BLANCO, Sergio - Tebas Land
BLANCO, Sergio - Tebas Land
BLANCO, Sergio - Tebas Land
TEBAS LAND
Personagens
S está vestido com uma camiseta com a logomarca do Super-Homem, calça jeans e
tênis da marca Adidas. Embora sejam duas personagens diferentes, MARTÍN e
FEDERICO serão representados, durante a encenação, por um único ator, que está
vestido com uma jaqueta esportiva, calça de moletom e tênis da marca Nike, de cano
alto para proteger e segurar o tornozelo para caso de eventuais torções.
Dispositivo cênico
S. Podemos começar? Bom. Boa noite a todos. Espero que vocês estejam bem e
confortáveis. Sejam bem-vindos. Vou tentar explicar um pouco, e em poucas
palavras, o porquê de estarmos aqui. Já faz um tempo, o Teatro San Martín de
Buenos Aires me pediu um projeto para montagem. Naquele momento propus um
texto que se chamava, ou melhor, que se chama O Salto de Darwin. É um texto que
fala da guerra das Malvinas. Em um primeiro momento o projeto foi aprovado e
começamos a trabalhar com a equipe de produção do teatro, mas um dia me chegou
um e-mail dizendo que seria melhor trocar o texto. Perguntei se era pela temática que
a peça abordava, e a resposta foi que sim. Então decidimos deixar de lado O Salto de
Darwin, e foi nesse momento que comecei a idealizar esse projeto que se chama
Tebas Land. Quando expliquei que meu interesse era trabalhar com um prisioneiro
de verdade em cena, com um parricida de verdade, a primeira decisão, em conjunto
com o teatro San Martín, foi iniciar todos os trâmites a nível ministerial e jurídico,
para poder trabalhar na presença de um verdadeiro recluso em cena. Para mim essa
presença, real e verdadeira, não é um mero detalhe do projeto. É um detalhe
fundamental, já que desde o início meu interesse foi contar a história de um
parricídio de forma quase performática, sem que existisse necessariamente uma
representação. De fato, como vocês já devem ter imaginado, esse é o motivo pelo
qual o cenário consiste nessa espécie de gaiola, ou cercado. Foi uma das condições
que nos foi colocada a nível ministerial. O documento que nos foi outorgado pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública exige, cito: «um gradeado de no mínimo 3
metros de altura». Exigência que, como podem ver, foi respeitada ao pé da letra. Em
um primeiro momento, a ideia do alambrado nos perturbou um pouco. A ideia da
gaiola não agradava nem a mim nem ao San Martín, até o dia em que fomos à prisão
pra ter nosso primeiro encontro com Martín, nosso parricida. Esse é o nome dele,
Martín Santos. Por incrível que pareça nosso primeiro encontro foi em uma quadra
de basquete. Uma dessas quadras de basquete que, como geralmente acontece nos
presídios, está cercada de grades, assim como esta. Assim que vi a quadra percebi
que tínhamos solucionado o problema da segurança. Em seguida disse a mim
mesmo: Pronto, a cena vai estar rodeada por um dispositivo de grades que, desde o
ponto de vista cênico, vai dar segurança às autoridades, e ao mesmo tempo, do ponto
de vista dramático, vai me permitir recriar o espaço dos meus encontros com Martín.
Enfim, em todo caso a exigência foi respeitada. Por outro lado, confesso que achei
artisticamente interessante que as rubricas, as indicações cênicas deste projeto, em
parte, fossem ditadas por um comunicado do Ministério da Justiça e Segurança
Pública. Talvez poderíamos representar nosso primeiro encontro. A primeira vez que
a gente se viu. Pode ser? Ok.
**
S. Foi uma tarde de outono. Estava um pouco frio. Ventava. Muito vento. O diretor do
centro penitenciário me levou até a quadra onde estava Martín. Estava treinando.
(música Mozart número 21) Antes de entrar, perguntei ao diretor se podia ser a sós.
Queria conversar tranquilamente com ele. Ele disse que sim. Que não haveria
nenhum problema. Que eu podia entrar sozinho, mas que alguns dos guardas
obrigatoriamente nos vigiariam a certa distância da quadra. Disse que entendia
perfeitamente. Martín estava sozinho. Sabia que viriam vê-lo. Sabia que alguém
queria conversar com ele, com a intenção de escrever um texto e montar um
espetáculo. Obviamente a direção tinha pedido sua autorização, e ele disse que sim.
No começo eu preferia falar de fora e esperar que fosse ele que me convidasse a
entrar na quadra. Oi.
MARTÍN. É você?
S. Sim.
MARTÍN. Pensei que ia ser alguém mais velho. Que horas são?
S. Cinco.
MARTÍN. Não tenho muito tempo. Na verdade, você devia ter vindo mais cedo.
S. Sim. Chegamos atrasados. Tivemos alguns problemas. Peço desculpas pela demora.
S. Como?
S. Ah. É um Casio.
S. Tem. Sim.
MARTÍN. E despertador?
MARTÍN. O quê?
S. Eu também não.
S. Por quê?
MARTÍN. Não sei. Falaram que viria um escritor que queria escrever um livro. Que
queria me conhecer. Quantos anos você tem?
S. Trinta e nove.
S. Sim.
MARTÍN. Já te falaram.
S. Posso entrar?
S. Um pouco.
S. Que?
MARTÍN. Nada.
S. E não te incomoda?
MARTÍN. O quê?
MARTÍN. Pelo contrário. Você não esquece nunca. Eles estão sempre ali, daquele lado,
e nós aqui, desse outro lado. Aliás, todo o mundo gosta de ser olhado, né?
S. Não. Obrigado.
S. Tá rindo de quê?
MARTÍN. É que fazia muito tempo que ninguém me dizia “não, obrigado”. É estranho.
S. Sim. Imagino.
S. Basquete? Não. Jogava um pouco quando eu era criança. Meu pai me mandou jogar
durante um ano.
S. Não tenho.
S. Sim.
MARTÍN. E você não sabia que teu relógio era à prova d’água?
S. Não. Não sabia. Agora que eu sei, não vou tirar mais.
S. Não se preocupa. Podemos ficar todo o tempo que a gente quiser. O diretor deu a
autorização pra...
MARTÍN. É que não tem mais água quente depois das cinco e meia.
S. Ah, ok. Nesse caso…
MARTÍN. Tá na hora.
S. Depois, o que eu gostaria é que a gente pudesse se ver uma ou duas vezes por
semana.
MARTÍN. Beleza.
S. A ideia é que as primeiras vezes a gente se encontre aqui, que trabalhemos juntos e
que depois você venha ao teatro.
MARTÍN. E na televisão?
S. Quê?
S. Sim. É verdade. Vai ter umas telas, mas não tem nada a ver com a TV. Depois
explico melhor.
MARTÍN. Beleza.
MARTÍN. Sim.
MARTÍN. Sim.
S. Pode me chamar de S.
MARTÍN. Beleza.
S. Na próxima semana.
***
S. Nessa mesma tarde, durante o trajeto de trem que me levava ao centro da cidade, eu
fiquei escrevendo uma série de rascunhos no meu caderno de anotações. Não queria
começar a escrever. Queria esperar que a escrita viesse depois dos nossos encontros.
Por enquanto só queria registrar tudo o que vinha na minha cabeça para não me
esquecer de nada. Foi por isso que no trem anotei coisas como QUADRA DE
BASQUETE, RELÓGIO CASIO À PROVA D’ ÁGUA, OBSESSÃO PELA HORA,
entre parêntesis aparece escrito OBSESSÃO PELO TEMPO. Mais embaixo diz
PARRICÍDIO, dois pontos, ESTABELECER LINHAS DE LEITURA COM ÉDIPO
REI, OS IRMÃOS KARAMAZOV E ALGUNS TEXTOS DE FREUD. Um pouco
mais embaixo diz CONSULTAR O ÉDIPO DE PASOLINI. Depois, na outra página
aparece uma pergunta QUANDO SE COMEÇA REALMENTE A ESCREVER UM
TEXTO? E abaixo dessa pergunta, aparece mais uma pergunta que diz QUANDO SE
COMEÇA REALMENTE A COMETER UM PARRICÍDIO? Depois há alguns
endereços e alguns números de telefone. Acho que são dados do centro penitenciário.
