Hebe Maria Mattos - Escravidão e Cidadania No Brasil Monárquico
Hebe Maria Mattos - Escravidão e Cidadania No Brasil Monárquico
Hebe Maria Mattos - Escravidão e Cidadania No Brasil Monárquico
Maria Mattos
Escravidão e Cidadania
no Brasil Monárquico
segunda edição
Sumário
Introdução
Escravidão e cidadania
Cronologia
Referências e fontes
Sugestões de leitura
Sobre a autora
Ilustrações
Créditos das ilustrações
1. Antônio Pereira Rebouças. Fotografia extraída de Lives in Between, de Leo
Spitzer.
2. Luiz Gama. Fotografia de Militão Augusto de Azevedo.
3. José do Patrocínio. Arquivo do Museu Imperial, Petrópolis.
4. André Rebouças. Arquivo do Museu Imperial, Petrópolis.
5. Soldados. Desenho de Debret.
6. Batismo de escravas. Desenho de Debret.
7. Escravo. Fotografia de Christiano Jr. Extraída de Escravos brasileiros do
século XIX na fotografia de Christiano Júnior, de P.C. de Azevedo e M.
Lissovsky.
8. Casal de negros livres ou libertos. Fotografia de Militão Augusto de Azevedo.
Extraída de O olhar europeu – o negro na iconografia brasileira do século XIX,
de Boris Kossoy e M. Tucci Carneiro.
Introdução
Este livro se propõe a discutir as relações entre identidade racial, escravidão e
cidadania no Brasil oitocentista. Pode parecer estranho, aos olhos de hoje,
relacionar termos aparentemente tão antagônicos quanto cidadania e escravidão,
mas, de fato, quando pela primeira vez se definiu uma “cidadania brasileira” e os
direitos a ela vinculados, quando da emancipação política do país em 1822, o
Brasil comportava uma das maiores populações escravas das Américas,
juntamente com a maior população livre afro-descendente do continente.
Naquela ocasião, quando o Brasil surgia como nação moderna no mundo
ocidental, a opção por uma monarquia constitucional de base liberal
teoricamente considerava todos os homens cidadãos livres e iguais. Apesar
disso, a instituição da escravidão permaneceu inalterada, garantida que era pelo
direito de propriedade reconhecido na nova Constituição. Freqüentemente esta
tem sido apontada como uma distorção típica do processo de emancipação
política do Brasil, que teria se feito sob a égide do Príncipe português e sob o
controle de proprietários de escravos. Nesse contexto, a manutenção da
escravidão se tornaria o principal limite do pensamento liberal no Brasil, na
chamada geração da Independência. Em algumas interpretações mais radicais, o
liberalismo no Brasil monárquico seria considerado até mesmo como uma
simples importação artificial de idéias européias que, para além da defesa do
livre comércio, pouco se adequavam à realidade brasileira.
Antes da experiência brasileira, entretanto, no processo de Independência
dos Estados Unidos, quando pela primeira vez a noção de cidadania foi definida
em termos práticos, na esteira das revoluções liberais, também ali ela se fez
estreitamente relacionada com a temática da escravidão, na medida em que eram
proprietários escravistas todos os principais líderes da Revolução Americana, de
George Washington a Thomas Jefferson. Com muita freqüência, a questão da
escravidão na Revolução Americana tende a ser apresentada como uma questão
menor, de caráter regional, antecipando-se para o século XVIII a divisão entre
sul e norte — que só se consolidaria nas primeiras décadas do século XIX. Na
verdade, na Virgínia, onde se reuniam as principais lideranças do processo,
concentrava-se também o principal núcleo dos interesses escravistas das treze
colônias, dedicado à produção de tabaco, e que tinha em George Washington,
proprietário e residente em uma plantation com mais de 300 escravos, um de
seus principais representantes. Para além disso, as colônias mais ao norte, se não
se configuravam em finais do século XVIII como sociedades baseadas no
trabalho escravo, podiam ser caracterizadas como sociedades “com escravos”,
mesmo que não tão dependentes dos trabalhos destes, e assim permaneceram por
algumas décadas após a independência.
