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UCHÔA, C. E. F. 2018 Art. Eugenio Coseriu No Quadro Da Linguística Moderna

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Eugenio Coseriu no quadro da linguística moderna

Eugenio Coseriu in the scenario of modern linguistics

Carlos Eduardo Falcão Uchôa


Universidade Federal Fluminense
cefuchoa@gmail.com

RESUMO:
Os fundamentos essenciais da ideologia linguística de Eugenio Coseriu. A repercussão
de sua obra no Brasil. A mudança que ela representou em relação à de Ferdinand de
Saussure. O amplo conceito de competência linguística em três níveis: o universal,
o histórico e o individual. O falar concreto como base para todas as manifestações
da linguagem. As obras mais representativas de Coseriu para o conhecimento de seu
pensar sobre a linguagem.

PALAVRAS-CHAVE:
Competência linguística; coerência teórica; atividade criadora.

ABSTRACT:
The essential foundations of Eugenio Coseriu’s linguistic ideology. The repercussion
of his work in Brazil and the changes it represented in relation to that of Ferdinand de
Saussure. The broad concept of linguistic competence at its three levels: the universal,
the historical and the individual one. Concrete talk as the basis for all manifestations
of language. The most representative Coseriu’s contributions for the knowledge of his
thought about language.

KEYWORDS:
Linguistic competence, theoretical coherence, creative activity.

Eugenio Coseriu (1921-2002), nascido na Romênia e falecido na Alema-


nha, é uma das figuras de maior expressão da Linguística moderna, reconhe-
cimento este que tem o respaldo de vários cientistas da linguagem de diversos
países. Sua obra, das mais densas, extensas e abrangentes no cenário dos estudos
do fenômeno linguístico no século XX, tem, desde o início de sua produção
acadêmica, nos anos de 1950, a marca de um pensador, que irá constituindo,

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com base em segura formação, haurida na leitura de grandes teóricos da filosofia


e da linguagem, desde os gregos, um corpo de doutrina caracterizado por rara
unidade de coerência teórica.
O eminente linguista mexicano Juan M. Lope Blanch, numa nota à edição
de Introducción a la Lingüística, publicada pela Universidad Autónoma do
México, em 1981, já reconhecia:

Treinta años después (a 1ª edição é de 1951), conserva todo su valor, cosa sin-
gular en nuestra época, proclive a improvisaciones y a las rectificaciones o los
repúdios conseguintes. Lo que há sido bien concebido y bien hecho mantiene su
lozanía a través de los años. Es el caso de esta obra. Por ello, el Centro de Lin-
güística Hispánica la reedita ahora, como testimonio de la validez de la doctrina
linguística expuesta por Eugenio Coseriu en su entonces ya madura juventud.
(COSERIU,1990)

Em 1993, o linguista espanhol Antonio Vilarnovo Caamaño, professor de


Teoría del discurso, na Universidade de Navarra, em obra, “Lógica y lenguaje
en Eugenio Coseriu”, fruto de minuciosa pesquisa sobre parte da obra do autor,
releva outra importante diretriz sobre o valor da produção intelectual coseriana:

Al mismo tempo, desde o el punto de vista de las relaciones entre la tradición


y la modernidade en la ciência, la obra de Coseriu pose ela difícil y preciosa
cualidad de presentar viejos problemas y viejas soluciones en relación con los
problemas y soluciones actuales, mostrando vínculos reales entre unos y otros.
(CAAMAÑO, 1993)

Não sem razão, pois, Coseriu tinha uma privilegiada competência para
uma visão bem fundamentada sobre o desenrolar das ideias linguísticas até
fins do século passado, uma visão abrangente dos vários saberes metalinguís-
ticos ou modos de focalizar a linguagem, combatendo sempre a dogmatização
deste saber, ou seja, tomar-se o que é apenas certo tipo de saber como o saber
mesmo sobre a linguagem, como paradigma da ciência. O linguista romeno
insistia, então, na complementariedade necessária desses saberes e, portanto,
no reconhecimento da validade de cada um deles.
O significativo prestígio acadêmico de Coseriu, reconhecimento inequí-
voco do valor dos cursos e palestras ministrados em numerosos países e da sua
produção incessante ao longo de cinquenta anos, espraiou-se mundialmente,