Nesta outra página um pequeno diálogo que pela caligrafia ruim deve ter sido escrito
rapidamente e que diz VOCÊ GOSTA? DO QUÊ? QUE TE OLHEM. SIM, NÃO
ME INCOMODA. E finalmente há um enquadre que diz PODERIA ME CHAMAR
S COMO AS PERSONAGENS DOS ROMANCES DE KAFKA E ELE PODERIA
SE CHAMAR MARTÍN. Daí para abaixo uma seta em que eu escrevi e sublinhei
MARTÍN COMO SAN MARTÍN, MAS NÃO COMO O HERÓI SAN MARTIN,
SENÃO COMO O SANTO: SAN MARTÍN DE TOURS. Um dia depois daquela
primeira visita recebi uma ligação do Teatro San Martín. Era a direção, para me
informar que o Ministério da Justiça e Segurança Pública, finalmente, tinha decidido
não autorizar a participação de Martín no espetáculo. Em um primeiro momento
duvidei em continuar com o projeto. Não só não me interessava continuar desde um
ponto de vista artístico, já que a presença real de Martín era fundamental para mim,
como também achava que era uma falta de respeito com Martín ter falado que ele
participaria de um projeto que agora lhe era negado. Pedi à Direção do teatro uns
dias para pensar. Finalmente chegamos num acordo. Eu seguiria trabalhando com
Martín na escritura do texto, nossos encontros no centro penitenciário seguiriam
sendo autorizados e mesmo que fosse um ator, Fred, quem o representaria em cena,
Martín poderia, no entanto, assistir como espectador todas as noites das
apresentações. O acordo foi que assistiria na plateia e com a presença de dois guardas
policiais apaisana em cada noite. Esse é o motivo da presença dos agentes policias
que seguramente vários de vocês devem ter identificado na sala. Talvez possamos
contar nosso primeiro encontro. O que você acha?
S. Ok.
****
S. Lembro que assim que vi você entrar, percebi na hora que tinha que ser você. Era um
dia de chuva. Teu cabelo estava molhado.
FEDERICO. Não. Molhei antes de entrar. Fui ao banheiro e molhei. Tinha escutado você
falar de uma foto do Martín de cabelo molhado. Então achei que o melhor era molhar
meu cabelo antes de entrar.
S. Mas, assim que você entrou falou que estava todo molhado da chuva.
FEDERICO. Aqui.
S. Sim.
FEDERICO. É a chuva.
S. Continua chovendo?
FEDERICO. Muito.
S. Não, obrigado.
FEDERICO. Imagino.
S. Fred.
S. Cinco em ponto.
S. Oi?
FEDERICO. É que eu fiz o comercial. Tenho igual. Eles me deram um relógio junto com
o cachê.
S. Começar o que?
FEDERICO. O teste.
S. Já estamos fazendo.
FEDERICO. Ah… Já começamos?
FEDERICO. Bom. Meu nome é Federico. Tenho vinte e um anos. Um metro e oitenta.
S. Não, não. Tudo bem. Me diz uma coisa…. Você sabe jogar basquete?
FEDERICO. Sim…
S. Um pouco?
FEDERICO. Na verdade…
FEDERICO. Claro.
FEDERICO. FECHO?
S. POR FAVOR.
FEDERICO. Claro.
S. Deixa ver…
FEDERICO. Beleza.
S. Certo.
S. Sim, claro.
FEDERICO. Tá bom.
FEDERICO. Ainda posso treinar, né? Como já falei, pego rápido. Se tiver que ir fundo, eu
vou fundo.
FEDERICO. Tá bom.
S. Bom. Então me conta, por que você quis fazer este teste?
FEDERICO. Bom. Gosto muito do que você escreve. Vi alguns dos seus trabalhos…
S. Ok. Mas fora isso, dos meus textos ou dos meus trabalhos, me conta, o que você
achou interessante neste projeto?
S. Mas e em particular?
FEDERICO. A ideia.
S. Qual ideia?
S. Por quê?
S. O quê?
FEDERICO. O parricídio.
FEDERICO. Mas nunca se sabe. Assim sentados, tranquilos, é fácil falar que nunca
mataria o próprio pai, mas depois...
S. Depois o quê?
FEDERICO. Sei lá... Depois você não sabe o que pode acontecer. Você nunca sabe do que
é capaz em algumas situações. De como pode reagir.
FEDERICO. Tá bom.
FEDERICO. Beleza.
S. Pode começar.
FEDERICO. Posso?
FEDERICO. É isso?
S. Sim. É isso. Lembro que naquela tarde assim que você terminou a leitura, confirmei
que seria você que iria representar Martín.
S. Nunca soube.
S. Também não.
S. Não. Houve outra coisa. Depois que você terminou de ler… Na verdade nem
representou muito bem.
FEDERICO. Não?
S. Não. Depois que você acabou de ler o texto, comentou alguma coisa.
S. Você comentou que tinha acabado de perceber que na verdade Édipo não sabia que
estava matando o pai.
S. Como?
S. O quê?
FEDERICO. Que na verdade Édipo não sabia que era seu pai. Quer dizer, quando mata
Laio, ele pensa que está matando outra pessoa. Não sabe que está matando seu
próprio pai. Na verdade não sei se ele é realmente um parricida. Sim. É. Não é isso
que eu quero falar. O que eu quero falar é que na verdade ele é um parricida, mas não
sabe que é um parricida.
S. Pode ser. Mas mesmo sem saber quem está matando, ele mata o seu pai.
FEDERICO. Mas quando mata, não sabe. Não sabe o que tá fazendo na verdade. De
alguma maneira é discutível.
S. Então falei que sim. Que realmente poderia ser discutível. Só nesse momento você
foi em direção à porta, você disse adeus e foi embora.
S. Sim, obrigado.
*****
S. Dois dias depois de ter escolhido Fred eu voltei ao centro penitenciário. Eu mesmo
queria explicar para Martín o problema que tinha acontecido. Os guardas me levaram
até a quadra e falaram que aguardasse. Tinha ido até a enfermaria porque tinha
machucado o pulso. Então esperei uns minutos até que finalmente chegou. Tinha o
pulso direito enfaixado .
******
S. O que aconteceu?
S. Dói?
MARTÍN. Já me falaram…
S. O quê?
S. Quem falou?
MARTÍN. O diretor.
S. Eu mesmo queria falar.
S. É por causa da segurança, mas estamos fazendo os trâmites para que você possa ir às
apresentações. Como espectador. O salário vai ser pago igual.
S. Bom…. Não vai poder estar em cena, mas pelo menos vai poder ir ao teatro. Você
vai estar com a gente todas as noites. Na plateia. Em cena, vai ter um ator, no seu
lugar.
S. Sim.
S. Um pouco.
S. Não necessariamente.
S. Federico.
MARTÍN. E ele…? Vai me imitar? Ele vai fazer que nem eu?
S. Inspirar…. Entendeu?
S. Deixa ver…. Vou tentar explicar. Ele não vai te imitar. Ele é um ator. E o trabalho do
ator não é imitar. Ele vai criar o que chamamos de personagem. Vai se inspirar, quer
dizer, a partir de você, da tua história, de tudo aquilo que você vai contar para mim
ele vai criar um personagem.
S. Claro. Se eles tivessem te deixado atuar, nesse caso você seria ao mesmo tempo você
e teu personagem.
MARTÍN. Na plateia?
S. Sim.
S. Não... Mas de alguma forma você vai estar deste lado. É sobre você que vamos falar.
S. Quem?
S. O ator? Federico? Acho que não. É muito difícil conseguir entrar aqui. Precisa de
muitas autorizações.
MARTÍN. Mas se ele não me conhece, não entendo como vai fazer. Como vai me fazer,
sem nunca ter me visto?
S. O texto que estou escrevendo. E ele vai trabalhar a partir desse texto.
S. Não sei. Muitas coisas. Tua história. Tudo o que gente vai falar. As coisas que você
vai me contar. Nossos encontros. Tudo o que estamos falando agora, por exemplo,
pode também estar no texto.
S. Sim.
MARTÍN. Então tudo o que eu falar vai estar no texto.
