1

MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA (nota tcnica para CGEE-GSI) Ilse Scherer-Warren (NPMS/UFSC)

Apresentao As lutas pela terra, desenvolvidas e organizadas atravs de movimentos sociais no campo brasileiro, so lutas histricas, mas que foram se complexificando e se ampliando no que diz respeito aos direitos de cidadania s populaes rurais sujeitas a vrias formas de excluso social. O fortalecimento e a visibilidade pblica destas lutas tem recado frequentemente em um ator principal - o MST -, mas o que merece ser discutido em que medida isso fruto de suas articulaes e alianas num conjunto muito mais amplo de movimentos sociais, atravs de redes interorganizacionais, no formalizadas ou semi-formalizadas e tpicas da sociedade da informao. Portanto, considera-se que para se examinar a relao entre visibilidade pblica dos movimentos rurais e o contedo programtico de suas lutas pela terra e das demandas por direitos, as seguintes questes devero ser contempladas em nossa exposio1: 1.Quais as principais demandas materiais, simblicas e polticas dos MS e como se traduzem em direitos humanos clssicos (civis, sociais, polticos) ou em novos direitos da cidadania (culturais, ecolgicos e patrimnios da humanidade)? 2.Qual o formato organizacional desses movimentos sociais que buscam respostas para uma diversidade de demandas por direitos? 3.Quais os atores polticos estratgicos na relao entre movimentos e na relao entre rede de movimentos e sociedade? 4.Como se d a relao entre movimentos rurais, Estado e outros segmentos sociais? 5.Concluso

Alguns dos pontos aqui desenvolvidos encontram-se no texto de nossa autoria A poltica dos movimentos sociais para o mundo rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v.15, n. 1, 2007, p. 5-22; e na respectiva verso em ingls, Scherer-Warren, Ilse. The social movements' politics for the rural world. Translated by Pedro Stoeckli Pires. Estud.soc.agric., 2007, vol.3, special edition, p.0-0. ISSN 1413-0580, acesso: http://socialsciences.scielo.org/cgi-bin/wxis.exe/iah/. Vide outros complementos e desdobramentos na bibliografia final.

Ilse Scherer-Warren

1. Lutas pela terra demandas materiais, simblicas e polticas Trs principais nveis de lutas dos movimentos sociais, em especial no contexto das demandas por reforma agrria, nas ltimas dcadas, podem ser observadas de forma emblemtica no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em alguns movimentos correlatos de luta pela terra, no Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA) e na co-participao da Via Campesina nestes movimentos: as demandas materiais/emergenciais do cotidiano das bases do movimento; a prxis de re-significaes simblicas e polticas nos movimentos e na sociedade; a elaborao e a poltica de reconhecimento de um novo projeto de sociedade.

Em primeiro lugar, as demandas materiais/emergenciais do cotidiano so o fator primrio de mobilizao das bases do movimento e fundamentam-se na idia de conquista de direitos humanos para populaes rurais consideradas como sujeitos de excluso histrica no Brasil. Estas lutas se legitimam a partir de sua capacidade de buscar resposta s carncias emergenciais de populaes rurais (ou de origem rural), e ser esta capacidade que ir atrair estas populaes a participar nas organizaes coletivas. Como a busca de respostas concretas (conquista ou legalizao da terra, recursos para produo, direitos previdencirios, sade pblica, educao no campo etc,), requer a negociao direta com o Estado e os governos, o movimento se caracteriza neste momento por seu perfil reivindicativo e a negociao poltica com o Estado o que prevalece. Enfrenta o desafio, segundo suas lideranas, de pressionar sem se deixar cooptar, o que com o governo Lula se tornou mais difcil, devido a forte identidade ideolgica que o movimento tinha com o ex-candidato Lula, antes de sua eleio. No primeiro mandato do presidente, certas bandeiras de luta ficaram suspensas para no prejudicar o processo eleitoral da re-eleio, porm atualmente esto sendo revistas, conforme exposto na avaliao a seguir.
No incio do segundo mandato, as bases comearam a perceber que a terra foi ficando cada vez mais distante dos seus sonhos. A realidade passou a ser o acampamento. As explicaes das lideranas comearam a ser contestadas... Por isso, o Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA) vai relanar a campanha pelo limite da propriedade. Esta campanha foi suspensa para atender um pedido do ento candidato a presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, em 2003. Para no provocar constrangimentos eleitorais elite rural e urbana, o FNRA aceitou o pedido. (Edlcio Vigna, INESC, 2007).

Em segundo lugar, a prxis de re-significaes simblicas e polticas nos movimentos e na sociedade opera com um momento fundamental da formao poltica e da busca de reconhecimento como ator poltico legtimo. neste nvel que se d a passagem do movimento reivindicativo para o movimento poltico propriamente dito. So fundamentais neste processo os nexos polticos e simblicos estabelecidos entre trs nveis de atuao:
Ilse Scherer-Warren

