza e amor, que eu falo muito que não adianta eu discutir esses tabus
sociais com pesar e arrependimento, porque não adianta, eu acho
arrependimento uma coisa idiota, eu não me arrependo de nada do que eu
fiz na minha vida até hoje, não me arrependo de quem eu sou, sou muito bem
assim feliz e realizada graças a Deus. Então vamos discutir isso de uma forma
legal e eu fiquei tão feliz porque na Dengue de rua eu vi crianças e eu acho
73
A gente faz política em tudo, viver é um ato político, todas as nossas ações,
tudo que a gente faz, a forma como se posiciona no mundo, a forma como a
gente se põe no mundo e eu acho que de 3, 4 anos pra cá, a discussão de
feminismo tá numa crescente, a gente tomar o vogue pra si, como linguagem
que nos ajuda a se posicionar no mundo, isso é um ato político. As pessoas
que respiram essa cultura usam isso como uma máscara de oxigênio pra
poder sobreviver no mundo e continuar não só vivendo, mas assim,
resistindo. Eu não posso falar sobre isso, eu posso falar sobre minha
experiência como mulher, mas que não chega nem aos pés do que é ser
mulher negra, mulher lésbica, mulher gorda, mulher trans, nem vou falar
disso, de certa forma a minha vida tá muito fácil e o vogue serviu pra mim
imagina pra essas pessoas, e a dengue sendo este lugar que o vogue é
central, é muito significativo, muito importante. (ENTREVISTAD@ 7)
Dengue não pode perder esse lado político esse lado humanitário e não pode
deixar de tocar nas feridas também. Vamos fazer esse povo pensar vamo
conversar, colocar a pulguinha atrás da orelha pra dormir incomodados. E
não pode perder essa sensação de libertação, liberdade, porque, se começar
a perder, essas coisas não fazem mais sentido. A dengue é isso,
identificação, amor, igualdade e um espaço de luta e resistência. Eu acho que
ela trás esperança, eu acho que ela trás um respiro de esperança, sabe, um
respiro de alivio, um respiro de liberdade, mesmo porque vogue é uma dança
74
onde você vai, eu sempre falo isso com os meninos, antes da gente pensar
na competição, pense, pense não, se divirtam, se divirtam, porque o vogue é
isso, né, é diversão e celebração da diferença das diversidades e uma
celebração da vida, pra mim a dança vogue é celebrar a diferença, mas não
de uma forma ruim é celebrar a diferença com positividade, graças a Deus
somos iguais mas somos diferentes. Graças a Deus eu tenho uma
individualidade, você tem a sua, graças a Deus, porque infelizmente a gente
ta em uma época onde se mata a diferença. (ENTREVISTAD@ 3)
Devido a estes aspectos citados pelos entrevistados, pode-se dizer que a festa
cumpre um importante papel para a comunidade LGBT, que é a questão da
visibilidade e da aceitação da diferença. Os dispositivos de poder pregam uma
normalidade em relação a alguns valores, como, por exemplo, a heteronormatividade
e a heterossexualidade compulsória. Não é necessário se assumir hetero, não é
necessário se assumir cis. O que a Dengue promove é uma convivência LGBT durante
o momento festivo, que muitas vezes invade também o cotidiano, criando laços de
amizade entre os frequentadores. É de suma importância o papel da festa nesse
sentido, visto que coloca em questão diversos aspectos da identidade, que são
deixados de lado devido aos padrões hegemônicos.
