Dissertação - Lucilda Cavalcante Lourenço - Documentos Google
Dissertação - Lucilda Cavalcante Lourenço - Documentos Google
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ORIENTADORA:
PROF. DRA. Ceres Gomes Víctora
Fevereiro de 2022
Porto Alegre
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Fevereiro de 2022
Porto Alegre
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[Ficha Catalográfica]
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Banca Examinadora:
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Ceres Gomes Víctora (PPGAS/UFRGS)
_____________________________________________________________
Dr. Cauê Machado (IFCH/UFRGS)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos dos Anjos (IFCH/UFGRS)
_____________________________________________________________
Dr. Anderson de Jesus Costa (PPGCS/UFBA)
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às encruzilhadas
aos trilhos
às palhas
às matas
ao vento
ao pôr do sol
e à água do mar
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AGRADECIMENTOS
Laroye Exu, grande mentor e orí-entador deste trabalho. Patakorí Ogum, meu santo de casa
que faz milagre, por abrir os caminhos e vencer as demandas por mim. Atotô meu pai Omolu,
o andarilho, por me proteger de todo mal e cuidar das minhas feridas durante este percurso.
Oyá, minha orixá odu, grata pela força. Odoyá que me guarda em seus braços. Ao Ilê Àṣẹ
Ògún Oṣun, minha casa no aiyê. A benção meu pai, Vladimir Mathias de Ogum, quem me
abraçou quando eu sucumbi e me mostrou que sou digna de cuidado. Motumbá meus mais
velhos.
a minha bisavó (in memorian), Ciça, por ter sobrevivido à Casa Grande e dar início a esta
história.
às Marias:
Maria Lucilda (in memorian), minha avó materna, uma índia preta que me deu amor e nome,
que trabalhou uma vida como empregada doméstica para o padre-sociólogo, Charles Beylier,
vulgo, padre carlos, ex professor do departamento de Ciências Sociais da UFC, quem ajudou a
fundar o antigo programa de pós graduação em Sociologia do Desenvolvimento e carregou
minha mãe quando garota para as passeatas da Pastoral Operária. Mesmo sendo “quase da
família”, minha vó, minha mãe, minhas tias e tios nunca souberam o que é ciências sociais até
eu arrombar a porta. Dona Neguinha teria orgulho de mim.
Maria Lourenço, minha avó paterna pela sua graça, sabedoria, leveza, simplicidade e
grandeza, pela senhora como a senhora é. Para honrar sua história de luta e devoção é que sigo
em frente.
Maria Liduina, minha tia, por sempre ter uma história do passado que não me deixa esquecer o
propósito do futuro.
Maria Izabel Accioly por ser minha torre-Sandra e amarradão na torre dá pra ir pro mundo
inteiro. Elisabeth Maria, Elisa, ou melhor Lilica, pelo encontro ancestral do amor e pela
co-elaboração deste trabalho. Maria Aline, por ser uma que vai puxando a outra. Maria Cris
pela colaboração carinhosa e pela honra do desenho que ilustra esta dissertação. Ellen, que não
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àe zwanga nyack, minhe irmane, de sangue suor e santo, por ser areia de praia que segura
desde a ressaca do mar até a maré baixa, estando sempre aqui para receber com ternura essas
energias.
aos nortistas e nordestinos em diáspora, Bruno, Tati, Alef, Mariah, Elis e Cleiton, juntos
constituímos uma família na república. Em especial, Bruno pela irmandade, ao Alef pela
Fortaleza e Tati pela lamúria de tese que tanto me fez aprender sobre saúde, ciência e raça,
você me ensinou a amar a Bahia antes mesmo de conhecê-la.
ao professor Pablo Quintero que acolheu alguns desses retirantes no PPGAS e sempre foi por
nós nas lutas acadêmicas diárias. Obrigada pela reviravolta teórica que causou na disciplina de
teoria antropológica I e por ofertar o tópico antropologia e colonialidade.
à panelinha da turma de mestrado 2019, Camila, Júlia e Joanna, à vocês meu copo, meu
poema e meu porto alegre.
à Carll Serena que foi parceira de vida e de tema de pesquisa durante um bom tempo
a Ulysses Lion (in memorian), quem primeiro me apresentou Bob Marley e Facção Central
mas virou saudades no ano de 2021.
à Raquel Avoante, uma passarinha que pousou no meu quintal, bebericou meu café, beliscou
minha bolacha e disse que eu estava à beira do abismo, mas como somos aves de rapina, seria
uma ótima oportunidade de pleno vôo. eu amo ser tela pra tua arte.
à minha orientadora Ceres Gomes Víctora, pelo acolhimento no programa e na cidade a ponto
de me confiar sua casa durante o terceiro semestre do mestrado, justo nos primeiros meses da
pandemia de covid-19. pela orientação atenta e cuidadosa, como gosta de dizer, do tipo de
orientadora que é “sopro no cangote”, obrigada por estar e ser presente, além do curso de
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à banca, composta por José Carlos dos Anjos, Anderson de Jesus Costa e Cauê Machado, que
além de exímios pesquisadores, são excelentes professores e pessoas cuja trajetória teórica e
política eu tenho profunda admiração. Além de me honrarem com a presença e primeira leitura
do texto pós parto, também foram extremamente compreensivos com as minhas condições
emergenciais de prazos e datas.
à CAPES, pelo subsídio desta pesquisa. Sem a bolsa este trabalho jamais poderia ser realizado.
ao coletivo PAVI que promove oficinas sobre inventários fotográficos e preservação digital de
coleções antropológicas na Paraíba e no Rio Grande do Sul, na qual tive o privilégio de
participar.
ao Coletivo de Estudantes Negres do PPGAS, o Negra Coletividade, por ser quilombo e porto
para mim e tantos outros estudantes negres que adentram à pós-graduação.
à Aline Moura que é uma mãezona, pelas escutas e pela sapiência digna de quem veio antes e
tem muito a ensinar para os mais novos, junto a ela, sou grata a seu companheiro, Alonso,
também cearense, que assim como eu e tantos outros, aportou no Rio Grande do Sul e fez
questão de ajudar os que vinham chegando. Aisha Costa, doce como Osun, me encantou com
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Giovanna e Anderson, a família de vocês é prova viva de que amor preto cura e prospera.
Obrigada por terem me mostrado que a “frieza” e distância do povo do sul não se aplica às
famílias negras, somos calorosos em qualquer lugar deste país.
ao Luiz Fábio, meu (des)orientador da graduação, pelo carinho nesses longos anos de
caminhada e junto dele toda a tropa leviana (Igor, Ítalo, Suiany, Fernanda…) que, ao contrário
do que se diz, ainda existe e persiste. Prometo complicar menos a minha vida, tomando você
como exemplo.
à Brisa por não desistir de mim nem de si mesma e pela amizade de norte a sul desse país.
ao Adalton Marques, que gentilmente me doou a última impressão de seu livro “Crime e
Proceder: um Experimento Antropológico” quando nos encontramos na RAM 2019 em Porto
Alegre.
Amanda Lima, minha psicóloga que me acompanha, entre idas e vindas, desde 2017. Amanda,
muito além de uma profissional terapeuta, foi uma pessoa que me identifiquei bastante e
sempre acreditou no meu trabalho. Sou muito grata por nossos encontros.
à todos os meus afetos por aí espalhados em diversos pontos do mapa, que aceitam a minha
condição de itinerante, que convivem com a saudade e a expectativa da volta, lhes dedico os
trechos de Don L:
a gente não enterra, a gente planta/ a gente não ganha, a gente vence/ a gente não pede, a
gente manda/ a gente não curte, a gente ama/ a gente não quer, a gente tem que/ a gente
merece, a gente banca
Então, se este texto chegou até você e você chegou até aqui é porque a favela venceu.
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RESUMO
LOURENÇO, Lucilda Cavalcante. “Quando não é a guerra, é uzomi”: facções e a cena dos
reggaes de praça na Costa Oeste de Fortaleza/CE. Dissertação de Mestrado em Antropologia
Social - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. 2022.
Esta etnografia trata de como a história dos bairros da Costa Oeste de Fortaleza e a
faccionalização destes territórios perpassam/atravessam a cena do reggae de praça. Estão
em evidência os trajetos construídos por jovens, moradores de bairros vizinhos mas
dominados por facções rivais, em busca de um espaço de lazer. Busquei entender como as
“leis” das facções são incorporadas por estes jovens e como eles se relacionam com uma
cidade em contexto de guerra. A partir desta pesquisa foi possível entender como essas
juventudes desafiam as leis e constroem espaços de lazer, arte e cultura. O reggae de praça
permitiu acesso ao campo de maneira mais concreta e completa, trazendo questões
próprias mas também uma perspectiva menos fatalista sobre o cotidiano das favelas.
Abstract
LOURENÇO, Lucilda Cavalcante. “When it’s not the war, it’s the men”: criminal groups
and the street reggae scene at Fortaleza’s West Coast. Rio Grande do Sul, 2022. Master’s
thesis in Social Anthropology – Postgraduate Program in Social Anthropology. Federal
University of Rio Grande do Sul. 2022.
This ethnography approaches on how the Fortaleza’s West Coast neighborhoods history
and the factionalization of these territories run through/crosses the street reggae scene.
This work puts in evidence the paths made by young people that live in border
neighborhoods dominated by rival factions, seeking for a leisure space. I’ve tried to
understand how the factions’ “laws” are incorporated by these young men and how they
relate to a city that is permanently in a contexto of war. From this research it was possible
to comprehend how these youths defy the laws and create spaces of leisure, art and
culture. The street reggae scene allowed in-field access in a more concrete and complete
way, bringing up its own questions but also a less fatalist perspective on the favela’s
quotidian.
LISTA DE FIGURAS
GLOSSÁRIO
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO…………………………………………………………………………..17
CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………………125
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………127
17
APRESENTAÇÃO
Desde o seu princípio, esta foi uma pesquisa ousada. A flecha de Oxóssi, por mais
certeira, atirava em uma caça muito distante que não lhe era possível alcançar a tempo. Como
no Itan, foi necessário Oxóssi fazer as pazes com Ogum para que este lhe abrisse os caminhos
da mata com sua espada e juntos alcançassem o alvo. O reggae, neste trabalho, possui o papel
de Ogum no Itan: traçar caminhos e possibilidades mais firmes para a realização do seu
propósito.
Durante a pesquisa, estive em contato com diversos jovens que são artistas
independentes da periferia, que estão constantemente na luta para fazer seus trabalhos
acontecerem. São fotógrafos, cantores, rappers, profissionais do audiovisual, DJ’s, dançarinos,
dentre outras linguagens artísticas e formas de expressão. Portanto, devo salientar que houve
uma questão sobre apresentá-los devidamente como forma de fazer jus aos seus trabalhos.
Reconheço a vulnerabilidade destes jovens artistas dentro deste cenário de conflito, onde
muitas vezes são impedidos de trabalhar ou divulgar seus trabalhos em lugares dominados
pela facção rival, que tem seu cotidiano de produção artística interpelado pela violência, opto
pelo anonimato, substituindo os seus nomes pelos de artistas consagrados nacionalmente na
cena do rap brasileiro. Os artistas que não fizeram parte da pesquisa como colaboradores
tiveram seus nomes artísticos mantidos. Aqueles artistas que de alguma forma tiveram
interlocução com a pesquisa e entraram na dissertação, tiveram seus nomes alterados no
momento em que descrevo a situação, mas no caso de citar a obra em alguma epígrafe, por
exemplo, o artista é citado corretamente.
Para além disto, este trabalho só se tornou possível através do lugar da autora na
produção de conhecimento. Ser uma mulher negra, periférica na academia e na rua é o que me
faz ocupar um papel específico dentro do contexto etnográfico que aqui será trabalhado. E é, a
partir deste papel em específico, que as reflexões teóricas e metodológicas desta etnografia
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É neste ritmo, que gostaria de inseri-los nos capítulos que seguem. O primeiro
capítulo, intitulado “Etnografia Transeunte”, possui sete tópicos. No primeiro deles, delimito
uma forma substantiva que indica como irei me retratar aos sujeitos de pesquisa ao longo de
todo texto. Pretendo com esta categoria substituir a maneira como se referem aos sujeitos
negros e favelados a partir do lugar de branquitude dos pesquisadores da violência.
O segundo tópico deste capítulo é, talvez, o mais elementar da dissertação. Nele irei
destrinchar sobre uma categoria êmica que percorre todo o trabalho, pois ela percorre também
toda a experiência das juventudes faveladas na cidade mediante a guerra. O terceiro tópico, é
um breve relato sobre algumas experiências em um reggae de praça que não pôde fazer parte
da pesquisa como eu gostaria, por acontecer de forma intermitente, sem previsão. Contudo, o
pequeno relato de experiência contido neste tópico foi importante para amadurecer alguns
pontos da pesquisa, como a minha localização em campo e o contexto político que a cidade
viveu e vive.
política, que tenta sublinhar uma história que é constantemente apagada: dos povos negros e
indígenas que habitam o lado oeste da cidade.
O tópico sobre a “A Paz” tem por objetivo discorrer sobre como a pesquisa chegou
no contexto e no universo aqui presentes. Trata-se do processo de lapidação da pesquisa, onde
conto todo o trajeto percorrido para encontrar a melhor forma de tornar esta etnografia
possível. Conto um pouco da minha caminhada nas pesquisas sobre violência, partindo das
questões de gênero nos estudos sobre facções e como isso me levou até o reggae, fazendo uma
revisão sobre a “Paz” e seus significados teóricos e etnográficos. O tópico “Boca de Prata”
traz um tema que amarra diversas outras questões presentes neste capítulo, e que são
importantes em toda a dissertação, as relações de gênero e a gestão dos afetos a partir da “lei”
das facções.
Após explanar sobre o que está de fato no cerne desta dissertação, trago no tópico
seguinte, intitulado como “Eles descem pro beco pra resolver problema de condomínio", uma
reflexão, dialogando com o campo teórico, que pretende tensionar as relações de alteridade
construídas entre os autores desta área do conhecimento e os sujeitos de pesquisa.
Posteriormente, no tópico sobre “Cria de favela”, discuto as nuances sobre pertencer a um
território e se identificar com alguma “sigla”, ou seja, facção. Veremos como a
faccionalização foi incorporada no cotidiano da favela e constrói subjetividades, em
contrapartida, se torna mais uma forma de enquadramento das populações já subalternizadas.
O primeiro tópico deste capítulo, que leva o título de “Welcome To Barramar”, trata
sobre a forma como fui inserida em campo como fotógrafa do reggae. Apesar disto já ter sido
tratado anteriormente, é neste momento que o título me é conferido “oficialmente”. O tópico
seguinte também leva o nome de uma edição do reggae, “Baile Love”, onde pude experienciar
20
Por fim, convido a acessarem, através do QR Code a seguir, a playlist de músicas que
foi construída ao longo da pesquisa. A playlist contém uma parte muito pequena das músicas
que tocavam nos reggaes que fizeram parte desta etnografia. Nem de longe, meu intuito foi
trazer todas as músicas que embalaram as noites de reggae na Costa Oeste. O que tentei fazer
ao construir esta playlist foi reunir as músicas pessoalmente mais marcantes e que, em
detrimento da pesquisa, eu fui gradativamente descobrindo o nome das canções. Além de
reggae, na playlist também podem ser encontradas as músicas que utilizo no texto, seja como
elemento narrativo ou em epígrafes.
22
Minha palavra preferida na língua do português que nos foi imposta é “transeunte”.
Descobri ela no Livro do Desassossego de um poeta também português, Fernando Pessoa
(2006). A palavra me chamou atenção pela disposição ortográfica e por eu desconhecer
totalmente o seu significado. Na época, aficcionada por dilemas de filosofias existenciais, me
agarrei a esta palavra completamente vazia de sentido para mim e atribuí a ela toda liberdade
poética. Sem interesse nenhum em buscá-la no dicionário para averiguar se existia realmente,
preferi acreditar que se tratava de um neologismo do autor, mas que o signo foi elaborado
unicamente por mim. Passei a encará-la como uma soma etimológica de trânsito (trans) e
ausência/ausente. A leitura equivocada da raiz da palavra, untis, que vem do latim “que não
dura, que passa”, me fez acreditar que Fernando Pessoa fazia uma crítica sutil ao nosso
tempo, onde transitamos pelos mesmos lugares cotidianamente mas, de maneira
completamente vazia de sentido e pertença. Seria a cegueira moderna das grandes metrópoles.
O contexto onde tal palavra surge no livro também contribui para meu poético equívoco, o
autor narrava a circunstância que lhe fez sair do trabalho em um horário diferente e refazer o
mesmo caminho noutro espaço-tempo. O que lhe resultou em outra experiência sobre o
mesmo percurso, se deparando com outras formas de sociabilidade.
1
Variação linguística oriunda da palavra pivete que foi se colocando no diminutivo, pivetinho/pivetinha, até
perder a primeira sílaba. É necessário salientar que na fonética popular cearense, o diminutivo “nho/nha” não é
pronunciado por completo, tornando-se apenas “pivetin: vetin”, “pivetinha: vetinha”. Em outras situações
também aparece o “vet”, “ei, vet, sintera não?” como pronome de tratamento. Em nenhum desses exemplos, a
categoria substitui o “pivete” ao se referir a uma criança pequena, são usos distintos da palavra.
24
o celular que estava tocando. Ao telefone, eram seus amigos lhe esperando. A música acaba
com o áudio do amigo dizendo: “bé isso, Zé? já vai dar dez hora e nada de tu chegar, man.
Bora, chega aí, dá sinal pro nego,2 vá lá”.
***
Esta etnografia é resultado do trabalho de campo sistemático que fiz entre dezembro
de 2019 e fevereiro de 2020. Os reggaes que frequentei para fins deste trabalho aconteciam a
cada quinze dias, em dois extremos da Costa Oeste de Fortaleza, o início do Pirambu e o final
da Barra do Ceará3, sendo possível intercalar as idas à campo uma vez por semana em cada
bairro. O acesso à problemática que dá suporte à pesquisa foi experimentado ao percorrer as
rotas que as juventudes frequentadoras desses espaços fazem. Os caminhos estão em relevo ao
longo de todo o trabalho. É de extrema importância não apenas o que acontece dentro do
reggae, mas todo o percurso que fiz (e que outros personagens também me relatam) até chegar
lá, assim a experiência se dá através do ir [colar, brotar, chegar], estar e voltar [chegar, vazar,
sair fora]. A categoria êmica “chegar” refere-se ao ato do deslocamento, usada tanto no
sentido de ida como de vinda, perguntas como “tu vai chegar?”, pode corresponder à “ir” para
algum lugar, bem como a frase “ei, vou chegar, ó”, é enunciada em um ato de despedida.
Assim, esta pesquisa se faz no trânsito, daí a importância da estrada. Nas palavras de Mbembe
(2014):
O caminho nem sempre conduz ao lugar desejado. O que é importante não é, assim,
o destino, mas aquilo que se atravessa ao longo do percurso, a série de experiências
das quais se é actor e testemunha e, sobretudo, a parte de inesperado, o que acontece
quando ninguém estava à espera. Trata-se portanto de prestar atenção no próprio
caminho e aos itinerários mais do que ao destino. (p. 246)
A minha relação com algumas pessoas que colaboraram com este trabalho
extrapolaram a vida profissional, portanto, a Costa Oeste passou a ser meu lugar de convívio.
Com algumas das pessoas que me apresentaram ao Grande Pirambu, eu já mantinha relações
anteriores ao mestrado, as conheci durante a graduação em Ciências Sociais na Universidade
Federal do Ceará (UFC). Outras conheci através da pesquisa, que é o caso das pessoas que me
apresentaram a favela do Barramar, devido a minha frequência e convivência nos reggaes de
praça. Devo salientar que não me deparei com estas pessoas apenas a cada quinze dias quando
me deslocava para o reggae nas suas “zária”. O pessoal da produção e sobretudo os
frequentadores do reggae, circulam diariamente entre reggaes de lugares diferentes. A base de
2
O nego neste caso é pronome oblíquo na primeira pessoa do singular.
3
Sempre que menciono “início” ou “fim” de algum bairro estou me norteando geograficamente pelo sentido
leste a oeste.
25
Em artigo recente, Natália Padovani (2019) descreve um pouco sobre a sua caminhada
e trajetória de pesquisa pelas prisões paulistas. As distintas formas de entrada que lhe deram
acesso a um campo disciplinar e regulatório, como é o cárcere, mostram como este faz e refaz
gênero e estado nos corpos que nele penetram e por ele são penetrados. Cada uma das
possibilidades de entradas em campo que a antropóloga encontrou construíram um pouco de
si a partir da prisão. Nesta etnografia, considero cada forma de acesso aos bairros marcada
pela forma como fui localizada em questão, nas palavras da autora: “Entrar por múltiplas
portarias em um campo implica em ser localizada a partir de seus próprios marcos de
inteligibilidade” (Padovani, 2019, p. 25). Quem não me conhecia, passou a me conhecer e me
reconhecer como a “fotógrafa do reggae”, mesmo depois de se deparar com as implicações
desta pesquisa. Quem já conhecia a mim e ao meu trabalho, estava em constante colaboração
teórica e metodológica com esta pesquisa.
escolhido como porta de entrada apenas os reggaes de praça que aconteciam na Costa Oeste
(Barra do Ceará e Grande Pirambu). É a partir do reggae de praça que se passam as tramas
desta pesquisa.
