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TABULEIRO DE V. 16
N. 01
LETRAS PPGEL
ISSN 2176-5782
jan.
jun.
2022
Revista Tabuleiro de Letras, Salvador, v. 16, n. 01, p. 1-209, jan./jun. 2022
ISSN 2176-5782
Homepage: https://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/index
E-mail: tabuleirodeletras@gmail.com
DOSSIÊ TEMÁTICO
9 Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak
gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!
Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu
23 A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no
mundo
Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima
34 Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá
Bárbara Soeiro
45 A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação
Francisco Bezerra dos Santos
59 O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre
narrativas e as interações entre humanos e mais-que-humanos nas
redes sociais
Michelly Silva Machado
artigos
73 Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência
didática na perspectiva da pedagogia culturalmente sensível
Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade
Souza
94 Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das
pessoas negras no Brasil contemporâneo
Jaqueline dos Santos Cunha
105 Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o
imperfeito” de Carla Luma
Isabelle Maria Soares
116 Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral
Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa
127 Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a
retomada anafórica de terceira pessoa
Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira
146 Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua
Inglesa
Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira
resenhas
198 La enfermedad como heterotopía. Un lugar de aceptación de la culpa y
el fracaso en la novela Sistema nervioso (2018) de la escritora chilena
Lina Meruane
Mireya Alejandra Ramos Jiménez
203 Desexplicações e lampejos de Francisco Bento da Silva sobre o Acre
Tayson Ribeiro Teles
Apresentação
Vozes da Floresta: literaturas e cultu-
ras indígenas
Os povos indígenas ainda sofrem com uma dos pela cultura branca ocidental em dire-
visão colonial e estereotipada construída ção às essas múltiplas culturas, para que se
historicamente acerca de suas culturas e possa entender o pleno direito à escrita, à
cristalizada no imaginário brasileiro. Da- mídia e às artes. Assim, esses grupos pode-
niel Munduruku, em Banquete dos deuses, rão estabelecer uma estratégia decolonial,
afirma que “aprendemos nos livros que o ao construírem literaturas, mídias e artes
índio vive em função do colonizador e é tra- indígenas marcadas pela autonomia e pro-
tado sempre no passado, não lhe restando tagonismo, indicando que não se mantêm
nenhum papel relevante na sociedade con- estáticos no tempo e podem desempenhar
temporânea” (MUNDURUKU, 1999, p.24). o papel fundamental de diversificar as po-
Esse olhar ocidentalizado de parte da so- tencialidades desses campos na contempo-
ciedade, fruto do pensamento colonial, ex- raneidade. Em vista dessas perspectivas, a
pressa uma compreensão objetificada so- Revista Tabuleiro de Letras, consideran-
bre os povos indígenas, não os enxergando do a importância da visibilização dos estu-
em sua subjetividade, cultura e capacidade dos e das pesquisas sobre as culturas dos
de transformação. Nas comunidades, a re- povos originários e, de os indígenas promo-
construção e a renovação das culturas e verem sua autoexpressão, disponibiliza aos
das identidades indígenas ocorrem a partir leitores e às leitoras, neste número, o dos-
de estratégias utilizadas para potencializar siê Vozes da Floresta: literaturas e culturas
suas falas, fazendo-as adquirir um alcance indígenas trazendo investigações acerca de
mais amplo entre os não indígenas. Deve-se produções literárias, artísticas e de conteú-
levar em consideração que a comunicação dos nas plataformas digitais. No artigo “Os
tem sido um ato vital para os povos originá- Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ,
rios, ao perpassar diversas de suas práticas Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado,
cotidianas, desde o contato com os encan- o Curupira vai te pegar!”, Antônio Rogério
tados, passando pela criação de grafismos dos Santos, Ananda Machado e Valtenir Soa-
em cestarias, em pinturas corporais, o uso res de Abreu analisam, inventariam denomi-
de plumagens, dentre outras manifestações. nações, capacidades de ação, de interpreta-
Nesse sentido, as mutações comunicacio- ção e de comparação entre obras de autoria
nais contemporâneas impactam a autoex- indígena Apurinã, Tenentehara, Kambeba,
pressão e autorrepresentação indígena, que Huni Kuĩ, Maraguá e Ticuna, acerca de seres
busca na tecnologia da escrita, nas mídias e encantados indígenas, ressaltando o poder
nas diferentes linguagens novos circuitos de regulador do Curupira como ser protetor da
disseminação de suas vozes. É necessário, floresta e da vida, buscando assim decoloni-
pois, elaborar outras imagens sobre esses zar os estudos de literatura e desconstruir
povos, questionando a visão etnocêntrica, estereótipos construídos; em “A poética de
os estereótipos e os apagamentos perpetra- Auritha Tabajara: autoficção em Coração
na aldeia, pés no mundo”, Paulo Marcelino por um locutor Kayapó, Okreãjti Metukti-
dos Santos e Elizabeth Gonzaga de Lima re. O propósito de compartilhar um dossiê
examinam os processos autoficcionais ela- crítico, diverso, reunindo múltiplos olhares
borados por Auritha Tabajara, cordelista, acerca de diferentes etnias indígenas é pos-
mulher Tabajara, nordestina, LGBTQIA+, em sibilitar que cada leitor escute as vozes da
Coração na Aldeia, pés no Mundo, buscando floresta e compreenda o diálogo que os in-
demonstrar de que maneira a escritora se dígenas por meio da escrita, da mídia e da
transforma em personagem e em objeto de arte estabelece com a contemporaneidade,
um discurso construído por um eu textual, a fim de sobreviver à necropolítica que vem
biográfico e ficcional a partir do cordel; no sendo perpetrada no Brasil. Alguns fatos re-
texto “Cordilheira de amora II: Detritos de centes têm evidenciado a violência sofrida
infância Guarani-Kaiowá”, Bárbara Soeiro por essas comunidades e por ativistas que
discute “Cordilheira de amora II”, curta-me- defendem a vida indígena e a preservação
tragem documental produzido pela cineasta das florestas. Entre abril e maio de 2022, a
Jamille Fortunato (2015), gravado na aldeia situação do garimpo ilegal nas terras Yano-
Amambai, no Mato Grosso do Sul, que acom- mami se agravou. Algumas pessoas desapa-
panha a garotinha Guarani Kaiowá Cariane receram – o que provocou a criação da cam-
Martins, se debruçando sobre o saber in- panha virtual “#OndeEstãoOsYanomami” –,
fantil simultaneamente associado ao saber lideranças foram ameaçadas e o processo de
indígena, ambos saberes tidos como “meno- genocídio desse povo foi intensificado. E o
res” frente a um sistema-mundo moderno mês de junho de 2022 atesta a barbárie, a
que privilegia o conhecimento europeu; no opressão a que as populações indígenas de
artigo, “A literatura indígena dos Maraguá: norte a sul do país vêm sendo submetidas,
da produção à publicação”, Francisco Bezer- em especial, os povos isolados do Vale do
ra dos Santos apresenta considerações que Javari, na Amazônia, quando no último dia
abrangem o processo de produção de nar- 05, dois defensores da garantia dos direitos
rativas oriundas da oralidade e dos saberes dessas etnias foram cruelmente assassina-
ancestrais, a publicação e o mapeamento da dos, o indigenista Bruno Pereira e o jornalis-
produção literária dos Maraguá, etnia que se ta Dom Philips. Diante desse contexto, mais
configura na atualidade como a maior pro- do que nunca, as vozes da floresta precisam
dutora de literatura indígena no Estado do ser alçadas e ouvidas, pois resistir continua
Amazonas, com cinco escritores em atuação; sendo o modo de vida nestes cinco séculos!
em “O pensamento das moscas e o Júpiter
para os kayapó: refletindo sobre narrativas
e as interações entre humanos e mais-que Elizabeth Gonzaga de Lima
-humanos nas redes sociais”, Michelly Silva Randra Kevelyn Barbosa Barros
Machado analisa, por meio da etnografia Organizadoras
digital, duas narrativas pertencentes ao uni-
verso textual dos Kayapó, que versam sobre
as interações entre humanos e mais-que-hu-
manos, publicadas na plataforma Facebook
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Os/as Curupiras vão te pegar neste texto busca divulgar as múltiplas possi-
bilidades de narrar e de existir. A análise pretende contribuir para decoloni-
zar os estudos de literatura e desconstruir estereótipos atribuídos aos seres
encantados indígenas. Há enfoque ecológico, a partir das ideias de Krenak
(2019), na direção de ressaltar o poder regulador do Curupira como ser pro-
tetor da floresta e da vida. O estudo faz um inventário das denominações,
capacidades de ação, de interpretação e de comparação entre obras de au-
toria indígena Apurinã, Tenentehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá e Ticuna.
Essas versões foram ouvidas pelos autores, por companheiros de pesquisa,
conhecidas através de entrevistas ou de livros publicados por autores in-
dígenas. Os textos de autoria não indígena mencionados aparecem apenas
como contraponto, na direção de evidenciar algumas das diferentes formas
de apropriação e transformação dessas literaturas.
Palavras-chave: Curupira; Literaturas Indígenas; Ecologia.
Abstract:
The Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Kaxinawá, Maraguá,
Tikuna and Krenak shout: watch out, Curupira will get
you!
* Mestrando em Artes Cênicas (PPGA-UFAC). Professor pela Secretaria de Estado de Educação e Qualidade
do Ensino do Amazonas. SEDUC-AM. http://lattes.cnpq.br/5386378923127107. E-mail: antoniorogeriodos-
santos1972@gmail.com
** Doutora em História Social pela UFRJ. Professora do Curso Gestão Territorial Indígena no Instituto Insiki-
ran- UFRR, com ênfase em Patrimônio Indígena. http://lattes.cnpq.br/1012133793187374. E-mail: machado.
ananda@gmail.com
*** Doutor em Linguística Aplicada pelo Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Servidor efetivo da Universidade Federal de Roraima, no cargo de Téc-
nico em Assuntos educacionais. http://lattes.cnpq.br/4380204341268070. E-mail: valtenir.abreu@ufrr.br
Curupiras will catch you in this text that seeks to disclose these multiple pos-
sibilities of narrating and existing. It is an analysis that intends to decolonize
literature studies and contribute to the deconstruction of stereotypes at-
tributed to indigenous enchanted beings. There is an ecological focus, based
on the ideas of Krenak (2019), in the direction of highlighting the regulatory
power of the Curupira as a protector of the forest and life. He would invent
denominations, capacities of action, of interpretation and of comparison
between works of indigenous authorship Apurinã, Tenentehara, Kambeba,
Huni Kuĩ, Maraguá and Ticuna. These versions were heard by the authors, by
fellow researchers, known through interviews or books published by indig-
enous authors. The texts by non-indigenous authors mentioned appear only
as a counterpoint, in the direction of highlighting some of the different forms
of appropriation and transformation of these literatures.
Keywords: Curupira; Indigenous Literatures; Ecology.
Introdução
O principal objetivo deste texto é descorti- As façanhas do Curupira em terras brasi-
nar a figura do Curupira, figura encantada leiras estão descritas no Dicionário do folclo-
bastante presente no contexto das narrati- re brasileiro, onde Câmara Cascudo relata o
vas indígenas brasileiras. Para muitos povos aparecimento do Curupira e cita referências
indígenas, o Curupira regula as caças e de- como José de Anchieta, que faz uma descri-
fende as matas, mas em alguns casos é visto ção surpreendente:
de fora das comunidades de forma pejora- É coisa sabida e pela boca de todos corre que
tiva e estereotipada. Buscamos ultrapassar há certos demônios e que os brasis chamam
visões de folclore que reduzam idiossin- Curupira, que acometem aos índios muitas
crasias étnicas e, com os indígenas e com o vezes no mato, dão-lhe de açoites, machu-
Curupira, contribuir na proteção da floresta. cam-nos e matam-nos. São testemunhas dis-
to os nossos irmãos, que viram algumas ve-
Para Julie Dorrico (2020), o território in-
zes os mortos por eles. Por isso, costumam
dígena: os índios deixar em certo caminho, que por
é nossa casa, e os exploradores dos recur- ásperas brenhas vai ter ao interior das ter-
sos da natureza querem destruí-la. A visão ras, no cume da mais alta montanha, quando
moderna pôs os encantados como traiçoei- por cá passam, penas de aves, abanadores,
ros, maldosos, assassinos. As narrativas in- flechas e outras coisas semelhantes, como
dígenas apresentam outra perspectiva, da uma espécie de oblação, rogando fervorosa-
relação orgânica do humano com a nature- mente aos curupiras que não lhes façam mal
za, contrária ao consumismo desenfreado, (ANCHIETA apud CASCUDO, 1954, p.332).
contrária a tudo que destrói sem pensar no A demonização do Curupira é algo que
amanhã (DORRICO, 2020, p. 20).
contrasta com as perspectivas indígenas, à
Essa visão da escritora indígena Macuxi medida que não se estabelece uma ruptura
aponta na direção que desejamos pensar o abrupta com a forma de viver e pensar do
Curupira, mas infelizmente a imposição da modelo eurocentrado. No decorrer dessa
matriz colonizadora que surgiu com a in- pesquisa, ouvimos lideranças indígenas que
vasão portuguesa se estende até os dias de corroboram no sentido de uma formação
hoje. intelectual e sensível. Para quem tem inte-
resse em encontrar com esse personagem, Curupira, sabendo que era mentira, propôs
vamos apresentá-lo neste artigo. um trato. – Ô Zé, você quer virar um caçador
O texto inicia por uma narrativa Apurinã dos bons. Daqueles que pega, anta, veado e
queixada num só dia? Mais que depressa o
de Boca do Acre – Amazonas, seguindo para
Zé falou: - quero sim, já pensando nas mal-
um diálogo entre um Curupira Tenentehara dades que podia fazer, e melhor ainda com
das aldeias Areal e Jeju, no Pará, com o boi permissão, do zelador da mata. O Curupira
Garantido de Parintins – Amazonas. Depois, disse, então: – tá arranjado, só que tem um
visitamos uma versão da comunidade Nova porém, você tem que me dar a sua filha mais
Olinda, Terra indígena do povo Huni Kuĩ nova em casamento. Aí o Zé das Chagas fi-
(Kaxinawá), no Acre. Na sequência, o tex- cou intrigado, mas sabia que não podia dizer
não pro bicho. Quando chegou em casa, fa-
to surpreende com uma Curupira feminina
lou para filha mais velha que tinha arranja-
Kambeba e é concluído com um Curupiri-
do um casamento pra ela. E pensou com ele:
nha Maraguá. vou enganar o Curupira, a mais nova eu não
entrego. No dia seguinte, o Curupira foi lá
Um Apurinã e o Curupira/ na casa do Zé e, antes de entrar, se transfor-
Caboclinho Da Mata mou num homem bem bonito, num desses
homens de pele preta que dá gosto de ver,
Lá pelas bandas do rio Purus, numa região alto, forte, cabelo bem aprumado, e braço
chamada Terra Firme, em Boca do Acre, um de remador, um espetáculo de homem. Diz o
Apurinã disse: “cuidado ao pisar na mata, Zé que ficou encantado com a formosura do
pois o Curupira, também conhecido como moço, que não se parecia nada com aquele
Caboclinho da Mata, anda muito bravo com bicho cabeludo, que mais parecia um maca-
co anão, que ele viu na floresta. O Curupira,
o homem branco”. Como mal nenhum fazía-
chegando foi logo dizendo: – Ô de casa, e a
mos, por que temer Curupira? Continuamos moça quando viu aquele homem, também
a ouvir1: não pensou duas vezes em se entregar a ele.
[...] o Zé das Chagas, que morava sozinho Encurtando a conversa, o Curupira levou a
com as três filhas, lá pras bandas das terras moça para casa, sabendo que tinha levado a
firmes (planalto), tinha fama de valente, en- mais velha. Lá chegando, pediu para ela ar-
trava na mata, e atirava nas caça, só pra vê os mar o fogo que ele ia caçar, então ela fez tudo
bicho caí. Um dia o Curupira farejou o rastro direitinho para impressionar o marido, ficou
dele, e decidiu se vingar, chegou bem perto cheirosa e pôs a panela pra ferver. Depois de
do Zé e falou: -Cê me conhece, Zé das Cha- um tempo, volta o Curupira só com a faca na
gas? O Zé vendo aquela coisa lhe chamando mão, olha para moça e diz: – o cheiro tá bom!
pelo nome, ficou da cor do leite da casta- E num só golpe, pôs a dama na panela. Passa-
nha, igualzinho o leite da seringa. Pensando do um tempo, o Curupira voltou à casa do Zé,
que era uma assombração, foi logo dizendo e se queixou que a mulher fugiu ou se per-
que não. – Não precisa ter medo, Zé, eu sou deu na mata, e exigiu a filha do meio. E lá se
o Curupira, protetor dessa mata. Você caça foi a filha do meio no mesmo ritual. Passado
muito? E o Zé disse que não. – Só pra co- mais um tempo, o Curupira insatisfeito, vol-
mer mesmo, quando a macaxeira tá fraca. O tou à casa do Zé das Chagas, exigindo a filha
mais nova, a última que faltava. O Zé relutou,
1 A metodologia da pesquisa que resultou neste mas não tinha o que fazer, antes tivesse ido
artigo mescla entrevistas realizadas presencial-
embora. E lá se foi a filha mais nova do Zé
mente com lideranças indígenas, revisões biblio-
gráficas e colaborações de outros pesquisadores. com aquele que parecia um homem bonito.
Outras entrevistas, como a do diretor de arte do Chegando à casa do Curupira, a moça come-
Boi Garantido, foram realizadas remotamente. çou a fazer um monte de pergunta a respeito
do sumiço das irmãs. Como o Curupira não surpreendemos, primeiro pelo conteúdo da
queria levantar desconfiança, disse logo à narrativa, e depois pela interpretação criati-
moça: – tô com muita fome, e você deve estar va, livre e espontânea daquele narrador.
também, vou caçar alguma coisa para gente
A narrativa revela uma consciência eco-
comer e logo volto, enquanto isso você arma
o fogo e põe a panela pra ferver. Deu um bei- lógica do ser, a necessidade da preservação
jo daqueles que a moça nunca tinha recebi- da vida e dos biomas terrestres. Mas como
do, e lá se foi ele. Mas a mais nova era muito falar disso se o Curupira na história con-
desconfiada, arrumou tudo rápido e se pôs a tada acima levou consigo duas vidas? Em
procurar as vestes e vestígios das irmãs pela contraponto perguntamos: mas e as vidas
casa, foi então que um macaco guariba cha- das caças subtraídas pelo Zé das Chagas
mou a atenção da moça e ela se pôs a perse-
não entram nessa conta? Consideramos que
gui-lo, e no meio da perseguição, ela trope-
çou num monte de ossos e junto a eles, os
a natureza e o homem fazem parte desses
pertences das irmãs. Viu que não tinha pega- conflitos. Se essa história houvesse ocorri-
da nenhuma de bicho, então pensou consi- do na cidade, a punição do Zé talvez aconte-
go, não foram devoradas por nenhuma fera, cesse em tribunal, com o Curupira na forma
os ossos tão bem limpinhos, do jeito que só de um belo negro, imbuído do martelo e da
se cozinha uma paca. A moça estremeceu e toga, fazendo uso de suas atribuições, pena-
percebeu que corria perigo, e que o matador
lizando as tantas vidas arrancadas do meio
só podia ser aquele que sabia armar o fogo,
da floresta pelo puro desejo de matar.
no caso, o homem que ela tinha aceito como
marido. Voltou para casa nova, e armou uma E, para partir do Amazonas em direção
tocaia, quando o homem chegou procurando ao Pará, revisitamos Câmara Cascudo quan-
por ela, ela o golpeou na cabeça e o jogou na do este compendiou modificações somáti-
panela. Mas Curupira não morre, fica desa- cas do Curupira paraense:
parecido por sete anos e depois volta. Foi o
Tem quatro palmos de altura em Santarém;
tempo pro Zé e a filha dele sumirem dali. Um
é calvo, com o corpo cabeludo, no rio Negro;
compadre disse que de passagem o Zé pro-
sem orifícios para as secreções, no Pará;
meteu nunca mais fazer mal algum à floresta
com dentes azuis ou verdes e orelhudo, no
ou a qualquer coisa que viva na mata, e que
rio Solimões, sempre com os pés voltados
todo dia reza pro Curupira não mais encon-
para trás e de prodigiosa força física, engana
trar ele e a filha.
caçadores e viajantes, fazendo-os perder o
Essa narrativa foi contada após Waykury rumo certo, transviando-os dentro da flores-
Apurinã empunhar um pedaço de madeira ta, com assobios e sinais falsos (CASCUDO,
– na verdade, um galho que lhe serviu de 1954, p.332).
cajado. Ele nos chamou para uma clareira Assim, após conhecer essa diversidade
na beira da mata e lá, mergulhado em sua de formas e cores do Curupira, menciona-
verdade, contou essa história. Igual a ela, remos, a seguir, o Tembé/Tenetehara, res-
encontramos muitas outras narradas por saltando a potência dos diálogos entre os
povos da floresta e de seus arredores. povos indígenas e as grandes festas popu-
Chamou-nos a atenção a forma como ele lares como a do boi de Parintins. Podemos
se empoderou pelo uso da palavra na cla- dizer, portanto, que tais eventos constituem,
reira que lhe serviu de palco para sua ence- em grande medida, momentos rituais, que
nação. Em momento nenhum pedimos que oportunizam experiências de contato com a
ele representasse a história. Por isso, nos transcendência.
dos a seguir o caminho “civilizatório”. Porém Há ainda outros diálogos com o Curupira,
o que não vem esclarecido na oferta desse histórias que envolvem essa figura do mun-
pacote é o porquê do uso da violência e da do dos encantados que vem preenchendo
força como justificativa do que se chama de o imaginário popular e ganhando vida nas
progresso. Nesse sentido, cabe o questiona- histórias em quadrinhos e até mesmo nas
mento de Krenak (2019) no que se refere às séries de TV.
dinâmicas por trás dos discursos da “huma- A seguir, temos um exemplo de como
nização” dos índios pelos brancos. Maurício de Souza retrata um dos encanta-
Como justificar que somos uma humanidade dos que faz parte das cosmogonias indíge-
se mais de 70% estão totalmente alienados nas. Ele chega a respeitar algumas das ca-
do mínimo exercício de ser? A modernização racterísticas do Curupira que os professores
jogou essa gente do campo e da floresta para Ticuna descreveram acima.
viver em favelas e em periferias, para virar
mão de obra em centros urbanos. Essas pes-
soas foram arrancadas de seus coletivos, Figura 1 - História em quadrinhos
de seus lugares de origem, e jogadas nesse
liquidificador chamado humanidade. (KRE-
NAK, 2019, p. 13)
Referindo-se à perspectiva das pessoas
que insistem em manter um pensamento
eurocentrado, Krenak (2019, p. 18) afir-
ma que, “não toleram esse tipo de cosmos”,
esse mundo criativo desenvolvido ao longo
de séculos pelos povos indígenas, e não vis-
lumbram a constelação de seres contidos
nas matas. E nesses ambientes com mais
concreto do que verde, que muitos indíge-
nas são praticamente obrigados a ir, o local
de sobrevivência deles e do Curupira vem
sendo a arte e a literatura.
Figura 2 – O Curupira na Série Cidade Invisível povo Huni Kuĩ. Nela, o senhor Antônio fala
do mistério que vem dos seus antepassados3
Nossos tataravôs já falavam [...] desse espí-
rito que vem da floresta [...] é como um va-
queiro dos animais da floresta [...] quando
ele quer, ele se apresenta como uma pessoa
[...] estragando a caça que era para se ali-
mentar [...] é um espírito que vive na terra,
um protetor da floresta [...] mata bem qua-
tro veados num dia [...] o Curupira defende
a natureza, a floresta [...] desde criança ouvi
Fonte: https://sobresagas.com.br/cidade-invisivel- os mais velhos falarem [...] nada é sem vida
conheca-os-mitos-e-lendas-que-inspiraram-a-serie [...] ajudar a curar, a tratar, de acordo com as
histórias [...] estava fazendo cigarro para fu-
Nas andanças pela floresta, encontramos mar e o Caboquinho apareceu para ele [...]
pessoas no Acre e no sul do Amazonas que, não teve coragem de falar, mas ele viu [...]
quando a pessoa era estragador da caça [...]
dentro de seus cosmos, suas dimensões de
chegou montado no veado [...]. (ALBUQUER-
vida, juram ter tido contato com um Curu- QUE, 2020).
pira, também conhecido como Caboclinho
da Mata, e boa parcela da população do Acre Percebemos, na fala do entrevistado aci-
já presenciou ou conhece alguém que teve ma, uma clara distinção entre caça predató-
proximidade com este ser encantado, viven- ria e de subsistência, sendo que os sujeitos
te das matas brasileiras, cuja existência re- que não respeitam tal diferença sofrem os
monta a histórias indígenas desde antes da castigos impostos pelos encantados da flo-
chegada dos portugueses. resta. Há, portanto, uma relação de afeto, cui-
Essas narrativas fortalecem os vínculos dado e, consequentemente, pertencimento à
com a terra e a consciência da relação entre terra, que precisa ser protegida, ao contrário
ser humano e floresta. O escritor e profes- do que ocorre quando os invasores não indí-
genas se apropriam desses territórios.
sor brasileiro Daniel Munduruku, ao tratar
Ailton Krenak defende a ligação com a
dessa conexão, menciona: “nos diz a crença
terra e com a ancestralidade: “se as pessoas
que quem acha que conhece a floresta e não
não tiverem vínculos profundos com sua
cuida dela é orgulhoso e pode topar com al-
memória ancestral, com as referências que
gum encantado” (MUNDURUKU, 2014, p. 9).
dão sustentação a uma identidade, vão fi-
O Curupira Huni Kuĩ defende a car loucas neste mundo maluco” (KRENAK,
2019, p. 14).
natureza e a floresta Entrevistamos um morador das margens
No município de Feijó, estado do Acre, o pes- do rio “Sapatini”, expressão dada pelos mo-
quisador indígena Huni Kuĩ e artista plásti- radores de Boca do Acre – AM, Lábrea – AM
co Dasu Kaxinawá, agiu como facilitador e e arredores. Fazemos essa ressalva porque
interlocutor entre os pesquisadores desse nos mapas o rio é nomeado como “Sapetini”,
trabalho e o povo de sua etnia e, em colabo- mas os navegadores o chamam de “Sapati-
ração com esta pesquisa, gravou um áudio ni”. A pessoa que nos concedeu a entrevista,
com o Senhor Antônio José de Albuquerque, 3 Entrevista disponível em https://youtu.
da Aldeia Nova Olinda, Terra Kaxinawá, do be/32LY7BITkW0
morador da região, nos contou, apreensivo, a rede em um barreiro para ficar à espreita,
que não se deve falar em Curupira/Cabo- algo o derrubou; ele afirma que era o Cabo-
clinho da Mata e, ao perguntarmos o por- clinho da Mata e que ele quase morre. Ques-
quê, ele respondeu apenas com um sorriso: tionamos como ele sabia que era o encanta-
“porque não, senão ele pega a gente”. Ainda do, ao que ele respondeu que essa entidade
insistimos: mas só por falar nele, ele pega a vive pelos barreiros e assombra os caçado-
gente? Respondeu ele dessa vez: “só se xin- res que são viciados em caçar5.
gar mesmo, daí ele pega o cabra e desce peia A relação dos ribeirinhos e dos povos in-
nele, com cipó, a pessoa apanha, mas não vê dígenas com a caça é de subsistência, com
nada, só o reboliço dele”. Com um pouco de raízes na ancestralidade, respeitando todos
insistência ele deixou gravar a nossa con- os seres da natureza sem se considerarem
versa e concordou em contar uma história superiores a eles. Nesse contexto, portanto,
que acontecera com o irmão. a função do Curupira seria de promover o
Dividimos essa referência em duas par- equilíbrio, punindo aqueles que violam es-
tes: na primeira, ele relata sobre a existên- sas regras. A seguir, apresentamos a pers-
cia de um Caboclinho da Mata, de quem se pectiva Kambeba sobre o tema.
ouve falar desde pequeno até adulto e no dia
-a-dia. Segundo o morador Antônio José da Os Kambeba e a Curupira
Silva, conhecido como Cabeça, o Caboclinho De acordo com a literatura dos povos Kambe-
da Mata bate na pessoa que fala mal dele ba, o Curupira é uma entidade presente desde a
e coloca debaixo da raiz das árvores aque- infância, nas histórias contadas e em suas brin-
les caçadores que são viciados na caça4. O cadeiras. A seguir, trazemos a letra de um canto,
vício em caçar parece relacionar-se à ideia seguida da partitura (Figura 3); trata-se de uma
de caça esportiva, irresponsável, por quem brincadeira que é uma forma de educar para
mata sem regrar quantidade e desconecta- vida, para o rito, dançando em roda na presen-
do da floresta e de quem vive nela, como o ça dos pais e parentes, os pequenos Omáguas
Caboclinho da Mata/Curupira. (povo das águas) exibem sua dança, e suas pin-
Na segunda parte, Cabeça narra uma his- turas de corpos, para as lentes da poeta e am-
tória de família na qual seu irmão passava bientalista Marcia Kambeba, que os apresenta
a noite na mata caçando e quando ele atou através de vídeo o rito Zana Makatipa:
Fonte: https://www.cantosdafloresta.com.br/audios/zana-makatipa-kurupira/
sa. E matar animais indefesos é pior ainda. Huni Kuĩ) [17/10/2020]. Entrevista Currupira
Eu não quero ser um menino mau” (YAMÃ, Kaxinawá filmada por Evanildo Kaxinawa. Dis-
ponível em: https://youtu.be/32LY7BITkW0.
2008, p. 28). Acesso em: 11 abr. 2022.
No desenrolar da narrativa, a amizade
vai aumentando entre os dois meninos e o APURINÃ, Waykury. (morador da aldeia Kami-
cuã) [05/02/2021]. Entrevista o Curupira/
autor volta a falar da existência do Kuru- Caboclinho Da Mata, Terra Firme por Antonio
pyra: “uma das entidades mais respeitadas Rogério dos Santos.
pelo homem, especialmente na Amazônia,
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Fol-
onde ainda vivem” (YAMÃ, 2008, p. 37). clore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro,
1954.
Considerações Finais
COELHO, José Rondinelle Lima. Cosmologia Te-
Concluímos esta escrita, mas seguiremos netehara Tembé: (re)pensando narrativas,
pesquisando e compartilhando este encan- ritos e alteridade no Alto Rio Guamá – PA. Uni-
versidade Federal do Amazonas – UFAM - Museu
tamento pela (o) Curupira, que amplia pos- Amazônico Programa de Pós-Graduação em An-
sibilidades de trocas culturais, linguísticas e tropologia Social Manaus – Amazonas, 2014.
aponta para mundos possíveis.
DORRICO, Julie. Posfácio. In: NÚÑEZ,
Pensamos que o fato de conhecer e divul- Geni. Djatchy Djatere: o saci guarani.
gar essas vozes é uma forma de decolonizar Ilustrações de Wanessa Ribeiro e Joyce Ara’i Fir-
o pensamento e vislumbrar a continuidade miano. Brasil: Zió Zines, 2020.
da floresta em pé e da vida neste planeta tão FIOROTTI, Sonyellen Ferseck. Makunaimö
ameaçado pela falta de sensibilidade e des- pantonü – a história de Makunaima ou “meu
truição que nos assola. companheiro, essa história é muito triste”
in TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato; SANTOS,
Os Curupiras, desde longa data, fazem
Cristina Mielczarski dos; MEDEIROS, Vera Lúcia
parte das histórias dos povos originários e Cardoso (orgs.). Letras e Vozes dos Lugares.
cada um recebe um nome que varia de uma Porto Alegre: Zouk, 2022.
região para outra. Seus aspectos também KAMBEBA, Marcia Wayna. O lugar do Saber,
apresentam essa variante, porém estavam São Leopoldo-RS: Ed. Casaleira, 2020.
presentes no passado e continuam a existir
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do
entre nós. Portanto, essas narrativas não se mundo. São Paulo: Ed Companhia das letras,
perderam com o tempo, e o Curupira ainda 2019.
está presente e vive nas matas, fazendo par-
______. A vida não é útil. São Paulo: Editora
te das culturas de muitos povos. Companhia das Letras, 2020.
Por isso, às pessoas que desrespeitam a
MONTE, Nieta; FREIRE, José Ribamar Bessa. Te
natureza, que são viciadas em caça ou de- mandei um Passarinho. Brasília: Ministério da
sacreditam na possibilidade da existência Educação, 2007.
de vários mundos, sugerimos que possam
MUNDURUKU, Daniel. Foi vovó que disse. 2. ed.
visitar essas literaturas, dialogar com inte- Ilustrações de Graça Lima. Porto Alegre: Edel-
lectuais indígenas e, junto com eles, buscar bra, 2014.