Outro aspecto, citado no trecho abaixo, é a questão do reconhecimento de
direitos, que muitas vezes enxergamos como diferenciais em outros ambientes. A
entrevistada aponta sua dificuldade de conviver em ambientes nos quais a
hetenormatividade é mais presente:
Essas palavras que sempre são chamadas pra gente como uma denotação
pejorativa, tipo afeminado, bicha, viado, da gente começar a quebrar o
sentido dessa palavra e enaltecer essa palavra. Tipo assim, tá, eu sou viado,
tá, eu sou afeminado. A gente querer ser o mais afeminado, eu achei isso
impressionante, porque eu falei, gente, é aquela palavra que talvez a gente
escutava quando era pequeno indo pra escola, e que aquilo me era um
problema, assim: bicha, bichinha, viado e tipo assim aquilo me fechava e lá
quando a gente escuta viado o corpo abre, o peito abre, o “plexo solar”
levanta. E eu falei, nossa, é esse lugar que eu quero tá, é aqui que eu quero
continuar. Então eu queria cada dia que tinha uma festa eu queria uma roupa
melhor, uma roupa bonita, pedia roupa emprestada para umas amigas que
faziam roupa, queria ta maravilhosa. Acho isso incrível. E a gente tem que
construir mais lugares desse tipo. Essa festa significa pra mim um lugar de
libertação, um lugar de alegria, um lugar de prazer, um lugar de criatividade
também, porque eu acho interessante, a festa porque ela tá muito colada em
uma questão da criatividade. Eu sempre gostei de ir pra festa, pra divertir, eu
nunca fui uma pessoa de ir pra festa, pra pegar, pra beijar, pra paquerar
porque eu acho que inclusive isso tem outros lugares melhores pra gente
poder fazer isso, acho que a gente tem que, não são os aplicativos que são
péssimos, e acho também que as festas não rendem muito. Porque eu
sempre gostei de ir pra festa pra descobrir aquilo de conhecer pessoas, de
dançar, de ouvir a música que tá tocando de ser criativo e acho que essa
festa tem muito isso de ouvir a musica de ser criativo, de ser criativo na roupa
que você usa, ser criativo na dança que você faz, no movimento, então isso,
o meu envolvimento foi muito desse afeto, desse prazer, de encontrar um
lugar que eu possa dançar, ser criativo, me expor, expor meu desejo, expor
o pensamento do universo gay, a criatividade que existe no universo gay. Ela
propõe esse lugar político de resistência, assim que a gente vai mudando aos
poucos a gente não sabe como, mas vai mudando, não é tão claro, muda,
mas não é aquela coisa, nossa, eu mudei porque eu fui na Dengue, não sei
se isso acontece, mas eu acho que com a insistência, a continuidade, vai
continuar mudando o panorama. Ser visto, ta no jornal, ta na mídia, tem foto
todo dia no Facebook, e isso vai transformando o olhar das pessoas.
(ENTREVISTAD@ 6)
Pra mim foi muito sair da caixa, pra mim foi muito abrir a cabeça e falar nossa
esse mundo existe. Então foi novidade mesmo. Eu custei a entender que eu
poderia fazer parte desse mundo. Eu fiquei maravilhada com o rolê, mas
ainda eu não me sentia parte do rolê, no sentido de, tipo assim, não é o meu
estilo de vida, será que tá tudo bem eu ta aqui? Isso aconteceu. Mas era uma
coisa minha, nada que alguém virasse e falasse nossa menina você não é
daqui sai daqui, mas é um bloqueio meu, pessoal mesmo de lidar com o
diferente, lidar com o que eu não conhecia. Tanto é que qualquer pessoa hoje
que a gente leva na Dengue, por exemplo, se eu pego o meu namorado, se
76
eu pego uma amiga minha e levo a pessoa fica tipo assim, o que ta
acontecendo. A gente não ta acostumado, é uma coisa que para algumas
pessoas é o dia a dia e pra quem não vive aquilo no dia a dia não é normal.
E é mágico ao mesmo tempo, um crescimento pessoal poder participar disso,
você conhecer essas pessoas. Eu sei que a minha cabeça começou a abrir
mais, é perfeito assim o link com a Dengue, as pessoas que eu comecei a
conhecer que são diferentes de mim, que tem uma vida diferente de mim e
que me ensinam muita coisa todo dia, de aceitação, sabe. (ENTREVISTAD@
8)
3.3.3 Montação
77
Eu achava que a minha alma era de uma mulher. Mas não, eu não era uma
mulher, eu não quero performar o gênero cis. É o que acontece com as
mulheres trans, por exemplo. Eu não quero fazer modificação nenhuma no
meu corpo, claro que talvez um botoxinho ali, essas coisas tudo bem,
obviamente que existem sim, transgêneros não binários que eles querem
fazer hormonização, elas querem ter o corpo dito feminino, mas ainda assim
elas são binárias, porque a performance de gênero delas é essa. Eu me
olhava no espelho, e as pessoas às vezes me tratavam como um menino, eu
falava gente tem alguma coisa errada, eu escrevia na parede do lugar assim,
quero ser mulher, tipo meio poética sabe, eu sempre gostava de escrever,
escrevia sobre meu corpo ou sobre o que eu sentia. Me vestir de forma
diferente foi o que me ajudou na transição, de me entender melhor. Comecei
misturando roupas de menino, de menina, é tudo roupa gente. Só queria me
sentir melhor com minha imagem, e a roupa foi meu instrumento pra isso.
