Missão Haiti Celso Castro, Adriana Marques
Missão Haiti Celso Castro, Adriana Marques
Missão Haiti Celso Castro, Adriana Marques
Adriana Marques
ORGANIZADORES
Adriana Marques
Celso Castro
como oficiais superiores do Exército bra- commanders, os comandantes militares
Celso Castro
Adriana Marques
ORGANIZADORES
sileiro transcorreram, portanto, no perío- da Missão das Nações Unidas para a Es-
ORGANIZADORES
do que vai da abertura política do regime tabilização no Haiti (Minustah). Embo-
Este livro compila valiosos testemunhos
militar à transição para a democracia e ra oficiais do Exército brasileiro tenham
instauração da Nova República. Recen- em primeira pessoa, obtidos em entrevistas participado anteriormente de diferentes
temente, vários deles assumiram cargos realizadas em 2018 com nove comandantes missões de paz da ONU, nada se compara
importantes na presidência de Jair Bolso- militares da Missão das Nações Unidas para a à experiência do Haiti, tanto naquilo que
naro, iniciada em janeiro de 2019. Estabilização no Haiti (Minustah, 2004-2017): a Minustah representou em suas carrei-
MISSÃO HAITI
Em seu conjunto, o livro constitui uma ras quanto no impacto que a missão teve
rica fonte documental para os interessa- em termos de experiência e aprendizado
dos em conhecer não apenas a atuação HELENO institucional.
MISSÃO HAITI
ção de oficiais brasileiros. por conjunturas e desafios específicos:
FLORIANO PEIXOTO
a implantação da missão, o combate
PAUL CRUZ às gangues e o controle da violência, os
RAMOS efeitos do terremoto de 2010 — que fez
GOULART com que a Minustah passasse a assumir
PUJOL um caráter predominantemente de ajuda
humanitária — e, por fim, a desmobiliza-
AJAX
ção e o encerramento da operação, após
13 anos no Haiti.
Os entrevistados provêm de uma
mesma geração de militares, tanto em
Celso Castro, antropólogo, é professor termos etários quanto de experiências
da Escola de Ciências Sociais da profissionais. Nasceram entre 1946 e
Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). 1958, e tornaram-se oficiais do Exército
após terminarem o curso da Academia Rua Jornalista Orlando Dantas, 37
CEP 22231-010 | Rio de Janeiro | RJ
Adriana Marques, cientista política, ISBN 978-85-225-2193-7 Militar das Agulhas Negras (Aman) en- Tels.: 0800-021-7777 | (21) 3799-4427
Fax: (21) 3799-4430
é professora do curso Defesa e tre 1969 e 1980. Cursaram a Escola de editora@fgv.br | www.fgv.br/editora
MISSÃO HAITI
A visão dos force commanders
Copyright © 2019 Celso Castro; Adriana Marques
1a edição: 2019
Apresentação, 7
Cronologia, 15
Heleno, 17
Elito, 51
Santos Cruz, 75
Floriano Peixoto, 115
Paul Cruz, 139
Ramos, 161
Goulart, 177
Pujol, 197
Ajax, 219
Siglas, 245
que se recebe ao ingressar nas Forças Armadas e pelo qual o militar será tratado
durante toda a sua carreira. Para um estudo antropológico sobre o tema, ver: leirner,
Piero de Camargo. Sobre “nomes de guerra”: classificação e terminologia militares.
Etnográfica [online], v. 12. n. 1, 2008. Disponível em: <http://journals.openedition.
org/etnografica/1660>. Acesso em: 12 jul. 2019.
3
Para a realização das entrevistas e a edição deste livro, contamos com a colaboração
de várias pessoas a quem gostaríamos de agradecer: Jacintho Maia Neto, Elias Ro-
drigues Martins Filho, Otávio Santana do Rêgo Barros, Richard Fernandez N unes,
Márcio Luis do Nascimento Abreu Pereira, Rogério Marques Nunes, Analu de Jesus
Oliveira, Kleber Alonso Pereira e Verônica Azzi, além das equipes do Núcleo de Au-
diovisual e Documentário e do Programa de História Oral da FGV CPDOC. A pesquisa
que deu origem a este livro foi viabilizada com recursos da FGV, por meio de edital
da Rede de Pesquisa e Conhecimento Aplicado (RPCAp).
*
Os nomes em itálico são os nomes de guerra dos force commanders.
O
general de exército Augusto Heleno Ribeiro Pereira
nasceu em 1947, em Curitiba (PR). Estudou no Colégio
Militar do Rio de Janeiro entre 1959 e 1965 e graduou-se
na arma de Cavalaria em 1969, na Academia Militar das Agu-
lhas Negras (Aman). Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO) em 1978 e a Escola de Comando e Estado-Maior
do Exército (Eceme) em 1986. Comandou a Escola Preparatória
de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas, de 1994 a 1996.
Nesse mesmo ano, passou a integrar a Missão Militar Brasileira
de Instrução no Paraguai (MMBIP), como adjunto. Foi adido
militar na França, acreditado também na Bélgica. Chefiou o
Centro de Comunicação Social do Exército (CComSEx) entre
2001 e 2002. Assumiu o comando da Força de Paz da Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah)
em junho de 2004, função na qual permaneceu até agosto de
2005. Foi chefe de gabinete do comandante do Exército de 2006
a 2007, comandante militar da Amazônia de 2007 a 2009 e chefe
do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército entre 2009
e 2011, ano em que passou para a reserva. Trabalhou no Comitê
Olímpico do Brasil (COB) entre 2011 e 2017. Em 2019, tornou-se
ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
1
Kofi Annan, então secretário-geral das Nações Unidas, permaneceu no cargo de
janeiro de 1997 a dezembro de 2006.
Sua experiência anterior como adido na França, o senhor acha que contou
em alguma medida para esse convite?
Só pelo fato de falar francês. Eu estudei francês a minha vida inteira,
minha mãe me botou na Aliança Francesa com oito anos de idade. Isso
me ajudou no negócio do Haiti, porque, na ONU, eles perceberam que
eu falava realmente, fluentemente, francês. Ainda que o Haiti seja
uma mistura de francês. Eles sabem falar francês, só que, quando não
querem que você entenda o que estão falando, eles falam em créole,
uma corruptela do francês, que o escravo, como não sabia escrever e
ouvia o francês, falava o que ouvia; então, é uma língua que passou
muito tempo sem ter gramática. Hoje, ela está sistematizada. Mas é
2
General Rômulo Pereira Bini, então chefe do Estado-Maior do Ministério da Defesa.
3
Assessoria 1: escritório integrante do gabinete do comandante do Exército, cuja
missão é assessorar diretamente o comandante da força.
4
Ronald S. Coleman foi um general de brigada (brigade general) americano que
comandou a Força-Tarefa Combinada no Haiti de fevereiro a junho de 2004, em
suporte à Operation Secure Tomorrow, que precedeu a Minustah. Fonte: <https://
web.archive.org/web/20040627062734/http://www.defendamerica.mil/profiles/
jun2004/pr061504b.html>. Acesso em: jan. 2018.
Nós entrevistamos um oficial que disse que era o batalhão “Plunct, Plact,
Zum, não vai a lugar nenhum”.
Era o batalhão Porcina, que foi sem nunca ter ido. Tinha vários apeli-
dos. E ele acabou indo, finalmente. O batismo dele foi lá.
luz?”. Eu falei: “Não faço esse jogo à noite! Eu deixo a missão, mas não
faço. Vai ter que ser de dia”. “E o senhor precisa de som no estádio?”
Eu falei: “Não. Nada de muita preocupação com som. O som é só para
anunciar as equipes. Nada de muito sofisticado, não”. “O senhor pre-
cisa reconstruir o estádio, a tribuna de honra, o vestiário, o campo?”
Eu falei: “Bom. O campo, eu não tenho a menor ideia como é que vão
fazer”. “Eu faço a terraplenagem. E o senhor consegue com a Fifa um
gramado.” Tinha de ser gramado artificial. Era impossível plantar
um gramado. “Então, vamos fazer o seguinte. Eu já conversei com o
primeiro-ministro e já disse a ele que nós vamos fazer uma reunião
segunda-feira, no estádio. Eu quero que o senhor esteja presente, e nós
vamos anunciar a recuperação do estádio. Eu não vou anunciar que é
Taiwan — para todos os efeitos é o governo do Haiti que vai recuperar.
Vou trazer três engenheiros de Taiwan que vão se responsabilizar pela
obra, vou empregar 500 haitianos, e nós vamos recuperar o estádio.”
Aquilo passou a ser a minha obra. Eu ia lá quase que diariamente.
Saía das operações, passava lá no estádio, para ver como é que o troço
estava. Eu, sinceramente, não acreditava. Eu olhava aquele estádio,
tudo arrebentado… Mas, no dia 15 de agosto, ele entregou o estádio.
não fosse vendido ingresso do jogo, que fosse doado”. Rapaz! Foi como
se eu tivesse anunciado que não ia ter jogo. Dois minutos depois — o
tempo não foi maior do que esse —, eu já estava recebendo uma ligação
do primeiro-ministro. “Mon général, ce n’est pas possible. Les haïtiens sont
fanatiques pour football. On ne peut pas faire ça”.5 Aí eu argumentei: “Mas,
ministro, nós vamos doar os ingressos. O estádio vai ficar superlotado
com a garotada”. Ele disse: “Não, não faça isso”. Eu disse: “Ministro,
se a gente vender ingresso, vai tudo para o câmbio negro”. Aí ele, que
era um cara vivido pra burro, tinha 20 anos como funcionário da ONU,
falou: “General, câmbio negro tem na Opéra de Paris, na Broadway, em
Londres. Câmbio negro faz parte. Se o cara quiser comprar para vender
no câmbio negro, o problema é dele. Mas eu posso lhe garantir que
90% dos haitianos…”. Eu disse para ele: “Mas, ministro, como é que
os haitianos vão ter dinheiro para comprar?”. “Pela seleção brasileira,
nego vende o carro, vende a mulher, vende o que for para ir para o jogo.
Então, o senhor não se preocupe com isso. Posso lhe garantir que 90%
não vão vender o ingresso, vão usar o ingresso.” Eu disse: “Está bom.
Eu vou pensar”.
Voltei para a mesa. Já estava sendo atacado pelos haitianos da Fede-
ração Haitiana, o pessoal da CBF meio… Falei: “Olha. Nós vamos pen-
sar no assunto”. Aí me reuni com os brasileiros, cheguei à conclusão:
primeiro, a ideia do Ronaldo é completamente maluca. O Ronaldo deu
a ideia de, ao invés de doar indiscriminadamente, trocar por armas!
Eu falei: “Essa aí está fora de cogitação, porque eu vou criar, em algum
local do Haiti, uma reunião de bandidos, vou prestigiar os bandidos,
eles nos vão fazer de otários, vão nos entregar a arma que eles não
usam, velha, que está lá debaixo da terra, vão desenterrar, entregar
para a gente, trocar por um ingresso, e eu vou ter um estádio cheio de
bandido. Quem vai fazer a segurança disso, sou eu? Estou fora! Isso
não vai acontecer”. Então vamos vender. Aí reuni a polícia do Haiti,
5
“Meu general, isso não é possível. Os haitianos são fanáticos por futebol. Nós não
podemos fazer isso.”
6
General de divisão Floriano Peixoto Vieira Neto, então chefe da Seção de Operações
da brigada brasileira na Minustah.
7
Urutu é um veículo blindado de fabricação nacional, lançado em 1970, para trans-
porte de pessoal.
8
Carlos Alberto Gomes Parreira, então treinador da seleção brasileira de futebol.
quero bola debaixo das pernas, não quero nada disso”. O único lance
que teve, assim espetacular, foi o gol do Ronaldinho. Mas o restante
foi jogando sério. Tanto que o jogo foi 6 a 0.
que o Rio de Janeiro. Isso em 2004. Hoje, eu não tenho dúvida de que
é muito mais seguro. Porque eu tinha patrulhamento ostensivo na
rua o tempo todo. Acontecia problema? Acontecia. Muito sequestro,
de vez em quando um cara dava um tiro na rua, era um corre-corre
danado; volta e meia um policial da Polícia Nacional do Haiti tinha uma
desavença pessoal e resolvia matar o cara na rua. Isso acontecia. Mas
de maneira geral, para a situação que o Haiti vivia, era perfeitamente
aceitável. Só que, como tinha uma tropa estrangeira com o objetivo
de dar um ambiente seguro e estável, não tinha qualquer concessão,
não tinha tolerância. Eles queriam uma segurança de Vaticano. Então
a gente vivia esgrimindo com eles.
O senhor acha que àquela época eles já queriam que se fizesse no Haiti o que
depois foi proposto, a partir de 2013: uma dessas operações com brigadas de
intervenção, com um uso maior da força?
Não. O que aconteceu foi que… Por exemplo, Bel Air foi o primeiro local
que foi pacificado, ainda no meu comando. Bel Air tinha características
especiais. Tinha sido um bairro de classe média que foi favelizado. Bel
Air é uma pequena elevação. Nós entrávamos e saíamos de Bel Air,
exatamente por essa falta de experiência. Entrava, patrulhava, fazia
cerco, vasculhamento de uma determinada área e saía. Trocavam tiro.
Tinha tiroteio dentro de Bel Air, tropa brasileira contra gangue, de
dois em dois dias, no mínimo, quando não era diário. Aí as gangues
espalhavam: “Está vendo como esses caras têm medo da gente? Atiram
e vão embora”. O primeiro contingente era sempre essa gangorra.
Melhorava a situação, daqui a pouco piorava.
Aí o general Vilela [general de exército João Carlos Vilela Mor-
gero], já no segundo contingente, veio para mim e falou: “Heleno,
vamos colocar uma companhia dentro de Bel Air?”. Eu falei: “Rapaz,
não tem onde colocar”. Bel Air era uma favela. Não é uma elevação
igual ao Rio de Janeiro, mas era uma pequena elevação. Ele disse:
“Na parte mais alta dá para colocar uma companhia, onde ficam os
restos de uma companhia de transmissões haitiana. O quartel está
lá ainda, muito destruído, mas dá para recuperar”. Eu falei: “Mas
você não vai gastar dinheiro com aquilo?”. “Não, não precisa gastar
muito dinheiro. A gente dá uma recuperada. Eu tenho um capitão
que já é voluntário para ir para lá, a gente dá as condições para os
soldados ficarem lá, e a gente coloca essa companhia permanen-
temente lá.” Eu falei: “Está bem. Você é o dono da operação aqui,
pode fazer”. Ele instalou uma companhia lá e mudou totalmente a
feição. Foi a precursora das UPPs. As UPPs foram baseadas nessa
experiência do Haiti.
9
ONG brasileira fundada em 1993 com sede no Rio de Janeiro de caráter humanitário,
dedicada à promoção de uma cultura de paz e ao desenvolvimento social.
