Festivais Da Canção Como Eventos de Oposição Ao Regime Militar Brasileiro
Festivais Da Canção Como Eventos de Oposição Ao Regime Militar Brasileiro
Festivais Da Canção Como Eventos de Oposição Ao Regime Militar Brasileiro
Marcos Napolitano *
Na segunda metade dos anos 60, o Long Playing (LP) foi o suporte téc
nico que permitia consolidar um elenco fixo de compositores/intérpretes
(cuja realização comercial era mais garantida do que a antiga fragmentação de
intérpretes dependentes de criadores). Por outro lado, os programas musicais
da TV, sobretudo os festivais da canção da TV Record de São Paulo, foram os
veículos apropriados para testar os novos artistas e suas obras, perante um pií
blico ainda difuso e pouco segmentado, sem preferências completamente ma
peadas e delimitadas. Entre os estilos de canção mais importantes para a re
novação da cena musical brasileira e latino-americana, naquele contexto, des
tacou-se a canção engajada1 que no Brasil confundiu-se com a sigla MPB
(Música Popular Brasileira).
A “era dos festivais” conheceu um enorme incremento em fins de 1966,
com o grande sucesso popular ocorrido em função do II Festival de MPB da
TV Record. Mas a fórmula televisual do festival da canção surgiu na TV bra
sileira no ano anterior. Em 1965, a TV Excelsior tentou capitalizar parte do in
teresse renovado por música brasileira e organizou um festival pioneiro. Já em
1966, a cidade do Rio de Janeiro tentava se reciclar, para retomar o título de
“capital” da música popular, patrocinando o Festival Internacional da Canção.*1
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Mas as maiores expectativas ficaram por conta do III Festival da MPB da Re-
cord, anunciado como uma verdadeira “ofensiva” contra a Jovem Guarda e
como tal conseguiu atrair não só o interesse dos grandes criadores, como aca
bou lançando novos astros.
Inspirando-se no Festival da Canção de San Remo,234o produtor de TV
Solano Ribeiro pretendia consolidar São Paulo como a nova “capital” da mú
sica brasileira, reagindo à famosa frase de Vinícius de Moraes que havia qua
lificado a cidade como “o túmulo do Samba”. Percebendo o crescente interes
se por música brasileira, sobretudo no meio universitário e tendo o espaço
aberto pelo sucesso dos programas musicais da TV Record, Solano Ribeiro
conseguiu realizar o I Festival de MPB, ainda na TV Excelsior,' em mar-
ço/abril de 1965.
Neste festival, Elis Regina confirmaria seu estrelato, ganhando o pri
meiro prêmio do I Festival Nacional de Música Poptdar, organizado pela TV
Excelsior, que inaugurou o ciclo de festivais da canção. A música ganhadora,
Arrastão, da parceria Edu Lobo e Vinícius de Moraes, logo se transformaria
num paradigma de criação para futuros festivais/ A letra de Vinícius dava se-
qüência à temática “popular”, apontando a união dos pescadores para vencer
as dificuldades de sobrevivência, com citação ao sincretismo religioso subme
tido a um uso “consciente” e cheio de vitalidade.
Em outubro de 1966, uma nova surpresa tomou conta do panorama
musical brasileiro. O II Festival de MPB da TV Record superou todas as ex-
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rum” e a “feira”, que entre 1966 e 1967 amda se mantinha, já pendia totalmcii
te para o segundo termo no final da década. No contexto específico cm qucs
tão, quando parte das expectativas políticas da resistência civil ao regime con
vergiam para a MPB, este processo decretou o fim dos festivais.
Geraldo Vandré, um dos compositores de Disparada autodefinia o papel
da canção no panorama da MPB renovada, dentro da linha de “comunicabili
dade” defendida pelo manifesto do Centro Popular de Cultura da UNÍ., de
1962: “Depois da fase de nordestinização onde são muito importantes l du lobo e
Sérgio Ricardo, tem a fase de ‘Disparada’ que acho fundamental: abre uma pers
pectiva para a moda de viola do centro-sul do Brasil. Toda manifestação de >iiliu
ra nacional que não tem apoio na classe média urbana, a qual se defende e (ac ea
1er suas razões, não tem condições de afirmação dentro da mentalidade mu ional
A moda de viola é a mais proletária destas manifestações. 'Disparada' i/uebiim
esse preconceito da classe média, não pela pobreza harmônica ou poelii a i ... I we
nifica a única forma de cantar de 60% a 70% da população brasileira. populäres
rurais dos estados de Mato Grosso, Goiás, Minas, Paraná, Santa ( atarina e Um
Grande do Sul. ‘Disparada’ é por assim dizer, uma filha de ‘Matraga. /\ primeira
experiência que fiz com a música do Centro-sul foi justamente pra ‘Matraga"'.'