“ideias para adiar o fim do mundo”. Ou então, RODRIGUES, Alan (Professor da Universidade
caro leitor, cuidado, o Curupira pode te pegar! Federal do Amazonas) [15/06/2020]. Entrevis-
ta o Curupira 7 espíritos realizada pelo goo-
Referências glemeet por Antonio Rogério dos Santos.
ALBUQUERQUE, Antônio José de (liderança SILVA, Antônio José da (morador de Lábra-AM).
[7/09/2021] Entrevista Vício na caça parte VIEIRA, Mônica do Corral. Histórias Tembé:
1 –Entrevistado por Antonio Rogério dos San- sobre narrativas e autoidentificação. Tese
tos às margens do rio Sapatini, disponível em (doutorado) na Universidade Federal do Pará,
https://youtu.be/p_i2oxLGtS4. Acesso em: 07 Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Pro-
dez. 2021. grama de Pós-Graduação em Antropologia, Be-
lém, 2016.
______. Vício na caça, parte 2 - Entrevistado por
Antonio Rogério dos Santos às margens do rio VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Metafísicas
Sapatini, disponível em https://youtu.be/i6t- canibais: elementos para uma antropologia pós
01YeGeRs. Acesso em: 08 fev. 2022. -estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2018.
SILVA, Márcia Vieira da. Reterritorialização e YAMÃ, Yaguarê. As Pegadas do Kurupyra. Ilus-
identidade do povo Amágua- Kambeba na al- trações de Uziel Guaynê Oliveira. São Paulo:
deia Tururucari-Uk. UFAM, Manaus, 2012. Mercuryo Jovem, 2008.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Auritha Tabajara, cordelista, mulher Tabajara, nordestina, LGBTQIA+, ela-
bora uma escrita com tons biográficos em Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018). Essa escritura põe em xeque a questão autoral: no jogo entre duas
vozes narrativas, no imbricamento entre a voz Tabajara e a voz individual,
na narrativa da trajetória e das lutas da Auritha personagem. Tal apreensão
de Coração na Aldeia, Pés no Mundo (2018) é feita com base no conceito de
autoficção (DOUBROVSKY, 2014; COLONNA, 2014) que contrapõe a noção
de sujeito autossuficiente logocêntrico. A autoficção é utilizada para com-
preender como Auritha se transforma em personagem e em objeto de um
discurso, como constrói um eu textual, biográfico e ficcional, a partir do cor-
del. A proposta deste trabalho é analisar os processos autoficcionais elabo-
rados na perspectiva dessa mulher Tabajara. Portanto, a poética de Auritha
Tabajara destaca seu nome próprio e sua integração com a nação Tabajara,
em uma moldura constituída por aspectos estilísticos, performativos, ficcio-
nais e ancestrais.
Palavras-chave: Auritha Tabajara; Coração na aldeia, pés no mundo; Auto-
ficção.
Abstract:
The poetics of Auritha Tabajara: autofiction in Coração
na aldeia, pés no mundo
Auritha Tabajara, cordelist, Tabajara woman, northeast, LGBTQIA+, elabo-
rates on writing with biographical tones in Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018). This writing calls into question the authorial question: in the game
between two narrative voices, in the overlap between the Tabajara voice and
the individual voice, in the narrative of the trajectory and struggles of the
character Auritha. Such apprehension of Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018) is based on the concept of autofiction (DOUBROVSKY, 2014; COLO-
NA, 2014) which opposes the notion of a logocentric self-sufficient subject.
Autofiction is used to understand how Auritha becomes a character and
object of discourse, and how she builds herself into a textual, biographical,
and fictional self, based on cordel. The purpose of this work is to analyze
the autofictional processes elaborated from the perspective of this Tabajara
woman. Therefore, Auritha Tabajara’s poetics highlights her proper name
and her integration with the Tabajara nation, in a configuration of stylistic,
performative, fictional, and ancestral aspects.
Keywords: Auritha Tabajara; Coração na aldeia, pés no mundo; Autofiction.
Introdução
Que faço com a minha cara de índia? questão que envolve a constituição subjeti-
E meus cabelos va em narrativas a partir da literatura escri-
E minhas rugas ta por uma autora contemporânea, Francis-
E minha história ca Aurilene Gomes, que adota o nome étni-
E meus segredos? co Auritha Tabajara, uma mulher indígena,
(POTIGUARA, 2018, p. 32).
nordestina e LGBTQIA+1, cordelista, a qual,
O que fazemos/faremos com nossas iden- através de sua escrita, lida com as questões
tidades, com nossa sensibilidade, com nossa de autoria e de subjetivação, construindo a
subjetividade em jogo conflituoso entre o si mesma de forma autônoma, sensível e re-
dito, o não dito, o inefável e recalcado, entre sistente em uma mescla entre o (auto)bio-
o individual, o coletivo e a ausência em um gráfico, o poético, o ficcional e o ancestral.
contexto contemporâneo de crítica ao su- No livro Coração na Aldeia, Pés no Mundo
jeito? A estrofe do poema “Brasil”, de Eliane (2018), Auritha Tabajara escreve a sua auto-
Potiguara, apresentada na epígrafe, começa ficção, configurando novas possibilidades de
com elementos supostamente objetivos e escrita e de leitura com a apropriação, trans-
possíveis de compreender apenas ao olhar: formação e subversão cultural e literária das
cara de índia, cabelos e rugas, complementa- teorias ocidentais das escritas de si, das nar-
dos por vocábulos relacionados à linguagem, rativas centradas no eu, para contar outras
a narrativa, àquilo que nós contamos para histórias e escrever outras literaturas. Essa
outrem: história e segredos... Sem esquecer escritora narra a sua vida, de forma literária
os estereótipos e preconceitos destacados e histórica, ancestral e inovadora, comuni-
na estrofe e no poema, aí estão caracteri- cando a um só tempo os saberes ancestrais
zados importantes aspectos relacionados à de seu povo e sua trajetória entre a cidade e a
construção do si mesmo, permeados pelos 1 LGBTQIA+: sigla relacionada aos movimentos so-
discursos entre verdades, ficções e lacunas. ciais relacionados à diversidade de orientações
Longe de nós assumirmos a tarefa ingló- sexuais e identidades de gênero, significando,
respectivamente: lésbicas, gays, bissexuais, trans-
ria de responder, propondo o desenlace da
gênero, queer, intersexo, assexual e uma abertura
questão apresentada no início. Nossa estra- à não normatividade com a inserção de outras
tégia segue na tentativa de compreender a identidades de gênero e orientações sexuais.
aldeia, sem se perder no caminho, mas estan- cussão sobre a subjetividade das pessoas
do sempre em movimento com os pés conec- indígenas imbricadas com seu povo, em um
tados à Terra, em qualquer lugar aonde vá. contexto de pressão rumo à individualidade
Assim palmilha o seu próprio caminho, cons- em uma perspectiva ocidental.
truído ao caminhar e com o coração conecta- O coração refaz a conexão com o passa-
do à aldeia, à ancestralidade, à memória. do-presente ancestral, com a aldeia, ao mes-
O livro Coração na Aldeia, Pés no Mundo mo tempo em que representa também uma
(2018)2 é constituído por poemas em forma- consciência não designada pela racionalida-
to de cordel, escritos por Auritha Tabajara, e de cartesiana. Auritha Tabajara nos ensina
por xilogravuras, assinadas por Regina Dro- que o percurso se faz caminhando e que se
zina. O enredo do cordel narra a história de refaz, na medida em que se transforma ao
Auritha, uma mulher indígena, nordestina e ser narrado. A escritora reconstitui a sua
LGBTQIA+, desde a sua infância com o povo jornada em versos, transmuta seus passos
Tabajara e na relação com sua avó, passando em narrativa de si mesma, em autoficção,
pelas suas dificuldades e aprendizados ao para não esquecer o caminho de volta e para
migrar para a cidade, até a sua vida adulta. construir um percurso de cura para si e para
No livro, é narrado um processo de cresci- o mundo. Essa metamorfose da experiência
mento pessoal e superação: dos conflitos no vivida pela autora em texto escrito, em poe-
casamento, da luta pela guarda das filhas, ma, em cordel é a inquietação que direciona
a nossa investigação, tendo como aspecto
da resistência às discriminações raciais, de
basilar para a discussão o conceito de au-
gênero, de classe e de orientação sexual e
toficção (DOUBROVSKY, 2014; COLONNA,
da valorização da ancestralidade. A autora
2014; KLINGER, 2006).
indígena sintetiza a sua compreensão sobre
As pesquisas e propostas de análises
o seu fazer literário: “a literatura manifesta
literárias relacionadas à autoria historica-
em mim uma dupla atuação: autoexpressão
mente são complexas e, por vezes, polêmi-
e resistência” (TABAJARA, 2018)3.
cas. O percurso da investigação abrange
Os pés da personagem-narradora-autora
desde a ausência do autor, em textos sem
traçam um percurso ultrapassando frontei-
sua assinatura ou sem seu reconhecimento,
ras entre o biográfico e o imaginário, entre
aos quais a posse estava em mãos do editor
o individual e o coletivo, entre a aldeia e a
(BRAGANÇA, 2006), passando pela imposi-
cidade, tendo o mundo inteiro como limite. ção dele como pai, autoridade e verdade so-
Essa relação fronteiriça perpassa aspectos bre o texto, contraposta pela propagação de
como a significação diferenciada com a ter- sua morte e desembocando em abordagens
ritorialidade e com as fronteiras nacionais que “ressuscitam” ou retomam o autor, seja
estabelecidas por diversos povos indígenas, através do ponto de vista identitário, seja
como reconhecido pela Convenção nº 169 na focalização de aspectos biográficos, das
da OIT4, de 1989 (KRENAK, 2013), e a dis- escritas de si, nas quais pode ser incluída a
autoficção (KLINGER, 2006).
2 O livro foi publicado pela U’KA Editorial, um pro-
jeto conduzido por Daniel Munduruku, que bus-
ca publicar obras de escritores indígenas, produ- Autoficção em Coração na aldeia,
zidas de forma autônoma. pés no mundo
3 Citação retirada da contracapa do livro Coração
na Aldeia, Pés no Mundo (2018). Os estudiosos da literatura que se propõem
4 OIT: Organização Internacional do Trabalho. a utilizar o conceito de autoficção reconhe-
cem que é uma ideia inacabada, em constru- causa. Toda autobiografia, qualquer que seja
ção ou imprecisa, ou ainda compreendem sua “sinceridade”, seu desejo de “veracida-
que essa situação permite múltiplas abor- de”, comporta sua parte de ficção. A retros-
pecção tem lá seus engodos (DOUBROVSKY,
dagens a partir de seu arcabouço:
2014, p. 121-122).
A própria imprecisão da palavra [autoficção]
é útil, pois possibilita que certos escritores, O pesquisador Serge Doubrovsky (2014)
como Catherine Cusset, Philippe Vilain ou cunhou o termo autoficção, demonstrando
Camille Laurens, presentes nesse colóquio, como lembrar é construir uma narrativa
entendam a dita autoficção em sentidos que de modo algum será igual àquilo que
bem diferentes daquele que lhe atribuo. A foi vivido e como a narração se adapta às
palheta da autoficção é variada e é isso que necessidades do/a narrador/a, inclusive se
constitui sua riqueza (DOUBROVSKY, 2014,
adequando aos interlocutores, ou aos leito-
p. 113).
res. Assim, a escrita entre autoexpressão e
Mesmo nesse contexto de diversidade resistência, de Auritha Tabajara, em Coração
de apreensões, é possível reconhecer que na Aldeia, Pés no Mundo (2018) se inicia com
a autoficção se inscreve como alternativa esse mesmo entrelaçamento. A personagem
para reflexão sobre a subjetividade autoral do cordel é apresentada como princesa em
e sobre a (im)possibilidade da escrita em um duplo movimento de autovalorização e
representar a realidade. Assim, se constitui de diálogo com as pessoas bombardeadas
uma retomada da figura do autor, não mais pelo imaginário ocidental. Mesmo que a
como autoridade sobre seu texto, não como realidade de reinados como na Europa es-
o sujeito cognoscente autossustentável do teja distante do modo dos povos indígenas,
cogito cartesiano, mas como alguém criva- a voz narrativa constitui um diálogo com
do, repleto de furos, de lacunas, de vieses e aqueles que conhecem os contos de fadas e
de inconsciências. princesas, sejam adultos ou crianças, para
O sujeito autoral retorna assemelhado ao quebrar o paradigma de inferiorização das
real lacaniano como falta, como aquilo que é integrantes dos povos autóctones e de ou-
inefável, indizível e impossível de simbolizar tros excluídos dessas narrativas, como os/
(KINGLER, 2006). Portanto, a autoria, parti- as nordestinos/as, sertanejos/as.
cularmente nos textos biográficos, pode ser Nessa interação entre escrever sobre si
visualizada como um intercâmbio rasurado mesma, refazendo a sua jornada, se reinven-
entre a experiência e a interpretação, cheio tando, se inspirando na Mãe Natureza, a voz
de vazios preenchidos por recursos de retó- narrativa não pretende realizar um soliló-
rica, de imaginação e de ficcionalização. A quio; ao contrário, ela se propõe a ensinar
memória aparece permeada por falsas me- ao leitor, ao mesmo tempo em que se des-
mórias, a consciência vazada por aquilo que creve e aprende sobre si:
está inconsciente, o relato não pode ser pari Peço aqui, Mãe Natureza,
passu aquilo que foi vivenciado: Que me dê inspiração
Nenhuma memória é completa ou fiável. As Pra versar essa história
lembranças são histórias que contamos a nós com tamanha emoção
mesmos, nas quais se misturam, sabemos Da princesa do Nordeste,
bem disso hoje, falsas lembranças, lembran- Nascida lá no sertão.
ças encobridoras, lembranças truncadas ou Quando se fala em princesa
remanejadas segundo as necessidades da É de reino encantado,
ta, inclusive sob o signo do pecado e precon- e madura que declara: vou “refazer minha
ceitos relacionados aos modos de vida que história” (TABAJARA, 2018, p. 32), da jovem
fogem a essa norma. imatura, em um percurso de descoberta e
A autora, a narradora e a personagem re- de busca de autonomia.
cebem o mesmo nome e se mesclam poden- O Dossiê de registro Literatura de Cordel
do remeter a uma biografia simplesmente. (BRASIL, 2018) apresenta algumas carac-
No entanto, as estratégias utilizadas por terísticas dessa produção literária as quais
Auritha em Coração na Aldeia, Pés no Mundo são úteis para se compreender essa produ-
(2018) jogam de forma bastante conscien- ção autoficcional de Auritha Tabajara. A lite-
te com essa relação autora-narradora-per- ratura de cordel é descrita como relaciona-
sonagem. Nesse sentido, a priori, tem-se o da a diversas tradições orais constituintes
estabelecimento de duas vozes narrativas: da identidade brasileira: “as culturas afri-
uma em terceira pessoa do singular, no pas- cana, indígena e europeia e árabe” (BRASIL,
sado e em estrofes em sextilha; a outra está 2018, p. 16), sendo que essa produção lite-
em primeira pessoa do singular e com a mé- rária é designada por três características es-
trica em septilha: senciais: “métrica, rima e oração” (BRASIL,
A noção plástica de autoficção, em sua acep- 2018, p. 16), ou seja, pela versificação, con-
ção mais corrente e mais vaga, marca talvez tagem de sílabas com uniformidade entre
uma evolução significativa da escrita de si, os sons finais das palavras e o desenvolvi-
através da qual o procedimento autobio- mento ou enredo com lógica, começo, meio
gráfico se transforma em operação de geo- e fim. Outras características da literatura de
metria variável, cuja exatidão e precisão cordel relacionadas à metrificação são o uso
não são mais virtudes teologais (COLONNA, da sextilha, forma mais utilizada pelos cor-
2014, p. 46).
delistas na contemporaneidade, e a septilha,
A narração em terceira pessoa é feita a derivada daquela com o acréscimo de mais
partir do nascimento e infância, passando um verso.
pela saída da aldeia, pela jornada em algu- Esse diferencial de versificação é signifi-
mas cidades, onde foi submetida a assédios cativo para o enredo em Coração na Aldeia,
sexuais e trabalhos subalternizados, de idas Pés no Mundo (2018), com a narração em ter-
e vindas à aldeia; pelo sufocamento quanto ceira pessoa, isto é, quando a narradora ain-
a sua orientação sexual, pela maternidade e da não está identificada com a autora-per-
sendo concluída com a denúncia de supos- sonagem Auritha, a versificação é feita em
to abandono das filhas, feita pelo pai delas sextilha. Essa é a metrificação mais comum
e pela vivência de uma depressão. Nessa no cordel da atualidade, cuja utilização pode
parte da narrativa do cordel, há certa estra- ser lida também como um meio para dife-
tégia de distanciamento entre a narradora, renciar os momentos narrativos no texto. Já
a personagem e a autora, como se elas não na utilização da septilha, no momento em
fossem a mesma pessoa. Esse método, de al- que a própria Auritha se torna a narrado-
gum modo, caracteriza o distanciamento en- ra do texto, cabe a seguinte interpretação:
tre aquela que escreve no presente e aquela da mesma forma que a estrofe cresce, ga-
que vivenciou determinadas experiências. nhando mais um verso, a cordelista também
Aparentemente, se configura uma necessi- cresce, torna-se mais madura. Esse segundo
dade de diferenciar a escritora autônoma trecho da narrativa relata o desfecho da dis-
puta judicial pela guarda das filhas e de sua subjetividade atrelada à poetização e à pos-
relação com elas, suas ações para recons- sibilidade de utilizar a oração, o desenvolvi-
truir a sua história intensificando o contato mento característico do cordel como possi-
com sua ancestralidade, com a aldeia e com bilidade para narrar, poetizar e refazer a sua
outros parentes indígenas, além da luta con- própria vida.
tra a discriminação. É possível observar nas No Dossiê de registro Literatura de Cor-
estrofes a seguir a marcação da passagem del (2018), quando da reflexão sobre o poe-
de uma voz narrativa para a outra: ta-repórter, é apresentado exemplo de como
Na Casa de conhecidos, “o cordel concilia a tradução e a invenção do
Cuidava de disfarçar. vivido, o real e a ficção.” (BRASIL, 2018, p.
Muitas noites mal dormidas, 159). Para compreender melhor de que for-
Não parava de chorar. ma Auritha faz essa junção poeticamente,
Sempre de rosto inchado pode ser elucidativa a definição dada por
Na hora de levantar.
Vincent Colonna (2014) a uma das tipolo-
Nesse momento, leitor, gias da escrita autoficcional como autofic-
Ficarei no meu cantinho, ção biográfica:
Deixando a própria Auritha
Seguir firme em seu caminho O escritor continua sendo o herói de sua
E, de forma cativante, história, o pivô em torno do qual a matéria
Contar tudo com carinho: (TABAJARA, 2018, narrativa se ordena, mas fabula sua existên-
p. 31). cia a partir de dados reais, permanece mais
próximo da verossimilhança e atribui a seu
Agora, eu tenho em mente, texto uma verdade ao menos subjetiva ou
Um desafio a enfrentar: até mais que isso (COLONNA, 2014, p. 44).
Refazer minha história,
Sem desistir de lutar. A construção narrativa em Coração na Al-
Tantas noites eu chorei, deia, Pés no Mundo (2014) pode ser apreen-
Quanta tristeza passei… dida a partir dessa definição, a da autora
Não dá nem pra imaginar! (TABAJARA, 2018, tendo por base a sua vida, mas não escre-
p. 32).
vendo um diário, ou um livro de memórias
Se Auritha Tabajara “Aprendeu a ler sobre ela. A escolha é por uma forma poéti-
na rima./ Tudo queria rimar” (TABAJARA, ca na qual pode “florear” a sua história, não
2018, p. 10), a própria experiência de apren- escondendo as suas mazelas, e sim transfor-
dizagem na infância está relacionada a essa mando-as em poema, sem abandonar a ve-
literatura, mesmo que ela descubra, apenas rossimilhança. Por esses motivos, a escrita
posteriormente, que aquilo que ela ouvia, lia de Auritha Tabajara pode ser pensada na
e passou a escrever era literatura de cordel. intersecção entre performance, biografia,
Em entrevista (TESTA; FERREIRA, 2021), identidade e ancestralidade. Por esse pon-
Auritha relata que foi alfabetizada e estudou to de vista, pode ser dito que é estabelecida
em casa até os nove anos de idade, em uma uma relação entre o leitor e uma autora im-
infância feliz, livre na mata, marcada pela plícita criada em meio às rimas, de Auritha,
oralidade e por uma alfabetização feita por às xilogravuras, de Drozina, e à descoberta
meio de rimas. Nesse sentido, a intimidade no ato da leitura, ao se relacionar com uma
da autora com essa forma literária também performance da escritora e não com sua
se revelou como aspecto construtor de sua pessoa.
Mesmo partindo desse pressuposto da início o magistério indígena no Ceará, ela fez
performance, o apego à verossimilhança relatórios sobre as aulas em forma de cordel,
fica evidenciado no texto de Auritha em tre- os quais foram editados e publicados pela
chos com o seu relato da publicação de seus Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC),
cordéis no livro Magistério Indígena em Ver- compondo o livro Magistério Indígena em
sos e Poesia (2007): Versos e Poesia (2007), hoje adotado como
Fez magistério indígena livro didático no território cearense. O rela-
Com muita dedicação. to da publicação desse livro e de seu engaja-
Escrevia bem cordel, mento no ensino aparecem na estrofe acima,
Pesquisou com atenção no verso “Fez magistério indígena” (TABAJA-
E o governo aprovou, RA, 2018, p. 27), em Coração na Aldeia, Pés
A sua publicação. no Mundo (2018). Assim, a autora assume a
Na sua comunidade, tarefa de ressignificar a escola para si e para
Dispõe-se a alfabetizar os outros, pois, quando ingressou na escola
As crianças e os adultos, regular, sofreu bullying e discriminação pra-
Para assim minimizar ticados pelos não-indígenas:
Os limites que impediam
O seu povo de lutar (TABAJARA, 2018, p. 27). Admirada por todos;
Para muitos, diferente.
A trajetória de Auritha Tabajara revela o Na escola, aos sete anos,
seu desejo da mudança de paradigmas para Taxada de rabo quente,
a educação, ela escreve também com essa Feiosa, bucho quebrado...
preocupação. Se em Coração na Aldeia, Pés Porém muito inteligente (TABAJARA, 2018,
no Mundo (2018) está em destaque a cons- p. 10).
trução de si mesma, tal ação parece se con- A um só tempo em que em Coração na
cretizar na relação com a transformação do Aldeia, Pés no Mundo (2018) se estabelece
outro, seja na inserção na escola indígena, o destaque ao aspecto estético, criativo, do
seja no ensino dos não indígenas, seja no uso de recursos poéticos, nesse texto a au-
combate às diversas formas de discrimina- tora apresenta confissões que extrapolam
ção. A aproximação com pessoas não escola- seu texto, indo para a aldeia e para o mundo.
rizadas, para integrá-las na comunicação ou Ambos os elementos, aldeia e mundo, são o
em processo de ensino da leitura, parte do outro com quem o coração e os pés, repre-
reconhecimento da escrita como ferramen- sentativos da subjetividade e da jornada au-
ta de luta. Coração na Aldeia, Pés no Mundo tora, querem se relacionar. Portanto, duas
(2018), apesar de não ser um folheto pen- ações que funcionam como constituintes do
durado em um varal, se apropria das dinâ- eu também preconizam formas de intervir
micas do cordel, como um texto mais aces- com e para além do cordel. A primeira é a
sível: pela não utilização de palavras rebus- prática educativa caracterizada pelo ensino
cadas, mas se valendo da musicalidade e da na escola da aldeia e por mudar a concepção
visualidade para envolver, acolher e ensinar, daqueles que desconhecem ou estão fecha-
mesmo que essas características não sejam dos para uma narrativa diversa. A segunda
exclusivas desse gênero literário. é se voltar para a cura, de si mesma, ao dar
Auritha relatou em entrevista (TESTA; sentido à sua trajetória a partir da escrita, e
FERREIRA. 2021), que em 2003, quando teve dos outros, tanto com o uso de ervas medici-
nais quanto com a própria narrativa de seu plantas em sonhos, colheita, plantio e mezi-
crescimento pessoal: nha é descrita como algo distinto e sagrado:
A menina foi crescendo, Foi a primeira netinha
Aprendeu a caminhar. Da vovó boa parteira
Com nove meses de vida Contadora de história;
Tudo sabia falar. Também grande mezinheira
Dizia: “Quando eu crescer, Na região, respeitada
Quero aprender a curar” (TABAJARA, 2018, Por ser sábia conselheira. (TABAJARA, 2018,
p. 10). p. 8).
Certamente, a escrita de Auritha é uma As palavras de Auritha são de insubmis-
ação política pautada pela necessidade de são ao jugo do racismo, da homofobia, do
sobrevivência e resistência individual e co- machismo, do patriarcado, da misoginia, da
letiva. O posicionamento da escrita de um imposição dos saberes ocidentais. O livro se
texto literário e biográfico, autoficcional, se encerra com uma dedicatória para seu povo
apresenta em um contexto de diálogo e con- e para as pessoas que sofrem com o precon-
traposição de outras narrativas, de constitui- ceito. Então se reconhece em sua escrita um
ção de novos olhares. Assim, a proposição de bastião para essa luta pela sobrevivência e
cura apresentada não é apenas da dimensão por um Brasil mais equitativo, ao mesmo
física, mas das subjetividades e das relações, tempo em que se desenha um itinerário de
construção da identidade, a partir da poeti-
reconhecendo que “Feliz eu serei um dia/ Se
zação de memórias e da autoficção.
o preconceito acabar” (TABAJARA, 2018, p.
40). Em certo sentido é uma esperança de Conclusão
felicidade utópica, porém esse desejo pes-
As pesquisas nas áreas da Literatura e da
soal clama por resistência: “Se você é como
Antropologia no Brasil têm privilegiado a
eu,/ Sofre ou antes sofreu,/ Não desista de
interpretação das narrativas elaboradas por
lutar” (TABAJARA, 2018, p. 40) e por irman-
autoras e autores indígenas, a partir do povo,
dade: “Agradeço a Tupã,/ Por me guardar e da nação e da coletividade. Nesse contexto, a
inspirar./ Ao meu povo Tabajara,/ Pela vida escrita de Auritha Tabajara em Coração na
me ensinar” (TABAJARA, 2018, p. 40). Essa Aldeia, Pés no Mundo (2018) adiciona outros
vida aprendida com seu povo Tabajara se elementos para essa discussão, ao colocar
assemelha a de outras nações indígenas na em evidência a subjetividade de uma mu-
valorização da harmonia com o cosmo, com lher indígena. Não se trata de uma adesão ao
os homens e mulheres e com os outros seres. modelo de individualismo e à construção do
Essa integração com o universo a partir sujeito ocidental, mas de uma guinada para
dos saberes ancestrais fica evidenciada na o surgimento de nomes, de expoentes repre-
relação com a Mãe Natureza e no exemplo sentativos de uma ruptura com padrões de
de sua Mãe-avó como parteira, conselheira produção estética e de sua interpretação. A
e mezinheira (uma conhecedora das ervas autoficção escrita por Auritha destaca o seu
e de seus usos curativos). Auritha segue os nome próprio, constitui uma narrativa in-
passos da avó no conhecimento das plantas, trospectiva e, em ato contínuo, rasura esse
em um contato mediado por uma relação es- conceito em um jogo de vozes narrativas, im-
piritual, pela conexão com os espíritos e com bricadas com uma perspectiva de resistência
sonhos premonitórios. A conexão com as e re-existência de seu povo.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Cordilheira de amora II é um documentário/curta-metragem produzido pela
cineasta Jamille Fortunato, no ano de 2015. Gravado na aldeia Amambai, no
Mato Grosso do Sul, o curta acompanha a garotinha Guarani Kaiowá Cariane
Martins, de nove anos de idade. Em meio às ruínas de tijolos, barro seco, ma-
deira velha e eletrodomésticos abandonados, Cariane cria a sua realidade
imaginária. A partir de objetos descartáveis — detritos da existência adulta
— faz do seu quintal um experimento do mundo. Tomando como ponto de
partida a narrativa e a voz da criança, interessa-nos neste artigo debruçar-
mo-nos sobre o saber infantil simultaneamente associado ao saber indígena,
ambos saberes tidos como “menores” frente a um sistema-mundo moderno
que privilegia o conhecimento europeu — e, evidentemente, o conhecimen-
to adulto —, alçando-o ao falso patamar de conhecimento universal, preten-
samente capaz de abarcar toda a história e subjetividade dos povos. A fan-
tasia aparece aqui não mais como antítese da objetividade, racionalidade,
exatidão; surge, antes, como vetor potencial do que chamamos uma “poéti-
ca infantil-indígena”, combativa, em sua própria singularidade, na resposta
contra as amarras de uma “colonização da imaginação”.
Palavras-chave: Cordilheira de amora II; Guarani Kaiowá; Poética infantil
-indígena
Abstract:
Mulberry Range II: Detritus of childhood Guarani-
Kaiowá
Cordilheira de amora II [Mulberry Range II] is a documentary/short film
produced by filmmaker Jamille Fortunato, in the year 2015. Recorded in Al-
deia Amambai [Amambai village], in Mato Grosso do Sul, the short follows
the nine-year-old Guarani Kaiowá girl Cariane Martins. Amidst the ruins of
bricks, dry clay, old wood, and abandoned appliances, Cariane creates her
imaginary reality. From disposable objects — the detritus of adult exis-
tence — she turns her backyard into an experiment on the world. Taking
as a starting point the narrative and the voice of the child, our interest in
* Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (PPGLIT-
CULT – UFBA). Email: barbarasoeiro05@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4759365498143873.
Introdução: a cordilheira de
Cariane
Ñande mitãramo, opa rupi ñande jaiko.1 cumentário no Mostra Audiovisual de Dou-
Provérbio Guarani Kaiowá rados, o destaque de melhor curta no Júri
Esta cordilheira de amora é delícia. Popular no Fest Cine América do Sul e o de
Cariane Martins melhor documentário em curta-metragem
Aldeia Amambai – Mato Grosso do Sul, no É Tudo Verdade – Festival Internacional
fronteira do Brasil com o Paraguai; territó- de Documentários, sendo exibido e aclama-
rio pertencente aos povos indígenas Guarani do em circuitos de arte e festivais de cinema
-Kaiowá e Guarani-Ñandeva. Em cena, acom- por todo o país, como o Festival Internacio-
panhamos a garotinha Cariane Martins, de nal de Curtas de São Paulo e o Fest Cine Amé-
nove anos de idade, junto ao seu primo mais rica do Sul.
novo, Clebison Martins. Os dois brincam com Filmado sem muitos recursos, com uma
folhas de bananeiras: para ela, as folhas ser- câmera de celular, o filme nos convida a se-
vem de guarda-chuva; para ele, servem de guir os passos de Cariane, ela quem, sem
chapéu. Alardeiam o quintal e assopram o qualquer interrupção ou aparente indução
pedaço do caule partido da planta, emitindo da equipe de filmagem — não há qualquer
um sonante de uivo: — “Aú-aú-aú-ú-ú”. indício de um roteiro prévio a ser seguido
Assim, inicia-se o documentário e curta- —, conta-nos sobre o seu cotidiano imagi-
metragem de aproximadamente 12 minutos nário em meio a tijolos, barro seco, madei-
de duração, dirigido e montado pela cineas- ra velha e eletrodomésticos abandonados.
ta baiana Jamille Fortunato no ano de 2015. Menos como quem nos explica, e mais como
Cordilheira de Amora II recebeu, no ano se- quem nos quer contar histórias, Cariane
guinte ao da data de lançamento, diversos narra a trajetória de mudança vivenciada
prêmios2, como o 1º Lugar na Categoria Do- por ela e seus pais, ao migrarem da anti-
ga região onde moravam para esta, a qual,
1 “Quando somos crianças, vivemos por toda parte”. agora, precisam instalar-se precariamente.
2 Cordilheira de Amora II foi finalista do Grande Insatisfeita com a sua nova morada e im-
Prêmio de Cinema Brasileiro, disputando, com
mais seis filmes, na categoria de melhor curta- possibilitada de voltar à antiga — uma vez
metragem documentário. que, segundo a mãe, a casa de antes “já tem
outros donos” —, ela se decide por um ousa- clandestino — aquilo que transcorre fora do
do projeto, o de montar a sua “casa própria”. olhar e da vigilância do adulto-responsável
Em suas palavras: —, mas, também, pelo movimento ativo de
(Cariane)3: Quando eu me mudei pra cá, não fundação de um espaço outro, um espaço de
tinha luz, não tinha televisão, não tinha nada. e para a infância, com o seu ordenamento e
A Franciele uma vez deitou e disse: as suas regras de funcionamento próprios.