Apesar disso, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América, de forma pioneira, declararia que todos os homens nasciam livres e
iguais e tinham direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Nesse
contexto, mesmo sem realizar uma abolição imediata da escravidão, nos anos
que se seguiram à guerra de independência, alargaram-se como nunca as
possibilidades de alforria nas antigas treze colônias; surgiram até mesmo
petições de escravos que, embasados na Declaração de Independência,
argumentavam diretamente por suas liberdades. Processos muito semelhantes
aos que ocorreram no Brasil nas décadas que se seguiram ao “grito do Ipiranga”,
como veremos a seguir.
É preciso, portanto, deixar claro que o conhecido dilema entre a assertiva de
que os homens nasciam livres e iguais reconhecida pelo liberalismo e a
manutenção da escravidão, sob a égide de Constituições liberais, não foi
específico do Brasil de 1822, mas se desenrolou em toda a Afro-América,
inclusive nas colônias escravistas inglesas e francesas, no contexto das chamadas
Revoluções Atlânticas.
Apesar da multiplicidade de processos específicos e da complexidade dos
conflitos em jogo, pode-se delinear uma tendência geral de equacionamento do
dilema nos novos países que se formavam sob a égide da ideologia liberal, a
partir de três encaminhamentos básicos: 1) a manutenção da escravidão com
base no direito de propriedade; 2) a proibição do tráfico africano; 3) a
emancipação progressiva através de leis que libertavam os nascituros (ventre-
livre), ou de experiências de transição regulada, sempre com indenização aos
proprietários. De um modo ou de outro, por tortuosos e diferentes caminhos,
após 1848 a escravidão havia sido abolida em praticamente toda a América.
Mantinha-se, ainda, apenas naquelas áreas que permaneciam sob o jugo colonial
espanhol (Cuba, Porto Rico), portanto fora da influência das teorias liberais, e
em dois países independentes: Brasil e Estados Unidos (apenas nos estados do
Sul). Assim, são o vigor e o dinamismo da economia escravista no Brasil e no
sul dos Estados Unidos durante a primeira metade do século XIX que emprestam
um caráter específico ao dilema liberal neste dois países, requerendo soluções
mais específicas.
Ainda no século XVIII, como governador da Virgínia, Thomas Jefferson
anteciparia a solução norte-americana para o problema. Propondo a abolição do
cativeiro na Virgínia (o que não se realizaria), ele defenderia, entretanto, que os
libertos deixassem o seu território, tendo em vista o “preconceito do homem
branco”, e “as ofensas que haviam sofrido”, mas também a “diferença de raça”,
ou seja, as “distinções reais que a própria natureza havia criado” e que fariam os
negros “menos afeitos ao pensamento criativo e à inovação”. Até então, as
diversas sociedades do chamado Antigo Regime, bem como o cristianismo
católico ou protestante, de uma maneira geral, com exceção de alguns grupos
protestantes específicos — como os quackers — não tinham maiores problemas
teóricos ou morais com a escravidão africana, que permitiria aos bárbaros
oriundos deste continente conhecerem a verdadeira religião. Acreditavam,
entretanto, na igualdade de todos perante o Criador. As sociedades do Antigo
Regime naturalizavam, como construções divinas, as desigualdades sociais, e
assim a montagem de sociedades escravistas nas Américas não chegava a
destoar deste quadro. Nesse contexto, apesar de as diferenças de cor e
características físicas reforçarem as marcas hierárquicas nas sociedades
escravocratas, elas não eram necessárias para justificar a existência da
escravidão.