4
Ao longo da dissertação me utilizo do rap, enquanto linguagem artística que narra o cotidiano das favelas, para
desenhar o ordinário desta etnografia. Portanto, o nome das pessoas que colaboraram com o trabalho foram
substituídos por nomes de artistas do rap nacional, como Mano Brown. Contudo, nesta ocasião em específico,
me refiro realmente ao rapper líder do grupo dos Racionais MC 's e não ao personagem da etnografia, como irão
ver em outras ocasiões.
5
Indico a tese “A Periferia Pede Passagem: Trajetória social e Intelectual de Mano Brown”, do sociólogo
Rogério de Souza Filho, defendida na Unicamp. Ver Souza Filho, 2012.
27
Não importa que às vezes esse crítico procure valorizar algum artista afro-brasileiro
através do exame e julgamento da sua obra, pois seguramente a real motivação do
seu interesse é de outra natureza. O paternalismo costuma estar subjacente na crítica
de intenção promocional, e o artista negro deverá recusar este tipo de tutela e
domesticação, mesmo que lhe custe as evasivas chances de penetrar no pequeno
grupo dos artistas que têm mercado. Nem deve o artista negro endossar as
classificações hipoteticamente elogiosas (comumente para estimular os possíveis
compradores) que os rotula de folclóricos ou pitorescos; este crítico nos primitiviza,
aquele nos acha interessante pela curiosidade e exotismo do nosso trabalho. (grifos
do original, Nascimento, 2016, p. 143)
fato da substância ser amplamente disseminada e de fácil acesso, sendo o seu uso
criminalizado apenas quando se trata de pessoas racializadas e faveladas.
Nunca foi o propósito desta pesquisa percorrer sobre como reggae chegou em
Fortaleza, sobretudo na Costa Oeste, nem versar sobre questões da indústria fonográfica, visto
que o reggae nunca foi um ritmo distribuído na cidade através dos meios de comunicação
hegemônicos, nem pelo mercado fonográfico. Contudo, as pesquisas de Benedito (2007) e
Costa (2019) apontam para o compartilhamento de contextos sociais e políticos parecidos
entre a Jamaica, berço do ritmo, e as favelas brasileiras nas quais o reggae se assentou.
O reggae também é difundido através de DJs, sendo pouco comum artistas e bandas
locais de reggae fazerem sucesso - mas existem exceções como o cantor Shalon Israel oriundo
da Barra do Ceará, compositor do hit “Cabeça de gelo” que fez sucesso nacional no ano de
2016. No começo dos anos 2000, a maior forma de propagação do reggae era em forma de
“melô”, a música era remasterizada pelo DJ que subia a canção para as plataformas digitais
sem utilizar o nome original da música, colocando o título como “melô” e alguma palavra que
remetia a fonética cantada (Silva, 2007).
Também existe o reggae dançado em grupos soltos, fazendo coreografias de marcações iguais,
chamado de “passinho do reggae”. O passinho é original da cidade de Fortaleza e lembra uma
mistura de dança ritual indígena com as coreografias comuns nos bailes black que aconteceu
concomitante à chegada do reggae no Brasil. Veremos mais sobre as danças no último
capítulo.
6
No capítulo 3 veremos este diálogo acontecer de diversas maneiras, uma delas são as placas que ornamentam o
espaço e servem de suporte para mensagens curtas.
7
Como veremos em outros momentos, as facções que predominam em Fortaleza, assim como no estado do
Ceará como um todo, se identificam por siglas, por exemplo, CV e GDE.
31
“Beira Roots”, por exemplo, é o reggae do bairro Beira-Rio, “Violeta Roots” acontece no
Jardim das Violetas, além de ser um reggae promovido apenas por mulheres. O “PiraRoots”,
no Pirambu, e o Coletivo Barramar Sound System é oriundo da favela do Barramar, na Barra
do Ceará. É possível notar que existe uma vontade política de “fortalecer” o reggae “dazária”.
Em conversas informais entre jovens, discute-se onde e quando será o próximo reggae, e é
comum o comentário “vai ter o projeto X [que foi incorporado a uma casa de show localizada
na área nobre da cidade], mas entre ir pro [nome da casa de show] e ir pra um reggae na
minha “zária”, prefiro ficar aqui “nazária” mesmo e “fortalecer” a galera”.
Vemos então, que o reggae de praça supera a discussão sobre cultura sem querer ser
validado pelas premissas, criadas por grupos dominantes, que compõem a categoria. No
entanto, para consolidar o reggae como um fazer político foi preciso notar algumas ações. A
primeira, sem dúvida, é a abertura que os coletivos e projetos tiveram para abraçar este
trabalho e colaborar com a sua realização. O Coletivo Barramar Sound System recebeu o
projeto de pesquisa que resultou neste trabalho, o leu e discutiu em grupo. Tomando como
necessária e urgente levar estas discussões para o espaço e propagá-las. Não quero dizer com
isso, que o fato de terem aderido à minha pesquisa em particular os constitui como atores
políticos. Gostaria de apontar, contudo, que o fato de o reggae ser per si um movimento
político e cultural é que tornou possível a realização deste trabalho.
A segunda é por meio das ações que vão para além do espaço em si, onde se realiza
rodas de conversa sobre a história política do ritmo, debatendo racismo, colonialismo e
movimentos político-culturais, oficinas de arte e educação para e com crianças, como a
oficina de preparação das “plaquinhas”, cine debate democratizando o acesso ao cinema para
pessoas da favela, arrecadação de alimentos não perecíveis para montagem de cestas básicas
para doação, e aulas de dança através das oficinas de “a2” e “reggae do passinho”. Durante o
reggae também existem manifestações políticas, pessoas pegam o microfone para “mandar
uma ideia” ao público, como orientações não proibicionistas sobre uso de drogas lícitas ou
ilícitas, ideias de conscientização e organização política, além de serem distribuídas
camisinhas gratuitamente no local.
A imagem acima, retratada na figura 4, diz respeito a uma intervenção que eu fiz
nas redes sociais durante a pesquisa como forma de reelaborar a campanha da prefeitura com
outra categoria, não mais a de cultura. Agora sim, a categoria política. A intervenção foi vista
e compartilhada entre os sujeitos desta pesquisa, apontando para formas que faziam mais
sentido neste contexto que a proposição da política institucional.
1.1 Pirangagem
Neste tópico trato sobre a forma como irei me referir aos sujeitos desta pesquisa ao
longo de toda a dissertação. Uma categoria nativa bastante elástica que aparece em campo é a
de “pirangueiro” ou “pirangueira” que, em suma, é aquele que faz “pirangagem”. Este
trabalho de sublinhar o conceito de “pirangagem” já foi realizado anteriormente algumas
33
vezes. Em uma oportunidade interessante, Pires (2018) coloca que a “pirangagem” é “em uma
única expressão nativa todas as subcategorias negativadas na moralidade das relações
criminais” (p. 193). Ela pode aparecer como traição, trairagem, “cruzetagem”, covardia,
delação, talaricagem, entre outros.
Concordo com Pires (2018) quando ele afirma que “pirangueiro” é o termo mais
alargado que surge nestas etnografias, contudo, esta categoria não é usada apenas na favela.
Assim como a categoria de “envolvido”, amplamente dissipada na sociedade e nos meios de
comunicação, a palavra “pirangueiro” é estendida para fora das fronteiras da favela também
de maneira pejorativa. Quem mais se concentrou em trabalhar a respeito disto foi o sociólogo
Marcus Giovani Ribeiro Moreira (2021), analisando as representações sociais e simbólicas de
juventudes faveladas não brancas, os ditos “pirangueiros”, e como estes se relacionam com as
áreas centrais e nobres da cidade de Fortaleza. Moreira examina o que a branquitude
34
1.2 Cabreiragem
8
Todos os nomes que aparecerão aqui nesta etnografia são fictícios a fim de preservar a imagem e a segurança
das pessoas. Substituí os nomes verdadeiros, nomes artísticos e apelidos por nomes de artistas da cena do hip
hop nacional, conforme alguma característica que considero semelhante com a vida pessoal ou profissional das
pessoas que colaboraram com esta pesquisa, por exemplo, a moça trans que conheci neste dia recebe o nome de
Linn em homenagem a Linn da Quebrada, uma rapper travesti brasileira conhecida mundialmente. Com Don L e
Nego Gallo não é diferente, assim como os artistas verdadeiros, os personagens a que me refiro aqui são dois
rappers que compõem um grupo junto sendo um branco e outro negro e ambos da Costa Oeste de Fortaleza.
35
A amiga era a Tasha, e nós marcamos de nos encontrar na Trupe, uma pizzaria na
avenida Coronel de Carvalho, próxima ao final da linha do ônibus 070 Cuca Barra/Parangaba
(Praça do Ferroviário9), ônibus que leva do bairro Benfica, onde eu morei na época, até a
Barra do Ceará, onde acontece o reggae (ver trajeto no mapa a seguir). Da Trupe até a praça é
fácil de chegar, apenas descer a rua 2, onde marcamos, já é possível ver a praça.
9
Time de futebol tradicional da Barra do Ceará com a terceira maior torcida da cidade. A praça do Ferroviário
tem este nome por ficar em frente ao Centro de Treinamento do time.
36
Tasha estava acompanhada de Linn, uma menina trans, branca, que aparentava ser
bastante nova e um tanto tímida. Nós chegamos por volta das 18h30 e o reggae já havia
começado, pois sempre começava às 18 horas, independente do público estar numeroso ou
não. No geral, os reggaes de praça têm duração de 4 horas, o Barramar Sound System, por
exemplo, tem início às 18h e termina às 22h. O público nunca chega no horário exato que se
inicia, mas dificilmente extrapolam o horário de término.
Ao chegarmos na quadra, Nego Gallo (a quem vou passar a me referir aqui apenas
como Gallo) gritou pela Tasha do outro lado, nas arquibancadas, fomos até lá e eles estavam
fechando um “baseado”. Gallo se apresentou para mim como se fosse a primeira vez que nos
conhecíamos. Perguntei se ele não lembrava de mim, pois quando fui bolsista do “Traficando
Saberes”10, organizei a cerimônia de encerramento na qual ele foi convidado, através do grupo
de rap que ele compõe, juntamente com outro integrante, Don L. Gallo é um jovem integrante
de alguns coletivos juvenis de periferia, morador do Pirambu e um dos organizadores do
Piraroots.
Junto com Nego Gallo estavam mais três outros rapazes, uns eram moradores da
Barra do Ceará, outros vieram do Pirambu junto com ele, acompanhando-o de bicicleta.
Depois de fechar o “baseado”, Gallo nos chamou para fumar. Como já pontuei anteriormente,
em todos os reggaes de praça espalhados pelas periferias de Fortaleza existe a premissa:
“proibido uso de drogas no local do evento”. A regra faz parte da campanha de
conscientização do público, por parte dos organizadores e integrantes dos coletivos, como
tentativa de amenizar os conflitos com a polícia e assim garantir a permanência e duração do
espaço. Em consideração a isto, os rapazes nos chamaram para fumar próximo a um canal que
fica em paralelo com a avenida Francisco Sá, descendo a rua. Em decorrência do convite e da
localidade, “o canal”, Tasha ficou “cabreira” logo de imediato.
Era um momento de várias tensões, primeiro porque nós chegamos no local achando
que, por a favela do Barramar estar situada dentro da Barra do Ceará, seria uma área
dominada pela facção Guardiões do Estado (GDE). Depois, nós éramos duas mulheres cis e
10
Projeto de Extensão da Universidade Federal do Ceará, no qual eu fui bolsista, que realiza, dentre outras
atividades, oficinas de direitos humanos com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.
38
uma trans, respectivamente, Tasha, eu e Linn, e são em situações como esta, chamar para
“fumar um” em um lugar afastado, conhecido como levar para o “cheiro do queijo”, que
mulheres são assassinadas na guerra entre facções em Fortaleza. O fato de termos acabado de
chegar e ter quatro “caras” nos convidando para fumar no canal não era uma ideia confortável
para a Tasha, mas eu não cogitei a ideia de perder essa “oportunidade” no meu primeiro dia de
trabalho de campo. Para a pesquisa, esta situação de “fumar um” com Gallo, pessoa que
estava iniciando na organização do reggae no Pirambu, junto com outras pessoas que são
moradoras do Barramar, foi uma oportunidade de socialização importante para entender os
percalços destes trânsitos entre um reggae e outro, apesar do aparente risco.
O canal era ali perto, a continuação da rua 3 ao lado da praça dava na avenida
Francisco Sá, onde ficava o dito canal. O riacho que passava estava quase seco, o local ao
redor era escuro e arborizado; sentamos em uns troncos de árvores cortadas que estavam ao
chão, Gallo acendeu o “baseado” e começou a contar como foi a vinda, chegar até ali de
bicicleta. Desabafou sobre a tensão de ter vindo pela Francisco Sá, que além de ser o caminho
mais longo era também “faixa de gaza”11. Outro rapaz que estava entre nós disse que era
melhor ter vindo “por dentro” dos bairros, mas Gallo disse não saber fazer esse caminho. Para
um jovem negro favelado em Fortaleza, se locomover entre as grandes avenidas, de maior
circulação, a iminência do risco é maior do que quando o mesmo circula “por dentro” dos
bairros dos becos e favelas, questão que iremos nos aprofundar no capítulo 3.
No meio de tanta “cabreiragem”, Gallo percebeu como Tasha estava tensa e fez sinal
de 2 com os dedos para ela e apontou para o chão, indicando que aquela zona ali era “tudo 2”,
ou seja, Comando Vermelho, a mesma facção que domina o Grande Pirambu, a “zária” de
Tasha, lugar onde mora desde que nasceu. Passando o “beck” da boca e comprimindo o ar nos
pulmões, Gallo falou: “eu também tava nessa cabreiragem, mas me disseram antes de vir e
quando eu cheguei aqui me falaram de novo, daí eu fiquei mais sossegado”. Tasha depois
comentou entre nós: “or! por quê esse baitola não falou logo que aqui era 2, ma? Tinha ficado
tranquila”.
11
Territórios em disputa entre as facções.
12
É muito comum no Ceará ter bancas, tendas, barracas ou apenas mesas colocadas nas calçadas em frente às
residências, como era o caso neste dia, para vender “pratinho”. É assim que se chama um prato descartável
recheado de comidas típicas composto geralmente por arroz, vatapá, creme de galinha, paçoca (farofa de carne
39
sido recolhida, apesar de estar cedo ainda. Fiquei pensando que as proprietárias da venda,
mulheres brancas idosas, poderiam ter retirado o pratinho mais cedo pois, quando passamos
por lá para ir até o canal, eu comentei “olha aí, já temos uma broca13”. Vendo quatro homens
negros na frente, logo atrás três meninas, em sua maioria negras também, podem ter ficado
com medo, expressando assim cenas comum de racismo cotidiano (Kilomba, 2019).
Chegando na praça, os meninos foram jogar bola com as crianças na quadra, depois
foram conversar com os DJs na mesa de som, enquanto nós ficamos sentadas nas
arquibancadas esperando o reggae “gerar” para começar a bater as fotos. Neste momento,
ainda eram umas 19h30, e como disse um dos rapazes que estava com a gente, “reggae de
praça só “gera” depois das 20h”. Em se tratando dos reggae de praça, “gerando” é quando o
reggae está no seu ápice: maior número de frequentadores no local, maior número de pessoas
dançando na pista, em suma, a parte mais movimentada da noite.
Este recorte do diário de campo nos permite entender algumas dinâmicas iniciais
sobre as juventudes que compõem o reggae de praça. Em primeiro lugar, a convivência com
as emoções - tensão, medo, desconfiança e “cabreiragem” - no ato de se deslocar, é a primeira
pista para o que se propõe esta dissertação: entender como estas juventudes se apropriam da
cidade e dos espaços em detrimento da faccionalização dos seus territórios. Depois, foi
possível conhecer lugares, horários e etiquetas sobre o espaço, como a regra de não poder
fumar no local, e como os frequentadores que, por ventura, são usuários lidam com isso sem
prejudicar o coletivo. Aos poucos iremos aprofundar ainda mais nestas questões. No próximo
tópico trago um relato curto sobre a experiência com outro projeto de reggae de praça, que
apesar da proximidade com o Barramar Sound System tem também suas particularidades.
Barra do Ceará, 2020. Fui para um reggae que houve no Pôr do Sol - como é conhecida
a praça onde fica localizado o Marco Zero de Fortaleza. Ali costumava acontecer o
“QuartaRoots”, antes de se tornar projeto fixo de uma casa de show situada na área nobre,
onde também está concentrado o circuito cultural da cidade. O “QuartaRoots” não foi um
reggae etnografado sistematicamente por mim, dada a inconstância do projeto. Contudo, as
duas vezes que fui ao reggae no Pôr do Sol me renderam reflexões importantes.
do sol) e salada de legumes. Essas vendas são colocadas no final da tarde e recolhidas no final da noite pois o
“pratinho” é mais comumente consumido como jantar.
13
Gíria referente a comida para a fome que dá depois de fumar.
40
A primeira foi numa sexta-feira. Era janeiro de 2020, eu estava em pleno trabalho de
campo junto ao Barramar e ao PiraRoots. Não pude ir à edição do Barramar da semana
anterior, episódio que narro e reflito melhor mais a frente neste capítulo, então estava focada
em ir ao campo, ainda que sozinha, para compensar a ausência. Tratava de uma oportunidade
ímpar, onde eu iria comunicar ao Mano Brown - DJ residente14 do Barramar Sound System,
aquele que organiza e toca o projeto - sobre meu projeto de pesquisa. Perguntei
insistentemente se ele ia “chegar” no QuartaRoots, pois imaginei que ele seria a única pessoa
conhecida a me acompanhar neste baile.
Dentro do ônibus, peço ao motorista para me avisar quando estivesse perto do Marco
Zero, porém este não conhecia o local, nunca havia ouvido falar em “marco zero da Barra”.
Foi quando percebi que esta denominação é pouco usual entre os moradores da região, pois
um outro passageiro, jovem como eu, informou ao motorista que “é ali, na rua do pôr do sol”.
O Marco Zero está situado no acostamento onde o Rio Ceará se encontra com o mar. À frente,
na outra margem do rio, é onde o sol se deita, fazendo com que esta região seja dona do pôr
do sol mais bonito da cidade de Fortaleza. Às costas desta paisagem, fica o morro do
Santiago, onde um dia foi construído o Forte de São Tiago, também denominado de São
Sebastião. A história do bairro, que perpassa a construção do forte, será contada no próximo
capítulo.
O ônibus seguiu pela avenida Vila do Mar (que percorre toda a extensão da orla da
Costa Oeste) até o Marco Zero, quando então ele dobra à esquerda para entrar na dita rua do
pôr do sol, eu desço. O local é um calçadão largo a ponto de parecer uma praça, as barracas e
as árvores ao redor escondem a vista direta para o mar, mas ao lado esquerdo vemos toda a
extensão do rio. A ribanceira é repleta de pedras e árvores nativas, principalmente pés de
castanholas, comuns no litoral. O Marco Zero é uma placa de mármore fincada no chão, com
um monumento pontiagudo em cima. No lado oposto à avenida Vila do Mar está o Morro do
Santiago, lugar onde um dia foi o Forte de São Sebastião, construído pelos colonizadores
portugueses. No topo do monumento do Marco Zero há uma cruz e ao redor dele está um
batente, elevando a estrutura.
14
O reggae de praça consiste num evento de local fixo cujas atrações são itinerantes. Cada edição são
convidados DJs de projetos (e localidades) diferentes. O DJ “de casa”, ou seja aquele que comanda o projeto, é
conhecido como residente por ser justamente a atração fixa do reggae, enquanto os demais que compõem a
lineup são variáveis .
41
Me organizei para chegar por volta de 19h30, horário em que o reggae já começa a
“gerar”, por saber que antes disso o local ainda estaria vazio de frequentadores, e como eu
havia ido sozinha, não queria ser uma das poucas pessoas no local esperando o reggae
“gerar”. Aos poucos fui reconhecendo algumas pessoas que já tinha visto pelo reggae do
Barramar, as quais fui me enturmando enquanto esperava o Mano Brown, que por sua vez, foi
aparecer quase nove horas da noite. Enquanto isso, fui me deixando levar pelo baile.
Diferentes pessoas me convidaram para dançar com frequência e eu aceitava. Quando
estávamos dançando “a2”, duas vezes me perguntaram “ei, tu é a fotógrafa do reggae, né?”, se
referindo às fotos que fiz para o Barramar Sound System, e eu respondia que sim. Esta foi
uma chave que virou no meu trabalho de campo, pois, no dia em que eu me proponho a ir ao
reggae para expor e falar da minha pesquisa para um dos organizadores do coletivo, fui
imediatamente reconhecida, ou “localizada” (Padovani, 2019), como “a fotógrafa do reggae”.