— Mamãe, quero ir de novo na nossa casa A rotina que Cariane estabelece e com-
velha! partilha com o seu primo Clebison, com a
— Agora tem dono, outro. Franciele e com os “seus amigos invisíveis”5
é uma espécie de reescrita anárquica do
O papai comprou, a mamãe mesmo comprou
tijolo pra fazer a casa e eu peguei a metade. dia a dia adulto. Nela, fazem café “de men-
Ele não viu que eu peguei a metade. E quan- tirinha” e tomam quantas vezes quiserem,
do eu peguei, ele disse: servidos em copos de barro; chegam tarde,
— Nossa, leva de novo tudo lá, hein? dormem, acordam e dormem novamente
em dias que passam e se repetem quase in-
— Eu não vou levar de novo.
distintamente durante uma única tarde; na
Daí eu: O que que eu vou fazer com o tijolo? “biblioteca” da casa, contanto que tranque a
Aqui não tem nada… porta inexistente, Clebison pode deitar-se à
— Já sei! — eu disse — Vou fazer a minha vontade, disposto a ler as revistinhas Avon e
casa própria! os encartes de produtos do supermercado:
A sua “casa própria”, conforme descobri- (Cariane): Quer café?
mos em seguida, é composta de materiais (Clebison): Não.
que, à primeira vista, não teriam mais vida (Cariane): Tá bom. Eu vou fazer café só pra
ou utilidade prática. São utensílios mortos, mim!
restos de uma existência adulta, os quais
(Clebison): Eu vou na biblioteca.
passam por um processo de transforma-
(Cariane): Hum, tá bom. Não esquece de
ção e reinvenção, com base em uma lógica
trancar, hein.
particular: a lógica da criação infantil. Ora,
eis neste gesto a força da transgressão das Dá-se assim a brincadeira e, em meio
crianças. Cariane ter pego escondido os ti- a ela, o pretexto para a filmagem do cur-
jolos do pai e não devolvê-los4 revela-se ta-metragem/documentário. Nos minutos
enquanto ato (em si) subversivo não ape- finais, Cariane nos leva às imediações da
nas pelo potencial daquilo que é recôndito, mata local, afastando-nos da sede do quin-
tal de seus pais; segundo ela, trata-se ali
3 Trechos como este e os demais foram transcritos
de sua “Cordilheira de Amora”. A vegetação
a partir do documentário, respeito a variação lin-
guística usada por Cariane Martins e seu primo. O — esparsa e do tipo chaco —, é pouco ve-
travessão, por vezes, marca a alternância de falas
entre Cariane e seu pai, Cariane e seus amigos, 5 Durante o curta-metragem, Cariane remete a
etc. Alternância esta que se dá no monólogo mes- outros nomes próprios de amigos que suposta-
mo da menina. Optou-se por marcar o enuncia- mente participam de suas brincadeiras e inven-
dor a partir da indicação entre parêntese. ções; temos, por exemplo, a referência a uma
4 Destaca-se aqui, também como traço subver- garota chamada Katiusse, ao final do vídeo. Não
sivo, a teimosia da menina. Mesmo quando in- sabemos se essas pessoas existem de fato, ou
querida por adultos, mantém-se resoluta em não — para o universo da fabulação, na verdade,
suas decisões. isso pouco ou nada importa.
(Cariane): Ah, então eu não te mostrei uma infância, e, levando em conta também, a fra-
coisa! gilidade da própria posição histórica de Wal-
Meu papai e minha mamãe não sabem que ter Benjamin — um judeu e intelectual de
eu brinco ali. esquerda que, já sem nenhum recurso, pre-
Vem comigo! Tem duas coisas. Aqui… Aqui cisou recorrer ao suicídio em meio à perse-
eu brinco como guição nazifascista —, devemos ter em conta
ônibus… que se trata ainda de um autor de base his-
tórica e geográfica determinada, a quem, é
E é aqui mesmo que a mamãe disse assim:
claro, pôde ter permitido escapar algo frente
— Nossa, sua loja é um lixo! a vivências tão distantes e distintas das suas.
[...] Ademais, é impossível ler qualquer ex-
Mamãe jogou o guarda-roupa fora. periência infantil apartando-a totalmente
de sua realidade sócio histórica, pois, é em
Eu peguei, peguei e eu tirei toda a parafusa.
meio à sua comunidade — dentro de uma
— Agora aqui é meu! — eu disse e trouxe subjetividade marcada com um imaginário
tudo para aqui.
específico — que a criança irá crescer e se
Daí a mamãe disse: desenvolver. Fato este que o próprio Benja-
— Isso aqui é lixo. min nos alerta, inclusive, ao nos dizer que
— Não. Isso é brinquedo. elas, as crianças:
Não constituem nenhuma comunidade iso-
As crianças, entretanto, são incansáveis
lada, mas antes fazem parte do povo e da
e determinadas em seus construtos, posto
classe a que pertencem. Da mesma forma,
que possuem predisposição para o ínfimo, os seus brinquedos não dão testemunho de
isto é, sabem recolher do mais modesto ma- uma vida autônoma e segregada, mas são
terial o germe para uma inesperada profu- um diálogo de sinais entre a criança e o povo
são de elaborações: (BENJAMIN, 2017, p. 94).
Nada é mais adequado à criança do que irma- Os gestos de Cariane são, deste modo,
nar em suas construções os materiais mais também os gestos de uma infância Guarani
heterogêneos — pedras, plastina, madeira, -Kaiowá; o que, em nosso percalço epistêmi-
papel. Por outro lado, ninguém é mais casto co, implica a necessidade de nos direcionar-
em relação aos materiais do que as crianças:
mos à cosmologia de sua cultura local. Por
um simples pedacinho de madeira, uma pi-
cosmologia entendemos aqui, a visão cole-
nha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no
monolitismo de sua matéria, uma exuberân- tiva de si e do mundo — e de si no mundo
cia das mais diferentes figuras (BENJAMIN, — resultante do mosaico de representações
2017, p. 92). e produções culturais expressas através das
mais diversas manifestações e linguagens.
Se os fragmentos e observações acima
Posto isso, pensaremos o saber infantil arti-
tão acertadamente captam o estado poético
culado ao saber Guarani-Kaiowá a partir da
da brincadeira infantil, não podemos perder
voz ativa da criança indígena.
de vista, contudo, o seu lugar de enuncia-
ção, isto é, a posição epistêmica contígua à Guinada decolonial: o saber
alternativa teórica em questão. Sem deixar
de considerar toda a importância do legado indígena e o saber infantil
benjaminiano destinado à reflexão sobre a Pensar a partir de uma guinada decolonial
significa renunciar ao mito de que os sabe- sultados são, no entanto, o mesmo: a evasão
res do norte são os únicos saberes possíveis. do reconhecimento dos outros como seres
Tal mito se constitui com base em uma visão humanos totalmente completos (MALDO-
NARO-TORRES, 2008, p. 79).
etnocêntrica herdada do colonialismo des-
de a sua estrutura “mais clássica” — aquela O que Walter Mignolo, em seu Os esplen-
ancorada em esferas jurídico-políticas e ad- dores e misérias da ciência: colonialidade,
ministrativas do Estado, uma vez que novas geopolítica do conhecimento e pluriversali-
e engenhosas formas de colonialismo vão se dade epistêmica (2003) chama de “geopolí-
instituindo, independentemente do desapa- tica do conhecimento” aponta, justamente,
recimento direto desses setores. Nas pala- para a subordinação dos saberes no mun-
vras de Maldonado Torres: do moderno, dado, dentre outros fatores, a
A colonialidade sobrevive ao colonialismo. hierarquia das línguas — nem precisamos
É mantida viva [...] nos livros, nos critérios nos perguntar qual o lugar destinado às lín-
de desempenho acadêmico, nos padrões guas da família Guarani, por exemplo, estas
culturais, no senso comum, na autoimagem quais, tantas vezes e ainda hoje, sequer são
dos povos, nas aspirações de si mesmo, e em reconhecidas como línguas nacionais, mes-
tantos outros aspectos da nossa experiência mo em trabalhos linguísticos de autores
moderna. De certa forma, como sujeitos mo-
respeitáveis9. Neste sentido, ele nos diz que
dernos respiramos a colonialidade a toda a
hora e todos os dias (MALDONARO TORRES, “o conceito moderno de conhecimento e de
2007, p. 243). ciência foi concebido e usado para descartar
conhecimentos e formas de saber inscritas
Se, agora, o apartheid dos povos aparen-
ta ser dissimulado em sua expressão mais 9 Em Preconceito Linguístico: o que é, como se faz,
Marcos Bagno destaca como o primeiro dos mi-
cotidiana, declara-se, em contrapartida,
tos criados acerca do português brasileiro, o de
explicitamente através do racismo epistê- sua suposta “unidade”. A ideia de que o portu-
mico. A dominação e subjugação de povos guês brasileiro apresenta uma “unidade sur-
sobre outro dá-se, portanto, não apenas no preendente” é posta pelo autor como um dos
mais graves preconceitos arraigados em nossa
nível econômico, de “classe”, mas, também, cultura. Tal ideia, é difundida mesmo por inte-
nos domínios culturais e intelectuais: ao se lectuais como Darcy Ribeiro, que, no seu impor-
considerar determinadas produções conhe- tante estudo sobre o povo brasileiro, escreve: “É
de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de
cimentos científicos ao passo que, por ou- matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são,
tro lado, outros saberes — sabemos quais hoje, um dos povos mais homogêneos linguísti-
— são relegados ao âmbito da fantasia, do ca e culturalmente e também um dos mais inte-
grados socialmente da Terra. Falam uma mesma
domínio do excêntrico ou ingênuo. O racis- língua, sem dialetos” [Folha de S. Paulo, 5/2/95].
mo epistêmico, deste modo, ao deslegitimar Para combatê-lo, não devemos esquecer que a
o local de seriedade da produção intelectual língua portuguesa falada no Brasil possui um al-
tíssimo grau de diversidade e variabilidade. No
de culturas específicas põe em questão a hu-
mais, ainda hoje, calcula-se, além do português e
manidade de tais grupos sociais: da língua brasileira de sinais, tidas como oficiais,
Como todas as formas de racismo, o racismo mais de 200 línguas faladas, por brasileiros e
imigrantes, no nosso extenso território nacional.
epistêmico está relacionado com a política e
Cf. BAGNO, M. Mito n° 1: “A língua portuguesa no
a sociabilidade. O racismo epistêmico des- Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
considera a capacidade epistêmica de certos In.: BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que
grupos de pessoas. Ele pode estar baseado é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
na metafísica ou na ontologia, mas seus re- p. 15-19.
terem os olhos abertos, não enxergam nada”. (Cariane): Aqui eu, nós estamos imaginando
Eduardo Viveiros de Castro Chapeuzinho
Vermelho e aqui é Três porquinhos.
“Ñande mitãramo, opa rupi ñande jaiko”,
um antigo provérbio Guarani, diz-nos sobre Aqui diz: Cuidado lobo mau, lobo mau, lobo
mau...
a plasticidade do ser-criança, em tradução:
“quando somos crianças vivemos por to- Ah, aqui está o lobo mau chegando... Sentiu...
das as partes”. Longe de pretendermos aqui o porquinho...
exaurir toda a significação destas palavras, E esta é a receita de comida que estamos fa-
podemos lê-las, todavia, pensando a respei- zendo... Aqui o bolo...
to das temporalidades e espacialidades sin- Eu disse: vamos fazer isso? Daí nós vamos
gulares à criança indígena no exercício de na cozinha e fazemos.
sua brincadeira e fabulação. Usando a imaginação, as crianças conse-
A brincadeira infantil opera, logicamen- guem ultrapassar barreiras intransponíveis
te, numa dimensão temporal e de espacia- à lógica logocêntrica que nos foi imposta
lidade outra: algo como um intervalo des- como verdadeira e que insistimos em assu-
contínuo entre o passado daquilo que nos mir, quando desejamos crescer para, enfim,
cerca — a memória contida em cada objeto tornamo-nos adultos, homens e mulheres
de cultura; o passado de cada homem e mu- “grandes”, seres enfim completos, acabados.
lher, menino e menina — e o futuro daquilo Deste modo, pode-se dizer que a lógica in-
que nos vigia — a Esperança dos mundos, fantil opera-se na dimensão do fantasioso,
guardada por Ñanderu, o “nosso pai divino”. somente se entendermos a Fantasia não no
A brincadeira é, assim sendo, um eterno es- sentido a que é comumente associada — ao
tar no mundo: a presentificação dos tempos descabido e ao devaneio insensato, à antíte-
antepassados e porvindouros, e a afluência se daquilo que é racional, verificável. Antes,
dos espaços remotos e contíguos. Eis o que devemos entendê-la como um agenciamen-
chamamos aqui, ao menos provisoriamente, to, uma ação poética sobre a realidade: um
de uma poética infantil-indígena. saber singular à infância, que todavia pode-
Quando monta uma escadinha de tijo- mos resguardar conosco vida adentro.
los — cinco tijolos debaixo de três tijolos A brincadeira, então, pode ser lida en-
debaixo de único tijolo (o topo da escada) quanto episteme, uma vez que não se trata
—, a menina Cariane não precisa, necessa- de mero escapismo, mas da fundação de um
riamente, chegar a algum lugar ao subir ou universo próprio da e para a infância. Quan-
ao descê-la. Do mesmo modo, ao deitar-se do Cariane Martins constrói a sua “casa pró-
sobre a tábua de madeira (a sua cama), fin- pria” usando de materiais antes descartados
gindo estar dormindo, o menino Clebison pelos seus pais (a madeira, o barro seco, as
não precisa saber se é noite ou se é dia. Li- caixas de papelão, os restos de construção),
gar e desligar a televisão de caixa de sabão a menina não está fugindo da sua realidade,
em pó é mais importante do que assisti-la mas fazendo, justamente, o contrário: está
e, para ser contada, a história do Lobo não ligando-se amorosamente ao que a rodeia
precisa realmente estar escrita nas páginas — no espaço em que se encontra e no tem-
das revistinhas e dos encartes que eles têm po presente —, num gesto inventivo, próxi-
disponíveis em sua “biblioteca”: mo ao intempestivo nietzschiano, “ou seja,
contra o tempo, e com isso, no tempo e, es- Fortunato. Mato Grosso do Sul: Espaço Imagi-
peremos, em favor de um tempo vindouro”. nário, Tenda dos Milagres, 2015. 12 minutos.
Disponível em: http://portacurtas.org.br/fil-
A fantasia, por fim, aparece aqui não mais
me/?name=cordilheira_de_amora_ii. Acesso
como o limbo do exótico para o qual os sa- em: julho de 2019.
beres não-ocidentais são subjugados, antes,
GRUZINSKI, S. A colonização do imaginário.
surge como potência combativa contra as Sociedades indígenas e ocidentalização no
amarras de uma colonização da imaginação. México espanhol. Séculos XVI-XVIII. Tradu-
O tempo e o espaço das brincadeiras da me- ção de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Com-
nininha Guarani-Kaiowá são, assim, alheios panhia das Letras, 2003.
à lógica ocidental e totalizante, esta qual MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do
prediz, ao funcionamento do todo, uma se- ser e a geopolítica do conhecimento. Moderni-
quência linear, exaustiva, enclausurante. dade, império e colonialidade. Tradução de Inês
Martins Ferreira. Revista Crítica de Ciências
Transpondo Muniz Sodré do contexto Sociais. Coimbra, v. 1, n. 80, p. 71-114, março
em que se situa, os terreiros de candomblé, de 2008.
para o cenário de Cariane, e, relacionando
MALDONADO-TORRES, Nelson. On the colonia-
-os ainda à fala de Viveiro de Castros, em seu lity of being: Contributions to the development
prefácio à Queda do Céu, de David Kopenawa of a concept. Cultural Studies, v. 21, p. 240-270,
e Bruce Albert: é preciso termos olhos para março de 2007.
ver. Assim fazem as crianças há muito tem- MIGNOLO, W. Os esplendores e as misérias da
po, dentro das matas, inteiramente livres no ‘ciência’: Colonialidade, geopolítica do conheci-
modo em que concebem e experimentam mento e pluri-versalidade epistémica. In.: Boa-
a natureza, o Todo e o particular. Aprenda- ventura de Sousa Santos (org.), Conhecimento
prudente para uma vida decente: um discur-
mos, pois, junto e com elas. so sobre as ciências revisitado. 2 ed. São Pau-
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CORDILHEIRA de amora II. Direção: Jamille 2002.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Este trabalho apresenta considerações sobre a produção literária dos Mara-
guá. Essa etnia se configura na atualidade como a maior produtora de lite-
ratura indígena do Estado do Amazonas, com cinco escritores em atuação.
Nossas considerações abrangem o processo de produção dessas narrati-
vas, oriundas da oralidade e dos saberes ancestrais, e a publicação dessas
obras. Nosso estudo apresenta ainda um mapeamento das obras publicadas
por essa etnia e discussões sobre os incentivos e os desafios enfrentados,
que vão desde o não reconhecimento dessa literatura pelo campo literário,
até questões concernentes à situação histórico-social desses escritores. O
referencial teórico foi constituído, sobretudo, pelas concepções de Souza
(2003), Almeida e Queiroz (2004), Santos (2020) e outros estudiosos que
compreendem essa literatura como um espaço fecundo para se pensar as
questões de representatividade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Literatura indígena; Maraguá; Ancestralidade.
Abstract:
The indigenous literature of the Maraguá: from
production to publication
This paper presents considerations about the literary production of the
Maraguá. This ethnic group is currently configured as the largest produc-
er of indigenous literature in the state of Amazonas, with five active writ-
ers. Our considerations cover the production process of these narratives,
which come from orality and ancestral knowledge, and the publication of
these works. Our study also presents a mapping of the works published by
this ethnic group and discussions about the incentives and challenges faced,
ranging from the non-recognition of this literature by the literary field, to
issues concerning the historical and social situation of these writers. The
theoretical reference was constituted, above all, by the conceptions of Souza
(2003), Almeida and Queiroz (2004), Santos (2020) and other scholars who
understand this literature as a fertile space to think about the issues of rep-
resentativity in contemporary times.
Keywords: Indigenous Literature; Maraguá; Ancestry.
* Doutorando em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e Mestre em
Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: francisco.santos362@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5006822830827676.
uma área de aproximadamente 700 mil hec- nia Sateré-Mawé, isso é comprovado com
tares. Esse grupo étnico é de origem Aruak, a prática do ritual da tucandeira, Waiperiá.
com forte influência Tupi. Seus integrantes Todavia, os Maraguá buscam através de
falam a língua Maraguá, um idioma misto de ações resgatar a cultura ancestral por meio
Nheengatu e Aruak, e sua cultura se baseia de práticas como o ritual Wakaripé reaviva-
na antiga cultura tapajônica. do pela etnia.
A nação Maraguá se distribui em qua- A arte de contar histórias é aprimorada
tro aldeias, todas situadas às margens do desde cedo entre os indivíduos dessa etnia.
rio Abacaxis. Sua população nessa área é O Morõgetáçara (contador de histórias) é
de pouco mais de 350 pessoas. A divisão do uma personalidade querida e requisitada
grupo é feita por clãs, mais precisamente nas rodas de conversas, de trabalhos co-
em seis principais: Piraguáguá, Çucuyeguá, munitários e festejos. Suas histórias de as-
Pirakêguá, Tawatoguá, Aripunaguá, Tawa- sombrações são temas sempre presentes
toguá e Yaguareteguá, cada um deles re- nas obras produzidas pelos escritores dessa
presentado por um animal, porém, a nação etnia.
como um todo tem como símbolo o Guarun- Nesse compasso, entende-se que uma
guá, o peixe-boi. das formas de manutenção e propagação das
A história da etnia Maraguá foi descrita histórias desse grupo é através da oralidade.
no livro Maraguápéyára (2014), organizado Na mão dos escritores Maraguá, a oralidade
por Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Roní Wa- torna-se um dos elementos constituintes de
siry Guará e Uziel Guaynê. A obra é dividida suas literaturas. É por meio desses contado-
em oito capítulos com os seguintes temas: a res de histórias, que os escritores reescre-
origem da etnia, a cultura da caça e da pes- vem os seus mitos. Portanto, nesse processo
ca, cultura e sociedade, a cultura material, a tradutório, devemos compreender a orali-
cultura agrícola, a cultura do sagrado, a cul- dade não como a ausência da escrita, assim
tura das histórias de assombração e cultura como a escrita não é um fenômeno que se
infantil. sobrepõe à oralidade.
Na referida obra, é possível compreender Os aspectos políticos da etnia também
que a manutenção da etnia é marcada por devem ser enfatizados. Os Maraguá organi-
manifestações que reforçam os laços em co- zam-se em torno de duas associações: a As-
munidade. Tais manifestações são caracteri- sociação do Povo Indígena Maraguá (ASPIN)
zadas por mudanças nas etapas de vida dos e a Associação de Mulheres Indígenas Mara-
indígenas Maraguá em sociedade, como por guá (AMIMA). O objetivo de se organizarem
exemplo, os ritos de passagem ainda hoje em associações é fortalecer a luta pela de-
praticados pela etnia, a saber: o Wakaripé, marcação de seu território.
ritual para tornar o indígena do sexo mascu- Entre os Maraguá, o ato de produzir lite-
lino adulto, o Gualipãg, ritual para tornar-se ratura ainda é uma prática muito nova, as-
caçador, guerreiro-chefe, Waiperiá, ritual da sim como para muitas populações indígenas
tucandeira e Piãg’agiré, o ritual da menina brasileiras, que há pouco tempo tem investi-
moça. do no registro de suas histórias. É mais pre-
Conforme consta na obra supracitada, os cisamente nos anos 2000 que Yaguarê Yamã
Maraguá têm estreita relação com heranças lança Mapinguary, o dono dos ossos: contos
culturais advenientes do convívio com a et- indígenas de assombração, publicado pela
Olinda do Norte – AM. Além de escritor, é contadores de histórias. É por meio do do-
ilustrador e enfermeiro. Atualmente dá pa- mínio da escrita, que passam a contar suas
lestras sobre a temática indígena e trabalha versões, apresentam seus mitos, seus sím-
na área da saúde do seu povo. Seu primeiro bolos e suas estruturas sociais.
livro publicado em coautoria com Elias Ya-
guakãg, Roní Wasiry Guará e Yaguarê Yamã O mapeamento das obras
é Maraguápéyára: história do povo Mara-
guá (2014), lançado pela editora Valer. Pelo
Maraguá
vasto conhecimento dos símbolos e mitos Com o intuito de divulgar a produção dos
de sua etnia, ilustrou os livros Wirapurus e Maraguá, assim como fornecer mais infor-
Muirakitãs (2009), As pegadas do Kurupyra mação sobre a produção literária dessa et-
(2009) e Historinhas marupiaras (2011), de nia, realizamos o levantamento das obras
autoria de Yaguarê Yamã. dos cinco escritores apresentados. Busca-
Os autores apresentados produzem li- mos em blogs, teses, dissertações, sites de
teratura em nome de uma coletividade, editoras e nas redes sociais dos autores.
são sujeitos porta-vozes, que fazem de sua Suas obras são dedicadas em grande maio-
escrita um instrumento de propagação de ria ao público infantojuvenil, as temáticas
suas visões de mundo. O objeto livro para são variadas envolvendo o universo mítico
esses escritores é um lugar de reconstrução indígena.
da memória e manutenção das histórias de Na tabela que segue, os livros estão or-
sua etnia. Seus livros são produzidos a par- ganizados por ordem alfabética a partir do
tir dos saberes tradicionais repassados pelo primeiro nome do autor. No que pertence ao
ato de narrar. São saberes coletivos em que conjunto de obras de um único autor, estas
os informantes são os anciões, os velhos estão elencadas por ano de publicação.
A tabela acima vista pelo prisma quanti- (PNBE). Lia Minápoty com a obra Com a noi-
tativo pode parecer pequena. Mas é preciso te veio o sono (2011) e Yaguarê Yamã com
ressaltar que só há pouco tempo a escrita Yaguarãboia: a mulher-onça (2013) fazem
alfabética adentrou as aldeias, e se tornou parte do repertório de obras escolhidas por
um direito básico dos povos indígenas. Por esse programa em 2014. O que em termos
fim, existem grandes possibilidades de que de representação traz visibilidade para suas
alguns títulos tenham ficado de fora da ta- produções e para a temática indígena, na
bela. Não obstante, acreditamos que fazer tentativa de desnaturalizar velhas práticas
esse levantamento contribuirá para futuras educacionais que folclorizam a imagem do
pesquisas, e para mostrar o quanto as etnias indígena.
indígenas, em particular, os Maraguá, estão Além do Programa Nacional Biblioteca
investindo na produção de seus textos. da Escola (PNBE), há também os concursos
“Tamoios” e “Curumim”, ambos apoiados
A publicação: entre o mercado e pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
os impasses Juvenil (FNLIJ). O primeiro, criado em 2004,
é direcionado a autores indígenas ou a quem
De modo geral, existe hoje uma grande pro-
possua filiação indígena, sua realização
cura das editoras por textos indígenas. Es-
tem fortalecido a cultura indígena no país.
ses textos estão cada vez mais incorporados
Roní Wasiry Guará com a obra Olho d’água:
nas metodologias de ensino de culturas in-
o caminho dos sonhos (2012) venceu a 8ª
dígenas nas escolas. Nessa conjuntura, de-
edição do concurso. O segundo, criado em
vemos pensar o que fez surgir esse interesse
2003, é direcionado para profissionais que
e quem está por trás dessas publicações?
trabalham com a promoção de obras literá-
De forma a responder essas questões,
rias de autoria indígena.
ousamos dizer que o interesse pela publi-
Sobre os referidos concursos, a escri-
cação dessas obras surge em conjunto com
tora e pesquisadora indígena Julie Dorrico
leis, planos e programas de alfabetização
(2019, s/p), nos diz que:
que pedem a inserção da temática indígena
nas escolas. A título de exemplos, temos a O contraponto está na atuação dos próprios
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- escritores que promovem concursos literá-
rios, como o Curumim, que premia profes-
cional – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
sores da educação básica que trabalha com
1996; a Lei nº 11.645, de 10 de março de
literatura indígena na sala de aula, e o Ta-
2008 e o Plano Nacional da Educação (PNE moio, que busca novos escritores indígenas
– decênio 2011-2020). Essas conquistas para somar ao movimento. Ambos, Curu-
para os grupos indígenas são frutos de lutas mim e Tamoio, são realizados desde o ano
intermediada por ativistas indígenas e não de 2004 sob direção de Daniel Munduruku,
indígenas, assim como ONGs e associações com apoio da Fundação Nacional do Livro
de escritores indígenas. Infantil e Juvenil (FNLIJ) (DORRICO, 2019,
s/p).
Nesse contexto, os escritores Maraguá,
assim como outros grupos, têm se benefi- O mérito de incentivos às publicações
ciado com essas conquistas. Eles estão pre- dos escritores indígenas, de modo geral, es-
senciando suas obras serem escolhidas para tende-se também à ONG “Opção Brasil”, que
compor programas educacionais, como o desenvolve trabalhos sobre a cultura indíge-
Programa Nacional Biblioteca da Escola na e já promoveu parcerias para a publica-
Ainda sobre o tema dos desafios, é preci- Até dez anos atrás não se pensava que o ín-
so olharmos para a situação histórico-social dio podia escrever livro, no entanto, hoje
desses escritores. Esse é um tema não me- isso é uma demanda, existem editoras que
procuram autores indígenas. Elas estão
nos importante que se bem observado impli-
aproveitando o momento econômico e o
ca diretamente em termos quantitativos na momento ideológico, que é o de colocar a
produção e no surgimento de novos nomes. temática indígena na escola. E quem é que
Entre os Maraguá, diante dos aspectos bi- pode falar disso? Existe uma compreensão
bliográficos dos escritores apresentados, foi das editoras de que é importante alimentar
possível perceber que todos possuem uma o mercado com literatura escrita pelos indí-
segunda profissão como forma de se autos- genas (MUNDURUKU, 2010, p. 12).
sustentar. Pierre Bourdieu (1996), já havia O interesse das editoras pela publica-
notado esse fato no contexto da França. Para ção das obras indígenas se limita às regiões
o estudioso, a “profissão” de escritor ou de mencionadas. Essa assertiva é confirmada
artista é uma das menos codificadas que pelo levantamento das obras Maraguá (Ta-
existem; uma das menos capazes também bela 01). No Amazonas, Estado dos referi-
de definir (e de alimentar) completamente dos escritores, apenas a editora Valer tem
aqueles que dela se valem e que, com muita investido na publicação de obras indígenas.
frequência, só podem assumir a função que Um exemplo é o projeto da coleção “Nheen-
consideram como principal com a condição gatu – narrativas indígenas”, que contribuiu
de ter uma profissão secundária da qual ti- com o registro de inúmeras obras de comu-
ram seu rendimento básico. nidades tradicionais. Quanto aos incentivos
Entre os escritores Maraguá, a profissão advindos do Governo do Estado do Amazo-
de professor e artista plástico é numero- nas, a etnia Maraguá não tem recebido, haja
sa, o que justifica a discussão acima. Nes- vista que o Estado só tem financiado obras
se sentido, é preciso dizer que o mercado de caráter pedagógico, como é o caso do
editorial não oferece segurança financeira Programa de Educação Escolar Indígena –
para esses indivíduos se dedicarem unica- Pirayawara, com projetos de ações, dentre
mente ao ofício de escritor. O que pode de- os quais o Projeto de Formação de Profes-
sestimular a classe e impedir o surgimento sores Indígenas e Produção e Editoração de
de novos escritores. Além da questão da Material Didático-Pedagógico. Por isso, es-
remuneração, esses escritores ainda lutam ses escritores dependem da ação de edito-
contra a falta de estímulos das editoras co- ras de outros Estados.
merciais do próprio Estado. A maioria de Esses sujeitos produtores de literatura
suas obras são publicadas pelas editoras procuram outras formas para publicizar e
comerciais do sul e sudeste do país, que de- divulgar suas obras. Um exemplo, são as re-
monstram grande interesse nos autores in- des sociais, que tem servido para a divulga-
dígenas. Assim, entende-se que o trabalho ção do pensamento indígena. Sobre as possi-
dessas editoras tem sido importante para a bilidades de publicação, Dalcastagnè (2012)
divulgação da literatura Maraguá e de ou- afirma que nos últimos anos, houve uma am-
tras etnias. Daniel Munduruku, escritor re- pliação de espaços de publicação, seja nas
conhecido pela sua extensa produção, fala grandes editoras comerciais, pequenas ca-
sobre esse recente interesse das editoras sas editoriais, em edições pagas, sites, blogs
pelas obras indígenas: etc. Os escritores indígenas estão ocupando
muitos desses espaços, mas são poucos os zá-la a favor da gente indígena. Técnica não
que conseguem fazer essa literatura circu- é negação do que se é. Ao contrário, é afir-
lar, chegar às grandes editoras e livrarias. mação de competência. É demonstração de
capacidade de transformar a memória em
No cerne dessa questão, assume especial re-
identidade, pois ela reafirma o ser na medi-
levância o pensamento de Márcia Kambeba da em que precisa adentrar no universo mí-
(2018), sobre o número ainda pequeno de tico para dar-se a conhecer ao outro.
escritores, que tem feito da literatura indíge-
O papel da literatura indígena é, portanto,
na uma luta de resistência circulante, aden- ser portadora da boa notícia do (re)encon-
trando editoras e universidades. É preciso tro. Ela não destrói a memória na medida em
encontrar formas de promover novos escri- que a reforça e acrescenta ao repertório tra-
tores para que seus trabalhos cheguem aos dicional outros acontecimentos e fatos que
espaços educacionais. Fazer essa literatura atualizam o pensar ancestral.
circular, é permitir que seus autores falem Munduruku (2011) sintetiza na citação
de suas realidades, suas cosmologias e de acima, o que está acontecendo na atualida-
um universo ainda desconhecido. de, os escritores estão aprendendo outras
formas de reivindicar, ou seja, enxergam na
Literatura como reivindicação de literatura uma forma de reversão da ima-
espaço e autoafirmação gem de sujeitos representados e se colocam
Como já discutido, a produção literária dos como protagonistas de suas histórias. Na
Maraguá é, em sua maior quantidade, volta- visão de Almeida e Queiroz (2004), essa
da para um público leitor não indígena em prática de produção de livros indígenas, nas
formação. Esse endereçamento é uma forma últimas décadas no Brasil, tem adquirido,
de dialogar com as novas gerações sobre a com a conjugação de vários elementos, tal
importância da cultura indígena em um país visibilidade, que chega a iluminar o passado
multicultural como o nosso. Desse modo, é e o futuro dos usos da linguagem, no meio
a partir de uma literatura produzida com a em que ela acontece.
intenção de mostrar outros mundos, que os Não se trata de uma invenção qualquer. Tra-
Maraguá e outros grupos étnicos estão rei- ta-se de uma deliberação política. Os escri-
tores indígenas o fazem de um território
vindicando espaço, fortalecendo suas iden-
imaginário, em que as coisas se renomeiam,
tidades e registrando para a posteridade. no exercício da ocupação do solo simbólico.