(ENTREVISTAD@ 2)
É sempre over the top, geralmente eu sou muito louca pra vestir, porque eu
gosto de uma roupinha mais diferentinha, eu sou mais diferentona, mas
quando é Dengue eu sempre, eu tenho essa coisa do vogue da raiz, que a
pessoa se prepara pra aquilo, você já viu uma ball, você vai dizer que a galera
vai, pá, Eu quero ir pra causar, eu já cheguei em duelo que tava todo mundo
mais calminho assim, e eu com um negócio gigantesco na cabeça, eu gosto
disso, e eu gosto de fazer, por exemplo, a última Dengue era futurismo e eu
quis fazer um futurismo meio pós-apocalíptico, bem Sharon Needles, que
ganhou uma temporada de RuPaul, aí o que eu fiz, eu não tenho dinheiro
para comprar roupa, porque eu nunca tenho e eu nuca vou gastar dinheiro
com isso, as minhas roupas sou eu quem faço, e eu sempre busco
78
inspirações fora da caixinha, eu pensei quais são as coisas óbvias que todo
mundo vai usar como futurismo, prata, coisas mais robóticas, Aí eu fui no
vermelho, aí eu fiz um óculos de arame assim, cheio de arames e fiz uma
coroa gigante com arames aí eu peguei um TNT vermelho e coloquei aqui na
minha cabeça, prendi no meu pescoço cortei o meu rosto em volta, ficou tipo
só o rosto assim, e eu fiz uma capa vermelha com o resto do TNT e aí eu fui
com uma meia vermelha e tecido preto na frente e atrás pra tampar minha
bunda e minhas outras coisinhas, e fui. Aí no duelo, primeiro eu tirei um leque,
que tava escrito “Fora temer”, depois eu tirei uma lupa e eu ficava olhando
para as pessoas, essa lupa era isso, a pesquisa, o olhar crítico, e o shade o
vogue também tem shade querida. E é engraçado porque eu amo “runway”
eu sempre gosto de fazer roupas que se transformam também, sempre gosto
de fazer um review, eu gosto high fashion, então que sempre quero dar essas
referências, por exemplo, na Dengue junina eu fui como se eu fosse um
habitante do espaço que veio pra terra para uma festa junina, aí eu fiz um
pescoço assim gigantesco, cheio de bandeirola pastel, porque quando eu
penso nisso eu não penso em ir muito colorido, coloquei uma Barbie na minha
cabeça com uma pipoca na mão e fiz uma saia com forro de mesa, foi na
Dengue que sofri o rolezinho lá, a Dengue que eu sofri a agressão lá da rua
da Bahia. (ENTREVISTAD@ 2)
Fonte: http://www.mirror.co.uk/3am/weird-celeb-news/lady-gaga-dresses-as-alter-
ego-jo-678043 Acesso em 01 jul 2017
81
Eu sempre vou no duelo de Paola. Uma vez que fui convidado para ser DJ
com um coletivo de “Djéias” que era só mulheres, e elas falavam que era
coletivo de “Djéias” e acontecia uma festa lá na Gruta e elas me convidaram,
eu falei com elas uma vez que eu era próximo delas que eu queria tocar e eu
ia vestida de mulher se elas deixassem, e elas falaram claro, vamos te
chamar. Aí me convidaram. Aí nesse dia que eu tava lá, uma das moças que
tava lá coordenando esse coletivo e que ajudava a montar o som e a gente
tava fazendo o teste do som, e ela sempre errava meu nome e me chamava
de Paolo, e ela me chamava de Paolo, e eu falava, vamos facilitar, me chama
de Paola, e aí como eu vou tá de Paola, e eu vou adotar esse nome Paola
Bracho porque eu sempre, quando eu era adolescente eu adorava aquela
novela, a Usurpadora, principalmente a personagem vilã, claro, ela era
incrível, ela é incrível, a novela é muito incrível. Quem conhece a novela, traz
o nome de uma pessoa mais maldosa e uma pessoa talvez que goste de um
glamour, gosta de uma roupa chic, gosta de ta em ambientes, então mais isso
de uma certa maldade, de não sou uma pessoa muito boazinha. Às vezes
começo a falar em espanhol porque a novela é toda dublada, espanhol, é
bem exagerado essa questão, então eu trago isso também, e trago talvez
essa questão dessa roupa, eu gosto de tá, não é bem vestido, nem sei se