Quando Mano Brown finalmente apareceu, estava com uma aura um tanto apreensiva,
disse que estava com problemas em casa e que precisava arrumar um emprego, pois só o
“Bolsa Jovem” não estava sendo suficiente. O “Bolsa Jovem” é um programa da prefeitura de
Fortaleza que oferece bolsas para jovens de baixa renda, com o propósito de fomentação das
ações comunitárias impulsionadas por estes jovens. Assim, este é o único recurso financeiro
que Mano Brown dispõe para a realização do Barramar Sound System. É possível que a
conquista da papelada do alvará, fornecido pela prefeitura para regulamentação de qualquer
evento público na cidade, tenha sido facilitada por meio do programa Bolsa Jovem - contudo,
o alvará e a blusa do programa, distribuída para fins de campanha e identificação do mesmo,
não impedem retaliações da polícia, nem mesmo a “polícia” da prefeitura, no caso da Guarda
Municipal.
A segunda e última vez que estive no QuartaRoots foi meses depois de delimitar o fim
desta pesquisa. Porém, um médico não deixa de ser médico quando ele sai do consultório. Um
juiz não consegue se apartar de seu conhecimento sobre as leis quando sai do tribunal. Então,
mesmo em propósito de lazer pessoal, meus ouvidos estavam atentos demais àquelas relações.
Me propus a ir ao reggae para prestigiar os DJs do Barramar, que se tornaram meus amigos,
pois eles iam tocar no Pôr do Sol, além do fato de que ia começar cedo, assim poderia
aproveitar a praia e a vista. O reggae foi num domingo, estava previsto para começar por volta
das quatro horas da tarde. Quando cheguei, pontualmente, o DJ residente do QuartaRoots,
junto ao Mano Brown estavam em busca de uma barraca onde pudessem ter acesso a energia
elétrica para ligar os equipamentos, visto que na barraca que tem parceria com o reggae estava
faltando. Este infortúnio atrasou o evento por algum tempo, mas não impediu que pudéssemos
“curtir” um reggae mediante o pôr do sol mais bonito da cidade.
Enquanto esperava o evento começar, sentei-me a uma mesa junto de pessoas que eu
não conhecia, nem mesmo elas se conheciam entre si. Era um homem, um tanto mais velho, e
uma moça mais ou menos da minha idade. Fiquei entre eles por sugestão de Mano Brown
pois ele havia deixado sua bolsa naquela mesa. Passamos a conversar entre nós, descobri
depois que a moça morava próximo ao Barramar, o homem não pude saber - nesta época já
havia internalizado que não é de bom tom indagar as pessoas sobre de onde elas são/moram,
sobretudo quem você não conhece. Perguntar a quem não conhece e não tem intimidade onde
a pessoa mora, é algo que pode ser interpretado como estar “pegando maldade”, querendo
sondar se a pessoa é “pilantra”, o que passa a gerar no mínimo um constrangimento. Antes de
internalizar esta máxima, passei por períodos delicados desde terem mentido para mim até
desconfiarem que eu seja "envolvida''.
Como estava durante o dia, pude ver a comunidade que vive na outra margem do Rio
Ceará. O Rio Ceará separa a cidade de Fortaleza da cidade de Caucaia15, então as casas que eu
avistava eram de uma região que faz parte de Iparana, Caucaia. A paisagem vista de longe
retrata uma pequena vila de pescadores, com poucos barracos à margem do rio, aparentemente
sem asfaltamento, pois pude enxergar apenas uma grande faixa de areia. A vila é uma região
temida no imaginário do morador da Barra do Ceará, tal como a Colônia é para o pirambuense
(estas e outras relações de alteridade serão melhor exploradas no 2º e 3º capítulos). Ao
observar a comunidade que vive do outro lado do rio, perguntei aos que me faziam companhia
na mesa que lugar era aquele. O homem desconhecido respondeu que ali era perigoso, que
15
Cidade onde nasci e me criei.
43
sempre fora um lugar “embaçado”, morria e matavam muita gente por lá. Apesar de acreditar
que este discurso é empregado ao “Outro” da relação, não pude me certificar a tempo desta
etnografia o que estes “Outros” pensam do lado de “cá”, nem como se vêem a si mesmos. O
que posso apontar é que para o imaginário pirambuense, algumas partes que compreendem a
Barra do Ceará também estão envoltas nesta figura de “Outro”.
O caminho de volta segue pela avenida Radialista José Lima Verde. Ao lado direito fica
o Morro do Santiago, ao lado esquerdo o Rio Ceará. Até aquele momento, o Morro do
Santiago era “tudo 3”, favela sob o domínio da GDE. Ao passo que vemos os barcos
atracados nas margens do rio à esquerda, sob as sombras das árvores autóctones formando
uma bela paisagem natural, ao fundo com a ponte sobre o rio que liga Fortaleza a Caucaia16,
temos ao lado direito da avenida um retrato de moradia precária com alguns pequenos pontos
comerciais, sobretudo, peixarias.
Seguindo em frente, pela mesma avenida, temos ao lado esquerdo o Cuca Barra,
próximo a ponte. A Rede Cuca é um equipamento público17 mantido pela prefeitura para
oferecer formação técnica, cultural e de lazer. Contudo, atrás do equipamento que mantém
atividades educativas e culturais para jovens da região, foi construída em 2018 mais uma das
Torres de Segurança da Guarda Municipal de Fortaleza. O nome oficial das torres é “Célula
de Proteção Cidadã”, projeto apresentado por Moroni Torgan (DEM), então vice-prefeito da
cidade. A torre foi construída para estar um nível acima das casas dos moradores, com a
perspectiva de prevenção na segurança pública através de vigilância tecnológica18. Entretanto,
16
A avenida Leste-Oeste, que vai aparecer em vários momentos ao longo do texto, acaba nesta ponte ligando
Fortaleza à cidade vizinha, Caucaia.
17
“É uma rede de proteção social e oportunidades, criada em 21 de fevereiro de 2014 e formada por quatro
Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude”. Disponível em:
<https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/rede-cuca-celebra-sete-anos-com-o-registro-de-mais-de-700-mil-joven
s-atendidos#:~:text=%C3%89%20uma%20rede%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o,de%20Pol%C3%ADticas
%20P%C3%BAblicas%20de%20Juventude.> Acesso em 19 de dezembro de 2021.
18
Para entender melhor sobre vigilância, automatização dos aparatos de segurança pública e racismo algorítmico,
recomendo o trabalho do O Panóptico, disponível nas plataformas digitais.
44
moradores dos entornos de várias daquelas torres de vigilância, não apenas da Barra do Ceará,
denunciam a presença de policiais fortemente armados no topo da edificação.
Ao passar por este trecho que fica por baixo da ponte, subimos a avenida Coronel de
Carvalho, onde finalmente havia uma ciclovia - até então, disputávamos com os carros.
Seguimos a Coronel de Carvalho por um pequeno pedaço, logo na primeira esquina à
esquerda entramos na avenida Francisco Sá. No momento em que dobramos à esquerda
saindo da Coronel de Carvalho para entrar na Francisco Sá, vinha um carro na direção
contrária a nossa, ao qual não dei atenção em primeiro momento, mas percebi o silêncio que
havia tomado conta de nós. Descemos das bicicletas e passamos a subir a Francisco Sá a pé
pois o trecho é mais íngreme. Quando o carro some de vista voltam-se as conversas, o
primeiro comentário foi: “eita baitola, quase morri agora, viu... tu viu aí o carro? chei de
elemento… tudo mal encarado”.
Esta tensão e medo sobre o ato de circular pela Costa Oeste, é uma constante no
cotidiano dos jovens. A fala “chei de elemento, tudo mal encarado”, em outro contexto
poderia ser questionado se há uma entonação de cunho racial sobre o perfil de pessoas que
estão sendo colocadas em suspeição. Contudo, a fala dita durante um trajeto entre zonas de
conflito, saindo de uma avenida de grande circulação (“pista”), onde poderia a qualquer
momento iniciar um daqueles episódios de perseguição com a polícia, ou rota de fuga de
alguma invasão de territórios rivais pelas facções, demonstra que parte desses jovens
moradores estão apreensivos tentando apenas chegar “nazária” vivos. Também há uma outra
perspectiva sobre a conotação racial nesta fala, visto que partem de pessoas fenotipicamente
parecidas com aquelas que são o objeto do medo. Isto posto, faz-se pensar que se trata,
portanto, do medo do desconhecido, visto que se fosse um “elemento dazária”, ou seja
conhecido, as emoções em jogo seriam totalmente diferentes.
A tensão e o medo são constantes durante os trânsitos. Até chegar “nazária”, “o nêgo
fica naquela” - “cabreiro”. Quando passou o clima de tensão, passamos a conversar, o assunto
era o reggae. Falava-se com entusiasmo sobre ter um reggae no pôr do sol, que aquela área ali
é “rocheda”19 demais, que poderia ter um projeto fixo. É quando eu pergunto: porque não
estava mais acontecendo [o “QuartaRoots”]? Certamente, esperava que a resposta seria algo
em torno da pandemia de covid-19 que impedia realizações de espaços como aquele, pois
atraía muita gente, por conseguinte, aglomeravam-se. Entretanto, a resposta que eu obtive de
19
Expressão usada para positivar algo, dizer que é rocheda corresponde a afirmar que é muito bom, bonito,
interessante, qualquer tipo de adjetivação positiva se aplica.
45
Hiran, jovem negro LGBTQIAP+, que constrói o coletivo Barramar Sound System junto a
Mano Brown e outros, foi uma frase que apreendi a ponto de torná-la título desta dissertação,
ele falou em tom cabisbaixo: “quando não é a guerra, é uzomi” que impedem a realização de
espaços como aqueles. Seguimos pela avenida Francisco Sá até o canal (que me referi em
tópico anterior), ali chegando estávamos próximo a favela do Barramar, alguns seguiram para
suas casas e outros me acompanharam até a parada de ônibus, na praça do Ferroviário, onde
segui viagem sozinha para a minha residência (ver percurso no mapa a seguir).
aglomerações e outras posturas preventivas por parte das autoridades sanitárias influenciaram
no cotidiano que culminaram na agenda do reggae. Contudo, a ênfase na ostensiva policial
reflete na forma como as políticas “preventivas” contra a covid-19 surgem na favela por meio
da repressão, como uma forma de “penalização” e “criminalização” daqueles sujeitos que não
puderam se manter em isolamento e cumprir as medidas sanitárias de maneira satisfatória
(Freitas & Santos, 2020, no prelo). Portanto, o reggae, assim como todas essas juventudes que
o dinamizam, é compelido pela violência.
O exército estava nas ruas, canhões militares eram vistos passeando pelas avenidas em
direção às zonas periféricas. As favelas estavam em alerta constante sob a ameaça de invasão,
não apenas do exército, como também de facções rivais e de policiais que poderiam se
aproveitar do estado de exceção para realizar algum tipo de vingança. Foi um período de
“queima de arquivo”, acerto de contas e tomada de territórios. A cidade estava em guerra.
O Ceará entrou em estado de sítio. A Força Nacional foi acionada para conter o
agravamento da situação. O motim da polícia, como é de praxe no estado, não significava
apenas paralisação do trabalho de vigilância, mas ataques a prédios e equipamentos públicos,
carros da corporação incinerados, índice de homicídios elevado consideravelmente. Foram
indiciados mais de 130 servidores por envolvimento com o motim21. Em 13 dias de
paralisação, o número de mortes no estado disparou em 417% em comparação ao ano anterior.
Em se tratando do cotidiano das favelas de Fortaleza, a violência é iminente, seja pela guerra
20
Esta discussão sobre envolvimento será melhor abordada no próximo capítulo.
21
Até o momento da escrita desta dissertação a justiça não chegou a nenhuma solução para os casos.
47
Ao longo de todo este mês procurei pelas palavras que deveriam estar aqui. Por aqui,
me refiro a este texto. Não estavam por lugar algum, procurei nos cadernos, fichamentos, nas
bordas do texto xerocado rabiscado a lápis, quase ilegível. Mas ainda não eram essas palavras
que eu estava procurando. Nem no caderno que uso como diário de campo elas não estavam.
Lá, só havia paisagens, retratos narrados fielmente. Elas não estavam se encaixando aqui.
Quase perdida num vazio sem letras, achei algo grudado à minha pele, como um
“sticker” (Ahmed, 2004), mas não consegui decodificá-la logo de início. Era uma mancha
sem forma. Depois virou um signo, embora estivesse em estado de negação a respeito de seu
significado. Continuei labutando pela composição desse texto até que eu fiquei sabendo que
uma menina que conheci em campo também estava com essa mancha na pele, mas a dela
estava enorme, quase tomando conta do seu corpo, quase não se via mais ela, só a mancha. E
aos poucos fui vendo que esse negócio se manifestava de maneira diferente, mas as pessoas
ao meu redor, aquelas que colaboraram com esta pesquisa, tem um pouco dessa marca. Em
alguns é visível, em outros, como é o meu caso, dá para disfarçar na maior parte do tempo.
Ela fica ali, mas conseguimos até cobrir com a roupa comprida. O problema é que se não
souber do que se trata essa mancha e não tiver condições de entender como ela surgiu,
dificilmente irá desaparecer. Além do que, quanto mais a ignora, mais ela cresce.
Vou chamar essa mancha de dor, pois ela conecta seus portadores no mesmo nó na
garganta, uns mais apertados que outros, mas convivendo com o mesmo incômodo. E, como
diria Vilma Piedade (2017), “essa dor é preta”.
***
A primeira versão deste capítulo foi construída em janeiro de 2020 para fins de
trabalho final da disciplina “Sofrimento Social e Violência”, ofertada por Ceres Víctora,
minha orientadora. Na ocasião da escrita, eu estava em pleno trabalho de campo em Fortaleza
e, como deve ter sido possível perceber através dos parágrafos anteriores, a leitura dos dados
48
que estavam prestes a serem apresentados estava diretamente afetada pelas emoções
experienciadas em campo, assim como pelo meu grau de envolvimento com as pessoas e as
dinâmicas.
Aqui me atento a uma releitura dos dados, insuflando minha escrita a novas
perspectivas teóricas e metodológicas, pensando a partir do trabalho das emoções. De acordo
com Ahmed (2004), “prestar atenção às emoções pode nos mostrar como todas as ações são
reações, no sentido de que o que fazemos é moldado pelo contato que temos com os outros”
(tradução minha, p. 13). Neste sentido, as reflexões que se seguem mostram como a própria
ação de produzir este texto é moldada pelos contatos que estabeleci em campo e as emoções
provocadas pela experiência.
Tento aqui neste tópico, portanto, uma escrita ‘de’ e ‘sobre’ contato, partindo
também do que foi proposto por Ahmed, mas indo além, visto que por vezes, sim, “meus
sentimentos” podem aparecer, porém estranhados e/ou analisados até onde a antropologia nos
permitir fazê-lo.
voz da vítima e os afasta do imediatismo da experiência (id., 1995; 2006). No que tange à
antropologia, ela dá o exemplo de como quando se dá uma definição exclusivamente cultural
do sofrimento. Este é o nosso dilema conceitual interpretativo sobre a dor (id., 1995).
Num primeiro momento, a dor que surge é, antes de mais nada, a minha dor. Ainda
não é sobre a dor do outro como objeto de análise, apesar de perceber que ambas passaram a
estar entrelaçadas constituindo uma rede de relações e me inserindo numa comunidade
emocional e moral (Das, 1995; Jimeno, 2008). Posteriormente, será relatado uma experiência
que foi moldada pela memória da dor. Desde a queda da pacificação em Fortaleza, fenômeno
que será melhor analisado no próximo capítulo, as violências infligidas entre os territórios
rivais marcou significativamente a forma das pessoas circularem nas ruas, de tal forma que o
simples ato de pegar um ônibus para se deslocar tem que ser pensado a partir da
territorialidade gerada por esses conflitos. Essa memória da dor, que volta recorrentemente
como medo, faz parte do próprio terror instaurado pela guerra, desde o fim do pacto pela paz.
O corpo que transita comportando essas emoções - tensão, medo, “cabreiragem” - é o
mediador entre o passado e o presente (Das, 1995).
O fato de não ser “dazária”, foi uma questão que me afetou profundamente, pois isto
era suficiente para qualquer frequentador dos reggaes de praça não irem sós. Ainda não havia
estabelecido relações firmes entre os organizadores e frequentadores do Barramar. Afinal, fui
apenas o primeiro dia até então22, e isso me acarretou uma série de inseguranças que talvez
um pesquisador homem não enfrentasse. Contudo, hoje percebo que optei pelo certo em não
“meter as caras” e ir sozinha naquele momento. Quem frequenta reggae de praça nas favelas
de Fortaleza, como ficará mais evidente no capítulo 3, não vai sozinho, nem mesmo as figuras
22
A edição de aniversário de um ano do projeto Barramar Sound System que leva o título de “cabreiragem”.
51
ligadas ao masculino. As inseguranças a que me refiro, vão muito além de timidez ao ir para
um espaço sozinha e tentar uma socialização do zero. Corresponde a não saber onde se está
pisando. Não saber quem são as pessoas ao redor e elas não saberem quem é você. Não estar
familiarizada com os caminhos, com a ida e a volta. Em tópico anterior, contei sobre quando
fui a um reggae de praça sozinha, mesmo esta sendo uma experiência que mostrou existir
novas facetas para este trabalho a respeito da minha “localização” em campo (Padovani,
2019), demonstrou também que eu não era “desconhecida”, como eu estava imaginando,
facilitando assim alguns acessos. Daí a importância do papel de “fotógrafa do reggae” para a
realização desta pesquisa.
Na segunda, chorei de raiva. Dessa vez a raiva escorria pelos meus olhos como uma
cachoeira e, acredito eu, foi devido a esta enchente que não fui capaz de fazer nada que
pudesse arruinar meu trabalho e me prejudicar. Circulava pelo grupo de whatsapp do reggae
do Pirambu, “Amigos do PiraRoots”, as informações de que uma moça havia sido assaltada e
estuprada voltando da praia da Leste, no Pirambu. As vozes que ecoavam na minha cabeça a
partir da minha raiva faziam coro a incorporação do ethos da norma instituída pela facção:
“não era proibido roubar na quebrada?!” - dizia eu enfatizando o limite da própria norma,
provocando o que se está instituído nas margens habitando a mesma lógica de punição do
estado penal, e que se mostrou tão ineficiente quanto. O limite era o gênero. Uma mulher
voltando da praia sozinha, pelas ruas da sua favela, onde é proibido roubar.
Minha raiva continuou: “E o castigo para duzentão23, qual é?! Se pegar é pau no
gato!”. Reiterando as formas de punição como espetáculo (Comaroff e Comaroff, 2016, p.18)
23
O termo faz referência aos artigos do código penal (213, principalmente) que prevêem crimes sexuais, é usado
geralmente para se referir quem os comete contra menores de idade, mas não somente. Ver Germana Oliveira
(2018).
52
comuns neste contexto, a expressão “pau no gato” refere-se a um tipo de linchamento, mas
também remete a ideia de ser efetuada a penalização pelo desvio. Refletindo a partir de
Nietzsche sobre dor, corpo e memória, Veena Das (1995) coloca que uma das equivalências
entre lesão e dor é que “infligir dor a uma pessoa que causou dano por falhar em qualquer
uma de suas obrigações conosco é visto como justo” (tradução minha). Ahmed (2004)
também sugere que o “trabalho da emoção envolve a ‘fixação’ de signos aos corpos: por
exemplo, quando os outros se tornam ‘odiosos’, então as ações de ‘ódio’ são dirigidas contra
eles” (tradução minha, p. 13). As emoções exprimidas eram reflexo de uma incorporação da
norma e esta norma evidencia uma comunicação por meio da violência. Assim circulavam as
emoções neste jogo de relações entre mim e o campo - raiva.
A figura da pessoa vitimada, por uma ação que rompe com várias normas da facção
ao mesmo tempo, reitera o poder instituído das facções no controle dos territórios, mas
também é um retrato das suas limitações. Como nos diz Butler (2019), “cada instância
normativa é acompanhada do seu próprio fracasso, e com muita frequência esse fracasso
assume a forma de uma figura” (p. 22).
Cada vez que alguém tornava a falar que o autor do crime “deve ser pilantra”, a
minha raiva aumentava, pois sentia que a responsabilização pelo ato era arremessada para o
“Outro”, a fim de se isentar da possibilidade de alguém de dentro ter agido “pelo errado”. Este
arremesso de culpabilidade é uma emoção que produz fronteiras - entre o “Eu” e o “Outro”,
53
As minhas emoções, por mais que, num primeiro momento, fizesse coro as formas
violentas de lidar com o conflito no âmbito das facções, denunciava também a fragilidade
interna do domínio do grupo sob o território. O fato de existir “lei” que proíbe roubar na
favela e que, apesar disso, houve roubo seguido de estupro, onde a vítima foi uma mulher
cisgênero, denota como a lei da facção é limitada no que tange a “proteção” do feminino em
seu território de domínio. Contudo, a existência da categoria “duzentão” consagra o cunho
sexual existente na “lei”.