Esses escritores escrevem para se reafir- A escritura é coletiva porque é inscrição do
marem, para mostrar que a cultura indíge- que é comum, ou de um consenso em torno
na existe e resiste a muitas formas de apa- do “quem somos”. É política porque reorde-
gamentos. Querem falar com legitimidade, na a coletividade, valendo-se das palavras
mostrar outras formas de discurso. Nas pa- pelos seus representantes (ALMEIDA; QUEI-
ROZ, 2004, p. 197).
lavras de Daniel Munduruku (2011, s/p):
É preciso interpretar. É preciso conhecer. É As narrativas indígenas, mais precisa-
preciso se tornar conhecido. É preciso escre- mente a dos Maraguá, apresentam estéticas
ver – mesmo com tintas do sangue – a histó- diferentes – novas imagens, novas palavras,
ria que foi tantas vezes negada. outras percepções de mundo, impedidas se-
A escrita é uma técnica. É preciso dominar cularmente de serem expostas. Hoje, esses
essa técnica com perfeição para poder utili- escritores aproveitam o espaço da literatu-
apenas emprestam seus nomes, são os por- GRAÚNA, G. Contrapontos da Literatura Indí-
ta-vozes de seus clãs. gena contemporânea no Brasil. Belo Horizon-
te: Mazza Edições, 2013.
A partir do levantamento feito das obras
produzidas pelos Maraguá, é possível com- GUARÁ, R. W. Çaíçú’indé: o primeiro grande
amor do mundo. Manaus: Editora Valer, 2011.
preender que as editoras comerciais que
estão publicando essas obras estão localiza- GUESSE, É. B. Shenipabu Miyui: literatura e
das nas regiões Sul e Sudeste. Nessa conjun- mito. Tese (Doutorado em Estudos Literários)
– Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
tura, mesmo com os incentivos recebidos de Estadual Paulista, São Paulo, 2014.
concursos, ONGs e programas federais, ain-
KAMBEBA, M. W. Literatura indígena: da ora-
da é preciso políticas de incentivos e divul-
lidade à memória escrita. In: DORRICO, J. et al.
gação para que essa literatura figure ainda (Orgs.). Literatura indígena brasileira con-
mais nos espaços educacionais e alcance um temporânea: criação, crítica e recepção. Porto
número maior de leitores. Alegre: Editora Fi, 2018. p. 39-44.
Enfim, com base nas considerações so- MINÁPOTY, L. Lua menina e menino onça.
bre os escritores Maraguá é possível pensar Ilustrações de Suryara Bernardi. Belo Horizon-
te, RHJ editora, 2014.
a situação de quem escreve literatura indí-
gena no Brasil. Os desafios são muitos para MUNDURUKU, D. Entrevista. Entrevistadora:
os povos indígenas que sempre estiveram à Roma Gonçalves Lemos. Rio de Janeiro: Peda-
gogia em foco, 19 nov. 2010.
margem, mas aos poucos estão assumindo
seus lugares de fala e a literatura tem sido MUNDURUKU, D. Escrita indígena: registro, ora-
lidade e literatura. 2011. Disponível em: https://
um instrumento legítimo para isso.
emilia.org.br/escrita-indigena-registro-oralida-
de-e-literatura/. Acesso em 02/03/2022.
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zonte: Autêntica: FALE: UFMG, 2004. pessoa.org/pt/conteudo/historia/o-satere-es-
BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e es- critor-44605. Acesso em 21/02/2022.
trutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia SANTOS, F. B. Uma poética da floresta: a nar-
Machado. São Paulo: Cia da Letras, 1996. rativa indígena no Amazonas. Dissertação (Mes-
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 9º ed. trado em Letras e Artes) – Universidade do Es-
Ouro sobre azul: Rio de Janeiro, 2006. tado do Amazonas, Manaus, 2020.
YAMÃ, Y.; YAGUAKÃG, E.; GUAYNÊ, U.; GUARÁ, R. Recebido em: 09/05/2022
W. Maraguápéyára: história do povo Maraguá. Aprovado em: 24/05/2022
Manaus: Valer, 2014.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Pensando sobre os meios de comunicação indígena nas plataformas sociais
(Facebook), neste artigo estudo duas narrativas que versam sobre as intera-
ções entre humanos e mais- que-humanos em dois textos publicados por um
locutor Kayapó, Okreãjti Metuktire1. O primeiro post, O pensamento das mos-
cas, é apresentado em forma de diálogo e o segundo, O Júpiter para os Kaia-
po, narra uma mitologia contada por antepassados Kayapó. Essa pesquisa
faz parte de uma etnografia digital em que estudo os universos textuais Ka-
yapó produzidos por falantes bilíngues (Mebêngôkre-Português) nas redes
sociais. O que me chama à atenção nessas postagens são as formas como
as interações entre as multiespécies têm alcançado às plataformas virtuais
através de mediadores/lideranças indígenas, que usam seus perfis públicos
para falar sobre as histórias de seu povo, combinando suas narrativas às
ações políticas indígenas a partir de diferentes sujeites discursivos.
Palavras-chave: Narrativas Kayapó; Multiespécies; Interações; Redes so-
ciais.
Abstract:
The thought of flies and the Jupiter for the Kayapó:
reflecting on narratives and interactions between
humans and more-than-humans in cyberspace
Thinking about the indigenous media on social platforms (Facebook), in
this article I study two narratives that deal with the interactions between
humans and more-than-humans in two Kayapó texts, Okreãjti Metuktire.
The first post, The thought of flies, is presented in the form of dialogue and
the second, Jupiter for the Kaiapó, narrates a mythology told by Kayapó an-
* Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. Mestranda em
Diversidade Sociocultural pelo Museu Emílio Goeldi (MPEG). Mestre em Linguagens e Saberes na Amazô-
nia (UFPA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2150009973641188. E-mail: mih.machado02@gmail.com
1 Agradeço ao escritor Okreãjti Metuktire por compartilhar e permitir as análises de seus textos disponí-
veis no Facebook, o que possibilitou a realização deste estudo.
Introdução
No campo de estudos da enunciação exis- sibilidades de interfaces entre a antropolo-
tem várias formas de conceber a linguagem: gia linguística e a etnologia indígena. Sendo
como expressão do pensamento, como ins- assim, considero a interação ou o encontro
trumento de comunicação e como forma entre as multiespécies um campo amplo de
ou processo de interação (CUNHA, 2007). experiências possíveis a partir das ações e
O conceito mais contemporâneo dedica-se a autonomia dos diferentes sujeites (huma-
à linguagem como uma atividade de inter nos e não-humanos) que executam ações
(ação), cujos participantes se comportam conforme as suas necessidades adaptativas,
conforme as ações e intenções dos mesmos de sobrevivência e de recriação.
no ato comunicativo. Apesar de esse ser um Nas análises sobre as produções discur-
campo amplo de análises, normalmente, sivas e/ou narrativas Kayapó trato de uma
seus estudos concentram-se nas manifesta- antropologia linguística para além do huma-
ções da linguagem verbal e não verbal hu- no, a partir de histórias não-ocidentais que
mana. descrevem, de certa forma, interações e en-
Neste trabalho, utilizo a concepção da contros entre os seres que habitam o mun-
linguagem enquanto inter(ação), ampliando do. Apesar de minha ênfase recair sobre as
seus debates para entender as experiências/ agências dos povos originários, reconheço
interações do ser humano e dos mais-que que estas ações não são únicas ou exclusivas
-humanos (não humanos) em suas diversas da espécie humana3, mas das multiespécies
formas de se relacionar com o mundo. Tomo (LIMA, 1999; TSING, 2018).
como ponto de análise as narrativas indíge- O conceito de agência linguística, aqui
nas, em especial Kayapó2, conforme as pos- apresentado, foi inspirado na obra Agency
in Language do antropólogo linguista Ales-
2 Os Kayapó são povos originários da região do
Cerrado, passaram por longas diásporas, estabe- sandro Duranti. Para o autor (2004, p.452),
lecendo-se nos estados do Mato Grosso e Pará. “a agência é encenada e representada na (e
Conforme Salanova (2001, p.1) Mebêngôkre é o
nome da língua falada por duas nações do cen- Iriri, na AI Kararaó. Os Xikrin habitam duas re-
tro-norte do Brasil, os Xikrin e os Kayapó. O ter- giões descontínuas no Pará: a AI Cateté, situada
mo Mebêngôkre pertence a estas duas nações. em torno ao rio homônimo, afluente do Itacaiú-
Estão localizados em uma grande área que se nas, que por sua vez tem sua foz no Araguaia, e a
estende do norte do Mato Grosso (AI KapôtjJa- AI Bacajá (VILLAS-BÔAS, 2019).
rina), à região sul do Pará (AI Baú: Mekranotire, 3 Para a autora uma perspectiva dedicada apenas
AI Mekranoti, AI Kayapó e AI Badjonkôre), desde à experiência humana corre o risco de perder
os afluentes do Rio Fresco (afluente do Xingu) ao de vista a própria interferência de outros seres
leste, até os afluentes do Rio Curuá. A oeste, há na própria socialidade humana (TSING, 2018, p.
alguns Kayapó que vivem no baixo curso do Rio 233-235).
através) da linguagem”, ela constitui tam- mar Prado), um ser encantado que se trans-
bém a propriedade daquelas entidades que forma em sucuri. O enredo apresenta a con-
têm algum grau de “controle sobre seu pró- tinuidade de narrativas com a presença de
prio comportamento, cujas ações no mun- várias vozes que fogem às histórias ociden-
do afetam outras entidades e cujas ações tais, marcando um passado histórico cons-
são objeto de avaliação” (DURANTI, 2004, truído por narrativas indígenas e de povos
p.454). Partindo desse princípio, diferentes de matriz africana.
seres podem agir através da linguagem ou No cenário amazônico, por exemplo, di-
mediados pela mesma. ferentes narrativas contam situações de en-
Para exemplificar essas agências consi- contros entre humanos e mais-que-huma-
dero os encontros, desejados ou não, entre nos, em alguns casos, esses seres se fundem
ontologias que se conectam no ato comuni- em um mesmo corpo, seja no ambiente da
cativo, reporto-me aos saberes tradicionais floresta ou no centro urbano. Sendo assim,
e as fontes orais que têm sido vias comunica- lugares, paisagens sagradas, seres encanta-
ção e de registro das experiências, transfor- dos, horário sagrado dos rios, animais que
mações e interações entre as multiespécies protegem as cidades, bem como plantas
nas sociedades ao longo do tempo. Sobre a que curam, cuja aparência e coloração de-
questão do tempo, é importante ressaltar senham a enfermidade para que servem, as
que os sentidos são construídos e desloca- plantas encantadas que protegem as casas,
dos historicamente através da linguagem, se transformam em indígena, como o Tajá
Orlandi (2011) baseada nos estudos de Mi- (Caladium bicolor), todos são patrimônios
chel Pêcheux, destaca: biosocioculturais que fazem parte da his-
Elementos da sequência textual [...] podem tória, saberes e memórias dos diferentes
ser importados (meta- forizados) de uma coletivos étnicos, do caboclo, ribeirinho ou
sequência pertencente a uma outra forma- camponês, demonstrando as diferentes lin-
ção discursiva [...] as referências discursivas guagens entre os antepassados e as enti-
podem se construir e se deslocar historica- dades sencientes (montanhas, água e terra
mente. (ORLANDI, 2011, p.158).
— aquilo que chamamos de “natureza”) (DE
Sobre o deslocar de referências discur- LA CADENA, 2018, p.1).
sivas historicamente, citarei o caso de uma São experiências simbólicas que ocorrem
novela com grande representatividade para nos entrecruzamentos de diversas histórias
o público em diferentes tempos, Pantanal. A em diferentes regiões do Brasil, em menor
mesma foi exibida na TV Manchete em 1990 ou maior grau. Todavia, o que ocorre hoje, é
e atualmente tem o seu remake apresenta- que essas interações, comunicações e justa-
do pela TV Globo. A interface entre a nove- posições, sobretudo as contadas nas narrati-
la e a temática aqui discutida concentra-se vas indígenas estão cada vez mais presentes
na relação entre humanos e não-humanos. nas conexões no ciberespaço, enfatizando a
No caso do remake em 2022, vemos histó- importância dessas linguagens, encontros e
rias de amor atreladas a uma determinada saberes para sobrevivência e reafirmação de
“consciência ecológica” amparada na biodi- todas as espécies. Nesse sentido, de forma a
versidade do Pantanal. Como personagens, ampliar debates sobre as interações entre
ressalto a Maria Marruá (Juliana Paes) que as multiespécies no espaço digital e os fe-
se transforma em onça e o Velho do Rio (Os- nômenos resultantes dessas manifestações,
viso observar como um locutor Kayapó têm florestas. Essa temática profícua volta-se
se articulado e usado as plataformas sociais na desconstrução e superação de antigas
(Facebook), combinando as narrativas an- dissensões entre as múltiplas linguagens
cestrais, que falam de “eus” e “outros”4, às ligadas aos saberes tradicionais e ao conhe-
ações indígenas no contexto conflituoso e cimento hegemônico-universal, que duran-
negacionista da sociedade brasileira. te anos silenciou e objetificou as ações dos
Para isso, uso como fonte de análise duas povos originários e dos diferentes sujeites
produções textuais publicadas por Okreãjti (não-humanos), colocando-os nos papéis
Metuktire, conhecido como Patxon, em suas temáticos de objeto ou pacientes da ação do
redes sociais. A história de vida de nosso lo- homem.
cutor foi descrita no site raoni.com: A chamada virada ontológica nas ciên-
Eu sou indígena da etnia kaiapó, sou jovem e cias humanas tem despertado nos pesqui-
tenho sonho de ser advogado, ser promotor. sadores e nos diferentes agentes estudos
Também tenho sonho de ser contador. Ou que “descortinam o mundo de outros orga-
outro profissional qualquer, desde que seja nismos”, de acordo com Anna Tsing (2019).
importante para mim e para meu povo. Pois Algo que até então, tinha sido sufocado pe-
esses sonhos meus de ser profissional não é
las insensibilidades do conhecimento uni-
para um serviço no meio urbano ou mesmo
para eu ser autônomo, assim como o fazem
versal-ocidental-homogeneizador. Os estu-
esses profissionais da cidade. Tenho sonho dos atuais passaram a se preocupar sobre
de ser esse profissional, mas para ajudar como os povos originários, coletivos étnicos
meu povo indígena, tenho sonho de ser esse e as multiespécies se conectam5 para sua so-
profissional para estar junto com meu povo. brevivência, resistência e recriação, partin-
Defender a causa indígena diante dessa gen- do da ideia de que “o mundo é habitado por
te interesseira que utilizam as ferramentas
diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,
políticas para aumentar os seus lucros e o
humanas e não humanas, que o apreendem
valor de seus patrimônios. Este é meu inte-
resse. Este sim é meu objetivo, a minha mis- segundo pontos de vista distintos” (VIVEI-
são. (METUKTIRE, 2012). ROS DE CASTRO, 2002, p. 347).
Okreãjti Metuktire é uma liderança que O mito e os sujeites que povoam
assim como o seu avô, o cacique Raoni Me-
tuktire, luta pela floresta amazônica. Di- as mitologias ameríndias
ferentes ações fazem parte das histórias Se quisermos saber algo sobre interação,
desses defensores das florestas e das cultu- encontro ou justaposição de histórias “pre-
ras originárias, em especial Kayapó. Neste cisamos saber sobre os mundos sociais que
artigo, minha atenção está voltada para as outras espécies ajudam a construir” (TSING,
diferentes produções textuais de Patxon, 2019, p.128). É fato que os humanos são
narrativas que desvelam as multivozes das linguísticos, porém não podemos descartar
uma série de outros elementos manifesta-
4 A ocorrência de “eus” e “outros” marcam a po-
lifonia de vozes ou as formas de referenciar os dos pelas multiespécies, sinais que podem
interactantes de um texto (oral ou escrito) de ser traduzidos de várias formas quando
forma marcada ou não (AUTHIER-REVUZ, 1990).
O conceito de heterogeneidade discursiva pode 5 Entidades dotadas de propriedades específicas
ajudar a desvelar as marcações dos diferentes que as tornem aptas ou não ao estabelecimen-
sujeitos que se relacionam simbolicamente pela to de determinadas conexões (DESCOLA, 2015,
linguagem ou multilinguagens no mundo. p.04).
prestamos atenção a eles. A esse respeito jetivo. Meio cujo fim, justamente a mitologia
tomamos como exemplo o mito e os sujeites se propõe a contar”. Segundo o autor, para
que povoam as mitologias indígenas para os povos ameríndios a natureza e a cultura
verificar os “eus” e os “outros” que marcam são parte de um mesmo campo sociocósmi-
os encontros e os (des)encontros no mundo. co (LÉVI-STRAUSS, 1964 apud VIVEIROS DE
Segundo Lévi-Strauss (2008, p.75), o CASTRO, 2002, p.369).
mito pode ser tratado como modo de comu- São justamente nos mitos, nas narrativas,
nicação, pois ele “se manifesta como meta- nos léxicos e nas manifestações que pode-
linguagem: faz pleno uso do discurso, mas mos encontrar o que os povos originários e
situando as oposições significantes que lhes seus locutores “outros” se propõem a contar.
são próprias num grau maior de comple- Não obstante, é importante ponderar que
xidade que o solicitado pela língua”. Ainda nem todas as espécies, por exemplo, costu-
com o autor, é importante lembrar que os mam aparecer nessas literaturas, havendo
interlocutores dos mitos nem sempre são uma certa “hierarquização” entre as espé-
parceiros uns dos outros no interior de um cies/entidades que se interacionam com os
mesmo sistema de comunicação. humanos nos mitos, ritos ou narrativas.
As multilinguagens, portanto, excedem Viveiros de Castro (1996, p.118) em
as comunicações de um mesmo código lin- suas conceituações sobre o perspectivismo
guístico e o processo de pronominalização ameríndio, ao citar Vilaça (1992) e Arhem
ou referência dos “outros” (sujeites) pode (1993) pontua que: “via de regra, todos os
ser marcado de várias formas e entendi- animais (além de englobar outros seres); a
mentos no texto (mito, rito, narrativa, conto, ênfase parece ser naquelas espécies que de-
entre outros). Portanto, cada locutor mar- sempenham um papel simbólico e prático
cará de alguma forma as vozes “outras” que de destaque, como os grandes predadores,
ocorrem nas interações, pois o discurso de rivais dos humanos, e as presas principais
um pode vir a habitar o discurso do outro dos humanos”. Podemos citar a onça, a co-
e vice e versa, na chamada heterogeneidade bra e o jacaré, como espécies que aparecem
discursiva (AUTHIER-REVUZ, 1990). em grande parte nas narrativas ameríndias.
No contexto das interações entre huma- Na própria novela citada, o Pantanal, ve-
nos e não humanos, Philippe Descola (2015, mos a presença da cobra e da sucuri, dois
p. 08) destaca o tratamento peculiar com predadores e desejo de caça, que indepen-
que os povos originários se dedicam aos dente do povo, sejam eles de línguas da fa-
animais: “os animais são, entretanto, consi- mília Jê ou Tupí, aparecem constantemente
derados pessoas com quem os humanos po- nas mitologias, festas, homenagens, rituais,
dem, e devem, interagir de acordo com re- nas estéticas corporais, nos grafismos e nas
gras sociais”. Em estudos pretéritos sobre o diferentes representações simbólicas dos
mito e os personagens que povoam as mito- povos.
logias ameríndias, Lévi-Strauss (1964, p.19 Retomando o que nos diz Descola (2015),
apud VIVEIROS DE CASTRO 2002, p.355- os humanos podem e devem interagir com os
369) assinala que “o mito fala de um estado animais. Contudo, nem sempre todas as in-
do ser onde os corpos e os nomes, as almas e terações ou encontros são bem vindos, pois
as ações, o eu e o outro se interpenetravam, cada agente possui “pontos de vista distin-
mergulhados em um mesmo meio pré-sub- tos” quando diferentes ontologias se encon-
sobre os incômodos das moscas e a capaci- Assim, como em outras histórias, os ele-
dade de consciência expressa no zumbizar mentos do universo aparecem nas relações
ou nas formas de ludibriar as armadilhas de diretas entre humanos e não-humanos.
afastamento com o uso do saco plástico. Da história da estrela podemos identifi-
Seguindo a tentativa de observar como car alguns referentes Kayapó, como: o choro
humanos e não humanos podem interagir, tradicional, a celebração de uma amizade
destacamos a narrativa de Tàkàk, publicada especial, a festa de Tàkàk; a música da es-
por Okreãjti Metuktire. trela Majyryti; e o ritual de nomeação Tàkàk,
através do acréscimo de outros nomes ou
O Júpiter para os Kayapó sufixos (que apresente outras caracterís-
Figura 02 – O Júpiter para os Kaiapó ticas do indivíduo nomeado) à base lexical
Tàkàk. São histórias herdadas que agora es-
tão sendo contadas no Facebook.
Assim, tanto o conjunto de códigos de
uma língua, bem como as multilinguagens
expressam a história, as crenças e a cosmo-
logia de diferentes pontos de vista, além de
ser instrumento de defesa, de posições éti-
cas, de manifestações contracoloniais, ações
e resistências. Apesar do glotocídio vivido
pelos povos originários no Brasil, esses po-
vos não assistiram ou ficaram estáticos ao
processo de colonização europeu, diferen-
tes atitudes linguísticas foram e ainda são
tomadas para a manutenção e sobrevivência
das suas línguas e culturas, como as publica-
Fonte: Metuktire (via Facebook), 2020. ções de narrativas Kayapó.
paço social (FREITAS, 2018, p.02). Um cam- comunicação feita pelos indígenas para os
po rico de possibilidades analíticas por ser indígenas a partir de suas próprias práticas
composto de múltiplos e diversos espaços e conceitos culturais, daí a sua importância
de onde emergem polifonias. (TUPINAMBÁ, 2016).
Okreãjti é um escritor indígena, da orali- Os conteúdos da Rádio Yandê e as produ-
dade ao Facebook, apresenta um estilo pes- ções de Okreãjti Metuktire têm em comum
soal de comunicar os saberes de seu povo o uso do ciberespaço como vias comunica-
aos leitores, usa relatos autobiográficos des- tivas e expressivas para promover o forta-
critos ortograficamente em português e Me- lecimento, reconhecimento, visibilidade e
bêngôkre para contar histórias, esclarecer respeito aos povos originários. Além disso,
informações sobre o modo de pensar Kaya- as ferramentas digitais alternativas e seus
pó, divulgar eventos, falar sobre os anciões diferentes recursos linguísticos são usadas
das aldeias, da sua língua indígena, das mú- para romper com estereótipos vinculados
sicas Kayapó, como do Forró NB, entre ou- pelas mídias oficiais.
tros assuntos pertinentes a participação e à A imersão nas plataformas sociais por
garantia dos direitos indígenas. meio da etnografia digital e da leitura de
As expressões das agências indígenas nos produções textuais de alguns locutores indí-
dias atuais ocorrem em diferentes campos e genas permite desvelar a presença de outras
áreas, apesar dessas manifestações parece- vozes (humanas e não humanas). Nesse sen-
rem algo novo, o protagonismo indígena se tido, os textos além de materialização do pen-
constituiu ao longo de diferentes processos samento, marcam as diferentes vozes, dada a
sociais nos quais os grupos estão inseridos. sua polissemia, em um movimento dialógico
No caso dos meios de comunicação indígena, com o meio físico e os espaços da floresta,
temos diferentes exemplos de mobilizações da aldeia ou do céu, como foi observado em
marcados para superar homogeneizações Tàkàk. Portanto, o caráter interacional da
comunicacionais e colonizadoras. linguagem e da constante auto-organização
A Rádio Yandê6, por exemplo, é a primei- cultural e linguística garante a existência e
ra web rádio indígena do Brasil, inspirada resistência dos povos originários no enca-
em pensadores, como Ailton Krenak e fun- minhamento das políticas culturais dos indí-
dada por intelectuais indígenas. Foi cons- genas e para os indígenas em conformação a
truída teoricamente nos conceitos de et- cada momento de sua existência (CARNEIRO
nomídia e etnomídia indígena. Conforme a DA CUNHA; CESARINO, 2014).
jornalista Renata Tupinambá (2016), “etno- De tal modo, as narrativas e interações
mídia é uma ferramenta de empoderamento entre as espécies no ciberespaço ocorrem
cultural e étnico, por meio da convergência pela mediação de escritores/autores indí-
de várias mídias [...], podendo ser executa- genas, que ao mesmo tempo, atuam na de-
da por diferentes identidades étnicas e cul- fesa dos direitos indígenas e trazem para os
turais”. Já a etnomídia indígena consiste na debates virtuais as formas como humanos e
6 A Rádio foi criada em 2013 por Anápuáka Tupi-
não humanos se relacionam com o mundo,
nambá, Renata Tupinambá e Denilson Baniwa mesmo em tempos históricos pretéritos.
com o intuito de valorizar a cultura, arte, músi- Essas formas de narrar e se posicionar
ca, educação, língua, filosofia e história indígena
(TUPINAMBÁ, 2016. Rádio Yandê - Disponível
nos reporta às reflexões de Davi Kopena-
em: <https://radioyande.com/>. wa, no livro A queda do céu: palavras de um
xamã Yanomami, o pensador ativista políti- Para além da “política étnica”, os mo-
co yanomami com a coautoria de um fran- vimentos indígenas atuais propõem uma
cês, disserta para os não indígenas e deixa prática política diferente e plural, pois têm
o seu recardo sobre a destruição do plane- evocado entidades sencientes, tais como:
ta. Nos capítulos que compõem o livro, Davi montanhas, água, floresta, estrelas e terra,
Kopenawa descreve a cultura ancestral, a si- elementos da “natureza”, para o interior da
tuação atual do seu povo, a origem mítica, a arena política. São modos de ver o mundo
dinâmica invisível do mundo, as monstruo- que certamente interferem na interpretação
sidades da civilização ocidental e as previ- do presente e no antever (ou mesmo pres-
sões futuras para a humanidade a partir do crever) o futuro (OLIVEIRA, 2016, p.10),
ponto de vista indígena e da incapacida- como veremos nas análises a seguir.
de do “homem máquina” de compreender A esse propósito também destacamos
a floresta e a “natureza mítica das coisas” que além da arena política, os não huma-
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.12-13). nos estão presentes nas diferentes produ-
Nessas produções os autores trazem ções textuais indígenas, como as de Davi
para as zonas textuais seus conhecimentos Kopenawa, Ailton Krenak, Mokuká Kayapó
de mundo, a fim de resistir e conscientizar
e Okreãjti Metuktire. Sobre o acesso à jus-
o “branco” da destruição das florestas e con-
tiça de povos indígenas na América, Ailton
sequentemente do planeta. São abordagens
Krenak (2019), em Ideias para adiar o fim
que resistem “à total dissolução pelo liquidi-
do mundo, desvela o olhar de um escritor,
ficador modernizante ocidental” e se defen-
ambientalista e liderança indígena que teve
de das ações e discursos de um progresso
seu território de origem profundamente
marcado na destruição dos saberes, das flo-
afetado pela atividade de extração de mi-
restas e dos coletivos étnicos (KOPENAWA;
nérios. Em suas disposições conceituais,
ALBERT, 2015, p.15).
o autor chama atenção para o rompimen-
Para melhor ilustrar esses fenômenos
to da distinção entre terra e humanidade,
consideramos o caso de eventos políticos re-
centes na América Latina, como no Peru, no pois para ele “tudo é natureza. O cosmos é
Equador e na Bolívia, estudados por Marisol natureza”, vejamos:
De La Cadena (2019, p.01), em que a política Tem uma montanha rochosa na região onde
praticada pelos povos indígenas para fazer o rio Doce foi atingido pela lama da mi-
neração. A aldeia Krenak fica na margem
prevalecer seus direitos culturais tem sido
esquerda do rio, na direita tem uma serra.
classificada como “política étnica”.
Aprendi que aquela serra tem nome, Taku-
Segundo De La Cadena (2019, p.01), para krak e personalidade. De manhã cedo, de lá
o movimento indígena popular a noção de do terreiro da aldeia, as pessoas olham para
indigeneidade está relacionada a uma for- ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é me-
mação histórica que excede a noção usual lhor ficar quieto. Quando ela está com uma
de política tais como conhecemos, pois, seus cara do tipo “não estou para conversa hoje”,
princípios fundamentam-se na cosmopolíti- as pessoas já ficam atentas. Quando ela ama-
nhece esplêndida, bonita, com nuvens cla-
ca de diferentes grupos, ressaltando a im-
ras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeita-
portância da natureza para a sobrevivência da, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar,
das espécies, em diferentes lutas, como, por pescar, pode fazer o que quiser”. (KRENAK,
exemplo, posições antimineração. 2019, p.10).
A serra narrada por Krenak tem cara, ex- expressões que a partir de seus autores vêm
pressa se o dia vai ser bom ou ruim, apre- adaptando as mais variadas adversidades,
sentando uma linguagem específica para formas e ferramentas de interação para ma-
aqueles que conseguem entender. Observo nutenção dos repertórios biosocioculturais,
os textos/narrativas dos mediadores indí- saberes e posicionamentos étnicos.
genas como um complexo de diferentes vo- Como ressalta Davi Kopenawa:
zes e ações discursivas no tempo e no espa- Na floresta, a ecologia somos nós, os huma-
ço (físico ou virtual). nos. Mas são também, tanto quanto nós, os
Como tal, os textos têm sido registros xapiri, os animais, as árvores, os rios, os pei-
históricos das mudanças e adaptações de xes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo
um povo, como os Kayapó. As narrativas que veio à existência na floresta, longe dos
provêm da necessidade de produção, ar- brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As
mazenamento, expressão, transmissão e palavras da ecologia são nossas antigas pa-
lavras, as que Omama [o demiurgo yanoma-
reelaboração dos conhecimentos sobre os
mi] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defen-
sujeites e o meio físico. Neste contexto, não dem a floresta desde que ela existe. Semper
só os Kayapó como os diferentes locutores do nunca lado de nossos ancestrais, por isso
indígenas têm acompanhado as profundas a devastaram. Ela continua bem viva, não é?
mudanças, fenômenos geopolíticos e a reor- brancos, que antigamente ignoravam essas
ganização sociais, tornando as publicações coisas, estão intimamente a entender as coi-
nas redes sociais lugares de manifestações, sas. […] Somos habitantes da floresta. Nas-
resistências e lutas contra as mazelas da cemos no centro da ecologia e lá crescemos.
colonialidade, sobretudo no Brasil, que se (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.16).
constituiu historicamente pelo glotocídio Dessa forma, acredito que as manifesta-
dos povos originários e afrodescendentes. ções indígenas não somente contam as suas
histórias, mas revelam trajetórias outras,
Considerações finais servindo a aqueles que lhe transformam
As interações entre as multiespécies nar- em ação, em agência, força e resistência.
radas por Okreãjti Metuktire no Facebook, Por isso, reiteramos a urgência da socieda-
sobretudo em O Júpiter para os Kaiapo, de conhecer, entender e respeitar o que os
acionam experiências salvaguardadas por povos originários têm a nos dizer, pois suas
seu povo, o que permite ao leitor relembrar narrativas e conhecimentos são resultado
histórias contadas por seus avoengos (avós, de anos da interação entre esses povos e os
bisavós e tetravós) através de acionadores mais-que-humanos. São conhecimentos so-
de memória que reverberam as ontologias bre as diferentes formas e organizações so-
dos antepassados e de não humanos nos di- ciais, com a participação ativa de diferentes
ferentes espaços (físicos e virtuais). sujeites, tais como: sol, lua, estrelas, onça,
Por isso, ressalto que as narrativas e ex- cobras, serras e rios.
pressões indígenas são formas de registrar
e contar as histórias e interações entre um Referências
povo e outros seres. Nesse contexto, tanto O ÅRHEM, K. “Ecosofía Makuna”. In: F. Correa (org.),
La Selva Humanizada: Ecología Alternativa en
pensamento da mosca como O Júpiter para os
el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Ins-
Kaiapo desvelam o papel da linguagem como tituto Colombiano de Antropología/Fondo FEN
episteme de fala e ato cosmolinguístico, são Colombia/Fondo Editorial CEREC, 1993.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Um dos desafios do ensino de português como língua materna é o de arti-
cular as práticas de linguagem preconizadas nos documentos oficiais (lei-
tura, produção de texto, oralidade e análise linguística/semiótica) de modo
contextualizado e significativo para o aluno. Neste texto, apresentamos uma
proposta de sequência didática baseada nos pressupostos teórico-metodo-
lógicos de Dolz, Noverraz e Shneuwly (2004), na perspectiva da pedagogia
culturalmente sensível (ERICKSON, 1987; BORTONI-RICARDO, 2003) e nas
orientações da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). Propomos
uma sequência didática relacionada aos impactos da pandemia de Covid-19
no mundo do trabalho à medida em que são desenvolvidas habilidades rela-
tivas ao componente curricular Língua Portuguesa, especificamente a rela-
ção entre oralidade e escrita, a partir da retextualização de entrevistas orais
para a modalidade escrita. Apresentamos, detalhadamente, a sequência di-
dática e analisamos sua aplicação em uma turma de 7° ano do Ensino Funda-
mental da rede municipal de Água Branca, no interior do estado de Alagoas,
* Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do gru-
po de estudos Enunciar e do Laboratório Integrado de Práticas Educativas (LAPES). Professora efetiva
de Língua Portuguesa e Língua Espanhola no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG – Campus Santa
Luzia). E-mail: gabriele.carvalho@ifmg.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3877291725993042.
