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Jornal Da Unicamp - História Feita de Cousas Miúdas

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Universidade Estadual de Campinas – 24 de outubro a 6 de novembro de 2005

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Livro explora a interface entre história e literatura a partir de crônicas dos tempos de Machado de Assis

História feita de ‘cousas miúdas’


LUIZ SUGIMOTO sos literários empregados pelos es- Caráter literário – Leonardo tente em tais escritos, sem o que seu
sugimoto@reitoria.unicamp.br critores; “crônicas no plural”, que Pereira aponta a busca do caráter sentido pode se perder para o lei- Miudezas literárias
analisa a especialização temática literário das crônicas como um tom tor da posteridade”, diz.
achado de Assis, mestre do gênero, com o surgimento de comum em todos os capítulos do li- Pereira assina no livro um artigo

M também nesse gênero,


disse que as crônicas tra-
tam de “cousas doces, leves, sem
séries dedicadas especificamente à
política e ao esporte; e “crônicas sin-
gulares”, que mostra como outros
vro. “Por ser vista como um misto
de jornalismo e literatura, a crônica
foi frequentemente encarada como
sobre Coelho Netto, autor que a his-
tória literária deixou de lado, talvez
porque tenha feito da crônica um de
sangue nem lágrimas”. Com a mes- tipos de interlocução com o tempo um documento transparente, ca- seus principais meios de expressão.
ma elegância, o crítico Antonio proposto pela crônica - caso das ca- paz de retratar diretamente a rea- “Ao longo da carreira, ele criou inú-
Candido, inclusive quando se refe- ricaturas, correspondências e até lidade. Nosso esforço foi atentar meros narradores com diferentes
ria a esses escritos como um “gêne- letras de samba. para a elaboração narrativa exis- pseudônimos. O pseudônimo, na
ro menor”, ressaltava seu propó- crônica, muitas vezes é visto como
sito de informar, comentar e sobre- simples artifício para esconder a i-
tudo de divertir, insistindo “no pa- dentidade, mas Coelho Netto, na ver-
pel da simplicidade, brevidade e dade, construía personas literárias tão
Os professores Essas vizinhas, entre o jantar e a me-
graça da crônica”. Em que pesem as elaboradas quanto às de qualquer
Leonardo Affonso renda, sentaram-se à porta, para debicar
manifestações simpáticas, sobre a de Miranda Pereira
romance. Ele falava pela crônica, ob-
crônica prevaleceram definições viamente, mas pelo viés literário de os sucessos do dia. Provavelmente come-
(à esquerda) e çaram a lastimar-se do calor. Uma dizia
como “filha bastarda da arte lite- Sidney Chalhoub: um narrador ficcional”, observa.
rária”, “textos ligeiros e sem im- Sidney Chalhoub, por sua vez, a- que não pudera comer ao jantar, outra que
colaboração entre tinha a camisa mais ensopada do que as
portância a serem esquecidos nas dois grupos de nalisa no livro uma série curta de
ervas que comera. Passar das ervas às
páginas dos jornais velhos”, “um pesquisa Machado de Assis, intitulada A + B. plantações do morador fronteiro, e logo às
misto híbrido de jornalismo e lite- São sete crônicas totalmente em tropelias amatórias do dito morador, e ao
ratura” ou, na afirmação de José de diálogos, assinadas por um tal Jo- resto, era a cousa mais fácil, natural e pos-
Alencar, coisas surgidas “ao correr ão das Regras, cujo único papel é ou- sível do mundo. Eis a origem da crônica.
da pena”, sem obedecer a nenhum vir e reportar os comentários de A (Machado de Assis)
impulso criativo mais elevado. com B sobre as notícias da véspe-
Lidas por historiadores de hoje, as ra. “Machado transforma João das Quando me jogo numa arquibancada,
crônicas do período que vem de mea- Regras num expositor da indeter- nos apertões de um estádio cheio, ponho-
dos do século 19 e avança pelo sécu- minação que o leitor sente diante me a observar, a ver, a escutar. E vejo e
lo 20, resultaram no livro História em do que lê no jornal: ‘Aconteceu isto escuto muita coisa viva, vejo e escuto o
cousas miúdas (Editora da Unicamp), ontem, mas e agora? O que o depu- povo em plena criação.
organizado pelos professores Sid- tado vai fazer depois dessa denún- (José Lins do Rego)
ney Chalhoub, do Centro de Pesqui- cia?’. Seja qual for o protocolo nar-
sa em História Social da Cultura rativo que adote, o cronista tem O que sinto é morar numa terra onde só
(Cecult) do IFCH, Leonardo Affonso sempre de lidar com a indetermi- se pode conseguir alguma coisa com mui-
de Miranda Pereira, do Departa- nação dos acontecimentos, proble- to reclamo. Aqui tudo se resume nisto:
mento de Teoria Literária do IEL, e ma que não aflige os romancistas”, cada sujeito faz propaganda de si mesmo.
Margarida de Souza Neves, do De- compara. Um indivíduo que é burro fala em voz alta,
partamento de História da PUC- de papo, grita, diz asneiras e às vezes
Rio. Para os organizadores, que Variedade – São analisados no li- chega a fazer figura diante de outros que
pinçaram da história literária as vro textos de Justiniano José da Ro- são mais burros do que ele. Um animal que
tem algum talento afeta uma atitude ultra-
impressões acima, a crônica não é cha, importante político do século humana, quase divina – não conversa: pre-
um gênero simples: “Ao cronista 19 e autor de várias séries a serviço ga; não dá opinião sobre coisa nenhuma:
cabia a responsabilidade de bus- Primeiro effeito do aperto. Augmenta a vontade. Sapateado para disfarçar... dos gabinetes conservadores. O des- afirma, assevera, pontifica. É dogmático
car, dentre os acontecimentos so- conhecido Leo Pardo, cronista de e é intolerante. Não admite que se diga
ciais de maior relevo e divulgação, Porto Alegre, ganha o mesmo espaço nada que vá contrariar suas doutrinas. É
capazes de formar entre escritor e que as crônicas de Graciliano Ramos como os padres da Igreja. Enfim tudo re-
público códigos compartilhados e os Macaquitos na Bruzundanga de Li- clamo.
que viabilizassem a comunicação, ma Barreto. O capítulo Balas de esta-
temas que lhe permitissem discu- lo lembra uma série invariavelmente (Graciliano Ramos)
tir as questões de seu interesse”, es- associada a Machado de Assis, em- Precisamos nos convencer de que não
crevem na apresentação. bora fosse criação coletiva, reunin- há nenhum insulto em chamar-nos de ma-
Ainda na apresentação do livro, os do outros autores como Capistrano cacos. O macaco, segundo os zoologistas,
organizadores atribuem também a de Abreu e Ferreira de Araújo. “Ca- é um dos mais adiantados exemplares da
Machado de Assis uma reflexão “so- da literato criava uma personagem série animal; e há mesmo competências
bre as diferenças que separariam a que tinha suas peculiaridades, te- que o fazem, se não pai, pelo menos pri-
História, ‘uma bela castelã, muito mas favoritos e estilos próprios de mo do homem. Tão digno “totem” não nos
cheia de si’, da crônica, ‘uma boa abordagem. Por vezes, debatiam en- pode causar vergonha. (...) Não vejo mo-
velha patusca’ que ‘fareja todas as tre eles, numa espécie de fórum de tivos para zanga, nessa história dos argen-
cousas miúdas e graúdas, e põe tudo discussão pública. Era um experi- tinos chamar-nos de macacos, tanto mais
em pratos limpos’”. Os professores mento literário. Publicam-se crôni- que, nas nossas histórias populares, nós
acrescentam que “ao contrário do cas isoladas de Machado como Balas demonstramos muita simpatia por esse
historiador, supostamente superior de estalo, sem que se atente para o sen- simpático animal.
e desinteressado, ao cronista caberia tido muito diferente que elas adqui- (Lima Barreto)
Se vou á parede pago multa. Por piedade, cavalheiro, empreste-me o seu chapéu!...
interagir com as coisas de seu mun- rem se colocadas no contexto desta
do, meter-se onde não era chamado série coletiva”, critica.
para transformar o que via e vivia”. De sua parte, Leonardo Pereira destaca um estudo das crônicas es-
Sidney Chalhoub, em entrevista, portivas de José Lins do Rego, au-
informa que o livro é fruto da cola- tor reconhecido por seus roman-
boração entre dois grupos de pes- ces. “É uma parte de sua produção
quisa, da Unicamp e da PUC-Rio, completamente ignorada. No caso,
ambos financiados pelo Programa duplamente esquecida, pois além
de Núcleos de Excelência (Pronex) de serem crônicas, tratam de fute-
do CNPq. “Há vários trabalhos em bol, tema por tempos menospreza-
andamento nessa interface entre li- do pelos círculos letrados. Apesar
teratura e história. Eu e Leonardo disso, esses textos apresentam ain-
Pereira já tínhamos organizado uma da hoje grande interesse, por evi-
coletânea, História contada, exploran- denciarem a leitura do Brasil que
do a aproximação entre literatura e o autor fazia através do jogo. Fla-
história social, mas tratando de ro- menguista, ele estava distante de
mances e contos. Agora adotamos a qualquer imparcialidade, o que tor-
crônica, gênero que possui uma his- nava sua prosa particularmente di-
tória muito rica no Brasil. Desde mea- vertida”, comenta.
dos do século 19, quase todos os gran- Entre as Crônicas singulares, estão os
des literatos militaram na imprensa, desenhos de Raul Pederneiras (que
mantendo uma atividade regular co- reproduzimos nesta página), a corres-
mo cronistas”, explica. pondência de Luís da Câmara Cas-
Ler as crônicas a partir do ponto de cudo, relatos sobre a Amazônia e os
vista do historiador, segundo Cha- sambas de Sinhô. “José Barbosa da
lhoub, implicou na estratégia de bus- Silva, o Sinhô, narrava a vida dos
cá-las nos jornais onde foram origi- sambistas cariocas e das classes po-
nariamente publicadas e não em co- pulares do Rio no início do século 20.
letâneas posteriores. “A leitura da Era época em que os compositores
crônica fora do contexto cria de ime- pegavam o que se cantarolava nos
diato uma grande distância e um botequins e apenas surgia a noção de
estranhamento, por causa da dificul- autoria na música popular”, infor-
dade em entender os eventos aos ma Sidney Chalhoub. “Esses auto-
quais ela alude, geralmente corre- res, mesmo distantes do mundo das
latos à cobertura dos jornais”, obser- belas letras, tratavam a seu modo de
va. Em quase seiscentas páginas, His- interagir com o tempo a partir de sua
tória em cousas miúdas traz artigos de produção, utilizando códigos de es-
17 autores e está dividido em três – Então, não temos o direito de viver? crita próprios que devem ser deci-
partes: “crônicas em série”, que per- – Têm, sim, senhor... Agora, viver bem é outra cousa. frados pelo pesquisador”, comple-
mitiram o estudo de variados recur- menta Leonardo Pereira.

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