A noção de raça e a da desigualdade entre elas são construções do
pensamento científico europeu e norte-americano surgidas apenas no século
XIX, mesmo que já aparecessem, de forma embrionária, em alguns escritos do
século XVIII, como as considerações de Thomas Jefferson. É a partir da
primeira metade do século XIX, especialmente nos Estados Unidos, que até
mesmo a origem comum da espécie humana passa a ser questionada
(poligenismo), num dilema que só seria superado com a adoção da perspectiva
da seleção natural (a partir da teoria darwinista, capaz de conciliar a idéia de uma
origem comum com uma extrema e seletiva diferenciação natural). Desde então,
durante todo o século XIX, a partir de uma argumentação biologizante, as teorias
raciais permitiriam novamente naturalizar algumas das desigualdades sociais —
aquelas que incidiam sobre grupos considerados racialmente inferiores —,
justificando a restrição dos direitos civis inerentes às novas concepções de
cidadania requeridas pelo liberalismo, bem como a nova expansão colonialista
européia sobre a África e a Ásia. O sucesso da noção de raça e das teorias raciais
nos Estados Unidos do segundo quartel do século XIX é absoluto, permitindo a
imposição de progressivas limitações aos direitos civis dos descendentes de
africanos livres, assim como restrições legais ao acesso à alforria nos estados
escravistas.
O que estou buscando demonstrar é que não apenas o conceito de raça é uma
construção do século XIX, mas também a “racialização” da justificativa da
escravidão americana. Ela se tornou a contrapartida possível à generalização de
uma concepção universalizante de direitos do cidadão em sociedades que não
reuniam condições políticas efetivas para realizá-la permitindo, em diversos
contextos, o estabelecimento de restrições aos direitos civis de determinados
grupos considerados racialmente inferiores, bem como a legitimação da própria
manutenção da escravidão no sul dos Estados Unidos, associada a um
progressivo fechamento das possibilidades de alforria. A noção de raça é assim
uma construção social do século XIX, estreitamente ligada, no continente
americano, às contradições entre os direitos civis e políticos inerentes à
cidadania estabelecida pelos novos estados liberais e o longo processo de
abolição do cativeiro.
Posso agora, portanto, complicar nossa questão inicial. Como já dissemos,
quando pela primeira vez se definiu uma “cidadania brasileira” — na ocasião da
emancipação política do país, em 1822 —, o Brasil comportava não apenas uma
das maiores populações escravas das Américas, mas também a maior população
de descendentes livres de africanos do continente. Raça e cidadania são duas
noções construídas de forma interligada no continente americano, ao longo do
século XIX, em estreita relação com o dilema teórico entre liberalismo e
escravidão. Diante deste fato, como as noções de raça e de cidadania foram
articuladas no Império brasileiro para dar conta daquelas duas realidades
demográficas essenciais da realidade do jovem país? É o que vamos tentar
acompanhar nas páginas que se seguem.
Escravidão e cidadania
Afirmar que a legitimação da escravidão moderna não se fez em bases raciais
não implica considerar que estigmas e distinções apoiados na ascendência
deixassem de estar presentes nas sociedades do Antigo Regime, em especial no
Império Português. O estatuto da pureza de sangue em Portugal — limitando o
acesso a cargos públicos, eclesiásticos e a títulos honoríficos aos chamados
cristãos velhos (famílias que já seriam católicas há pelo menos quatro gerações)
— remonta às Ordenações Afonsinas (1446-47), que excluíam os descendentes
de mouros e judeus. As Ordenações Manuelinas (1514-21) estenderiam as
restrições também aos descendentes de ciganos e indígenas, e as Ordenações
Filipinas (1603) acrescentariam à lista de exclusão os negros e mulatos. Em
1776, Pombal revogaria as restrições aos descendentes de judeus, mouros e
indígenas, mas, no tocante aos descendentes de africanos, as restrições só seriam
rompidas no Brasil pela Constituição de 1824, que pela primeira vez definiu os
direitos inerentes à cidadania brasileira.