** Doutorando em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Pós-graduando em Docência com ênfase na Educação Básica pelo Instituto Fe-
deral de Minas Gerais (IFMG – Campus Arcos). E-mail: manoelsqr@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4016928659776581.
*** Mestre em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de
Sergipe (PPGL/UFS). Pós-graduando em Docência com ênfase na Educação Básica pelo Instituto Fede-
ral de Minas Gerais (IFMG – Campus Arcos). E-mail: victor.andrade573@gmail.com. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/6402436577817417.
Abstract:
From the oral interview to the written interview:
a proposal for a didactic sequence from the
perspective of culturally sensitive pedagogy
One of the challenges of teaching Portuguese as a mother tongue is to artic-
ulate the language practices recommended in official documents (reading,
text production, orality, and linguistic/semiotic analysis) in a contextualized
and meaningful way for the student. In this paper, we present a proposal for
a didactic sequence based on the theoretical-methodological assumptions
of Dolz, Noverraz and Shneuwly (2004), in the perspective of culturally sen-
sitive pedagogy (ERICKSON, 1987; BORTONI-RICARDO, 2003) and on the
guidelines of the Base Nacional Comum Curricular (National Common Cur-
ricular Base) (BRAZIL, 2017). We propose a didactic sequence related to the
impacts of the Covid-19 pandemic on the world of work as skills related to
the Portuguese curricular component are developed, specifically the rela-
tionship between orality and writing, from the retextualization of oral inter-
views to the written modality. We present, in detail, the didactic sequence
and analyze its application in a 7th grade of an elementary school class of the
municipal network of Água Branca, in the countryside of the state of Alagoas,
during the Covid-19 pandemic. We highlight the productivity of the proposal
and point to the possibility of replication in other educational contexts.
Keywords: Didactic sequence; Orality; Writing; BNCC; Culturally sensitive
pedagogy.
1 Introdução
Articular, de modo contextualizado e signi- tratégias para o desenvolvimento de suas
ficativo para o aluno, as práticas de lingua- práticas pedagógicas em sala de aula.
gem (leitura, produção de texto, oralidade Diante desse cenário, como professores
e análise linguística/semiótica), preconi- de Língua Portuguesa, sentimos a necessi-
zadas nos documentos oficiais, é um dos dade de intensificar práticas que gerassem
desafios do ensino de português como lín- mais engajamento dos estudantes. Neste ar-
gua materna. Essa questão se potencializou tigo, apresentamos uma sequência didática
ainda mais devido ao contexto de ensino para o desenvolvimento do gênero entrevis-
remoto emergencial/ensino híbrido impos- ta, baseada nos pressupostos teórico-me-
to pela pandemia de Covid-19, no qual o todológicos de Dolz, Noverraz e Shneuwly
professor se viu distante dos alunos e, por (2004), na perspectiva da pedagogia cultu-
conseguinte, precisou mobilizar novas es- ralmente sensível (ERICKSON, 1987; BOR-
buam para a ampliação dos letramentos, de dade e de escrita. No entanto, dentro desse
forma a possibilitar a participação significa- continuum, não há limites rígidos, de modo
tiva e crítica” (BRASIL, 2017, p. 67-68). Para que não podemos conceber, por exemplo, a
atingir esse objetivo, o ensino deve ser guia- fala como informal e a escrita como formal,
do por eixos de integração, que correspon- tendo em vista que existem gêneros orais
dem justamente às práticas de linguagem: formais, altamente monitorados, e, por ou-
oralidade, leitura/escuta, produção textual e tro lado, gêneros escritos informais.
análise linguística/semiótica. O componen- Essa complexidade pode ser percebida
te metalinguístico, nesse sentido, deve ser no ato de retextualizar proposto por Mar-
mobilizado em função das práticas linguísti- cuschi (2010). Para o autor, o processo de
cas, não como um fim em si mesmo. Práticas retextualização envolve uma série de ope-
antes tomadas como secundárias, como a rações complexas realizadas durante a
oralidade (MARCUSCHI, 1999; FURST, 2014; passagem de um texto de uma modalidade
NEGREIROS; BOAS, 2017), assumem maior à outra, como da fala para a escrita, como
destaque, tornando-se elementos integran- propomos aqui. Entretanto, o processo não
tes do ensino de Língua Portuguesa, não é simples, automático. Retextualizar não
mais permanecendo à margem. significa simplesmente transcrever o que
Para Marcuschi (2010), oralidade e es- foi dito oralmente. É preciso considerar as
crita não devem ser compreendidas como especificidades entre os gêneros orais e
práticas linguísticas opostas. As diferenças escritos envolvidos dentro do continuum
existentes entre as duas modalidades tra- oralidade-letramento. As operações de re-
zem à tona “a necessidade de estudar as textualização consideram aspectos relativos
questões relacionadas à oralidade como um tanto à forma e à substância, quanto ao con-
ponto de partida para entender o funciona- teúdo e à expressão. Quanto ao processo de
mento da escrita” (MARCUSCHI; DIONISIO, aprendizagem de língua, ele pode ser pro-
2007, p. 14), porque diferentes práticas so- dutivo não apenas por permitir o trabalho
ciais exigem diferentes usos linguísticos. com o gênero, mas por ampliar a compreen-
O aluno, quando chega à escola, já possui são de como se estruturam as modalidades
conhecimento de sua própria língua, uma da língua dentro do continuum, em que cada
vez que é falante dela.1 Conscientizar os modalidade tem suas especificidades e es-
alunos acerca dos aspectos que compõem a tão associadas a usos sociais da linguagem
língua em suas múltiplas manifestações im- específicos. Compete à escola esclarecer aos
plica fazê-los reconhecer que a oralidade e a alunos que cada modalidade da língua se re-
escrita não são opostas: “as diferenças entre laciona com diferentes campos de atuação.
a fala e a escrita se dão dentro do continuum Sobre os campos de atuação, a BNCC
tipológico das práticas sociais de produção orienta que o trabalho com as práticas de
textual e não na relação dicotômica de dois linguagem seja desenvolvido de modo con-
polos opostos” (MARCUSCHI, 2010, p. 37). textualizado: “essas práticas derivam de si-
Bortoni-Ricardo (2005) propõe um con- tuações da vida social e, ao mesmo tempo,
tinuum oralidade-letramento, constituído precisam ser situadas em contextos signifi-
nos extremos por práticas sociais de orali- cativos para os estudantes” (BRASIL, 2017,
1 Utilizamos conhecimento aqui no sentido de co- p. 84). As práticas de linguagem são, então,
nhecimento implícito ou competência linguística. organizadas em torno de campos de atua-
ção: campo da vida cotidiana (somente anos do contato com gêneros textuais de diversos
iniciais), campo artístico-literário, campo campos de atuação. Os gêneros jornalísticos
das práticas de estudo e pesquisa, campo e os publicitários são privilegiados, com
jornalístico-midiático e campo de atuação foco em estratégias linguístico-discursivas
na vida pública, sendo que esses dois últi- e semióticas voltadas para a argumentação
mos aparecem fundidos nos anos iniciais do e a persuasão. Todo esse processo é organi-
Ensino Fundamental, como campo da vida zado em práticas de linguagem, objetos de
pública. Esses campos de atuação estão or- conhecimento e habilidades, com especifi-
ganizados de modo a permitir um ensino cações para cada nível da etapa.
contextualizado, com progressão sistemáti- Para o 6° e 7° anos do Ensino Fundamen-
ca das práticas e foram selecionados tal, destaca-se o campo jornalístico-midiáti-
por se entender que eles contemplam di- co, a partir do qual se pretende
mensões formativas importantes de uso da propiciar experiências que permitam desen-
linguagem na escola e fora dela e criam con- volver nos adolescentes e jovens a sensibi-
dições para uma formação para a atuação lidade para que se interessem pelos fatos
em atividades do dia a dia, no espaço fami- que acontecem na sua comunidade, na sua
liar e escolar, uma formação que contempla cidade e no mundo e afetam as vidas das
a produção do conhecimento e a pesquisa; pessoas, incorporem em suas vidas a prá-
o exercício da cidadania, que envolve, por tica de escuta, leitura e produção de textos
exemplo, a condição de se inteirar dos fatos pertencentes a gêneros da esfera jornalística
do mundo e opinar sobre eles, de poder pro- em diferentes fontes, veículos e mídias, e de-
por pautas de discussão e soluções de pro- senvolvam autonomia e pensamento crítico
blemas, como forma de vislumbrar formas para se situar em relação a interesses e po-
de atuação na vida pública; uma formação sicionamentos diversos e possam produzir
estética, vinculada à experiência de leitura e textos noticiosos e opinativos e participar de
escrita do texto literário e à compreensão e discussões e debates de forma ética e respei-
produção de textos artísticos multissemióti- tosa (BRASIL, 2017, p. 140, grifos nossos).
cos (BRASIL, 2017, p. 84).
Os gêneros do campo jornalístico-midiáti-
E a esses campos de atuação estão asso- co estão presentes no cotidiano do estudante.
ciados gêneros, práticas, atividades e pro- É por meio desses gêneros que os indivíduos
cedimentos. O documento esclarece, no en- podem observar a exposição de posiciona-
tanto, que não há uma rigidez nessa seleção. mentos e fatos pelo uso que se faz da língua.
São sugeridos gêneros para cada campo de Nesse contexto, as práticas de linguagem de-
atuação, mas isso não significa obrigatorie- vem ser trabalhadas de modo a desenvolver
dade, há flexibilidade. nos estudantes habilidades linguísticas que
No que diz respeito ao Ensino Funda- lhes permitam compreender sentidos em cir-
mental, o que envolve os Anos Iniciais e os culação e agir socialmente por meio da mobi-
Anos Finais, o documento preconiza compe- lização de recursos linguísticos.
tências específicas para o ensino de língua Em que pesem as orientações contidas
portuguesa que devem ser desenvolvidas, no documento normativo da BNCC, é um de-
de modo progressivo e sistemático. Nos safio implementá-las em sala de aula, tendo
Anos Finais do Ensino Fundamental, espe- em vista a relação indissociável entre os ei-
cificamente, preconiza-se um aprofunda- xos integrativos e o papel relegado aos co-
mento da formação do educando, a partir nhecimentos metalinguísticos; o que impli-
ao trabalho do gênero entrevista7, ressal- uma sequência didática que parte de uma
tando aspectos da oralidade e da escrita temática social latente nos alunos, a pan-
da Língua Portuguesa, partindo do reco- demia de Covid-19,8 para o desenvolvi-
nhecimento dos elementos constitutivos mento de habilidades linguísticas.9 O cro-
da modalidade oral da língua à retextuali- nograma das aulas pode ser observado na
zação para um gênero escrito. Sugerimos Figura 1:
A primeira aula teve como objetivo apre- entrevista escrita – produção final, e a quar-
sentar aos alunos a proposta, iniciar a dis- ta, à sensibilização acerca dos aspectos mul-
cussão acerca do gênero entrevista oral e timodais do gênero. A última aula da sequên-
instrumentalizá-los para a realização de en- cia foi destinada à revisão dos textos a partir
trevistas com pessoas da comunidade que da avaliação do professor e à socialização
continuaram trabalhando durante a pan- dos resultados com a comunidade escolar.
demia de SARS-CoV-2. Na segunda aula, a Todas as atividades estão descritas no
proposta foi discutir aspectos constitutivos Quadro 1, com indicação das habilidades
da oralidade, através da transcrição das pró- mobilizadas conforme a BNCC, de modo que
prias entrevistas realizadas pelos alunos. A possam ser replicadas em outros contextos
terceira aula foi direcionada à discussão da educacionais. Um conjunto de slides foi de-
7 A escolha do gênero deu-se devido às atividades 8 Ressalvamos que a seleção da temática a ser tra-
desenvolvidas durante as Olimpíadas de Língua balhada deve ser adaptável a cada contexto edu-
Portuguesa no 7º ano, pois uma das oficinas pro- cacional, de modo que a questão norteadora das
punha a realização de uma entrevista oral com atividades dialogue com o meio social da comu-
algum habitante do lugar onde os estudantes nidade escolar (ERICKSON, 1987).
viviam, de modo que os alunos já tinham, em 9 Apesar de destacarmos os aspectos linguísticos,
algum grau, conhecimento sobre o gênero. As- apontamos para o potencial interdisciplinar da
sim, consideramos produtivo expandir esse co- proposta, que pode mobilizar outras áreas do
nhecimento. Além disso, cabe destacar que esse conhecimento, como a Matemática, ao tratar, por
gênero integra o campo de atuação jornalístico- exemplo, quantitativamente os dados das entre-
midiático proposto pela BNCC (2017). vistas.
Objetivo: Apresentar aos alunos a proposta, iniciar a discussão acerca do gênero entrev-
ista oral e instrumentalizá-los para a realização de entrevistas com pessoas da comuni-
dade que continuaram trabalhando durante a pandemia de Covid-19.
Atividades Propostas
1) Apresentar à turma a sequência didática a ser desenvolvida em sala.
2) Sensibilizar os alunos acerca da proposta de documentar a rotina dos trabalhadores
durante a pandemia de Covid-19 por meio de entrevista oral e escrita, reforçando a im-
portância deles como agentes transformadores da comunidade.
3) Discutir com os alunos o passo a passo para a realização de uma entrevista, apre-
sentando instruções de como realizá-la (roteiro, seleção do entrevistado, comportamento
do entrevistador, ambiente de realização da entrevista, posicionamento do gravador –
celular etc.), partindo dos conhecimentos prévios dos alunos acerca do gênero e do papel
do entrevistador, além de ilustrar a situação com uma entrevista exemplar (um vídeo).
É recomendável que o roteiro de entrevistas seja construído colaborativamente, ou seja,
alunos e professores, durante a aula, devem elaborar, juntos, as perguntas-base a serem
feitas ao entrevistado. O professor deve mediar essa construção e anotar as questões que
surgirem, limitando o número de questões para que a entrevista não se estenda.
4) Solicitar, como tarefa para aula seguinte, a realização de uma entrevista com um con-
hecido que tenha, de algum modo, mantido sua rotina de trabalho durante a pandemia de
Covid-19. Preferencialmente, recomenda-se que os alunos já consigam definir seus po-
tenciais entrevistados em sala e que utilizem o celular para gravar a entrevista. Deve-se
esclarecer que os alunos devem compartilhar os áudios de suas entrevistas no grupo do
WhatsApp da turma, de modo que todos tenham acesso às gravações.11
10 Com vistas a viabilizar a replicação dessa sequência, disponibilizamos todo o material em um repositório
permanente, disponível em: https://drive.google.com/file/d/136jZf4BwsY7ntsZyGpRnoW5QjmdRKC-
zH/view?usp=sharing .
11 Por conta da pandemia, os alunos não puderam se reunir em grupo. A socialização por meio do grupo de
WhatsApp foi a forma mais eficiente que encontramos para o acesso aos avanços dos alunos.
Atividades Propostas
1) Solicitar que os alunos levem para a aula o áudio proveniente da gravação da entrevista.
4) Refletir com os alunos acerca dos aspectos constitutivos da oralidade. O que os alunos
percebem como comum na linguagem falada? Percebem diferenças entre a fala e a escri-
ta? Quanto à formalidade, há diferença entre um texto formal escrito e um oral? Existem
vícios de linguagem?
5) Após a discussão, direcionar a aula para a reflexão acerca dos aspectos constitutivos da
oralidade (repetições, presença de fenômenos fonológicos variáveis, de pausas preenchi-
das, de marcadores discursivos etc.), a partir das entrevistas realizadas pelos alunos,
esclarecendo que, apesar desse reconhecimento, existem situações comunicativas que
requerem maior monitoramento. Sugere-se uma escuta compartilhada de alguma das en-
trevistas gravadas.
Atividades Propostas
2) Iniciar a aula investigando como foi esse processo de transpor a oralidade para a escri-
ta, respeitando as marcas constitutivas da modalidade oral.
3) Convidar os alunos, uma vez realizada essa sondagem inicial, para, finalmente, trans-
formar a entrevista oral em texto escrito, no formato de uma entrevista escrita, esclare-
cendo o próximo passo da sequência de aulas.
4) Ler em voz alta com os alunos uma entrevista escrita modelar, de modo que os alunos
conheçam as especificidades do gênero que terão de produzir. Ao longo da leitura, suge-
re-se direcionar a atenção dos alunos para os elementos e as especificidades do gênero
entrevista: a presença de um título, da autoria, de uma breve introdução, da fotografia
da pessoa entrevistada e da estrutura da entrevista propriamente dita (pergunta – re-
sposta).
6) Solicitar que os alunos compartilhem com a turma a primeira versão do texto via grupo
de WhatsApp para que todos possam acessar e ler o que está sendo desenvolvido pelos
colegas.
Atividades Propostas
1) Iniciar a aula sensibilizando os alunos acerca dos aspectos multimodais dos textos,12
com enfoque na presença de elementos visuais na constituição dos sentidos do texto.
2) Realizar, coletivamente, uma discussão sobre o papel das imagens na composição das
entrevistas (que, geralmente, é a fotografia do entrevistado).
3) Conduzir, após essa introdução, uma breve oficina de fotografia, de modo a instrumen-
talizar os alunos para a tarefa de produzir uma fotografia com seu aparelho celular para
ilustrar o texto. Aspectos técnicos, éticos devem ser abordados e a experiência dos alunos
com a prática fotográfica deve ser considerada.
4) Solicitar, como tarefa para a aula seguinte, o envio de uma fotografia que ilustre a
entrevista.
Objetivo: Discutir os aspectos que devem ser revisados pelos estudantes. O professor
deve ter avaliado as produções textuais quanto à adequação à modalidade escrita da lín-
gua e às especificidades do gênero.
Atividades Propostas
1) Abordar as principais questões percebidas e instruir os alunos quanto à necessidade e
importância do processo de revisão.
2) Unir, após isso, texto escrito e fotografia e socializar o texto com a comunidade escolar,
através das redes sociais da escola ou afixando as produções textuais nas instalações da
unidade escolar.
Fonte: Elaboração própria.
12 Embora um texto impresso possa explorar a escolha de modulações dentro de uma mesma semiose, como
tipos de letra, uso de cores, diagramação etc. (RIBEIRO, 2016), normalmente, um texto é considerado
multimodal, quando diferentes linguagens, modos e/ou semioses – elementos visuais, sonoros, espaciais
etc. – estão combinados, gerando novas significações. Para mais informações, sugerimos a leitura de Rojo
e Moura (2012) e do Grupo Nova Londres (2021), os quais tratam dos multiletramentos, que têm, como
um de seus eixos de trabalho, o tratamento da multimodalidade.
extrair informações sobre determinado as- precisaram fazer essa operação) e, após
sunto. a instalação, prosseguimos para uma
A última parte dessa aula foi centrada testagem dos procedimentos para gra-
vação (botões de comando, formato de
nas instruções para a realização de uma en-
saída do áudio – .WAV – etc.);
trevista oral, que foi dividida em etapas:
III. Seleção dos entrevistados: os entrevista-
I. Roteiro: uma entrevista não parte do
dos tinham que ser pessoas cujo traba-
nada. É preciso que, previamente, sejam
lho não foi interrompido na pandemia,
organizadas perguntas que irão guiá-la.
com enfoque naqueles que compunham
O roteiro foi construído conjuntamente
sua comunidade ou círculo social/fami-
em sala de aula. Seguindo as orientações
liar, aproximando a tarefa da realidade
propostas por Bortoni-Ricardo (2003) e
sociocultural da comunidade escolar. Os
por Erickson (1987), os alunos socializa-
alunos foram instruídos a seguir os pro-
ram e discutiram suas ideias de pergun-
tocolos de segurança (distanciamento
tas, para que pudéssemos decidir se a
social, uso de máscara e evitar contato
pergunta integraria ou não o roteiro. Ao
físico);
final, 12 perguntas foram selecionadas
para compor o roteiro: IV. Seleção do local para a entrevista: orien-
tamos a procura por lugares mais silen-
a. Qual o seu nome?
ciosos, de modo que o áudio tivesse o
b. Qual a sua idade? mínimo de interferência possível, já que
c. Onde você mora? lugares com forte barulho interferem no
resultado.
d. Qual a sua profissão?
Ressaltamos que o aluno deveria evitar
e. Você continuou trabalhando du-
falar mais do que os entrevistados, não os
rante a pandemia?
interrompendo, demonstramos a forma
f. Como você está se sentindo du- como deveriam abordar as pessoas para
rante esse tempo de pandemia?
participar da entrevista (explicando o traba-
g. O que você faz em seu trabalho? lho que estava sendo feito e pedindo autori-
h. Você se sente seguro(a) traba- zação para gravação e divulgação do áudio)
lhando na pandemia? e simulamos rodadas de entrevistas, nas
i. Qual a sensação de trabalhar quais os alunos ora eram os entrevistado-
nesse ambiente? res, ora os entrevistados, a fim de treinarem
j. Como você lida com as pessoas e se familiarizarem com o procedimento de
que não seguem o protocolo? realização da coleta.
k. Qual a sua opinião sobre a Co- A tarefa dos alunos era a de realizar a en-
vid-19? trevista e enviar a gravação para o grupo de
WhatsApp da turma, antes da aula seguinte,
l. Você acha que a pandemia inter-
feriu em seu trabalho? Como? como forma de socialização da atividade
cumprida.
II. Equipamento de gravação: a maioria dos
alunos dispunha de aparelhos celulares.
6.2 Aula 2: transcrevendo a fala –
Por meio deles, fizemos a coleta de áu-
dio das entrevistas. Os alunos, em sala de
aspectos constitutivos da oralidade
aula, foram instruídos a baixar um apli- O início da segunda aula foi marcado
cativo de gravação específico (os que já pela discussão sobre como foi “atuar como
tinham, nativos em seus celulares, não repórter” por um dia. Alguns dos alunos
Fonte: Elaborada pelos autores com base nas normas de transcrição adotadas pelo banco de dados Falares
Sergipanos (FREITAG, 2013).
crita que tinham em mãos em uma entrevis- Para tanto, desenvolvemos uma oficina
ta escrita. O texto teria que ser enviado no de fotografia, visando que os alunos fossem
grupo da turma, como forma de socializa- os próprios fotógrafos de suas imagens, ins-
ção, além de ser entregue em sala na aula 4, truindo, principalmente, que o enfoque da
descrita a seguir. Os alunos compartilharam foto é o entrevistado (atentando-se para o
suas produções e puderam, colaborativa- fundo, a iluminação etc.). A foto deveria ser
mente, observar as estratégias textuais uti- simples, apenas representando a pessoa. Os
lizadas pelos colegas. alunos foram orientados a pedir permissão
à pessoa. Em caso de negativa, o aluno foi
6.4 Aula 4: nem só de palavras se faz instruído a perguntar ao entrevistado se po-
um texto
deria ceder uma foto existente ou se o aluno
Nesta aula, os alunos entregaram a pri-
poderia tirar uma foto do seu local de tra-
meira versão da entrevista escrita. Nes-
balho.
te momento, avaliamos o texto, de modo a
A tarefa dos alunos era, além de rever o
observar se estava estruturado conforme
texto com base nos apontamentos do profes-
a organização do gênero, além de observar
sor, obter uma imagem que representasse a
aspectos gramaticais, com vistas a tentar re-
pessoa da entrevista e inserir essa foto na
duzir o uso de traços descontínuos na escri-
entrevista escrita (em uma versão impres-
ta do aluno (no título, no subtítulo, na intro-
sa). Os alunos também tiveram que enviar a
dução e também na entrevista em si). Essa
foto no grupo da turma.
etapa age como um tipo de mentoria: o alu-
no entrega um produto e o professor apon- 6.5 Aula 5: hora de revisar e sociali-
ta possíveis melhorias/adequações, fun- zar
cionando como os andaimes propostos por Esta aula foi destinada à entrega da ver-
Bortoni-Ricardo (2003) e Erickson (1987). são final da entrevista escrita, com as corre-
Após essa mentoria, iniciamos nos- ções realizadas e com a inserção da fotogra-
sa aula, argumentando que um texto não fia. Nem todos os entrevistados autorizaram
é composto apenas por palavras escritas. a realização da foto, optando pelo envio de
Nesta parte, seguimos para a discussão so- uma foto já existente ou, em caso de negati-
bre multimodalidade, que considera, para va a essa estratégia, foi necessário recorrer
a comunicação, aspectos linguísticos, como à foto do local de trabalho do indivíduo.
a escrita e a oralidade, aspectos visuais, Os trabalhos entregues pelos alunos fo-
como imagens e fotografias, e aspectos ges- ram socializados em sala de aula. Cada um
tuais, como expressões faciais, por exemplo. deles apresentou a pessoa entrevistada, fa-
Nosso enfoque, entretanto, recaiu sobre os lando sobre sua profissão e destacando os
aspectos visuais: utilizando imagens para principais pontos abordados na fala do en-
a composição da entrevista, mais precisa- trevistado e, por fim, solicitamos que dis-
mente, a imagem da pessoa entrevistada ou corresse brevemente sobre os principais
do local onde a pessoa trabalha. Utilizamos, aprendizados decorrentes da sequência di-
neste momento, uma entrevista escrita que dática. Esse ponto serviu como ferramenta
possuía uma fotografia da pessoa entrevis- para que o aluno expressasse os pontos po-
tada (no caso, a cantora Iza)17.
com.br/cultura/iza-as-coisas-incriveis-da-nos-
17 A entrevista pode ser obtida na íntegra no site da sa-cultura-vieram-da-periferia/. Acesso em: 29
revista Abril. Disponível em: https://veja.abril. out. 2021.
sitivos e negativos do percurso, além de aju- lar à observada em meios jornalísticos. O li-
dar no desenvolvimento de um mapa men- vreto foi divulgado para toda a comunidade
tal sobre o gênero selecionado. escolar.
Após a socialização dos trabalhos, pas-
samos para a socialização de opiniões sobre Considerações finais
a sequência desenvolvida em sala, de modo O desenvolvimento da sequência didáti-
a termos um feedback em relação aos pon- ca aqui proposta objetivou desenvolver a
tos positivos e negativos do que foi feito. De aprendizagem do gênero entrevista por
modo geral, os alunos pontuarem que gos- meio de módulos que abrangeram habilida-
taram bastante das aulas, principalmente des linguísticas e textuais (leitura, produ-
porque fugiu da fórmula que vinha sendo ção de texto, oralidade e análise linguística/
aplicada em sala de aula: assunto, texto, lei- semiótica), visando ao reconhecimento das
tura, atividade. A apresentação de um novo diferenças entre a oralidade e a escrita, a
modelo desencadeou “mais vontade” de partir de um tema socialmente latente nos
participar da aula. Por outro lado, o trabalho alunos do 7º ano do Ensino Fundamental da
de campo, em certo grau, não foi um consen- rede municipal de Água Branca, no interior
so quanto a ser algo positivo. Muitos alunos do estado de Alagoas, a pandemia de Co-
relataram dificuldade em localizar e, em vid-19.
seguida, abordar alguém para desenvolver Essa atividade, que está alinhada ao pre-
uma entrevista (muitos alegaram timidez). conizado na BNCC, também se baseou na
Ajustes podem ser feitos, principalmente pedagogia culturalmente sensível (BORTO-
quando considerado o acesso dos alunos a NI-RICARDO, 2003; ERICKSON, 1987), bus-
aparelhos telefônicos, visto que nem todos cando utilizar estratégias interativas que se
possuem. Uma sugestão para a resolução aproximassem do mundo dos estudantes,
desse problema seria o trabalho em equipe, mediante a escolha da temática (a pande-
que permite a troca de ideias e de experiên- mia), do gênero (já trabalhado na Olimpíada
cias e promove a cooperação. de Língua Portuguesa), dos exemplos apre-
O professor regente, de forma comple- sentados (entrevistas com personalidades
mentar, gostou da ideia de sair da fórmula mais jovens que fazem parte da experiên-
padrão. A forma diferente de abordar orali- cia dos alunos), da escolha dos entrevista-
dade, escrita e, acima de tudo, variação lin- dos (pessoas próximas aos estudantes) e
guística abriu novos horizontes para o modo de uma escuta ativa das considerações dos
como guiar a aula de Língua Portuguesa e alunos. Além disso, os módulos da sequên-
como abordar assuntos que, nem sempre, cia didática permitiram uma pedagogia por
são fáceis de serem tratados, principalmen- andaimes, conforme se recomenda na teo-
te ao ficarmos presos em livros didáticos. ria, por meio dos quais os membros mais
As produções finais feitas pelos alunos competentes, ora o professor ora um aluno,
foram todas digitalizadas pelo professor auxiliava os demais a adquirir as habilida-
e transformadas em um livreto jornalísti- des visadas.
co digital, através da plataforma Canva18. O Assim, o trabalho com aspectos da rea-
produto final contém todas as entrevistas lidade linguística e social do aluno possibi-
diagramadas e formatadas de maneira simi- litou um processo de ensino-aprendizagem
18 Disponível em: https://www.canva.com/pt_br/. mais significativo, no sentido de que as refle-
xões partiram dos usos linguísticos efetivos terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
e emergiram do seio da comunidade escolar. língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Isso foi perceptível através i) do engajamen- DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Se-
to dos alunos na execução das atividades quências didáticas para o oral e a escrita: apre-
propostas, ii) do feedback que recebemos sentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY,
B.; DOLZ, J.; e colaboradores. Gêneros orais e
deles, e iii) do produto final, que refletiu a escritos na escola. Organização de R. H. R Rojo.
apropriação do gênero trabalhado e a aqui- Campinas: Mercado de Letras, 2004. p.95-128.
sição de habilidades linguísticas e textuais
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Esperamos que o compartilhamento de educational achievement. Anthropology
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2022.
MARCUSCHI, Luiz Antônio; DIONISIO, Angela
Recebido em: 15/02/2022
Paiva. Fala e escrita. Belo Horizonte: Autêntica,
Aprovado em: 10/05/2022
2007.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
As produções artísticas de testemunho e de teor testemunhal ganharam no-
toriedade na segunda metade do século XX como uma forma de refletir sobre
as experiências traumáticas oriundas desse período. Nesse sentido, preten-
de-se analisar, neste artigo, a produção quadrinística Encruzilhada (2011,
2016), de Marcelo D’Salete, como um produto artístico de teor testemunhal
que tratou das experiências que atravessam a vida de pessoas negras que vi-
vem na periferia. Por ser produzida a partir de experiências que são comuns
a uma coletividade, o quadrinho também pode ser compreendido como um
quadrinho-denúncia capaz de reelaborar, como testemunho, a realidade de
violência e de racismo que ameaça a vida de mulheres negras e de homens
negros no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: Encruzilhada; Testimonio; Histórias em quadrinhos; Ra-
cismo.
Abstract:
Encruzilhada: a comic book about the experiences of
black people in contemporary Brazil
The artistic productions of testimony and testimonial content gained noto-
riety in the second half of the 20th century as a way of reflecting on the
traumatic experiences arising from that period. In this sense, it is intended
to analyze, in this article, the comic book production Encruzilhada (2011,
2016), by Marcelo D’Salete, as an artistic product of testimonial content that
dealt with the experiences that cross the lives of black people living on the
outskirts. As it is produced from experiences that are common to a commu-
nity, the comic book can also be understood as a comic book of denunciation
capable of reworking, as a testimony, the reality of violence and racism that
threatens the lives of black women and men in contemporary Brazil.
Keywords: Encruzilhada; Testimony; Comic book; Racism.
* Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Estudos da Linguagem pela Univer-
sidade Federal de Goiás (UFG-Catalão). Lattes: http://lattes.cnpq.br/0729971382929136. E-mail: jqln.
cunha@gmail.com.
bém surpreende de muitas outras maneiras: dos; no entanto, a tônica é a violência física
a narrativa, inquestionavelmente, é uma de- seletiva.
las. O recurso narrativo de D’Salete coloca A história de abertura de Encruzilhada é
por terra a antiga ideia pejorativa de que ler intitulada “Sonhos”. Nesse conto, os prota-
histórias em quadrinhos é fácil. gonistas são dois jovens moradores de rua,
Assim, em Encruzilhada não há a pre- Bia e Lino, que estão precariamente “aloja-
sença de recordatórios e, embora haja diá- dos” em um prédio em construção. Na cena
logos, o quadrinista prefere que a narrativa de introdução à história, Lino percebe que a
seja conduzida principalmente por meio jovem, provavelmente sua irmã, está febril
das imagens. Dessa forma, o autor procu- e decide sair à procura de algo que possa
ra articular histórias paralelas (de um gru- proporcionar a ela algum conforto. Nos qua-
po racializado e outro não racializado) que dros que seguem, é apresentado o diálogo
são contadas pouco a pouco de maneira de dois vigilantes brancos. Aparentemente,
fragmentada e intercalada de modo que as um deles é recém-contratado e queixa-se
narrativas se cruzam, produzindo uma ver- das regras do trabalho: “não pode tirar o
dadeira “encruzilhada quadrinística”. O au- chapéu. Não pode ficar sentado”. Ao que o
tor ainda lança mão de recursos tais como outro responde resignado: “esse trampo é
flashback, flashforward e recortes inespera- assim mesmo” (D’SALETE, 2016, p. 12). Nes-
dos que fazem com que a relação com o tem- sa mesma cena, o nome de Mike, outro vigi-
po também pareça mais complexa. lante, é mencionado. Mike, também branco,
No que toca à estética da ilustração, o que seria o tipo de vigilante que “não dá moleza
mais nos chamou atenção no quadrinho é o pra vagau” (D’SALETE, 2016, p. 12). A cena
seu traço em preto e branco que, como de- subsequente a esse diálogo mostra a casa de
finiu Marcelo Yuka na mensagem que cons- Mike. Nela, a mãe prepara o jantar enquanto
ta na capa do quadrinho, “é sujo e poético”. o filho assiste à TV ansioso pela chegada do
Essa “sujidade” faz alusão ao ambiente “car- pai que levaria um presente para ele naque-
regado” da favela, onde a luz do sol parece le dia – possivelmente aquele era o dia do
sempre faltar (WROBEL, 2019). Isso acaba aniversário do garoto.
adicionando um aspecto mais melancólico No próximo recorte, o foco é Lino, que
às narrativas. pega uma jaqueta que havia sido, ao que a
cena indica, esquecida em um café. Mike o
Encruzilhada em pormenores observa e comunica aos outros dois vigilan-
Encruzilhada é composto por seis contos: tes mostrados anteriormente a presença de
“Sonhos”, “93079482”, “Corrente”, “Bro- um “delinquente”. Podemos ter certeza de
ther”, “Encruzilhada” e “Risco”. Todos eles que Mike faz referência a Lino em virtude
dão destaque às experiências de pessoas do reflexo do jovem com a jaqueta nos seus
negras que são, de alguma maneira, marca- óculos. No caminho de volta para o abrigo
das pela violência física, emocional, cultu- temporário, Lino é interceptado pelos dois
ral e/ou econômica. Para o desenvolvimen- vigilantes que pedem a jaqueta. A fragilida-
to deste trabalho, optamos por discutir de e a vulnerabilidade de Lino diante dos vi-
apenas três dos seis contos. A encruzilha- gilantes são reforçadas, como bem observou
da de várias formas de violências também Wrobel (2017, 2019), tanto pelo ângulo em
pode ser encontrada nos contos escolhi- que o garoto é focado, quanto pelas cenas
que enfocam os pés dos vigilantes pisando tiças sociais. Mike não tem poder aquisitivo
com suas botas robustas nos pés e nas mãos para sequer comprar um presente que con-
desprotegidos do jovem. O mesmo acontece sidera “decente” para o filho e seu desapon-
quando Lino está acuado em um canto, sen- tamento é percebido desde o momento em
tado abraçando os joelhos, de olhos fecha- que a loja de brinquedo é refletida pelas len-
dos, enquanto é vigiado pelos dois vigilan- tes de seus óculos e nas sequências em que
tes que estão à espera de Mike (Figura 1), coloca uma das mãos sobre o rosto e dois
aquele que “não dá moleza pra vagau”. quadros depois conversa ao telefone com a
esposa de olhos cerrados enquanto aperta
Figura 1 – A chegada de Mike na outra mão o minúsculo aviãozinho que
conseguiu comprar para o filho. Ou, ainda,
quando, sentado do lado de fora da loja, com
os ombros levemente caídos e braços rela-
xados, olha desolado para o brinquedo em
sua mão, evidenciando seus sentimentos de
frustração e de impotência (Figura 2).
das brancas, a cor da pele cumpre o papel de sa, não é bem-vista quando o consumidor é
hierarquizá-las e marcar o lugar de inferio- uma pessoa negra (Figura 3).
ridade, de outridade desse primeiro grupo. Na sequência da narrativa, há uma di-
“Encruzilhada”, conto que dá nome à his- gressão que apresenta um casal branco, Tati
tória em quadrinhos, é o quinto conto que e Bil. Bil, como será evidenciado mais tarde,
foi produzido a partir de um episódio de é o ladrão, ou pelo menos um deles, que ain-
violência brutal e de preconceito racial em da não havia sido identificado, mas estava
uma das filiais da rede Carrefour em Osasco, sendo procurado pela polícia. De volta ao es-
na Grande São Paulo, em agosto de 20097. tacionamento do Carrefour, Janu é abordado
Trata-se, nesse sentido, de uma produção por dois vigilantes e conduzido ao “quarti-
semificcional, pois partiu de um fato expe- nho” para ser brutalmente interrogado. Após
rimentado por um funcionário da USP que uma sessão de espancamento, os seguranças
estava entrando no seu Ecosport, parado percebem o equívoco e decidem “desovar” o
no estacionamento do Carrefour, enquan- indivíduo ainda com sinais de vida. Nesse in-
to aguardava sua esposa fazer as compras tervalo, o carro já havia sido furtado por Bil,
(CHINEN, 2019, p. 281). que não havia percebido a presença de um
No início do conto já se apresenta parte bebê no banco de trás do veículo Ford.
do desfecho da história, com funcionários Em outro flashback (Figura 3), vemos
da limpeza pública encontrando algo no ba- Janu no dia em que comprou o carro e, em
nheiro que os deixa chocados: “Que merda seguida, no hospital sendo questionado pela
é essa?!?!” (D’SALETE, 2016, p. 92). A partir esposa: “Cadê o bebê? Cadê o bebê?” (D’Sa-
daí, vemos um casal negro, Janu e Lia, diri- lete, 2016, p. 112). No quadro seguinte, Tati,
gindo-se a uma filial do hipermercado Car- companheira de Bil, ao perceber que o com-
refour e, após um acordo com a esposa, de- panheiro não tomaria providências em re-
cide-se que o marido, Janu, a aguardaria no lação ao retorno do bebê à família, decidiu
estacionamento enquanto ela faria as com- deixá-lo no banheiro público para que pu-
pras de mercado. O vigilante observa pe- desse ser encontrado. Logo depois, no des-
las câmeras e, considerando a cor negra de fecho, Bil foi assassinado pelos receptores
Janu, conclui que ele é um ladrão que estava do automóvel e seu corpo foi abandonado
“sondando” o Ford estacionado nas depen- junto à arma usada pelos seus assassinos.
dências do hipermercado. O carro, um dos
símbolos de realização na sociedade con- Figura 3 – Janu compra um Ford
temporânea, pertencia ao casal de negros.
Contudo, aparentemente, as possibilidades
de consumo e de fruição, mesmo se tratan-
do de uma sociedade capitalista como a nos-
7 Caso tenha interesse em ler notícias sobre o
caso, sugerimos a reportagem “Cliente negro
diz que foi confundido com ladrão e agredi-
do em hipermercado”. Disponível em: http://
g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL-
1272840-5605,00-CLIENTE+NEGRO+DIZ+-
QUE+FOI+CONFUNDIDO+COM+LADRAO+E+A-
GREDIDO+EM+HIPERMERCADO.html. Acesso
em: 20 out. 2021. Fonte: Imagem extraída de D’Salete (2016, p. 112).
Nesse conto semificcional, fica evidente nados à elite brasileira. Esse episódio le-
que uma das marcas da herança escravocra- vou as marcas a estudar estratégias para
ta é a forja e a manutenção de estereótipos tentarem se desvincular dos rolezinhos
que ajuda(ra)m a marcar os lugares e as po- para, assim, manter seu público original.
sições sociais que os negros são autoriza- Uma das estratégias dos proprietários dos
dos a ocupar. Uma das formas de manuten- estabelecimentos foi conseguir na justiça
ção de estereótipos são, como bem colocou uma liminar que proibia a realização dos
Adilson Moreira (2019, p. 43), as produções rolezinhos, barrando a entrada de jovens
culturais, pois elas, em sua grande maioria, com características “particulares” nos sho-
refletem a ideia de que se brancos podem ppings. Esse separatismo foi apenas mais
desempenhar qualquer função, frequentar uma forma de sedimentar a barreira entre
qualquer lugar e consumir quaisquer pro- o “Nós” da elite branca e racista e o “Eles”
dutos, elas também constroem, no imaginá- periféricos e racializados.
rio social, que os negros só podem chegar “Risco” é o sexto e último conto da histó-
até determinado ponto. Isso porque ria em quadrinhos, o qual trata da história
[...] a presença de negros em posições de de Doca, um jovem “flanelinha” negro que,
poder e prestígio [e poderíamos incluir po- por sua cor e por sua função, é, corriquei-
sições de consumo também] causa reações ramente, alvo de violência e da truculência
racistas imediatas, já que contraria a ideia da polícia. Nesse conto, são dois episódios
de que brancos sempre devem estar em uma de truculência policial. Logo na introdução,
posição social privilegiada. O avanço de pes-
o jovem é apresentado “cuidando” dos car-
soas negras opera como uma ameaça subje-
tiva a muitas pessoas brancas [...]. (MOREI-
ros estacionados. A gorjeta que recebe é,
RA, 2019, p. 43). no caso do conto, o que garante o sustento
do personagem. Nas cenas que seguem à
Para um exemplo prático, basta nos re-
apresentação de Doca, é exibido o diálogo
cordarmos dos rolezinhos8 de 2014 quan-
virtual entre dois jovens brancos de classe
do jovens da periferia dos grandes centros,
média que se preparam para sair. Na cena,
encantados com a possibilidade de consu-
o leitor já é informado de que o carro que
mo e de ostentação, iam aos shoppings aos
o jovem branco dirige foi, acidentalmente,
fins de semana para se dedicarem, entre
riscado por ele mesmo, mas, ao que tudo in-
outras coisas, à compra de produtos con-
dica, ele já sabe como vai se livrar da bronca
siderados de luxo e, normalmente, desti-
dos pais. Na cena que segue, é apresentado
8 Em 2014, surgiu uma espécie de “movimento” o primeiro ato de violência policial. Três jo-
que ficou amplamente conhecido como “role- vens, entre eles Doca, estão conversando.
zinho”. Tratava-se de grupos de adolescentes
Um dos garotos fuma um cigarro. Ao serem
pobres da periferia que se reuniam para irem
juntos aos shopping centers para namorar, se abordados por policiais, o jovem que fuma-
divertirem e consumirem. Esse episódio gerou va joga o cigarro no chão. Documentos dos
uma série de debates sobre a segregação racial
jovens são solicitados, mas apenas o jovem
e social. Para mais informações, sugerimos a lei-
tura do texto Rolezinhos: marcas, consumo e se- negro é agredido pelos policiais.
gregação no Brasil, de Rosana Pinheiro-Machado A segunda abordagem policial também
e Lucia Mury Scalco. Disponível em: http://each. é principiada por violência seletiva. Um dos
uspnet.usp.br/revistaec/?q=revista/1/rolezi-
nhos-marcas-consumo-e-segrega%C3%A7%- jovens de classe média que dirigia o carro
C3%A3o-no-brasil. Acesso em: 20 out. 2021. dos pais decide acusar Doca de ser o res-
ponsável pelo risco no carro e o agride fisi- tratamento diferenciado da abordagem po-
camente. Os mesmos policiais que aborda- licial, que é mostrado no quadrinho, não é
ram Doca anteriormente voltam a aparecer. produto ficcional, pois o tratamento dire-
Enquanto um dos policiais libera os jovens cionado aos moradores de periferias, que
de classe média, o outro agride Doca. A par- são em sua grande maioria negros e pobres,
tir do momento em que o jovem questiona o é diferente do tratamento voltado aos mo-
policial dizendo “você não pode fazer isso!” radores de bairros nobres, como os Jardins
(D’SALETE, 2016, p. 143), são apresentados (ADORNO, 2017), por exemplo.
dois prováveis destinos para o jovem. No A narrativa gráfica de D’Salete, nesse
primeiro, o jovem é morto e torna-se man- sentido, mostra que as experiências de vio-
chete de jornal, visto que uma jornalista lência simbólica e de violência física perpe-
fotográfica estava, de longe, fotografando a tradas contra os negros são institucionaliza-
cena (Figura 4) e, no segundo, o jovem tem das e estruturais. Isso significa dizer que o
a vida poupada, pois havia muitas testemu- racismo está impregnado na cultura de tal
nhas. Nesse desdobramento, vemos o jovem forma que não são apenas as instituições
voltar para a namorada e o editor do jornal repressoras que cometem violência contra
desapontado solicita à/ao assistente que “li- os racializados, mas a sociedade como um
gue para outro fotógrafo” (D’SALETE, 2016, todo. Dito de outro modo:
p. 151). O conto deixa evidente que a espe- O racismo [que] estabelecerá a linha divisó-
tacularização da violência é também mais ria entre superiores e inferiores, entre bons
uma forma de violência contra os negros. e maus, entre os grupos que merecem viver
e os que merecem morrer, entre os que te-
Figura 4 – Espetacularização da violência rão a vida prolongada e os que serão deixa-
dos para a morte, entre os que devem per-
manecer vivos e os que serão mortos. E que
se entenda que a morte aqui não é apenas
a retirada da vida, mas também é entendida
como a exposição ao risco da morte, a morte
política, a expulsão e a rejeição. (ALMEIDA,
2019, p. 71).
Assim, em Encruzilhada é destacada a
valorização social, mesmo que sutil, e atra-
vessada por questões de classe, da “bran-
Fonte: Imagem extraída de Marcelo D’Salete (2016,
quitude” e a consequente inferiorização da
p. 142). negritude (HOOKS, 2019). Para deixar isso
evidente, D’Salete lançou mão do que aqui
Doca, por conta de toda sua vulnerabi- chamamos de contraste reflexivo como ex-
lidade, é alvo tanto de violência simbólica pediente narrativo para destacar os tipos
quanto de violência física que é perpetrada de violências vivenciadas pelos negros. Com
pela elite branca. Ele é ainda, fundamental- contraste reflexivo queremos dizer que o
mente, alvo da violência policial que mata quadrinista dialogou, ao longo das narrati-
para eliminar os “perigos” da vida dos bran- vas, com a relação entre “privilégio branco”
cos privilegiados (ALMEIDA, 2019). Esse e desfavorecimento dos negros.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
“Aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma, conto escolhido como objeto
de estudo do presente artigo, é um texto literário situado no espaço virtual.
Publicado no blog Escritoras Suicidas, o conto instigou a seguinte propos-
ta: uma leitura pela ótica de alguns conceitos acerca do texto (BARTHES,
2004; KRISTEVA, 2012; CARVALHAL, 1992; SAMOYAULT, 2008), da memória
(NORA, 1993; BERGSON, 1999; HALBWACHS, 2015; POLLAK, 1989, 1992) e
da subjetividade (GIDDENS, 1991; HALL, 2015; SANTOS, 2002; CASTORIA-
DIS, 1999). A abordagem do aporte teórico é colocada em prática a partir da
nossa análise do conto de Luma. Percebemos, assim, que o texto literário es-
tudado dialoga com outros textos por meio de uma pluralidade de memórias
e da subjetividade fragmentada da voz que narra.
Palavras-chave: Texto. Memória. Subjetividade. Carla Luma.
Abstract:
Text, memory and subjectivity: a reading of
“aperfeiçoando o imperfeito” by Carla Luma
“Aperfeiçoando o imperfeito” by Carla Luma, the short story which was se-
lected as the object of study of this paper, is a literary text placed in vir-
tual space. Published in the blog “Escritoras Suicidas”, the short story in-
stigated the following purpose: a reading by the view of some concepts on
text (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2012; CARVALHAL, 1992; SAMOYAULT,
2008), memory (NORA, 1993; BERGSON, 1999; HALBWACHS, 2015; POL-
LAK, 1989, 1992) and subjectivity (GIDDENS, 1991; HALL, 2015; SANTOS,
2002; CASTORIADIS, 1999). The approach of the theoretical contribution is
comprehended from our analysis of the Luma short story. Thus, we realize
that the literary text in study dialogues with other texts through a plurality
of memories and the fragmented subjectivity of the narrating voice.
Keywords: Text. Memory. Subjectivity. Carla Luma.
* Mestre em Letras - Interfaces entre Língua e Literatura pela Universidade Estadual do Centro-oeste (UNI-
CENTRO-PR). Atualmente é doutoranda em Letras - Estudos Literários pela Universidade Federal do Para-
ná (UFPR). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6604231475566070. E-mail: isamariares@gmail.com
estréia no fogão em 1965, sagrando-se bi- criação, para ser compreendido, tem sem-
campeão carioca, bicampeão da Taça Gua- pre um fundo de realidade, pois se consubs-
nabara, campeão da Taça Brasil e do Tor- tancia no/pelo mundo” (BORGES-TEIXEIRA,
neio Rio-SP. No início dos anos 70, auge da 2018, p. 64). Por meio de intertextualidades,
ditadura militar, Afonsinho foi “afastado” do a voz que narra “Aperfeiçoando o imperfei-
time e impedido até de treinar porque usava to” evoca memórias que se inserem na sua
barbas à Che Guevara, porque era politiza- construção enquanto sujeito da pós-moder-
do, porque era culto, porque estudava medi- nidade.
cina, porque não aceitava ser tratado como
mercadoria. Rebelando-se contra a “Lei do
Aperfeiçoando as imperfeições
Passe” que fazia do jogador de futebol escra- do texto
vo dos empresários e clubes, que tinham o Nossa análise se debruça sobre um texto
poder absurdo de impedir o livre exercício da escritora virtual Carla Luma. Isso signi-
profissional, Afonsinho travou uma batalha fica que não nos interessa, aqui, esmiuçar
jurídica e política, obtendo a propriedade a sua obra, disponível em grande parte na
de seu próprio passe, ou seja, o passe livre. webpage Escritoras suicidas. O seu minicon-
Obviamente que o cartel formado pelos in- to “Aperfeiçoando o imperfeito”, especifi-
teresses contrariados barrou-lhe a entrada camente, possibilitou um olhar acerca dos
nos grandes clubes. Tudo isso papai nos desdobramentos intertextuais de um texto.
contava com orgulho, como se se tratasse de Roland Barthes (2004), ao contrastar
um filho e quando papai morreu tocou-me obra e texto, especifica que o que se conhe-
como parte da herança um poster com a foto cia tradicionalmente por obra, sofreu sérias
de Afonsinho e um compacto de vinil com transformações, assinalando que isso de-
Elis Regina cantando a música de Gil. veu-se principalmente ao caráter interdis-
ciplinar que tem caracterizado o desenvol-
(Carla Luma) vimento da academia e da pesquisa. Desse
modo, Barthes explica que a obra é palpá-
Como mencionado, a paranaense Carla vel: ela é o objeto que é segurado nas mãos,
Luma publica seus textos literários em um enquanto que o texto se mantém de forma
blog, um espaço virtual que manifesta “um abstrata por meio da linguagem. Nesse sen-
deslocamento e reconfiguração dos modos tido, o texto é plural, abrangente e parado-
de escrita” (BORGES-TEIXEIRA, 2018, p. 66). xal, feito de “citações sem aspas” (BARTHES,
Além disso, o blog é um espaço para experi- 2004, p. 71). Em outras palavras, o texto é
mentações, haja vista que “convida o usuá- pura intertextualidade, ou seja, ele conversa
rio à criação de páginas e de textos variados, com textos distintos, os quais diferem entre
à interação com outros” (BORGES-TEIXEI- si em sua forma, tempo e espaço.
RAS, 2018, p. 69). A primeira a discutir profundamente
Objetivamos fazer uma leitura de “Aper- acerca do termo “intertextualidade” foi Julia
feiçoando o imperfeito” pela ótica dos estu- Kristeva (2012), que revendo as propostas
dos sobre texto, memória e subjetividade, sobre a evolução literária de Iuri Tynianov
uma vez que é um texto literário que “circu- e o dialogismo de Mikhail Bakhtin, afirmou
la socialmente, convocando sujeitos à inter- que “todo texto se constrói como um mosai-
pretação e, apesar de pertencer à ordem da co de citações, todo texto é absorção e trans-
pel do autor ao afirmar que “a obra é toma- palavras e objetos mais icônicos do evento:
da num processo de filiação”, já o texto “lê-se a “jabulani” e as “vuvuzelas”. Em sequên-
sem a inscrição do Pai” (2004, p. 71) visto cia, a voz que narra menciona as “desculpas
que “a restituição do intertexto vem abolir de Dunga e Jorginho”, retomando o fato de
paradoxalmente a herança” (2004, p. 72). que o Brasil perdeu um jogo decisivo sendo
Ou seja, enquanto a obra pode ser entendi- desclassificado das finais da Copa de 2010.
da como um conjunto caracteristicamente Podemos notar, portanto, que as referências
marcado por traços do autor, o texto é carac- futebolísticas que aparecem no miniconto
teristicamente marcado pela intertextuali- focam no contexto brasileiro.
dade, pelo diálogo com outros textos, como Ao lermos o trecho “não sou aquela que
já referido anteriormente. se desmancha em lágrimas e tristeza pela
No miniconto em análise, notamos que a pátria de chuteiras”, certificamos que quem
narradora do texto começa por dizer que foi narra possui uma voz feminina. Também é
ao Vaticano, mas que, não viu nada do que notável nesse enunciado, um tom de críti-
há de mais característico daquele lugar: o ca à pátria brasileira, o que se confirma na
papa, anjos e a Capela Sistina. Em um pri- sequência do texto. Enquanto o povo brasi-
meiro momento, tal afirmação parece não leiro se preocupa com a situação esportiva
ter ligação com o restante do texto. Por isso, do Brasil na Copa do Mundo (“pátria de chu-
é necessário partir para a interpretação do teiras”), a pátria brasileira encara inúmeros
simbólico, uma vez que para Barthes “o tex- problemas sociais, como a prostituição, que
to é radicalmente simbólico: uma obra que também está evidenciada no discurso da
se concebe, percebe e recebe a natureza in- voz feminina que denuncia que, ao invés de
tegralmente simbólica é um texto” (2004, p. chorar pelo futebol brasileiro, vendeu-se a
69). Percebemos que, na verdade, quem nar- um paulistano, fazendo uma boa grana ao
ra não foi realmente ao Vaticano, mas sim a “interpretar o papel de esposa”.
África do Sul, onde não viu Nelson Mandela, O caráter feminino inerente à voz de
ou “Nelsinho”, como aparece no texto, um quem narra o texto demonstra, conforme
ícone do país mencionado. A ideia da pre- Borges-Teixeira, que os contos de Carla
sença simbólica das figuras que remetem ao Luma manifestam predominantemente “as
Vaticano é aqui reafirmada. Compreende- inquietações femininas em busca por uma
mos, portanto, a menção feita ao Vaticano: identidade própria” (2018, p. 70). Isso sig-
foi a um lugar e não viu lá aquilo que há de nifica que seus textos buscam “romper com
mais sagrado; foi a África do Sul e não viu a as funções atribuídas à mulher ao longo
figura considerada uma das mais importan- do tempo e revelando a sua necessidade
te deste país. Contudo, viu Kaká, Robinho e em buscar autonomia e espaço dentro des-
outros jogadores de futebol, ou na voz que se mundo até então descrito pelo homem”
narra, “outros anjinhos cheios de poses e de (BORGES-TEIXEIRA, 2018, p. 70). Com-
pouca inspiração”. preende-se, portanto, que:
É claro o diálogo que o texto faz com a
A narrativa de Luma instaura o efeito de sen-
temática do futebol, visto que essas primei- tido de contestação de valores, deslocando
ras referências remetem à Copa do Mundo os sentidos cristalizados acerca da mulher
FIFA de 2010, a qual foi sediada na África do não só dentro da ordem social e política dis-
Sul. Isso fica evidente ao interpretarmos as criminatória, mas, também, e, sobretudo, no
do jogador Afonsinho e a questão do passe li- Outro revolucionário foi Nelson Mande-
vre, traz à tona uma memória silenciada, uma la, que resistiu ao regime do apartheid, que
memória não oficial, que ia contra os padrões determinava o poder a minoria branca que
vigentes da época. Luma aborda essa temá- vivia na África do Sul. Ambos, Nelson Man-
tica com um texto de frases fragmentárias, dela e o brasileiro Afonsinho, são citados
com flashes de memória, aproximando-se da pela voz feminina que narra com o fim de
linguagem oral, fato que para Pollak, tornava afirmar um sentimento de resistência que
a história subterrânea acessível. ela sentiu individualmente naquele momen-
A narradora traz uma memória de Afon- to de Copa do Mundo, mas também, um sen-
sinho enquanto figura verdadeiramente timento que pode ser sentido na coletivida-
merecedora de prestígio, uma autêntica ins- de, por muitos brasileiros. Por meio dos in-
piração para os brasileiros. Isso contrasta tertextos do miniconto, a narradora coloca
com uma das frases iniciais em que diz “mas em pauta a importância em relembrarmos
tive que me contentar com Kaká, Robinho e a nossa própria história e mantermos vivas
outros anjinhos cheios de poses e de pouca as memórias de luta e resistência do nosso
inspiração” e dialoga com a menção feita a passado, ao mesmo tempo que dialoga com
Nelson Mandela. Afonsinho foi jogador de questões sociais do tempo presente.
futebol em uma época em que havia muita
exploração pelos empresários envolvidos Subjetividade plural
com o meio futebolístico, onde exigia-se a A questão da subjetividade se insere no
“boa aparência” dos jogadores adequada ao miniconto de Luma pelo modo em que se
poder hegemônico. Contudo, o ex-jogador pode pensar a escrita na pós-modernidade,
demonstrou ser um exemplo de resistên- visto que o foco dos autores diante dessa
cia, e, graças a ele, desde 2001, os jogadores sociedade que se constrói e se apresen-
profissionais não são mais explorados pelos ta como globalizada são, pois, artimanhas
seus clubes pela “lei do Passe”5. para a construção de novas identidades,
5 “Afonsinho chegou ao Botafogo em 1966, após em contextos multiculturais e híbridos. Ou
ser revelado pelo XV de Jaú. Desde que chegou, seja, é justamente a especificidade da es-
a postura forte pela liberdade individual inco-
modava. Os tempos eram de repressão em um crita pós-moderna que desvela uma nova
país que vivia em plena ditadura. E o ambiente compreensão da subjetividade que, por
do Botafogo, cheio de militares no comando, foi um lado, não pode mais ser vista a manei-
ficando cada vez mais pesado. Até que o craque
perdeu espaço. Ao se reapresentar em 1970, foi
ra moderna, absoluta e simplicista, e por
barrado pelo então técnico Zagallo.Insatisfeito outro, traz à tona múltiplos vieses e rejeita
com a situação, Afonsinho pediu para ser nego- hierarquias como passado e presente, rele-
ciado. Só que, nos 1970, as coisas não eram tão
vante e irrelevante. Segundo as perspecti-
fáceis. Na época, os vínculos esportivos de um
atleta não estavam ligados ao contrato, mas eram vas de Anthony Giddens (1991) e também
perenes. Isso significa que um jogador, mesmo de Stuart Hall (2015), enquanto há sujeitos
sem contrato, só poderia jogar em outro clube tão voltados para si, há também aqueles
se a agremiação anterior permitisse. Era a Lei do
Passe.” Reportagem: Bernardo Gentile e Vander- que se deparam com uma subjetividade
lei Lima. Disponível em: https://www.uol.com. fragmentada, descentralizada e deslocada.
br/esporte/reportagens-especiais/afonsinho-li- Essa fragmentação do sujeito é uma con-
ga-jejum-apos-copa-de-1970-da-selecao-com-a-
ditadura-comissoes-tecnicas-tinham-interven- sequência do processo de globalização do
cao/ Acesso em: 05 mai. 2020 mundo contemporâneo.
Ana Cláudia Viegas afirma que “a criação própria voz que narra no texto usa essa fi-
de diferentes identidades, característica das guras “icônicas” com o fim de questionar e
páginas virtuais, extrapola seu suporte téc- refletir sobre essa era de incertezas na qual
nico, apontando um traço da subjetividade vivemos.
contemporânea: plural, ambígua, ficcionali- De acordo com Cornelius Castoriadis,
zada” (2008, p. 71). Esse fato se materializa “o sujeito é essencialmente aquele que
na escrita de Luma, a qual traz à tona remi- faz perguntas e que se questiona” (1999,
niscências da ditadura militar, além de refle- p. 35). Desse modo, a narradora está a in-
xões dialógicas acerca de âmbitos diversos, dagar se realmente somos obrigados a in-
como o futebol e a música, fazendo com que terpretar papéis para que consigamos nos
esse texto possa adquirir sentido tanto para adequar às exigências do meio em que vi-
um ávido torcedor quanto para aquele que vemos, ou se podemos lutar, resistir, mu-
com saudosismo escuta as músicas das dé- dar de cena, assim como fizeram Mandela
cadas de 1960 à 1980. e Afonsinho. Assim, a subjetividade pode
Essa subjetividade múltipla e descen- ser entendida como “a capacidade de re-
tralizada está claramente presente na per- ceber o sentido, de fazer algo com ele e de
sonagem que narra através da fragmenta- produzir sentido, dar sentido, fazer com
ção de ideias difundidas no texto em aná- que cada vez seja um sentido novo” (CAS-
lise. Lembremos do momento em que a TORIADIS, 1999, p. 35).
narradora conta que “interpretou o papel É interessante a menção feita a herança
de esposa” para um “industrial paulista”. A do disco de vinil de Elis Regina, que canta a
personagem mostra como o seu ser subje- música de Gilberto Gil, ao final do minicon-
tivo é “plural” ao nos mostrar que encena to. Nesse momento, ao citar a artista femi-
papéis, uma forma de mascarar o seu “eu” nina, a narradora demonstra a vontade de
para poder sobreviver em sociedade. Como significar e valorizar o papel das mulheres
mencionado anteriormente, esse momento nesse processo de luta de classes, já que fo-
em contraste com o futebol e com a prosti- ram por muito tempo submetidas ao poder
tuição, pode ser entendido como uma crí- hegemônico e que, assim como Mandela e
tica a atenção dos brasileiros que está vol- Afonsinho, sentem a necessidade de resis-
tada mais ao futebol do que aos problemas tir com o fim de transformar o cenário con-
sociais. Esse é um exemplo dos reflexos da temporâneo. A literatura é um instrumento
globalização. que faz existir os mais diversos mundos, e,
De acordo com Boaventura de Souza portanto, “nada melhor do que o campo do
Santos, a globalização é “um vasto e inten- literário para entender como as mulheres
so campo de conflitos entre grupos sociais, contemporâneas se relacionam com sua
Estados e interesses hegemônicos, por um subjetividade e qual a influência disso na
lado, e grupos sociais, Estados e interesses constituição de identidades” (BORGES-TEI-
subalternos, por outro” (2002, p. 85). Essa XEIRA, 2014, p. 10).
ideia é implicitamente transmitida pelo tex- O fato do conto de Luma congregar uma
to em análise por meio das referências que miríade de cenas, impressões, sentimentos
já foram aqui analisadas. Nelson Mandela e desejos revela um sujeito mulher, reifica-
e Afonsinho recordam essa luta de classes, da e costurada que perdeu o corrimão da
entre o poder hegemônico e as minorias. A realidade e se sente impossibilitada de criar
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
No seio da Literatura, a poesia oral, ou as poéticas da oralidade como um
todo, abarcam metodologias de análise que se diferem daquelas da Crítica
e Teoria Literárias conservadoras e tradicionalistas, uma vez que seu amplo
suporte teórico e conceitual relaciona o escopo literário com muitos outros
campos epistêmicos, como o do teatro, da música, da antropologia, da socio-
logia, da etnologia, entre outros. Em vista disso, este trabalho aspira discutir
alguns pontos teóricos no que concerne à poesia oral e sua genealogia nas
culturas populares, incursionando em suas interfaces metodológicas e epis-
temológicas. Para tanto, nos pautamos em uma revisão de literatura de tex-
tos e pesquisas de autores como: Zumthor (1993), Fernandes (2007), Culler
(1999), Santos (1994), Burke (1989), entre outros.1
Palavras-chave: Poesia oral; Epistemologias; Metodologias; Revisão de li-
teratura.