10
Coronel Ubiratan Angelo, da Polícia Militar, cujo cargo no Haiti, na época, era o
de coordenador de segurança humana do Viva Rio e vice-diretor do Viva Rio. Fonte:
<www.ccopab.eb.mil.br/phocadownload/revista-igarape-minustah/Participao%20
do%20Brasil%20na%20MINUSTA-2004-2017-BR.pdf>. Acesso em: jan. 2018.
fica entre o centro da cidade e uma parte de Cité Soleil. Cité Militaire
tinha umas poucas indústrias, entre aspas, haitianas. Virou área de
sequestro. Sequestravam todo mundo. Quem ganhava 10 mil-réis era
sequestrado. Foi uma atuação difícil também. O terceiro e o quarto
contingentes viveram esse problema. As coisas foram evoluindo, e nós
fomos empurrando a bandidagem para dentro de Cité Soleil, que era
gigantesca, então era mais difícil de atuar.
11 O capítulo VI da Carta das Nações Unidas refere-se à solução pacífica de con
trovérsias que possam vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais.
O capítulo VII, por sua vez, aborda ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão,
demandando, portanto, medidas a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais que podem apresentar maior recurso ao uso da força. A Minustah foi
estabelecida pelo Conselho de Segurança da ONU com base no capítulo VII, porém
a referência a um emprego mais robusto da força e o caráter humanitário da missão
entravam em constante tensão. Fonte: <www.un.org/en/charter-united-nations/>.
Acesso em: jan. 2018.
para rico? No Haiti não tem tráfico de droga dentro da favela. Então o
estado de ânimo do bandido é outro. Eles querem é um lugar para se
homiziar, para guardar o caminhão que eles roubaram, para guardar
o sequestrado que eles roubaram.
São situações que têm alguma semelhança, mas que, quando você
espreme, são muito diferentes. E essa adaptação, essa flexibilidade é
que você tem que ganhar. E isso você ganha com treinamento, com
prática. É muito diferente você sair com munição de festim, essa
munição de treinamento, de sair com munição real. Munição real é
outra conversa. Dá medo. Eu tive muitas situações de medo intenso
no Haiti. Foi uma das coisas que eu descobri, que era uma curiosi-
dade minha: por que o cara andava para frente? Num desembarque
como o da Normandia, por exemplo, por que o cara não deitava dentro
d’água e ficava ali, esperando a coisa melhorar? Eu tinha vergonha de
transparecer para o soldado que estava ali do meu lado que eu estava
com medo, e eu era impulsionado na direção do objetivo que eu tinha
traçado, muito por essa vergonha. Porque medo, todo mundo tem. Essa
sensação é uma sensação que você só tem numa situação real. Pode
treinar… A gente faz o nosso treinamento, nós temos um centro de
instrução ali na Vila Militar, no Rio. É muito próximo da realidade?
É. Mas não tem nada a ver com a realidade. Não vai levar um tiro no
peito. Você leva um tiro de laser. É muito diferente.
Então as diferenças em relação às operações do Rio de Janeiro, do
Haiti e essas… Tenho certeza de que as do Congo eram diferentes.
O Santos Cruz fez um ataque convencional no Congo, contra aquele
M23, um ataque de Segunda Guerra Mundial, que não existia há muito
tempo. Resgatou uma barragem de artilharia, que era coisa que não se
via há muito tempo. Então, a situação é muito diferente, os cenários
são diferentes. Há pontos de semelhança? Há. Mas o importante é você
perceber e atuar nas diferenças.
14
A Convenção de Genebra abarca uma série de tratados que definem as leis e normas
internacionais relativas à guerra e ao direito humanitário.
casa bacana pra caramba, comprava ou levava dois carros muito bons,
comprados fora do Haiti, e comparecia a essas reuniões. Mas eu não
via assim uma produtividade que justificasse a presença daquela ONG.
Outra coisa chocante nesse negócio, que eu fui aprender lá: doado-
res. Tinha países donators [doadores]. Aí, faziam lá uma reunião dos
países donators e anunciavam: 1 bilhão de dólares doados para o Haiti.
Aí depositavam no Banco Mundial, no Crédit Suisse, no Banco Nacional
de Paris. E ficavam aguardando projetos para liberar o dinheiro. Os
bancos adoravam, porque ficavam com dinheiro em caixa, esperando
projetos e manobrando com o dinheiro. O projeto não saía porque,
é óbvio, a sociedade haitiana não tinha capacidade de apresentar
projetos para que esse dinheiro fosse aproveitado. Eu vou continuar,
eternamente, cobrando da ONU para que, no organograma da missão
de paz, tenha um escritório de projetos. A gente conseguia uma situa-
ção segura e estável no restante do Haiti. O único lugar que não tinha
um ambiente seguro e estável era Bel Air e Cité Soleil. E depois, Cité
Soleil, Cité Militaire. E o restante do Haiti? Por que não consertavam
as estradas? Por que não construíam as creches? Por que não ajeitavam
as escolas? Por que não ajeitavam os hospitais e os postos de saúde?
Vai esperar o país todo ficar numa situação de Jardim Botânico? O que
é isso? Então, se houver um escritório de projetos desde o início da
missão, quando vier o dinheiro dos doadores, já tem projeto pronto.
Mas não. O dinheiro fica lá, e não acontece nada!
O contingente militar é muito limitado nisso aí. Eu não tinha a
Companhia de Engenharia brasileira no início, eu tinha uma compa-
nhia chileno-equatoriana. Ótima, dedicada pra burro, mas mal equi-
pada. Foi constituída às pressas. Era uma companhia extremamente
dedicada. Tiramos mais de 10 mil caminhões de lixo de Bel Air. Essa
companhia não tinha como fazer nada além de apoiar as operações
e uma ou outra coisa para os contingentes. Aí chegou a Companhia
de Engenharia brasileira, de Primeiro Mundo, primorosamente
equipada. Eu só peguei a chegada dela, peguei uns dois meses dela
lá. O que esses caras fizeram, de abertura de poços, de melhoria de
O período todo?
Tudo. Eu acho que nós chegamos a mandar 23 contingentes. Se você
considerar mil, para facilitar a conta, são 23 mil militares que passaram
por uma situação real. Como é que você vai conseguir uma experiência
dessas com zero perda? Então, do ponto de vista militar, foi sensacional.
Quando a gente olha a lista dos force commanders, o que a gente imagina?
Um profissional que assumiu essa missão é um profissional que vai chegar
até o topo da carreira. Mas alguns chegaram, outros não. Por quê? Outras
características são levadas em consideração, obviamente.
Você já matou a charada. A resposta é essa, não é a única coisa levada
em conta. No caso ali era a promoção ao mais alto posto da carreira.
O funil da promoção é muito ingrato. A pior coisa que existe na reunião
15
O general Agenor Francisco Homem de Carvalho foi ministro-chefe do Gabinete
Militar durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, de 1990 a 1992.
O
general de exército José Elito Carvalho Siqueira nasceu
em 1946, em Aracaju (SE). Estudou no Colégio Militar
de Salvador de 1959 a 1963 e ingressou na Escola Pre-
paratória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em 1964. Graduou-
-se na arma de Infantaria em 1969, na Academia Militar das
Agulhas Negras (Aman). Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento
de Oficiais (EsAO) em 1978 e cursou a Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército (Eceme) de 1983 a 1984. É doutor
pelo Army Staff College de Camberley, Reino Unido. Em 1993,
foi comandante-geral da Polícia Militar de Alagoas. Comandou
o 28o Batalhão de Caçadores em Aracaju de 1993 a 1994. Entre
1995 e 1997, foi adido militar do Exército e da Aeronáutica na
África do Sul. Chefiou a segurança da Presidência da Repúbli-
ca de 1997 a 1999. Comandou as Forças de Paz da Missão das
Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) entre
2006 e 2007. Foi comandante militar do Sul de 2007 a 2008.
No Ministério da Defesa, exerceu as funções de secretário de
Ensino, Logística, Mobilização e Ciência e Tecnologia e foi chefe
do Estado-Maior de Defesa entre 2009 e 2010. Foi ministro-
-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência
da República de 2011 a 2015.
1
O general de divisão Urano Teixeira da Matta Bacellar foi encontrado morto no
dia 7 de janeiro de 2006.
2
General de exército Francisco Roberto de Albuquerque, comandante do Exército
brasileiro entre 2003 e 2007.
3
Sobre o terremoto de 2010, ver nota na p. 144.
mais próximos dele do que se ele estivesse aqui no Brasil. Quer dizer,
eu preferia enquadrar da seguinte forma, que é como sempre faço: é a
história dele, e preservamos ele assim, porque ele merece, apesar do
inusitado que aconteceu com ele.
4
Gérard Le Chevallier foi chefe da Seção de Assuntos Políticos e Planejamento da
Minustah entre 2004 e 2010.
E a eleição de Préval para presidente, o senhor acha que foi boa, em termos
políticos?
Ela foi absolutamente essencial. O presidente Préval, eu o conheci
muito bem, porque praticamente todos os dias depois tínhamos que
conversar seriamente. Como todos nós, ele tinha virtudes e defeitos,
mas ele tinha uma grande virtude: ele não era um bom gestor, na
minha opinião, mas era uma pessoa honesta, e foi o único presidente
até aquela época que tinha terminado um mandato presidencial. E,
ao terminar o mandato, continuou morando no Haiti de uma forma
discreta, no interior do país. Ou seja, o Préval tinha esse dom e esse
ponto altamente positivo. Era uma pessoa benquista pela população.
Era o melhor nome, sem dúvida, para ganhar, e foi quem ganhou. Para
o país, eu acho que foi bom.
Mas ele só podia tomar posse com o Congresso constituído. Então,
apesar de ele ter sido eleito no primeiro turno, em fevereiro/março, a
posse dele foi em 6 de maio, se não me engano. Solicitei então ao chefe
da missão uma reunião com o presidente Préval, ainda não empossa-
do, mas já eleito. Eu queria, vamos dizer assim, apertar o parafuso da
segurança, mas, claro, não queria ir contra uma diretriz estratégica do
presidente, já que ele tinha sido eleito. O chefe da missão achou muito
boa ideia e nós fomos à casa de uma irmã dele, onde estava. Ele, muito
atencioso, estava muito feliz por ter conseguido e tal.
5
René Garcia Préval foi presidente do Haiti de 1996 a 2001, reeleito em 2006,
cumprindo o mandato até 2011.
delicada. Você tinha que ir passo a passo, uma coisa com muito cuidado
para não ter problema. Mas já sabíamos algumas coisas, porém ele
queria expatriar, queria negociar. Eu sabia que não ia dar. Alguns dos
chefes das gangues, inclusive, eram conhecidos de pessoas do governo;
talvez até, indiretamente, ajudassem esses políticos. Enfim, eu não
me interessava e não procurava saber quem eram. O meu problema
era ajudar a população, e eu só ia ajudar se estivesse lá dentro. Quem
atirasse em nós, nós eliminaríamos, claro.
Asfaltei Cité Soleil, botei luz, reabri escola, fiz mais de 50 mil
atendimentos médicos, eu e meu pessoal. Com isso, nós tínhamos o
apoio da população toda. E foi ótimo. Porque, naquela miséria, era a
grande motivação dos soldados. Era você descer dentro da favela, com
perigo ali, uma criança lhe abraçava, a moça dava tchau, as pessoas
vinham conversar porque estava escrito Brasil aqui [no uniforme].
Enfim, isso era o que motivava. Porque você vê mortes, vê pobreza, vê
miséria, a tendência de cada um de nós é o moral… O que dava essa
consistência à tropa era justamente essa euforia que a população tinha
com os nossos soldados.
Enfim, perdemos esse tempo. Para vocês terem uma ideia, posso
lhes dar um valor numérico, um ministro dele ganhava, sei lá, 5 mil
dólares. Um desses “Fernandinhos Beira-Mar” haitianos, que se
chamava Evens,6 era o mais perigoso deles. Depois o Santos Cruz o
prendeu e ele morreu de Aids. Assim eu soube, não sei se é verdade. Mas
o fato é que o Evens era um cara muito perigoso e ele pediu ao Préval,
parece-me, 100 mil dólares por mês para que parasse as suas ações.
Eu continuava pressionando o presidente para que ele me desse uma
resposta, e num determinado dia eu cheguei lá e ele disse: “General, I give
up”.7 Aí é que começamos. Mas até esse give up, foram praticamente quatro
meses. A gente já estava caminhando bem; podíamos ter caminhado
mais rápido. Mas, claro, tínhamos que respeitar a diretriz do presidente.
6
Evens Ti Kouto, líder de gangue preso no Haiti durante a Minustah.
7
“Eu desisto, general.”
A atuação das gangues foi ficando mais cerceada, mas continuou ao longo
da sua…?
O problema todo é o seguinte. O Haiti é pior em várias coisas que o Rio
e é melhor em várias coisas que o Rio. Lá você não tinha água, nem luz,
nem nada; isso era um caos. No morro do Rio você tem televisão, inter-
net, padaria, escola, você tem vida. Por outro lado, na favela no Haiti
não tinha um grande capital circulante de drogas, e no Rio de Janeiro
tem em grau pior. Enfim, você não podia dizer que era a mesma coisa.
Não é. Mas a maneira de atuar, só existe uma: estar lá dentro. Essas
UPPs, que hoje criticam, foram ideias de todos nós que passamos por
situações semelhantes. A UPP tem que ser um strong point [ponto forte],
tem que ser um ponto forte dentro da favela. É a presença do Estado
dentro. Dentro de Cité Soleil eu tinha três UPPs, três strong points, com
mais de 100 homens, blindados, engenharia, médico, patrulhando dia
e noite, ajudando a população, ganhando a credibilidade. Quem estava
armado nós eliminávamos, não tinha dúvida.
Não me interessa se o bandido passa, dá tchau para você e está pas-
seando, ok, não quero nem saber se é bandido ou não. Agora, mostrou
arma, atirou? Não tem dúvida nenhuma: seleciona e elimina. Em prol
da população. Era um trabalho que não tinha planejamento firmado,
memorizado, doutrinado; esse era o grande óbice para mim. Eu assu-
mia 100% a responsabilidade de todos os soldados. Se ele atirou, foi
porque eu mandei. Então, na verdade, o grande peso era na minha
consciência, mas eu tinha absoluta certeza de que estava certo, de que
só tinha essa maneira de agir.
No Haiti você podia fazer uma ação hoje, ser 100% exitosa, e podia
fazer a mesma operação amanhã e ser 100% fracasso, porque não
havia uma lógica, uma doutrina firmada, consolidada, inteligência
zero — coisa que no Rio a gente tem inteligência que vai ajudar muito.
Eu tive que fazer emprego de forças especiais para criar inteligência,
porque era o caos. Você vê na favela do Rio um carro subindo; no
Haiti, nas ruas às vezes dava para passar uma pessoa, na verdade era
um “corredor polonês” de paredes. Um caos. Você, de vez em quando,
entrava numa porta de uma casa aqui, e ali tinha uma escada que
levava para o telhado de uma outra casa. Ou seja, aquele morador não
tinha uma saída para a rua, ele tinha que passar na sua casa. Então,
para fazer alguma coisa, tem que ser com muita calma, e ir ganhando
credibilidade — que é um ponto certamente fundamental.
O general Santos Cruz, que foi o comandante seguinte, falou que, logo que
chegou, teve que tomar a decisão de terminar com as gangues.