O estatuto da pureza de sangue, apesar de sua base religiosa, construía uma
estigmatização baseada na ascendência, de caráter proto-racial — que,
entretanto, era usada não para justificar a escravidão, mas antes para garantir os
privilégios e a honra da nobreza, formada por cristãos velhos, no mundo dos
homenslivres. O Império Português, como sociedade do Antigo Regime,
entendia como desígnios divinos as hierarquias sociais, do direito divino do rei à
pureza de sangue da nobreza formada por cristãos velhos. Assim, todos os
súditos do rei tinham seu lugar social, e, nele, eram pelo rei protegidos. Fazer
parte do Império significava tornar-se católico através do batismo; nesse sentido,
a escravização dos bárbaros era bem vinda, se fosse o único caminho para servir
ao rei e à verdadeira Fé. Isto era válido para a escravidão africana ou para a
indígena legalizada através da guerra justa.
Tentemos exemplificar melhor este ponto. Por exemplo, o comércio de
escravos na África implicava negociações com uma elite de comerciantes
africanos, que, muitas vezes, especialmente no caso de Angola, eram convertidos
ao catolicismo, e súditos do Império Português. Seguindo a mesma lógica,
apenas o indígena que se negasse a abraçar a verdadeira Fé e a se tornar súdito
de Sua Majestade podia ser escravizado através da guerra justa, e assim
incorporado à Fé e ao Império. Portanto, o fato de ser índio ou africano por si só
não os fazia passíveis de serem escravizados, mas sim o fato de serem bárbaros e
ateus. Na lógica do Antigo Regime português, uma vez incorporados ao Império
e à Fé — através da escravidão —, deviam obedecer a seus senhores; servindo-
os bem, podiam também aspirar à alforria. Forros, ainda assim se manteriam
ligados a seus ex-senhores, que poderiam revogar a alforria concedida, alegando
ingratidão. Seus descendentes seriam súditos livres de Sua Majestade e também
por ela protegidos em seus direitos, porém a eles estaria vedado o acesso aos
altos cargos públicos e eclesiásticos, bem como às honrarias reservadas aos
cristãos velhos.
A força da associação que atualmente se faz entre a diáspora africana e a
escravidão americana é de tal monta que obscureceu quase que totalmente o
caráter não racial da origem da instituição, a importância da escravidão indígena
na América Portuguesa até o século XVIII, e o contínuo crescimento, no mesmo
período, de uma população livre de ascendência africana — sobre a qual se
manteve a mancha de sangue, mesmo após as chamadas reformas pombalinas.
Segundo estimativas da época, no final do período colonial, o Brasil contava
com cerca de 3.500.000 habitantes, dos quais 40% eram escravos. Dos restantes,
6% eram índios aldeados e os demais equanimemente classificados metade como
“brancos”, metade como “pardos”. Já na década de 1780, os homens livres
classificados como pardos eram estimados em cerca de 1/3 da população, grande
parte deles sendo possuidores de escravos. Para se ter uma medida de
comparação, por volta da mesma época, os descendentes de africanos livres não
somavam mais de 5% da população, seja nos Estados Unidos, seja no Caribe.
A própria construção da categoria “pardo” é típica do final do período
colonial e tem uma significação muito mais abrangente do que a noção de
“mulato” (este, sim, um termo de época diretamente ligado à mestiçagem) ou
mestiço que muitas vezes lhe é associada. Na verdade, durante todo o período
colonial, e mesmo até bem avançado o século XIX, os termos “negro” e “preto”
foram usados exclusivamente para designar escravos e forros. Em muitas áreas e
períodos, “preto” foi sinônimo de africano, e os índios escravizados eram
chamados de “negros da terra”. “Pardo” foi inicialmente utilizado para designar
a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a
ascendência européia de alguns deles, mas ampliou sua significação quando se
teve que dar conta de uma crescente população para a qual não mais era cabível
a classificação de “preto” ou de “crioulo”, na medida em que estas tendiam a
congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo. A emergência de
uma população livre de ascendência africana — não necessariamente mestiça,
mas necessariamente dissociada, já por algumas gerações, da experiência mais
direta do cativeiro — consolidou a categoria “pardo livre” como condição
lingüística necessária para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela
o estigma da escravidão, mas também sem que se perdesse a memória dela e das
restrições civis que implicava. Ou seja, a expressão “pardo livre” sinalizará para
a ascendência escrava africana, assim como a designação “cristão novo” antes
sinalizara para a ascendência judaica. Era, assim, condição de diferenciação em
relação à população escrava e liberta, e também de discriminação em relação à
população branca; era a própria expressão da mancha de sangue.