Abstract:
Epistemic and methodological edits of oral poetry
In the heart of Literature, oral poetry, or the poetics of orality as a whole,
encompass methodologies of analysis that differ from those of conservative
and traditionalist Literary Criticism and Theory, since its broad theoretical
and conceptual support relates the literary scope with many other epistemic
fields, such as theater, music, anthropology, sociology, ethnology, among oth-
* Mestrando em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Integrante do Grupo
de Pesquisa Linguagens, Estudos Culturais e Formação do Leitor (LEFOR). Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9898725859278461. E-mail: lu.ciano2011@live.com.
** Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).
Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – DCH IV) na graduação e no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação e Diversidade (PPED). Líder do Grupo de Pesquisa Linguagens, Estudos Culturais e
Formação do Leitor (LEFOR). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4506569196582211. E-mail: dsousa@uneb.br.
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
da Bahia (FAPESB).
ers. Therefore, this work aims to discuss some theoretical points regarding
oral poetry and its genealogy in popular cultures, incurring its methodolog-
ical and epistemological interfaces. For this, we based ourselves on a litera-
ture review of texts and research by authors such as: Zumthor (1993), Fer-
nandes (2007), Culler (1999), Santos (1994), Burke (1989), among others.
Keywords: Oral poetry; Epistemologies; Methodologies; Literature review.
Introdução
Apreender o conceito de poesia oral implica percepções corporais e sonoras (portanto,
desvinculá-lo das acepções e metodologias performáticas) ignoradas pela Teoria Lite-
de análise da literatura canônica/tradicio- rária tradicionalista.
nal, uma vez que a poesia oral tenciona uma Nesse sentido, este trabalho aspira dis-
abordagem em que o poético é construído cutir alguns pontos teóricos no que concer-
para além do verbal, mas elaborado e reela- ne à poesia oral e sua genealogia nas cultu-
borado nas percepções sonoras, corporais, ras populares, incursionando em suas inter-
visuais e circunstanciais, instituindo assim faces metodológicas e epistemológicas. Para
a performance, a qual ponderaremos mais tanto, nos pautamos em uma revisão de
enfaticamente nas seções seguintes. literatura de textos e pesquisas de autores
Mesmo diante das muitas acepções e ca- como: Zumthor (1993), Fernandes (2007),
racterizações – tal qual a conceituação de Culler (1999), Santos (1994), Burke (1989),
literatura –, é importante assinalar a poesia entre outros.
oral não tem um conceito preciso, tendo em
vista as diversas abordagens e tensionamen- Nos fios teóricos da poesia oral:
tos sobre ela. Embora tenha-se perspectivas (re)visitando conceitos
e definições muito próximas, a poesia oral
Ao falar que a poesia oral necessita de meto-
não é exatamente delimitada, considerando
dologias de estudo diferentes da poesia dos
o amplo meio conceitual e epistemológico, estudos canônicos, nos pautamos na afir-
no qual a ela se encontra inserida e consti- mação de que ela é situada num âmbito hic
tuída (FERNANDES, 2007). et nunc, isto é, a poesia oral acontece numa
Como revela Zumthor (1993), o estudo circunstância performática estabelecida no
da poesia oral é cruzado por um amplo meio momento, no aqui e agora. Nessa perspecti-
epistemológico, no qual a poética – articula- va, Frederico Fernandes (2007, p. 36) apon-
da com a filologia, etnologia, a iconografia, a ta que a:
história da música e do teatro, dentre outras
Poesia oral, em estado latente, isto é, próxi-
áreas pertinentes – corrobora a apreensão e
ma a se manifestar, compreende transfor-
percepção da poesia, em que a sonoridade, a mações e associações, ordenamento e caos,
corporeidade e o discurso poético intercru- corpo e voz, continuidade e inacabamento.
zam-se na condução de uma sensibilidade Por isso, enquanto texto oral (e fonte para a
diferenciada da poesia. Dessa maneira, de- pesquisa), a poesia oral diz respeito ao que
vemos ponderar uma metodologia de aná- “se faz”, e não ao que “foi feito”.
lise desse fazer poético oral diferenciada da Assim sendo, o estudo da poesia oral é
poesia escrita, no sentido de abarcar essas considerado sob a mesma ótica circunstan-
cial a qual a própria é condicionada. Como nadas “culturas populares”, bem como o seu
o próprio autor destaca, não estudamos o percurso nos Estudos Culturais, de modo a
que “foi feito”, mas o que “se faz”, o proces- refletir os embates enfrentados nas relações
so de construção de sentidos do fazer poé- de poder com as culturas privilegiadas so-
tico num dado momento performático. Ao cialmente.
contrário da poesia escrita, já registrada e
fixada verbalmente, a poesia oral apresen- Poesia oral e culturas populares:
ta um aspecto movente que institui nela discussões emergentes nos
um ato constante de (re)criar e (re)signifi-
Estudos Culturais
car, sujeito às condições de produção. Essas
condições de produção situam-se na pró- Pensar a literatura – e enfaticamente a li-
pria performance, esta que “aparece como teratura popular/oral – como produção
uma ação oral-auditiva complexa, pela qual cultural nos remete à reflexão sobre o pró-
uma mensagem poética é simultaneamente prio termo cultura, esse que já foi (e ainda
transmitida e percebida aqui e agora. Locu- é) atravessado por múltiplas definições e
tor, destinatário(s), circunstâncias acham- concepções, as quais muitas delas enges-
se fisicamente confrontados, indiscutíveis” sam-na, e outras coadunam com a dinamici-
(ZUMTHOR, 1993, p. 222). dade e maleabilidade intrínseca às práticas
É possível percebermos a complexa rede culturais. Sob essa perspectiva, definir pre-
teórico-metodológica em que o estudo poe- cisamente cultura é uma tarefa árdua e pra-
sia oral é situado. Os sujeitos envolvidos na ticamente impossível, se levarmos em conta
construção dos sentidos da poética da ora- o processo movente no qual ela se constrói e
lidade (intérprete e destinatário/receptor) reconstrói, visto cada tempo, espaço, sujei-
são responsáveis por uma performance que tos, sentidos e símbolos imbricados na sua
configura a própria obra poética. Segun- sociedade/comunidade produtora.
do Zumthor (1993, p. 220), a obra poética José Luiz dos Santos, em O que é cultu-
é aquilo que “é poeticamente comunicado, ra (1994), apresenta duas concepções para
aqui e agora – texto, sonoridades, ritmos, conceituá-la, uma que a debate sob uma óti-
elementos visuais; o termo compreende à ca mais geral e a outra específica aos modos
totalidade dos fatores da performance”. Nes- de produção. Para o autor:
sa perspectiva, tomemos aqui “obra poética” A primeira dessas concepções preocupa-se
como a totalidade da performance, ou seja, com todos os aspectos de uma realidade so-
o resultado da articulação entre corpo, voz, cial. Assim, cultura diz respeito a tudo aqui-
lo que caracteriza a existência social de um
discurso e elementos circunstanciais.
povo ou nação, ou então de grupos no inte-
Diante desses apontamentos, fica evi- rior de uma sociedade. (A segunda é que)
dente que a poesia oral é pensada numa [...] quando falamos em cultura estamos nos
interrelação entre corpo e voz, emergindo referindo mais especificamente ao conheci-
assim a performance, em que o intérprete mento, às ideias e crenças, assim como às
desvela uma poética que é sensorial e ao maneiras como eles existem na vida social.
mesmo tempo reveladora de uma memória (SANTOS, 1994, p. 24-25).
coletiva, a qual ele próprio comunga. Embora Santos introduza essas duas
Adensaremos, na subseção posterior, a acepções, é perceptível que a segunda está
poesia oral e suas relações com as denomi- intimamente inserida na primeira, já que
“[...] ‘popular’ (caso queira usar esse adjeti- em que a cultura de um grupo, e inicialmen-
vo) não designa ainda o que se opõe às ‘ciên- te das classes populares, funciona como con-
cias’, à lettrure [sic]; refere-se ao que depen- testação da ordem social ou, contrariamente,
como modo de adesão às relações de poder.
de de um horizonte comum a todos – sobre
o qual se destacam algumas construções Nessa perspectiva, os Estudos Culturais
abstratas, próprias a uma ínfima minoria de direcionam as pesquisas acadêmicas sobre
intelectuais”. De tal modo, a cultura popular os grupos e movimentos populares, consi-
é muito mais que um ponto dicotômico às derando esse aspecto descentralizador do
culturas privilegiadas, ela está situada num conhecimento tido como “erudito” (XAVIER,
âmbito de produção de saberes, vivências e 2018). Desse modo, destacamos a potência
existências de povos, que foram marginali- dessa corrente de estudos, imbricado em
zados por não atenderem aos padrões so- descentralizar a produção do saber no âm-
ciais das elites. bito acadêmico.
Em consonância com as discussões levan- Refletir sobre o surgimento dos Estudos
tadas acima, Nerivaldo Alves Araújo (2015, Culturais requer compreender as implica-
p. 24) aponta que “[...] as manifestações cul- ções iniciais que tais perspectivas tiveram
turais de povos frequentemente marginali- com a Literatura. Jonathan Culler (1999, p.
zados pela cultura dos grupos dominantes 52) afirma que “os estudos culturais surgi-
de visão eurocêntrica estão assumindo um ram como a aplicação de técnicas de análise
papel considerável ante o novo repensar da literária a outros materiais culturais. Tra-
cultura nacional”. Nesse contexto, para com- tam os artefatos culturais como ‘textos’ a
preender essa dimensão do popular trazida ser lidos e não como objetos que estão ali
para os estudos acadêmicos, é preciso res- simplesmente para serem contados”. Sendo
saltar o papel imprescindível dos Estudos assim, os Estudos Culturais na Literatura
Culturais, considerando seus esforços em não se centram somente em temáticas da
trazer esses “heróis e heroínas populares”, cultura a serem analisadas na obra literária,
para o centro dos estudos universitários, mas também novas abordagens de leitura
isto é, para o lugar de protagonismo que lhe do texto literário.
é de direto. É nesse sentido que os Estudos Culturais
Os Cultural Studies, ou Estudos Culturais se debruçam sobre as produções poéticas
surgem a partir de 1960, como uma forma da oralidade, já que um dos seus fundamen-
contra-hegemônica e interdisciplinar de in- tos é trazer à tona as produções literárias
vestigação das culturas ligadas às camadas marginalizadas. As literaturas escritas já
populares, de modo a questionar as hierar- usufruíam (como ainda usufruem) de privi-
quias acadêmicas preestabelecidas na cons- légios nos estudos literários; o fato é que nos
trução do conhecimento. Para Mattelart e estudos a literatura oral começa a emergir
Neveu (2004, p. 13-14), os Estudos Cultu- com mais força e potência nas Academias.
rais visam: A poesia oral em si emerge nesse seio
dos saberes e fazeres da cultura popular e
Considerar a cultura em sentido amplo, an-
tropológico, de passar de uma reflexão cen- da literatura oral, confluindo na articulação
trada sobre o vínculo cultura-nação para de um discurso verbal oral, atravessado por
uma abordagem da cultura dos grupos so- sonoridades e performances que configu-
ciais, [...] a questão central é compreender ram a obra poética.
distintos da escrita, ambas não se anulam, tes. Enquanto a poesia escrita se instaura na
tampouco uma exclui a outra. Para Zumthor fixação das letras e palavras (o que não se
(1993, p. 98), “conforme os lugares, as pes- pode dizer dos sentidos), a poesia oral des-
soas implicadas, o texto depende às vezes fruta da movência, da maleabilidade criativa
de uma oralidade que funciona em zona de da performance e de sentidos, em que o cor-
escritura, às vezes [...] de uma escritura que po gesticula sentidos e a voz emana poesias.
funciona em oralidade”. É cabível discorrer algumas questões
Essa afirmação do autor demonstra a acerca da voz e do seu imprescindível pa-
estreita relação entre escritura e oralidade; pel na configuração poética da obra. Para
esta precede àquela, mas não a anula, pos- Zumthor (2010, p. 10), a voz constitui uma
to que as duas comungam de um mesmo “imagem primordial e criadora, ao mesmo
precedente: a linguagem. O que as difere é tempo, energia e configuração de traços
a forma de transmissão, transcendência e que predeterminam, ativam, estruturam em
articulação; o que também implica sujeitos, cada um de nós as experiências primeiras,
culturas e relações de poder também dis- os sentimentos e pensamentos”. Do pon-
tintas. Não podemos deixar de assinalar os to de vista do autor, é observado que a voz
privilégios obtidos pela escrita no seio da emana não somente o ato de criação poéti-
sociedade ocidental (como já vimos ante- ca, mas um aspecto ontológico, cuja existên-
riormente), ao passo que as tradições orais cia do ser que a evoca revela a presença de
ocupam na maioria das vezes um lugar se- outras vozes passadas, um jogo existencial
cundário e folclórico. do sujeito intérprete, expresso a cada mani-
O fato é que nos estudos da poesia oral, festação vocal.
a oralidade é o espaço do constante mani- Ainda da perspectiva do autor, “[...] a voz
festar da poética, dos jogos de sentidos pro- é uma coisa: descrevem-se suas qualidades
duzidos e articulados pelo intérprete, no materiais, o tom, o timbre, o alcance, a altu-
momento da performance. Ainda no que se ra, o registro... e a cada uma delas o costume
refere à oralidade na poesia, Frederico Fer- liga um valor simbólico” (ZUMTHOR, 2010,
nandes nos lembra que: p. 9, grifo do autor). A voz, nesse sentido, é
[...] o próprio adjetivo ‘oral’ aplicado à poe- caracterizada pelo aspecto fisiológico, em
sia é resultado do modo como se concebe que o timbre, o tom e demais variações con-
e se produz literatura na atualidade e, por tribuem com a diversidade e a movência da
isso, ele visa diferenciar uma manifestação poética. Além disso, o fator simbólico da
poética da literatura, ou melhor, de uma
voz é apontando pelo autor para salientar
poesia pensada e manifestada numa cultura
escrita. Esta diferença encontra suas bases o fenômeno existencial e ontológico dela
no modo de produção, de veiculação e de co- na poesia oral, ordenado por uma por uma
mercialização, mas a poesia oral e a escrita vocalidade. Entendemos por “vocalidade” a
encontram-se num mesmo eixo comum que presença da voz, o próprio uso e articulação
é o próprio significado da poesia (FERNAN- dela, na tessitura de sua sonoridade e sig-
DES, 2007, p. 25). nificação, uma vez que, segundo Zumthor
Nessa linha de raciocínio, depreendemos (1993, p. 21), a “vocalidade é a historicidade
que oralidade na poesia demarca modos de de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de
produção distintos da escrita, o que corro- pensamento, é verdade, considera e valoriza
bora outras distinções também preexisten- a voz como portadora da linguagem, já que
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Este trabalho objetivou verificar crenças e atitudes linguísticas de professo-
res de língua portuguesa do Ensino Médio de uma escola pública de Salva-
dor, Bahia, Brasil, no tocante às convenções linguísticas institucionalizadas,
de modo a compreender a valorização ou a rejeição das variedades da língua
em uso e refletir sobre o ensino de língua portuguesa materna. A pesquisa
norteou-se na abordagem teórica da Sociolinguística (WEINREICH; LABOV;
HERZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]; GÓMEZ MOLINA, 1998; MORE-
NO FERNÁNDEZ, 2008), optando pela análise qualitativa e descritiva, a partir
de testes de crenças e atitudes de abordagem direta. Esses testes revelaram
crenças dos professores na superioridade da norma padrão e na dualidade
certo/ errado, negando a variabilidade própria das línguas. Percebeu-se que
as crenças sobre a língua portuguesa guiam as atitudes dos professores que,
ao avaliar textos de alunos, os consideram insuficientes e cheios de erros
por não atingirem um ideal de língua. Os docentes também demonstraram
conhecimento da diversidade linguística, de gêneros textuais e da tipologia
dissertativo-argumentativa. Observou-se que enquanto o ensino tradicional
tem metodologia clara, considerar a diversidade linguística exige metodo-
logias diversas, o que depende da formação de professores pesquisadores
autônomos, que ressignificam seu fazer docente na indissociabilidade da
teoria e da prática pedagógica.
Palavras-chave: Crenças e atitudes linguísticas; Retomada anafórica do
objeto direto de terceira pessoa; Variação linguística; Professores. Sociolin-
guística.
* Doutoranda em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora da Se-
cretaria de Educação do Estado da Bahia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7788173410265540. E-mail: clau-
dia.norete@gmail.com.
** Doutora em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Universidade
Federal da Bahia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0097807333024989. E-mail: belasandra@gmail.com.
Abstract:
Language beliefs and attitudes of high school
teachers on anaphoric recovery of third-person
This work verified language beliefs and attitudes of high school Portuguese
teachers from a public school in Salvador, Bahia, Brazil, concerning the in-
stitutionalized linguistic conventions, in order to understand the valoriza-
tion or rejection of the varieties of the language in use and to reflect on the
teaching of Portuguese as the mother tongue. The research was conducted
by the theoretical approach of Sociolinguistics (WEINREICH; LABOV; HER-
ZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]; GÓMEZ MOLINA, 1998; MORENO
FERNÁNDEZ, 2008), opting for qualitative and descriptive analysis, based
on direct approach linguistic beliefs and attitude tests. These tests revealed
teachers’ beliefs in the superiority of the standard norm and in the right/
wrong duality, denying the variability inherent to languages. It is noticeable
that the beliefs about the Portuguese language guide the attitudes of teach-
ers who, when evaluating students’ texts, consider them insufficient and full
of errors for not reaching an ideal of language. The teachers also demon-
strated knowledge of linguistic diversity, textual genres and the argumen-
tative essay typology. It was observed that while traditional teaching has a
clear methodology, considering linguistic diversity requires diverse meth-
odologies, which depends on the training of autonomous research teachers,
who give new meanings to their teaching in the inseparability of theory and
pedagogical practice.
Keywords: Language beliefs and attitudes; Anaphoric third person direct
object; Linguistic variation; Teachers; Sociolinguistics.
Introdução
A Sociolinguística considera que as lín- pecto intra-linguístico e no eixo diatópico,
guas são heterogêneas, possuem natureza diastrático, diafásico e diacrônico, dentre
variável e a sua estrutura está associada outros.
ao uso. Uma comunidade de fala não apre- Nos últimos tempos, os resultados de
senta comportamento linguístico idêntico diversos trabalhos centrados na teoria va-
e, no seio da comunidade, um mesmo indi- riacionista, tais como o de Duarte (1986),
víduo alterna entre uma forma e outra, de Malvar (1992), vêm assinalando que a dis-
acordo com a situação em que se encontre tância entre a norma padrão prescrita pela
(LABOV, 2008 [1972]). A heterogeneidade Gramática Tradicional e o português falado
nos usos linguísticos é a preocupação cen- no Brasil tem se tornado cada vez mais sig-
tral da Sociolinguística. Essa teoria tem, nificativa. Um exemplo que esclarece essa
pois, como objeto de estudo a diversidade discrepância entre o que se dita, se pres-
linguística e o uso da língua no contexto creve, se normatiza e o que efetivamente
social, procurando o entendimento dos acontece no português falado do Brasil é o
mecanismos de variação e mudança no as- processo de mudança que vem sofrendo o
clítico acusativo de terceira pessoa em ter- nativa do pronome em função acusativa), SNs
ras de aquém mar. anafóricos (forma plena do SN correferente
Rossi e Casagrande (2018) atestam a com outro SN previamente mencionado) ou
por uma categoria vazia (objeto nulo).
extinção do clítico acusativo de terceira
pessoa, fenômeno que se deve às mudan- Assim, tem-se quatro estratégias de uso
ças ocorridas no paradigma pronominal do do referido fenômeno linguístico variável
português brasileiro. Ao analisar a aquisi- (como já observado por DUARTE, 1989;
ção da língua materna, verificam, com da- LUZ, 2009a; 2009b; ALMEIDA e ALMEIDA,
dos de Casagrande (2007 e 2010), que as 2012 e outros), a saber: o pronome acusa-
crianças brasileiras não adquirem mais o tivo (Eu o vi), o pronome lexical (Eu vi ele),
clítico nem mesmo ao final dos nove anos o sintagma nominal anafórico (Eu vi Carlos)
de estudos e que “durante o processo de e o objeto nulo (Eu vi Ø), não somente no
aprendizagem, a escola apresenta dificul- português falado, como também no escrito.
dades de fazer com que os alunos utilizem Neste trabalho, pautado na abordagem
o clítico acusativo de terceira pessoa, espe- teórica da Sociolinguística (WEINREICH;
cialmente em contextos orais.” (p. 60). Para LABOV; HERZOG, 2006 [1968]; LABOV,
os autores, “algo que não faz parte do input 2008 [1972], GÓMEZ MOLINA, 1998; MO-
da criança em aquisição se torna de difícil RENO FERNÁNDEZ, 2008), verificam-se as
aprendizagem” (p. 47), o que requer um crenças e as atitudes linguísticas de profes-
olhar mais cuidadoso e sensível do profes- sores de língua portuguesa do Ensino Médio
sor para com estes fenômenos linguísticos de uma escola pública de Salvador, Bahia,
em sala de aula, devendo promover “um es- Brasil, no tocante às convenções linguísti-
tudo gramatical que leve em consideração cas institucionalizadas, de modo a alicerçar
o sujeito, o espaço linguístico em que está a discussão da valorização ou da rejeição
inserido, e oportunizar momentos de refle- às variedades da língua em uso, bem como
xões sobre a linguagem, em sala de aula.” refletir sobre o ensino de língua portugue-
(ROSSI; CASAGRANDE, 2018, p. 50). sa materna. Os docentes dessa escola res-
Investigar as crenças e atitudes linguís- ponderam a cinco perguntas: uma sobre a
ticas dos professores de língua portuguesa língua portuguesa e quatro sobre o fenôme-
quanto à retomada anafórica do objeto di- no da retomada anafórica do objeto direto
reto de terceira pessoa se justifica por se de terceira pessoa. As primeiras perguntas
tratar de um fenômeno linguístico alvo de buscaram desvelar crenças, e a última, cren-
controle da tradição escolar, que prevê uma ças e atitudes linguísticas.
única forma, enquanto ocorrerem outras va- A fim de cumprir o proposto neste es-
riantes entre os usuários da língua. Um ensi- tudo, o trabalho está delineado da seguinte
no plural precisa contemplar a diversidade. maneira: além desta seção introdutória, des-
Como explicado por Duarte (1989, p. 19), tacam-se na seção “Sociolinguística e o ensi-
no” alguns aspectos concernentes ao caráter
Na realização do objeto direto correferente
mutável da língua, à variação e ao ensino;
com um SN mencionado no discurso (dora-
vante objeto direto anafórico), o português na seção “Crenças e atitudes linguísticas”
falado no Brasil tende, com frequência cada apresentam-se as áreas que abraçam esses
vez maior, a substituir o clítico acusativo de estudos e o que pensam alguns autores com
3ª pessoa pelo pronome lexical (forma nomi- relação aos conceitos, finalizando com a im-
da atitude) por conter uma intenção explíci- lizadas, de modo a entender como se dá a
ta de comportamento ou uma ação. avaliação das variedades da língua em uso.
Por sua vez, estudar as crenças e as atitu- A retomada anafórica do objeto direto de
des linguísticas dos falantes é uma maneira terceira pessoa é utilizada na dimensão ava-
bem significativa de entender o funciona- liativa, pois tem como propósito observar
mento da língua, uma vez que a língua tam- a partir do referido fenômeno linguístico
bém está sujeita à valoração, negativa ou variável, nos testes de atitudes linguísticas,
positiva, o que pode interferir no processo as reações tanto positivas como negativas
de variação e de mudança (WEINREICH; LA- dos professores. Aqui crenças linguísticas
BOV; HERZOG, 2006 [1968]). são compreendidas como uma disposição
A investigação de crenças e atitudes no valorativa dos falantes sobre os fenômenos
ensino de Língua Portuguesa tende a con- linguísticos. Nas crenças, os professores re-
tribuir para o desenvolvimento de um tra- velam conceitos, o que pensam; já nas atitu-
balho reflexivo, conforme aponta Barcelos des, verifica-se o que eles dizem que fazem,
(2007). Adotando essa concepção, criam-se as ações (CARNEIRO, 2014).
espaços e oportunidades para que docen- Os testes de atitudes são elaborados
tes e discentes tenham a possibilidade de por meio de duas abordagens diferentes: a
questionar as suas próprias crenças, per- abordagem direta e a técnica do diferencial
mitindo-lhes revisitar conceitos, atitudes e semântico (OSGOOD; SUCI; TANNENBAUM,
comportamentos frente ao caráter variável 1957). Adotou-se a abordagem direta, e
da língua. Dessa forma, os protagonistas do para tal foram confeccionadas 05 perguntas
processo terão condições de romper com abertas e escritas sobre a língua e sobre o
as crenças e as atitudes antigas que reve- objeto selecionado para a avaliação. De pos-
renciam as formas que correspondem a um se dos testes, os docentes concordaram em
padrão idealizado de língua, que, por mui- participar por meio de um termo de consen-
tas vezes, leva a escola a endossar um ensi- timento livre e esclarecido, contendo objeti-
no prescritivo, isto é, um ensino que não dá vos da pesquisa e o compromisso do pesqui-
espaço para que os alunos meditem sobre sador da não revelação de suas identidades.
os fenômenos linguísticos e sobre o funcio- As questões abertas permitem aos infor-
namento da língua. O estudo das crenças e mantes emitirem as respostas que julgam
atitudes linguísticas dos professores se faz mais adequadas, e nas respostas tem-se a
relevante por sinalizar o que pensam sobre revelação de crenças e atitudes linguísticas.
a língua portuguesa e suas variedades e por- Os testes de crenças e atitudes foram elabo-
que o modo como ensinam a língua tem con- rados e enviados por meio da ferramenta
sequências diretas no desempenho escolar Formulário Google aos professores da esco-
dos discentes. la pública investigada. Nove professores de
língua portuguesa consultados previamente
Metodologia da pesquisa receberam o teste, sendo que apenas um de-
Neste estudo piloto, investigam-se as cren- les justificou a impossibilidade de partici-
ças e as atitudes linguísticas de oito profes- par no momento.
sores de língua portuguesa do Ensino Médio A investigação teve dois tipos de ques-
de uma escola pública de Salvador, no tocan- tões: uma sobre aspectos amplos da língua
te às convenções linguísticas instituciona- e quatro perguntas específicas do objeto de
(01) [...] Boa parte das mudanças, [...] deve- QUESTÃO 03: É possível ver diferenças en-
ram-se à criação das primeiras máquinas, tre os quatro trechos? Aponte algumas.
que substituíram milhares de trabalha- QUESTÃO 04: Um texto/fragmento é me-
dores, fazendo-os ficar sem empregos ou a lhor que o outro? Justifique.
trabalharem de forma insalubre e mal remu-
nerada. QUESTÃO 05: Se produzido por seus alunos,
qual avaliação cada fragmento acima rece-
(02) [...] Não é necessário uma análise pro-
beria (de 0 a 5)? Explique.
funda para perceber o alto grau de impor-
tância que o avanço da tecnologia gerou no Segundo Barbosa e Ghessi (2019), de-
mundo, mas também é inegável que se criou preendem-se reações tanto positivas quan-
um desconforto para aqueles que não com-
to negativas em testes de atitudes linguísti-
preendem esse avanço tecnológico e, [...]
precisam sobreviver. cas que utilizam textos escritos. Foram rea-
lizadas a análise qualitativa para tratamento
(03) [...] O indivíduo que se encontra nessa
dos dados e a discussão das respostas dos
situação busca fazer o que pode, no intuito
de se tornar qualificado, para que o mercado professores sobre as questões abordadas, as
de trabalho Ø valorize. quais apresentam-se a seguir. Trata-se, por-
tanto, de uma pesquisa descritiva. Em con-
(04) [...] Ministério do Trabalho, em parce-
ria com as empresas, deve fazer atualizações formidade com o que diz Gil (2002, p. 42),
nos cursos já existentes de seus trabalha- inclui-se neste grupo “as pesquisas que têm
dores com o intuito de manter eles atualiza- por objetivo levantar as opiniões, atitudes e
dos na utilização de novas tecnologias. crenças de uma população”.
variedade padrão. Para Possenti (1996, p. (09) Ao fazer o uso dos pronomes, não pare-
17, grifos do autor), “o objetivo da escola é cem ser a mesma pessoa. (PROF01S)
ensinar o português padrão, ou, talvez mais (10) Sim e não. Isso porque dois fragmentos
exatamente, o de criar condições para que (01 e 03) apresentam-se como introdução e
ele seja aprendido.” os dois restantes como parte da conclusão.
Portanto, o ensino de Língua Portugue- Assim sendo, torna-se possível que uma in-
sa deve ter como meta uma concepção que trodução e uma conclusão sejam do mesmo
texto. Contudo não tem como se ter certeza
apadrinhe o aperfeiçoamento da língua ma-
disso. Como o tema é o mesmo podem ser
terna, do sujeito e do contexto, deixando de partes de textos de autores diferentes. (PRO-
privilegiar somente o repasse de regras da F02CL)
gramática tradicional. É possível partir da
(11) Sim. Devido à aplicação dos pronomes.
gramática normativa, mas não se limitando
Ora corretamente ora não. (PROF03RO)
a ela, considerando que refletir sobre a lín-
gua precisa ser um exercício constante, seja (12) São escritos por pessoas diferentes,
no processo de leitura, de produção textual pois cada pessoa tem sua maneira própria
de escrever sobre o mesmo assunto. (PRO-
ou de análise linguística em si, por meio de
F04M)
variados gêneros textuais.
Segundo Faraco (2008), cabe à escola e (13) Sim, pois é perceptível a mudança no
ao professor a construção de uma pedago- discurso de cada trecho apresentado. (PRO-
F05A)
gia da variação linguística que não esconda
a realidade linguística do Brasil, nem faça (14) Sim, em função dos trechos apresenta-
piada pautada nos fenômenos variáveis da rem domínios diferentes da modalidade es-
língua, que se desenvolva uma pedagogia crita formal da língua portuguesa. (PROF06I)
(15) Diria que a escrita, quanto a utilização
que mostre aos alunos a variação linguís-
da norma padrão, difere. (PROF07AM)
tica, visando combater os preconceitos lin-
guísticos, as exclusões sociais e culturais ba- (16) Não. pois os fragmentos parecem ser
seadas na distinção linguística. continuação dos argumentos. (PROF08CO)
Quanto à questão 02: É possível identi- Desfazendo a ideia do estilo único, La-
ficar se os trechos são escritos por pessoas bov (2008 [1972]) sinaliza que os falantes
diferentes? Justifique., os professores si- de qualquer língua têm a sua disposição um
nalizam: a) nas respostas (09), (11), (12), campo amplo de alternâncias estilísticas.
(13), (14) e (15) a menção a duas varieda- Quando os alunos adentram à escola já
des linguísticas e o fazem pela observação dominam sua língua materna, porém ne-
de detalhes (uso dos pronomes, diferentes cessitam ampliar seus recursos comunicati-
modos de escrever sobre o mesmo assunto, vos para acatar às convenções sociais. Não
mudança no discurso, diferentes domínios existe uma língua “certa” a ser ensinada,
da modalidade escrita formal, diferenças mas, sim, formas linguísticas mais adequa-
quanto à utilização da norma padrão); b) das ou menos adequadas a certos gêneros
a não identificação de diferentes autorias ou situações comunicativas, considerando,
nos trechos analisados (10) e (16); c) a inclusive, a avaliação social; formas linguís-
crença na ideia de dualidade, de certo e er- ticas são avaliadas de diferentes maneiras
rado na colocação pronominal, negando a (crenças e atitudes são formas implícitas e
variabilidade (11). explícitas de avaliação social).