MARTÍN. E desse, o de agora, vai botar o quê? Do que falamos? Minhas perguntas?
S. Sim.
S. Não. Depois eu troco algumas coisas. Modifico um pouco. Não vou fazer uma
transcrição exata de que falamos
S. Muitas coisas.
MARTÍN. Ué! Nem eu vou ser eu. Nem o que falamos vai ser o que falamos. Vai estar
tudo mudado.
MARTÍN. E se, por exemplo… Se houver algo que eu não queira que esteja?
S. A gente discute.
S. Ok. Melhor.
S. Não se preocupa.
MARTÍN. Sei lá… Algumas coisas… Não sei se tenho vontade que…
S. Quais, por exemplo?
MARTÍN. Não sei. Então... Você sabe por que eu estou aqui. Você falou que que tinha
lido meu processo.
S. Sim.
MARTÍN. Então… Tem coisas que… Não sei. Não é fácil. Não sei se quero que depois
todo mundo esteja vendo.
S. O quê?
MARTÍN. Agora que sei que você vai escrever tudo o que gente fala, fico meio assim de
falar.
S. Já falei que não vou escrever nada que você não queira. Vai ser como se tivéssemos
escrito o texto os dois juntos.
S. Imagino. Mas pode ficar tranquilo que não vou escrever nada que você não queira.
Aliás, você também não é obrigado a falar coisas que não queira.
MARTÍN. Eu… Matei meu pai. Então… Tem coisas… Que não é fácil de falar.
S. Depois de amanhã.
MARTÍN. Ontem, quando falaram que eu não ia poder me fazer no teatro, fiquei com
medo.
S. De quê?
MARTÍN. Eles não vão deixar. Só temos direito a uma visita a cada quinze dias.
S. Já tenho autorização.
S. Se você concordar…
MARTÍN. Não.
MARTÍN. É um terço. Carrego sempre comigo. Na verdade aqui dentro não deixam ter
objetos. Mas o terço... Eles deixam.
S. Tá vendo. Por exemplo, nesse momento, vou fazer com que você fale algo assim... É
um terço. Carrego sempre comigo. Mas vou agregar… É feito de pétalas de jasmim.
MARTÍN. O quê?
S. O terço.
S. Assim que cheguei nessa noite no meu hotel, comi, tomei banho e respondi os meus
e-mails. Comecei a pesquisar todo o material que tinha sobre ele na Internet. Tinha
mais de 600 links, de vários artigos da imprensa até um monte de fóruns sociais em
que aparecia seu nome. A cada tanto aparecia sua imagem. Quase sempre era a
mesma. Era a foto de uma criança que, inacreditavelmente, aparecia do lado do seu
pai. Essa é a foto. Estão em uma praia. Um tempo depois Martín me contou que
tinham tirado essa foto durante umas férias. Na foto, os dois estão rindo. O pai e o
filho. E, como dá pra ver, Martín está apoiado no ombro do pai ao mesmo tempo em
que o está beijando. Os dois estão com o cabelo molhado. Com certeza tinham
acabado de sair do mar. Cada vez que se abria essa imagem no meu computador, não
podia deixar de pensar em duas coisas. Primeiro no cinismo da imprensa, que para
escrever sobre o parricídio tinha escolhido uma foto que, como dá pra ver, transborda
ternura entre pai e filho. Preferia ver as clássicas imagens do condenado chegando ou
saindo do tribunal no dia do seu julgamento. Mas não essa foto em que os dois
aparecem num momento de tanta cumplicidade. A segunda coisa que eu não
conseguia parar de pensar era em quem tinha tirado essa foto. Claro que a imagem da
mãe se fazia presente o tempo todo. Martín e eu falamos várias vezes dessa foto
durante nossos encontros. E estive muitas vezes a ponto de perguntar quem tinha
tirado essa foto. Mas, sei lá. Nunca me atrevi. E acho que ele também não tinha
vontade de me contar. Sempre que a gente via a foto juntos, a única coisa que ele
falava era da lembrança intacta que tinha das gotas da água que caiam pelo cabelo
molhado do pai sobre a sua pele quente.
**
S. Estão na praia.
S. Dez anos.
FEDERICO. E o pai?
FEDERICO. Bem.
S. Perfeito.
S. Do quê?
FEDERICO. De basquete.
S. Não. Não sei. Nem gosto nem deixo de gostar. De fato não sei quase nada. Outro dia
pedi para o Martín fazer uma lista com todas as palavras próprias do basquete. Para
conhecer um pouco o vocabulário. Falou que ia fazer.
FEDERICO. Li em uma entrevista que te fizeram que o teu pai jogou basquete quando
jovem.
S. Sim.
FEDERICO. Imagino que foi esse o motivo de montar tudo em torno do basquete, né?
S. Não. Nada a ver. Na verdade eu escolhi porque é o lugar onde a gente sempre se
encontra na prisão .
S. Não. Acho que por enquanto não é uma boa ideia vocês se conhecerem. Acho que
não seria bom pra ele e nem pra você.
S. Sim, mas com ele é diferente. Ele não entendia bem a diferença entre apresentar e
representar.
S. Você acha?
S. Pra mim é tão obvio. Me diz uma coisa, você viu o processo?
S. Acho que sim. É provável que use os relatórios dos peritos também.
S. Não tudo. Vou tentando juntar tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa ter
alguma relação. Isto que a gente acabou de falar, por exemplo, de que a
representação do mundo pode ser melhor que o mundo, eu poderia usar. Ou a foto
que acabamos de ver. Ou algumas informações do arquivo jurídico. Ou o texto sobre
a Esfinge que você leu no dia do teste.
FEDERICO. E das entrevistas com ele imagino que você vai tirando o material mais
interessante.
S. Claro. E não só das coisas que ele conta. Também das coisas que eu vejo. Das coisas
que escuto. Outro dia, por exemplo, no ônibus que vai da prisão até a estação de
trem, durante todo o trajeto o motorista ia escutando “Quem é”, do Agnaldo
Timóteo. Conhece?
FEDERICO. Não.
S. É um clássico. “ quem é que não sofre por alguém... quem é que não chora uma
lágrima sentida...”
S. Bom, fiquei escutando durante todo o trajeto. E depois como não consegui tirar a
música da minha cabeça durante a noite toda, pensei que talvez poderia utilizá-la em
algum momento. Então é quase certo que em alguma passagem eu vou usar. Talvez
possamos começar a trabalhar a partir da foto da praia.
FEDERICO. Não. Nada. É que eu tava pensando que é bem normal que ele esteja
preocupado em ser representado por outra pessoa.
S. É possível.
FEDERICO. Comigo acho que ia acontecer a mesma coisa. Não sei se eu ia gostar que
alguém me representasse.
S. Começamos?
FEDERICO. Vai.
***
MARTÍN. Eu sou obrigado a falar do...? Tenho que falar obrigatoriamente que
aconteceu…?
S. Não. Não necessariamente. Pode me falar do que você quiser.
S. Às vezes. Mas hoje quero que você me conte o que você quiser.
MARTÍN. Mas não vai fazer pergunta difícil. Olha que eu não terminei a escola.
MARTÍN. Do quê?
S. E gostava?
MARTÍN. Às vezes. Gostava de alguns professores. Mas não era um bom aluno.
S. Por quê?
MARTÍN. Por isso. Não sei. Um dia não fui mais. Parei de ir. Agora estou arrependido.
Se tivesse terminado talvez… Não sei. Teria sido tudo diferente. Não teria ficado
doente da cabeça. Porque é isso que falam. Que eu tô doente. Daqui ó! É isso.
MARTÍN. Eu tenho um psicólogo. Ele me visita uma vez por mês. Mas pra ele não conto
quase nada. Ele fala que eu tô doente. Que é por isso que eu… Que foi por isso que
aconteceu o que aconteceu.
S. Não sei. Pode ser. Mas de qualquer forma você não fica doente por deixar de estudar.
MARTÍN. Não sei. De certa forma sim. Porque você vai ficando meio idiota. Meu pai
sempre falava isso.
S. Isso o quê?
MARTÍN. Que eu era um idiota. Que por ter parado de estudar tava ficando mais idiota
do que eu já era.