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tendo recebido o título de doutor honoris causa de mais de quarenta universi-


dades de tradição e peso acadêmico.
Suas publicações abrangem praticamente todas as áreas da investigação
linguística: a filosofia da linguagem, a teoria da linguagem, a metodologia da
linguagem, a fonologia, a morfologia, a sintaxe, a semântica, a lexicologia, a
gramática, a linguística do texto, a dialetologia, a sociolinguística, a estilística,
a teoria da tradução, a política linguística, a história linguística. Com a copiosa
exemplificação apresentada, revela-se um respeitável indo-europeísta e sobre-
tudo um seguro romanista.
De outra perspectiva, pode-se dizer com segurança que a sua obra cobre
os cinco núcleos fundamentais da linguística contemporânea: a competência,
a língua, o texto, a variação e a mudança, com importantes estudos sobre cada
um deles.
O próprio Coseriu confessa que o seu interesse pela Linguística nasceu do
seu interesse pelas línguas e suas respectivas literaturas. Sentia a necessidade de
ler os textos literários na língua em que originariamente foram escritos. Domi-
nava, falando muitas delas, as línguas românicas (manifestava-se fluentemente
em português), as eslavas, o inglês, o alemão, o grego, e iniciou-se no japonês.
Sua profícua obra (com mais de 50 livros) foi publicada em diversas
línguas, inclusive em japonês. A maior parte de seus escritos pode ser lida, o
texto original ou o traduzido, mormente em italiano, em alemão e em espanhol,
nesta última, acolhida, em muitos volumes integrantes da prestigiosa Biblioteca
Románica Hispánica, da Editorial Gredos.
O ideário linguístico de Coseriu, em sua abrangência, é pouco conhecido
no Brasil, apesar de sua longa permanência, de 1951 a 1962, na vizinha Mon-
tevidéu, onde formou um grupo expressivo de linguistas ao seu redor, com a
publicação de já esclarecedores ensaios. Tal permanência proporcionou-lhe
vir ao Brasil várias vezes para diversos eventos, quando teve a oportunidade
de entrar em contato com muitos filólogos e linguistas nossos como Mattoso
Câmara, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, Antenor Nascentes, entre outros.
Apesar de ainda, nas décadas dos anos 80 e 90, ter ministrado cursos e palestras
em várias universidades brasileiras, tornando-se doutor honoris causa da Uni-
versidade Federal Fluminense e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Na
primeira, contou com um pequeno grupo de professores a divulgar a sua obra,
a publicar sobre ela e a orientar dissertações e teses com base em fundamentos
de sua teoria. Apesar, enfim, de ter traduzidas oito de suas publicações para o
português.Uma delas, assinale-se, Lições de linguística geral (1980, traduzida