No nvel organizativo das bases do movimento opera-se, dentre outras prticas sociais, com as prticas educacionais e de formao poltica orientadas para as desconstrues e reconstrues simblicas acerca de polticas identitrias tradicionais do campesinato brasileiro e para a construo de novas identidades polticas. Por exemplo, criou-se a identidade poltica de sem-terra para os participantes do MST e de sem-terrinha para as crianas dos acampamentos e assentamentos, com um sentido pedaggico para a formao de novos cidados de direitos. No nvel poltico articulatrio, constri-se a identificao poltica coletiva e a solidariedade entre as entidades dos fruns e das redes de apoio aos movimentos de luta pela terra; discute-se as polticas nacionais prioritrias para os movimentos; busca-se as convergncias polticas e as possibilidades de construo de unidades na rede; aprende-se a conviver com as divergncias e a respeitar as diferenas de opes polticas e ideolgicas, diferenas regionais, tnicas, etrias, de gnero etc.2 No nvel de mobilizao na esfera pblica, busca-se a visibilidade poltica e o reconhecimento pblico do movimento; a adeso de simpatizantes e apoios s causas do movimento; visa-se demonstrar fora poltica e abrir canais de negociao na esfera pblica. um momento relevante para o que vem sendo denominado pela literatura sociolgica como movimento de protesto na esfera pblica. Em terceiro lugar, encontra-se a elaborao e a poltica de reconhecimento de um novo projeto de sociedade e/ou de indicativos de mudanas nos projetos hegemnicos e tradicionais na sociedade rural. Este o nvel mais politizado do movimento e corre o risco de ser tambm sujeito a assdios excessivamente ideologizados ou partidarizados ou de servir de instrumento de aparelhamento partidrio. O nvel poltico articulatrio tem um papel relevante nesta politizao, seja atravs dos fruns de debate, da atuao da Via Campesina do Brasil, da Assemblia Nacional Popular, da Semana Social Brasileira, do Frum Social Mundial e de outros eventos que aproximam as redes de movimentos sociais. No centro desta articulao, desenvolve-se o grande debate atual em torno da construo de um Novo Projeto de Nao, contemplando os seguintes aspectos em relao questo rural: 1. Em relao ao modelo de modernizao da agricultura, combate-se a mercantilizao da reforma agrria, o agronegcio, as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produo e o comrcio agrcola, alm do trabalho escravo e outras formas de subordinao no campo e prope-se uma agricultura voltada ao mercado interno, ao respeito ao meio ambiente e que estimule a cooperao agrcola e a autonomia dos trabalhadores3. 2. Em relao propriedade da terra, prope-se um limite ao tamanho da propriedade, conforme foi elaborado no documento Carta da Terra a qual, segundo as palavras de um representante do FNRA, o que d a unidade total ao movimento (at a CONTAG assinou, ajudou a construir). A carta da Terra
2 3

Sobre os princpios articulatrios nos fruns da sociedade civil, vide Scherer-Warren, 2007. Vide CARTA DO 5 CONGRESSO NACIONAL DO MST: http://www.mst.org.br, 15/06/2007.

Ilse Scherer-Warren

hoje o nosso documento principal4. Prope-se a desapropriao de todos os latifndios, das propriedades de estrangeiros e de bancos e daquelas que praticam o trabalho escravo. Luta-se pela demarcao de todas as terras dos indgenas e de comunidades remanescentes de quilombos.5 3. Quanto ao fortalecimento do movimento social, prope-se construir novas relaes de fora poltica com a sociedade e com os movimentos sociais urbanos, tendo em vista a ampliao de um movimento de massa6. Para tanto, tambm considera-se necessrio fortalecer a articulao dos movimentos sociais do campo na Via Campesina do Brasil, em todos os Estados e regies. Construir, com todos os movimentos sociais a Assemblia Popular nos municpios, regies e estados.7 No cenrio mundial, as articulaes e intercmbios se do com a Via Camponesa Transnacional, o Grito dos Excludos Continental, a ALBA Alternativa Bolivariana dos Povos das Amrica, a Caritas Internacional, a FIAN Internacional Food First Information and Action Network e atravs de atuaes no Frum Social Mundial, em suas edies no Brasil, em outros pases latinoamericanos e em outros continentes. Estas articulaes internacionais e/ou transnacionais, mencionadas pelo FNRA e pelo MST, so referncias de um movimento em rede globalizado. Nesta direo, torna-se necessrio introduzir nosso entendimento sobre a composio da sociedade civil organizada na esfera das lutas pela reforma agrria.

2. Formato organizacional dos movimentos sociais no campo Afim de clarificar como se d a composio da sociedade civil organizada na esfera das lutas pela reforma agrria e qual a diversidade de atores envolvidos neste processo articulatrio, o seguinte quadro sinptico ilustrativo8:

5 6

7 8

Entrevista com representante da coordenao do FNRA concedida ao projeto AMFES (As mltiplas faces da excluso social, coordenado por Ilse Scherer-Warren, Pesquisadora IA do CNPq, NPMS/UFSC, 2005.) Vide CARTA DO 5 CONGRESSO NACIONAL DO MST, op. cit. De fato trata-se de ampliar relaes j existentes, como nos fruns, nas redes interorganizacionais, na Consulta e Assemblia Popular, dentre outras. Vide CARTA DO 5 CONGRESSO NACIONAL DO MST, op. cit. Construdo a partir dos resultados obtidos na pesquisa de nosso Projeto AMFES, op. cit.

Ilse Scherer-Warren

Formato da sociedade civil organizada9: NVEL ORGANIZACIONAL: Entidades e movimentos sociais especficos (Associaes e sindicatos de trabalhadores rurais, acampamentos e assentamentos, pastorais, ONGs) NVEL POLTICO ARTICULATRIO: Fruns e redes interorganizacionais (FNRA, Via Campesina Brasil, Consulta Popular, Assemblia Nacional Popular, etc.) NVEL MOBILIZATRIO na esfera pblica: Marchas (da Reforma Agrria, das Margaridas10 e outras), campanhas, semanas,grito dos excludos, mutires sociais, etc.; REDE DE MOVIMENTO SOCIAL: Conjunto das prticas e polticas formada pelos 3 nveis acima (movimentos sem-terra, movimentos indgenas, quilombolas, atingidos por barragens, mulheres agricultoras, sindicalismo rural etc.) O nvel organizacional formado pelas entidades e/ou formas associativas formalizadas/institucionalizadas ou semi-formalizadas, localizadas em territrios definidos e com atuao continuada em relao ao cotidiano de sua populao-alvo. Refere-se aos denominados movimentos populares ou organizaes de base, ou aos mediadores diretos (ONGs ou pastorais, como CPT e outras), que atuam junto a estas bases. O nvel poltico articulatrio refere-se s diversas formas de intercomunicao, dilogo e articulaes polticas desenvolvidas por coletivos interorganizacionais em torno de objetivos e lutas polticas comuns como, por exemplo, no Frum Nacional de Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA), que defende a limitao do tamanho da propriedade rural, a distribuio de terra pela reforma agrria e a demarcao e titulao de terras quilombolas e indgenas, dentre outras demandas de grupos setoriais (mulheres, jovens, etc.). Entre suas estratgias inclui-se tambm a formulao de propostas de polticas sociais e participao nas polticas pblicas. Os atores no nvel mobilizatrio atuam direta e conjunturalmente na esfera pblica. Por meio desse tipo de atuao os movimentos buscam a visibilidade poltica e o reconhecimento de suas demandas junto sociedade civil, aos governos e mdia,
9 10