Por outro lado, grande parte dessa população livre era ou pretendia ser
possuidora de escravos. No Recôncavo Baiano, principal área exportadora do
final do período colonial, a maior parte dos escravos morava em propriedades de
menos de 20 cativos e cerca de 80% dos senhores possuíam menos de 10
escravos. Entre esses pequenos proprietários, a presença de des-cendentes de
africanos era comum, incluindo muitos libertos, eles próprios vindos da África.
Voltando, então, ao nosso problema central. Se, conforme desenvolvido na
introdução, a noção de raça foi uma construção social do século XIX —
estreitamente ligada, no continente americano, às contradições entre os direitos
civis e políticos inerentes à cidadania estabelecida pelos novos estados liberais e
o longo processo de abolição do cativeiro —, esta construção, no Brasil, se fará
especialmente problemática. Apesar de todo o preconceito “proto-racial” das
elites sociais e políticas do novo país — herança da colonização portuguesa —,
do ponto de vista dos interesses escravistas existentes no Brasil (em seu sentido
mais amplo), em grande parte compartilhados por boa parte da população de
pardos livres, a noção de raça não se apresentava como solução, mas antes como
problema.
Para que elucidemos melhor este ponto, é preciso delinear, primeiro, o
complexo jogo classificatório/ identitário que se abriria nas terras da antiga
América Portuguesa com a decisão da emancipação política. Especialmente,
desse processo surgiria o “brasileiro”, contrastado desde o início com a produção
concomitante de dois estrangeiros cotidianos: o português e o africano.
A Constituição de 1824 naturalizou todos os nascidos em Portugal que aqui
permaneceram após a independência e que tivessem aderido à “causa do Brasil”,
de modo que, durante pelo menos a primeira década após a declaração de
independência, brasileiros e portugueses foram identidades intercambiáveis e
profundamente carregadas de conteúdos políticos. Por outro lado, desde a
chamada Conjuração dos Alfaiates, em 1798, a igualdade entre pardos e brancos,
juntamente com o aumento do soldo das tropas, era apresentada como principal
reivindicação de caráter popular no bojo das agitações políticas de cunho liberal
do período. Nesse contexto, a causa do Brasil apareceria nas ruas do Rio de
Janeiro ou de Salvador fortemente marcada por uma linguagem racial, na qual a
origem africana era esgrimida como marca de discriminação pelo “partido
português e absolutista” e como signo da identidade brasileira pelo povo na ruas,
jogando “cabras” contra “caiados”, “brasileiros pardos” contra “branquinhos do
reino”.
Nos primeiros anos do período regencial, (que teve início em 1831, indo até
1840), proliferavam os pasquins exaltados, todos lutando pela igualdade de
direitos entre os cidadãos brasileiros independentemente da cor, garantida na
Constituição. Com títulos sugestivos — O Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O
Mulato, O Cabrito —, afirmavam que, no Brasil, “não há mais que escravos ou
cidadãos”, e, portanto, “todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis
e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”.
Com certeza, o enorme avanço da pesquisa histórica sobre padrões de
alforria, de posse de escravos e de mobilidade social no Brasil do final do
período colonial levou os pesquisadores a prestarem mais atenção a esses
indícios (há muito conhecidos mas pouco valorizados) como indicadores de um
real conflito em torno dos direitos recém-adquiridos pelos novos cidadãos
brasileiros de ascendência africana.