Fui eu que passei o comando para o Santos Cruz, em janeiro de 2007.
Ele enfatizou bem isso, que teve que partir para cima para terminar.
Exatamente, foi o que eu falei para ele. Santos Cruz foi meu cadete,
então o conheço muito bem. Nós tínhamos dividido Cité Soleil em 16
setores. Quando eu passei para ele, Cité Soleil tinha três setores, um de
cada chefe de gangue. E o que falei para ele foi que ele não precisava ir
nos três simultaneamente. Que fosse em um, à sua escolha, e os outros
dois, como falamos, cairiam pela manobra. E ele fez excepcionalmente
bem. Ele fez rápido, no mês seguinte, em fevereiro, um pouco precipi-
tado pela atitude do Evens. Em Cité Soleil tem o mar, e na avenida tem
uma caixa d’água, e do lado dela tinha uma casinha de dois andares
que a gente chamava de Casa Azul. Essa Casa Azul inclusive caiu no
terremoto e matou uns oito militares brasileiros, porque ali era um
posto de observação. Mas o Santos Cruz, quando, corretamente, fez
presença numa dessas três áreas, a reação foi muito forte, e ele não
teve outra opção senão reagir mais forte ainda. Foi de uma eficiência
muito grande. E a Casa Azul, que ele ocupou, foi o início. O Evens se
assustou e aí não sei detalhes, mas aquela atitude do Santos Cruz foi
altamente oportuna, porque, ao invés de recuar, ele atacou como tinha
que ser. Não sei se era exatamente naquele momento, mas ele já tinha
o planejamento para isso. E acabou ali, ele ocupou e os outros dois
foram uma consequência menor de efeito, de ação. E ele realmente,
em fevereiro/março zerou, zerou. Foi muito bom.
isso é emprego. Agora, ele tem que estar ali sabendo onde está toda a
polícia que está trabalhando em volta daquilo ali.
Acho que a intervenção de agora na segurança pública é muito mais
do que isso, e é ótimo que tenha tido. No entanto, o decreto de GLO tem
que ser anulado e feito outro. Porque o decreto de GLO é específico.
Por exemplo, esteve o papa lá, eu estava na presidência. Então o papa
ia a Copacabana. Naqueles locais e naquelas áreas havia a GLO. Não
tinha GLO em Petrópolis. No entanto, quando você faz um decreto de
intervenção em todo o estado, a GLO hoje que você viu apoiando, você
tem um soldado em Copacabana, daqui a pouco aparece soldado na
avenida Brasil, ele está em todo o estado. Então o decreto de GLO está
errado, ou melhor, ele está incompleto, tem que ser alterado. Não é de
subordinação, porque continua a mesma coisa, o governo do estado do
Rio está trabalhando, sua secretaria, e tem que ser assim. No entanto,
a flexibilidade do emprego da GLO tem que estar sintonizada com os
objetivos da intervenção.
Na época dessa palestra que o senhor mencionou ainda não tinha a expe-
riência do Haiti, mas apenas participações pontuais em missões de paz ou
como observadores. No entanto, falava-se muito no Exército em “estratégia
da resistência” e havia muito essa ideia da soberania ameaçada, da cobiça
internacional, de ocupação da Amazônia.
Essa visão não era uma visão errada, absolutamente. Mas era uma
visão de época. Quando você tem um grande país e uma riqueza como
nós temos, as duas pressões hoje que se tem chamam-se presence and
deterrence, presença e dissuasão. Se você não tem essa capacidade como
país, você está seriamente comprometido. Em relação à Amazônia,
não vou dizer que isso acabou, mas a mudança foi a seguinte: há 20
anos a gente tinha 10 mil homens na Amazônia, hoje a gente tem 30
mil. Então, na hora que você tem presença e capacidade dissuasória, o
problema some. Sumir é maneira de dizer, ele diminui, não há dúvida
nenhuma. Então, hoje a gente tem presence and deterrence em qualquer
lugar do território nacional, absoluta.
Eles responderam?
Responderam 100%, quem queria e quem não queria. Nesses pro-
fissionais, tem aqueles que fazem um excepcional trabalho, mas tem
aqueles que se aproveitam desse trabalho. Então eu prefiro não criticar
ONGs individualmente. Mas, como qualquer atividade, há ONGs que
merecem um grau 10, mas há ONGs realmente que merecem grau zero.
Então, cabe a nós ter essa percepção, o bom senso de valorizar quem
está cumprindo o seu trabalho. Por exemplo, o Médicos Sem Fronteiras,
quando eu comecei a entrar, os bandidos metralharam o hospital e
disseram que fomos nós. E quem dominava a imprensa eram as gan-
gues. A notícia chegava a Nova York assim. Tanto que, depois de alguns
meses dentro da favela, eu comecei a levar o core group para dentro das
favelas. Peguei os embaixadores, alguns tomaram tiro lá dentro, foi
ótimo, começaram a ver que não é brincadeira, e viram — o que era o
mais importante — a população feliz com o que estava acontecendo.
Isso foi também uma outra guinada, porque ficava parecendo que a
favela era só uma situação na qual ninguém podia ir. Começou todo
mundo a ir lá dentro.
O
general de divisão Carlos Alberto dos Santos Cruz nas-
ceu em 1952, em Rio Grande (RS). Ingressou na Escola
Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em 1968
e graduou-se na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman)
em 1974 na arma de Infantaria. Formou-se em engenharia civil
no ano de 1983 na Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUC-Campinas). Em 1985, realizou o curso da Escola de Aper-
feiçoamento de Oficiais (EsAO) e em 1990 concluiu a Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme). Graduou-se pelo
United States Army War College em 1996. Entre 2001 e 2003, foi
adido de defesa na embaixada do Brasil em Moscou, na Rússia.
Comandou as Forças de Paz na Missão das Nações Unidas para a
Estabilização no Haiti (Minustah) de 2007 a 2009 e a 2a Divisão
de Exército na cidade de São Paulo de 2009 a 2011. Foi membro
do grupo de conselheiros do Banco Mundial para o Relatório
de Desenvolvimento Mundial 2011 e assessor especial do mi-
nistro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República (SAE). Entre 2013 e 2015, comandou as Forças de
Paz da Missão das Nações Unidas na República Democrática do
Congo (Monusco). Foi secretário nacional de Segurança Pública
em 2017 e 2018 e ministro-chefe da Secretaria de Governo da
Presidência da República em 2019.
A questão das gangues era o principal problema, quando o senhor chegou lá?
O Haiti tem vários problemas. Naquela época eram as gangues de
rua. Não tinham nenhuma filosofia política, era o crime pelo crime
mesmo, pelo benefício financeiro. Elas não eram grupos terroristas
ou grupos políticos utilizando a luta armada como forma de política.
Eram gangues criminosas que foram politizadas num certo momento
que você tenha coragem de fazer o que você tem que fazer. Essa é uma
exigência social. Ela paga para eu me arriscar e me dá o direito de usar
armas, mas claro que exige que eu faça isso dentro da lei. Então você
tem que fazer o que tem que ser feito, o que é esperado de você fazer
ali: neutralizar essas gangues, confrontar. Aí tem várias maneiras.
Em Martissant, por exemplo, na área do Sri Lanka, a opção não foi por
confronto, foi por ações de cerco e busca. Então todo dia você deixava
umas pequenas áreas completamente cercadas e fazia uma varredura,
uma busca detalhada para recolher arma, com o batalhão do Sri Lanka
e a Unpol junto com a polícia haitiana. Então você já aproveita e treina
o policial local. Em Cité Soleil, não. Em Cité Soleil, o comportamento
das gangues… Eles atiravam muito. Em 15 dias, a gente gastava uma
média de 3 mil a 4 mil tiros, todo dia, para se defender. Se você for ver
a história da missão no Haiti não tem acusações de morte de inocente,
porque o pessoal atirava com critério. O soldado era bem treinado,
então ele só atira naquilo que vê, naquilo que enxerga. O criminoso
não, ele atira em automático, bota o dedo no gatilho e, se ele tiver
munição, atira muito.
Então, a opção ali foi de confronto. A gente planejou, e nós fomos
para as operações. Outra coisa: fazer um ritmo de operações muito
forte. No mínimo, uma grande por semana, porque você tem que dar
um tempinho para planejamento e ver a evolução das coisas. E não dar
tempo para o cara se reorganizar. Você tem muito mais administração
de pessoal, você tem muito mais logística nas coisas, então você não
pode supor que não vai vencer o conflito. Você tem todas as condições
de vencer o conflito.
Aí eu saí com o Gondim [José Eduardo Gondim Filho], que está aqui
hoje trabalhando na Presidência, na segurança, e que era coronel,
assistente do force commander anterior, e que ficou comigo mais um
tempo. Nós fomos lá para aqueles lados, levamos um bocado de tiro
e tal, e eu falei: “O que é a Casa Azul?”. Ele falou: “É aquele predinho
ali”. Eu falei: “Vamos pegar esse prédio!” [risos]. Aí ele falou para mim
assim: “General, os bandidos vão endoidar!”. Eu falei: “Se endoidar,
endoidou. Nós vamos em frente”. Lembro que ele perguntou várias
vezes para mim: “O senhor vai fazer isso?”. Falei: “Vou! Agora! Vamos
para o confronto e vamos fazer o que tem que fazer”.
Aí foi bolada essa operação, que eu, sem criatividade nenhuma,
chamei de Operação Blue House [risos]. Foi meia-noite, usando 18
ou 22 comandos e forças especiais nossos, do Brasil, reforçados por
tropa regular, para ocupar a casa e rapidamente fazer umas proteções
com saquinhos de areia levados na pá carregadeira dos tratores da
Engenharia e levantar já no segundo andar para se deitar atrás delas
e aguentar o contra-ataque — porque eles iam tentar pegar a casa. E
jogar, rapidamente também, muito arame farpado em volta para não
deixar o contra-ataque vir para a casa. Aquilo ali era para mostrar:
olha, chegamos aqui, vamos ficar aqui, e daqui nós vamos para frente.
Você tem que mostrar determinação. Nesse tipo de ambiente, se você
não mostrar determinação, não tem saída.
Fizemos a simulação de ataques em toda a volta do bairro, com
patrulhas tentando passar por esses buracos que eu falei. Sempre
que você chegava com uma patrulha na beira de um buraco desses,
você era contra-atacado na hora. E foi pega a Casa Azul. Quando eles
perceberam que aquilo tudo era simulação e que o ponto forte era a
casa — isso aí demorou uns 20, 25 minutos para acontecer —, nós já
estávamos instalados.
a atacar a Casa Azul, a atacar o ponto forte 16, que hoje é a delegacia de
Cité Soleil, a atacar patrulhas na rua… A gente começou a perceber
que eles começaram a coordenar mais as ações deles, então estava
havendo uma evolução no negócio. Então pensamos: vamos ter que
ocupar tudo agora.
Foi organizada uma grande operação no dia 9 de fevereiro, duas se-
manas depois. Aí foram todos os efetivos do Brasil, do Peru, da Bolívia.
A Jordânia emprestou os blindados para uma companhia brasileira que
não tinha blindado, a de Uberlândia. Os motoristas da Jordânia com o
pessoal brasileiro embarcado. O Chile estava com um pelotão, se eu não
me engano, e o Uruguai também estava com um. Então, foi todo mundo.
Botamos entre 700 e 800 pessoas na operação, com mais ou menos 60
blindados para pegar só o primeiro bairro — e pequenininho — que é
esse de Boston. Nessa segunda grande operação, tivemos que gastar
12 mil tiros. Nós recebíamos muito mais tiro do que isso. Eu nunca
tinha visto coisa igual na minha vida, de tanto que eles atiraram. Eles
acharam que podiam defender, juntaram todas as gangues e foram se
defender da nossa entrada. Então isso nos deu chance de ir para um
combate mais ou menos decisivo. Tanto que, depois, as outras reações
foram praticamente zero. Aquela ali foi a grande operação. Então, essa
falsa noção de que era possível defender território…
Uma hora da tarde o pessoal falou para mim que já tinha chegado na
base desse Evens. E uma e meia da tarde me disseram que a população
estava saqueando a casa dele. O saque é uma coisa que caracteriza que
você perdeu o poder. Se a população saqueou é porque o cara fugiu,
perdeu o poder. Aí eu desci da Casa Azul pela avenida Soleil, fui até
lá, mas quando cheguei, ainda não tinha percebido que havia alguns
pontos de onde eles ainda estavam resistindo, ainda levei alguns tiros.
Isso já era uma e meia, duas da tarde. Depois nós ocupamos, fizemos
ali um ponto forte. Infelizmente, depois morreu um soldado brasileiro,
eletrocutado num fio, naquela posição.
A operação começou às três horas da manhã e foi até as três da tar-
de. Tivemos que gastar 12 mil tiros e mais algum armamento pesado
que você usa, não para atirar em pessoal, mas para efeito psicológico.
O sujeito tem que ter absoluta certeza de que você foi para decidir.
Você não pode ir para ficar um pouquinho e voltar. Esse negócio não
adianta. O cara tem que ter essa convicção: ou ele se entrega, ou, se ele
for para o confronto, ele pode morrer, ou ele foge. Você não pode fazer
uma ação dessas sem convicção e sem transmitir a convicção para o
outro lado. E se o sujeito escala o conflito, você tem que escalar junto.
Se ele aumentar o calibre da arma, você aumenta o seu. Sempre um
passo acima. Você tem que se impor. Isso aí é bom porque, quanto
mais forte você for, menos possibilidade de conflito você tem. Você
tem que ir com uma força muito superior. O seu armamento tem que
ser superior. Sua superioridade tem que ser muito forte, até para evitar
reação, porque quando a coisa é muito parelha o sujeito acredita que dá
para reagir. Às vezes, as pessoas não entendem por que você vai com
uma força tão superior. É exatamente para evitar a reação. E a tropa
era muito bem treinada.
O senhor ficou dois anos e três meses no Haiti. Nesse período, de quando o
senhor chegou até quando saiu, o que mudou na sua percepção do cenário?
Naquela época eu tinha mudado muito. Quando cheguei, tinha essa
situação de Cité Soleil; resolvi que ali o conflito ia ser direto. Tem uma
outra área chamada Martissant, onde estava o pessoal do Sri Lanka,
também muito problemática, muito pior em termos geográficos de
atuação e mais difícil que Cité Soleil — não é falada muito aqui por-
que o Brasil presta atenção onde está o batalhão brasileiro. Lá estava
o batalhão do Sri Lanka, batalhão muito bom também. Lá a minha
opção foi diferente. A operação foi de cerco e de busca; o batalhão do
Sri Lanka normalmente fazia o cerco e a polícia da ONU, junto com a
polícia do Haiti, fazia uma varredura, uma busca 100%.
Mas o que era decisivo para isso? Eram mais as características do terreno?
Características do terreno e também do nível de confronto. Cité Soleil
é fácil porque é absolutamente plana e tem marcação de ruas, o que
1
No dia 9 de junho de 2018, as Forças Armadas realizaram sua primeira operação
na favela da Rocinha desde o início da intervenção federal no estado do Rio. Fonte:
<www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/militares-e-policiais-federais-fazem-
-operacao-na-rocinha-pela-1a-vez-desde-inicio-da-intervencao.shtml#>. Acesso
em: 5 set. 2019.