Para uma maior explicitao dessas categorias vide Scherer-Warren, 2006a e 2006b. A III Marcha das Margaridas, ocorrida em agosto de 2007, em Braslia, foi um evento dessa natureza, organizado pela CONTAG, e contando com a participao de cerca de 50 mil mulheres agricultoras, com uma pauta com questes do cotidiano das agricultoras at questes mais gerais como denncias sobre as condies de vida no campo, da pobreza, desigualdade, violncia e excluso das mulheres das polticas de desenvolvimento.

Ilse Scherer-Warren

Tentam, assim, assumir formas de presso e reivindicao junto esfera estatal para atendimento de suas demandas ou para a conquista de novos direitos. Os movimentos sociais rurais tm utilizado especialmente das marchas de seus participantes Braslia como estratgia deste nvel organizativo, alm de manifestaes e protestos setorizados em vrias regies do pas, dentre as quais pode-se incluir as vrias formas de ocupaes de terras pblicas e privadas e de rgos pblicos como formas de protesto pela morosidade da reforma agrria. Finalmente, a rede de movimentos sociais se define como o conjunto das prticas polticas formadas pelos trs nveis acima (organizacional, articulatrio e mobilizatrio), transcendendo as expresses meramente empricas destes nveis, rumo construo de uma lgica de movimento, que inclui a construo identitria da luta (o sujeito com uma identidade coletiva de sem-terra, definido como cidado de direitos); a definio de adversrios ou opositores sociais ou sistmicos (latifundirios, grandes empresrios do agro-negcio, etc.); e em nome de um projeto ou utopia de transformao social, cultural, poltica ou sistmica (uma sociedade mais igualitria, com justa distribuio das terras rurais para quem nela trabalha)11. H dois ltimos nveis que contribuem para a realizao de polticas sociais junto aos sujeitos-alvo dos movimentos, mas no so membros participantes dos respectivos movimentos. Um deles refere-se s contribuies financeiras para desenvolvimento de projetos sociais junto s populaes-alvo, advindas de Agncias de financiamento internacionais e nacionais e da esfera estatal. Outro diz respeito s captadoras destes recursos e que desenvolvem esses projetos sociais, atravs da prestao de servios tcnicos especializados (educao, sade, tecnologia agrcola, etc.), atravs de entidades da sociedade civil, sem fins lucrativos, denominadas de ONGs ou OSCIPs. Na avaliao do uso de recursos pblicos aplicados em projetos sociais vinculados ao Programa de Reforma Agrria, importante no confundir a funo destas entidades prestadoras de servio (OSCIPs) com o movimento social, o qual no institucionalizado e resulta de uma rede identitria, composta de atores sociais diversificados, e com propostas reivindicativas e de transformaes na vida rural e na estrutura da terra.

3. Os atores polticos estratgicos e a relao entre movimentos

O nvel poltico articulatrio - como nos fruns da sociedade civil, no FNRA, na Via Campesina do Brasil12, na Assemblia Nacional Popular13, dentre outros -
11 12

A respeito dessa definio de movimentos sociais vide TOURAINE, 1997; MELUCCI , 1996 e CASTELLS, 1996. Vide tambm desdobramentos em meus trabalhos anteriores, 1999, 2000 e 2006a. um segmento da Via Campesina Internacional, a qual tem como metas lutar pela soberania alimentar, reforma agrria, biodiversidade e meio ambiente saudvel, participao das mulheres, entre outros.

Ilse Scherer-Warren

especialmente relevante para a formulao discursiva dos direitos de cidadania, das respectivas propostas de polticas pblicas e para articulao dos iderios dos movimentos em rede. tambm, um importante momento para intercmbios com movimentos de outras demandas (urbanos, de direitos humanos etc.) e para a negociaes de pautas polticas convergentes. Tomaremos como exemplar o caso do Frum Nacional de Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA)14, para elucidar este papel poltico estratgico. O FNRA foi criado em 1995, com o objetivo de transcender as lutas mais corporativas dos movimentos sociais, atravs de uma articulao nacional do conjunto dos movimentos sociais do campo, de entidades e pessoas comprometidas com a reforma agrria e a questo da democratizao da terra. O frum no uma organizao formalmente localizada, mas um espao estratgico de debate poltico, de formulao de objetivos comuns de luta, de elaborao de princpios e de encaminhamento de aes concretas de impacto poltico. Defende um princpio orientador da ao: que a unidade do movimento forma-se no que h de consensual no conjunto dos participantes, mas quando no h unidade, a diversidade deve ser respeitada, no sentido de que cada organizao trate em seus espaos prprios de luta seus encaminhamentos no consensuais. Naturalmente, as controvrsias geram tenses, conflitos e ambiguidades dentro do Frum, mas seus elos de mediao na rede buscam as conciliaes possveis para prticas algumas vezes geradoras dessas tenses15. Assim sendo, as bandeiras de luta se alargam para incluir os diversos segmentos do Frum, mas nas questes irreconciliveis, cada entidade traa seu caminho, conforme manifestao de um entrevistado do FNRA16:
Ns s agimos como Frum quando h unidade. Na diversidade e na compreenso das diferenas. Quando no h, no se briga. Cada um age da sua maneira, mas respeitando as diferenas. Ento vamos fazer tudo o que possvel dentro do frum que tenha unidade, que tenha ao conjunta. Mas o esforo nosso da coordenao, das pessoas que pensam o frum, e que conduzem o frum, que cada vez mais a gente v fechando a unidade, em torno de idias, em torno de objetivos, de princpios e de aes concretas. Isso foi o nosso esforo desde 1994... Em 2001 sentimos a necessidade de criar uma estrutura mnima deste frum para que pudesse responder o conjunto de demandas que as entidades teriam em relao questo da terra, da gua e da agricultura familiar. Porque quando falo em terra, entra a questo da luta pela reforma agrria, questo da demarcao das terras indgenas, dos quilombolas, ribeirinhas, dos fundos de pastos, dos pescadores. Tudo que entra na questo da terra, entra a, a luta pelo meio ambiente, recursos naturais, a biodiversidade... Ns tentamos unificar esses vrios pensamentos em torno de algumas aes concretas. (Representante da coordenao do FNRA, 2005)