A Constituição Imperial de 1824, revogando finalmente o dispositivo
colonial da “mancha de sangue”, reconheceu os direitos civis de todos os
cidadãos brasileiros, diferenciando-os, apenas, do ponto de vista dos direitos
políticos, em função de suas posses. Para tanto, adotou o voto censitário em três
diferentes gradações: o cidadão passivo (sem renda suficiente para ter direito a
voto), o cidadão ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do
voto, o colégio de eleitores), e o cidadão ativo eleitor e elegível. Neste terceiro
nível, uma importante distinção não propriamente censitária se fazia, pois, além
das exigências de renda, impunha-se ao eleitor que tivesse nascido “ingênuo”,
isto é, não tivesse nascido escravo. Em outras palavras, se os descendentes dos
escravos libertos poderiam (se renda tivessem) exercer plenamente todos os
direitos políticos da jovem monarquia, os escravos nascidos no Brasil que
fossem alforriados não entrariam em pleno gozo dos direitos reconhecidos aos
cidadãos e súditos do Império do Brasil.
A manutenção da escravidão e a restrição legal do gozo pleno dos direitos
civis e políticos aos libertos tornavam o que hoje identificamos como
“discriminação racial” uma questão crucial na vida de amplas camadas das
populações urbanas e rurais do período. Apesar da igualdade de direitos civis
entre os cidadãos brasileiros reconhecida pela Constituição, os brasileiros não-
brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente
dependente do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade. Se
confundidos com cativos ou libertos, estariam automaticamente sob suspeita de
serem escravos fugidos — sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não
pudessem apresentar sua carta de alforria.
Muitos, entre estes, desenvolveram expectativas de que a situação se
modificasse a partir das lutas de independência, baseados, principalmente, nas
própriasposições sociais há muito efetivamente conquistadas. Nesse contexto, a
igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros livres, para além das
diferenças de cores, esteve em foco em todas as ocasiões em que a participação
popular se fez presente no processo de independência política, empolgando
expressivas lideranças das elites políticas liberais, em especial entre os
“exaltados”. Soma-se a esse caráter polêmico o fato de a proposta de
apagamento das diferenças entre os homens livres ter estado em questão durante
os primeiros anos da monarquia e por todo o período regencial, o que aponta,
também, para as dificuldades práticas de efetivá-lo.
No Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 1833, um pasquim liberal exaltado,
denominado O Mulato ou O Homem de Cor, afirmou: “Não sabemos o motivo
por que os brancos moderados nos hão declarado guerra. Há pouco lemos uma
circular em que se declara que as listas dos Cidadãos Brasileiros devem conter a
diferença de cor — e isto entre homens livres!”
Esta igualdade entre os cidadãos livres reivindicada pelas populações livres
“de cor” implicava, portanto e antes de mais nada, o silenciamento sobre a
própria cor, que permanecia como marca de discriminação herdada do Império
Português. Uma reivindicação de silenciamento que se fazia, entretanto, de
forma politizada e muitas vezes ameaçadora. Dessa maneira, do ponto de vista
dos interesses escravistas, a construção de qualquer justificativa “racializada” da
permanência da instituição da escravidão mostrava-se simplesmente explosiva.
A simples introdução da categoria “cor” nas primeiras experiências de
recenseamento da população imperial gerou protestos generalizados. Um
primeiro regulamento para instituição do registro civil de nascimento e óbito
gerou revoltas armadas em vários municípios do Nordeste, em especial em
Pernambuco, baseadas na crença de que o regulamento, apelidado de “Lei do
Cativeiro”, teria por objetivo “escravizar a gente de cor”.
Não é, portanto, por acaso, que as questões dos direitos dos homens livres e
da igualdade entre “todas as cores de cidadãos” tenham estado no centro de
todas as mobilizações populares do período. Já nos anos iniciais do Primeiro
Reinado, a questão da dessegregação das tropas de linha do Exército estaria na
ordem do dia. Após as lutas da independência, não mais se toleraria a tradição
portuguesa dos regimentos separados por “cores”: o dos “Henriques”, formado
por forros; o dos “pardos”, formado por homens livres “de cor”; e o dos
“brancos”.