É possível perceber, então, o contraste elencado por Das (1995) sobre a experiência
da dor dentro do fluxo normal, quando calamidades “vêm do ambiente natural ou social e são
vivenciadas tão súbita e traumática com formas de dor impostas ao corpo no curso normal dos
eventos” (tradução minha, p. 178). Na narrativa aqui presente, o estupro não é posto como
uma “necessiade natural” de homens, como Das (2020, [2006]) encontra no discurso judicial
dos tribunais indianos. A premissa de que tal horror só poderia ter vindo de sujeitos de facção
rival, denota como a facção constrói territorialidade a partir da imaginação masculina, por
meio de corpos femininos. Este retrato figura como o corpo que, por excelência, é o lugar da
desordem, pressupõe guerra, pois aciona o poder regulador - no caso, a facção (Das, 2020
[2006]; Mbembe, 2014).
Entendo corpo como nas palavras de Butler (2019), “não é possível definir primeiro a
ontologia do corpo e depois as significações sociais que o corpo assume. Antes, ser um corpo
é estar exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do
corpo uma ontologia social” (p. 13-14). Para Mbembe (2014), o corpo em si do sujeito, na
condição de escravo, “no drama da vida”, não significa nada, não é dotado de sentido próprio,
por isso, faz-se necessário o que ele chama de trabalho para a vida, para que possa evitar que
o corpo caia na completa objetificação.
54
Como aponta Luna Sales (2018) na sua tese sobre as economias sexuais em alguns
bairros de Fortaleza, incluindo o Pirambu, “os copos feminilizados [...] estavam em relação
metonímica com os territórios. A punição para a transgressão sexual materializava a moral do
seu governo” (p.34). Seguindo o curso das pensadoras aqui referenciadas, considero que a “lei
do crime” é, sobretudo, uma lei sexual.
Desde que voltei de Porto Alegre para Fortaleza, ainda não havia ido à praia.
Combinei com Tasha de irmos à Praia da Leste na parte da tarde e, de lá, eu ficaria em sua
casa até a noite, para ir ao reggae. Este seria um dia de imersão no Pirambu, onde fica situada
a praia em questão, onde também acontece o PiraRoots um dos reggaes que passei a
frequentar para a pesquisa e onde mora a principal colaboradora desta pesquisa. Aproveitando
que tudo fica perto um do outro, planejamos ir à praia e depois se arrumar para o reggae à
noite.
24
Colégio mais antigo do Ceará.
56
Eram por volta de três horas da tarde, o sol em Fortaleza “castigava”, escolhi então a segunda
opção e pegar o ônibus, ao invés de ir a pé.
Ao descer do Cuca-Barra, logo passou um outro ônibus cujo nome da linha era Vila
do Mar II - Centro25. Pelo nome, intuí que esse ônibus passava pelo Pirambu, pois “vila do
mar” é o nome de um projeto de urbanização da prefeitura que teve início em 2006,
abrangendo os bairros Pirambu, Cristo Redentor e Barra do Ceará26. Assim, perguntei ao
motorista se a sua rota passava pela Praia da Leste e ele disse que não, mas que cruzava a
Leste (se referindo a avenida Leste-Oeste e não à praia) e se eu quisesse poderia descer lá e ir
andando. A Leste-Oeste se trata da avenida Castelo Branco que corta a cidade em seus dois
extremos, levando-nos da Costa Leste a Oeste. Apesar de levar o nome do ditador cearense, a
avenida é chamada de Leste-Oeste por todos os citadinos, sejam moradores do seu entorno ou
não. Como a avenida Leste-Oeste passa em determinada altura perto da orla, interpretei que
poderia descer perto da praia da Leste. Não percebendo a confusão entre praia da leste e
avenida Leste-Oeste que eu e o motorista causamos, além de já estar ansiosa para chegar logo
na praia, peguei o Vila do Mar II.
Após entrar no ônibus, pagar a passagem e sentar em alguma cadeira, pois o ônibus
tinha poucos passageiros, mandei uma mensagem para Tasha avisando que havia pegado o
“Vila do Mar II” e a sua resposta foi diferente da que eu esperava. Recebi um “não” eufórico,
com direito a vários ‘o’s intensificando a entonação: “nãooooooooo”. Então explicou: “esse
ônibus vai pra Barra [do Ceará]. Fala com Tracie pra tu descer perto da casa dele”. Tracie é
mais uma pessoa colaboradora deste trabalho, que também mora no Pirambu, mas em outra
localidade.
ruas antes da favela da Colônia, onde já domina outra facção. Lugares assim, próximo à
fronteira, são conhecidos por “faixa de gaza”, portanto, todas as vezes que o termo for usado
será neste sentido.
Como me recomendou Tasha, tive que ir mandando mensagem para Tracie a fim de
avisar que havia apanhado o ônibus errado, estava agora dentro do Vila do Mar II, e precisava
que me explicasse onde descer, que fosse me esperar no ponto de ônibus. Assim, expliquei
toda a situação para Tracie. Ao mencionar a linha do ônibus em que eu me encontrava, Tracie
também entrou em desespero pois supunha que eu teria saído da minha antiga casa na
Caucaia. Em seu entender, eu teria pego esse ônibus partindo do terminal do Antônio Bezerra
(zona oeste), fazendo o percurso contrário (bairro-centro), ou seja, estaria passando por dentro
da Barra do Ceará. No entanto, não se sabe se por sorte ou Exu, estava no sentido
centro-bairro e, como Tasha havia mencionado logo depois de se acalmar, “pelo menos tu
ainda tá no Pirambu, então não tem perigo”. O que Tracie ainda não havia entendido. O
desespero de ambos era devido a rota do ônibus ir do centro (onde eu o peguei), até a Barra do
Ceará (assim passando por dentro de todos os bairros adjacentes, como o Pirambu, mas
também Colônia, Cristo Redentor) que é “a zárea dos pilantra”.
Apesar do Vila do Mar II passar por dentro do bairro, por vezes sendo uma boa
opção para os moradores de alguns locais, ninguém do Pirambu pega esse ônibus. O medo de
Tasha era devido a um dos incontáveis casos de meninas do Pirambu que foram violentadas
em situações como essas, por terem passado por um local “proibido”, mesmo que apenas de
ônibus. O caso em específico é de duas meninas do Pirambu que pegaram o Vila do Mar
saindo do terminal do Antônio Bezerra e, quando elas estavam na Barra do Ceará, os
“pilantras” mandaram-nas descer e “pegaram elas”.
Ainda dentro do ônibus, Tracie resolveu me ligar diretamente para entender melhor a
situação e poder me auxiliar. Tentei explicar mais ou menos por onde estava passando. Pela
janela reconhecia o lugar, que estava na avenida Francisco Sá, fronteira entre os bairros
Pirambu e Carlito Pamplona. Já havia passado por aquelas ruas há alguns meses atrás, antes
de me mudar para Porto Alegre. A Francisco Sá é uma avenida de tráfego intenso, apesar de
estreita. Há agências bancárias, hospitais, repartições públicas e, enquanto ela corta o bairro
Jacarecanga, é possível encontrar poucas casas com arquitetura colonial-burguesa, lembrando
que ali outrora fora área nobre, parte da belle époque fortalezense compondo o bairro mais
antigo da cidade. Hoje a paisagem é típica de uma zona comercial de grandes urbes. Calçadas
58
Eu estava tranquila por saber me localizar. Em outro momento já havia passado por
ali a pé, na ocasião de visitar um amigo que mora no Carlito Pamplona e, quando
atravessamos distraídas a Francisco Sá, Tássia falou “sim, mas vamo ligeiro que aqui é pista”.
No capítulo 3 veremos mais sobre esta categoria, mas adianto que a avenida é uma zona
litigiosa, que pode ser “pista”, “faixa de gaza”, zona neutra e “rota de fuga”, a depender do
tempo e espaço a que se refere. Com medo de explicar em voz alta exatamente onde estava,
ou que estava passando perto da “casa de fulano”, bem como não queria demonstrar que
“conhecia demais” aquela região, por não saber quem eram aquelas pessoas que estavam
comigo dentro do ônibus.
Evitando alguns detalhes, tentava situar Tracie por pontos de referência mais
genéricos como hospitais ou agências bancárias pelos quais passava. Apesar disso, considero
que ainda cometi o “vacilo” de repetir, diversas vezes, ao telefone que estava na intenção de ir
à praia da Leste, mas que peguei o ônibus errado. O “vacilo” decorre do fato de a praia da
Leste ser conhecida por estar sob o comando da facção Comando Vermelho (CV), que domina
o Grande Pirambu. Em 2019, por vários meses, aconteceu um baile funk na praia da Leste,
onde muitos dos frequentadores eram do CV, mesmo que o local atraísse pessoas de muitos
lugares diferentes, a predominância era deste comando pois estavam “nazária” deles. Assim, a
praia da Leste é uma faixa litorânea conhecida por ter “comando”.
trabalho partindo da periferia até a zona nobre da cidade. Em determinado horário, era notável
que as passageiras estavam indo ou voltando do trabalho, por pegarem sempre o mesmo
ônibus, no mesmo horário e terem o mesmo tipo de emprego, elas passavam a se relacionar
compartilhando experiências da vida pessoal e profissional, estabelecendo uma rede de
solidariedade. Quando do meu infortúnio, algumas passageiras tentaram me ajudar
perguntando para onde eu tinha intenção de ir e para onde eu teria que ir agora, já que errei o
ônibus.
***
28
Expressão local para indicar lugar longe, perigoso e de difícil acesso. Nos casos de assassinato pelas facções, é
muito comum usarem essa expressão para indicar que levaram alguém para ser morto.
60
favela, dada a minha condição de ser - mulher e negra. Habito, assim, um lugar nesta
comunidade moral: o de vítima em potencial.
Nesta perspectiva, retorno às contribuições de Das (1995). É possível trazer essa dor
para a esfera pública, sem o intermédio das profissões que regulam, tapam, adulteram as
vozes das vítimas? Coube aqui fazer uma “antropologia curativa”, parafraseando Das, onde a
partir das experiências de sofrimento compartilhadas, não serviram para consolidar uma
autoridade da etnografia, mas passou a ser uma ocasião para construir corpo, no caso, o meu.
Estas foram algumas considerações iniciais sobre os trajetos, percursos e percalços que
fazem parte da realidade das juventudes periféricas de Fortaleza, sobretudo da Costa Oeste.
No próximo capítulo, apresento o contexto e o universo de pesquisa. Será abordado um pouco
da história dos bairros que foram etnografados, relacionando onde for possível, e preciso, com
o contexto atual.
61
Com o Pirambu não foi diferente. Numa época em que o saneamento básico em toda a
cidade era precário, o mar servia apenas como destino final para o escoamento dos dejetos da
população (Silva, 2006). Era um período em que não se tinha o fato de morar na orla como
sinônimo de luxo. Assim, numa parte mais afastada do Centro, um campo de concentração foi
construído para alojar os flagelados da seca - retirantes que vinham do interior do estado à
procura de melhores condições de vida, devido à precariedade que se tornou o sertão das
secas de 1915 e 1932. O campo de concentração era conhecido como Campo do Urubu, pelo
poder público, entre os populares era tido como Curral Humano, tamanha era a
desumanização a qual foram submetidos milhares de sertanejos (Cavalcante, 2016).
Importante salientar que, na época, Fortaleza tentava se encaixar nos padrões europeus,
sobretudo franceses, de urbanização. O bairro Jacarecanga, que fica entre o Centro e o que
atualmente é o Pirambu, era então a zona nobre da cidade. Ainda hoje é possível encontrar
pelo bairro edificações que remetem à arquitetura colonial européia.
62
educação e evangelização do bairro, junto ao padre, foi Aldaci Barbosa, uma jovem estagiária
das fábricas que, insatisfeita com seu trabalho que se configurava apenas em desarticular as
ações dos trabalhadores sindicalizados, é convidada por Dom Hélio Campos para trabalhar
com a Igreja.
29
Conferir no Portal de Legislação o decreto nº 1058/62 de desapropriação das terras. Disponível em:
https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/77560-declara-de-utilidade-publica-para-desapropriauuo-dua
s-ureas-de-terra-situadas-no-bairro-de-pirambu-em-fortaleza-capital-do-estado-do-cearu-necessurias-a-melhoram
ento-habitacional-de-grande-centro.html. Acesso em 18 de dezembro de 2021.
64
Virgílio Távora, assinou o decreto de desapropriação por ele denominado como a “carta de
alforria do Pirambu’’ (Távora, 1986 apud Cavalcante, 2016).
É neste processo de remoção e migração dos moradores do Pirambu para outras áreas
que nasce a favela do Barramar. Moradores remanescentes das obras do Vila do Mar no
Pirambu - sobretudo da região da Areia Grossa, primeira parte a sofrer com a remoção -
passaram a ocupar uma área próxima ao conjunto Hermes Pereira, na Barra do Ceará. O local
fica entre o córrego da avenida Francisco Sá e o Centro de Treinamento do Ferroviário, time
de futebol tradicional originário da Barra do Ceará.
Estudos indicam que os primeiros seres humanos a habitarem esse território podem
ter chegado por lá há cerca de 2.000 anos atrás. Até o ano 1.000, aproximadamente,
a região era habitada pelos índios tapuias. Nessa época, os mesmos foram expulsos
para o interior do continente pelos índios tupis procedentes da Amazônia. É um
desses povos tupis o povo indígena mais identificado com o território de Fortaleza: o
potiguara, povo de língua tupi retratado por José de Alencar em seu livro “Iracema”.
[...] O início da ocupação do território, onde hoje se encontra Fortaleza, data do ano
de 1597/98, quando um ramo da etnia potyguara que habitava a região ao redor do
Forte dos Reis Magos migrou e estabeleceu-se na região entre as margens do rio
Cocó e rio Ceará, tendo ao fundo as serras de Pacatuba e Maranguape. (Rede Unida,
2013)
Tomarei marcos importantes para contar a história do bairro, partindo do conflito entre
os donos das terras, os potyguaras, e os invasores europeus - portugueses e holandeses. O
contexto era de guerra entre Portugal e Holanda pelo domínio das capitanias do Nordeste. É
importante ressaltar que na época, a capital do Ceará era a cidade de Aquiraz, litoral leste do
estado. Então, os conflitos estavam, de certa forma, afastados do centro colonial. Isto também
é um fator importante para a mobilização política dos povos indígenas da Barra do Ceará,
visto que aquela região era uma capitania afastada, pobre e esquecida pelos portugueses e
holandes, em meados de 1630 (Martins, 2009).
Não há informações claras dos motivos pelos quais Diogo Algodão e os outros
Potiguara tomaram a decisão de atacar os soldados portugueses do Forte de São
Sebastião e, conseqüentemente, de chamar a WIC ao Ceará para ajudá-los na tarefa.
O mais provável é que o azedamento das relações entre os Potiguara e os
portugueses no Ceará tenha sido fruto de um período relativamente longo de
tentativas de forçar os índios ao trabalho compulsório, uso de suas roças para
alimentar os soldados do forte, violência sexual contra as mulheres indígenas e
outras desavenças de caráter pessoal entre os índios e os soldados. É possível que os
66
Em virtude destes três anos da chegada de Morris, com inúmeras atividades que levou
ao aumento da mortalidade dos povos potyguar, o “commandeur” e seus soldados foram
assassinados em revolta dos povos indígenas. Como conta Martins (2009), não se sabe
exatamente como se deu o ataque, nem quem foram os autores do massacre, pois
simplesmente não houve sobreviventes no lado europeu para registrar a história. O que os
historiadores sabem é que, muito provavelmente, os mesmos potyguar que chamaram os
holandeses para suas terras em 1637, destruíram a guarnição dos fortes e atacaram as
embarcações neerlandesas que atracaram na Costa Oeste.
Foi numa daquelas transições entre o Recife e Maranhão, no final do ano de 1643 e
início de 1644, que as embarcações holandesas foram dizimadas pelas populações indígenas
locais. Isto aponta para o fracasso da política indigenista holandesa, que acreditava ser
possível “civilizar” os povos indígenas do Brasil de maneira pacífica desde que lhe garantisse
a liberdade e que, ipso facto, estes povos deveriam abraçá-los contra a opressão portuguesa.
A antiga “liberdade” que tinha sido prometida e garantida aos índios era, agora, vista
como fonte de problemas. Era fácil defender a liberdade indígena em panfletos
quando se esperava que os índios, por sua própria vontade, seriam fiéis súditos das
67
Províncias Unidas, sendo muito mais difícil defender essa liberdade quando ela batia
de frente com os interesses da metrópole. A revolta dos índios do Ceará, em 1644,
pode ser encarada como o primeiro sinal claro desses problemas que vinham em
gestação. (Martins, 2009, p. 8)
Podemos ver então, que a região que compete a foz do Rio Ceará e o mar, dando
início ao que conhecemos hoje por pela Barra do Ceará, foi palco de lutas que marcaram a
história da construção do estado. Poderia ter optado por contar a história do bairro em duas
vias: a primeira, pela paisagem paradisíaca, como se fosse um espaço vazio, de belezas
naturais exóticas, ou a partir da história de algum português que embarcou por ali, instaurou o
forte São Sebastião, pois era o santo do dia (20 de janeiro), rezou uma missa e fim. Contudo,
como aponta Martins (2009), os povos potyguar da Barra do Ceará foram imprescindíveis nas
tomadas de decisões da política regional:
Não só a existência de uma ativa política indígena frente aos europeus está
abundantemente demonstrada, pode-se inclusive argumentar que a situação de
prolongada guerra entre a Coroa portuguesa e a Companhia das Índias Ocidentais
Holandesa permitiu que determinados setores da população indígena, por algum
tempo, virassem ao avesso a tradicional estratégia das potências européias de
explorar as divisões entre os povos indígenas. (p. 4)
Como já falei, a história oficial parte de outros personagens para construir sua narrativa.
Talvez por isso, a narrativa oficial é de que a cidade de Fortaleza tem 295 anos, tendo sido
fundada em 13 de abril de 1726. Sua fundação se deu em decorrência de outra expedição
holandesa, às margens do rio Pajeú e desta vez o povoado foi elevado à condição de vila
(Rede Unida, 2013). No entanto, a história da Barra do Ceará indica a existência de forças
políticas em embate que mudaram os rumos do processo de colonização.
Com base no conceito de drama social de Victor Turner, Ferreira (2013) analisa a
dinâmica política básica dos Terena frente às políticas indigenistas do Estado brasileiro entre
os anos de 1960 a 2006. Na obra, o autor demonstra que não houve um desaparecimento das
antigas formas de organização política dos povos indígenas com a situação de reserva, pelo
contrário, o evento reflete um processo dialético entre o estado e a lógica segmentar dos
Terena, o que culminou numa descentralização faccional.
Diante do exposto, pensamos junto com Ferreira (2013) de que é imprescindível nos
atentarmos a estas situações de conflitos, pois elas servem de pano de fundo para formar o que
ele chama de processos (desarmônicos). Uma série de acontecimentos e situações sociais, que
dizem respeito às lutas locais em interação com as forças hegemônicas do poder político, não
podendo ser esquecidas, anuladas, mesmo quando se atenta aos dias atuais, pois as formas de
68
organização política partem destes processos, e não são aniquiladas em detrimento de outra
ordem.
Diante do exposto, o universo desta pesquisa se deu nos trânsitos entre o Grande
Pirambu - um complexo de favelas, que “fecham de ponta a ponta” com o CV - e a Barra do
Ceará (que tem predominância da facção cearense Guardiões do Estado, a “GDE”), a partir do
reggae de praça, em especial o que se localiza no Barramar (CV). Segue mapas da região.
Figura 8: Pirambu.
2.2 A Paz
Então lhes apresento a pesquisa desde seu cerne até onde ela me levou, mas isso
notadamente parte de uma perspectiva mais ampla, complexa e abstrata para posteriormente
chegarmos na concretude dos fatos. Ou seja, aqui neste capítulo trago as questões que me
despertaram para pesquisar gênero nas dinâmicas criminais, partindo do discurso midiático,
monitoramento das estatísticas de Segurança Pública do Ceará, algumas entrevistas e diário de
campo, explicando o que foi o fenômeno da “pacificação”, porque partimos da sua “queda” e
70
o que foi a faccionalização dos grupos que agenciam práticas incrimináveis em Fortaleza. Até
chegar, esmiuçadamente, em como os espaços de lazer dentro de territórios faccionados está
envolto dessas questões, permitindo ter acesso ao campo de maneira mais concreta e
completa, trazendo questões próprias mas também uma perspectiva menos fatalista sobre o
cotidiano das favelas. Ao final do capítulo, abro um parêntese para recontar a história de
fundação dos dois bairros da Costa Oeste que foram etnografados.