Portanto, pelo relato, vemos que diferentemente do que ocorria em alguns movimentos tradicionais, o respeito ao reconhecimento das diferenas vem se
13

14 15 16

um desdobramento da Consulta Popular reunida pela primeira fez em 1997, em Itaici/SP, que nasceu como um espao de articulao e mstica, com o objetivo de resgatar e construir um Projeto Popular para o Brasil. Em 2005 ocorreu a II Assemblia e, em 2007, em Belo Horizonte, a III Assemblia Nacional da Consulta Popular, j propondo a se constituir em organizao poltica propriamente dita. O FNRA est sendo um dos fruns da sociedade civil estudados em nosso projeto de pesquisa As mltiplas faces da excluso social (Projeto AMFES), em andamento, op. cit. Conforme podemos detectar em nossa pesquisa para o projeto acima. Para o Projeto AMFES, op. cit.

Ilse Scherer-Warren

tornando um imperativo relevante nestes mais novos movimentos sociais rurais. Recentemente, por ocasio do pronunciamento do Ministro Gilmar Mendes, apoiado pelos Presidentes do Senado Federal e da Cmara de Deputados, o FNRA durante o Seminrio Nacional pela Campanha do Limite da Propriedade da Terra, em Salvador/BA, retirou nota de protesto da qual selecionamos algumas afirmaes relevantes para o entendimento da dinmica dos movimentos de luta pela terra, no momento atual17.
Ao longo da historia da luta pela terra no Brasil, a atuao dos movimentos tem sido inspirada pela garantia dos direitos humanos, em especial o direito vida, dignidade dos homens e mulheres do campo e o direito e a necessidade de realizao de uma reforma agrria massiva, que contemple uma ampla e justa distribuio de terras. Lastimamos que o Presidente do STF, que o guardio da Constituio Federal, no tenha incorporado histria de luta das classes populares nacionais ...

Acrescentam, que a luta pela reforma agrria vai continuar A FAVOR da emenda constitucional que limita o tamanho da propriedade rural e pela assinatura da Portaria que atualiza os ndices de produtividade. Atualmente existem cerca de 250 mil famlias de sem-terras acampadas nas beiras das estradas... Concluem,
lamentvel quando lemos e ouvimos o Presidente do Supremo Tribunal Federal apelar para Medidas Provisrias e legislaes recentes sobre a reforma agrria, quando a Constituio Federal assegura aos cidados e cidads o direito terra aos que nela trabalham, a moradia e a uma vida digna. O papel do FNRA exigir do Estado o efetivo cumprimento da funo social da propriedade da terra, para que dela os brasileiros e brasileiras tirem seu sustento (grifo nosso).

A funo social da propriedade da terra aparece nessas avaliaes dos movimentos sociais rurais como um mecanismo limitador ao direito de propriedades improdutivas e, as vezes, resultantes de processos histricos de ocupaes no legtimas, do ponto de vista do direito coletivo terra, como a grilagem de terras, especialmente na Amaznia. Outro articulador importante dos movimentos sociais rurais tem sido a Via Campesina, sendo oportuno examinar qual os princpios identitrios que fundamentam estas articulaes. A Via Campesina tornou-se um elo relevante na rede de movimentos sociais rurais em vrios continentes na luta anti-sistmica ao modelo do agronegcio. A Campanha das sementes tornou-se um signo emblemtico sobre produo e qualidade de vida, mobilizando no apenas os movimentos camponeses mais consolidados, como o MST, mas tambm os mais recentes, como o das mulheres e dos jovens, na medida que suas questes especficas puderam ser
17

Assinaram a Nota as ENTIDADES participantes do FNRA: CONTAG MST FETRAF Brasil - CUT - CPT CRITAS BRASILEIRA MMC MPA MAB - CMP - CONIC CONDSEF Pastorais Sociais da CNBB MNDH MTL ABRA ABONG - APR ASPTA ANDES Centro de Justia Global - CESE CIMI CNASI DESER ESPLAR FASE FASER FEAB FIAN-Brasil FISENGE - IBASE IBRADES IDACO IECLB - IFAS INESC MLST PJR REDE BRASIL sobre Instituies Financeiras Multilaterais Rede Social de Justia e Direitos Humanos - RENAP SINPAF TERRA DE DIREITOS EMPRIO DO CERRADO COIABE ABRANDH ABEEF - Comisso de Justia e PAZ Grito dos Excludos Jubileu Sul/Brasil Mutiro Nacional pela Superao da Misria e da Fome.

Ilse Scherer-Warren

traduzidas para novos significados de acordo com uma viso de mundo mais igualitrio, mais saudvel e mais justo. Niemeyer (2006: 119), em tese de doutoramento sobre o assunto, diz que na Campanha das sementes
a problemtica camponesa seria conceituada de forma abrangente, associando questes que, no conjunto, corresponderiam aos direitos dos camponeses. Apesar de o foco estar nas sementes e na luta contra a propriedade intelectual dos recursos genticos, estas questes so associadas a outras questes-chave como soberania alimentar, cultura, gnero, desenvolvimento, propriedade intelectual, meio-ambiente, trabalho, direitos humanos, sade e consumo (grifo nosso).