Chico Buarque de Hollanda, já em 1966, despontava como um grande
“vendedor” de canções no Brasil, ao lado de Roberto Carlos e Elis Regina. Ao
mesmo tempo que se tornava um dos nomes mais populares da “era dos fés
tivais”, rompendo os limites do circuito musical da MPB engajada, ampliando
efetivamente o público consumidor de musica brasileira. “Emerso no centro da
década de 60, Chico nada tinha a ver com as correntes típicas desses anos. Seu
ponto de partida formal era João Gilberto (no manejo do violão e na colocação
da voz) mas seu objeto era a canção-vivência, esquadrinhada por pioneiros como
Noel Rosa e Ismael Silva, mas sem continuidade desde o alastramento desbraga
do da paixão pelos boleros e sambas-canções das décadas de 40 e 50 e desde a es
quematização dos conteúdos passionais empreendida pela Bossa Nova ( ...) Es
banjava habilidade e vocação numa época em que o mercado cultural ainda mio9
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Não foi por coincidência que ambos foram muito bem recebidos por faixas
mais amplas do público, que até então talvez não consumissem .1 “moderna"
MPB. Elis e Chico, por caminhos diferentes, ampliaram o campo de penetra
ção social cia MPB, tornando-a definitivamente um sucesso popularizado que
rompia os limites do público estritamente jovem e universitário.
Após o II Festival de MPB da TV Record, duas novas personalidades
criativas se afirmavam para o grande público: Chico Buarque de I lollanda e
Geraldo Vandré. Entre 1966 e 1968, estes dois compositores/intérpretcs estive
ram no centro dos eventos festivalescos e suas trajetórias são expressões fim
damentais acerca das mudanças que o mercado fonográfico passava, ciilmi
nando na institucionalização da MPB como carro-chefe da moderna indiisti ia
fonográfica brasileira. Chico Buarque logo se tornou um “ídolo de massas",
cujo consumo de imagem potencializava a aceitação popular do seu lalenlo
Para Vandré, o sucesso e a aceitação do público nunca foi linear e ...........agem
pessoal não muito assimilável pela mídia televisual. Se Elis Regina deu o pi 1
meiro grande salto de popularidade para a MPB, Vandré e Chico podem sei
considerados como os consolidadores desta popularidade.
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Nara Leão e Edu Lobo seguiam sendo referências importantes para o público
nascido em torno da BN, nomes como Elis Regina, Geraldo Vandré e mesmo
Chico Buarque se ligavam a outras tradições, de maior aceitação entre os seg
mentos mais amplos da classe média que passou a se constituir como o públi
co televisual por excelência.