Contudo, só podemos entender todas as implicações desse processo de luta
antidiscriminatória se percebermos que a igualdade que se reivindicava para os
“cidadãos livres” não implicava — seja do ponto de vista das reivindicações
populares, seja como corolário lógico de sua formulação com base no
pensamento liberal — qualquer proposição efetiva a favor da abolição imediata
da escravidão. Na verdade, esses direitos eram reivindicados e entendidos não de
maneira genérica, mas referidos diretamente a situações concretas, em contraste
com a condição da escravidão. É assim que, em 1838, durante a Balaiada, no
Maranhão, os líderes balaios podiam denunciar que cidadãos livres estavam
sendo tratados como escravos:
Agora pergunto eu (a quem não sei) como é que em um país livre e constitucional se atreve um João
Paulo a dar bofetadas e chibatadas em cidadãos livres; a castigar os cornetas de um Batalhão já extinto,
por faltas no serviço do seu quintal; a fazer moço de cavalhariça um companheiro d’armas em
menoscabo das leis militares; e finalmente a meter em tronco homens livres.
2. Luiz Gama
3. José do Patrocínio
4. André Rebouças
5. Homens negros trajando uniformes das tropas de linha e um homem branco vestindo uniforme da Guarda
Nacional. (Desenho de Debret)
6. Batismo de escravas africanas por um padre negro. (Desenho de Debret)
7. Apesar dos trajes elegantes, os pés descalços evidenciam a condição de escravo do retratado.
8. Casal de negros livres ou libertados em 1879.
1853 Decreto declarando que os africanos cujos serviços fossem arrematados por
particulares ficavam emancipados depois de 14 anos; Luís Gama, já de posse de
sua liberdade há alguns anos, torna-se amanuense da Secretaria de Polícia de São
Paulo.
1868 Luís Gama funda, com outros dissidentes liberais, o Club Radical
Paulistano, em protesto pela destituição de gabinete liberal emancipacionista.
1885 Aprovada a Lei Saraiva Cotegipe (28.9), que “regulava a extinção gradual
do elemento servil”, com a libertação — mediante cinco anos de serviço — dos
sexagenários; estabelecimento de um novo fundo de emancipação e nova
matrícula, com previsão de complementar a emancipação total em treze anos.
1887 Intensificação das fugas em massa dos escravos, inicialmente nas fazendas
paulistas e depois também nas demais áreas cafeeiras, freqüentemente
respondidas por alforrias coletivas por parte dos fazendeiros.
[1] As citações de Thomas Jefferson foram retiradas de suas Notes on the State
of Virginia, escritas em 1781-82, citadas em inglês e traduzidas para o português
por Larissa Moreira Viana, em As dimensões da cor; um estudo do olhar norte-
americano sobre as relações inter-étnicas. Rio de Janeiro, primeira metade do
século XIX. Dissertação de mestrado defendida no PPGH/UFF. Niterói, 1998,
p.13-4.
[3] Todos os dados quantitativos relativos à população livre e escrava, bem como
os relativos ao padrão de posse de escravos, no final do período colonial
brasileiro, foram retirados de Stuart B. Schwartz, Segredos internos. Engenhos e
escravos na sociedade colonial (São Paulo, Companhia das Letras, 1988) e de,
também do mesmo autor, “The formation of a colonial identity in Brazil”, in N.
Canny e A. Pagden (orgs.), Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800
(Princeton, Princeton UP, 1987) e “Brazilian ethnogenesis: mestiços, mamelucos
e pardos”, in Le Nouveau Monde. Paris, 1996.
[4], entre outras: As referências mais gerais sobre a utilização de uma linguagem
racial nas agitações de rua durante as lutas de independência foram retiradas de
Gladys Sabina Ribeiro, A liberdade em construção: identidade nacional e
conflitos lusitanos no Primeiro Reinado. Tese de doutoramento defendida no
PPGH/ Unicamp. Campinas, 1997; e de João José Reis, “O jogo duro do Dois de
Julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia” in J.J. Reis e E. Silva,
Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista (São Paulo,
Companhia das Letras, 1989).