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do italiano por Evanildo Bechara) teve uma acolhida expressiva, embora longe
de poder representar um arcabouço mais global da ideologia linguística cose-
riana, pois a primeira edição dela data de 1973, Lezione di linguística generale,
quando ainda longe estava de ter desenvolvido cabalmente a sua abrangente
teoria sobre o universo verbal.
No nosso país, o famoso ensaio “Sistema, norma e fala”, ensaio que integra
a obra Teoria da linguagem e linguística geral (tradução brasileira de 1979 do
texto espanhol, de 1962) é que se tornou de fato bem conhecido. Nele Coseriu
desenvolveu a sua proposta teórica de norma nas preocupações da linguística
descritiva, a contrapor-se à concepção tradicional de norma identificada com
a prescrição gramatical. Este conceito de “norma normal” pertence hoje à
Linguística. Já aqui, distinguindo entre língua, sistema funcional, e norma,
sistema normal, Coseriu se afasta de Saussure, que opunha apenas a langue à
parole (fala, discurso).
O mestre genebrino não considerou o nível ainda abstrato da norma, que
vem a ser aquilo que se diz habitualmente numa comunidade, um modo de agir
verbal. Mas é a língua, como sistema funcional, que se apresenta como um sis-
tema de possibilidades, logo sistema na sua condição de saber criativo, que irá
permitir ao falante desrespeitar o uso fixado, particularmente quando o intento
expressivo se torna altamente elaborado na criação estética, promovendo, na
feliz expressão de Manoel de Barros, os versos “Porque eu não sou da infor-
mática/ eu sou da invencionática” (Barros, 2003, IX). Graças a tal conceito de
língua como sistema de possibilidades, tão bem fixado por Coseriu, fica mais
fundamentada a noção de que saber uma língua não é só saber o que se diz,
mas também saber o que possa ser dito.
Mas o ideário coseriano, por parte certamente de muitos estudiosos
brasileiros, parece ter ficado mais restrito, em geral, a apenas este ensaio, em
meio a uma produção vastíssima e abrangente de livros, conferências, artigos
e resenhas, como a de poucos linguistas.
Como explicar tal fato? perguntam muitos que se dedicam ao estudo da
linguagem entre nós. Houve várias razões, pensamos nós, que atuaram. Seus
primeiros livros entre nós, publicados pela editora Presença (RJ), são dos fins
da década de 70, quando a Linguística já se mostrava mais vivamente interes-
sada pela Sociolinguística e pelo estudo do texto, embora Marcuschi, em obra
de 1983, já se refira à publicação então recente de Coseriu em alemão sobre A
Linguística do Texto, de 1980. As obras do linguista romeno editadas entre nós
reuniam, cada uma delas, um conjunto de ensaios sobre diversos temas, ainda

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que muito importantes, de teoria e metodologia linguística, o que certamente não


atraía os leitores, a não ser para um ou outro destes ensaios. Por eles, todavia,
não se configurava ainda claramente as diretrizes centrais de seu pensamento. Só
a citada Lições de linguística geral dedicava uns poucos e abreviados capítulos
sobre alguns fundamentos essenciais do que ainda viria a se constituir numa
sólida teoria da linguagem. Obra, já o dissemos, que se tornou bem divulgada
em nosso meio acadêmico, mas muito esquematicamente estruturada no tocante
aos princípios essenciais da teoria de Coseriu.
A produção dele, intencionalmente direcionada a fundamentar uma teoria
abrangente sobre a linguagem verbal, ainda viria a contrapor-se ao gerativismo
então em voga, em seus sucessivos modelos. Certamente isto teve o seu peso no
considerar-se apressadamente o linguista romeno como mais um estruturalista
(já então fortemente repudiado entre nós), um mero continuador do ideário saus-
suriano, em suma, um linguista afastado das preocupações linguísticas do seu
tempo. Teve certo peso ainda, reconhecemos, poucos textos de Coseriu serem
publicados em inglês, que se tornara, em nosso país, a língua mais presente das
novas contribuições que iam surgindo sobre Línguística.
Iniciador, sem contestação, da Linguística moderna, Saussure, com o seu
Curso de linguística geral (1916), continuou, é certo, irradiando a importância
de suas elucubrações sobre a linguagem, mencionado por linguistas das mais
diferentes orientações teóricas.Cabia aos linguistas seus sucessores interpreta-
rem com rigor o seu pensamento, alterando ou sugerindo-lhe desenvolvimentos.
Decorridos mais de 100 anos da publicação do Curso, poucos linguistas terão
cumprido tal tarefa, como leitor atento, assíduo e perspicaz de Saussure quanto
Coseriu, que, em ensaio significativamente intitulado O meu Saussure (1997,
p.5), explicita:

Com tudo isto, por certo, muito me afastei de Ferdinand de Saussure; cheguei
até ao pólo oposto de Saussure do saussurianismo “ortodoxo” [entendido por
Coseriu como repetição, confirmação e aplicação do dito por Saussure]; porém,
conforme creio, também cheguei a isto em contato permanente com Saussure, e
não sem Saussure, e muito menos contra Saussure.