S. Às vezes os pais falam isso para os os filhos. Com certeza ele não gostou quando
você parou de ir à escola.
MARTÍN. É provável, mas meu pai falava isso o tempo todo. Você é um idiota. É um
tremendo idiota. Você não serve pra porra nenhuma. O tempo todo falava a mesma
coisa. Desde que você parou de estudar ficou mais idiota ainda. Você tá virado um
inútil. Então eu fui ficando doente. Você entende agora?
MARTÍN. Já tentei. Tentei, mas não entra nada. Os professores falavam, mas eu não
entendia as palavras que usavam. Usam palavras difíceis. Que nem você.
S. Como quais?
S. Mas tem que falar. Quando eu falar alguma coisa que você não entenda, tem que falar
na hora.
MARTÍN. Também não entendo o psicólogo. E aos advogados também não. Tem um
monte de gente que eu não entendo.
S. Mas justamente… Um professor está lá para explicar. Para explicar as palavras que
você não entende.
MARTÍN. Sim. Eu sei. Sei de tudo isso. Mas fico com vergonha.
S. Do quê?
MARTÍN. De estar o tempo todo perguntando. Você fica meio assim, né?… Sei lá. Você
nunca teve vergonha?
MARTÍN. Cada um tem vergonha de coisas diferentes. No chuveiro, por exemplo, alguns
têm vergonha de ficar pelados. Eu, por exemplo, não tenho vergonha. E você?
S. Eu o quê?
MARTÍN. Você tem vergonha de ficar pelado no chuveiro quando vai à academia?
MARTÍN. É que quem tem vergonha de ficar pelado no chuveiro é porque tem pau
pequeno.
S. De qualquer modo, você não deveria ter vergonha de perguntar uma coisa que você
não saiba.
S. Eu sei.
S. Não. Na universidade.
MARTÍN. Quis dizer que você teve que trabalhar muito. Estudar, ler um monte.
S. Sim. Isso sim. Mas pra isso você precisa ser perseverante.
MARTÍN. O que?
S. Quer dizer que você precisa ser perseverante, paciente… ter saco.
MARTÍN. E então porque você não disse que tem que ter saco?
S. Sim, poderia ter dito, mas preferi usar outra palavra. Quando você conhece várias
palavras, pode escolher.
S. Tá bom. Mas não custa perguntar, né? Agora, por exemplo, você conhece uma
palavra nova. Em uma próxima oportunidade, em vez de falar paciência ou saco, você
pode falar perseverança.
MARTÍN. Eu gosto.
S. Do quê?
S. Eu não estou aqui na qualidade de professor. Estou aqui para falar com você. Para te
conhecer.
MARTÍN. Porque você falou que não quer ser meu professor.
S. Você sabe muito bem que eu não estou aqui pra ser teu professor.
S. Então, por que você fala que prefiro que você continue sendo um idiota?
S. O que eu posso fazer é falar com o diretor Da prisão para que deixem você se
inscrever nos cursos, mesmo que já tenham começado.
MARTÍN. Tá vendo?
S. O quê?
MARTÍN. Tirou o problema das costas. Ajudo ele se inscrever num curso e deu. Posso ir
embora em paz.
S. Não entendi.
S. Que foi?
MARTÍN. É que. Às vezes acho que no fundo vocês todos desprezam a gente.
S. Quem?
MARTÍN. Vocês.
S. Isso é paranoia.
S. Mas eu sei.
MARTÍN. Porque é verdade. Você está aqui só para escrever o seu livro. Para que eu
conte coisas.
MARTÍN. Não é verdade. O que você quer é que eu conte aquilo que não aparece no
processo. O que nunca contei pra ninguém.
MARTÍN. E mais! Que fique bom! E que depois as pessoas falem: que impressionante!
Que livro bom! A única coisa que te interessa é isso. E depois poder contar que na
verdade você escreveu tudo aquilo indo se encontrar com o assassino. E que escreveu
dentro da quadra. É isso o que te interessa.
S. Não estou entendendo porque você está falando tudo isso. Se você quiser a gente para
por aqui agora mesmo. Acho que é melhor.
S. Não. Que medo! Não é isso. Acho que as coisas não ficaram claras. Acho que você
não entendeu.
MARTÍN. E daí?
S. Não sei o que aconteceu com você. Não sei por que você falou tudo o que falou.
MARTÍN. Desculpa.
S. Não é questão de desculpar. Não sei. É como se você misturasse tudo na sua cabeça.
MARTÍN. Já falei que não sou inteligente. Eu não consigo entender. Fico confuso. De
verdade. É difícil para mim. Desculpa.
S. Tá bem.
S. Algumas das coisas que você falou estão certas, outras não.
MARTÍN. Não fica bravo. Não quero que você vá embora bravo.
S. Que lista?
S. Ok.
****
S. Na semana seguinte não fui. Preferi deixar passar uns dias antes de voltar. Quando
liguei para o diretor do centro penitenciário para lhe comunicar que não iria naquela
terça feira, aproveitei e falei que achava bom que Martín pudesse retomar os estudos.
Ele respondeu que achava uma boa ideia. Mas que em geral, Martín não gostava de
participar de atividades coletivas. Era um recluso que preferia a solidão. Quando ele
me disse isso, tive vontade de voltar atrás e de dizer que finalmente iria me encontrar
com Martín. Mas não achei sério anunciar uma coisa e três minutos depois outra. No
entanto tive a ideia de pedir que falasse pra Martín que eu não iria porque estava
doente e que assim que melhorasse voltaria. Antes de desligar ele perguntou se
Martín já tinha me falado das visões. Falei que não. Que nunca tínhamos falado
sobre isso. E que de fato não entendia do que ele estava falando. Aparentemente
Martín tinha visões frequentemente.
*****
FEDERICO. Visões?
S. Foi isso que ele falou. Mas prefiro que falemos disso em outra cena.
FEDERICO. Eu trouxe.
S. Você leu?
S. Aparentemente o chamou de puta. Bom… Isso seria o que o deixou furioso. Mas,
acredito que não seja só por isso que deu vinte e um golpes no pai. Segundo o que
está escrito em algumas partes da perícia, houve outras vezes que o pai já o tinha
chamado de puta. Até em público.
S. Já fazia algum tempo que Martín tinha começado a se prostituir. Tinha abandonado
os estudos. Trabalhou alguns meses, mas pouco tempo depois que começava a
trabalhar era demitido. E no final, uns meses após a morte da mãe começou a se
prostituir. Num começo fazia em hotéis ou nos carros, mas depois começou a levar
alguns clientes para casa.
S. Aparentemente sim.
S. Isso está explicado em uma das últimas páginas do processo. Nesta. Foi num
domingo. Martín chegou de madrugada, o pai estava na cozinha. Tinha se levantado
para beber água e quando o viu chegar, olhou pra ele e parece que teria dito: você
não é capaz nem de trazer um litro de leite. Martín teria respondido alguma coisa e o
pai, aparentemente, teria falado que era uma puta. Foi nesse momento que Martín
teria pegado um garfo e dado vinte e um golpes. No processo diz que Martín falou
que enquanto ele enterrava o garfo, o pai continuava falando: tá vendo? Tá vendo
que você é uma puta incapaz de trazer nem mesmo um litro de leite?
S. Sim, podemos ver algumas fotos. Há algumas que gostaria de poder mostrar.
S. Talvez.
S. Podemos fazer montagens. Botar outras fotos. Você nunca entrou no youtube pra ver
imagens de crimes?
FEDERICO. Não. Pra falar a verdade não.
S. Sim, claro. E podemos falar para o público que por uma questão de pudor ou sei lá o
quê, tivemos que cobrir os rostos. Dessa forma passamos qualquer foto, de qualquer
outro crime, fazemos como se fossem fotos do crime de Martín.