[9] A citação de João Reis sobre a petição dos escravos da Cachoeira está em “O
jogo duro do Dois de Julho”, op.cit., p.93.
[12] Sobre Antônio Pereira Rebouças, além das autobiografias e dos discursos
parlamentares citados no texto, utilizei as referências sobre sua trajetória pessoal
e intelectual disponíveis em Leo Spitzer, Lives in Between. Assimilation and
Marginality in Austria, Brazil, West Africa 1780-1945 (Cambridge, Cambridge
UP, 1989) e em Keila Grinberg, “Em defesa da propriedade: Antônio Pereira
Rebouças e a escravidão”, AfroÁsia, UFBa, n.21/22, 1999.
• Para uma discussão sobre liberalismo, direitos civis e escravidão mais referida
ao dia-a-dia de livres e escravos no Brasil oitocentista, recomendo, entre outros,
Sidney Chalhoub, Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte (São Paulo, Companhia das Letras, 1990); Hebe Maria
Mattos, Das cores do silêncio. Significados da liberdade no sudeste escravista.
Brasil, século XIX (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998); Keila Grinberg,
Liberata. A lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do
Rio de Janeiro no século XIX (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994); e Elciene
Azevedo, Orfeu de carapinha. A trajetória de Luís Gama na imperial cidade de
São Paulo (Campinas, Unicamp, 1999).
Sou formada em história pela UFF. Meu primeiro livro, Ao sul da história:
lavradores pobres na crise do trabalho escravo, baseado em minha dissertação
de mestrado, foi publicado em 1987 (Brasiliense), recebendo, dois anos depois,
uma versão resumida em língua inglesa. Desde então, continuo meu trabalho de
pesquisa como historiadora do Departamento de História da UFF, no qual
também leciono. Publiquei diversos livros e artigos sobre história social do
Brasil oitocentista, dentre os quais destaco Resgate: uma janela para o
oitocentos, organizado com Eduardo Schnoor (TopBooks, 1985), e Das cores do
silêncio: significados da liberdade no sudeste escravista, primeiro lugar do
Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, em 1993 (Arquivo Nacional, 1995; Nova
Fronteira, 1998). Nos últimos anos, meus interesses de pesquisa têm tido como
balizas mais gerais o estudo das relações entre memória, identidade, escravidão e
cidadania no Brasil, em duas principais frentes de trabalho: os arquivos orais
com entrevistas de descendentes de escravos e a trajetória de vida de Antônio
Pereira Rebouças, que em grande medida inspirou este livro.
Copyright © 2000, Hebe Maria Mattos
ISBN: 978-85-378-0629-6
"A base intelectual por trás das imagens é transmitida com uma erudição
encantadora. Não há nada mais subversivo que um mapa." Spectator
"Leitura absorvente.
Filha de Henrique VIII e Ana Bolena, Elizabeth I foi a quinta e última monarca
da dinastia Tudor e a maior governante da história da Inglaterra, que sob seu
comando se tornou a grande potência política, econômica e cultural do Ocidente
no século XVI. Seu reinado durou 45 anos e sua trajetória, lendária, está envolta
em drama, escândalos e intrigas.
Escrita pela jornalista e romancista inglesa Lisa Hilton, essa biografia apresenta
um novo olhar sobre a Rainha Virgem e é uma das mais relevantes contribuições
ao estudo do tema nos últimos dez anos. Apoiada em novas pesquisas, oferece
uma perspectiva inédita e original da vida pessoal da monarca e de como ela
governou para transformar a Inglaterra de reino em "Estado".
Aliando prosa envolvente e rigor acadêmico, a autora recria com vivacidade não
só o cenário da era elisabetana como também o complexo caráter da soberana,
mapeando sua jornada desde suas origens e infância - rebaixada de bebê real à
filha ilegítima após a decapitação da mãe até seus últimos dias.
"Ao mesmo tempo que analisa com erudição os ideais renascentistas e a política
elisabetana, Lisa Hilton concede à história toda a sensualidade esperada de um
livro sobre os Tudor." The Independent