Possibilitando-se, assim, traduzir o sentido subjetivo desta problemtica geral em vrias problemtica especficas como nas lutas das mulheres camponesas. nesta direo que a rede da Via Campesina18, a qual se expandiu no contexto das realizaes do Frum Social Mundial, criou seu espao prprio de articulao poltica global e na Amrica Latina, atravs da articulao de sentido do signo semente, que significa origem da vida, com o sentido das vrias demandas materiais e simblicas, colocadas acima, e traduzidas como novos direitos de cidadania para as populaes mais excludas de nossa sociedade19. O que vale ressaltar que na luta pelos direitos humanos, as redes nacionais e transnacionais de movimentos sociais tem conseguido mobilizar parte considervel da opinio pblica mundial a favor da efetivao e conquista de novos direitos. Em uma pesquisa sociolgica internacional, com anlise comparativa de vrios pases, e que deu origem ao livro The power of human rights International norms and domestic change (Risse; Ropp; Sikkink, 1999), foi concludo que embora a presso das redes transnacionais constituem frequentemente uma condio necessria para as conquistas domsticas (localizadas) de direitos humanos, essa no suficiente, so necessrias as mobilizaes nacionais e o fundamental papel do Estado para sua efetivao. Como em toda organizao poltica em rede, nos movimentos sociais tambm h elos estratgicos, apesar do princpio de horizontalidade defendido e que orienta a organizao do movimento em suas linhas gerais. Entretanto, esses elos no se
18

A Via Campesina uma articulao de movimentos camponeses, e est presente em quatro continentes. No Brasil, o MST compe a Via com o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), PJR (Pastoral da Juventude Rural), CPT (Comisso Pastoral da Terra), Abra (Associao Brasileira de Reforma Agrria), Feab (Federao dos Estudantes de Agronomia), PJR (Pastoral da Juventude Rural), indgenas e quilombolas. (letraviva@mst.org.br recebido em 31/10/08) 19 Em 2004 realizada a IV Conferncia Internacional da rede, no Brasil (Itaic/SP), sob o lema: Globalizemos a luta, globalizemos a esperana. Os temas da soberania alimentar, das sementes transgnicas e da reforma agrria, foram centrais. Representantes de organizaes camponesas de 80 pases compareceram, dentre as quais 18 pases de Amrica Latina e Caribe. Neste encontro foram realizadas a II Assemblia de Mulheres da Via Campesina e a I Assemblia de Jovens Camponeses da Via Campesina, articulaes que praticaram um ativismo de ao-direta nos anos subseqentes, como nas ocupaes dos canteiros da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul. As manifestaes tambm tm sido em solidariedade aos indgenas e quilombolas, especialmente do Esprito Santo, que perderam suas terras para a referida empresa, bem como, contra o mercado de transgnicos praticado pela Monsanto, Syngenta e Stora Enso .

Ilse Scherer-Warren

10

definem por uma hierarquia burocratizada e, sim, por sua funo ou legitimidade poltica dentro da articulao. No caso do FNRA foram apontados como atores polticos estratgicos de destaque os denominados movimentos de massa20: MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), MMA (Movimento das Mulheres Agricultoras), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), CONTAG (Confederao dos Trabalhadores na Agricultura), MTL (Movimento Terra, Trabalho e Liberdade), MAB (Movimento do Atingidos pelas Barragens), dentre outros. H tambm uma tendncia dos atores polticos mais estratgicos do mundo rural atuarem em outros fruns da sociedade civil de carter popular. Nesta direo o MST foi reconhecido como o movimento social de maior expressividade poltica pela quase totalidade dos fruns nacionais21 de nossa pesquisa, o que atribui a esse movimento sua legitimidade no seio da sociedade civil organizada, conforme ilustrado atravs do programa NetDraw/Ucinet, a seguir22:

Movimentos sociais mais importantes no Brasil segundo diversos Fruns da Sociedade civil

A relevncia do MST no se d apenas por sua participao enquanto membro destes fruns, mas por sua capacidade de liderana (elo estratgico) nas articulaes mais abrangentes das quais os fruns participam, e por sua visibilidade pblica nas redes de movimentos sociais nacionais e globais. 4. A difcil e contraditria relao entre movimentos rurais, Estado e outros segmentos da sociedade civil.

20 21

22

Entrevista de representante da coordenao do FNRA. ao projeto acima. Em 10 dos 11 fruns pesquisados, cf. projeto acima: AMB Articulao das Mulheres Brasileiras; FBO Frum Brasil do Oramento; FLC Frum do Lixo e Cidadania; FBES Frum Brasileiro de Economia Solidria; FNRA Frum Nacional de Reforma Agrria; FENDH Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos; FNMN Frum Nacional de Mulheres Negras; Frum-PETI F. Nacional de Preveno e Erradicao do Trabalho Infantil; FDDI - Frum em Defesa dos Direitos Indgenas; Inter-redes Direitos e Poltica; ABONG Associao Brasileira de ONGs. Projeto AMFES, conforme banner do NPMS/UFSC, de autoria de Ilse Scherer-Warren, Suzana Maria Pozzer da Silveira e Viviani Teixeira. Redes de Combate s Mltiplas Faces da Excluso Social. 58 Reunio da SBPC, 2006.