S. Essa é ótima. Podemos ver. Deixa pensar... Antes de passar a projeção de alguma
dessas imagens que vamos ver em seguida, me sinto na obrigação de fazer um
esclarecimento importante. Caso alguém queira se retirar, pode sair agora. Pode
também fechar os olhos. É só um minuto. Alguém quer sair? Certo. Como acabei de
explicar, fomos obrigados a cobrir dois terços do rosto da vítima com uma tarja
preta. Essa é a primeira. O que me interessa dessa foto é que dá pra ver, de forma
muito clara, a quantidade de cortes em todo o corpo, e que, de certa forma, todas as
feridas me lembram de algumas pinturas da Escola Flamenca, onde os corpos dos
Cristos frequentemente aparecem com excesso de danificações para acentuar a dor e
o sofrimento. Na segunda foto o que mais me cativa são os olhos abertos do pai.
Penso que em nenhum momento fechou os olhos. Parece que viu toda a sua morte.
Os olhos abertos me levam a pensar que assistiu, como se fosse um espectador, a
cena toda do seu assassinato. E por último, a terceira foto me intriga pelo lugar onde
está o cadáver. Fico impressionado de vê-lo encostado contra a porta da geladeira.
Fico impressionado porque, depois de tê-lo matado e antes de chamar a policia, o que
aconteceu apenas ao meio-dia, Martín confessou ter aberto várias vezes a geladeira
para pegar várias coisas. Fico impressionado com a imagem do filho abrindo a
geladeira, com o cadáver do próprio pai fazendo pressão. Bom. É isso.
S. Sim. Passou a manhã inteira em casa com o cadáver do pai ao lado. Tomou banho.
Tomou café da manhã. Assistiu TV. Voltou para cozinha porque estava com fome. Fez
uma vitamina de banana. Bebeu. E só depois foi até o telefone, ligou para delegacia e
assim que atenderam, falou: acabei de matar meu pai com vinte e uma garfadas.
S. É verdade. Não tinha pensado. Aliás, falando em tragédia grega, ontem estive lendo
Édipo em Colono e achei este fragmento. “De modo que, se a alma do meu pai vivesse,
julgo que ele não me contradiria”.
FEDERICO. É exatamente o que falei no dia do teste. Édipo não é um parricida cem por
cento.
FEDERICO. Obrigado!
S. Aliás, ele vai ainda mais longe. O que ele fala é que finalmente todos, sem saber,
matamos um pouco nossos pais.
FEDERICO. Pode ser. O mais estranho é que sempre se coloca como exemplo de
parricídio, quando nesse caso tudo é muito confuso e embaralhado.
S. Então... Afinal não vamos negar que é um tema confuso e embaralhado, não é? Em
definitiva todos temos, como Édipo, uma Tebas um tanto ambígua. Um pouco confusa e
obscura. Uma espécie de zona ou território incompreensível. Não é? Uma espécie de
Tebas Land.
FEDERICO. De quê?
S. Uma Tebas Land. Está vendo? Acabo de perceber que achei o título.
S. Gostei.
******
S. À noite quando cheguei no hotel, tinha uma carta que tinham me enviado do centro
penitenciário. Era uma carta de desculpas de Martín. Se desculpando de novo por ter
sido grosso comigo. Eram apenas duas linhas. Do outro lado da lauda tinha uma lista
longa de palavras, um monte de palavras. Era a famosa lista sobre basquete que eu
tinha pedido. É esta que está comigo. É uma lista muito linda. Está separada em
cinco partes. E em cada parte Martín colocou um título com os nomes que se
utilizam para designar os cinco tempos ou períodos que compreende um jogo de
basquete. Primeiro tempo. Segundo tempo. Terceiro tempo. Quarto tempo. E
prorrogação. Li várias vezes. Não consegui deixar de admirar o trabalho notável de
escrita literária que tinha feito.
Entreato
Terceiro quarto
MARTÍN. Já percebi.
S. O quê?
MARTÍN. Já percebi que você gosta de me olhar.
MARTÍN. Já falei. Não ligo. Eu li aquela entrevista em que você falou que teu pai jogou
basquete quando era jovem.
S. Meu pai? Não. Está vivo. Falei com ele hoje de manhã.
MARTÍN. E ele?
S. Ele o quê?
S. Sim, claro. Bom… Pra falar a verdade nunca perguntei se ele me ama.
MARTÍN. Meu pai nunca gostou de mim. Eu também nunca perguntei para ele. Mas eu
sei, porque ele falava o tempo todo. Eu não gosto de você. Ele falava “eu não gosto
de você”. Qualquer coisa, qualquer problema, ele já falava que não me amava. Nunca
gostei e nunca vou gostar, ele falava. De um jeito ou de outro, ele sempre me fazia
saber que não me amava, que não gostava de mim. Desde criança. Desde bem
pequeno. E às vezes ele passava do meu lado e me batia. Do nada. Porque sim. Um
tapa. Na cara. E se eu falasse. Outro tapa. Acho que ele gostava de me bater. Não sei.
Gostava de me bater. Ele gostava. Também batia na minha mãe. Ela também
apanhava. E também era porque sim. Do nada. De repente tinha vontade de bater na
gente. E às vezes batia na frente dos colegas dele. Mandava eles se sentarem no sofá,
daí ele me botava na frente e começava a bater. Bem forte. Mas o pior era o cinto. A
fivela. Era muito ruim. E o cinto deixava marca. Na pele. Outras vezes pegava livros
e me batia com eles. Usava eles tipo uma prensa, pra esmagar as mãos. Os dedos. Ele
apertava até sair sangue. Por isso eu não suporto livro. Entende? Por isso eu nunca
vou à biblioteca. Traz lembranças ruins. É uma dor horrível. É como quando uma
porta prende os dedos. Às vezes as unhas ficavam pretas. Depois quando fui
crescendo, parou de me bater. Com minha mãe nunca parou. Bateu nela até ela
morrer. Mas comigo foi parando. Então em vez de me bater começou a me xingar.
Falava coisas horríveis. Falava que eu era um imbecil. Um inútil. Que era meio
idiota. Que eu não servia pra porra nenhuma. E falava essas coisas o tempo todo.
Depois, um dia, minha mãe morreu. Porque minha mãe está morta, sabe? Morreu de
câncer. Câncer de útero, falaram. Aí foi pior. Meu pai começou a falar que a culpa da
morte da minha mãe era minha. Que na verdade se ela não tivesse me parido, então
não tinha tido câncer de útero, nem tinha morrido. Esses foram os piores anos.
Queria fugir de casa, mas não tinha pra onde ir. Então tive que procurar trabalho.
Ganhar a vida. Mas eu não me dava bem em lugar nenhum. Porque eu era um inútil,
como meu pai dizia. Então sempre me mandavam embora. De todos os lugares. Até
que... Uma vez... Eu fiz um programa. Então… Pra isso eu servia. Mesmo que não
achasse uma coisa legal, que eu tivesse vergonha… Eu servia pra isso… Era foda,
mas era o que eu podia fazer. Foi nessa época que meu pai começou a me chamar de
puta. Um dos colegas do meu pai, que tinha saído comigo por uns trocados, foi e
contou pra ele. Falou que eu tava me prostituindo. O mesmo colega que quando eu
era pequeno vinha se sentar no sofá pra ver como eu apanhava de cinto do meu pai.
Foi a partir daí que ele fez da minha vida um inferno. Falou que se antes não gostava
de mim, agora ele tinha nojo. Então toda vez que a gente se cruzava, ele me chamava
de puta. Me chamava de puta. Quando queria falar comigo só dizia puta, me
chamava de puta o tempo todo. Até que um dia eu não aguentei mais e matei ele. De
manhã. Num domingo. Tem fotos. Você viu? Você viu todas as fotos? Mostraram
várias vezes pra mim. Ainda mais quando tive que fazer a reconstituição. A
reconstituição do crime. Você sabe o quê é, né? Tudo tem que ser igual. Exatamente
igual. É por isso que ficam te mostrando as fotos. Eles chamam de cena do crime.
Você tem que fazer tudo igual. As mesmas coisas. Seguir os mesmos passos. Os
mesmos movimentos. Tem que fazer tudo igual. Um dos policiais faz o... O morto.
Faz teu pai. Faz que é o cadáver. E você tem que fazer tudo igual. É estranho. É
como se fosse a mesma coisa, mas não é igual. Que horas são?
S. Quase cinco.
S. Você tá doente?
MARTÍN. Não. Ele tem que receitar de novo uns medicamentos, renovar a receita. Por
causa da epilepsia. Sabe o que é?