Não se negue, contudo, que Coseriu se apresenta como um estruturalista


– era a teoria dominante então nos de 1950 – em algumas de suas importantes
obras e ensaios, como os dos anos 50, a exemplo de “Forma y sustancia en los
sonidos del lenguaje” (1954) e “Sincronia, diacronia e historia. El problema de

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cambio linguístico” (1958). Amplia mesmo o campo descritivo estruturalista,


como em “Princípios de semántica general” (1976).
Coseriu, no entanto, evidencia, ao longo de sua extensa obra, o dever da
Linguística de ir além do estruturalismo, portanto, além de Saussure, propon-
do para tanto “uma linguística integral”, nela integrando tudo o que a teoria
estrutural exclui. Acerca dos limites do estruturalismo, escreveu o pertinente
ensaio “Au-delà du structuralisme” (1982).
De modo que com Coseriu se ultrapassa o estruturalismo, e mais, se dá
uma mudança muito significativa em relação à doutrina saussuriana, ao contrário
do que tantos estudiosos brasileiros parecem manifestar, deixando de ter como
objeto apenas o estudo da língua, sistema abstrato.
Defende ele então uma tricotomia primária fundamental no abordar o
falar como objeto de reflexão da linguagem, correspondente a três níveis lin-
guísticos: o nível universal do falar em geral, o nível histórico das línguas e o
nível individual de uma fala concreta. Claro que cada um destes três níveis só
têm autonomia teoricamente, no plano do entendimento, já que, no plano real,
são indissociáveis na fala.
Evidencia-se pois com Coseriu esta mudança diríamos radical mesmo em
relação ao ideário de Saussure: o conceito de competência linguística se amplia
consideravelmente, com o reconhecimento da existência dos três níveis do falar.
Passamos a contar então com uma linguística do falar (nível universal), uma
linguística da língua (nível histórico) e uma linguística da fala ou do discurso
(nível individual).
Ante tal tricotomia, Coseriu inverte um bem conhecido postulado saussu-
riano, qual seja, o de partir-se da língua, vale dizer, o de explicar o falar do ponto
de vista da língua. Para ele, ao contrário, deve-se sempre partir da atividade
verbal do falante para as outras formas de linguagem. A língua corresponde
a “momento historicamente objetivo do falar”. De modo que o falar concreto
será sempre tomado com referência para a linguagem, ou seja, o falante, ainda
que por intuição, é o ponto de partida para o desenvolvimento de estudos e
pesquisas sobre a linguagem.
O linguista romeno evidencia assim que o falar, o saber prático de que
os falantes fazem uso, em sua atividade cognoscitiva e comunicativa, não se
reduz apenas ao conhecimento das regras de uma língua determinada, mas
comporta três níveis de conhecimento manifestados sempre em cada ato de fala:
um nível universal, um nível histórico e um nível individual. Lembra Coseriu
(1980, p.91): “A linguagem é uma atividade humana universal que se realiza

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individualmente, mas sempre segundo técnicas historicamente determinadas


(“línguas”).”
Cada um destes três níveis comporta saberes, competências e conteúdos
distintos. Assim, no nível universal, tem-se o saber elocucional ou competência
linguística geral: é o saber falar em geral, o saber falar segundo os princípios que
se aplicam normalmente a todas as línguas, independente de como se apresentem
estruturadas. É o falar de acordo com os princípios universais do pensamento
e com o conhecimento geral que o homem tem das coisas do mundo. Logo, o
falar deve levar em conta não apenas um saber linguístico, mas também um
conhecimento do mundo.
No nível histórico tem-se o saber idiomático, ou competência linguística
particular: é o saber falar uma língua determinada, ter o domínio das regras
que permitem a produção e a compreensão de textos nesta língua, em qualquer
de suas variedades.
Por fim, no nível individual, já se tem o saber expressivo ou competência
textual: é o saber estruturar textos em situações comunicativas determinadas,
segundo os fatores gerais do falar: o falante, o destinatário, o objeto do que se
fala e a situação.
Estes três níveis do saber linguístico vão comportar diferentes tipos de
juízo sobre o falar ou o desempenho linguístico de qualquer falante. No nível
universal, a não conformidade com o saber elocucional corresponde ao juízo
de incongruente, como na desconexão semântica presente na frase “Há uma
grande diferença entre os candidatos à matrícula e as vagas na escola”, em que
a diferença a que se quer aludir na frase é evidentemente entre o número de
candidatos e o de vagas.
No nível histórico, a ocorrência de uma forma que não se reporta à fala
habitual de determinado segmento social de uma língua, a não conformidade,
pois, com certo saber idiomático, corresponde ao juízo de incorreto, como
a construção “As moça bonita”, no discurso de uma pessoa de quem não se
espera, pelo seu nível social, a falta de concordância nominal que abranja os
termos “moça” e “bonita”.
Por fim, no nível individual, a presença de forma ou expressão que venha
causar estranheza em certas circunstâncias, por envolver certa situação, certo
destinatário ou certo objeto sobre que se fala, em suma, a não conformidade
com o saber expressivo ou textual, corresponde ao juízo de inadequado. Em
“far-se-á o possível para ratificar a sua avaliação”, teremos uma construção
inadequada a qualquer situação de informalidade, ou de não monitoramento.