Ilse Scherer-Warren

11

A relevncia do MST no se d apenas por sua participao enquanto membro desses fruns, mas por sua capacidade de liderana (elo estratgico) nas articulaes mais abrangentes das quais os fruns participam, e por sua visibilidade pblica nas redes de movimentos sociais nacionais e mundiais. 4. A relao entre movimentos sociais, Estado e outros segmentos da sociedade A necessidade que os movimentos sociais no campo tm de manter uma constante negociao com o Estado e com os governos para atender s demandas do cotidiano das bases de suas organizaes vem gerando, especialmente durante o governo Lula, uma relao com muitas ambiguidades. Pois, ao mesmo tempo que h uma relao de reciprocidade poltica, de participao de lideranas camponesas na gesto pblica do Estado, de busca de novos espaos de participao, como nas conferncias, nos conselhos e na discusso do Plano Plurianual (PPA 2008/2011)23; por outro lado, os movimentos manifestam a necessidade do desenvolvimento de uma conscincia crtica sobre os rumos neoliberais que o governo vem assumindo (palavras de lideranas dos movimentos), alm da manuteno da autonomia poltica do movimento social, idia que vem crescendo atualmente nos movimentos sociais no campo. Alm disso, a obrigao de lidar com uma multiplicidade de agendas, que vo das demandas cotidianas das populaes excludas defesa de projetos mais duradouros de mudana social, de vis republicano, de acordo com o discurso atual de Stedile24, frequentemente gera uma relao ambivalente entre movimentos e Estado e/ou governos em suas vrias escalas ou instituies, mais, ou menos, receptivas aos diversos movimentos. As demandas mais pragmticas so melhor acolhidas, mas os referenciais politizados so mais rejeitados.25 O confronto com a poltica das elites agrrias torna-se cada vez mais complexo: de um lado, a luta contnua contra o latifndio tradicional, improdutivo e de imensas propriedades; de outro, a luta contra as modernas elites rurais, do agronegcio, de produo biotecnologizada e vinculada ao capital financeiro. E, por fim, soma-se uma luta pelo reconhecimento de etnias colonizadas, social e politicamente excludas (indgenas e quilombolas que reivindicam o direito de manuteno de seus territrios), advogam a conquista de novos direitos coletivos, sociais, culturais, ambientais e a participao poltica (para mulheres, jovens, trabalhadores pobres do campo, atingidos por barragens, dentre outros). Nesta dimenso, enfrentam tambm o desafio de lutar contra a criminalizao dos
Maiores detalhes em Vigna, 2007. Em entrevista concedida Revista poca, afirma Para viabilizar uma nova reforma agrria, ser preciso antes derrotar o neoliberalismo. O primeiro fundamento desse novo tipo de reforma agrria a democratizao da propriedade da terra, que no uma bandeira socialista, mas republicana, in: http://www.portalpopular.org.br. 25 Por parte da esfera governamental, alguns acadmicos e a grande mdia, especialmente.
24
23

Ilse Scherer-Warren

12

movimentos sociais no campo. O MST, sendo o movimento social mais fortemente organizado no Brasil contemporneo e apontado como referncia mundial de resistncia de populaes marginalizadas, tem se consolidado como a representao poltica mais expressiva dos conflitos sociais no campo e instigado a criao de organizaes contra reforma agrria, como a UDR, a bancada dos ruralista no Congresso e a constante tentativa de sua criminalizao atravs da mdia de massa e mesmo de segmentos do poder judicirio. O pice deste conflito vem ocorrendo nos ltimos anos, como a represso violenta da polcia em alguns locais. Vale mencionar a manifestao do MST, juntamente com outros movimentos sociais, em Porto Alegre (em 2008) e a subsequente tentativa de criminalizao legal e proibio do movimento por parte do poder judicirio do estado apoiado por foras de oposio no campo (latifundirios, agronegcio). Em torno deste caso, o campo do conflito se ampliou, no s porque provocou no imaginrio de muitos cidados a memria da represso aos movimentos sociais na poca da ditadura militar (era momento da comemorao dos 40 anos dos movimentos de maio de 1968, em escala mundial), mas tambm porque permitiu traduzir o evento como um desrespeito a direitos de cidadania defendidos pelo conjunto de movimentos sociais, tais como os de ir e vir, participao em manifestaes pblicas e direito de expresso poltica. A reao tambm se estendeu ao campo das representaes polticas, sintetizado nas palavras do deputado federal Maurcio Rands (PE): A ata do MP [Ministrio Pblico] gacho uma demonstrao de tudo que um rgo de Estado no pode fazer, pois contm preconceito e tentativa de criminalizao de um movimento social (JC OnLine Recife, 9/7/08); bem como se estendeu a vrios setores da sociedade civil, militantes de direitos humanos, intelectuais, artistas, etc. Alm disso, a tentativa do Ministrio Pblico do RGS em comparar o MST FARC e a redes terroristas deve ser discutida poltica e academicamente. O seguinte quadro comparativo entre uma rede de movimentos sociais e uma rede terrorista, nos indica como de fato o MST pertence em totalidade ao primeiro tipo de rede poltica:

Tipos de redes
Tipos Visibilidade pblica Estratgia Redes de presso e de informao pblicas Atua atravs de ns /guetos secretos Objetivos Emancipatrios e democratizantes Empoderamento Sociedade civil

MOVIMENTOS Esfera pblica e SOCIAIS transparncia REDES TERRORISTA Clulas clandestinas

Coero violenta e Grupos totalitria fundamentalistas

Fonte: Ilse Scherer-Warren, 200226

26

Trabalho apresentado no Seminrio Democracy and Recognition: a North-South Debate, Berlim, abril de 2002.