S. Sim. Claro.
S. Eu sei.
MARTÍN. Às vezes… Fico tremendo. Vejo coisas. Dói a mandíbula. Por isso tenho que
tomar tarja preta. Mas a verdade é que a única coisa que me acalma é o terço.
S. É muito bonito.
MARTÍN. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?
MARTÍN. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim. Eu gostava dela. A
gente se amava. Eu acho que minha mãe me amava mais a mim do que ao meu pai.
S. Depois de amanhã.
S. O quê?
MARTÍN. Que uma mãe possa morrer por ter tido um filho. Que o câncer seja culpa do
filho que ela teve.
MARTÍN. Tá. Então a gente se vê depois de amanhã. Eu vou estar por aqui.
**
S. Isso. Foi isso o que ele falou. Aparentemente Martín seria epilético desde a
adolescência, mas só foi diagnosticado agora.
FEDERICO. Beleza.
S. Começamos?
S. Quase cinco.
S. Você tá doente?
FEDERICO. Não. Ele tem que receitar de novo uns medicamentos, renovar a receita. Por
causa da epilepsia. Sabe o que é?
S. Sim. Claro.
S. Sim. Eu sei.
FEDERICO. Às vezes… Fico tremendo. Vejo coisas. Dói a mandíbula. Por isso tenho que
tomar tarja preta. Mas a verdade é que a única coisa que me acalma é o terço.
S. É muito bonito.
FEDERICO. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?
FEDERICO. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim.
S. Peraí… É aí que eu gostaria de agregar algo novo. Quando fala que a única coisa da
mãe que ele ficou foi o terço. Aí podemos agregar que também ficou com um CD. Por
exemplo, algo como... Fiquei com ele depois que ela morreu. Era dela. Foi a única coisa
dela que eu fiquei para mim. Com isso e com um CD. Um CD que minha mãe escutava
o tempo todo. Um CD do Agnaldo Timótio. Era seu cantor predileto. E esse CD tem sua
música predileta. “Quem é”. Uma coisa assim...
S. Logo depois. Foi com a única coisa dela que eu fiquei pra mim. Com isso e com um
CD. Fala do CD, do Agnaldo Timóteo, da “Quem é”, e depois volta ao terço pra
perguntar se ele gosta.
S. Sim. Agnaldo Timóteo. Desde que escutei a música não consigo tirá-la da cabeça.
Aliás, acho que a música “Quem é” ficaria muito boa nesse momento. Bem na hora
que ele fala do amor que sente pela mãe. Deixa ver. Queria provar com a música de
fundo. Depois de… É o rosário que tua mãe te deu de presente?
FEDERICO. Bom… Na real não foi ela que me deu de presente. Fiquei com ele depois
que ela morreu. Com isso e com um CD. Um CD que minha mãe escutava o tempo
todo. Um CD do Agnaldo Timóteo. Era o cantor predileto dela. E esse CD tem sua
música predileta. “Quem é”. Mas pra falar a verdade o que me acalma é o terço.
Gostou?
S. É muito bonito.
FEDERICO. Muito bonito. Você sempre usa essas palavras… Eu, hein?
FEDERICO. Minha mãe era uma pessoa boa. Ela sim gostava de mim. Eu gostava dela.
Tinha algo entre nós, sabe. A gente se amava. A gente se amava de verdade. Eu acho
que minha mãe me amava mais a mim do que ao meu pai.
S. O que ele fala é terrível, né? A gente se amava de verdade. Eu acho que minha mãe
me amava mais a mim do que ao meu pai. É pesado.
FEDERICO. Ele falou assim? Desse jeito?
S. Sim. Assim mesmo. A gente se amava de verdade. Eu acho que minha mãe me
amava mais a mim do que ao meu pai. Que estranho...
FEDERICO. O quê?
FEDERICO. Nike?
S. É provável.
***
S. Gostou?
MARTÍN. Escutava o tempo todo. Sempre que se trancava sozinha no quarto com chave,
botava bem alto. Com o volume bem alto. Assim eu não percebia que ela tava
chorando. Sei a letra de cor. Tô sempre cantando. Quase que todos os dias. É tipo
uma Ave Maria.
MARTÍN. Claro. Até porque eu… Várias vezes eu vi coisas. Como é que se fala?... Tive
visões. Por isso depois tenho dor de cabeça e ataques.
MARTÍN. O quê?
MARTÍN. E Tebas?
S. Tebas é o nome de uma cidade muito conhecida. Era uma cidade da antiguidade onde
acontece o mito de Édipo. Já escutou falar de Édipo?
S. Aconteceu com ele algo parecido com o que aconteceu com você.
S. Édipo é alguém que matou seu pai. Pra falar a verdade não se sabe se ele existiu ou
não. É um mito. É uma historia. Édipo é a personagem principal da história.
MARTÍN. O super-herói?
S. Não. A história é diferente. Quando matou o pai ele não sabia que era o pai. Porque
os pais o tinham abandonado quando ele era pequeno. O entregaram para alguém que
por sua vez o pendurou pelos tornozelos em uma árvore. Por esse motivo se chama
Édipo. O nome significa “o dos pés inflamados”. Depois outra pessoa o tirou, salvou
sua vida e o levou para outro país.
S. Sim, pra Corinto. Quando Édipo cresce e retorna a Tebas, mata seu pai no caminho,
que era o rei de Tebas, mas sem saber que era seu pai. Depois se casa com a rainha
de Tebas, sem saber que era sua mãe.
S. Sim.
S. Sim. Claro.
S. E tem filhos.
MARTÍN. Juntos?
S. Sim. Juntos.
MARTÍN. Sério?
S. Sim. Vai até o quarto onde estava o cadáver da sua mãe, que tinha se enforcado
quando ficou sabendo, pega a presilha do cabelo dela e enfia nos próprios olhos.
MARTÍN. E depois?
MARTÍN. De Tebas?
S. Sim. De Tebas.
S. Sim. Ninguém gosta dele na cidade. Você nunca tinha escutado a história?
MARTÍN. Não sei. Na escola… Uma vez um professor contou uma história parecida.
Alguma coisa da tragédia da Grécia.
S. É isso. Porque depois muitos escreveram sobre essa história. E na Grécia, há muitos
séculos, houve algumas pessoas que pegaram a história e escreveram umas peças de
teatro que foram chamadas de tragédias. Há uma que se chama Édipo Rei. Outra que
se chama Édipo em Colono.
S. Então. É por isso que chamei minha peça de Tebas Land. Entendeu agora?
S. Eu sei. Mas de certa forma aconteceu com Édipo o mesmo que com você.
S. Claro. E acontece que sempre que uma pessoa mata o seu próprio pai, se fala do caso
de Édipo.
S. Sim. Fizeram vários filmes. Se quiser posso conseguir os filmes. Tem algumas
pinturas também.
S. De pintura?
S. Então posso trazer. Vou juntar as pinturas que existem sobre o mito e vou trazer.
MARTÍN. Beleza.
S. Também vou te trazer as duas tragédias, assim você pode ler. Capaz que estão na
biblioteca.
MARTÍN. Deve ser foda. Ir pra cama com a própria mãe. Deve ser esse o motivo do por
que ele arrancou os próprios olhos.
MARTÍN. Sim, mas tenho certeza que arrancou os olhos por ter ido pra cama com a mãe,
não tanto por ter matado o pai. Sacou?
S. É provável.
MARTÍN. Já?
S. Ninguém sabe ao certo. Algumas versões falam que foi com um porrete.
S. Sim. Eu sei.
****
S. Alguns dias depois fui convocado pela direção do Teatro San Martín. Tinham
recebido um novo correio do Ministério da Justiça e Segurança Pública em que se
proibia terminantemente a ida de Martín às apresentações. A negativa era definitiva.
S. Não. Só vai poder vir a um ensaio e sem público. Não sei se você viu que estive
trabalhando com a reconstituição do crime.
FEDERICO. Sim. Isso de fazer que ele reconstitua a cena do crime é impressionante, né?
S. Sim. Foi muito forte escutar como ele contava que tinha sido levado até a casa e
tinham feito com que ele fizesse exatamente as mesmas coisas. Os mesmos gestos
que tinha feito quando matou ao pai.