Cada professor reuniu uma equipe de bolsistas e fomos nos dividindo para
acompanhar as entrevistas. A pesquisa não chegou a ser completada, mas foi minha primeira
inserção como pesquisadora em um bairro da Costa Oeste, o Pirambu. Na ocasião, ao lado do
professor Luiz Fábio S. Paiva30 (PPGS-UFC), fomos para uma escola de ensino fundamental
situada no bairro, que recebia projetos da Secretaria Municipal de Segurança Cidadã (Sesec),
e conversamos com algumas mulheres moradoras da região. Foi a primeira vez que ouvi falar
sobre a “Paz”. Ali, entre as entrevistadas, havia discordância e diferentes narrativas: umas
diziam que o pacto era temporário, que não podia-se confiar, pois, “como é que vai confiar
numa paz decretada por bandidos?”; enquanto outras narrativas desenhavam um plano de
acordo entre lideranças locais e comemoravam a unificação do Pirambu, algo inédito na
história recente do bairro. (diário de campo, 2015)
O Pirambu é a sétima maior favela do país. Hoje em dia, jovens moradores bradam
pertencer ao “Grande Pirambu, um complexo de favelas” e é assim que vou reverenciá-lo ao
longo deste texto: um complexo de favelas. Dentro do Pirambu existem várias subdivisões,
que anteriores a “Paz”, eram fragmentos de bairro rivalizados por gangues. Para citar algumas
das partes que compõem o Pirambu, temos a Areia Grossa, Cacimba dos Pombos, Caldeirão,
os Abel, dentre outras denominações que não passam de um aglomerado de ruas ou becos.
Quando a “Paz” foi decretada, em festa e passeata na “pracinha do Abel”, todas estas
delimitações passaram (ou voltaram) a ser uma só.
30
Professor Associado alocado no Departamento de Ciências Sociais da UFC. Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Amazonas e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).
71
Como já falei em outras ocasiões (Lourenço & Santos, 2019)31, a semente que deu
origem a este trabalho veio da participação nos projetos de pesquisa e intervenção junto ao
LEV, por volta do ano de 2017/18, todos sob orientação de Luiz Fábio. No projeto de pesquisa
“A guerra por outros meios: transformações sociais do crime em Fortaleza”, o foco estava nas
mudanças nos modos de fazer o crime em coletivo a partir da “pacificação”32, entendendo o
fenômeno a partir da ideia de “maneiras de fazer” de Certeau (1994, apud. Paiva, 2019, p.3).
João Pacheco de Oliveira (2018) vai elencar alguns dos usos deste termo, pois a
“pacificação” atravessa a história de construção do nosso país enquanto nação. É uma palavra
que serviu, e serve até hoje, para intitular políticas que visam “amansar” populações inteiras
que, supostamente, não correspondem aos códigos morais impostos pela dominação ocidental.
O autor traz o termo até o recente uso do aparato ostensivo estatal, que tem por objetivo
solucionar questões de segurança pública - sobretudo no Rio de Janeiro, que é o contexto
etnográfico ao qual se refere. Aparentemente, as formas de governamentalidade tem se
apropriado deste léxico colonial para atualizar o “Outro” nacional.
Trata-se de uma categoria central, que atravessou cinco séculos, da história colonial
ao Brasil republicano, sendo unicamente utilizada para a população autóctone, que,
por suposto, seria regida por valores e padrões de comportamento absolutamente
diversos dos ocidentais. [...]As expressões utilizadas pelos governos para dar conta
31
Ver trabalho publicado nos anais do ENAP 2019. Lourenço & Santos, 2019, p. 40-49.
32
Muitos são os trabalhos sobre o assunto no Ceará, para aprofundamento sugiro ver SÁ; ACCIOLY; REIS, 2016
e BARROS et al., 2018.
72
Os inúmeros trabalhos que se dedicaram a falar sobre este fenômeno apontaram para o
que me parece óbvio: a paz não foi pacífica. Pires (2018) traz diversos depoimentos de
moradores e agentes envolvidos ativamente em práticas ilícitas no bairro Grande Tancredo
Neves (GTN), onde se narra a imposição à aderência aos coletivos. Aqueles que não
“vestissem a camisa” de um outro grupo, ou seja, se integrasse a ele, eram mortos ou
"espirrados" da favela. Os depoimentos narram a chegada de homens fortemente armados,
com porte físico “diferente” daqueles que os sujeitos estavam acostumados a ver agenciando
os mercados ilegais na periferia.
Outro dado que enfatiza isto é a relação conflituosa entre o que se tornou o “Grande
Pirambu” e a Colônia - favela que faz fronteira com os últimos segmentos do Pirambu e o
início da Barra do Ceará. A Colônia fica no limiar entre a Barra do Ceará e o Pirambu, mas
existem dúvidas no imaginário dos moradores deste último se ela é pertencente ao complexo
de favelas que faz parte do Grande Pirambu ou não. Tanto é que as representações do
pirambuense sobre a Colônia parecem querer dizer que “lá” predomina outra ordem, distinta
das que eles estão acostumados. A narrativa é sempre de que “lá” é “embaçado”, ou seja,
perigoso. Mesmo antes de se tornarem rivais por facções, o Pirambu e a Colônia já não
tinham uma relação amigável, tendo, portanto, aderido a facções rivais durante este processo.
MV Bill, um personagem que vai aparecer constantemente nesta etnografia, narra como
foi a "escolha" pelo “lado” ao qual iria se adaptar durante o período de “pacificação”, dizendo
que, o "certo" era ter aderido ao coletivo regional “Guardiões do Estado”, GDE, pois este
pregava em seu discurso uma reivindicação pelo “crime local”, não se submetendo às ordens
de grupos de “fora”. Contudo, Bill diz: “mas eles foram pelo errado”, permitiam “assaltar
cidadão, expulsar o povo daqui”. Estas afirmações, por mais que possam parecer parte de um
discurso típico da assimilação para ambos os grupos, nos permitem olhar para as
representações do que é considerado um “crime certo” e outro “errado”. Por este caminho,
considero que os códigos morais preexistentes à faccionalização dos territórios, assim como o
imaginário de pertencimento local, foram cruciais para “escolha” pelo “lado”.
33
Aquela já citada que se identifica como “T2” ou “tudo 2”. Enquanto que sua principal rival, a GDE, usa o
termo “tudo 3”.
74
moralidade local relevante para se pensar a aderência às facções e que esse processo não foi
uma sobreposição de normas, mas uma interação, bastante violenta, entre elas.
Outro fator que constata isto é o que Paiva (2019) diz ser uma característica do CV, de
se gerir a partir das próprias “maneiras de fazer” locais. Portanto, tal ideia, que parece estar
difundida entre diversos setores da esfera pública, de que uma forma de se praticar o “crime”
acabou - fora dizimada, dando lugar a outra - se aproxima novamente da ideia de pacificação
das populações autóctones por meio de políticas integrativas de projeção nacional, assim
como da pacificação das favelas do Rio de Janeiro, como aponta Pacheco de Oliveira:
Embora não seja preciso definir a extensão e a potencialidade de cada fato que levou
ao fim da “pacificação”, creio que o ponto crucial de demarcação do seu final foi o
assassinato de Welder Breno Silva Ferreira, de 28 anos, no dia 19 de outubro de
2016. A morte aconteceu no bairro da Sapiranga, no cruzamento das ruas Olegário
Memória e José Félix, e representou um marco no início dos confrontos armados
entre as facções que atuavam no Ceará. Militantes de movimentos de Direitos
Humanos que atuam na Sapiranga declararam, em conversações sobre o evento, que
a morte naquele local era um “sinal”, porque ali era onde o bairro era dividido pelos
grupos que faziam o crime antes das facções. (p. 175-176)
75
O episódio da morte de Welder Breno Silva Ferreira foi entendido como um ato
simbólico para demarcar a quebra de acordo entre as facções PCC e CV a nível nacional, data
logo após ao assassinato de um dos líderes do PCC no Paraguai. O fim da paz culminou no
ano mais letal da história recente do estado, 2017, e desde então a cidade vive em contexto de
guerra. O ano de 2017 é sempre rememorado pelos colaboradores desta pesquisa. Quando do
advento de novos conflitos, quando a “zária tá embaçada” novamente, é comum vir à tona a
fala “tá tipo 2017”. No ano seguinte também. Em 2018, alguns eventos catastróficos foram
pontos críticos para o preâmbulo deste trabalho. O primeiro foi a chacina de Cajazeiras, zona
sul de Fortaleza, onde 14 pessoas foram assassinadas dentro de uma casa de forró, na qual a
maioria das vítimas eram mulheres. Enquanto se falava de uma suposta crueldade
generalizada no ato, por terem vitimado tantas mulheres, os moradores locais diziam que as
mortes eram “esperadas” e elas foram realmente o alvo. Nas primeiras publicações em face
desta pesquisa, trouxemos outros dados:
Me preocupava, à época, o porquê das meninas e mulheres que estavam sendo mortas
dentro destes conflitos não aparecerem nas estatísticas de Crimes Violentos Letais
Intencionais (CVLIs)34 como feminicídio, dado ao caráter generificado da guerra. Uma
familiar minha, que é agente de Segurança Pública e colaborou com este trabalho, afirma que
as meninas [comprometidas] que foram assassinadas por se envolverem sexual e afetivamente
com alguém de facção rival cometeram uma “dupla traição”. Elas estariam “traindo não só o
cara, mas também o grupo a qual ela pertence”35.
34
Índice criado e alimentado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará. “Entende-se por CVLI a
soma de crimes de Homicídio Doloso/Feminicídio, Lesão corporal seguida de morte e Roubo seguido de morte
(Latrocínio). Também entram neste índice os crimes por intervenção de agentes do Estado e os ocorridos em
unidades prisionais.” (Lourenço, 2019, p.3).
35
Trechos de entrevista gravada em dezembro de 2019.
76
É certo que a maior contribuição que pude dar naquele projeto, lá em 2018, foi com a
temática de gênero. Na época, minha preocupação estava voltada para diluir o que parecia ser
uma polaridade entre “facções” e “feminicídios”, pois, a partir de literatura mais clássica no
tema das facções, coletivos e práticas criminais na antropologia e sociologia da violência feita
no sudeste (mas não somente) parecia partir particularmente de agenciamento e protagonismo
masculinos36.
hooks (2019) traz uma reflexão sobre a dimensão da intimidade nos relacionamentos
que gostaria de ressaltar aqui: trata-se da não identificação com as ideias pré estabelecidas de
vítima e agressor por parte do casal em questão, mas que reflete concepções imbricadas no
imaginário social. Nele, a autora relata um caso pessoal de violência dentro do relacionamento
íntimo, no qual afirma ter tido dificuldade de se entender como vítima, assim como seu
companheiro não se entendia como agressor. Por essa razão, ambos se distanciam do perfil
imaginado e circunscrito pela legislação, dificultando a possibilidade de buscar apoio jurídico
para o caso. bell hooks salienta que essa dificuldade de se encaixarem nos lugares de agressor
36
Ver SÁ, 2011. sobre o ‘bichão da favela’.
37
Cf. Pamplona, 2020.
77
e vítima se dá também pelo fato de que, dentro de um relacionamento íntimo, ambos são
muito mais que vítimas e agressores, e que tais categorias são relacionais e contextuais.
Trabalho sob a ótica de que as vítimas aqui possuem corpos, além de generificados,
também racializados o que obriga a nos atentarmos ao fato de que os meios de comunicação
hegemônicos e o estado, atrelam os feminicídios de mulheres não brancas à guerra entre
facções. Isso ocorre em decorrência de dois fatores: primeiro, o racismo constantemente atrela
o sujeito negro à coletividade, sendo destituído de individualidade, assim, a necropolítica
entra neste jogo para tornar esse coletivo inimigo do estado, como pretexto para o extermínio
- seja físico, moral, ou até mesmo a destituição do acesso aos direitos (Foucault, 1999;
Mbembe, 2016); segundo que em uma sociedade racista e racializada, as mulheres negras não
são concebidas, a priori, como mulheres, senão como negras (Kilomba, 2019; Ribeiro, 2019),
sendo assim desprovidas de gozar dos direitos voltados para as mulheres.
Desta forma, existem duas perspectivas possíveis para se refletir sobre o acesso à justiça
no que tange aos assassinatos de mulheres. A primeira parte das mortes das mulheres não
“envolvidas” mas que, segundo minhas hipóteses, por serem negras e periféricas são
associadas ao “mundo do crime” e, a subnotificação ou até mesmo a não qualificação do
crime de acordo com a lei 13.104/15, ratifica o que seria o “perfil adequado” das vítimas de
crimes de feminicídio, ou seja, como aqueles não atrelados ao espaço público, que seguem
uma linha sucessiva de violências dentro de uma relação afetiva-sexual. E a segunda direção
diz respeito à morte das “envolvidas”, na qual faz o curso contrário, onde o fato de elas terem
participação ativa, serem “batizadas”, que a execução não tenha enunciado e elucidado um
reporte ao gênero.
Brasil, o racismo ainda impede a criação de uma identificação emocional com a vítima
(Jimeno, 2010), portanto, no Ceará as mulheres vítimas de extermínio por parte destas facções
ainda não puderam ser enlutadas.
38
Entendo como objeto as delimitações espaciais e temporais desta pesquisa, como e onde ela se inicia, em nada
se refere aos sujeitos que contribuíram com a realização da mesma. A estes me refiro como colaboradores.
79
Esta história começa muito antes da era cristã, quando Moisés escreveu os dez
mandamentos de Deus e um deles dizia: “Não deverás cobiçar a mulher do próximo”. Na
infância, educada como católica, por muito tempo interpretei esta ideia de “próximo” como
sinônimo de seguinte, posterior. Contudo, com a maturidade, veio a descoberta de que este
próximo é na verdade aquele que está perto, junto. Não cobiçais a mulher do teu “chegado”.
Em contexto mais recente que o de Moisés, Adriana Negreiros (2018) na sua obra
sobre gênero e violência entre cangaceiros e suas companheiras que seguiram Lampião
durante a vida39, esboça acerca dos “códigos do cangaço”. Em suas palavras:
39
Explicito que o livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço é sobre seguidores de Lampião que
o acompanharam em vida visto que, após seu assassinato em 1938, o cangaço em si não acabou.
40
Ver música “Amiga Boca de Prata” da Banda Cristal Quebrado, o gênero musical é o forró de favela.
Disponível em: <https://www.letras.mus.br/banda-cristal-quebrado/boca-de-prata/>. Acesso em 09 de dezembro
de 2021.
80
mandamentos escritos por Moisés, a “prateada”, na prática, não é necessariamente uma regra
entre homens que tomam mulheres como suas propriedades - isto pode ser percebido na letra
da música indicada em nota, onde é ilustrado um caso de traição entre duas amigas dentro de
relações heteronormativas, como por exemplo os versos: “que amiga ingrata/ também boca de
prata/ roubou meu homem de dentro da minha casa”. Portanto, de maneira difusa, são pessoas
que tomam relacionamentos amorosos como contratos de posse e, a partir disso,
estabeleceu-se uma sentença para quem rompe este contrato, que é elucidado nos versos: “eu
já dei a sentença do que fazer com ela/ eu vou surrar a pirangueira na favela”.
Escolhi os nomes fictícios de uma casal que conheci em campo de MV Bill e Kmila
CDD em decorrência da música dos rappers, que são na verdade irmãos, mas construíram
personagens de um casal dentro de um relacionamento conturbado e, a batalha entre os dois
nos versos, ilustra uma briga entre o casal, sendo apresentados os pontos de vista dos dois
lados sempre em tensão. A música nos coloca nas entranhas da relação, tornando difícil tomar
para si a defesa de um lado ou discernir quem está certo ou errado na discussão41. Assim,
foram muitos os dilemas que acompanhei entre o casal de colaboradores desta pesquisa, que
passarão a ser mencionados daqui em diante com os nomes dos rappers, ou simplesmente, Bill
e Kmila.
Certo dia, MV Bill estava em uma barraca na praia da Leste, sentado à mesa entre
amigos homens, quando chega Kmila CDD e o faz companhia entre os demais por um tempo,
depois vai embora. Quando Kmila se retira da mesa, começam os murmurinhos entre eles. Os
rumores eram de que não sabiam que o casal ainda estava junto, visto que ela havia ficado
com outro parceiro, conhecido, próximo de Bill, que morava na mesma rua e possui até certo
grau de parentesco, um primo distante. Em consequência disto, Bill, com o aval do grupo,
buscou o parceiro para tirar satisfações, atitude conhecida como “cobrar o furo”. Este alegou
desconhecimento sobre eles estarem juntos ainda e que Kmila havia garantido que estava
solteira.
na rua como forma de tornar explícito que Bill não deixou passar a traição, apesar de este caso
não ter sido o suficiente para levar ao fim a relação por nenhuma das partes.
Quando Bill contou essa história em sua casa, visivelmente indignado, quis indagá-lo
sobre a questão que guiava meu projeto de pesquisa até então: e se ele fosse “pilantra”? Teria
alguma diferença na forma de lidar com a traição? Contudo, neste primeiro momento, não
quis colocar minhas dúvidas por receio de soar como mais uma afronta à honra de Bill, que no
momento andava abalada.
Discuti sobre isso com Tasha algumas vezes, antes de perguntá-lo. Ela argumentava
que parecia pior, quando se é traído por conhecidos, próximos, pessoas que cresceram juntos:
“nam, não gosto nem de pensar”, foi o que Tasha falou. Coloquei questões sobre que leitura
deveria ser feita desta situação visto que, no “frigir dos ovos'', ele a agrediu fisicamente. Foi
onde Tasha me devolve como resposta: “man, ela não é nenhuma santa. Ela conhece a lei e
sabe que é assim… o proceder”. Foi assim que abandonei minhas próprias convicções
políticas acerca da postura de Bill e me abri à trama.
Tasha. Em nenhuma das três agências em questão, os sujeitos foram autônomos, no sentido de
sujeito liberal, visto que agiram sob égide de uma dinâmica moral bem estabelecida. “Ela
conhece a lei” denota que Kmila possui uma espécie de consentimento sob a norma. Em
contrapartida, a mesma lei não dá a Bill a possibilidade de não aplicá-la, pois ao vir a público,
o caso deixa de ser uma questão própria do relacionamento íntimo entre eles, e passa a ser
uma questão do território que segue um sistema de leis.
Por fim e, sobretudo, gostaria de pontuar que, o fato destas ações serem desprovidas
de autonomia entre os sujeitos perante a lei e, denotarem o seu consentimento sobre ela, não
quer dizer que não houve violência. Pelo contrário, é um exemplo nítido de relações
territoriais generificadas através de uma lei violenta. Além disso, a complexidade dos fatos
ocorridos apontam para uma impossibilidade de se reportar aos meios jurídicos legais, mesmo
que estes tenham previsto situações de violência de gênero. A figura do “boca de prata”
aponta para uma “contradição entre o estado legalmente definido e a legalidade baseada na
comunidade” (Das, 2006, p. 60), além da forma como as rupturas com contrato monogâmico
passam da ordem da intimidade de um casal para a ordem do território.
Como era costumeiro os assuntos retornarem nas visitas que fiz à Bill, o caso veio à
tona e ele parecia menos contrariado, então perguntei, “e se ele fosse pilantra?”. Para minha
surpresa, resultando quase em um desvio de direção desta pesquisa, a resposta dada por Bill
foi: “tava nem aí não, a vida é dela”. É nítido que a resposta dele não desfaz o fato de
inúmeras meninas terem sido assassinadas por conta de traição aos companheiros e ao grupo
que domina os territórios onde vivem, contudo, sua resposta evidencia uma hierarquia nos
códigos e um grau de relevância nas relações estabelecidas entre os seus iguais, entre quem é
“dazária”. Espera-se respeito e consideração dos que pertencem ao mesmo grupo que ele. De
“pilantra”, só espera-se a guerra.
***
Até então, refleti sobre alguns dos problemas que perpassam a questão que norteia esta
pesquisa. O fim do pacto pela paz ocasionou um diferente contexto de guerra racial (Anjos,
2017) e de gênero que foi preciso contextualizar antes de dar prosseguimento às reflexões. A
partir de agora, portanto, trago algumas questões sobre as abordagens teóricas neste campo de
estudo e tensiono as relações de alteridade existentes entre autores e sujeitos de pesquisa.
Pires (2018), nos alinhavados iniciais de sua dissertação de mestrado, parte da ideia
de “pobreza da experiência” na sociabilidade moderna, de Walter Benjamin (1987 [1933]),
para refletir sobre as consequências do individualismo liberal ocidental à nível de relação,
experienciada especialmente pelos segmentos das classes médias e altas. O caminho traçado
pelo autor se alinha à uma tradição na sociologia da violência, que vê problemas de segurança
pública - como a sensação de insegurança, uso ostensivo do aparato policial militaresco,
tecnologias e torres de vigilância (Caldeira, 2000), que visam separar e “proteger” alguns
indivíduos de outros - como consequência, à nível de relação, do neoliberalismo.