essa palavra existe, mas eu gosto de usar roupas que eu gosto, de gente que
faz roupa em BH que eu gosto que eu acho bonito, admirar, sempre gostei
de moda, sempre tive uma relação, trabalho com figurino, então eu acho que
isso também ajuda. Aí essa personagem criou e aí eu sempre to de Paola
nas festas. O pensamento da roupa, às vezes vai de acordo com o tema, que
o organizador arruma pra festa, às vezes ah esta tem um tema e eu tento
pensar naquele tema e ver como eu tenho uma roupa que combina, e às
vezes vai com roupas mesmo que eu acho bonitas, lindas que eu ganhei ou
que eu achei em brechó que eu comprei, ou que eu peguei emprestado com
algum estilista amigo meu. (ENTREVISTAD@ 6)
nunca somos as mais bafônicas da festa, sempre vai ter alguém que vai
arrasar. Mas acaba que a gente também, como fica muito preocupada com
esse lado da performance, e de se preparar para isso, as vezes olha o que a
gente já tem e se encaixa ali. A não ser que seja uma edição assim, essa
edição é foda, mas sair atrás de um figurino, a gente compra o figurino juntas
para entrar. Mas a gente sempre tem essa preocupação com o figurino sim,
a gente nunca vai de vestido de to indo pra balada, isso assim é jamais, a
gente sempre vai fazer uma construção que tenha a ver com o tema e que
tenha a ver com o que a gente vai fazer, claro, que não atrapalhe a nossa
performance. Tem toda essa parte, porque também não dá pra colocar
qualquer roupa, porque não é qualquer coisa que funciona.
(ENTREVISTAD@ 8)
Não sei, eu to pensando assim nas pessoas que eu sei que vão lá, são
pessoas que curtem o rolê alternativo e querem ver alguma coisa diferente,
que não tá afim de uma balada normal, não ta afim de só chegar beber, beijar
na boca, querem ver uma coisa diferente. Eu acho que virou uma coisa, um
ponto forte cultural da cidade, então eu conheço pessoas que vão lá para ver
o duelo de vogue elas não vão lá pra festa, elas não vão lá porque elas
querem curtir a noite elas vão lá porque elas querem ver o duelo de vogue,
não é tipo assim, quero ir pra balada, é tipo quero ir ver o duelo de vogue e
vou curtir a balada junto, então eu já muita gente que chegou, sentou,
levantou e foi embora, que foi lá para isso. Não foi para dançar, pra elas
dançarem, não pra ela ver as pessoas, ver os amigos e ficar lá até 3 horas
da manhã. Ela foi lá sentou na cadeirinha, assisti, levanta e vai embora. E da
uma sensação assim, onde que tava escondido isso, esse tempo todo e tá
escancarado, isso que é mais doido. E o tanto de gente que eu não conheço,
e que fala nossa eu sou doida pra ir no duelo de vogue, que legal que doido.
É isso que eu falo quando todo mundo conhece, todo mundo sabe o que ta
acontecendo, já ouviu falar, quem ta a fim de saber o que ta acontecendo e
procura mesmo. E a outra questão nossa ta movimento e porque toda vez a
gente pergunta quem que nunca veio no duelo de vogue e é um tanto de mão
que levanta toda vez, olha só a galera que ta movimentando. A primeira vez
que os meus pais foram foi no duelo de vogue foi lá no galpão a festa. Aí meu
pai entrou atrás do bala perdida, o bala perdida lá com a bunda de fora e meia
arrastão, eu vendo aquela cena, pensando o que meu pai vai achar, eu super
tensa, porque eles não conheciam, eles nunca tinham ido e por mais que eu
falasse o que era, eles não tinham ideia realmente, se pra gente é um tava
na cara, imagina pros meus pais de 60 anos. Eles foram sentaram lá no
negocio do galpão, eu olhava para meus pais eles estavam sorrindo de orelha
a orelha, batendo palma e aplaudindo e achando a coisa mais legal do
mundo, sabe foi um dia especial pra mim isso, depois que eles viram que eles
entenderam e falaram: o que vocês fazem é tipo incrível é muito importante.