O que se faz aqui hoje é em parte resultado do que se fez no Haiti primeiro?
Quem começou primeiro não sei, mas é muito semelhante uma coisa
com a outra.
tropa no Rio de Janeiro não é de hoje, é coisa muito antiga já. Se você
for ver, por exemplo, na Eco 92, que foi uma das primeiras grandes
conferências mundiais de problemas ambientais, teve representante
quase que do mundo inteiro no Rio, e a força armada foi usada 100%.
Então isso aí é coisa antiga, a maneira de atuação em ambiente urbano.
Depois você vai sofisticando um pouco, vai refinando, mas acredito
que o Brasil já foi para o Haiti sabendo 80% da lição.
rias — eu não era dos notáveis [risos] mas fui convidado, e participei.
Teve uma reunião com todos em Nova York, depois em Adis Abeba, na
Etiópia. Só cinco falaram na União Africana. Eu fui um deles. Depois
teve uma reunião na ONU onde também só cinco falaram e eu fui um
deles, convidado por uma inglesa que era a chefe do trabalho. Fomos
depois à China, uma experiência que valeu a pena, uma boa experiência.
Depois, em 2013, o senhor já tinha ido para a reserva, mas foi chamado para
assumir a missão da ONU no Congo.
Em dezembro de 2012 eu fui para a reserva obrigatoriamente, porque
na promoção para quatro estrelas só tinha uma vaga, eram cinco can-
didatos; um é escolhido e os outros quatro têm que ir embora. Processo
normal. Eu estava convidado para ir fazer uma palestra no arquipélago
dos Açores. Muito interessante, um lugar maravilhoso. No mesmo dia
que voltei, fui chamado para trabalhar na SAE, fiquei lá só por dois
meses. Um belo dia eu estava almoçando, me liga um assessor militar
da ONU, lá de Nova York. Quando eu era o comandante no Haiti, ele
era o comandante no Congo; depois eu voltei para São Paulo, a vida
seguiu, e ele foi ser assessor em Nova York.
O que é que aconteceu no Congo? É um problema muito complexo,
eu vou resumir bastante aqui. O problema é na parte leste do país, na
fronteira com Ruanda e com Uganda, onde você tem as etnias tútsis e
hútus. As etnias tútsis estão no poder em Ruanda e em Uganda, e às
vezes apoiam grupos rebeldes dentro do Congo. Tudo isso é na faixa de
fronteira, mas com trânsito de gente para lá e para cá. E tem a cidade de
Goma, com mais de 1 milhão de habitantes, na fronteira com Ruanda.
Em 2012, houve mais uma das soluções teóricas, acadêmicas, de fazer
um processo de reconciliação nacional. Você pega todos os grupos
armados e chama para um diálogo nacional; coloca para dentro do
Exército e aproveita a capacidade militar que eles desenvolveram —
apesar de não serem muito disciplinados, você faz uma reciclagem e
um processo de reconciliação nacional. Isso é muito bonito no papel.
Na prática, você tem que mandar para a Justiça, processar quem tem
que ser processado, quem cometeu crime, porque senão você vai fazer
um exército de assassinos também.
Eu sou radicalmente contra esse tipo de solução teórica. Fizeram
isso lá. Só que a etnia tútsi que entrou para o Exército nunca, realmen-
te, se adaptou, e manteve a estrutura paralela de comando. Em 2012,
parte desses 2 ou 3 mil sai e leva caminhões de munição, artilharia,
armamento pesado, carro de combate e faz um grupo rebelde chamado
M23, apoiado pelos vizinhos — que logicamente dizem que não, mas
estavam apoiando. Esse M23 pegou uma parte ali de território e ocupou
Goma, uma cidade que tem um movimento de dinheiro muito grande,
que fica dentro de uma das áreas mais ricas do Congo, de produção
de ouro, de uma série de outros minerais. A ONU tinha uma brigada
dentro de Goma, e essa brigada não reagiu. Ela não fez nada. Por quê?
Dentro daquelas ideias de que: “Se eu não estou sendo agredido, eu
não posso… Eu estou no capítulo seis, ou sete…”. Aquelas discussões
teóricas todas, que não levam a nada. E o Exército do Congo, que estava
junto com a ONU, retraiu para uma cidade a oeste, a uns 25 quilômetros
dali, chamada Sake.
2
Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=uQMAhUF9Cxc>. Acesso em: jun. 2018.
3
O coronel Mamadou Ndala foi assassinado em janeiro de 2014.
A ONU ter mais poder não faria com que o uso da força fosse mais eficaz?
Não, porque a ONU não é um governo. Mas no ambiente acadêmico, é
importante esse tipo de consideração teórica. Você cria esses modelos
teóricos e acaba estabelecendo algum padrão, alguma referência, mas
na prática não acontece do jeito que está idealizado.
Fala-se que a missão no Haiti foi muito diferente, por vários motivos, das
missões que acontecem na África.
Eu fui a primeira vez ao Haiti em 2006. Morei lá durante todo o ano de
2007, todo o ano de 2008, uma parte de 2009; voltei em 2010, 2011 e
2012. Fui sete anos seguidos ao Haiti. Depois voltei em 2015. Quando
saí do Congo, vim pelo Haiti. A missão do Haiti teve problema na che-
gada, é lógico, no primeiro contingente. Mas a missão, depois de 2008,
nunca mais teve qualquer risco. O risco que o Exército correu aqui no
Rio de Janeiro — se você for ver o número de tiros que o Exército levou,
de feridos, mortos e a quantidade de munição gasta — é muito maior
do que no Haiti. Depois veio o terremoto. O terremoto não tem nada
a ver com o problema de segurança do Haiti. É um desastre natural.
4
Disponível em: <https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/improving_se-
curity_of_united_nations_peacekeepers_report.pdf >. Acesso em: jun. 2018.
Nunca entendi o que é que o Brasil tinha a ver com a República Centro-
-Africana. Eu brinco com o pessoal. Acho que comércio não tem ne-
nhum. Com o Congo, nos últimos anos, teve 7 milhões de dólares de
comércio — é metade do dinheiro que um cidadão aí tinha dentro do
apartamento dele lá em Salvador.5 Quer dizer, é insignificante. Com
a República Centro-Africana, é menos ainda. Você tem que ver qual é
o objetivo de você participar de uma missão de paz. Para o militar, do
ponto de vista militar, sempre é bom. Por quê? É dinheiro extra para
treinamento, dinheiro extraorçamentário para compra de material,
uma experiência do pessoal em outro local, ganha dinheiro… Até
pessoalmente é melhor. Mas, e do ponto de vista de política exterior,
qual é o objetivo? Essa é que é a questão. Quem tem que justificar a ida
para uma missão de paz é o Ministério das Relações Exteriores, não é
o Ministério da Defesa. O Ministério da Defesa executa. Ele pode até
dar a opinião dele, o parecer dele, mas justificar para a nação, justi-
ficar para o Congresso, é o Ministério das Relações Exteriores que
tem que fazer isso. Qual seria a justificativa para ir para a República
Centro-Africana?
Casualmente, fui contratado pela ONU para fazer o tal do relató-
rio, e fui para o Mali e para a República Centro-Africana. Fiquei uma
semana lá. Entreguei o relatório para o secretário-geral no dia 20
de dezembro. Pelo contrato com a ONU, eu tinha seis semanas para
fazer esse relatório. Voltei para o Brasil no dia 22 de dezembro. Aí me
chamaram no Ministério das Relações Exteriores e perguntaram: “O
que é que você achou da República Centro-Africana?”. Eu falei: “É um
grande Rio de Janeiro” [risos].
5
Referência à quantia de dinheiro em espécie encontrada em um apartamento de
Geddel Vieira Lima, então ministro do governo de Michel Temer, pela Polícia Federal
no dia 5 de setembro de 2017. Fonte: <https://g1.globo.com/politica/noticia/policia-
-federal-encontra-dinheiro-em-apartamento-supostamente-utilizado-por-geddel.
ghtml>. Acesso em: jun. 2018.
Em que sentido?
Em termos de incompetência de administração, em termos de falta
completa de domínio do poder público sobre vários locais do país.
Grupos armados que não têm nenhum objetivo político — com exce-
ção de um, que tem agenda política. Quer dizer, esse que tem agenda
política, você pode realmente sentar à mesa de negociação, você pode
dar uma cadeira no Congresso, você pode negociar coisas. O resto
são bandos armados que só querem explorar as condições locais de
tráfico, cobrar taxa ilegal, fazer check point nas estradas, explorar os
comerciantes etc. São grupos armados que não têm nenhuma agenda
política. É só explorar. Briga pelo poder local. Mais nada!
É como aqui. Qual é a agenda política das gangues aqui no Rio?
Nenhuma. Nem o governo. O Rio foi governado pelo crime organiza-
do, só que desarmado. Mas você tem o crime organizado armado e o
desarmado. A partir da hora que você tem o governador criminoso6
mancomunado com secretários de Estado, com quase todo o Tribu-
nal de Contas, o que é isso? Isso é crime organizado. Então, o Rio de
Janeiro esteve na mão do crime organizado, que também não tinha
nenhuma agenda política. A agenda política dele não era em benefício
da população do Rio de Janeiro: era roubar o máximo possível. Esses
grupos armados lá na República Centro-Africana, também. Por isso
que eu falei para ele: “É um grande Rio de Janeiro” [risos].
6
Menção ao ex-governador do estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho, con-
denado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa, entre
outros delitos. Fonte: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/20/
mp-rj-denuncia-sergio-cabral-e-outros-2-por-corrupcao-lavagem-de-dinheiro-
-e-organizacao-criminosa.ghtml>. Acesso em: mar. 2019.
7
No dia 13 de junho de 2018, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann,
informou que o secretário nacional de Segurança, general Carlos Alberto dos Santos
Cruz, deixaria o cargo para atuar como consultor da ONU. Fonte: <https://g1.globo.
com/politica/noticia/secretario-nacional-de-seguranca-deixara-cargo-para-ser-
-consultor-da-onu.ghtml>. Acesso em: jun. 2018.
A origem, o senhor acha que foi o presidente Temer querer fazer uma ação
que aumentasse o seu prestígio político?
Tem que dar uma olhada política, para responder. Esse governo aí
assumiu há cerca de dois anos, com dois graves problemas: corrupção
e insegurança pública. Corrupção, o governo não atacou. Talvez até
por ter vários ministros, o próprio presidente [Temer] investigado
em vários casos. Eu acho que são nove ministros investigados pela
Mas o que ficou para a população em geral foi: se o Exército teve esse sucesso
no Haiti, então, aqui, terá o mesmo desempenho, e o resultado será o mesmo.
O sucesso no Haiti foi só na parte de segurança, não foi na parte de
administração pública. A miséria continua a mesma, a corrupção
continua a mesma, as eleições foram todas fraudadas, tiveram que
repetir todas as eleições. A administração pública do Haiti não mudou
nada. O Haiti não tem sucesso político nenhum. Não tem sucesso de
8
Destino de uma nação (Darkest hour). Direção: Joe Wright. Inglaterra/EUA, 2017.
Fonte: <www.imdb.com/title/tt4555426/ >. Acesso em: jun. 2018.
O
general de divisão Floriano Peixoto Vieira Neto nasceu
em 1954, em Tombos (MG). Graduou-se na Academia
Militar das Agulhas Negras (Aman) na arma de In-
fantaria em 1976. Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO) em 1985 e a Escola de Comando e Estado-Maior
do Exército (Eceme) em 1993. Em 2002, realizou o Curso de
Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx)
na Eceme e o MBA Executivo em Administração de Negócios e
Gerenciamento de Projetos na Fundação Getulio Vargas (FGV).
É bacharel em administração de empresas pela Universidade do
Sul de Santa Catarina (Unisul). Foi assessor militar brasileiro
na Academia Militar de West Point, do Exército dos Estados
Unidos, de 1996 a 1998. Em 2004, chefiou a Seção de Operações
do primeiro contingente brasileiro na Missão das Nações Unidas
para a Estabilização no Haiti (Minustah) e em 2009 retornou
ao Haiti como comandante das Forças de Paz, função na qual
permaneceu até 2010. Comandou a 2a Divisão de Exército em
São Paulo entre 2011 e 2014 e integrou o Painel Independente
de Alto Nível da ONU para Operações de Paz de 2014 a 2015. Foi
ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da Repú-
blica em 2019, assumindo em seguida a presidência da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).
Em que sentido?
No sentido, por exemplo, de capacidades, no sentido de treinamento
prévio para chegar a atingir essas capacidades, do material a ser levado
para o Haiti, da própria logística, de comunicações, de infraestrutura
do país. Então, nós conformamos ali um estudo que propiciou ao final
Nesse período em que o senhor esteve lá, em 2004, como foi cumprir essa
missão? O que houve de dificuldades não previstas?
A dificuldade maior foi minimizada até com o apoio das tropas da
Força Multinacional Interina, que nos passou todos os relatórios de
inteligência — sabíamos, portanto, a localização das gangues, quais
eram os seus líderes. A dificuldade maior foi a gente manter o tempo
das operações. Na realidade, houve uma substituição em posição. As
nossas tropas substituíram as tropas da Força Multinacional Interina,
e a dificuldade foi, portanto, manter o ritmo das operações para que
não cedêssemos espaço às gangues e para que elas não viessem a se
projetar de uma maneira mais intensa.
O general Heleno falou na entrevista que nos concedeu que ele tinha uma
preocupação muito grande em diferenciar o que eram as forças brasileiras
no contexto da missão de paz do que eram as forças de intervenção que
estavam ali anteriormente; que havia uma certa dificuldade no começo,
até esclarecer que a missão era outra, que não era um contexto de interven-
ção, mas uma missão de paz. O senhor podia falar um pouco sobre como
foi esse trabalho?
Eu não posso detalhar essa afirmação do general Heleno porque eu não
tenho acesso ao que ele disse; portanto fica difícil inferir qualquer
lógica em cima do que ele falou. Mas o tipo de missão cumprida por
ambas as forças é bastante diferente, embora ambas — a MIF como
força de intervenção e a Minustah como força de pacificação — tives-
sem respaldo legal, jurídico, internacional, pelas Nações Unidas, para
estar lá. Então não foi uma intervenção goela abaixo. Foi algo consen-
sualmente admitido pelo Conselho de Segurança. Isso é muito claro.
Porque às vezes as pessoas criticam muito — evidentemente, pessoas
que não têm o conhecimento necessário e esse entendimento — que a
Força Multinacional Interina foi uma força de intervenção à margem
de qualquer regulamento, de qualquer instrumento legal que viesse
autorizar sua presença. Não foi, não. Mas, então, houve uma mudança
muito súbita de procedimento. Isso é verdade.
A força de intervenção estava lá como uma força de choque para,
desde a saída do Aristide em fevereiro até a transferência de respon-
sabilidade, assegurar uma estabilidade mínima, razoável, para que as
tropas da ONU pudessem ser desdobradas, e a partir daquela condição
mínima de estabilidade pudéssemos avançar, buscando a pacificação.