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Os três níveis que o amplo conceito coseriano de competência linguísti-


ca comporta vão se distinguir ainda quanto aos conteúdos. No plano do falar
se terá a designação, ou seja, a relação entre uma expressão linguística e um
“estado de coisas”, entre signo e “coisa” designada (1980, p.99), independente
da língua. A designação, através de um signo, não se identifica, pois, com a
“coisa” designada, que pertence ao mundo extralinguístico. Só mencionando,
por exemplo, o signo “laranja”, referente a determinada fruta, é que se tem
designação. A fruta em si é mera “coisa” do mundo real.
No plano histórico das línguas já se terá o significado: conteúdo de uma
expressão enquanto dado numa determinada língua. Assim, quem sabe português
entende, porque sabe português, que “azul-marinho” corresponde a um nome
de cor, que pode, através de outro significante, significar tal nome de cor em
outra língua, ou simplesmente não existir tal significante.
Por fim, no plano individual da fala ou discurso, se terá o sentido como
o conteúdo próprio de uma forma linguística, através da designação e do sig-
nificado. Será pelo sentido que o falante, em cada situação, expressa atitudes,
opiniões ou intenções. No dia a dia, as pessoas deixam de entender, tantas vezes,
o que se diz precisamente, porque não apreendem o sentido do que se diz. Daí
ser frequente a indagação “o que você está querendo dizer?”. Num enunciado
com propósito pilhérico, em que se fale “Lá vem o gordinho”, para se reportar
a uma pessoa muito magra, pode-se perceber com mais clareza a importância
da distinção entre significado e sentido. A pilhéria já é um sentido proporcio-
nado pelo texto. Na linguagem literária, caracterizada por um intento estético,
a noção de sentido adquire, então, relevância essencial para a compreensão dos
textos. Costuma-se então dizer que é uma linguagem essencialmente conotativa.
O estudo da tradução, campo de investigação linguística tão importante,
é um dos objetos da linguística do texto, e não da linguística das línguas. Só se
traduzem, na verdade, textos: este é o princípio básico de que depende qualquer
teoria da tradução. Nela, deve se expressar um mesmo conteúdo textual ( ou seja,
o sentido) em línguas diferentes. Uma oração como “Bons ventos o embalem”
que manifesta a função textual de desejo, através da categoria idiomática do
subjuntivo, ao ser traduzida para uma outra língua deve ter este sentido mantido,
não importa se através ou não da mesma categoria idiomática do português, em
que outros valores textuais ou sentidos – conselho, ordem, convite...– podem
também atualizar-se nos textos, na dependência dos contextos, como categorias
textuais. Coseriu escreveu um percuciente ensaio sobre a tradução: “Lo erróneo
y lo acertado en la teoría de la traducción” (1977, pp.214-230).

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Evidencia-se pois de todo que a fala deve ser considerada como um marco
fundamental da teoria linguística de Coseriu, que assim se afasta de Saussure,
que defendia, como arauto do estruturalismo, que o estudo da linguagem de-
veria partir da língua, sistema abstrato. Deste modo, reiteramos que o linguista
romeno não pode nem deve ficar conhecido na história da Linguística como
um estruturalista, a não ser em algumas obras iniciais.
Na profícua produção escrita de Coseriu, podemos, para uma compre-
ensão dos postulados essenciais de sua teoria sobre a linguagem, destacar os
seguintes textos: os ensaios “Sistema, norma y habla”, “Forma y sustancia en
los sonidos del linguaje” e “Determinación y entorno”, constantes da obra Te-
oría de lenguaje y lingüística general: cinco estudios, edição inicial de 1962;
Competencia lingüística: elementos de la teoria del hablar, de 1992 e Lingüís-
tica del texto: introducción hermenéutica del sentido, de 2007, sendo de 1980
a primeira edição em alemão.
Para Coseriu, o falante se apresenta como medida de todas as coisas,
reconhecendo, mesmo que por intuição, o falar em seus três níveis. Por outro
lado, destaca Coseriu (1980, p.92):

