Stephanie Borges - Poemas
Stephanie Borges - Poemas
Stephanie Borges - Poemas
ORG/QUATRO-POEMAS-DE-STEPHANIE-BORGES/
27 DE MARÇO DE 2019
POESIA, RUÍDO
***
programação
para Bruna Khalil Othero
a próxima temporada
no congresso, no senado
é um walking dead
a mamata
está cancelada
só que não
como a cantora pop
saída do subúrbio
se apropriando da estética
ela só quer pink money
preenchimento rinoplastia
não tem empatia
o silêncio é ensurdecedor
sashay away
a eliminação não é justa
não acredito
é ruim, mas eu gosto
me julguem sem defeitos
porque eu mereci
se você não é atacada
pelos robôs
pela direita
pela esquerda
é privilegiada, sim
essa novela é péssima
nada acontece, mal tem pretos
recicla um clichê nos anos 90
sdds de quando vampiros
todo dia na TV não tinham
relação com a realidade
seres decrépitos com sede
de sangue
ninguém merece
essa reprise
são mais de 120 casos
de feminicídio em dois meses
os suspeitos que estão soltos
são todos cidadãos de bem
as instituições funcionam normalmente
burocráticas, moralistas
só derrota
ninguém quer fazer a autocrítica
ainda bem que esse ano
teremos o final daquela série
dos dragões com guerras e tronos
dedo no cu e gritaria
todo mundo morre
credo, que delícia
ledo engano
há um romantismo em chegar
pelo mar e no entanto
essas terras enganam
desde o princípio portugueses
tomaram a baía
por outra coisa
seu nome nasce
num equívoco, eu rio
e quem recebe a saudação
do sal
no ar
as ondas
intui movimento
e não o peso
das entranhas concretadas
artérias de fluxo denso
nas quais se esvaem vidas,
horas inteiras dias
de ponto em ponto, trocas
de ramal de linha
horas com as quais
é impossível contar
e o que fariam se sobrassem?
há um desejo de ingenuidade
em te acreditar partida e repetir
as desgastadas manchetes
maravilhosas marchinhas
certeiras no caos acolhido
mas dissonantes no sacolejo
dos corpos se batendo
pegajosos exaustos a cada freada
próxima parada,
o vão
a antipaisagem
olhos na tela
enquanto passam
botecos, escolas,
salões, academias
escorrem as horas
os dias, talvez
o que una tuas pontas
seja o sal do suor
eu rio,
mas é de nervoso
sílfide
entre o céu e o mar
a ilusão da linha
faz com que acreditem
noutro lugar, na borda do abismo
no chão, seus riscos separam
quem pode e não, onde
o preço é mais alto, qual
o lado da escassez, do outro
como se o limite
não fosse passagem
sua imaginação traçada
com sangue na terra
o território
seguro, soberano
cada vez mais débil,
imóvel de tanto medo
Familiar
minha avó perdeu sua melhor amiga
sua madrinha de casamento, há 53 anos
uma amiga que a viu casar ter filhos
lamentar ter se casado,
viu seus filhos e os de minha avó
saírem da cidade, de casa, do armário
voltarem pro subúrbio, atravessarem o túnel
depois de casados e terem crianças
bem diferentes de seus filhos e filhas
netos que ainda não sabemos quem serão,
minha avó e sua amiga perderam suas mães irmãos
ao longo desses 53 anos também se foram
outras amigas com quem organizavam festas
de ano novo, acampamentos e férias na praia
barracas isopores crianças
seus maridos são compadres,
grandes amigos, sobreviveram
a chegada ao Rio de Janeiro,
à ditadura militar, às crises econômicas,
angioplastias, parkinson, quimioterapia
resistiram ao tédio trazido pela aposentadoria
a homens que trabalham desde a infância
e vivem mais
seus pais não envelheceram o bastante
para uma amizade durar tanto
53 anos e a família cresceu e
madureira, colégio, irajá,
cascadura, méier, copacabana,
vila da penha, jardim botânico,
ilha do govenador
quem nos vê não diria,
tudo começou com uma lavadeira,
melhor nunca esquecer,
diz a irmã da minha avó
de quem ela nem é próxima,
o quanto era de sua amiga,
mas cuidou das sobrinhas, uma delas
a primeira da família a fazer faculdade
uma médica quando todas outras antes
só terminaram o primário, a primogênita
a abrir caminho para professoras,
a jornalista, a historiadora, a veterinária
só agora os meninos estudam,
os filhos dos filhos
de minha avó vão para universidade
quando seus pais nessa idade
se preocupavam em ganhar a vida
minha avó e sua amiga viram
as mulheres que vieram depois
e a maior facilidade pra estudar,
ganhar dinheiro, dar, separar
criar filhos continua difícil
talvez hoje em dia mais ainda, minha filha
dizia a amiga de minha avó,
que já era bisa, aconselhando a não ter pressa
enquanto a vó perguntava
e o bebê?
ainda há tempo
o tempo das mães é sempre outro
53 anos e as duas amigas conversavam
sobre filhos, suas falhas
não ensinaram, eles não têm juízo
mas crises de meia idade, dívidas,
filhos tardios enchendo a casa
de som outra vez aos domingos
enquanto se juntam, seus maridos
se espantam com a própria idade
quero morrer antes dela, não agora
repete meu avô e seu compadre aconselha
não pense nisso.
no enterro, meu avô chorava
não só pela madrinha perdida
mas com medo, o mundo mudando
aconteceu a seu amigo o seu maior temor,
mas minha avó havia perdido sua melhor amiga
e não a vimos chorar, se alguém viu nem comentou
sentimos o luto
em todas as coisas não ditas
que uma boa mulher não deveria confessar,
talvez divididas apenas
com quem é possível compartilhar
meio século, a nostalgia, as verdades
cruéis e duras de se articular
as jovens irão descobrir,
e torcer que não venha o dia em que verão
o mundo desconfigurado pela perda
os pais irmãos o genro
desaparecerem, a possibilidade de futuro
mais curta, as ausências acumuladas,
e um outro silêncio
não o do entendimento
a dispensar palavras
quando se tem uma boa amiga