Então, eles tiveram que implementar ali uma força muito grande no
início. Ela foi continuada pela nossa tropa da ONU, que era uma tropa
de estabilização atuando sob a égide do capítulo VII. Portanto, de acordo
com os artigos 39 e outros, da carta das Nações Unidas, o capítulo VII,
nós tínhamos autorização para empreender qualquer tipo de ação para
valer os termos do mandato. E isso foi feito, desde o primeiro dia em
que entramos em ação até o término da missão. Mesmo com o terremo-
Quando o senhor volta ao Haiti, cinco anos depois, como o senhor encontra
a missão?
Encontro a missão muito bem-sucedida. Há que se dizer que a Minus-
tah foi uma das melhores e uma das missões mais bem-sucedidas da
ONU. Temos duas aí ao longo da história: a missão no Timor Leste e a
no Haiti, que foram as duas missões da atualidade mais bem-sucedidas
da ONU. Portanto, eu fiquei muito satisfeito, porque, tendo estado lá
em 2004, vendo aquele universo de dificuldades, pude constatar que
em cinco anos a ONU fez um trabalho espetacular de pacificar e de
começar a reerguer o país, com o conceito de peace building, ofere-
cendo à comunidade internacional uma credibilidade suficiente que
estimulasse o aporte de recursos para projetar o país.
Foi muito satisfatório encontrar pessoas, funcionários da ONU com
quem eu havia trabalhado intensamente em 2004. Isso facilitou muito
o meu trabalho como force commander, pelo conhecimento prévio que
eu tinha do país. Como oficial de operações, todo contingente inter-
nacional que chegava ao Haiti de outros países, por nós já estarmos
lá há mais tempo, eu era o responsável por levá-los até as suas bases
fora de Porto Príncipe. Por essa e por outras razões, e como já falei, de
termos oito bases, eu circulei muito pelo Haiti, portanto eu era muito
familiar com o país.
O Haiti era um país que estava pronto para se projetar. Todas as
instituições funcionando, escolas, universidades, hospitais, porto,
1
O general Douglas Fraser era o comandante do Comando Sul dos Estados Unidos.
2
O chefe da Minustah, o embaixador tunisiano Hedi Annabi, foi uma das vítimas
do terremoto.
O senhor faz parte de uma geração de chefes militares brasileiros que pela
primeira vez teve essa experiência real. Antes, a oficialidade não participava
de missões de paz, não nessa escala. Qual é o retorno disso para o Exército?
O retorno é muito grande, exatamente pelo que você falou, porque o
Exército tem uma estrutura de treinamento, de formação e de ades-
tramento, em que procura sempre se atualizar, buscando referências
internacionais, buscando estudos estratégicos que permitam atuali-
zação dos conceitos doutrinários, operacionais. Porém, uma imersão
num cenário real dá uma outra noção da complexidade da formação e
3
Refere-se ao ex-governador Sérgio Cabral Filho.
E agora o senhor está no King’s College, qual é a posição que o senhor está
ocupando?
Quando eu me aposentei, decidi que não queria mais trabalhar for-
malmente, das 8 às 17, usando terno e gravata, embora isso pudesse me
trazer alguma compensação financeira. Preferi me dedicar realmente
àquilo que eu gosto. Eu tenho um contato muito grande com a academia,
com as universidades, giro muito aqui pelo Brasil, na parte de relações
internacionais, na parte de ONU, em diversas universidades. Também
faço parte do conselho, do board de consultores da Fundação Dom Ca-
bral, em Belo Horizonte. E tenho uma contribuição mais efetiva com o
King’s College. Desde 2015, vou para lá todo ano, fico aproximadamente
três meses, ministrando aulas e também atendendo a mestrandos e
doutorandos. Vou também para a Universidade de Dalhousie, no Canadá,
e para a Universidade Nacional de Defesa, nos Estados Unidos. Então
eu giro muito, procurando transmitir minha experiência, enquanto eu
tiver lucidez e ela for válida e possa servir no mínimo como referência
para estudos, de alguma forma. É o que eu tenho feito agora. E participo,
também, de eventos internacionais, quando me chamam. Eu fico muito
nessa rotina, em sua maior parte, fora do Brasil.
O
general de divisão Luiz Guilherme Paul Cruz nasceu em
1957, em Aracaju (SE). Estudou no Colégio Militar do
Rio de Janeiro em 1969 e ingressou na Escola Prepara-
tória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em 1972. Graduou-se na
Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) como oficial de
Infantaria em 1978. Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO) em 1987 e a Escola de Comando e Estado-Maior
do Exército (Eceme) em 1995. Cursou uma pós-graduação no
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
(UnB) em 2002. Realizou o Curso de Política, Estratégia e Alta
Administração do Exército (CPEAEx) na Eceme em 2004 e um
MBA Executivo em Administração de Negócios e Gerenciamento
de Projetos na Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2005. Foi
instrutor na Academia Militar de West Point, do Exército dos
Estados Unidos, entre 1998 e 2000. Comandou o Batalhão da
Polícia do Exército de Brasília entre 2002 e 2003 e chefiou a
quinta subchefia do Estado-Maior do Exército de 2011 a 2014.
Foi diretor do Escritório de Parcerias Estratégicas para Manu-
tenção da Paz do Departamento de Operações de Paz da ONU de
2014 a 2017. Esteve no Haiti duas vezes: em 2008 comandou o
oitavo contingente do Batalhão de Infantaria de Força de Paz do
Brasil e entre 2010 e 2011 comandou as Forças de Paz da Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah).
O senhor mencionou essas ações de assistência, paralelas. Isso tem a ver com
a experiência, por exemplo, das Acisos?1 Era uma coisa parecida?
Sem dúvida. Inclusive, essa forma de atuar quebrou alguns entendi-
mentos que as Nações Unidas têm, porque ela é setorizada: militar
é militar; policial é policial; civil-político é civil-político; Assuntos
Civis é que trata disso, que vai ter o contato. “Ah, não, para falar de
escola é o Unicef.” Ora, é simples, eu conversei com a diretora do
Unicef e disse: “Em que posso ajudá-la?”. Aí ela disse: “Em tudo!”.
“Então nós vamos ajudar em tudo o que pudermos. Vamos proteger o
seu pessoal, vamos melhorar escolas… Me diga qual que você quer
que a gente melhore.” Desde escolas menores até algumas maiores, e
de deixar arrumada, pintada, quadros, acertar um bebedouro… Coisas
que parecem simples, mas, onde não há capacidade de investimento…
As escolas lá são particulares. E aí dizem: “Mas vocês, então, estão
favorecendo…”. Não. Nós estamos favorecendo as crianças. E quem
favorece as crianças, os pais começam a pensar: “Hum… Talvez eles
não sejam tão ruins assim”. Então você vai procurando o contato, para
humanizar esse contato, com a orientação que nós tínhamos, que
era sempre de reduzir o conflito, mitigar o conflito, que é a missão.
Missão de paz é isso. Você diz: “Escalar ou reduzir?”. “Reduzir. Ache
uma solução.” Se for necessário, você atua com força. Mas quando
não é necessário… E é preciso sempre ter a opção de diminuir o
conflito, de buscar um consenso. Isso era buscado, era entendido e
assim fazíamos.
E a polícia do Haiti? O senhor tinha que coordenar com eles algumas vezes,
não?
Sim. A coordenação era junto com a Unpol. Então, eles tinham todo um
contato com a polícia do Haiti, e nas nossas áreas de responsabilidade,
isso era feito com a Unpol.
O que perguntam?
Perguntam sobre a situação do país, qual o entendimento que você
tem sobre o cenário existente. Verificar, naquele momento, o que seria
2
Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto atingiu o Haiti deixando uma série de ví
timas, incluindo autoridades das Nações Unidas e diversos membros da equipe da
Minustah que estavam no Hotel Christopher, que abrigava o quartel-general da ONU
na capital do Haiti, Porto Príncipe. O então force commander da Minustah, general
Floriano Peixoto, não estava no local no momento do incidente. Fonte: <https://
istoe.com.br/144550_SEIS+HORAS+SOB+OS+ESCOMBROS/>. Acesso em: jan. 2018.
3
Campos que servem de abrigo para deslocados internos da ONU.
Porque teve a acusação de que foi um soldado nepalês, que estaria doente.
Sim. Porque o cólera veio do tipo do que ocorre no Nepal e, de repente,
surge uma acusação para a tropa nepalesa, que foi acusada de ser a
propagadora do cólera no Haiti. Mas a ONU tem contratado estudos da
Universidade Johns Hopkins, que dizem que não. Saint-Marc foi o epi-
centro, onde apareceu, mas fica a mais de 100 quilômetros rio abaixo de
onde estava essa tropa do Nepal. Eu fui de imediato e os médicos foram
de imediato a essa unidade. Eu não estou falando “eu ouvi dizer”, não.
Eu fui. Eu era o force commander. Levei o médico da missão, o chefe dos
médicos todos. Mas, é claro, aparecem os experts de tudo, com interesses
diversos. E, naquele caso, um dos interesses que eu identifiquei foi
que havia uma divergência entre o comandante do batalhão do Nepal
e o prefeito de Mirebalais, que era onde eles se encontravam. Então é
complicado. Mas também as pessoas precisam se questionar: quantas
ONGs tinham lá? Quantas pessoas estavam entrando e saindo do país
a qualquer momento sem controle sanitário? Eu tenho a convicção de
que não foram os nepaleses. E esse estudo corrobora. Mas isso não foi
divulgado, porque outros interesses das Nações Unidas… Aí deixo
com eles. O interesse do Haiti, na minha cabeça, é dinheiro: “Me dê
dinheiro, me indenize”. Em outros lugares, eu chamaria de blood money.4
4
“Dinheiro de sangue” ou dinheiro de indenização de conotação negativa.
5
Coronel Nilton de Figueiredo Lampert, então comandante da Companhia de
Engenharia.
que dar outra solução”. Isso acontece muito por aí; é uma das grandes
discussões das Nações Unidas.
Volto ao Haiti. O force commander é brasileiro, com dois batalhões
brasileiros e uma companhia da Engenharia brasileira. Eu, um ge-
neral do Brasil; meus coronéis lá, que também eram meus amigos, o
entendimento, a confiança mútua, é num outro nível. Mas a cadeia de
comando, nas Nações Unidas, é mais tênue. Em uma operação nacional,
um comandante dá uma ordem — e ele dá essa ordem de acordo com o
Plano de Campanha, de acordo com a legislação nacional. Essa ordem
é para ser cumprida. Não existe “veja bem”, é “vá e faça o melhor”.
Nas Nações Unidas, essa ordem pode esbarrar nessas restrições de
emprego, que são os caveats, porque o comandante nacional vai ligar
para a sua capital e a sua capital vai dizer: “Negativo”. E ele vai dizer,
na maior tranquilidade, para o force commander dele: “Minha tropa
não vai” e o force commander não vai fazer nada. Pode até reclamar,
pode perguntar para as Nações Unidas, perguntar para a missão: “É
isso mesmo?”. E depois o DPKO pode dizer: “Olha, está bem, sua tropa
não está funcionando, então nós vamos substituir”. Não ocorre com
frequência, embora as discussões sejam acaloradas.
O senhor faz parte de uma geração de oficiais que passou a ter essa expe
riência de participar ou como observadores ou na missão do Haiti. A geração
anterior não teve isso. No máximo, fazia manobras na Amazônia.
É, alguns foram a Angola e Moçambique. Mas estava mais afastado.
Qual é a diferença que faz, em termos de carreira, para um militar, ter essa
experiência?
Olha, é muito positivo. Sua operação vai durar um ano, e isso faz a
sua cabeça pensar em mais coisas. Você, quando está no comando de
um batalhão ou no comando de toda a operação, tem que pensar no
agora, no hoje, no amanhã, no daqui a uma semana, no daqui a um
mês e no daqui a um ano. Nas escolas, você aprende o estudo de situa
ção continuada, e você coloca isso em prática valendo vidas dos seus
soldados e das pessoas que você protege. Então, há o entendimento
dessa responsabilidade. Isso lhe dá um amadurecimento profissional
muito grande porque são vidas.
Indo inspecionar tropas por aí, você chega num lugar e você en-
contra muita coisa errada. Na minha primeira missão, eu fui ao Mali,
vi coisas erradas, aí tive que contar a história do centurião romano
para alguns comandantes. O centurião ia lá, marchava com a sua
tropa, parte da Legião Romana, aí parava. Parou, já ia um pegar umas
estacas, botar a proteção, a paliçada, já mandava o pessoal fazer uma
verificação no contorno, já ia alguma escolta. Porque, se acontecer
alguma coisa, essa tropa vai receber o ataque, e os que sobrarem vão
interesse do nosso país é: “Eu vou lá? Vou participar? Então, vou para
ajudar a resolver”. E o interesse das forças é: “Minha tropa está lá?
Então, todo o apoio à minha tropa, em tudo que eu puder”. Não é isso
que acontece. Uma unidade, eu tive que mandar um e-mail na hora,
para o subsecretário-geral: “Chefe, isso aqui não pode mais, não dá”.
E acabou que essa unidade foi retirada, na República Centro-Africana.
A unidade teve que sair. Essa unidade tinha combatido no seu país,
o Congo. Aí foi designada para uma missão de paz em Darfur, no
Sudão, e passou um ano lá; daí a União Africana criou uma missão na
República Centro-Africana e essa unidade foi colocada lá. A unidade
não foi substituída, estava há três anos fora de casa, sem contato com a
família; recebendo os 30 dólares que a ONU dá. Sem saber o que é uma
guarnição. Porque aqui, você fala um quartel, aí você imagina uma
construção, uma guarda aqui, uma guarda ali, alguns procedimentos.
Não. Estava ali espalhada na região da cidade de Bambari, passava
gente e tal. É duro dizer, mas você acha que não vai ter problema de
abuso sexual? Pelo amor de Deus! Não seja ingênuo. O país não tinha
condições de participar, foi retirado.
Uma consequência interessante: depois, conversando com o general
[Jean] Baillaud, um francês que foi até o deputy [o subcomandante] do
general Santos Cruz no Congo… Ele voltou para prestar uma assessoria
ao Congo. O chefe do Estado-Maior do Congo, a RDC, perguntou: “Mas
o que nós fizemos de errado?”. Eu disse: “Tudo. Como é que pode a
unidade proceder assim?”. Aí eles criaram um curso de alto nível para
o alto-comando da força, do tipo dos cursos que nós temos aqui, na
Escola Superior de Guerra, no CPEAEx, para passar algumas informa-
ções de relacionamento internacional, de administração superior, de
entendimento até de Força de Paz, essas coisas todas. A consequência
é que esse chefe do Estado-Maior foi a todas as aulas. É claro que todo
mundo foi a todas as aulas. E isso provoca uma revisão de conceitos
em toda a força. A gente tem aqui no Brasil todo o conhecimento tanto
de administração como de estratégia e de operações.
Por quê?
Qualidade. Conhecimento. E não é exatamente o que tem lá. O grau de
violência é menor do que em outros lugares, principalmente para uma
tropa que vai sair do quartel, vai sair do seu acampamento. Se você for
para o Sudão do Sul e ficar dentro de um aquartelamento, para que você
foi? Você ir para o Mali e ficar dentro do aquartelamento, para que você
foi? No cenário no Mali, principalmente nas regiões mais ao norte, há
uma questão do problema da guerra assimétrica, que é mais difícil.