a linguagem se realiza, certamente, de acordo com saber adquirido como tal


(“aprendido”) e se apresenta sob forma de fatos objetivos ou “produzidos”, mas,
consoante célebre caracterização formulada em termos aristotélicos por W. von
Humboldt, não é essencialmente (...) coisa feita, “produto”, e sim (...) atividade
criadora (atividade que vai além de sua própria (...) “potencialidade”, isto é, além
da técnica “aprendida”).

Deste modo, dentro desta ordem de ideias, é que Coseriu, já em 1956,


publica, reeditado em 1962 pela Gredos, com mais quatro ensaios, um dos
seus textos fundamentais (“Determinación y entorno”) para a época em que
foi escrito e para a própria elaboração de sua teoria linguística, postulando uma
“linguística do falar” concernente, como vimos, ao nível universal da linguagem,
assentada em certos princípios bem fixados. Estes princípios são os seguintes:

1. Consideração da linguagem (ato linguístico) como ação;


2. consideração da situação comunicativa.

Portanto, para Coseriu, a linguagem é antes de tudo uma atividade


(enérgeia), um fazer livre e finalístico, e são os atos linguísticos concretos as

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manifestações linguísticas primeiras, de modo que estes modos de fazer se


convertem em modelos para um fazer linguístico posterior: neste sentido, os
atos linguísticos são o fundamento da língua e do saber linguístico.
A situação comunicativa também é estudada por Coseriu, que estabelece
uma classificação detalhada dos tipos de contextos e das operações de deter-
minação dos signos linguísticos (localização das coisas). Também leva ele em
conta o emissor, o receptor, visto que a essência da linguagem se dá no diálogo.
Assim é que este ensaio citado de Coseriu pode, como reconhece Caamaño
(1993, p.275-6), dar luzes ainda hoje para os estudos da pragmática, embora
siga sendo necessária uma linguística do falar.
É inconcebível, pois, profundamente redutora, a crítica que vê em Coseriu
um estruturalista. Crítica que revela o desconhecimento de suas mais impor-
tantes ideias, expostas ao longo sobretudo das obras que acima assinalamos. A
base de sua teoria linguística é a compreensão da linguagem como atividade
produtiva e, pois, criativa. Em outras palavras, como algo que se faz, e não
como algo feito e acabado, repetindo o aprendido. Considera ele mesmo um
erro estudar a linguagem pela perspectiva da língua; ao contrário, defende,
deve-se partir do falar concreto.
A língua, na verdade, se acha toda contida na fala, mas a fala não se acha
toda contida na língua. Os contextos coparticipam dos atos de fala, não da língua
como sistema. O valor básico, por exemplo, de um diminutivo em português
é o de “diminuição objetiva”, que metodologicamente irá poder explicar todos
os múltiplos valores expressivos do diminutivo ocorrentes nos textos: carinho,
ironia, desprezo... Portanto, a fala tem muito mais possibilidades do que a lín-
gua, pois nos comunicamos através de textos, ainda que constituídos de uma
só palavra, proferida então com um intento comunicativo próprio (sentido),
que lhe confere o status de texto. Os sentidos ou acepções textuais são sempre
então mais variáveis do que os significados da língua, possíveis estes por isso
mesmo de serem dicionarizados.
Na fala concreta, como vimos, leva-se em conta uma série de juízos de
conformidade segundo o que é congruente (com respeito ao falar em geral),
correto (com respeito a uma língua) ou adequado (com respeito a um texto con-
creto). Como o que é adequado é ser concernente a uma situação comunicativa
determinada, torna-se perfeitamente possível anular ou suspender as normas
do falar em geral e de certa língua para se atender ao propósito comunicativo-
-expressivo de um texto.Com a ressalva de Coseriu:

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Como es natural, la anulación sólo tiene lugar quando la infracción de la correc-


ción o la incongruencia es intencional, i.e. buscada o querida. Cuando alguien
no sabe como es lo congruente o lo correcto y habla, sin intención, incorrecta o
incongruentemente, siguen existindo la incorrección o la incongruencia. Ahora
bien, si son intencionales, siguen existindo, pero non sólo son toleradas sino
reconecidas precisamente como lo necessario. (1992, p.202-3)

Coseriu (1992, p. 144-5) apresenta um exemplo bem elucidativo sobre


a anulação da incongruência pela adequação textual, nomeando este caso de
anulação metalinguística. João diz, por qualquer razão, que “três vezes três
são dez”. Pedro, então, tendo ouvido o que João disse, comenta: “João disse
que três vezes três são dez”. Tal expressão é naturalmente incongruente, por
contrariar a realidade. Mas João efetivamente a empregou. Pedro, se quer
informar acerca da realidade do dizer de João, tem de dizer exatamente o que
João disse. Pedro utiliza metalinguisticamente a expressão incongruente para
dizer o mesmo. Sua informação é, sem dúvida congruente, já que reproduz um
fato como ele se passou, com o dizer verbal empregado.
O linguista romeno fala também numa anulação que chama de extravagante
da incongruência pela adequação textual, nos casos de uma afirmação inten-
cional ser absurda e incongruente, como quando alguém se vê ante um mundo
fantástico, em face da experiência quotidiana, ao ouvir algo incongruente em
nosso mundo, mas empregado intencionalmente, como “As árvores falam”.
Um exemplo já da anulação da incorreção pela adequação textual encon-
tramos em Manoel de Barros (2003, p. VIII), em que o escritor do Pantanal
mostra a consciência, a intenção, do recurso de que se valeu na fala da mãe:

Quando a Vó me recebeu de férias, ela me apresentou aos amigos. Este é meu


neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que voltei de ateu. Aquela
preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval:
aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências
verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição
deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez.

Uma leitura mais abrangente da profícua obra do linguista Eugenio Co-


seriu nos leva inequivocamente a considerar, antes de mais nada, o conceito
amplo atribuído por ele à competência linguística e, em relação a esta, ver o
falar como norma de todas as manifestações da linguagem, inclusive das lín-

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guas, manifestações históricas do falar. O estudo da língua será sempre, pois, o


estudo de um aspecto do falar, fundamental, já que o falar é sempre histórico,
é sempre falar uma língua. (1961, p.288)
O conceito amplo de competência linguística de Coseriu, nos três níveis
por ele reconhecidos, é estendido a vários campos do estudo da linguagem
verbal, como os da gramática (gramática geral, gramática descritiva e análise
gramatical) ou dos conteúdos semânticos (designação, significado e sentido).
Na verdade, a linguagem é concretamente falar, atividade livre, portanto
criadora, finalística. Cremos, assim, estar longe de um linguista estruturalista, se
se tiver da obra coseriana a leitura das obras fundamentais, assinaladas ao longo
deste presente texto, que irão marcar a sua ideologia linguística. Valhamo-nos
de suas palavras, no lúcido ensaio “El lenguaje y la compreensión del hombre
actual” (1977):

Como actividade livre, es, asimismo, el primer fenômeno de la libertad del hombre.
Como actividade intersubjetiva, es la base de lo social y la forma fundamental de
la historicidade del hombre, por lo cual es también instrumento de comunicación
y instrumento de la vida práctica. Y como aprehensión del mundo, es supesto y
condición de la interpretación del mundo.

Referências

Barros, Manoel de. Memórias inventadas. A infância. São Paulo: Planteta, 2003.
Caamaño, Antonio Vilarnovo. Lógica y linguaje en Eugenio Coseriu. Madrid:
Gredos, 1991.
Coseriu, Eugeniu. Teoría del linguaje y lingüistica general. Madrid: Gredos,
1962.
______. Sincronía, diacronía y historia. Madrid: Gredos, 1973.
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Nota do editor: articulista convidado.

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