S. Sim. Outro dia. Foi realmente muito violento. Eu falei que ele não era obrigado. Mas
ele insistiu que sim, que queria fazer. Na verdade quem não queria que ele fizesse era
eu. Não tinha a menor vontade de ver ele ali, atuando a cena do assassinato. Sabia
que ia me impressionar. E foi o que aconteceu.
S. Não sei.
*****
MARTÍN / FEDERICO. Foi num domingo. De madrugada. Bem cedo. Eu entro. Abro a
porta e entro. Ele está na cozinha. Ali. Tinha se levantado pra tomar um copo d´água.
Do nada ele olha pra mim e diz que sou incapaz de trazer um litro de leite pra casa.
Assim, do nada. Eu respondo que se ele quiser um litro de leite que ele mesmo vá
buscar. Você é uma puta, ele falou. Não respondo. Pergunta, você escutou? Continuo
sem responder. Então diz de novo, você é uma puta. Tá vendo? Estou falando que
você é uma puta e você não se defende. Puta. Então é nesse momento. É nesse
momento que tenho a visão. É nesse momento que eu vejo a imagem. Na minha
frente. E me faz um gesto. Com o braço. Assim. Então vou até a gaveta dos talheres e
abro. Uma verdadeira puta. Escolho um garfo. Não falo nada. Puta, ele fala de novo.
Então viro. Vou até ele. Levanto o garfo e enfio nele. Assim. Só um golpe. No
pescoço. Ele grita, o que você fez? Tenta me parar e então o empurro. Contra o
refrigerador. Então dou o segundo golpe. No mesmo lugar. Sempre no mesmo lugar.
No pescoço. Tá louco, grita. Você está me machucando. Então dou o terceiro golpe,
um pouco mais embaixo. Aqui. E então ele grita ainda mais forte. Mas, o que você tá
fazendo? Tá me machucando. E fala: tá vendo? Tá vendo que você é uma puta
incapaz de trazer um litro de leite? Nesse momento tenta de novo me empurrar, mas
eu travo ele com a minha perna direita e dou o quarto golpe. Na garganta. Em plena
garganta. E ele grita, está me matando. E então eu enterro o garfo bem fundo. Bem
profundo pra ele parar de falar. Para que ele pare de falar. Está matando o seu
próprio pai. Foi a última coisa que escutei dele. Então enfio o garfo na garganta
várias vezes. E nesse momento o sangue começa a correr para todos os lados. O
pescoço começa a se abrir. Quer falar alguma coisa, mas só sai alguns barulhos da
garganta aberta. Tipo roncos misturados com sangue. Então continuo enfiando o
garfo, várias vezes. Pra matar ele bem morto. Pra que ele pare de falar. Enfio aqui.
Atrás da orelha. E aqui, debaixo da mandíbula. E depois nessa parte. E depois enterro
o garfo no peito. E aqui onde fica o fígado. E desse outro lado também. E depois no
meio da barriga. Então enfio várias vezes. E depois nessa parte da virilha. Aqui
mesmo. E depois ali. Na virilha. Várias vezes. Dezoito. Dezenove. Vinte. Vinte e
um. Só nesse momento percebi que ele tava morto. Tinha os olhos abertos, mas na
verdade já não respirava. Parecia que tava me olhando. Que mesmo morto
continuava a me olhar. Papai, falei. Papai. Mas não respondeu. Tava morto. Tava
bem morto.
******
S. Tudo bem?
S. Falaram?
MARTÍN. Eu sei.
MARTÍN. Eu sei. Mas queria poder ir. Porque nunca vejo ninguém aqui. Nunca vem
ninguém. Ninguém vem me visitar. O que eu queria era poder ir ao teatro.
S. De qualquer forma você vai poder assistir um ensaio. Isso já foi aprovado.
S. Vai ter um sistema de filmagem. Você vai poder assistir todas as apresentações. Isso
também já foi aprovado.
S. Podemos tentar fazer uma conexão por Internet também. Por Skype. Podemos nos
organizar para ter um bate-papo durante a apresentação.
S. Às vezes…
MARTÍN. Não no meu caso. No meu caso é pra sempre. Vou ficar trancado aqui pra
sempre. Sempre, sempre, sempre. Até o dia que eu morrer.
S. Às vezes os advogados…
MARTÍN. Eu não. Não tenho grana. Nem ninguém que se preocupe comigo. Eu tive com
um senhor umas duas ou três vezes. Só isso.
S. O que é isso?
MARTÍN. Nada.
S. O que é isso?
S. É um garfo…
S. Do quê?
MARTÍN. Sempre tenho comigo. Aqui. Escondido. Por via das dúvidas.
S. E eles deixam?
MARTÍN. Não sabem. Eu sempre troco o garfo no refeitório. Você nunca sabe... aqui
dentro…
S. (pede ajuda para plateia) Martín estava começando a ter um ataque. Na hora vieram
atender ele e pediram que eu me retirasse. Que era melhor que eu fosse embora.
Fiquei aguardando um pouco para ter notícias, mas falaram que não adiantava
esperar. Que eles iam levá-lo à enfermaria e que o médico ia tomar conta dele. Pedi
para o diretor da prisão que me mantivesse informado. Quando cheguei ao hotel
tinha uma mensagem dele onde explicava que Martín tinha tido um ataque de
epilepsia muito forte e que o melhor era suspender nossos encontros, pelos menos
por uma semana, até que melhorasse. Essa noite foi difícil dormir. Não conseguia
tirar da cabeça a imagem de Martín ensanguentado com o garfo na mão e começando
a tremer cada vez mais. Tive que tomar meio comprimido para poder dormir.
Quarto quarto
S. Durante toda a semana seguinte ao ataque decidi ensaiar com mais intensidade.
Faltava pouco para a estreia. Hoje você pode ficar até as nove?
FEDERICO. Sim. Sem problemas. Ele nunca falou do julgamento? Deve ser terrível
saber que a vida inteira você...
S. Você sabe que quanto mais eu o conheço mais entendo que tenha matado o pai. Não
estou justificando. Pra falar a verdade às vezes me pergunto se mais que um
assassinato não foi um ato de legítima defesa. Às vezes me pergunto se foi um
verdadeiro parricídio ou não.
FEDERICO. Mas ele, diferente de Édipo, sabia que estava matando o próprio pai.
S. Não sei se um monstro como aquele pode ser chamado de pai. Não sei. Para mim um
monstro desses não é realmente um verdadeiro pai. Desculpa. Na verdade acho que
estou um pouco influenciado pela coisas que Dostoievsky diz em Os Irmãos
Karamazov. Ontem marquei algumas coisas no livro.
Um pai injusto e odioso acorda em seu filho perguntas dolorosas, por exemplo: «Será
que meu pai me amava quando me gerou? Esse filho deveria perguntar ao seu pai:
«Por que tenho que te amar? Prove que é uma obrigação.» E se esse pai detestável não
é capaz de demostrar ao seu filho que deve amá-lo, então o filho fica liberado e com
direito para considerar o autor dos seus dias como um estranho e até como um inimigo.
Certos crimes não podem ser chamados de parricídios. A morte de certos pais só pode
ser qualificada de parricídio por aquelas pessoas enceguecidas pelos preconceitos.
S. Utilizava os livros para esmagar as mãos dele. Não sei se dá para chamar de pai.
S. Assim sempre que pensar nos Karamazov, vai se lembrar de mim. As fotos do garfo,
você viu?
FEDERICO. Sim. Tava vendo. São desagradáveis.
FEDERICO. Não sei o porquê, mas achei essas fotos mais perturbadoras que as fotos do
cadáver.
FEDERICO. Quando acontecem crimes desse tipo entre familiares... Imagino que o
assassino é detido na hora... Quando é alguém da família, o assassino pode ir ao enterro?
FEDERICO. Quer dizer que ele não viu nunca o túmulo do seu pai. O que acontece no
caso de a pessoa pedir pra assistir o enterro ou pra ir no túmulo da vítima?
S. É verdade. Ah… Não sei. Talvez fosse melhor que não fosse ele mesmo que coloca
as gotas.
S. Podemos experimentar.
FEDERICO. Beleza.