O triunfalismo em torno da MPB tomou conta da imprensa e assumiu
ares de “resistência” ao regime militar. Por exemplo, o Jornal do Brasil escre
veu: “A noite de 10/10/1966 entrou para a história da música popular brasileira
não apenas como a consagração de Chico Buarque ou das duplas Geraldo Van
dré e Theo de Barros ( ...) mas como a volta da canção ao povo. Ninguém pode
ria imãginar que três horas mais tarde, numa noite fria e chuvosa, o povo daria
tia rua a sua resposta ao pessimismo que dominava os meios musicais desde que
o público do Fino da Bossa desapareceu do Teatro Record para dar lugar à pla
téia da Jovem Guarda ( ...) A grande vitória daquela noite não era dos autores
premiados, mas do compositor brasileiro que afirmava a força de sua música jus
tamente no lugar onde surgiu a ameaçadora onda do Iêiêiê”.1516
O mesmo tom épico pode se notar na Folha de S. Paulo que destacou a
“proeza” realizada por uma marcha rancho e uma moda de viola: ser mais po
pulares que o Iêiêiê."' O entusiasmo da imprensa liberal, já bem menos empol
gada com os militares no poder, com os festivais tinha um pano de fundo bem
delimitado. O recrudescimento das lutas estudantis (setembro de 1966) e o
lançamento da Frente Ampla (06 de outubro), cujo manifesto era assinado por
Carlos Lacerda e Juscelino Kubitscheck, incrementavam o clima de oposicio-
nismo na sociedade civil. O destaque da imprensa não pode ser visto como
um simples registro jornalístico. O elogio à vitória da MPB contra o Iêiêiê, le
vando-se em conta toda a carga ideológica deste embate, ocorre num momen
to de afastamento da corrente liberal, hegemônica nos jornais do eixo Rio-São
Paulo, em relação aó regime militar. Por volta de 1966, setores liberais se afas
taram do apoio incondicional ao governo Castelo Branco, tido como respon
sável pela recessão econômica. Além disso, o AI-2 e o AI-3, aos olhos dos libe
rais antes entusiastas do golpe, pareciam aprofundar o regime político “de ex-
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ceção”, afastando os civis da disputa pelo poder, pelo menos a médio prazo. A
MPB, naquele contexto, galvanizou um conjunto difuso de expectativas da so
ciedade civil, passando a concentrar as atenções de uma “cultura de oposição"
que, timidamente, começava a se formar também em setores da imprensa li
beral.17 O triunfo da MPB era, num certo sentido, o triunfo do “povo n.iç.m",
símbolo da resistência política, que ressurgia nos discursos apologeli. o . •la
imprensa e de alguns intelectuais de oposição. O triunfo da MPB eia lambi in
a materialização da articulação entre as falas dos intelectuais e do "povo",. a
tegorias que deram sentido ao imaginário político entre 1961 e I9<>8.
Neste contexto, o II Festival de MPB da TV Record de 1*•>(><> loi af.ado
à condição de uma esfera pública não oficial, amplificada pelo caratei lelevi
suai do evento. Nesta “esfera pública”,18 o “povo”, simbolicamente, voltava a
manifestar num contexto de repolitização geral da sociedade, triunfando nas
canções de MPB que eram vistas como expressão de sua própria vo/,. Este ima
ginário parece estar por trás das matérias jornalísticas sobre os festivais (ate
1968, pelo menos). Mas a relação entre imprensa e festivais, não estava isenta
de tensões. Por vezes, a imprensa era também o espaço de expressão dos inte
resses da indústria fonográfica e televisual que procurava formar critérios de
apreciação e julgamento estético, conforme o tipo de oferta que lhe era mais
interessante.19
O crítico do Jornal do Brasil, José Carlos de Oliveira, assumiu explk i
tamente essa interpretação “sociológica” dos festivais, que se tornou a pritu i
pal lente para enxergar o evento. “Nesses festivais, o povo expressa claranientc
sua paixão pela controvérsia c o seu amor às decisões pelas quais todos sejam res
ponsáveis. Se não podemos escolher o presidente da República, nos irmanamos
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Ai#/, lll
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numa decisão feita de solidariedade’?" Numa clara delimitarão cio lugar social
ocupado pela canção nac]uele contexto, o cronista concluía, afirmando que,
entre todas as “mazelas políticas e econômicas” do Brasil “resta-nos apenas a
esperança de que a qualquer momento a banda volte a passar’?' Apesar de ou
torgar à música um poder catalisador das expectativas e frustrações coletivas,
é interessante notar que sua argumentação conduzia ao papel dos festivais na
realização da catarse política dos setores derrotados em 1964.
Nos meios mais intelectualizados, ecoados pela imprensa em geral,
construía-se uma perspectiva básica que foi incorporada pela memória social
acerca do período: o triunfo da MPB nos festivais (ou seja, no mercado) era,
ao mesmo tempo, um triunfo político, termômetro da popularização de uma
cultura de resistência civil ao regime militar. Uma extensa reportagem publi
cada na influente revista Realidade confirmava esta percepção, já esboçada du
rante o Festival da Reco rd de 1966. Dizia ela: “Nestes oito anos de vida a Bossa
Nova mudou até de nome. Agora é a moderna música popular brasileira-MPB
( ...) Hoje é a própria música popular, influindo e recebendo influências das ma
nifestações musicais de todas as regiões do Brasil”? 1A análise da revista enfatiza
va que as empresas do disco “descobriram recentemente” que a MPB pode vi
rar o jogo em relação ao Iêiêiê, citando alguns dados:
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214
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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