Entretanto, já em conversa com esse novo force commander, eu voltei
ao Mali, fiz nova inspeção lá com ele. As tropas que se posicionaram
como o centurião romano, que se deslocavam em formação tática, que
tomaram todas as medidas de segurança, essas não perderam ninguém.
As tropas que apresentavam falhas já perderam muitos. Em particular,
para cá, numa região que vinha sendo atacada, houve vítimas, houve
soldado de Bangladesh morto. E, é claro, quem atacou também mor-
reu. E eles identificaram esse lugar e foram lá. “Por que vocês estão
nos atacando? Nós estamos trazendo esses comboios que, no final das
contas, vão trazer comida para vocês, porque vai acabar a comida na
capital. E outra coisa: se vocês continuarem nos atacando, nós vamos
usar a força, e nós podemos perder alguém, mas vocês vão morrer.
Então, como é que a gente pode acertar isso aí? Trazer alguém de or-
ganização, de governo, para acertar uma mediação?” Naquele período,
então, passou a não ter mais nenhum ataque. Eu disse: “Parabéns,
comandante. Isso é o entendimento de uma situação para diminuir o
conflito”. Agora, se não houver esse entendimento, vai lá e usa a força,
aí encerra. Mas isso requer inteligência, força, manutenção, movimen-
tação, flexibilidade, conhecimento. Assuntos Militares 101. E, é claro,
toda a proteção. Você está indo em uma operação em que você tem que
pensar o hoje, o amanhã, o daqui a pouco e se adaptar o tempo todo e
estar preparado para muito. Do ponto de vista operacional, para a força
e seus profissionais, esse desafio é muito interessante.
de que aquela tropa está lá, que vai ficar, para proteger as pessoas, e o
Estado, então, terá a oportunidade de estender seu braço lá dentro dessa
área. Infelizmente, em algum ponto não aconteceu, por negligência do
Estado. Mas, em qualquer lugar: uma área pobre, transforma aquilo
num bairro, mesmo; resolveu quase tudo. Vai resolver tudo? Não, não
vai. Sempre, em algum nível, a criminalidade vai acontecer. Para isso
você tem a polícia, o sistema judiciário, que vai seguir. Agora, não pode
chegar ao ponto de instabilidade.
Como militar, se o senhor tivesse que escolher entre integrar uma tropa numa
ação de GLO ou uma missão de paz?...
É claro que eu prefiro a missão de paz. E digo logo por que eu não
quero operar como GLO: porque GLO eu estou operando no meu país.
Significa que há um problema no meu país, e isso eu não quero. Mas
tem que fazer essa operação? Ah, então, vamos fazer, e fazer bem. E
esperar também que as outras instituições apareçam. O aprendizado,
também, em GLO, não foi só da Força. Foi de todos os outros órgãos.
Você precisa do Judiciário, você precisa do Ministério Público, para
que se mantenha na lei. Você precisa de orientação de todo tipo. Você
não pode expor a sua tropa; você não pode expor a população. A dosa-
gem do que você vai fazer, o trazer todas as instituições de segurança,
o trazer a mídia para entender e fazer a parte de inteligência… Há
uma guerra de mídia social. Entender imediatamente esse conceito
e trabalhar neste conceito, neste campo de atuação, também, que vai
trazendo as suas redes de proteção. Houve emboscada de mídia, com
mídia social. Você cria um fato, um conflito, e se você entende aquilo
que está acontecendo, você não escala o conflito, você desescala. Mas
se houve uma ameaça direta, com tiro, aí há o acerto, dentro da regra
de engajamento, que é uma coisa muito difícil de treinar e precisa ser
muito treinada. Porque você tem menos de meio segundo para acertar a
resposta. O seu dedo vai apertar o gatilho ou não vai apertar o gatilho?
Isso é muito fácil de dizer aqui, no ar-condicionado, eu estou sen-
tado, está ótimo, é fácil falar. Mas quando está voando tiro para tudo
quanto é lado e você começa a sentir pela sua segurança, faz toda a
diferença ser treinado, saber que eu tenho um apoio, saber que tudo
aquilo ali está funcionando. E aí você terá a resposta certa: vai ou não
vai? É um desafio grande. Nossas tropas aprenderam muito, sabem
muito e temos muitos conceitos em que fomos pioneiros, jogando para
a Força de Paz, até desafiando na Força de Paz. O estabelecimento dos
pontos fortes, o estabelecimento imediato de Acisos naquelas áreas;
o projetar poder sobre uma área, não com o significado de esmagar
aquela área, mas de trazer para si.
Hoje a gente tem um conhecimento bastante forte, e um sentimento,
daqueles que participaram — esse é o grande ganho. É intangível, mas
a qualidade do nosso profissional é outra. Por isso vale a pena. Eu vi
uma entrevista agora de um professor dizendo: “Não é a nossa área
de atuação”. Me apropriando da expressão da ministra do Superior
Tribunal, eu digo: “É se apequenar”. Nós somos grandes, nós podemos
fazer. Fazemos parte do mundo, e isso nos traz responsabilidades
mundiais. Vai ter custo? Vai. Vai ter problema? Vai. Agora, há também
ganhos intangíveis, há ganhos imediatos, há ganhos futuros, e cabe
a quem tem a responsabilidade e, espera-se, engenho e arte de fazer
o melhor e trazer o melhor. Porque é possível trazer boas consequên-
cias, bons resultados, cumprindo esse desafio. Não é só um peso, um
ônus. É possível ter bônus, de alguma forma. Tenha engenho e arte,
ou pergunte para aqueles que sabem.
O
general de exército Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira
nasceu em 1956, no Rio de Janeiro (RJ). Ingressou na
Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx)
em 1973 e graduou-se na Academia Militar das Agulhas Negras
(Aman) em 1979, na arma de Infantaria. Concluiu a Escola de
Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) em 1990 e a Escola de Co-
mando e Estado-Maior do Exército (Eceme) em 1997. Na Eceme,
realizou o Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do
Exército (CPEAEx) em 2006. É mestre em operações militares
e doutor em ciências militares. Foi observador militar na Força
de Proteção das Nações Unidas, na ex-Iugoslávia, de outubro
de 1992 a outubro de 1993. Entre 2003 e 2005, foi assessor
parlamentar do Comando do Exército no Congresso Nacional.
Serviu como adido militar da embaixada do Brasil em Tel Aviv,
Israel, de 2005 a 2007. Comandou a Força de Paz da Missão das
Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) entre
2011 e 2012 e a 1a Divisão de Exército, na cidade do Rio de Janeiro,
durante a realização da Copa do Mundo de Futebol (Fifa 2014)
e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em 2016. Nesse mesmo
ano, foi nomeado comandante militar do Sudeste, função que
exerceu até junho de 2019. Tornou-se, em seguida, ministro-
-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República,
em substituição ao general Santos Cruz.
olítico: você tem que dizer ‘eu preciso do seu voto’”. E eu disse na
p
entrevista: “I wanna be force commander. This is my dream. I wanna be
responsible for the security of lives in Haiti”.1 Então eu deixei claro para eles:
“Eu quero ir. É o meu sonho”. Aquilo, eu acho que foi muito importante.
Bom, aí acabei sendo selecionado, fui para Nova York, passei uma
semana. Eu tenho uma característica: valorizo muito a inteligência
emocional. As pessoas às vezes fazem coisas incríveis, por motivação.
Não é só se preparar; você tem que estar motivado. Coisas incríveis
ocorreram na história, por pessoas que fizeram uma diferença — Mar-
tin Luther King e vários outros exemplos —, porque eles tinham algo
que os levava a fazer coisas que você não imagina. Eu dou muito valor
a essa parte emocional. Então, quando recebi a designação, a primeira
coisa que fiz… Você lá é um civil. Não sei se vocês sabem, se os outros
force commanders falaram, mas para a ONU você é um civil contratado
para a função de general. É um troço meio complicado. Inclusive, a
identidade que a gente recebe é D2. A minha foto era civil, apesar de ser
general. Mas o primeiro dia no prédio da ONU — aquilo foi um impacto
interessante — eu fui fardado, botei as medalhas, tudo, e entrei no
DPKO, só com oficiais, mas todos de terno, para começar as instruções.
Aquilo foi um impacto. Eu sei porque lá estava um coronel amigo meu,
que falou: “General, todo mundo já achou o senhor diferente, porque
o senhor veio fardado”. Eu falei: “Ué?! Mas eu sou general!”. Ele falou:
“Mas aqui na ONU eles têm muito essa sensibilidade”. Um exemplo: eu
fui adido em Israel, a gente usa terno. Você só põe a farda, como adido
militar, em alguma atividade fora da embaixada. Na embaixada, você
trabalha como civil. Tem essas sensibilidades, na área diplomática.
Mas eu fui fardado e, realmente, aquilo já… Em uma das conversas,
o cara me perguntou, eu falei: “I’m a general in Brasil. I don’t have any
problem to put my uniform. I’m so proud to use this uniform!”.2 Então, o
1
“Eu quero ser comandante da força. Esse é meu sonho. Quero ser responsável pela
segurança das vidas no Haiti.”
2
“Eu sou um general no Brasil. Não tenho problemas em vestir meu uniforme. Eu
uso esse uniforme com muito orgulho!”
Com duas ou três semanas, verifiquei que tinha que ser dado
prosseguimento à parte humanitária, mas eu estava já, pela inte-
ligência da própria ONU… Porque, quando você chega lá, já existe
todo um trabalho que vem, independente de terremoto. Eu assumi
em março. Começaram a me passar a preocupação com o aumento da
criminalidade. Eu vivi isso. O Floriano viveu o terremoto, o Paul Cruz
viveu as pessoas no meio da rua, o Ajax encerrou a missão. Eu acho
que o diferencial que aconteceu comigo foi o seguinte: quando foi
em julho, pela quantidade de informações que eu recebi, eu decidi…
Isso realmente eu decidi sozinho. A gente brinca: decisão isolada
do comando. Eu conversei na época com o meu assistente, que é um
grande amigo meu, e ele falou: “É, general, vai ter reação”. Porque eu
decidi fazer uma grande operação nas favelas, operação policial, para
tentar diminuir a criminalidade. Porque, depois do terremoto, não
sei se o Floriano falou, muito preso fugiu. Então, de novo voltaram os
estupros, voltaram os problemas. E no campo dos desabrigados tinha
muita violência também.
Fui ao SRSG, que era um chileno, o Mariano Fernández, e falei: “Eu
gostaria que o senhor me autorizasse a fazer uma operação militar,
empregando toda a minha tropa”. Aí ele ficou meio assim… “Mas,
general, é momento para isso?” Eu falei: “Olha, é momento para isso.
A coisa está saindo de controle”. Aí eu fui literalmente bombardeado
por todo mundo que estava na missão. O chefe da missão ficou diplo-
maticamente, vamos dizer, na posição dele; o human rights [direitos
humanos] disse que não era o caso, que tinha muita coisa mais para
fazer, distribuir comida e tal, não era a hora de retomar a operação.
Eu fui literalmente, além de bombardeado, sabotado. Sabotado no
bom sentido. Dificuldade que as pessoas entendessem. A tropa, não.
A tropa imediatamente fechou comigo, porque minha vida inteira…
Eu sou paraquedista, igual aos outros. A gente sempre dá o exemplo:
é o primeiro a sair do avião; é o primeiro a estar de madrugada para
receber o soldado; na linha de servir para comer, é o último a se servir.
Isso aí é básico. Logo que cheguei, fui para a favela, andava de noite.
3
“General, por favor, não conte nada para o meu pessoal... para os meus militares.”
4
“O apelido que eu tenho com o meu povo?”
Ou seja, eu sou brasileiro, mas, nesse dia, eu sou Sri Lanka. Um país
que viveu 30 anos de guerra, a maioria dos caras tinha sido ferida,
aquilo já impactou.
Mas o boom dessa atitude foi na semana seguinte, quando eu fui ao
batalhão argentino, que era em Gonaïves, e eu ficava em Porto Príncipe.
Quando eu desci do helicóptero, o coronel argentino veio, olhou para
mim e olhou para a bandeira argentina, aí ele sorriu. Eu não falei nada.
Passamos pela guarda, aí ele não se conteve, falou: “General, usted está
con la bandera argentina en su pecho”.5 Eu falei: “Espere que yo voy hablar
con la tropa”.6 Aí, durante a formatura, o batalhão em forma, eu falei:
“Estoy acá hoy como un general de Brasil, force commander, comandante
de la fuerza, pero hoy mi corazón es argentino. Tengo en mi pecho la bandera
argentina porque amo su patria”.7 Olha, aquilo foi realmente… eu nunca
mais vou esquecer. A sensação que você tem de você fazer uma coisa
simples, que é botar uma bandeirinha no… Mas mudou tudo. Cada
force commander teve o seu papel, a sua importância. Eu acredito que,
realmente, nessa área, eu fui feliz.
Na Coreia do Sul, eles são muito emotivos. Eu fui à companhia co-
reana — é outro troço que me marcou —, e eu gosto de apertar a mão do
soldado. É outro troço que eu faço. Tem gente que não faz. Não adianta,
isso tem que ser da pessoa. Quando eu era capitão, andava na Amazônia,
eu sou forças especiais, aprendi a trabalhar como um bando de irmãos,
como aquele filme Band of brothers, a gente rachava a mesma panela de
comida. Então eu sei o valor que é um soldado. “Então, o que me resta”
— eu sempre faço esse discurso — “nesse momento, é cumprimentar
cada um dos senhores”, e eu desço e aperto a mão de todo mundo. Fiz
isso no Haiti, que também foi uma coisa que o pessoal não esperava.
Mas, na Coreia — os coreanos, eu não tinha ideia de como eles eram —,
5
“General, o senhor está com a bandeira argentina no seu peito.”
6
“Espere, que eu vou falar com a tropa.”
7
“Estou aqui hoje como um general do Brasil, force commander, comandante da força,
mas hoje meu coração é argentino. Tenho no peito a bandeira argentina porque amo
a pátria de vocês.”
8
“Por favor, não façam isso!”
9
Área nobre da cidade de Porto Príncipe.
comunidades no Rio de Janeiro do que quem nunca foi. Isso é fato. Por
dois motivos: um, pelo preparo… A tropa era preparada praticamente
seis meses: treinamento; ensaio; tumulto na rua, queimar carro e tal,
como é que eu vou proceder; achar cadáver na rua, como é que faz,
quem chama. Então você tinha uma preparação muito minuciosa.
Era diferente para quem não estava indo para o Haiti. E, no Haiti, nas
operações, você ganhava alguma coisa que você… Se nós formos agora
para a selva sem preparo, vai ser uma loucura, mas se nos prepararmos
e formos passar duas semanas na selva amazônica, além do que você
se preparou, você vai ganhar conhecimento, vai agregar valores, pela
atividade que você está exercendo. Ou seja, essa era a grande diferença
do pessoal que atua em comunidade.