Ilse Scherer-Warren

13

Para checar esta hiptese, deve-se verificar em que medida a participao dos atores organizados nas redes rurais tem tido impacto no campo democrtico, o que pode ser examinado a partir de trs ngulos: 1 - o da democratizao no interior da prpria rede; 2 - o da participao da rede nos processos de democratizao da esfera pblica; 3 - o papel da rede na promoo da justia social, da eqidade e, portanto, da democratizao da riqueza e de avanos na cidadania. O pesquisador Tavares dos Santos (2000), numa retrospectiva das lutas sociais no campo, concluiu que h sim avanos na promoo da cidadania dos sujeitos das redes de movimentos, para alm dos registros de conflitos e violncias as quais estes sujeitos tem sido submetidos pelas foras do capital e as vezes pelo prprio Estado:
Delimitou-se, portanto, um campo de conflitos agrrios, no qual a proposta de reforma agrria aparece, uma vez mais, como possibilidade de aprofundamento da democracia na sociedade brasileira. A reiterao das lutas sociais no campo, no entanto, tem demonstrado, neste sculo, que a capacidade da ao histrica das classes, categorias e grupos sociais dominadas tem conseguido construir, alm das variadas formas de violncia, modos de viver, de produzir e de falar que ilustram possibilidades de uma relao de alteridade mais equnime e solidria, construindo uma nova forma de cidadania (grifos nossos).

A construo da cidadania no contexto de um novo tipo de participao poltico organizativa do movimento interpretada, pelo prprio MST, como um espao de relevantes mudanas de significados no cotidiano de seus membros e nas relaes de poder na sociedade envolvente:
Os trabalhadores ao conquistarem o seu prprio espao, construram o espao de socializao poltica... ampliam o sentido da luta pela terra que passa a ser entendida para alm da questo econmica, ou seja, tambm um projeto sociocultural de transformao de suas realidades. Os efeitos sociais deste movimento sobre as relaes sociais atinge toda a sociedade. Estes so frutos de conflito e, tambm, das aes destes sujeitos que tm por objetivo causar transformaes especficas e gerais nas relaes de poder. (www.mst.org.br, 14/3/2000).27

Portanto, o significado simblico e efetivo da luta buscado aqui na possibilidade de produzir transformaes no cotidiano das bases do movimento, no interior da prpria rede e no contexto das relaes de poder na esfera pblica. A estratgia poltica para o empoderamento da rede na esfera pblica tambm buscada atravs de articulaes mais abrangentes, como entre o MST e o Movimento dos Trabalhadores Sem teto (MTST), destes com a Via Campesina, Movimento de Barragens, Movimento de Mulheres Camponesas, Movimento dos Desempregados e outros movimentos sociais do campo e da cidade, alm de articulaes em rede, como o Frum Nacional de Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA) o Frum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), a Assemblia Nacional Popular, a Semana Social Brasileira, a Coordenao dos Movimentos Sociais, dentre outros. Por ltimo, a participao das redes de movimentos na construo de um
27

Maiores desdobramentos em torno deste ponto, vide em Scherer-Warren & Carvalho Ferreira, 2002.

Ilse Scherer-Warren

14

novo projeto de nao, enfrenta desafios ainda mais amplos, dentre os quais: buscar a unidade mnima em torno de lutas comuns e da forma de encaminh-las, tendo em vista a heterogeneidade dos atores coletivos, das razes histricas dos campos polticos de referncia (diversidades religiosas, ideolgicas, poltico-partidrias, culturais, regionais, etc.), da necessidade de ampliao da articulao poltica com atores polticos de outros territrios de referncia (urbanos, latino-americanos e globalizados). A tenso poltica se d entre correntes que buscam uma unidade a qualquer custo, com o objetivo de construir uma frente nica ou uma contra-fora poltica organizada em relao ao sistema; e as que propagam a construo de redes de movimentos com princpios norteadores para aes comuns, mas com uma ampla margem de respeito s diferenas e s diversidades das lutas especficas. Os primeiros caminham para um movimento enquanto organizao poltica centralizada e, os segundos, para um movimento enquanto processo aberto em constante construo, em outras palavras, para um movimento em rede. Assumo a hiptese de que esta ltima opo est se tornando cada vez mais hegemnica. Nesta direo, as redes de movimentos sociais na medida em que atuam em vrias dimenses (organizacional, articulatria e mobilizatria), conforme relatamos acima para o caso dos movimentos sociais rurais brasileiros, vm apresentando um alargamento do espao de atuao poltica. Este se concretiza por um conjunto de polticas reivindicativas em atendimento s demandas cotidianas e prementes das populaes rurais desenvolvidas especialmente atravs do trabalho continuado de suas organizaes locais ; em polticas propositivas para a formulao de polticas sociais; na participao em debates das polticas pblicas, realizados atravs de seus fruns e redes interorganizacionais; e finalmente, em polticas de reconhecimento na esfera pblica acerca da legitimidade do movimento para a construo de contrahegemonias s formas de excluses sociais sistmicas.

Concluindo atravs do embate entre respeito diversidade (dentro de determinados limites ideolgicos, naturalmente) e a busca da unidade possvel na ao (no necessariamente homognea, mas complementar), que as redes de movimentos sociais rurais vem construindo suas trajetrias. A partir dos vnculos sociais e polticos inter-individuais e interorganizativos, as redes de movimentos desenvolvem inicialmente processos mobilizatrios em espaos locais ou regionais mas, posteriormente, de forma articulada buscam impacto miditico e visibilidade numa esfera pblica ampliada, desenvolvendo estratgias polticas e propostas programticas em torno de suas necessidades e de sua noo de direitos, conectando os espaos locais com espaos nacionais e internacionais. Bringel e Falero (2008), em anlise das relaes do MST, do Brasil, com as redes transnacionais de apoio, observaram que esta organizao
Ilse Scherer-Warren