(ENTREVISTAD@ 8)
Eu acho que quem vai pra Dengue de rua, essa pessoa que saiu de casa e
pensou: eu vou pro Dengue rua, já é o frequentador da Dengue normal, claro
que quando você faz o evento na rua você vai se deparar com aquele público
espontâneo que já tava ali, que uns ficam e outros não, esse publico
espontâneo é o publico da rua mesmo que ta passando, que pode ter desde
alguém que é executivo e tava lá passando até um morador de rua e vai
participar da festa, então assim, isso vai variar, por exemplo, quando foi
dentro FIT era no viaduto, mas era uma programação do FIT então tinha
pessoas que tavam porque naquele viaduto tava acontecendo muitas outras
atrações. Então foram pessoas que estavam indo por conta de outras
atrações do FIT e se depararam com a Dengue e ficaram. Eu lembro no dia
da rua tinha uma mãe com uma filha pequena, que provavelmente foram pra
ver outras coisas, mas aí viu aquela festa e ficou, a filha foi tirar foto com a
gente, a filha ficou louca com a minha plataforma, ai eu mostrei pra ela como
que fazia com os balões que eu tava cheia de balões vermelhos na cabeça,
atraiu um tanto de criança, então aí foi um outro público diferente. Mas foi
mais talvez pela localização, ta dentro de um evento que acontece na rua.
(ENTREVISTAD@ 6)
Eu acho que é porque é muito foda você sair à noite, assim pra gente que é
mulher é barra, sabe. Então assim, eu acho que as meninas ficam com medo
mesmo sabe, da volta pra casa. Ultimamente eu tô optando ir e voltar de taxi
ou Uber. Porque tá muito perigoso, nossa o centro então, assim pra gente
que é mulher... Até teve uma vez que eu voltei de ônibus, eu tava sozinha no
ponto de ônibus e assim eu tava sentada e passou um homem e puxou meu
cabelo e assim, sabe quando você fica sem reação? Eu tava sozinha, vai que
eu faço alguma coisa, ah sei lá ele chama os amigos, então assim pra gente
que é mulher andar em BH ta complicado. (ENTREVISTAD@ 3)
85
Não importa o que, que você é, ou o que você faz, se é hetero, gay, travesti
e trans, ela te acolhe. Você pode ir lá de qualquer coisa, você ir lá com a sua
cueca em cima da sua cabeça que todo mundo vai ficar, linda, arrasou,
entendeu. Eu acho que pro LGBT é importante a gente ter esse incentivo,
essa autoestima, porque a gente é muito diminuída aqui fora. Então a gente
precisa de palavra positiva, a gente precisa de ouvir, nossa você está linda,
independente se você está com uma maquiagem assim toda errada. Mas
você tá linda assim. Lógico que existe não só o lado bom, mas eu penso na
positividade, sou uma pessoa positiva. (ENTREVISTAD@ 4)
tive que ouvir aqueles shades na minha fuça eu entendi que aquilo ia totalmente
contra o que o vogue quer, ou que o vogue deveria ser. O vogue é um espiral
pra cima, o vogue a, ideia dele é te elevar pra cima, então você pega esses
elementos dessa cultura hegemônica que são as revistas de moda que tão
tentando ditar um padrão uma norma, você pega isso pra si e recria, reinventa.
O que ele fazia era isso. Na hora que eu saí, eu tinha ganhado, mas eu tinha
ouvido tanta coisa, naquele dia ele não falou nenhum machismo comigo. E que
é um negocio que pra quem ta assistindo é fantástico, cumpre um papel assim
meio “praça é nossa” de humor e detona o outro assim, mas pra quem tá
participando eu saí me sentindo um lixo. Eu saí me sentindo um lixo, eu
comentei com um amigo na hora e falei que eu não gostei. Eu acho importante
as pessoas saberem. Aí teve caso de transfobia com a uma das
frequentadoras. (ENTREVISTAD@ 7)
Já teve até uma Dengue Debate, falando muito sobre machismo, de parar pra
pensar porque tem muito, eu enxergo no meu dia a dia e na Dengue também,
homens gay machistas pra caralho. Porque só quer saber de homem, só
homem que importa. Já não basta, como que uma minoria consegue diminuir
outra minoria, isso pra mim não faz sentido nenhum. Mas tem muito e no
sentido assim, tem um homem e uma mulher batalhando, e tem mais homem
na festa, aí a galera apaixona por esse cara, que é normal, o cara é gato é
gostoso, começa a ovacionar ele pra caralho e começa diminuir a mina. Ao
88
A gente fez aquele debate e um dos participantes falou uma coisa que eu
achei muito incrível, ele falou que esse evento é um evento que gera
promoção à saúde, é um evento de promoção da saúde. E eu já trabalhei na
assessoria de comunicação da faculdade de medicina, então eu sei o que é
promoção da saúde. Existem coisas que melhoram a sua qualidade de vida
e isso é tipo promoção da saúde. Você ter uma família com todos os membros
vivos, você não vir de um lar desfeito, você ser criado pelo seu pai e pela sua
mãe, você ter socialização que te faça bem, isso tudo e promotor da saúde,
você ter uma vista bonita, você ter plantas, tudo isso é promoção da saúde.