Para isso, Pires (2018) vai se basear nas teorias do contágio dialogando com
Goffman (2011 [1967]), Natalie Zemon Davis (1990 [1975]), Elias e Scotson (2000 [1965]) e
Douglas (1976 [1966]), que partem de situações etnográficas localizadas em cidades
européias e mostram como os eixos dominantes que constituem estas cidades temem a
“mistura” deles com a cidade pobre, marginalizada. O termo “mistura” se encontra entre aspas
desde o texto de Pires (2018) pois se refere a uma categoria trabalhada por Sá (2009) acerca
“do medo, da guerra, do estranho e do desamor”, que camadas médias e altas de Fortaleza
sentem em relação às juventudes faveladas.
A partir disso, gostaria de fazer uma leitura das colocações de Pires (2018),
lembrando que sua visão corrobora com uma tradição bem consolidada na sociologia e
antropologia da violência, para testar como estas questões se comportam partindo de outro
lugar analítico e outra situação etnográfica.
Ao que se refere às teorias do contágio, estas muito bem fundamentadas por Pires
(op. cit) em sua obra, podem ter outra face se testadas a partir da história da construção de
84
Fortaleza enquanto metrópole. Na obra “História dos Negros no Ceará”, Ribard e Funes
(2020) evidenciam que, na verdade, nunca houve uma relação apartada entre as classes sociais
racializadas da cidade de Fortaleza desde sua formação, como é possível encontrar no trecho a
seguir:
A(s) cidade(s) se mistura(m) desde sua gênese, contudo, o que ocorre é uma não
aceitação que as pessoas (negras e indígenas) que compõem e constroem a cidade a partir da
margem, possam ocupar lugares fora do que determina as hierarquias sociorraciais, como por
exemplo, espaços de lazer dentro do circuito cultural centro-litoral da cidade de Fortaleza.
Era sábado de manhã, acordamos depois de mais uma festa de despedida, desta vez na casa do
Fábio. Tasha e eu dormimos lá. Ao acordar pensamos em ir à praia da Leste. Ligamos pro
Smoke para perguntar se ele gostaria de nos acompanhar, mas ele “botou mó queixo” e
acabou nos convencendo a ir para sua casa e ficar “fumando um” por lá com ele e a Tássia,
sua namorada. Smoke mora no Carlito Pamplona, um dos bairros adjacentes do Pirambu.
Tasha e eu saímos da casa do Fábio por volta de meio-dia. O tempo estava nublado e
até serenou um pouco, Fortaleza estava na estação de chuvas. Pegamos o ônibus da linha
Borges de Melo II, descemos na praça do Carlito43 e de lá fomos caminhando até a casa de
Smoke. Apesar de não conhecer o lugar, senti-me segura pois estava com a Tasha “nazária”
que é “tudo 2”. Assim como a Tasha, Smoke e a Tássia também são "crias", ou seja, jovens
moradores que nasceram nos bairros que hoje estão sob domínio de determinada facção, no
caso, CV. Não são “batizados”, mas têm certo grau de aproximação e até afinidades. Isso se
deve ao fato de conviverem com amigos e familiares que protagonizam algumas práticas
ilegais, “vestem a camisa” e são “batizados” nas facções.
Chegamos na casa do Smoke. No final da sua rua ficavam os trilhos onde passa o
trem. Em Fortaleza, quanto mais perto do trilho, mais estigmatizado como "perigoso" é o
local. Ao entrarmos na sua casa, Smoke e Tássia estavam nos esperando. Faltavam poucas
semanas para o carnaval, a maconha estava escassa em quase todos os bairros de favela da
cidade, então, tínhamos que pensar bem como íamos “fumar aquele” para não faltar e
ninguém “ficar de cara”. Depois de tudo planejado, fomos para o quintal de uma casa que fica
no mesmo terreno que a casa de Smoke, onde geralmente costumam estar para fazer o uso.
Tássia ligou a caixa de som, pôs um reggae para tocar e Smoke “bolava” o “beck” enquanto
botava o papo em dias com Tasha.
Tasha: [...] Man, e o TH que eu nunca mais vi, tem notícia dele?
Smoke: TH agora tá namorando... - em tom de jocosidade.
Tasha perguntou quem era a moça que TH estava namorando e se a conhecia, Smoke tenta
lembrá-la dos rolês onde já tinham se visto e continuaram a conversa:
43
Nos mapas que irão aparecer neste capítulo, a praça fica no ponto onde parece uma “teia de aranha”. Digo isto
pois Smoke quando vê os mapas no Grande Pirambu diz, “eu moro perto dessa teia de aranha aí”.
87
O clima pesou de repente. Tasha fez uma cara de espanto e logo sorriso saiu de seu rosto, ao
dizer:
Tasha: Esse bicho é doido, é?
Smoke: Ora, ele não tá nem vendo, não! Taca dois riscos na sobrancelha, anda todo
“paloso” e se mete lá dentro [na Colônia] atrás dela. Altas vezes ele entrou lá e os
caras foram seguindo ele, só deixaram quieto quando ela apareceu e viram que eles
estavam juntos.
Tasha: Caralho, negão
Smoke: Tô te dizendo…
Para nós a situação era nítida, eles moravam em territórios de facções rivais. O
Pirambu passou a se encarar como um complexo de favelas, o “Grande Pirambu”, por “fechar
de ponta a ponta com o CV”. Ou, pelo menos a sua maior parte. Então retorna a discussão que
já pontuei aqui neste capítulo, que na favela da Colônia, favela que fica “dentro” do complexo
do Grande Pirambu, o comando pertence à facção cearense, GDE. Por este motivo, existe um
conflito entre narrativas sobre a Colônia, por ser GDE, fazer parte ou não do Pirambu, que em
sua maioria é CV. Uns dizem que fez parte um dia, hoje não é mais, outros dizem que “ainda”
é Pirambu. Este “ainda” denota distância e não temporalidade.
A questão relacionada ao TH, para além de seu namoro arriscado, quando Smoke o
chama de ‘paloso’, é pela ousadia de portar as marcas que, apesar de sempre terem sido
usadas pelos “vetins” na favela, hoje passou por um processo de ressignificação ou até
apropriação disso, como símbolo de determinada facção, no caso o CV. Tais como os dois
riscos na sobrancelha, o cabelo pintado de vermelho, fazer sinal de ‘2’ com os dedos ao posar
para fotos, entre outros. Símbolos como estes são usados pelos grupos para indicar e até
reforçar uma ideia de pertencimento. Entretanto, também pode ser usado como meio de
comunicação para identificar quem pertence ou não à uma facção rival. Já existem
formulações sobre isso, trago uma que considero interessante para se pensar:
Logo em seguida, Carolina Grillo (2013) faz uma interessante analogia sobre a ideia
de pertencimento e identidade que esses grupos são capazes de produzir quando afirma que
“dizer que se é ‘CV’ ou ‘ADA’ pode ter a mesma conotação que “ser” Flamengo ou Vasco”
(ibid. p. 57). Contudo, em contexto de guerra, por mais inocente que seja o ato de carregar tais
símbolos de pertencimento e identidade, as pessoas acabam se tornando alvo facilmente.
Também compartilha desta analogia das torcidas de futebol, o recente artigo sobre a
“polissemia do envolvimento” de Dennis Novaes (2021), onde o autor parte da trajetória
biográfica e da produção cultural de MCs famosos no subgênero do funk proibidão para
demarcar as fronteiras simbólicas e afetivas entre estas juventudes, que colocam em suspeita
as dicotomias entre autorizado/proibido, cunhados pelo discurso hegemônico. Segundo ele,
“essa analogia [entre facções e torcidas de futebol] tenta dar conta de uma malha complexa de
sentidos que conectam simbolicamente os grupos armados responsáveis pelo varejo de drogas
ilícitas, coletividades juvenis e seu principal espaço de interação: os lugares onde moram.” (p.
332-333).
Utilizar estes termos nos contextos errados pode acarretar represálias dos bandidos,
pois são expressões que denotam o local de origem daquele que fala e,
simbolicamente, indicam proximidade com uma facção rival. Elas não têm nenhuma
associação direta com o crime em seus usos cotidianos, pelo contrário, estão
incorporadas no léxico da maioria dos jovens favelados. Apesar disso, fazem parte
do espectro de sentidos que os varejistas de drogas ilícitas ajudam a moldar,
limitando fronteiras e pertencimentos por meio de relações de força. (p. 336)
Eu: To ligada, mas ela sai nos canto de boa? Ela aparece?
Tasha: Man, não sei se ‘de boa’, mas sei que ela tá nos cantos, ela vai pro baile.
O caso corrobora com os argumentos dos autores citados, onde colocamos sob
suspeita a aparente dicotomia entre quem tá dentro e quem tá fora do “crime”, entre o “legal”
e o “ilegal”, visto que tal relação é muito mais complexa no cotidiano. Esta dicotomia serve
de base para incriminação de sujeitos a partir da categoria de envolvimento, ela é um
mecanismo acionado a partir de raça e território, não mais sobre ligação com facção. Tais
como as categorias de “envolvimento” se assemelham a outras como a de “bandido” e
“proibidão”, todas analisadas por Novaes (2021) que, segundo ele, estes “são termos forjados
a partir de uma lógica estatal de ordenamento que se atualiza no uso corriqueiro da
linguagem” (p.311).
A forma como a norma e o léxico das facções foram incorporadas ao cotidiano, torna
ainda mais frágil essa distinção entre o legal e o ilegal, suspende a possibilidade desta relação
ser vista como dual. Diversas vezes conflitos ligados ao tráfico de substâncias ilícitas
acionaram uma rede de pessoas “não envolvidas” em agenciamentos ilegais; um exemplo
nítido é de familiares que se juntam para pagar dívida de pessoas juradas para morrer.
Nesta pesquisa, surge outra relação de alteridade, não construída em princípio por
interlocução com o Estado. O princípio básico de distinção entre o “eu” e o “outro” apareceu
a partir da rivalidade entre os grupos (lê-se territórios), CV ou GDE. Internamente, o princípio
é de pertencimento e identificação, mesmo que não haja ação direta no mercado de drogas
ilícitas, e este pertencimento faz frente e dialoga com a figura do “pilantra”, ou seja, sujeitos
que agenciam práticas ilegais (ou simplesmente moram) no território rival.
Outro exemplo é quando acontece de pessoas que possuem cargos nos grupos
faccionados se oferecerem para “fortalecer” o reggae comprando algum equipamento que lhes
falta ou instituindo normas “olha, só não pode é ter pilantra por aqui”. O contrário também é
possível, por exemplo, presenciei o momento quando um jovem levou algumas gramas de
maconha embrulhadas em plástico para oferecer durante o reggae e este foi constrangido por
um DJ residente do Barramar que indagou: “diabo é isso daí, ma? Dentro do reggae? Sai fora
com isso aí”.
Este argumento não quer dizer, no entanto, que todas as pessoas na favela adotem
posturas incrimináveis atreladas às facções em seu cotidiano. Pelo contrário, a intenção aqui é
salientar justamente a parcela de jovens que não agencia diretamente os mercados ilícitos e
90
mesmo assim é acometida por toda sorte de extermínio. É o caso de artistas, surfistas e jovens
em geral, como a moça que foi “pedida” pelos “pilantra”, que foram ameaçados ou chegaram
a ser assassinados pelo simples fato de pertencer a determinado território.
***
Neste momento da pesquisa, minhas atenções passaram a se voltar para a questão dos
relacionamentos afetivo-sexuais entre moradores de territórios rivais e onde poderiam estar
estes pontos de convergência que unem estes jovens. Desde a pesquisa durante a graduação, já
surgiam relatos de pessoas que se conheceram em espaços de lazer, “ficaram” e isto culminou
em mortes. Numa dessas entrevistas, me deparei com o depoimento de um adolescente,
morador do Grande Bom Jardim, que nos relatou a existência de algumas redes que se
estabelecem anteriormente aos assassinatos (sobretudo de meninas) pelas facções, são elas, o
ato de frequentar reggaes e bailes em territórios de facções rivais, sendo muitas vezes a única
opção de lazer que abarca jovens de diferentes bairros.
Diante disso, esta etnografia buscou compreender como se dão essas relações que ora
se aglutinam, por meio dos espaços de lazer na periferia, ora se despedaçam devido a disputas
que podem acabar em extermínio. A partir disso, vemos que as redes que se estabelecem de
acordo a dinâmica dos afetos (ou desafetos, em alguns casos) e vínculos interpessoais
colocam sob suspeita o “proceder” das facções, como instância normativa (Feltran, 2010),
visto que algumas relações desafiam a norma mesmo sob pena da letalidade. A relação desses
jovens, aqui sujeitos de pesquisa, com tais normas é constantemente tensionada ao longo da
etnografia.
transversalmente uma série de redes de sociabilidade dispostas em camadas cada vez mais
densas à medida que se interioriza” (2006, p. 40) nos territórios. Por isto, o reggae foi um
fator tão importante para passear entre as ditas “camadas” das relações sociais nas favelas.
Essa densidade que menciona Dos Anjos, por vezes, é fetichizada dentro da
academia por aqueles que não estão acostumados a trabalhar com os ditos “temas perigosos”,
ou até mesmo pelos que estão. Segundo ele, “a precariedade, a violência e o perigo tendem a
se transformar em signos da alteridade, produtos consumíveis por uma classe média que
normalmente se encarcera sob as grades de apartamentos vigiados exatamente contra esse tipo
de exterioridade” (Ibid., p 28).
Antes de dar seguimento, quero abrir um parêntese para nos situarmos na produção
acadêmica sobre esta discussão. Considero necessário ruminar uma vasta literatura sobre os
temas que são transversais nesta dissertação. Irei apenas pincelar entre as principais obras e
contribuições, mas na medida que o trabalho for ganhando textura irei me aprofundar na
discussão utilizando estes autores quando e se for necessário.
Os estudos sobre sociologia da violência no Brasil tiveram como berço o meio rural.
Foram os conflitos no campo que incitaram pesquisadores como César Barreira e José Vicente
Tavares dos Santos, dois dos principais autores do tema na América Latina. Em “Crimes por
Encomenda” (1998), obra sobre crimes de pistolagem no sertão do Ceará, Barreira já trata, de
maneira precursora, sobre as adversidades em ter de trabalhar com “temas perigosos”, questão
que até hoje não é deixada de lado por pesquisadores, como podemos ver em artigo
relativamente recente de Biondi, “Pesquisar (n)o crime: A transformação das dificuldades
pragmáticas em prazer analítico” (2017).
92
Mesmo que a presença desses grupos já venha sendo notada nos presídios e nas
práticas de outros crimes desde os anos 1990 no Ceará, como assaltos a bancos ligados a
integrantes do PCC (Aquino, 2009), o que culminou na faccionalização do “crime” em todo o
estado foi a chegada dos mesmos às ruas. No estado, os trabalhos mais influentes sobre essa
questão começam pelo de Sá, Accioly e Reis (2016), apresentado na 30ª Reunião Brasileira de
Antropologia, podemos dizer que foi o primeiro trabalho sobre o fenômeno da “pacificação”
em Fortaleza. Barros et al (2018) também versou sobre a “pacificação” e seus efeitos sobre os
índices de homicídio no estado. Paiva (2019) através de uma apanhado das pesquisas sobre
crime e as periferias de Fortaleza desde meados dos anos 1990, conceitualiza as
“transformações sociais do crime”, defendendo que a faccionalização provocou uma mudança
nas “maneiras de fazer o crime” na cidade.
Algumas dissertações e teses sobre diferentes mercados ilícitos em Fortaleza, mas que
foram impactados pela “queda da pacificação” são grandes contribuições para esta pesquisa,
entre elas recomendo: “‘Eu nunca tinha escutado falar sobre favela no Benfica’: conflitos
93
Até aqui, ressaltei que venho de uma tradição socioantropológica forte no LEV, que
trata as temáticas de violência urbana e segurança pública pela via da sociabilidade. Diferente
dos estudos mais conhecidos acerca das dinâmicas das facções, que tratam sobre os impactos
desses grupos como problema social e/ou político, ou como instituições normativas dotadas
de regras e moralidades próprias, o meu trabalho segue outro caminho para pensar as redes,
relações e práticas nesse contexto, bem como os corpos (que atuam sob emoções e
moralidades específicas) que as produzem. Assim como a contribuição do Núcleo de Pesquisa
em Antropologia do Corpo e da Saúde, que me inseriu no debate acerca do sofrimento social,
política das emoções e embodiment para pensar corpo feminizado em contextos de guerra. Por
fim, ao delinear o universo da pesquisa, busco alguns caminhos alternativos para não cair
numa tendência ahistórica e despolitizada desses conflitos - veremos um pouco disso já neste
capítulo.
94
Neste capítulo, meu intuito é levar a/o/u leitor/a/u à uma imersão nos reggaes de
praça da Costa Oeste. Aqui, mostro alguns dos percursos realizados em contexto dos eventos
de reggae que acompanhei e que foram etnografados para fins desta dissertação. A linguagem
utilizada para narrar os espaços e os percursos é propositalmente informal e carregada de
categorias êmicas, cujos os significados vem sendo construídos ao longo desta dissertação. As
histórias aqui narradas são tão pessoais quanto coletivas, evidenciam também o meu grau de
imersão em campo e trazem alguns símbolos compartilhados por mim e pelos sujeitos de
pesquisa.
Aqui aparecem algumas das fotos produzidas por mim em face da pesquisa. Como já
mencionei, o lugar de fotógrafa não foi uma escolha, ele me foi empregado e abracei esta
tarefa com certa empolgação. Através das fotografias que trago neste capítulo, é possível
notar um olhar particular (o meu) sobre o reggae. Talvez pudesse ser mais rico, para fins de
análise, trabalhar sobre as fotografias que me foram demandadas - pois sim, a fotógrafa do
reggae é solicitada de forma recorrente ao longo do evento para fazer registros pessoais. Estes
registros mostram rostos, pessoas, poses, laços, figurinos, dentre outras categorias, que têm
muito a dizer sobre o reggae e seus frequentadores. No entanto, seria deveras delicado
expô-los a tal ponto e inviável, em termos de regulamento, buscar autorização individual de
cada personagem ali retratado. Portanto, dei prioridade aos registros que evidenciam os
espaços e algumas emoções características do reggae - como a dança e alguns dos ritos que a
envolvem, como o abraço do “a2”.
Depois de comer, fomos para perto da mesa de som e passamos a noite alternando
entre tirar fotos e dançar um “a2” quando a “pedra” - a música reggae - nos instigava. Quando
o baile começou a “gerar”, era possível notar a divisão espacial na quadra. Na lateral
esquerda, onde fica a trave, é colocada a mesa de som, ali os DJs ficam por trás tocando
durante todo o evento. Atrás dela, sempre pendura-se um pano de fundo com as cores do
reggae (vermelho, verde, amarelo e preto, cores da bandeira da Etiópia) como é possível
encontrar na figura 11.
placas lúdicas próprias do evento, que chamamos de “plaquinhas” (figura 11, 12 e 13). Estas
“plaquinhas” são pedaços de madeira ou papelão pintadas a mão, confeccionadas em oficinas
promovidas por integrantes do coletivo, para ornamentar o espaço com frases escritas que
remetem aos sentidos do reggae, como convites para dançar, gírias locais sobre paquera,
mensagens de conscientização, fortalecimento de outros projetos de reggae (figura 13), entre
outros.
Nas laterais dentro da quadra, aqueles que chegam de bicicleta vão encostando-as no
alambrado e se colocam em pé de frente para a pista de dança, o centro da quadra, onde
eventualmente irão tirar alguém para dançar. Existem também aqueles que dificilmente
dançam, ou realmente não sabem dançar e apenas observam os outros dançarem, mas
independente disto gostam de frequentar o reggae, estes geralmente ficam sentados na
arquibancada fora da quadra. A dança “a2” do reggae roots é algo que atrai olhares do
público, é preciso ter segurança no próprio gingado para ir ao centro da quadra e dançar a
vista de todos. Aqueles que estão iniciando na arte da dança “a2” e ainda sentem-se
envergonhados de dançar ao centro da pista tiram uma pessoa próxima para dançar do lado de
fora da quadra, afastados da pista de dança (figura 12). Voltarei a me debruçar sobre as danças
do reggae de maneira mais profunda em tópico posterior.
Em dado momento, havia uma criança de 3 anos parada em pé, chupando bico, entre
a mesa de som e o alambrado da quadra, lugar reservado para os DJs tocarem. Esta criança
olhou diretamente pra mim que estava com a câmera na mão e não resisti em tirar a foto,
quando mostrei a sua mãe que estava próxima, ela ficou encantada com o registro e me disse
que o nome dela era Maria Ruana. O reggae tem forte presença de crianças, seja aquelas que
brincam na praça ou na quadra esportiva ao redor do evento, ou até mesmo frequentadores
que possuem filhos pequenos e os levam para o evento. A interação das crianças com o
espaço é diversa, elas brincam, se divertem e fazem a diversão das pessoas, até mesmo
dançam no colo de adultos, como veremos em imagem mais adiante (figura 22).