S. Ok.
**
MARTÍN. Sim. As primeiras convulsões foram um pouco longas. Mas agora tô bem.
S. Cinco.
S. Quer ajuda?
S. Sim. Dá.
S. Pode deixar.
S. Uma.
MARTÍN. Péra…
S. Assim você pode escutar um pouco de música. Tem uma música que eu sempre
escuto quando não estou muito bem.
MARTÍN. Qual é?
MARTÍN. É muito…
S. Gosta?
MARTÍN. Sim.
Martin. Quando?
S. Aí.
S. Está na hora.
MARTÍN. Fecha bem quando sair. Senão, com o vento, a porta fica batendo e me
incomoda.
***
FEDERICO. É Mozart?
S. Muito. Ele compôs um pouco antes da morte do seu pai. Nessa época estavam
brigados. Não se falavam. Outros dois que tinham uma relação um tanto
atormentada. Você sabe que… Fiquei impressionado de ver ele tão frágil. É estranho,
mas me sinto culpado pelo ataque. Não sei. Tenho a ideia de que nossos últimos
encontros não lhe fizeram bem. A história de Édipo, por exemplo, ele ficou muito
perturbado. Acredito que não fez bem pra ele. É como se tivesse revivido muitas
coisas nesses dias.
FEDERICO. O que não ficou claro pra mim é se a gente estreia quinta ou sexta.
FEDERICO. Muito obrigado. Como você falou que se chamava o concerto de Mozart?
****
S. Dá para ver.
MARTÍN. É por causa dos remédios. Aquele dia não tava passando bem, mas hoje estou
muito melhor. Ontem à tarde fiquei escutando a música que você trouxe.
S. Fez bem pra você?
MARTÍN. Agora não consigo tirar da cabeça. Toca o tempo inteiro. Aqui.
S. Fico contente.
S. A entrevista?
MARTÍN. Sim. Tem um monte de coisas que não entendi. Mas vi que você falou de
basquete e tudo.
S. Queria te entrevistar.
MARTÍN. Não querem. Melhor. Pra falar a verdade eu também não quero. Melhor assim.
Não sabia que você mora em Paris.
S. Muito.
S. Claro.
S. Notre Père, qui es aux Cieux, que ton nom soit sanctifié… Aconteceu alguma coisa?
MARTÍN. Nada.
S. Que foi?
S. Olhei como?
S. Eu?
MARTÍN. Sim.
MARTÍN. Então?
S. Não entendo por que de uma hora pra outra você está me fazendo todas essas
perguntas.
S. Sei lá.
MARTÍN. Sim.
S. E de mulheres?
S. Não sei.
MARTÍN. Sim. Você sabe. A gente sempre sabe se transaria ou não com a pessoa que
está na sua frente.
MARTÍN. Você sabe sim… O problema é que você não tem coragem.
MARTÍN. Eu sei.
S. E você?
MARTÍN. Eu o quê?
MARTÍN. Já vai?
S. Sim.
S. Claro.
MARTÍN. Preciso pedir algo à direção. E se eu fizer, vão dizer que não. Agora, se você
pedir, talvez...
MARTÍN. É que eu gostaria de visitar o túmulo do meu pai. Você acha que vão deixar?
S. Podemos tentar.
S. Não.
*****
S. Eu também já sabia. Sabia que não iam deixar. Mesmo assim insisti muitas vezes
com o diretor do centro quando falei com ele. Tentei explicar o importante que era
aquele pedido. Quão importante era para Martín poder visitar o túmulo do pai. O
diretor não entendeu por que Martin queria visitar o túmulo do pai que ele mesmo
tinha matado de maneira tão bestial. Não achava sentido. Nem a razão. Eu disse
várias vezes que não podíamos saber e que era algo muito íntimo e quiçá muito
difícil de explicar para Martín. Foi nesse momento que, depois de fazer uma pausa, o
diretor disse que se Martín queria conhecer o túmulo, então ele teria que escolher
entre uma das duas saídas: ou ir ao teatro ou ir ao cemitério. Ele explicou que não
poderia autorizar as duas. Que autorizar uma saída já era complicado. Tem que
escolher onde prefere ir, ele me disse antes de eu ir embora. Em todo o caminho de
volta para o meu hotel eu fui pensando que a escolha não seria fácil. O cemitério ou
o teatro?
******
S. Imediatamente. Assim que eu sugeri as duas possibilidades. Não hesitou nem por um
segundo.
FEDERICO. Eu também.
FEDERICO. Sim.
S. Gostou?
FEDERICO. Sim.
S. Por quê?
FREDERICO. Por ter me escolhido. Por trabalharmos juntos. Não sei. É pra você.
S. O que é?
FEDERICO. É um presente.
S. Muito obrigado.
FEDERICO. Sim. Perguntei ao figurinista onde tinha comprado o meu e fui procurar
outro igual.
S. Ontem estive procurando a origem do seu nome e, você sabe o que significa?
FEDERICO. Não.
S. Ontem procurei.
FEDERICO. E o teu?
S. O quê?
FEDERICO. Olha!
S. Bom, começamos?
S. Sim. A despedida.
Prorrogação
S. Sim. É um presente.
S. Pra agradecer por toda sua ajuda. E também porque tinha vontade de te dar um
presente.
MARTÍN. O que é?
S. Olha.
S. Rasga o papel.
MARTÍN. O que é?
S. Não percebeu?
S. Sim.
MARTÍN. É novo.
S. Baixei pra você quase todos os livros que estão digitalizados. Você vai poder ler tudo
o que você quiser. Vai ter material por muito tempo.
MARTÍN. Legal!
S. Também salvei as imagens que tínhamos visto.
MARTÍN. As pinturas?
S. Tebas Land?
MARTÍN. Já?
S. Bom… Dois meses é uma boa temporada. Talvez mais pra frente volte. Mas com
outra pessoa no meu lugar. Porque eu tenho que viajar.
S. Sim. De qualquer forma, você sabe que há outras pessoas, em outros países, que
estão querendo dirigir a peça.
S. Não posso. Tenho que ficar em Paris. Mas cedo os direitos a outras pessoas para que
montem a peça.
MARTÍN. É estranho.
S. O quê?
S. Depois de amanhã.
MARTÍN. Quando?
S. Quando eu voltar.
MARTÍN. Você percebeu que depois o peito fica sempre com cheiro de jasmim?
S. Sim. É bem cheiroso. Mas você tem certeza que quer deixar comigo?
MARTÍN. É um presente.
S. Sim. Mas estive pensando que é algo muito valioso para você.
MARTÍN. Então! Por isso mesmo que eu te dei. Eu queria que você tivesse algo meu.
S. Já tenho muitas coisas tuas. Foi muito importante para mim te conhecer. Aprendi
muito...
S. Sim.
S. Sei.
S. Um... Abraço? E agora a gente vira e cada um vai pra sua casa.
S. Eu também não.
S. Eu prometo.
MARTÍN. Fecha bem a porta. Senão a porta bate com o vento e o barulho me incomoda.
S. Se cuida.
**
S. Fui me afastando sem me virar. Tive que atravessar o pátio inteiro sabendo que ele
estava me olhando. Só quando entrei em uma das unidades me virei, e por uma das
janelas o vi dentro do gradeado. Estava sentado e tinha ligado o tablet. Tinha
escolhido o Concerto para piano N° 21 em dó maior de Mozart. ( música Mozart) O
vento trazia alguns acordes do andante até onde eu estava. Era uma tarde de
primavera. Os dias estavam se tornando menos frios. Fiquei por um momento
olhando de longe. A luz da tela iluminava um pouco seu rosto. De repente, vi que
seus lábios começavam a mover-se lentamente. Então percebi que estava lendo.
Fiquei sempre com a dúvida de saber o que ele estava lendo. Nunca soube.
***
MARTÍN. Cidadãos de Tebas. Ó meus filhos, gente nova desta velha cidade de Cadmo,
por que vos prostemais assim, junto a estes altares, tendo nas mãos os ramos dos
suplicantes? Sente-se, por toda a cidade, o incenso dos sacrifícios; ouvem-se
gemidos, e cânticos fúnebres. Não quis que outros me informassem da causa de
vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu, o rei Édipo, a quem todos vós conheceis.