São coisas que não vão te livrar de nenhuma doença. Quando ele falou isso
eu entendi de novo a função da Dengue que eu achava que tava se perdendo.
Aí rolou essa historia do debate, foi a primeira vez que eu me posicionei que
eu falei em público, acho que na vida, tirando a rádio, tirando as coisas da
rádio, eu saí exausta, parece que eu tinha sido atropelada por um caminhão,
é muito ruim você tá no spotlight na cara das pessoas sendo olhada, e as
pessoas escutando o que você ia falar, e eu não se você lembra que a
discussão tava muito assim, Michel Temer, Dilma impeachment, porque foi
bem na época, um dia antes rolou alguma coisa e eu vi que tava se desviando
e eu falei, eu não vou me perdoar se eu sair daqui sem tocar nesse assunto,
e aí eu fui e falei assim, gente esse papo é muito importante, mas a gente
veio pra discutir outra coisa que são violências que tão rolando dentro dessa
festa, aí falei tudo que eu falei pra você. (ENTREVISTAD@ 7)
foram tomadas e, ao que tudo indica, vão continuar sendo, visto que a Dengue é uma
festa aberta ao público.
São atitudes como estas, de conversa, esclarecimento e exposição dos
problemas vividos que fazem a diferença no convívio social. Mesmo sendo apenas
uma festa, atitudes muito importantes são tomadas dentro desse espaço. Além disso,
para a visibilidade LGBT, estes aspectos são de suma importância, uma vez que,
através do convívio e da resolução de problemas de forma harmônica, há uma maior
possibilidade de mudança e, principalmente, de difusão de informação, para minimizar
a reprodução de preconceitos
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, ao longo desta pesquisa, entender como se dá a construção de
subjetividades momentâneas no momento festivo, e foi possível observar que os
aspectos percebidos sobre a festa na etnografia se confirmam na opinião dos
entrevistados. Vimos que a Dengue não se apresenta apenas como um espaço de
diversão, mas também como um espaço de questionamento das normas
hegemônicas de gênero e de sexualidade, de militância, de resistência e de luta
política.
A possibilidade de usar os estudos Queer como referencial teórico desta
dissertação se deu devido aos questionamentos das normas hegemônicas de gênero
e sexualidade que a Dengue promove. A festa resgata o movimento de contra cultura
do vogue dos Estados Unidos dos anos 1980, que foi criado para enaltecer a
comunidade LGBT da época, extremamente estigmatizada. O momento das balls era
a possibilidade que estas pessoas encontravam para exercerem suas identidades,
independente do que as normas pregavam. A Dengue ressignificou o movimento, no
que diz respeito ao contexto, e também se apresenta como um espaço destinado a
acolher a diferença, principalmente no que concerne à identidade de gênero,
possibilitando a manifestação das identidades sexuais indo em oposição aos padrões
binários designados pela biologia.
Vimos que o gênero é uma categoria que deve ser analisada pelo viés da
performatividade, visto que é construído discursivamente, e não biologicamente, e os
atores festivos da Dengue ressaltam este aspecto em seus corpos dissidentes, já que,
através da montação, embaralham as categorias identitárias, criando uma perspectiva
pautada na performatividade. A montação é direcionada pelos temas da festa ou pela
própria criatividade do frequentador. É interessante pontuar também que algumas
pessoas utilizam deste artifício para passar uma mensagem, com conotações políticas
ou no sentido de reivindicar o direito de construir sua própria imagem.
A festa se apresenta como um espaço múltiplo em diversos sentidos. Seja em
relação ao espaço onde acontece, aos frequentadores, às possibilidades identitárias
que a festa fomenta, às parcerias que realiza com outros movimentos culturais da
cidade. Todos estes aspectos ressaltam a capacidade de promover deslocamentos.
Vimos, nas entrevistas, o papel transformador da festa, seja no âmbito pessoal,
no sentido de desconstruir certos preconceitos, como também no coletivo, visto que
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REFERÊNCIAS
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Versão para eBook. eBooksBrasil.com. Fonte Digital Documento da Autora Copyright:
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