Tasha sempre pedia permissão para tirar fotos das pessoas que estavam paradas,
enquanto não dançavam na pista. Certo momento quando eu estava batendo foto do Mano
Brown durante a apresentação da sua sequência como DJ, tocando à mesa, passou um homem
na bicicleta com uma criança no quadro em meio ao baile, ainda feliz com o resultado da foto
anterior, fiz o registro novamente, porém, quando este homem percebeu que havia sido
fotografado ficou “cabreiro” e irritado44, perguntou “diabo é isso aí?!”. Confesso que, no
momento, fiquei gelada de medo, mas “me fiz de doida” e aparentei reagir de maneira natural,
automaticamente decidi mostrar-lhe como havia ficado o resultado da foto deles, expressei até
uma empolgação, a fim de expressar algo como “olha como ficou legal!”. Para minha sorte,
ao ver, o homem “cabreiro” adorou a foto, de tal forma que seu humor mudou
instantaneamente. Perguntou se dava pra imprimir e ficou falando com Brown: “ela se garante
batendo foto, né?”. Infelizmente, a imagem não vai estar presente neste trabalho pois, afinal
de contas, quem acabou ficando “cabreira” fui eu.
Quando por volta de 21h30, uma viatura da Polícia Militar do Estado do Ceará45
chegou na praça, desceram três policiais e foram até a mesa de som falar com Mano Brown. O
procedimento de vistoria da PM acontecia sempre do mesmo jeito. Eles entram na praça. O
DJ baixa o som. O silêncio paira. As duplas que dançavam “a2” se soltam. Os olhares ao
redor se voltam para a PM. Brown segura a pasta onde ficam guardadas os papéis do alvará e
espera cada uma das perguntas.
Os policiais disseram que vizinhos ligaram reclamando do som e que haviam pessoas
usando drogas ao redor. Brown responde que possui autorização da prefeitura para o reggae
acontecer até as 22h e o policial pediu para ver os papéis do alvará, perguntou de onde era o
documento e Brown responde que era da Regional46, o policial então assentiu e permitiu que o
reggae prosseguisse até o horário permitido, com a condição de que ele avisasse ao público
para parar de fumar no local. Ao verem a polícia indo embora e a música voltando a tocar,
todos que estavam presentes na praça, além do público, aplaudiu e comemorou a saída da PM.
Até a Nay, do pastel, gritou “é isso aí, Brown” e abraçou uma criança que estava ao seu lado.
O reggae continuou, mas quando ainda faltavam dez minutos para as 22h a polícia
voltou a circular. Nesse horário, Nego Gallo e os outros rapazes que o acompanhavam no
44
Como mencionado anteriormente, este é um exemplo de situações em que “pegaram maldade” em mim.
45
Vai voltar a aparecer no texto apenas como PM, no caso de esquadrões da polícia especializados, como o
RAIO, tornarei a especificar em nota.
46
Fortaleza é dividida administrativamente por regionais; a Regional I corresponde a Barra do Ceará e o Grande
Pirambu.
100
percurso de bicicleta, já haviam ido embora há um tempo para não ter que passar pela avenida
Francisco Sá muito tarde. Para quem trabalha como artista em eventos musicais, DJs e
músicos no geral, sabe-se que não é de bom tom se retirar do espaço sem prestigiar a
apresentação dos colegas, entretanto, no reggae de praça a atitude de ir embora antes do
evento acabar não é visto como um problema, dado que o pessoal da produção levam em
consideração o “destaque” [deslocamento] do DJ e sabem que ir embora tarde é “embaçado”,
principalmente porque o trajeto geralmente é feito de ônibus ou bicicleta. Como foi o caso de
Gallo, que apresentou sua sequência representando o PiraRoots em mais uma edição do
Barramar Sound System.
A maioria dos frequentadores tenta chegar no momento em que o baile já está cheio,
ou seja, “gerando” e vai embora antes de esvaziar, para não passar pelo que passamos: estar
na parada de ônibus vazia, um tanto quanto tarde da noite, pouca movimentação na avenida e
uma viatura da Guarda Municipal rodando por perto. Este é um tipo de exposição que os
frequentadores do baile se esforçam para evitar, por isso as idas e vindas são sempre em
grupo.
47
Como é conhecido o BPRaio, Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas da Polícia
Militar. As ações desse batalhão são feitas geralmente em motocicletas, para facilitar a entrada dos agentes em
lugares de acesso mais restrito para uma viatura, como becos e vielas, este batalhão tem fama de ser mais
ostensivo que os demais. Ver Moreira (2013).
48
O tópico leva o nome da edição do evento, ambos fazem referência à música “Welcome to Jamrock” de
Damian Marley que pode ser encontrada na playlist disponível via QRcode no início da dissertação.
101
dança, tinham como público adolescentes e jovens, uns que já dançavam e outros que queriam
aprender.
O manejo com a câmera foi me revolvendo a um passado em que fiz dois semestres
do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, tendo acesso a duas
disciplinas de fotografia, geral e fotojornalismo. O meu olhar “fotoetnográfico” sofre
influência direta dessa formação no que diz respeito ao uso das técnicas, como
enquadramento e a tentativa de usar a luz natural do ambiente. Assim, apesar de muitos avisos
de Tasha para usar o flash da câmera, pois assim era possível melhorar a qualidade da
imagem, as minhas fotos são mais escuras proporcionando uma visão mais próxima da
realidade, visto que o ambiente é também escuro. O enquadramento também é mais amplo,
focando nos espaços, fazendo os elementos e pessoas ali presentes comporem várias camadas
diferentes na imagem.
Voltei a utilizar minhas técnicas na câmera fotográfica, mas sem nenhuma habilidade
em fotografar eventos, festas e pessoas em movimento. Contudo, nada que o exercício, a
prática, não ajude. Desde então passei a ser convidada pelo Brown, DJ residente do Barramar,
para fotografar o reggae, me abrindo portas. Assim, logo o desafio apareceu. Com o advento
das redes sociais, uma prática comum adotada por produtores culturais atualmente, é a
confecção de flyers50 para divulgação do evento na internet. Então, o flyer do baile “Welcome
To Barramar” contou com uma foto minha e divulgação do meu perfil nas redes sociais ao
lado de Tasha, suas informações e a frase ao centro: “as gatas que quebram no click”. Como
Tasha e seu perfil do instagram também aparecem no flyer, não vou replicá-lo aqui, mas trago
49
Expressão usada para denotar pessoas que estão frequentemente no mesmo lugar, ou no mesmo tipo de espaço,
no litoral é comum haver os “ratos de praia”, pessoas, geralmente surfistas, que estão na praia todo dia e isso é
notável de imediato pelo bronze. No caso do rato de reggae, é ter seu rosto conhecido nos espaços mas não
necessariamente, as pessoas te conhecerem intimamente, apenas perderem o medo por saber que você é familiar.
50
Cartazes digitais, trago essa informação para salientar que além de todo o empreendimento envolvido para
fazer um evento acontecer, os produtores culturais de favela ainda se aventuram em design gráfico.
102
uma foto minha em formato original (feita por Tasha) que foi usada para compor a
divulgação.
É certo que minha preocupação em ter rosto e perfil das redes sociais divulgados,
tinha base em decorrência de alguns fatores: 1) o campo ainda estava se estruturando, as
primeiras relações sendo estabelecidas; 2) naquele momento, eu pretendia frequentar os
reggaes de praça de “ota zárias”, como o projeto “Favela Vive” que acontecia na quadra do
Vila do Mar, em território da GDE; 3) é sabido que as redes sociais são um meio de circulação
de fofoca que levam pessoas, em especial mulheres, serem juradas de morte pelas facções.
Então, me dei conta que entrei em campo pela porta da frente, mas como fotógrafa. As
implicações disso irão aparecer ao longo deste capítulo, mas a principal delas é o fato de ter
recuado na ideia de etnografar o “Favela Vive”.
Talvez por conta da possibilidade de chuva, esta foi uma das edições do Barramar
com menor público. Havia pouca gente no local, como dá para perceber na foto onde em
terceiro plano estão três rapazes em pé, em segundo plano seis rapazes, entre eles DJs e
pessoas da produção cultural, em primeiro plano a tenda com a mesa de som dentro todos os
ornamentos temáticos do baile. A festa seguiu normalmente até o final, próximo do horário de
encerramento, às 22h. No momento em que estava tocando a última música do baile, a PM
adentrou a quadra pelo lado direito de quem está à frente da tenda e iniciou o procedimento de
revista, conhecido como o “baca”.
Não sei se por sorte ou Exu, durante o procedimento de revista, os policiais deixaram
“escapar” somente os DJ’s51, meu parceiro de “a2” e eu. Estávamos dançando perto da caixa
de som, próxima à trave que está em segundo plano na foto. Como o baile já estava acabando,
todos estavam parados, se preparando para ir embora, apenas nós dois ainda estávamos
dançando. Todo o resto já foi levantando a mão na cabeça, enfileirados e encostando nas
grades que separam a quadra da arquibancada. Da fila de pessoas encostadas no alambrado
com as mãos atrás da cabeça e as pernas abertas, um a um era puxado para a frente e revistado
pela polícia.
O caso assolou a equipe de produção do evento por muito tempo, o medo, a raiva da
humilhação sofrida e o sentimento de impotência se misturavam, mas esse acontecimento foi
um ponto crucial para a realização da próxima edição, o “Baile Love: espalhe amor e
promova a paz”. O reggae acontecia a cada quinze dias e, de certo, dessa vez não seria
diferente. O ponto decisivo entre uma edição e outra foi a temática e a mobilização em torno
do baile. Na legenda da foto publicada para divulgação do evento contém o seguinte trecho:
“A seleção do tema é um apelo de cultivo ao amor, um sentimento nobre e necessário pra
todos como sociedade. E nosso propósito é transmitir por meio de músicas, plaquinhas
51
Nesse caso em específico, os organizadores eram as mesmas pessoas que estavam discotecando no momento, é
o que chamamos de DJ residente, os DJs convidados já tinham ido embora.
52
Em tese, de acordo com o regimento da corporação, uma mulher só poderia ser tocada por uma Policial
Feminina.
105
decoradas essa mensagem e a trabalhar para que tenhamos resultados”. O Baile Love foi uma
resposta à violência sofrida na última edição. Uma forma de reafirmar o espaço e mostrar que
aquilo não ia paralisá-los. Uma forma de dizer que o Barramar ia continuar. E continuou mais
forte. Das vezes em que estive presente como pesquisadora, o “Baile Love” foi a edição com
maior público.
No início da noite do dia 14 de fevereiro de 2020, Tasha ainda não sabia se iria para
o reggae do Barramar. Como eu não possuo câmera fotográfica, a que usávamos Tasha havia
pego emprestado com terceiros53. Por conta disso, precisei ir até a casa de Tracie, no Pirambu,
pegar a sua câmera emprestado. De fato, era um equipamento melhor do que o que usávamos
de costume. As fotos até então eram feitas com uma câmera semi profissional, Canon
Powershot Sx420 Is. Neste dia, utilizei uma Nikon com lente 50mm. Já no primeiro momento
fiquei empolgada com a diferença na qualidade dos registros. Como cheguei um pouco mais
tarde que de costume, por ainda ter ido buscar a câmera, o reggae já estava “gerando”. Logo
que cheguei na praça, entrei na tenda reservada aos DJs para deixar minha bolsa e lá de dentro
fiz o primeiro registro, um grupo “debochando no passinho”54 (figura 17).
53
Até o momento da escrita desta dissertação, não conheci a real dona do equipamento, mas sem isso esta
pesquisa poderia não ter acontecido da mesma forma.
54
falaremos melhor sobre ele mais na frente
106
O clima era de tensão, somado à empolgação com a proporção que tomou o evento.
A praça estava cheia. Quando cheguei, Brown estava nervoso, a polícia tinha aparecido e
avisou que se houvesse qualquer problema ou fossem acionados novamente, o equipamento
seria apreendido e Brown seria autuado. Apesar da apreensão, Brown tentava não desanimar e
reagir dizendo “mas não tamo nem veno não. Botar pra gerar essa porra”. Em seguida, um
registro da mesa de som, tirado por dentro da tenda, enquanto Brown apresentava sua
sequência (figura 18).
107
Além dos DJs residentes do Barramar e do PiraRoots, estava previsto para tocar na
edição do “Baile Love” duas DJs, a ZoidoGreen e a Avimaria, porém ambas não puderam
comparecer. No baile haveria arrecadação de 1kg de alimento para colaborar com o projeto do
Barramar de montar cestas básicas, além de sorteio de trança nagô para o casal mais “pé de
valsa”. Também havia a recomendação para ir de vermelho, na tentativa de agregar o público
à temática do baile - porém, só eu estava com uma peça de roupa vermelha, que consegui no
improviso, já que também havia esquecido da recomendação.
Neste momento, pretendo passear por alguns ritos que compõem a dança no reggae.
Como diz Caetano Veloso, “é um jeito de corpo”. Entendo a dança reggae como o momento
de proliferação da “energia” do baile, como disse Beatriz Nascimento no documentário Orí,
“a dança para o negro é um momento de libertação”55. No “a2”, duas pessoas se convidam
pelo olhar e pequenos gestos de hang loose, às vezes acompanhado de um sorriso singelo. Se
for aceito o convite, vão de encontro um ao outro, entrelaçam-se mãos e braços e, assim,
inicia-se o transe guiado pelas pulsões sonoras.
55
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XYHwAFwWFww> Acesso em 24 de março de 2021
108
É comum dançar de olhos fechados e pés descalços, desta forma os outros sentidos,
audição e tato, se apuram e isso facilita a sintonia entre o par. Se a conexão bater de primeira,
poderão dançar várias músicas em sequência. Por fim, o “a2” termina com um abraço, um
gesto espontâneo, pois a disposição dos corpos em dança já estavam abraçados a dançar e
depois de findar a música, o abraço ocorre em consonância com a energia do momento. Um
gesto em agradecimento ao momento compartilhado, que geralmente acontece no fim. No
entanto, já presenciei o contrário, ao invés do “a2” terminar em abraço, vi um abraço terminar
em “a2”. Foi o que aconteceu quando Tasha finalmente chegou no baile e abraçou Mano
Brown a fim de trazer um conforto para a situação tensa (figura 19).
“Ó óleo” [olha o óleo] é uma expressão antiga usada na favela por moradores, pais
de família e pessoas no geral, para avisar que a polícia está se aproximando. Não se sabe a
origem da expressão, apesar de ter encontrado uma notícia de jornal informando que
moradores de uma favela no Rio de Janeiro derramaram óleo na pista para fazer a viatura
deslizar e impedir que a polícia subisse o morro56. De toda forma, a expressão parece ser
muito anterior à notícia que tem data recente. Neste sentido, Pires (2018) caracteriza um
conjunto de práticas cotidianas agenciadas na favela como “uma capacidade atávica de
resiliência astuta [...] um “jogo de cintura” estético-social [...] ela funciona como “linha de
fuga” em relação às violências físicas e simbólicas do estatismo e das contingências locais”
(p. 90-91). O que ele vai chamar de “socialidade favelada”.
56
Disponível em:
<https://www.metropoles.com/brasil/rj-traficantes-derramam-oleo-na-pista-e-impedem-subida-do-caveirao-da-p
m> Acesso em 21 de setembro de 2020.
111
O baile seguiu em paz, com o volume da caixa de som sendo reduzido vez por outra,
quando gritavam pelo “óleo”. Esta edição entrou para a história do Coletivo Barramar,
enquanto que a expressão do óleo apareceu em outras ocasiões com datas muito próximas a
esta do baile. Saindo do extremo oeste de Fortaleza ao final, eu parto em direção à Praia da
Leste, pois na manhã seguinte tinha um compromisso de aniversário de Tracie.
3.3 “O óleo”
Nos reunimos na praia como de costume, marcado para às 8h da manhã, devo ter
chegado com horas de atraso devido o sábado ter a frota de ônibus reduzida na cidade em
direção àquele lado e, mesmo assim, fui a primeira a chegar. O ponto de encontro seria nas
"castanholas", parte da faixa de areia anterior às barracas onde há uma coluna de pedras para
ficar recostado e bastante sombra devido às árvores. Por volta do meio-dia, Tasha & Tracie
chegaram, juntamente com outros amigos do Grande Pirambu, mas também amigos das
ciências sociais que são de “ota zária”. Tracie havia comentado que um amigo do audiovisual
iria gravar um clipe de um artista local na praia, mas sem mencionar nomes. Ao chegarem,
descobri que conhecia tanto o artista, que já acompanhava seu trabalho desde projetos
112
Depois desta tarde na praia participando das gravações do clipe, fomos descendo em
direção à casa de Tasha. A oeste, o calçadão da Praia da Leste em curva se transforma na Vila
do Mar, dando entrada ao Pirambu. Na inflexão da curvatura que forma o calçadão, fica a
Areninha do Pirambu, onde dentre muitas outras coisas, também acontece o PiraRoots.
Seguimos pela Vila do Mar, parando na Praia dos Pocinhos, faixa pedregosa que quando está
em período de maré baixa formam-se piscinas na beira do mar, por isso muito frequentado
pelos moradores. Diferente da Praia da Leste que fica numa das avenidas mais extensas da
cidade, da Praia dos Pocinhos em diante, as praias são como uma parte interna do bairro,
frequentadas via de regra apenas por moradores ou na companhia deles, comumente
chamadas como “quintal de casa”. Esta faixa (que acaba no Marco Zero da Barra do Ceará) é
a que compreende a Vila do Mar, com todas as suas subdivisões: a Praia dos Pocinhos, a Praia
dos Abel, a Praia do Pirambu (foto 12), por aí vai.
Seguindo adiante, agora o intuito era encontrar Bill para “f1”58. Apesar de trabalhar
no varejo de substâncias ilícitas, “batizado” no CV, nunca fizemos um “corre”59 com Bill. No
dia a dia, ele se portava como usuário, a gente fazia o “corre” ou as “intera” e quando
acontecia de fumarmos da erva que ele tinha é porque ele “botou o dele”, ou seja
“representou”, o que significa que ele não vendeu e sim partilhou entre nós, postura comum e
benquista entre usuários especificamente de maconha.
Ele não estava em casa, não estava no beco vizinho a sua casa, onde costumam ficar
os meninos do “movimento” e os olheiros na esquina. Seguimos subindo ladeira, entre becos
e vielas, dobra-se as esquinas, pergunta para algum conhecido na calçada: alguém diz que ele
pode estar na casa de Ice Blue, no beco do Batman. Chegando lá, realmente estavam os dois
lá reunidos, fizemos as “interas”, Bill fez o “corre” e passamos a noite conversando e ouvindo
sons, tocou reggae, rap, trap e forró de favela. Na volta, fizemos o mesmo percurso. Se
aproximava da meia noite, saímos do beco do Batman, nos despedimos de Tracie que iria
57
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jZMX5NFWo9E>. Acesso em 05 de dezembro de 2021.
58
Forma abreviada da expressão “fumar um”, este e outros termos locais sobre o consumo de drogas lícitas e
ilícitas foram explicados por Morais (2018, p. 82)
59
No sentido de comprar as substâncias dele.
113
seguir para oeste em direção sua casa, enquanto fomos a leste retornando de onde partimos.
Passamos novamente pelo beco vizinho a casa de Bill, no momento havia apenas um homem
sentado na esquina. Ao chegar na casa de Tasha, peço um carro por aplicativo para ir embora.
Em geral, naquele horário os carros de aplicativo não descem mais até a rua debaixo, muitas
vezes sendo necessário colocar a localização para o hospital que há na rua paralela acima,
para que o motorista pudesse aceitar. Desta vez não foi preciso O que fez fazendo com que
pensássemos de imediato que o motorista era “dazária”. No caminho até em casa, o motorista
conversava e em determinado momento se referiu a rua onde me buscou como sendo o lugar
que eu morava, queria ele que eu reforçasse que ali era calmo, o confirmei, mas disse que ele
ainda estava me levando até em casa, que eu não morava ali.
Nesta mesma noite, soube que a polícia “foi bater lá”, no beco por onde passei duas
vezes. Estavam presentes no momento três rapazes, que ao ouvirem gritos de “ó óleo” vindos
de um morador da casa de cima na esquina, correram alternados por entre as paredes do beco.
No dia seguinte, voltaram ao local e se depararam com cartuchos de bala 9mm. Bill conta que
uma ponto 9 não é arma de policial, portanto, eles estariam usando outro tipo de arma para
deixar evidências de que foi briga entre facção e que, no entanto, a escolha da 9mm foi de
caso pensado, foi é um calibre mais perfurante e num beco, caso os meninos tivessem corrido
enfileirados a bala seria capaz de transpassar mais de um.
3.4 O “corre”
O “corre” é uma categoria êmica bastante complexa, seu sentido pode mudar de
acordo com o gênero a quem se refere, até o nível a que se está inserido em práticas ilegais.