10
“Eu não sei o segredo. Tente descobri-lo.”
O
general de divisão Fernando Rodrigues Goulart nasceu
em 1958, em Belo Horizonte (MG). Estudou no Colégio
Militar de Belo Horizonte de 1970 a 1973 e ingressou
na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em
1974. Graduou-se na Academia Militar das Agulhas Negras
(Aman) em 1980 como oficial de Infantaria. Cursou a Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) em 1990 e a Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) entre 1995 e
1996, onde recebeu o título de doutor em ciências militares.
Realizou também uma especialização na Academia de Comando
das Forças Armadas da República Federal da Alemanha de 2001
a 2002. Comandou o 62o Batalhão de Infantaria em Joinville de
2004 a 2005. Foi observador militar em Moçambique em 1993;
comandante de setor da Missão das Nações Unidas no Nepal
(Unmin) em 2007; e oficial de ligação militar na Divisão da
Europa e América Latina no Departamento de Operações de Ma-
nutenção da Paz (DPKO), no quartel-general da ONU, em Nova
York, entre 2008 e 2009. Comandou a Força de Paz da Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah)
entre 2012 e 2013. Foi vice-chefe de Assuntos Estratégicos no
Ministério da Defesa de 2016 a 2018. Escreveu artigos para a
Revista da Eceme, a Revista de Doutrina do Exército Brasileiro e a
Military Review. É autor do livro Ação sob fogo: fundamentos da
motivação para o combate (Bibliex, 2012).
O senhor era então capitão. Como era sua função lá, como observador?
Na época, eu era capitão. Fui promovido a major. Eu tive uma função
muito interessante para um brasileiro, que era bastante apreciado pela
missão porque estávamos num país de língua portuguesa, e a minha
missão em particular foi associada a essa habilidade que nós temos da
língua portuguesa. Foi a de ser oficial de ligação da ONU com o governo
de Moçambique — o partido Frelimo, que era o partido do governo
de Moçambique — e com a Renamo. Então eu e um oficial espanhol
mais antigo éramos os dois oficiais de ligação. Intermediávamos,
cuidávamos de violações do acordo de paz, que tinham que chamar
1
Disponível em: <https://careers.un.org/lbw/attachments/competencies_book-
let_en.pdf >. Acesso em: fev. 2018.
2
Sistema de verificação de antecedentes antes da aprovação de um candidato para
um posto.
Como comandante, o senhor deve ter tido que lidar também com muitas ONGs,
de todos os tipos, atuando lá. Havia algum grau de interação com a missão?
Existia um grau muito grande. A missão das Nações Unidas no formato
atual, que é chamada de missão integrada, tem, normalmente, dois
sub-representantes especiais do secretário-geral: um é o político, o
segundo na linha de sucessão e que secunda o SRSG nas suas tarefas;
o outro é o chamado coordenador humanitário, o coordenador resi-
dente. Este lida com a equipe das Nações Unidas na área da missão,
o chamado UN-Team, e lida com todas aquelas ONGs que atuam na
mesma área. O UN-Team é formado pelas agências, fundos e programas
especializados das Nações Unidas. Então, onde tem uma missão inte-
grada, cabe a um alto funcionário coordenar o Programa Mundial de
Alimentação, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
o Unicef, o fundo das Nações Unidas para tratamento de pessoas com
doenças como Aids e outros tipos, a Organização Mundial da Saúde, às
vezes um representante do Banco Mundial. Então, todas essas agên-
cias e fundos das Nações Unidas são coordenados. Essa é a interface
da missão com eles.
Da parte militar, todas aquelas áreas humanitárias que precisam
de um apoio da missão — cujo apoio é melhor provido pelos mili-
Isso tem a ver, por exemplo, com as Acisos, no Brasil? É algo parecido?
Tem, tem a ver. Aciso é uma situação planejada. Elas eram conduzidas
pelo contingente brasileiro e, muitas vezes, com apoio exclusivo do
Brasil. Eles não distribuíam meios fornecidos pelas Nações Unidas,
muito embora as Nações Unidas tivessem alguns recursos para isso,
que eles colocavam sob o rótulo do quick impact projects [projetos de
rápido impacto], os QIPs. Então isso levava alguns recursos aos con-
tingentes, para eles estenderem algum tipo de apoio. O orçamento das
Nações Unidas para isso era limitado, mas tinha essa possibilidade.
Fora isso (os outros países também faziam isso, o Peru, Guatemala,
mas nosso país liderava, pela sua capacidade), o Brasil disponibilizava
meios para que o próprio contingente brasileiro conduzisse as Acisos.
Além disso, o que aparecesse de forma inopinada, não planejada,
mas qualquer emergência que envolvesse civil, nós dávamos o apoio.
Nunca acontecia de uma patrulha passar perto de alguém ferido, talvez
num acidente ou numa briga de rua, e não dar um primeiro socorro
àquela pessoa.
3
Expressão que invoca a imposição de tomar uma decisão difícil sob pressão e
enorme sacrifício pessoal. É uma referência ao livro homônimo de William Styron,
publicado em 1979. Três anos depois, Alan Pakula dirigiu a versão para o cinema,
que valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz.
O
general de exército Edson Leal Pujol nasceu em 1955, em
Dom Pedrito (RS). Estudou no Colégio Militar de Porto
Alegre e ingressou na Escola Preparatória de Cadetes
do Exército (EsPCEx) em 1971. Graduou-se na Academia Militar
das Agulhas Negras (Aman) em 1977, na arma de Cavalaria.
Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) em
1986 e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme)
em 1994. Retornou à Eceme em 2004 para o Curso de Política,
Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx). Cursou o
MBA Executivo em Administração de Negócios e Gerenciamento
de Projetos na Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2005 e no
mesmo ano fez um curso de Gestão Estratégica da Informação
na Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Foi ob-
servador militar na Missão de Observação das Nações Unidas
em El Salvador (Onusal) em 1992 e adido de defesa naval e do
Exército na embaixada brasileira no Suriname entre 1998 e
1999. Comandou a Aman de 2009 a 2011 e as Forças de Paz da
Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minus-
tah) de 2013 a 2014. Foi comandante militar do Sul entre janeiro
de 2016 e abril de 2018. Em maio de 2018, assumiu a chefia do
Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. Tornou-se,
em 2019, comandante do Exército brasileiro.
1 O Grupo de Observação das Nações Unidas na América Central (Onuca) foi uma
missão das Nações Unidas que durou de 1989 a 1992, autorizada pelo Conselho de
Segurança. Seu objetivo era verificar o compromisso assumido pelos governos
da América Central de suspender o apoio a forças irregulares e a movimentos de
insurreição na região, por exemplo, ao não permitir o uso de seus territórios para
ataques a Estados vizinhos. A missão também teve papel crucial na desmobilização
voluntária da Resistência da Nicarágua e no monitoramento de um cessar-fogo e
separação de forças, conforme acordado pelos atores políticos do país. Fonte: <https://
peacekeeping.un.org/en/mission/past/onuca.htm>. Acesso em: nov. 2018.
O senhor teve que participar de uma entrevista? O senhor foi a Nova York?
Foi um pouco diferente do que estava ocorrendo normalmente no
processo seletivo, para quem ia assumir o comando do componente
militar lá no Haiti. No final de 2012, eu me encontrava aqui em Bra-
sília. Até aquele ano, o comandante era um oficial-general de duas
estrelas, um general de brigada. Devido ao aumento do tamanho do
componente militar, a ONU julgou que necessitava de um posto mais
A pergunta era no sentido de como lidar com organizações que tinham carac-
terísticas tão diferentes: Médicos sem Fronteiras, organizações religiosas…
Particularmente para nós, brasileiros, por conhecermos uma diver-
sidade de problemas e também por uma questão cultural nossa, da
maneira de ser do brasileiro — e tanto faz ser brasileiro fardado ou
não, nós herdamos essas características culturais —, a maneira de ser
do brasileiro se adapta facilmente. A missão na América Central foi
muito diferente da missão no Haiti, mas as duas foram sem preparação
prévia longa. Levei um susto, nas duas. Você agir normalmente para
tratar as pessoas e procurar entender os problemas e ter a boa vontade
de ajudar, isso facilita muito, até mesmo o nosso relacionamento com
os outros países integrantes da missão.
Não existe missão na ONU para general de exército, mas vamos supor que
existisse. O senhor seria voluntário para uma nova missão?
Eu te responderia de outra maneira. Nós, militares, não escolhemos
a missão. Nós escolhemos a profissão militar, e a profissão militar é
de cumprir missões difíceis. E se essas missões difíceis, ainda que
requeiram o risco das nossas vidas, tiverem o objetivo de ajudar ou-
tras pessoas, outros países, em qualquer lugar, nós estamos sempre
prontos para aceitar esse tipo de missão.
O
general de divisão Ajax Porto Pinheiro nasceu em 1956,
em Bragança (PA). Ingressou na Escola Preparatória de
Cadetes do Exército (EsPCEx) em 1974. Graduou-se na
Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1980, na arma
de Infantaria. Concluiu a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais
(EsAO) em 1989 e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
(Eceme) em 1996. Em 2006, fez o Curso de Política, Estratégia e
Alta Administração do Exército (CPEAEx) na Eceme e o MBA
Executivo em Administração de Negócios e Gerenciamento de
Projetos na Fundação Getulio Vargas (FGV). Participou do Grupo
de Observação das Nações Unidas na América Central (Onuca) em
1991 e foi observador militar na Missão de Observação das Nações
Unidas em El Salvador (Onusal) em 1992. Entre 1998 e 2000,
exerceu a função de assessor parlamentar do Comando do Exército
no Congresso Nacional. Comandou o 1o Batalhão de Infantaria
de Selva de 2004 a 2005. Esteve no Haiti pela primeira vez em
2010 comandando o 12o contingente do Batalhão de Infantaria de
Força de Paz do Brasil. Foi comandante da EsAO entre 2012 e 2013
e diretor de Educação Superior Militar de 2013 a 2015. Ainda em
2015, retornou ao Haiti para comandar a Força de Paz da Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), onde
permaneceu até o encerramento da missão em 2017. Em novem-
bro de 2018, foi escolhido pelo presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), José Antonio Dias Toffoli, como assessor especial.
1 Em agosto de 1991, no período de transição da antiga União Soviética para o que
viria a se tornar a atual Federação Russa, houve o que, para alguns, constituiu uma
tentativa de golpe por parte da oposição comunista. Tanques de guerra foram enviados
a Moscou e cercaram o Parlamento russo, onde o líder Boris Yeltsin se reunia para
discutir reformas. Porém, ao notar a presença dos tanques, ele se dirigiu diretamente
a eles, iniciando um diálogo. Após algum tempo, o líder militar ordenou que os
tanques se virassem para fora, dessa vez protegendo o Parlamento. Para muitos, tal
gesto sinalizou o fim concreto da possibilidade de um retorno à União Soviética co-
munista. Fonte: <www.bbc.com/news/world-europe-14589691>. Acesso em: fev. 2018.
Como observador, qual era a sua rotina, quais eram as principais missões?
Logo que cheguei, ainda com a missão da Nicarágua, nós vivíamos
na fronteira conversando com os órgãos de segurança para verificar e
escrever para a ONU se estava havendo passagem de armas do governo
da Nicarágua para a guerrilha de El Salvador ou da guerrilha da Nica-
rágua para o governo de El Salvador. A direita e a direita, a esquerda
e a esquerda. Era para manter a neutralidade. Só que a fronteira de
El Salvador com a Nicarágua é através de um lago. Então, El Salvador
não tinha muitos problemas na fronteira. Outros países tinham. Nós
ficamos seis meses nesse sistema. Logo em seguida, começaram pa-
ralelamente as negociações da guerrilha com o governo salvadorenho
para firmarem o acordo de paz em Nova York. Aí nós passamos a fazer a
segurança dos locais de zonas de pouso de helicópteros. Os helicópteros
brancos vinham para El Salvador, em dias que só nós sabíamos, para
retirar os comandantes guerrilheiros, levar para a Cidade do México,
de lá pegar um avião e ir para Nova York. Era complicado, porque alguns
militares do Exército salvadorenho diziam que, se eles vissem um
helicóptero sobrevoando a área deles, iam derrubar. Não interessava
se era da ONU, diziam que quem apoiava a guerrilha também seria
inimigo deles. Então, fazíamos contato com a guerrilha, entrávamos
na área liberada deles — quase metade do país era controlada pela
guerrilha —, e íamos à noite — dois observadores, três —, acampávamos
e dormíamos próximo do acampamento guerrilheiro. De manhã cedo,
nas primeiras horas do dia, a gente ia para um local X, fazia o baliza-
mento, entrava em contato com o helicóptero, ele entrava e, quando
tocava no chão, o comandante guerrilheiro aparecia. A gente sabia que
eles estavam próximos. Aí a tropa deles fazia a proteção, ele entrava
no helicóptero e saía. E tinha que sair rápido, porque, se demorasse
muito, pelo barulho, e se tivesse uma tropa do Exército, eles iam atacar.
A primeira vez que o senhor foi ao Haiti foi logo depois do terremoto, não?
Isso. Eu era o comandante, o general Rêgo Barros,2 subcomandante —
apesar de ser de Cavalaria, ele era o subcomandante de um batalhão de
Infantaria. Nós estávamos servindo aqui no gabinete do comandante
do Exército, ele chefiando a assessoria 2 e eu chefiando a assessoria
3. Fomos para o Rio, ficamos alojados na brigada paraquedista, pre-
parando o batalhão. O terremoto foi dia 12 de janeiro de 2010. No dia
10 de janeiro saiu o primeiro dos 10 voos da FAB, cada um com 130
soldados. Nós ficamos para trás porque precisávamos resolver proble-
mas administrativos. Iríamos lá pelo quinto, sexto voo, não lembro
exatamente. Nossa missão principal seria trabalhar na segurança das
eleições, que ocorreriam em fevereiro de 2010. O terremoto bateu no
Haiti dois dias depois de chegar nossa primeira leva de soldados. No
terremoto, dos 18 militares nossos mortos, um já era do nosso bata-
lhão, o major Guimarães [Márcio Guimarães Martins]. O segundo voo
nosso era previsto para o dia 12. Ele chegou ao Haiti uma hora depois do
terremoto. Não tinha mais aeroporto, ele foi para a República Domi-
nicana, reabasteceu, voltou para o Brasil. Aí fizemos modificações no
segundo voo, porque a situação já tinha mudado. A gente precisava ter,
no Haiti, o comando. Quase que todo o estado-maior entrou no avião.
Quando chegamos ao Haiti, pegamos uma viatura e fomos reco-
nhecer o centro da cidade para ter uma noção de como estava o país.
Em outubro nós tínhamos ido em um reconhecimento. Nós vimos um
Haiti, uma capital. Quando retornamos, era outro mundo. Aí já não
tinha mais ruas, não tinha mais nada. Sete dias depois do terremoto,
os corpos ainda estavam na rua, as pessoas brigando para sobreviver
e salvar quem ainda estivesse sob os escombros. Quem morreu não
2
General de divisão Otávio Santana do Rêgo Barros, nomeado pelo presidente Jair
Bolsonaro porta-voz da presidência da República (janeiro de 2019).