15

busca construir alianas transnacionais como o objetivo de construir alternativas de sociedade e projetar novos eixos de resistncia regional, no caso latino-americano. Acrescentam que, desta forma, a resoluo de uma necessidade como o acesso terra pode ser construda socialmente como um direito, com um sentido emancipatrio frente ao projeto do capital (p. 282). O encontro em torno das demandas materiais mais especficas contribui para a construo de identidades coletivas mais restritas, freqentemente na luta por direitos humanos setorizados28. J, o encontro em torno das plataformas mais gerais contribui para a emergncia de movimentos de resistncia anti-sistmica na Amrica Latina. No ltimo caso, tratam-se de redes de redes de movimentos sociais, multi-identitrias e multisetoriais, translocais e transnacionais. Enfim, as redes de movimentos sociais na Amrica Latina vm construindo caminhos para uma poltica emancipatria na medida em que se apresentam abertas diversidade das organizaes sociais da regio, vem colaborando para reescrever a histria de ocupao, colonizao e dominao em cada pas, traduzi-la em simbologias e significados para as populaes mais excludas, discriminadas e dominadas no presente, criando novas subjetividades nos campos das polticas identitrias e de utopias de transformao que foram unificadas no lema um outro mundo possvel, bem como, mais objetivamente, transformando estes iderios em polticas de direito. Nesta direo, finalmente, apresentaremos um quadro sinptico de uma plataforma de direitos humanos que vem sendo construda pelos movimentos sociais que lutam pela terra.

28

Vide detalhes destas lutas na Amrica Latina em Jelin & Hershberg, 2006; Carvalho, 2004, e alguns exemplos em Scherer-Warren, 2006b.

Ilse Scherer-Warren

16

Ilse Scherer-Warren

17

Referncias bibliogrficas
BRINGEL, B. & FALERO, A. Redes transnacionais de movimentos sociais na Amrica Latina e o desafio de uma nova construo scioterritorial. Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 53, mai./ago/ 2008, p. 269-288. CARTA DO 5 CONGRESSO NACIONAL DO MST. http://www.mst.org.br. Acesso em 15/06/2007. CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil o longo caminho. Rio, Civilizao Brasileira, 2004. CASTELLS, Manuel. The information age: economy, society and culture. London: Blackwell Publishers, 3 vol., 1996. DEERE, Carmen Diana. Diferenas regionais na reforma agrria brasileira: gnero, direitos terra e movimentos sociais rurais. Estudos Sociedade e Agricultura, 18, abril, 2002: 112-146. JELIN, Elizabeth & HERSHBERG, Eric (orgs.). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania e sociedade na Amrica Latina. So Paulo: Edusp, 2006. MELUCCI, Alberto. Challenging codes: collective action in the information age. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. NIEMEYER, Carolina Burle de. Contestando a governana global: a rede transnacional de movimentos sociais Via Campesina e suas relaes com a FAO e OMC. 2006. Dissertao (Mestrado) - Instituto de Relaes Internacionais. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. RISSE, T.; ROPP, S. C. & SIKKINK, K. (ed.). The power of human rights International norms and domestic change. Cambridge University Press, 1999. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes para a (re)territorializao de espaos de conflito: Os casos do MST e do MTST no Brasil. Interface: a Journal for and about social movements. Vol. 1 (1): 105-124, January 2009. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais na Amrica Latina - caminhos para uma poltica emancipatria? Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 54, set./dez/ 2008, p. 505-517. SCHERER-WARREN, Ilse. A poltica dos movimentos sociais para o mundo rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v.15, n. 1, 2007, p. 5-22; SCHERER-WARREN, Ilse. The social movements' politics for the rural world. Translated by Pedro Stoeckli Pires. Estud.soc.agric., 2007, vol.3, special edition, ISSN 1413-0580, acesso: http://socialsciences.scielo.org/cgi-bin/wxis.exe/iah/. SCHERER-WARREN, Ilse. Fruns e redes da sociedade civil: percepes sobre excluso social e cidadania. Revista Poltica & Sociedade. Florianpolis: UFSC/PPGSP, n. 11, out. 2007. SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizaes s redes de movimentos sociais. Revista Sociedade e Estado, UNB, V. 21, n. 1, 2006a, p. 109-130. SCHERER-WARREN, Ilse. Incluso social e cidadania: a perspectiva das organizaes, redes e movimentos. In: A Amaral e J. Burity (orgs.), Incluso social, identidade e diferena. S. Paulo: Annablume, 2006b, pp. 125-138. SCHERER-WARREN, Ilse; SILVEIRA, Suzana Maria Pozzer; TEIXEIRA, Viviani. Redes de Combate s Mltiplas Faces da Excluso Social. 58 Reunio da SBPC, 2006. SCHERER-WARREN, Ilse & FERREIRA, J. M. Carvalho (orgs.). Transformaes sociais e dilemas da globalizao: um dilogo Brasil/Portugal. So Paulo: Cortez, 2002. SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos em cena... as teorias por onde andam?; In: SCHERERWARREN, Ilse, et. alli. Cidadania e Multiculturalismo: a teoria social no Brasil contemporneo. Lisboa/Florianpolis: Socius/Editora da UFSC, 2000, p. 23-51. Ilse Scherer-Warren

18 SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras: aes coletivas na era da globalizao. So Paulo: Hucitec,1999. SILVEIRA, Suzana Maria Pozzer. A construo do sujeito no MST: Assentamento Eldorado dos Carajs. Dissertao apresentado ao Mestrado em Sociologia Poltica da UFSC, maro de 2007. STEDILE, Joo Pedro. Entrevista Revista poca. http://www.portalpopular.org.br. Acesso em agosto de 2007. TAVARES DOS SANTOS, Jos Vicente. Conflictos agrrios e violncia no Brasil: agentes sociais, lutas pela terra e reforma agrria. Pontificia Universidad Javeriana. Seminario Internacional, Bogot, Colombia, ago. 2000. In: Red de Bibliotecas Virtuales de Ciencias Sociales de America Latina y el Caribe, http://www.clacso.org.ar/biblioteca TOURAINE, Alain.Podremos vivir juntos? La discusin pendiente: el destino del hombre en la aldea global. Trad. Horcio Pons. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 1997. VIGNA, Edlcio. Governo responde s propostas do FNRA. www.inesc.org.br. Acesso em 30/07/2007.

Ilse Scherer-Warren