Por exemplo, de maneira geral, o “corre” quer dizer trabalho, correria. Mas também denota
que este trabalho é intermitente, tendo que estar sempre correndo para conseguir os objetivos
almejados. Essa é uma categoria central na pesquisa pois a juventude em questão se encontra
sempre em situação de fazer seus “corres”, “se adiantar”60. Retrata a persistência desses
jovens em viver, ter seu trabalho reconhecido, poder “curtir”, criar e adentrar em espaços de
lazer. A vida do jovem favelado é um “corre” constante.
“Fazer um corre” também pode ser comprar droga, realizar um assalto, mas o fato de
que o “corre” também remete a busca ou batalha por melhoria de vida, circunstâncias mais
60
Enquanto o corre é a busca, o adianto, em contraposição, corresponde à uma colher de chá, uma facilitação do
processo.
114
favoráveis, retrata como a linguagem do crime e do cotidiano está entrelaçada uma à outra. E,
em última instância, o “corre”, quer dizer "vou me virar" para fazer a vida acontecer. Sem
isso, não “gera”, seja por práticas lícitas ou ilícitas, a correria é algo recorrente no cotidiano
de um “vetin” ou “vetinha”. Quando se pergunta como vai alguém, pode-se ter como resposta
“tamo aí, nos “corre”.
Em contextos de enunciação das práticas ilegais, vemos uma divisão por gênero do
que pode vir a ser um “corre”. O “corre” das meninas, por exemplo, diferente do “corre”
geralmente enunciado por homens, se trata de comércio sexual. Afirmar que uma mulher “foi
lá e fez um corre”, quer dizer que ela se prostituiu, quanto aos homens, a mesma categoria
pode significar assalto.
Eu tive mais acesso aos sentimentos e lamúrias masculinos sobre as meninas que
faziam um “corre” do que com as próprias que o faziam. Um outro homem, também
envolvido, contou como foi que a sua primeira namorada, que viria a ser mãe dos seus filhos,
supostamente perdeu a virgindade. Ele conta que sua irmã mais velha a levou para uma casa
de praia e lá um “coroa”, homem mais velho, pediu para ter relações sexuais com ela e se
ofereceu para pagar. Segundo ele, a sua irmã já tinha a levado no intuito de inserí-la nesse
meio, já que todos sabiam que ela agencia meninas para homens dispostos a pagar pelo sexo.
No âmago de sua mágoa, ele conta que “o certo” seria sua namorada não ter aceitado ir para a
casa de praia, pois na sua concepção, apesar de ela ter na época apenas 13 anos, a jovem já
sabia (ou deveria saber) que isso poderia acontecer. Ele também relata que ela nega ter
61
Bairro nobre, um dos principais cartão-postal de Fortaleza visitado por turistas.
115
aceitado fazer “o “corre”, ou seja, ela nega ter vendido a virgindade na casa de praia, mas sua
palavra parece não ter sido levada em conta na narrativa do homem. Sintoma disso é que essa
história se passou no início da adolescência de ambos e ainda é recuperada hoje em dia com
muito rancor, visto que pelo menos ele passa dos 30 anos de idade. De fato, essa situação
parece ter ferido o ego do rapaz profundamente, ele conta ainda com a mesma dor, mas usa o
fato dela não ter perdido a virgindade com ele para justificar traições e violências da sua parte.
***
3.5 A missão
116
Quando falei que Tasha. tinha pedido para a gente fazer o “corre”, Tracie62 falou
“putz, acho que meu primo acabou de passar, ele deve ter ido fumar um kunk. Não se iluda,
ele só é bonito, mas o bicho é ruim, já tem homicídio nas costas, é frieza.” Ela se arrumou e
fomos fazer a “missão” do “beck”.
Descendo em direção a praia do Pirambu, como era conhecida aquela faixa da Vila
do Mar (foto 24), Tracie falou que naquele mesmo dia, pela manhã, houve uma batida policial
na sua rua e por isso os traficantes estavam se escondendo. Do lado de sua casa também há
uma boca, mas ela não gosta de comprar maconha lá pois é muito perto de sua casa, portanto,
da família. Chegamos na praia, no calçadão havia uma areninha63 e aparentemente lá era o
lugar onde uma travesti “passava droga”, mas ela não estava por naquele momento, muito
provavelmente em decorrência da batida policial de mais cedo.
Na ocasião, estávamos de frente para o mar, onde fiz o registro apresentado adiante
abaixo e Tracie me apontou: à esquerda na faixa de areia seria uma praia de “zona neutra”,
pois “não tinha dono” e, por isso mesmo, ninguém tomava banho lá. Foi com esse intuito que
resolvi fazer a foto, capturar uma faixa da orla que “tem dono”. Nela aparece a beleza da
praia, as jangadas dos trabalhadores do mar, a vegetação nativa, o espigão e a escada para o
calçadão da Vila do Mar mostrando a presença das obras da prefeitura interferindo na
paisagem e um singelo pixo “c.v”, tal como uma assinatura do dono.
62
Tracie se identifica como um homem gay cisgênero afeminado, uso do pronome feminino para se referir a ela
no texto por inconformidade da língua. A não conformidade da língua, neste caso, se aplica a uma pessoa que se
identifica com um gênero específico, mas pode e prefere ser referida por pronomes de outros gêneros que não o
seu. Esta discussão emergiu no texto, na medida em que eu precisei contar o sobre quando Tracie se propôs (caso
não conseguíssemos fazer o “corre” juntas) a ir sozinha, pois “afinal”, entendia que, naquele espaço, ela era lida
como homem.
63
Areninha é uma quadra poliesportiva.
117
64
Disponível em:
<https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/ha-87-anos-campo-de-concentracao-em-fortaleza-foi-atraca
o-para-visitantes-de-outros-estados-1.2125607> Acesso em 20 de julho de 2019.
118
queria perder nenhum momento do evento. Pretendia pegar o reggae desde o começo, ver as
pessoas da organização arrumando o evento, o público chegando de galera etc., mas ainda não
tínhamos feito o “corre”, nem nos alimentado, ou seja: a gente ainda ia comprar a balinha,
comprar a broca, fumar, comer e só depois ir para o reggae (eis o rito). Lembrando que não é
recomendado fumar no local por causa dos “embaço” com “uzomi”. Foi assim que eu entendi
porque reggae de praça só gera depois das oito.
Depois de muita insistência minha, saímos para fazer o “corre” do “kunk” (que foi
botado por mim, “representei”) com um cara recomendado pelo primo de Tasha, o Sabota65.
No entanto, Tasha não lembrava onde Sabotagem morava, só sabia que era mais para baixo,
na última rua da praia. Chegando por aquelas bandas cruzamos com o Preto Zezé, um homem
com bem mais idade que nós, preto retinto, e que sabia a localização de todas as bocas do
Pirambu, nós perguntamos a ele onde era a casa de Sabota e ele nos levou até lá. De fato, nós
tínhamos passado direto da casa, tivemos que voltar um pouco de onde estávamos. Nessa
volta, Pretozé foi acompanhando nosso bonde e pelo caminho foi cantando pontos de
umbanda que saudavam o povo da rua66. A “mise en scèene” deste momento ficou gravada na
memória: a rua estreita, chão de areia de praia, a vizinhança de parede com parede nas casas,
as portas de entrada direto para a rua, as pessoas e a brisa do mar passando, ao fundo o ponto
de Tranca Rua e Pomba Gira que Preto Zezé cantava como trilha sonora do momento.
Chegando em frente à casa de Sabota sentamos na calçada do outro lado da rua para
não dar “pála”, enquanto que Preto Zezé entrou num beco totalmente escuro, entre duas
paredes, que passava quase despercebido, pois além de estreito, havia um poste na entrada.
Pretozé entra, com um “pedaço” (tempo) volta, nos avisa que ele está lá e que podemos entrar.
Assim fomos, o beco era tão estreito uma largura que não passava uma moto e não tinha luz, o
beco dobrava uma vez para a direita e mais uma vez para a esquerda, só então se encontram as
portas de madeira, daquelas que se dividem ao meio e abrem para o lado de dentro que dava
para a sala de casa das pessoas que moravam ali. No final havia um portão de ferro que dava
para o mar, a última porta de madeira antes desse portão era a casa de Sabota…
65
Sabotagem, na verdade, carrega o “vulgo” de outro rapper, que é estadunidense, no entanto, assim como
Sabota (rapper brasileiro que entrou para a história do gênero musical) fora assassinado no auge de sua carreira.
Precisei fazer a substituição do nome por segurança, mas optei por um que não retirasse a simbologia dessa
homenagem.
66
Para adeptos de religiões de matriz africana, “povo da rua” é um dos termos pelo qual é conhecido também o
exu. Segundo José Carlos dos Anjos (2006), na cosmologia afro-brasileira, “o exu situa-se no começo de todo
processo de agenciamento da subjetividade” (p. 17).
119
Pegamos a balinha com ele e saímos, entretanto, Tasha ficou e reclamou por uma
balinha maior, pois aquela estava “miada”. Sabota atendeu a seu pedido e trocou por outra que
foi buscar fora do portão de ferro. Enquanto isso, nós ficamos esperando no beco mais atrás,
onde estava completamente escuro pois era antes de chegar nas portinhas de madeira das
casas. Nisso, um senhor de idade que morava ali entrou, passou por nós, viu que tínhamos
comprado maconha e deu um saudoso boa noite.
Fomos até a casa de MV Bill para fumar “esse” antes de ir para o PiraRoots pois,
desta vez, ele também ia para o reggae com a gente. Sua casa é um compartimento situado no
final de um corredor escuro dentro de uma casa maior porém inacabada, no corredor tinha
uma pia, uma escada de madeira e alguns entulhos que não dava para enxergar pela escuridão,
mesmo durante o dia, pois não havia entrada de luz. Assim como das outras vezes, entramos
enfileirados pelo corredor até a porta do quarto, porém lá de fora já se ouvia a voz de uma
mulher exaltada. Era a mãe de Bill, ela estava contando que sua irmã, Flora, tinha feito uma
grande dívida de “pó”67 no bairro Vila Velha e agora duas mulheres vieram cobrá-la, a irmã de
67
Cocaína.
120
Bill estava na casa ao lado (onde moram outros parentes da família), aos prantos de choro
com medo de morrer, pois não sabia como ia pagar e sua mãe aos gritos dizia que também não
ia pagar pois não ia “se matar de trabalhar pra tá sustentando vício dos outro”.
No meio dos sermões, a mãe de Bill se virou para mim ainda no corredor dizendo:
“ta aí, tô devendo quatro mil de advogado pra soltar esse daí [se referindo a Bill] da cadeia.
Pra quê? Ta aí vendendo droga de novo”. Depois disso, ela saiu do corredor e nós entramos no
quarto. Adentramos no quarto e nele há sempre um colchão de casal descoberto, em cima dele
uma gaveta retirada de alguma cômoda com vários utensílios pessoais, dinheiro e roupas
espalhadas. Algumas vezes, vi as drogas por ele empacotadas e comercializadas, outras vezes
não. No quarto, sem janela nem saída de ar além da porta, era necessário sempre um
ventilador ligado.
Lá dentro, Bill, como era de costume, não estava só. Sempre que visitei sua casa,
nunca fui sozinha, estava no mínimo acompanhada de Tasha e, ele também nunca estava só no
recinto, vivia sempre rodeado de pessoas, meninos do “movimento” (alguns menores de
idade), algumas de suas companheiras, amigas dele, de sua irmã (as meninas do “corre”) e de
sua então namorada. No geral, era casa cheia, mas nesse dia estavam só Bill e Kmila CDD,
sua namorada na época. A Kmila era uma mulher preta, deslumbrante, de cabelo liso e longo,
estatura mediana. O assunto era o “vacilo” da irmã de Bill. Flora, a única branca da família,
tem por volta de seus 30 anos de idade e três filhos. A conversa já se iniciava com os
questionamentos “o que que ela tava fazendo lá?” (visto que o Vila Velha, bairro onde ela fez
a dívida, faz fronteira com a Barra do Ceará do lado oposto da cidade), “por que ela foi
comprar deles?”, “com quem ela tava?” e comentários sobre ter sido sorte ela ainda ser
avisada antes da real cobrança de uma dívida: a morte.
Em dado momento, em tom de indignação, Tasha “mandou a real” e disse que Flora
faz esse tipo de coisa porque ela é branca e “sabe” que “tal hora” alguém dá um jeito de sanar
a dívida dela. Como realmente aconteceu, tempos depois outros familiares se juntaram e
emprestaram o dinheiro. Contudo, Bill falou repetidas vezes, em tom de aviso, que “lá não é o
Pirambu… mesmo sendo “a merma zária”, não é a nossas “zária”… Aqui todo mundo
conhece ela, conhece a gente e tal, lá não.”. Este é um dado importante, quando diz-se que
determinado território pertence ou é das “merma zária” [mesmas áreas] quer dizer que é
comandada pela mesma “facção”. Esta premissa faz parte da tentativa de unificação dos
territórios faccionados da cidade desde a pacificação. Quando se sabe que o local é “merma
121
zária, os vetin ficam mais de boa”, é onde se pode transitar sem medo. Entretanto, o caso da
dívida da Flora evidenciou os limites simbólicos desse ideal de pertencimento criado pelas
facções, o fato de andar por lugares que é “merma zária” lhes dá segurança, mas não lhes dá a
mesma liberdade que teria se fosse “nazária”, sua própria localidade.
Assim como quando Ice Blue chegou no quarto, pois também ia para o reggae, e
ficou me fazendo as perguntas de praxe quando se vai conhecer alguém pela primeira vez na
favela: do meu nome a “tu é da onde?”. Nestas circunstâncias ainda era estranho para mim
responder que morava no Benfica, em primeiro momento falei que era da Caucaia, até em
virtude do formato da pergunta que indaga de onde se é e não onde se está. Bill entrou na
conversa me perguntando que parte da Caucaia, falei que era o Tabapuá e ele disse: “to ligado,
ali perto da lagoa, né? tô interado”. Em se tratando de comando, era “merma zária”,
Tabapuá-Benfica-Pirambu, mas eu não me reconhecia como cria do Benfica, como sou do
bairro que nasci, Tabapuá.
Ainda rodou uns dois “becks”, os sanduíches e água antes de sairmos, um por um
pelo corredor até lá fora na calçada. Daí, Tracie se despediu da gente e foi para casa enquanto
nós nos encaminhamos para a Areninha, onde estava acontecendo o reggae. No caminho, Bill
foi “tirando onda” com Ice Blue porque ele estava recém separado e, aparentemente, se
cuidando melhor, querendo ficar bonito e andando mais arrumado, já que estava solteiro. Esta
informação de que Blue havia terminado com Karol, há pouco tempo veio à tona na edição
seguinte do PiraRoots, em que ele me chamou para dançar e eu aceitei. Neste intervalo de
uma música que dançamos, Karol chega no Pira e vai embora. Passei meses com receio dela
ter “pegado maldade” ao me ver dançando com seu ex.
Na Areninha, Gallo nos viu e já foi perguntando se a gente tinha levado a câmera
para ajudá-lo a fazer os registros, mas ela foi deixada carregando. Agregado a isso, tinha o
fato de termos andado muito antes de chegar no reggae e é “paia” ficar transportando assim
um equipamento que não é nosso. Como já chegamos tarde, o reggae estava “gerando”, a
quadra e arquibancadas lotadas, com Gallo muito empolgado registrando tudo. Nesta edição,
haviam duas convidadas especiais vindas do Rio de Janeiro, eram poetas e MCs integrantes
do Slam Laje (RJ) que, em parceria com o Coletivo Natora68, fazem essa conexão entre
diferentes periferias do país. As duas fizeram uma apresentação durante o reggae. Durante a
apresentação de uma delas, Tasha me chamou atenção para o fato dela ter feito sinal de dois
68
O Coletivo Natora é um coletivo formado por jovens da favela que tem como objetivo ocupar os espaços
"natoralmente" com arte, cultura e lazer.
122
com os dedos em referência a Penha e o Pirambu, ambos “tudo 2”, que para nós é “merma
zária”.
Certo dia fui convidada para um aniversário surpresa no Pirambu. A casa onde
aconteceu a festa fica no final do bairro, na fronteira com a Colônia, mais perto da Barra do
Ceará. Sai da minha casa na avenida da Universidade por volta das quatro da tarde, um pouco
antes do horário de pico se iniciar, peguei a topic 75469 que vai até as Goiabeiras, também na
Barra. Todas essas localidades são territórios vizinhos e rivais, mas a gente desceu antes do
transporte alternativo adentrar neles. Fui acompanhada por uma pessoa não binária, também
convidada para a festa, mas natural e residente de Maracanaú, cidade da região metropolitana
de Fortaleza, conhecida por ter predominância da GDE. A topic 754 faz um trajeto por “fora”
do Pirambu, passa pelo Centro, praça do Liceu do Ceará e entra na avenida Francisco Sá indo
até a avenida Pasteur, para só então adentrar no bairro sentido praia, dar uma volta e pegar a
Leste-Oeste exatamente onde nós precisávamos descer.
“agora é a lei do silêncio”. Ironizando o fato de estarem pedindo silêncio para não denunciar a
festa surpresa com a lei da facção que se impõe contra a fofoca na favela.
Em campo, pressupunha-se que eu já entendia esta máxima, das vezes que eu fiz
alguma pergunta pedindo explicações fui vista como inocente ou burra, mas, no geral, a
resposta vinha em gesto de “tu sabe, né?”. Isso não quer dizer que não se faz fofoca, sempre
me contavam/narravam novos causos, mas não se explicava o porquê. Não se explicam as
regras previamente estabelecidas, eu já deveria saber o porquê daquilo acontecer da forma
como aconteceu. Então ao invés de perguntar eu ia seguindo os passos, encaixando as
narrativas e obedecendo às normas, ouvindo as dicas: "porque tu sabe, né?”.
Grace Cho (2008) vai trabalhar com autoetnografia para reconstituição de memórias
e elaborações sobre trauma transgeracional. Seu ponto de entrada é a figura da yanggongju,
que um dia foi sua mãe, e o lugar do silêncio impregnado na convivência familiar dando
ênfase no trauma que queriam apagar. Desta forma, a autora versa sobre alternativas
metodológicas para se tratar de narrativas não oralizadas em campo.
Como, por exemplo, é transmitido através do tempo e do espaço por meio de outros
veículos que não seja o falante, como o entrevistado ou registro histórico? Faça
métodos alternativos de investigação sociológica experimental, como autoetnografia,
psicanálise, ficção e a performance nos aproxima de uma compreensão afetiva da
yanggongju que não pode ser transmitida por meio de narrativas tradicionais? (CHO,
2008)
sem água encanada e esgoto, a lama desce pela areia em direção ao mar. Na última rua da
praia é também onde está majoritariamente a população negra do bairro. Quanto maior a
estratificação da localidade, maior a concentração de moradores que se autodeclaram pretos e
pardos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No tópico “Eles descem pro beco pra resolver problemas de condomínio”, parti da
crítica às teorias do contágio para evidenciar como o campo da antropologia da violência
constrói seu “Outro” de maneira perigosa e, na tentativa de apagar conflitos raciais históricos,
sobretudo nas metrópoles, acaba por reforçar tais desigualdades. O título refere-se de maneira
propositalmente provocativa à algo comum na crítica pós moderna, sobre a implicação de
categorias ocidentais em contextos etnográficos distintos, onde as mesmas não têm sentido
particular, tendo como fim discutir problemas e questões que são caras ao pesquisador e não
ao grupo pesquisado.
Neste sentido, a “cabreiragem” revela que vetins e vetinhas convivem com tensões
de naturezas múltiplas, rompendo com uma ideia que paira sobre algumas pesquisas em
128
minha enquanto autora. Isto não quer dizer, é fato, que eu me distanciei na narrativa para
alcançar alguma tentativa de neutralidade ou objetividade, pois sabe-se que isto é algo dado a
falhar desde o princípio. Mas o relevo que o campo ganha no texto diz muito a respeito da
imagem que quero construir sobre ele para o/a/u leitor/a/u, a partir do trabalho etnográfico.
A tentativa de tradução etnográfica foi superada pelo recurso literário, mas sempre
se atentando para um leitor fora daquele universo (Clifford, 2016). A premissa de que se
escreve para um público genérico (adotando, assim, uma linguagem também genérica), não
apenas para os que o entendem, é um tanto quanto questionável se nos perguntarmos quem
faz parte do mundo de leitores/as/us da antropologia. Esta me parece ser mais uma tentativa
de estabelecer o lugar do antropólogo diferente e distante do contexto etnográfico. Este
referido mundo de leitores/as/us que consomem textos antropológicos, ainda em sua parcela
significativa, é branco, burguês, citadino e proveniente da metrópole do capitalismo - por
mais que estejamos vivendo micro revoluções diárias neste espaço desde a democratização
dos espaços universitários desde a implementação das ações afirmativas.
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