3
Furacão de categoria 4 que atingiu o Haiti em 4 de outubro de 2016, causando
mortes e destruição e ocasionando a postergação das eleições presidenciais no país,
inicialmente programadas para a mesma semana. Fonte: <www.bbc.com/news/
world-latin-america-37570409>. Acesso em: nov. 2018.
4
Sandra Honoré, diplomata de Trinidad e Tobago, representante especial do
secretário-geral para o Haiti.
do Chile ou do Uruguai e Peru, e ficava com eles lá. Voltava dois, três
dias depois. Fazia patrulha com eles, corria com eles, batia papo. Foi
muito integrado. E não tive problema de cumprimento de ordem. Muito
pelo contrário, eles faziam além do que era para fazer.
Os helicópteros de Bangladesh — tinha do Chile também — eram
muito bons. Eram três: dois para ficar sempre em operações e um em
manutenção. Eles estavam quase sempre com os três voando. Traba-
lhavam dia e noite. Muito, muito bons. E eu tinha uma companhia das
Filipinas que cuidava da área basicamente de segurança e adminis-
tração das bases, não só da minha, militar, mas dos civis. Contingente
feminino muito grande, muito disciplinado e sempre de bom humor.
A tropa mais feliz que eu vi. A brasileira era uma tropa feliz, sempre
de bom astral. Mas os filipinos são incríveis. Não existe problema para
eles. Filipino está sempre rindo. E ficavam um ano isolados porque
a passagem custava 3 mil dólares. Mas eles estavam sempre de bom
humor. Os argentinos, espetaculares. Chilenos, uruguaios, guate-
maltecos… no meu estado-maior eram 19 países. Nas tropas, havia
11 países representados, 10 quartéis com 11 países, porque tinha uma
base que era de uruguaios e peruanos, juntos. Tinha os paraguaios
também. Os paraguaios são quase brasileiros, os brasileiros são
quase paraguaios. Eu tinha sempre cinco coronéis, tenentes-coronéis
americanos. Ora marines, ora do Exército, ora pilotos. Muito bons. E
com muita experiência. Esses oficiais, normalmente, eles estavam
chegando ou iam para missões no Afeganistão e no Iraque. Muito
bons e muito disciplinados e planejadores, me apoiavam muito. Oito
ou nove canadenses. Mexicanos. Foi a primeira missão em que o Mé-
xico mandou oficiais para uma missão de paz; eles queriam aprender.
Equador não tinha tropa, mas tinha oficiais. Teve da Bolívia, depois
saiu e não voltou mais, não substituíram. Jordanianos, muito bons.
Nepaleses, muito amigos, disciplinados e competentes. Sri Lanka e
um coronel do Butão. Tinha uns que praticavam hinduísmo; outros, o
budismo, outros eram islâmicos, outros católicos, protestantes, tinha
de tudo. A ONU é uma Torre de Babel. Mas eu me integrava muito bem.
5
Furacão de categoria 5 que atingiu, entre outras regiões, o estado da Flórida, nos
Estados Unidos, e a República Dominicana. O furacão se formou por volta do dia 6
de setembro de 2017. Fonte: <www.nbcnews.com/news/weather/video/hurricane-
-irma-makes-landfall-in-caribbean-packing-185-mph-winds-1040356419529>.
Acesso em: nov. 2018.
mas é para a vida dele. Dizer que ele vai deixar aquilo para o Exército…
não, ele vai embora. Mas, para o pessoal de carreira, em todas as áreas,
inclusive de saúde, é um aprendizado. Eu digo que é o melhor lugar
para treinar uma tropa. Eu vou aprender mais se eu for para a guerra.
Só que não compensa. Eu vou perder vidas, é um desastre, eu vou gastar
muito e é uma destruição, não é um cenário ideal. O melhor cenário
para adestrar tropas é missão de paz, pelo treinamento e pelo que se
executa lá. E, como é uma missão que parcialmente a ONU custeia, é
um bom custo.
6
Disponivel em: <www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2018/01/29/in-
terna_mundo,656322/forca-militar-brasileira-na-africa.shtml>. Acesso em: fev. 2018.
7
A então senadora Ingrid Betancourt foi sequestrada em 23 de fevereiro de 2002
pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Permaneceu no cativeiro
até 2 de julho de 2008, quando foi libertada numa ação militar.
pediram apoio? Por que é que antes, quando ninguém queria entrar lá
para resgatar a Ingrid e outros reféns, expuseram os nossos pilotos?
Não vai ter outra missão dessa. Nós não estamos lá na Colômbia,
infelizmente. É um erro. Hoje tem 125 países participando de missões
de paz na ONU, 77 com tropas. Um pesquisador da UnB disse que os
americanos não participam em nenhuma missão de paz. Erro. Eles
têm, hoje, 56 militares participando de missões de paz. Eu tinha cinco
no meu estado-maior. Se revezaram quatro vezes, tive 20 e poucos.
Então, é erro, falta de informação. E países relevantes têm tropas
participando de missões de paz: Alemanha, Reino Unido, França,
Itália, China, Rússia, o G7 está todo aí. Também Índia, Suécia, Es-
panha, Irlanda, Polônia, todo mundo tem participação em missão de
paz. A França tem 815 militares, hoje, em missões de paz. O Brasil, se
for para a República Centro-Africana, vai com menos que a França.
Então, não precisa ir com 10 mil homens, 15 mil. O pesquisador da
UnB disse isso para desmerecer. Ele não viu que a Alemanha tem 600
homens em missões de paz. Então, todo mundo está no jogo; a isso o
Brasil não poderia se furtar.
O que projeta a imagem de um país é eu mandar 800 homens e eles
agirem com muito profissionalismo, a ponto de chamarem a atenção
da ONU, de fazerem a diferença. É isso que faz a diferença. Não é
quantidade. Eu posso mandar 4 mil e desandar, e fazerem besteira, e
as tropas cometerem estupros, e fugirem. No Sudão do Sul, duas tropas
de dois países que eu não vou citar que estavam bem próximas não
socorreram civis que estavam sendo violentadas. Isso é vergonhoso. Aí
a ONU manda tirar aquela tropa de lá. Ou então uma outra que estava
no Haiti em 2007 e cometeu umas barbaridades que envergonham a
ONU até hoje e foi punida. Não adianta eu ter 5 mil e cometer crimes.
O Brasil levou 800, não cometeu uma ilegalidade. Isso é um orgulho
para nós, e não teve um caso de assédio, de estupro. Teve uma acusação
infundada de que teria ocorrido um caso, anos atrás, em Jacmel. O
Brasil nunca esteve em Jacmel durante a missão, fica a quatro horas
de viagem da capital. As tropas brasileiras ficaram na capital o tempo
inteiro. Só no final foi que, como tinha menos tropa, eles saíam de
helicóptero para o sul do país. Mas não era esse caso aí.
Então, isso é que faz a diferença. Em maio, eu estava na reunião
dos force commanders em Nova York, o Lacroix [Jean-Pierre Lacroix,
diplomata francês], subsecretário-geral da ONU para missão de paz,
chefe do DPKO, veio falar comigo e disse: “General, a missão do Haiti
já vai acabar, mas nós gostaríamos que o Brasil enviasse tropas para
outras missões. Por duas razões. Primeiro, pela capacidade de reação
das tropas de vocês, pela flexibilidade. Se muda o cenário, as tropas se
adaptam e reagem rápido. Segundo, pela capacidade que vocês têm de
sair da base e ficarem acampados muito tempo fora, sem incomodar
a ONU, sem ficar pedindo o que não deve pedir”. Então, foram essas
duas capacidades que ele falou que a gente tinha.
Essas vagas da República Centro-Africana foram criadas para a
tropa brasileira. Elas foram criadas em um momento em que a missão
do Congo está diminuindo o efetivo, o Mali está estabilizado, acabaram
com a missão no Haiti, estavam terminando na Costa do Marfim. Todas
as missões foram diminuindo ou estabilizando. A única que aumentou
as vagas foi a República Centro-Africana, em conversações que tiveram
a partir de maio do ano passado. E era para oferecer para o Brasil. Ou
seja, a imagem que as forças brasileiras deixaram foi muito boa — e
não é porque eu sou brasileiro, é porque eu ouvia isso dos civis da
ONU. Uma tropa organizada é sinônimo de um país organizado. Não
dá para ter uma tropa organizada de um país desorganizado. Então essa
imagem é que fica. E ela fica no Conselho de Segurança, nos países
que estão na ONU. A notícia corre direto para Nova York. Quem está
em Nova York são diplomatas de países que não vão ficar a vida inteira
na ONU. E é essa imagem das nossas tropas que eles vão levar para o
país deles. Os próprios embaixadores dos países relevantes no Haiti
viam a atuação das nossas tropas e elogiavam. Eles não vão ficar a vida
inteira no Haiti. Daqui a pouco esse embaixador estará em um posto
importante no país dele, e a imagem que ele tem do Brasil é o que ele
viu lá. A imagem do Brasil que se tem no Conselho de Segurança é
Pelo que o senhor está falando, imagino que, se o senhor fosse coronel hoje,
seria voluntário para ir para a República Centro-Africana.
Eu queria ser capitão para voltar para a República Centro-Africana
[risos]. Eu sou voluntário. Sempre fui, para qualquer coisa. Mas a
minha mulher não deixa mais…
8
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/brasileiro-que-comanda-tropas-
-no-haiti-diz-que-problema-de-seguranca-do-rio-da-policia-21761584>. Acesso
em: jan. 2017.
não eram mais na cidade. Então, nos 11 anos de missão, até 2015, foi
sempre em uma área urbana, em áreas degradadas, como são as áreas
mais precárias no Brasil: favelas, comunidades, dê o nome que quiser.
É muito parecido, o ambiente era parecido. Não tanto Cité Soleil, que
era muito degradada. Querer comparar Cité Soleil com as favelas do
Brasil, a de lá era pior. Mas tinha outras áreas em que o Brasil atuou
no passado — como Bel Air e Cité Militaire — que são parecidas com
as do Brasil. Eu fui ao Complexo do Alemão com os capitães para uma
visita, quando comandava a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais.
É bem parecido, mas com Bel Air, não com Cité Soleil. Os procedi-
mentos, as táticas de abordagem, de entrada, que se praticaram no
Haiti são muito parecidas com as que se aplicam aqui. Então houve
um momento que eu não sei se o conhecimento ia daqui para lá ou se
estava vindo de lá para cá.
Mas antes de 2004 a gente já fazia no Rio. Por volta de 1996, teve
uma grande operação no Rio, acho que foi a primeira de que o Exército
participou; o comandante das operações ficou dentro da Fortaleza de
São João, eu estava fazendo a Eceme. Isso aí não era muito diferente
do que a gente fazia lá. O Complexo do Alemão é 2012. Outra grande
operação. Aí veio ensinamento. Mas eu diria que foi daqui para lá e
depois começou a vir.
Só que agora mudou. Agora é área rural, é outro cenário. Essa
experiência já não vai mais haver. Na República Centro-Africana, a
população é bem menor do que no Haiti, mas o país é 20 vezes maior,
eu acho. Então são áreas rurais. Mudou o cenário. Então essa expe-
riência vai, vem.
Quanto a ser empregado em atividades dentro do nosso país, isso
não é o que o Exército quer, não é o que nós gostaríamos de fazer.
Isso é um sintoma de que algo não está funcionando bem. O ideal é
que o país tivesse um índice de criminalidade aceito pela ONU, de 10
assassinatos, mortes violentas, no máximo, por 100 mil habitantes.
Acho que a cidade de São Paulo é que está chegando nisso aí. Mas essa
crise de segurança pública, que é um sintoma de que algo está dando
errado, é um fracasso. Dizer que está bem, não está. Mas não é função
nossa. O ideal é que a gente nunca fosse acionado para fazer isso aí.
Se se é acionado, é porque algo está errado. E não é função nossa. Os
comandantes do Exército, os mais antigos, têm dito isso. Nós atuamos
esporadicamente.
Também discordo quando algum policial militar de estado que
perdeu o controle da crise, com mortes violentas e gangues passeando
na rua com fuzis, diz: “É porque eles não estão preparados”. Olha, eu
respondo com o seguinte: “Se nós não estamos preparados, se a situação
chegou a esse ponto e é responsabilidade de vocês manter a segurança,
vocês estão preparados?”. Nós estamos preparados, sim. Nosso sol-
dado é preparado. Agora, tem que ter certos limites porque nós não
admitimos, por exemplo, sermos desrespeitados. Nós não gostamos
disso. Nenhum militar aceita. Nós temos um limite de tolerância que,
a partir dali, eu não aceito mais ser desmoralizado. Nessa hora, talvez
o policial tenha mais sangue-frio para aceitar certas provocações.
Se o nosso soldado está preparado para a guerra, uma missão de
segurança tem nuances, mas é mais simples. Se eu preparo para o
pior, ele consegue fazer o mais simples. Só que não é função nossa.
Eu não saí coronel, general, para participar de segurança pública. Se
eu gostasse disso, eu teria ingressado na Academia de Polícia. Não é
função minha. O coração não me leva a isso. Eu gosto de Amazônia,
comandei lá um batalhão. Eu gosto de comandar tropa blindada; no
Paraná, eu comandei. Aí, sim. Voar de helicóptero é bom, correr com
tropa é bom, atirar é bom. Missão de paz é muito bom [risos]. É mais
emocionante. É gratificante. É para isso que a gente é formado.
A missão de paz era a missão das nossas vidas, porque nós fomos
testados, corremos muito risco. Depois que passa, é bom. Dá medo,
tem hora que a gente tem medo. De falhar, medo de um soldado mor-
rer, levar tiro, a gente levar tiro também. Acho que duas vezes eu falei
para a tropa: “Vocês pensam que eu não estava morrendo de medo
quando mandei vocês para o furacão?”. Eu fiquei com medo. Claro.
Falei isso para os capitães na EsAO: “Quando você se apresenta a um
grande desafio, você pode tomar três atitudes possíveis: você espera
que o tempo resolva, você enfia a cabeça na terra e espera que outra
pessoa resolva, ou você diz: ‘Eu vou resolver’. Quando você decide que
vai resolver, podem acontecer duas coisas: dar tudo certo ou dar tudo
errado. Se der tudo errado, tenha certeza de que ninguém vai esquecer
que você é o responsável. O Exército, as Forças Armadas, o país, os
amigos, todos vão te culpar, dizer que você falhou”.
Em Ruanda, falhou; no Sudão do Sul, agora, falhou. Bem, mas eu
decidi fazer. Se falhar, a responsabilidade é minha. Se acertar, com um
mês ninguém lembra mais que você acertou. Só você sabe que acertou.
Todos vão esquecer também. Mas é bom. Aí você aprende a gostar de
fazer cada vez mais. Fez a primeira vez, vira um vício, você quer fazer
de novo. Toda vez que aparecer um problema, você vai dizer: “Eu não
vou esperar que o tempo resolva, eu não vou esperar que outra pessoa
resolva, eu vou resolver. E vou correr risco. Se der certo, aí eu gostei,
aí eu quero fazer mais e mais”. E aí pode errar de novo. Mas faz parte.