No que diz respeito à questão 03: É pos- cos, há o melhor (mantê-los) ou o pior jei-
sível ver diferenças entre os quatro trechos? to de escrever (manter eles); conceberam
Aponte algumas, a seguir, verificam-se as a crença de que a língua é homogênea, o
respostas: que nos remete à existência de uma “escri-
(17) No parágrafo 02, há repetições de ter- ta correta”, que são ensinadas na escola e
mos; o parágrafo 04, uso dos pronomes. explicadas nas gramáticas. O mito da lín-
(PROF01S) gua única é reforçado na reafirmação de
(18) Sim. Como mencionado antes, dois um só modo de escrever. Parece haver uma
apresentam conteúdo relacionado à introdu- crença maior: a de que no tipo dissertati-
ção e dois à conclusão. O 01 é o que demons- vo-argumentativo só cabe a norma padrão.
tra melhor empenho do autor, enquanto que De modo interligado, uma crença reforça
o 03 demonstra pouca maturidade no trato outra: os alunos que escrevem conforme
do tema. A elaboração do 03 e 04 demonstra
a norma padrão escrevem bem, vão obter
menor clareza, porém a ideia apresentada
no 04 é melhor. (PROF02CL)
boas notas na escola e na redação no Exa-
me Nacional do Ensino Médio (ENEM), o
(19) Sim. Cito, por exemplo, o 04. Ele não
que contribui para conseguirem mais fa-
aplica corretamente a aplicação do prono-
me. O correto seria mantê-los. (PROF03RO) cilmente uma vaga em uma universidade.
Mas escrever bem não se limita a domi-
(20) Problemas na construção das orações e
nar a variedade padrão ou uma variedade
na organização das ideias. (PROF04M)
culta da língua. A avaliação centrada na
(21) Sim, o uso de argumentos de diferentes identificação de erros corre o risco de se
perspectivas. (PROF05A)
limitar a encontrar defeitos no texto, em
(22) Sim, são abordagens diferentes em detrimento de critérios mais importantes
torno do mesmo tema e destrezas distin-
e abrangentes. São várias as diferenças en-
tas em relação ao vocabulário e às normas
tre os trechos apontadas como negativas
gramaticais da língua. Por exemplo, no
trecho 01 identifico uma abordagem refe- pela maioria dos respondentes.
rente ao desenvolvimento do tema e já no Observa-se ainda que alguns professores
trecho 04 percebo uma argumentação so- lembraram critérios mais amplos quando
bre a conclusão da redação. No trecho 03 o mencionaram: ideias apresentadas, clareza
autor parece ter pouco conhecimento dos (18), argumentos (21), abordagens diferen-
mecanismos linguísticos necessários para tes, vocabulário (22) e ao identificar intro-
a construção da argumentação e já no tre-
dução (18), desenvolvimento (22) e conclu-
cho 04 o escritor tem um domínio maior.
(PROF06I) são (18). Além disso, apesar de terem ape-
nas trechos de redações à disposição, suas
(23) Na utilização dos pronomes e redun-
análises contemplam, em parte, as compe-
dância. (PROF07AM)
tências que são avaliadas nas redações do
(24) Não. pois apesar dos erros gramaticais,
ENEM. 1Competência 1: (18), [evitar] re-
procuram utilizar a linguagem culta. (PRO-
petições de termos; Competência 2: (19)
F08CO)
temática; Competência 3: (18), (20), (22)
As respostas (17), (18), (19), (20) e
(24) apontam uma atitude negativa em re- 1 É interessante lembrar que as redações produzi-
das para o Uol são exatamente treinamento para
lação à variação linguística, evidenciando o ENEM e são avaliadas segundo os critérios do
que acreditam que, em termos linguísti- quadro 1.
A seguir estão as respostas dadas para a Apesar da clareza das ideias e da adequa-
pergunta 04: Um texto/fragmento é melhor ção ao tema proposto em todos os fragmen-
que o outro? Justifique. tos a serem analisados, aspectos da língua
(25) Sim. Há erros que são óbvios. (PROF01S) receberam avaliações como certo/errado,
melhor/pior, mais claro/menos claro, mais/
(26) Sim, pois em alguns (01 e 04) se com-
menos ricos, bem desenvolvidos/desacordo
preende melhor a ideia do que nos outros
dois, além do melhor uso palavras e utilização
com o tema.
correta de termos gramaticais. (PROF02CL) Nos excertos (26), (27), (30) e (31) ain-
da percebe-se a atribuição de certo (norma
(27) Sim. É possível verificar a aplicação cor-
padrão, que na visão dos respondentes, está
reta do pronome e também a retomada cor-
acompanhada de outras qualidades) e er-
reta dele NO TEXTO 01. (PROF03RO)
rado (o não padrão, visto juntamente como
(28) Sim, porque existe um entendimento defeitos), e, com isso, atribuição de valor de
mais claro das ideias. (PROF04M) superioridade de um fragmento em relação
(29) Não é que são melhores ou piores vem ao outro, que se diferenciam explicitamen-
de construções e opiniões diferentes. (PRO- te quanto ao uso de diferentes variantes da
F05A) realização da retomada anafórica de objeto
(30) Sim. Alguns trechos são mais ricos em direto. A realização com o clítico apresentou
sentido de argumentação, construções fra- melhor avaliação (fazendo-os). A aceitação
sais e vocabulário e outros são menos. Esse ou a rejeição de diferentes variantes e va-
contraste fica evidente entre o trecho 01 e riedades no contexto escolar teve destaque
04. (PROF06I) em Cyranka (2007), quando ressalta que as
(31) No aspecto gramatical, percebe-se a pesquisas que apontam a rejeição, a desva-
utilização da norma padrão. (PROF07AM) lorização da escola no que diz respeito ao
dialeto do aluno e vice-versa devem ser vis-
(32) Sim. Em alguns fragmentos as ideias
foram bem desenvolvidas e em outros não, tas sob a ótica do problema da avaliação lin-
além de não estar totalmente de acordo com guística. Além dessa questão do valor social
o tema proposto. (PROF08CO) atribuído às variantes, a autora cita a cren-
3,5
2
Bom fragmento, 3
Confuso. Sabe-se
pois remete 2 Ideia boa, mas
o que ele quer
ao início da Ideia muito erros estruturais 10,5/20 =
(34) dizer, mas o uso
questão e abre singela. Sem e de colocação (52%)
PROF02CL incorreto de
possiblidades muita clareza e interferem na
algumas palavras
de reflexão no convicção. clareza.
prejudicam o
desenvolvimento.
sentido.
Boa coesão.
4
Emprega o 2
(35) pronome 4 4 Emprego 14/20 =
PROF03RO corretamente, Texto coeso. Texto coeso. indevido do (70%)
mas a ideia é pronome.
confusa.
–
O primeiro,
(36)2 pois precisa de
– – – –
PROF04M uma melhor
reestruturação.
[NÃO DEU NOTA]
2
2
2 pois o
pela articulação
4 pela [in] argumento
do assunto,
pela construção capacidade de embora
(37) ainda que não 10/20 =
dos argumentos desenvolver consistente,
PROF05A concorde com (50%)
e pelo nível da o argumento poderia
a maneira que
escrita. de modo [in] estar melhor
foi construído o
consistente3. trabalhado.
argumento.
2
2 4 2
pois o
pois demonstrou pois além de pois elaborou
demonstrou
pouco domínio demonstrar proposta de
pouco domínio
da modalidade bom domínio intervenção
da modalidade
escrita formal da modalidade para o problema
escrita formal
da língua escrita formal da abordado, fez
da língua
(38) portuguesa língua portuguesa isso de modo 10/20 =
portuguesa
PROF06I e pouco e considerável a demonstrar (50%)
e pouco
conhecimento conhecimento relativo domínio
conhecimento
dos mecanismos dos mecanismos da modalidade
dos mecanismos
linguísticos linguísticos escrita formal
linguísticos
necessários para necessários para da língua
necessários para
a construção da a construção da portuguesa.
a construção da
argumentação. argumentação.
argumentação.
3
Se uma das
competências a
serem avaliadas
15/20 =
(39) fosse a utilização
4 4 4 (75%)
PROF07AM da norma
padrão da língua
o 4 teria 3 e os
demais 4.
2
uma vez que
fala sobre
2,5
atualização
pois apesar dos
2,5 de cursos já
erros gramaticais
pois também existentes e
discorreu 4 11/20 =
(40) só atendeu a não se refere a
sobre o futuro por abordar o (55%)
PROF08CO um item do novos cursos
do emprego, tema na íntegra.
tema: o avanço e não aborda
no entanto,
tecnológico. o futuro do
não falou da
emprego, além
qualificação.
da colocação
pronominal
errada.
Média por 21/7 = 3,00 23/7 = 3,28 22/7 = 3,14 17/7 = 2,43
fragmento (60%) (65%) (63%) (49%)
Fonte: elaboração própria.
disso, os professores apontaram outras dita que saber a língua é dominar a gramá-
questões estruturais, não identificando tica tradicional.
o fragmento como da norma padrão ou Percebeu-se ainda que alguns professo-
formal.
res estiveram atentos a critérios mais am-
Os professores que atribuíram as maio- plos na avaliação textual, quando mencio-
res notas na média das questões (75%), naram ideias apresentadas, clareza, argu-
(70%) e (62%) foram os que avaliaram os mentos, abordagens diferentes, vocabulário
fragmentos com base em critérios objeti- e ao identificar introdução, desenvolvimen-
vos, enquanto os que atribuíram as piores to do tema e conclusão. Observou-se ainda
notas na média apresentaram mais justifi- que suas análises contemplam, em parte, as
cativas, geralmente subjetivas, não apon- competências que são avaliadas nas reda-
tadas e não identificáveis nos textos, tais ções do ENEM, não se limitando ao domí-
como: “confuso”, “ideia confusa”, “precisa nio da modalidade escrita formal (que pode
de uma melhor reestruturação”, [discor- ser identificada como a variedade culta ou
dância da] “maneira que foi construído o como a norma padrão). No entanto, no tes-
argumento”, “demonstrou pouco domínio te de atitudes, quando solicitados a atribuir
da modalidade escrita formal da língua uma nota para cada trecho de redação, fica
portuguesa e pouco conhecimento dos evidente a busca por um padrão de língua
mecanismos linguísticos necessários para idealizada e inalcançável. Os professores
a construção da argumentação” e “apesar mencionam muitos problemas nos textos e
dos erros gramaticais discorreu sobre o fu- atribuem notas baixas a todos os fragmen-
turo do emprego, no entanto, não falou da tos, com argumentos incompreensíveis, so-
qualificação”. Esses foram apenas os supos- bretudo os que deram as menores notas.
tos erros apontados para o fragmento (01), Por sua vez, os professores que atribuíram
contendo o clítico acusativo. melhores notas também foram os que apre-
Na tabela 01, a lógica da avaliação reve- sentaram critérios objetivos.
la atitude de reduzir a produção textual dos Sabe-se, no entanto, que os resultados
alunos (mesmo em situações que o profes- não espelham a realidade do município, pois
sor só apresenta elogios), tendo como parâ- trata-se de uma amostra limitada de infor-
metro a crença num padrão linguístico arti- mantes. Mas nota-se também que a amostra
ficial e inalcançável. Infelizmente, quando o revelou perfis importantes de professores
assunto é avaliação do texto do aluno, há ge- de língua portuguesa na contemporaneida-
ralmente alguns professores que supervalo- de que, assim como as línguas, são variáveis,
rizam os erros em detrimento dos acertos. heterogêneos e multifacetados. Se há uma
E com essa crença enraizada, está sempre maioria que ainda privilegia as variedades
pronto a reduzir notas e a diminuir a produ- de prestígio, há também uma crescente
ção do estudante. abertura para a diversidade linguística, o
que representa os feitos da ciência da lin-
Considerações finais guagem, a linguística (na formação univer-
Os resultados obtidos nesta pesquisa asse- sitária, na formação docente e nas escolas).
veram a crença dos professores na legiti- No teste de atitudes verificou-se que
mação das normas de prestígio, visto que muitos professores demonstraram atitudes
uma boa parcela dos docentes ainda acre- negativas em relação à variação linguística,
não admitem divergências da norma padrão seu material didático, pesquisa e ressigni-
nos textos dissertativos-argumentativos, fica o fazer docente, considerando a indis-
reafirmando a crença na língua homogênea sociabilidade da teoria e da prática peda-
e na dicotomia do certo/errado. Consequen- gógica. Por mais que o ensino já tenha sido
temente, percebe-se que as crenças sobre a transformado pelos estudos linguísticos, a
língua portuguesa atuam diretamente nas junção linguística e pedagógica ainda é um
atitudes dos professores no momento de campo em desenvolvimento, que carece de
avaliar os textos dos seus alunos. Sendo as- linguagem e metodologias próprias.
sim, destaca-se a necessidade de se ter, no
ensino de língua portuguesa, uma pedago- Referências
gia da variação linguística que seja demo- AGUILERA, Vanderci de Andrade. Crenças e ati-
crática e que não aceite nenhum tipo de dis- tudes linguísticas: quem fala a língua brasileira?
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criminação. O ensino da língua portuguesa Português brasileiro II: contato linguístico,
que considere a diversidade linguística e heterogeneidade e história. 1. ed. Niterói: Edito-
sua interseção com questões sociais, histó- ra Federal Fluminense, 2008.
ricas e culturais. É preciso ainda refletir que ALMEIDA, Jaqueline Macedo; ALMEIDA, Norma
pela língua perpassam relações de poder, Lucia F. de. O objeto direto anafórico no dialeto
tanto na comparação entre línguas como culto de Feira de Santana. In: XVI Seminário de
Iniciação Científica da UEFS: Sustentabilidade,
entre variedades de uma mesma língua. No
economia verde e erradicação da pobreza. Feira
último caso, lembrando o que diz Botassini de Santana. Anais…, de 16 a 19 de outubro de
(2015, p. 105): “Em toda sociedade, as di- 2012. v. 1. p. 88-91.
ferenças de ‘poder’ existentes entre grupos BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por
sociais distintos podem ser percebidas na uma pedagogia da variação linguística. São Pau-
variação linguística e nas atitudes para com lo: Parábola Editorial, 2007.
essas variações”. BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defe-
É necessário ainda, como disse Hooks sa do português brasileiro. São Paulo: Parábola,
(2008), tomar posse da língua portuguesa, 2009.
imprimindo-lhe nossas características, para BARBOSA, J. B.; GHESSI, R. R. Atitudes linguísti-
utilizar “a língua como um lugar onde nós cas e o ensino de língua portuguesa: uma refle-
fazemos de nós mesmos sujeitos” (HOOKS, xão sociolinguística. Tabuleiro de Letras, v. 13,
p. 69-91, 2019.
2008, p. 858). Embora se destaque a visão
de língua única, os professores responden- BARCELOS, Ana Maria Ferreira. Reflexões acer-
tes também são conhecedores da pluralida- ca da mudança de crenças sobre ensino e apren-
dizagem de línguas. Revista Brasileira de Lin-
de linguística, da variabilidade da língua em guística Aplicada, Belo Horizonte - UFMG, v. 7,
diferentes contextos e gêneros textuais. Se n. 2, 2007, p. 109-138.
por um lado o ensino tradicional tem uma
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em
metodologia clara para os professores, rea- língua materna: a sociolinguística na sala de
lizar um trabalho que abarque a diversidade aula. São Paulo: Parábola, 2004.
linguística ainda depende de uma formação BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na
universitária que dê conta dessa demanda, escola, e agora? Sociolinguística e educação.
o que reverbera na construção de metodo- São Paulo: Parábola, 2005.
logias de ensino que dependem de um pro- BOTASSINI, Jacqueline Ortelan Maia. A impor-
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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
O objetivo deste artigo é avaliar as possíveis contribuições de estudos so-
bre emoções e tecnologias digitais para o ensino/aprendizagem de inglês
no contexto do ensino remoto e ensino híbrido. Buscamos elaborar um es-
tudo teórico que possa subsidiar futuras pesquisas empíricas. Para tanto,
realizamos uma revisão da literatura acerca da relação entre emoções, tec-
nologias digitais, e o ensino da Língua Inglesa com atenção ao contexto bra-
sileiro e com o recorte temporal de 2017-2021. Com isso, propõe-se trazer
convergências possíveis entre os estudos revisados e práticas de ensino/
aprendizagem pautadas em demandas contemporâneas. Os resultados in-
dicam que os recursos presentes nos estudos revisados podem fortalecer
o ensino/aprendizagem de inglês em diversos aspectos consonantes com
uma prática atualizada de ensino/aprendizagem em contexto pandêmico e
pós-pandêmico.
Palavras-chave: Emoções; Tecnologias digitais, Pandemia; Ensino/aprendi-
zagem de inglês.
Abstract:
Emotions and digital technologies in English language
teaching-learning
The article aims to evaluate the possible contributions of studies about emo-
tions and digital technologies for teaching/learning English in the context of
remote teaching and hybrid teaching. We seek to develop a theoretical study
that can support future research. For that, we carried out a literature review
on the relationship between emotions, digital technologies, and English lan-
guage teaching with attention to the Brazilian context and the 2017-2021
time frame. Thus, it is proposed to bring possible convergences between
the reviewed studies and teaching/learning practices based on contempo-
* Doutor em Linguística pela UFMG com estágio na Universidade de Sevilha. Professor do Programa de Pós-
graduação e Licenciatura em Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail: aragaorc@
gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1643952376890753
** Mestranda em Letras: Linguagens e Representações (PPGL/UESC). E-mail: keilakeuferreira@gmail.com.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4692580513214437
rary demands. The results indicated that the resources present in the re-
viewed studies can strengthen the teaching/learning of English in several
aspects, in line with an updated teaching/learning practice in a pandemic
and post-pandemic context.
Keywords: Emotions; Digital technologies, Pandemic; Teaching /Learning
English.
Introdução
Após dois anos de pandemia e isolamen- texto foi concluída, já somavam 664.18 pes-
to social causado pelo vírus SARS-CoV-2, o soas que perderam suas vidas no Brasil em
Brasil se vê diante dos impactos causados decorrência do vírus, segundo informações
por essa situação de crise que tem resultado do site da Organização Mundial de Saúde.
em “reflexos sociais, econômicos e na saú- Seguimos, então, com esperança dos resul-
de física e mental das populações, especial- tados de ampla vacinação da população e
mente as mais vulneráveis” (CRUZ ET. AL, lutando contra esse inimigo invisível, o qual
p.1 2020). Nesse aspecto, as disparidades vem afligindo a população.
têm aumentado entre as minorias, que têm No campo da educação, o cenário não é
sofrido ainda mais com a pandemia e todas diferente. Como salienta Leitão et. al (2020),
suas consequências. não devemos esquecer que a pandemia trou-
Nesse ínterim, o avanço do vírus – e ago- xe também novos desafios para a educação e
ra as suas mais novas variantes1 – tem apro- exacerbou os já existentes. Com a continui-
fundado as sensações de incerteza, medo e dade das aulas, ainda de maneira remota, os
angústia. Brooks et. al, em um estudo sobre professores têm buscado novos meios de en-
os efeitos psicológicos do isolamento social sinar e aprender. As tecnologias têm ocupa-
no Brasil durante a pandemia, demonstrou do ainda mais o seu espaço diante desses no-
que evidências recentes sugerem que pes- vos tempos; as metodologias e estratégias de
soas mantidas em isolamento e quarentena ensino não presenciais têm sido exploradas
experimentam níveis significativos de an- com o objetivo de sobreviver a esse tempo de
siedade, raiva, confusão e estresse (BROOKS crise e se adaptar ao que tem sido chamado
ET AL, 2020). Essas emoções têm ganhado de novo normal (OLIVEIRA et al, 2020). Ou-
força, devido ao descaso com a saúde pro- trossim, a expressão home office foi adiciona-
movido pelos representantes do povo, que a da ao vocabulário de brasileiros e brasileiras.
cada dia vem demonstrando falta de respei- As videoaulas têm feito parte da rotina dos
to pela vida dos brasileiros. Até 02 de maio professores e todos se veem na “necessidade
de 2022, quando a redação do presente de se reinventar” (DA SILVA, 2020).
1 Dentre elas: Alfa, Beta, Gama, Delta e a mais re- No que tange o ensino de Língua Inglesa
cente, a variante Ômicron. Segundo o site das (doravante LI), os professores se veem dian-
Nações Unidas, na primeira semana de janeiro te de outro desafio: ensinar línguas através
de 2022 o mundo registrou o maior número de
novos casos de Covid-19 desde que a pandemia da internet. Nesse aspecto, o ensino de LI
começou, há dois anos, e que as baixas taxas de mediado pelas tecnologias digitais é um
vacinação em alguns países criaram condições tema que têm sido alvo de pesquisa na Lin-
perfeitas para o surgimento de novas variantes.
Disponível em https://news.un.org/. Acesso em guística Aplicada (PAIVA, 2001, 2005; COS-
10/01/2022. TA, 2020). Esses estudos têm levantado per-
tinentes indagações acerca do seu uso e con- 5 anos, que compreende os anos de 2017-
tribuições para o ensino de línguas. Todavia, 2021, apresentando autores que vem discu-
o uso das tecnologias digitais para ensinar tindo este tema na academia.
línguas tem se expandido especialmente Como critério de inclusão e exclusão, fo-
nas aulas online em suas modalidades sín- ram selecionados estudos contemporâneos
crona, assíncrona e híbrida. A utilização que abordem a inter-relação entre emo-
de plataformas de ensino efetivas voltadas ções e tecnologias digitais no ensino de LI,
para esse tempo de pandemia tem se carac- que de igual modo se debruçam na LA. Para
terizado como o maior desafio desta classe tanto, foi feito um levantamento de artigos
de profissionais (DA SILVA, 2020; ARAGÃO, publicados em revistas através do Google
2017; 2020; ARAGÃO E DIAS, 2015 ) e pes- acadêmico que atendessem aos critérios já
quisas sobre a falta de letramento digital e especificados. Assim, a partir do levanta-
de políticas públicas de ensino de línguas mento inicial, foi desenvolvido um trabalho
tem provocado discussões acaloradas (ARA- de revisão e seleção. Os estudos escolhidos
GÃO, 2009; 2019). para compor essa revisão de literatura apre-
No entanto, se por um lado a educação sentam resultados que podem auxiliar no
tem procurado se adequar aos novos con- entendimento da relação do fenômeno da
textos desenhados pela pandemia, por ou- emoção com a tecnologia na vida de docen-
tro, a busca pelo domínio de tecnologias tes no contexto de ensino-aprendizagem de
digitais, bem como o uso de plataformas LI na pandemia. Da mesma forma, espera-
e ferramentas, tem revelado professores mos que a partir do levantamento de estu-
experimentando os mais diversos senti- dos aqui proposto possam surgir novas dis-
mentos e emoções. O sucesso da aula está cussões que subsidiem pesquisas empíricas
andando de mãos dadas com o medo, a in- que abordem sobre emoções na era digital,
segurança e as incertezas proporcionadas a qual necessita de atenção nos dias atuais.
por esse momento atípico. As descobertas Ainda nesse contexto, é importante sa-
e alegrias também surgem ao alcançar re- lientar que, embora tímido, o papel das emo-
sultados positivos e satisfatórios nas aulas e ções no ensino-aprendizagem de línguas
no professorar, contudo o processo tem sido tem se expandido na LA em trabalhos inter-
por vezes doloroso e cansativo (LEITÃO ET. nacionais (ZEMBYLAS, 2003; 2005) e nacio-
AL, 2020). nais (ARAGÃO, 2007; 2009; 2019; BARCE-
Sobre esse aspecto, pensemos no pro- LOS, 2013; 2015 e OLIVEIRA, 2019); no en-
fessor como um profissional, que diante de tanto, em um cenário de pandemia mundial,
uma pandemia, vem lidando com emoções vemos a urgência de nos aprofundar nessa
geradas por novas demandas de ensino por temática, a fim de buscar compreender o pa-
meio de ferramentas digitais. Nesse senti- pel das emoções no ensino/aprendizagem
do, considerando a necessidade de discu- de inglês com tecnologias digitais.
tir as emoções de professores de inglês no
contexto brasileiro (DE OLIVEIRA, 2021) e Por que discutir emoções no
de pandemia, trazemos neste artigo um ma-
campo da Linguística Aplicada?
peamento de estudos sobre emoções e tec-
nologia no Brasil e no campo da Linguística Temos dito (e repetido) que o professor é a
Aplicada (Doravante LA), em um período de pessoa. E que a pessoa é o professor. Que é
novos modos de compreender nosso futuro. aspectos em relação ao aluno e não em re-
Ainda conforme argumentam Kleiman e De lação ao professor (OLIVEIRA, 2019). Con-
Grande (2015), a LA deve “ouvir as vozes tudo, conforme citam os autores acima, os
silenciadas e visar objetivos transformado- pesquisadores possuem um compromisso
res e intervencionistas que tenham impacto ético e político de ouvir as vozes desse gru-
no mundo social” (KLEIMAN e DE GRANDE po à margem, e que se torna cada vez mais
2015, p. 19). Dessa forma, torna-se possível urgente desenvolver pesquisas em LA que
legitimar na pesquisa os saberes promovi- incluam o professor, tendo em vista que os
dos por esses grupos, levando em considera- professores pertencem hoje a grupos peri-
ção o caráter indisciplinar, transdisciplinar e féricos no Brasil (KLEIMAN, DE GRANDE,
crítico2 que a LA se constitui, que atravessa 2015; MOITA LOPES, 2015).
fronteiras, se transforma e tem interesse em À vista disso, voltamos nossos olhares
lidar com problemas sociais do uso da lin- para o que Nóvoa (2004) enfatiza no início
guagem. Muniz (2016), ao discutir o fazer deste tópico e buscamos, dessa forma, res-
científico na academia, nos traz a necessida- ponder a provocação que trazemos como
de de pensar uma Linguística crítica3 pós-co- pano de fundo: É mais que urgente falar so-
lonial, isto é, capaz de produzir saberes que bre emoções de professores nesse período
problematizem temas fora da alçada domi- de pandemia. Mais que urgente desenvolver
nante. A autora aponta que as “sensações de pesquisas no campo da LA que escutem as
incômodo e de deslocamento estão cada vez vozes dos professores e legitimem seus sa-
mais presentes, inclusive nas nossas pesqui- beres, especialmente nesse momento de
sas” (MUNIZ, p. 776, 2016) e que já é chega- emoções “à flor da pele”, para assim com-
da a hora de pensar e agir em favor da vali- preender, de fato, que é através de nossas
dação desses conhecimentos: emoções que podemos “dizer quem nós
Dessa forma, faz todo sentido se questionar somos, quem queremos ser ou o que quere-
e questionar o lugar não só de uma produção mos aprender” (ARAGÃO, p.58, 2017).
acadêmica que investigue e tenha como rele-
vante tudo o que fica de fora do paradigma Novos olhares acerca das
dominante, bem como os sujeitos pesquisa-
dores que pretendem investigar justamen-
emoções de professores e
te esse “resto” de temas sociais. (MUNIZ, p. tecnologia frente à pandemia
774, 2016)
A tecnologia, aqui, tem um papel importan-
Nesse contexto, pesquisar sobre o papel te. É através dela que o ensino remoto tem
das emoções em professores de LI se torna conectado professores e alunos. Apesar de
uma tarefa ainda mais desafiadora, uma vez discussões na academia acerca de quem tem
que, além de poucas pesquisas que abordam acesso a essas novas tecnologias serem re-
esse tema, os estudos voltados para o tópi- levantes para este trabalho, pretendemos
co das emoções tendem a privilegiar tais neste texto abordar a sua contribuição para
2 Em Moita Lopes (2009); Celani (1992); Paiva o ensino de línguas na modalidade online e
(2009) e Rajagopalan (1997). de que forma os professores de LI têm lidado
3 Segundo a autora, ao citar Mey (2001) menciona com suas emoções partindo dessa nova reali-
que a palavra ‘crítica’ é frequentemente designa-
da para determinar uma postura reflexiva e in- dade. Todavia, é válido salientar que, embora
dagadora em relação aos fenômenos da vida. nem todos possam gozar dos privilégios das
novas maneiras de ensinar e aprender por pontua que “é possível perceber que, em
meio do uso das tecnologias digitais, os pro- ambientes digitais, as pessoas costumam se
fessores, em sua maioria, vem buscando se expressar de uma maneira diferente do que
reinventar, a fim de continuar exercendo seu elas normalmente fariam se estivessem face
trabalho em meio à crise e prosseguir com as a face”.
atividades escolares (CORDEIRO, 2020). Contudo, a internet tem ofertado novas
A tecnologia, nesse contexto, assume um ferramentas que têm auxiliado professores
papel de visibilidade, pois nos leva a segun- nesse contexto de pandemia e, conforme ex-
da indagação deste texto: de que forma a planado por Cordeiro (2020), esse momen-
tecnologia está afetando os professores de to tem permitido aos professores vivenciar
LI e implicando em suas emoções durante a diferentes formas de ensinar e aprender
pandemia? e novas possibilidades de uso mediado da
Abordar sobre emoções e tecnologias tecnologia que podem contribuir e abarcar
no ensino de LI, em meio a uma pandemia novas perspectivas para o ensino de LI em
mundial, nos parece um longo e desafiador um contexto de pós-pandemia. Afinal, as es-
caminho na qual estamos pesquisando e tratégias educativas utilizadas neste contex-
sendo objetos de estudo. Nesse atual con- to já têm sido levadas para a sala de aula na
texto, tecnologia e emoções se encontram e modalidade presencial (DA SILVA, DA SILVA
estão diretamente ligadas à construção do NETO, DOS SANTOS, 2020).
ser e sentir professor. Ainda diante desse panorama, plata-
Pesquisas realizadas com professores e formas desenvolvidas pelo Google, como
estudantes de inglês demonstram o quan- Gmail4, Google meet5, google forms6, Google
to as nossas emoções interferem no desen- drive7, Google classroom8 e demais redes so-
volvimento das nossas habilidades orais e, 4 Gmail é um serviço gratuito de correio eletrônico
consequentemente, no desenvolvimento do criado pela Google com mais de 425 milhões de
usuários em todo o mundo.
idioma. De acordo com Sibilia (2012), con- 5 Google Meet é um serviço de comunicação por
forme citado por Aragão (2017, p. 84), “as vídeo desenvolvido pelo Google. É um dos dois
redes atravessam constantemente as pare- serviços que substituem a versão anterior do
Google Hangouts, o outro é o Google Chat.
des e as tecnologias móveis têm impacto no 6 O Google Forms é um serviço que tem por obje-
nosso jeito de ser, agir, conhecer e sentir”. tivo facilitar a criação de formulários e questio-
Chegamos, então, em um momento de nários diversos. Disponível gratuitamente para
todos que possuírem uma conta Google, o servi-
pandemia na qual os professores se viram ço pode ser acessado em diversas plataformas,
obrigados a se adaptar a essa nova reali- como web, desktop e celular. Ele é útil para to-
dade de ensino mediada pelo computador dos aqueles que queiram fazer um formulário de
pesquisa ou de coleta de opiniões.
e enfrentar os inúmeros desafios que esta
7 Google Drive é um serviço de armazenamento e
modalidade nos permite, desde a falta de sincronização de arquivos. Abriga o Google Docs,
letramento digital bem como a necessidade um leque de aplicações de produtividade, que
oferece a edição de documentos, folhas de cálcu-
de metodologias efetivas para ensinar in-
lo e apresentações.
glês. Se na escola, enquanto aula presencial, 8 Google Classroom é um sistema de gerenciamen-
o ensino da LI já se configura em desafios, na to de conteúdo para escolas que procuram sim-
modalidade remota esse desafio vem acom- plificar a criação, a distribuição e a avaliação de
trabalhos. Devido a pandemia, sofreu um grande
panhado de um mix de emoções enfrenta- aumento em seu download e utilização após ser
dos pelos professores. Aragão (2017, p.89) divulgado o decreto do MEC anunciando a para-
ciais (Whatsapp, Instagram, Facebook) são os temas aqui abordados, de modo a con-
exploradas em suas nuances por essa classe templar o atual momento que os professo-
de profissionais que buscam levar o conhe- res de línguas estão vivenciando no Brasil e
cimento mesmo mediante à tamanha difi- no mundo. Os resumos trazidos por nós, no
culdade. Já em se tratando do ensino de lín- mapeamento desses estudos, apontam no-
guas, plataformas já disponíveis na internet, vos caminhos para compreender e explorar
além das citadas aqui, e outras como Duolin- o universo de emoções e sua relação com a
go9, Lyrics Training10, Chatclass11 e Youtube, tecnologia.
têm auxiliado os professores de LI. Como já salientado por Barcelos e Ara-
Dentre essas ferramentas, o Whatsapp gão (2018), a relação entre tecnologias e
tem sido um recurso muito utilizado por emoções é pouco explorada, e poucas pes-
professores e alunos devido à sua praticida- quisas no País focam o papel das emoções
de e dinamicidade. O aplicativo de mensa- no desenvolvimento de habilidades orais
gens instantâneas permite o envio de fotos, com uso de tecnologias digitais. Todavia,
vídeos e arquivos, além de chamadas e liga- no cenário atual que estamos vivenciando,
ções gratuitas – desde que o usuário possua pesquisas que estejam voltadas para o uso
acesso à internet – e a criação de grupos, o das tecnologias digitas e emoções são fun-
que vem permitindo a comunicação e cone- damentais para compreender e refletir so-
xão de alunos e professores nesse momento bre a necessidade de produção de estudos
remoto. Essa ferramenta, já bastante utiliza- na academia que permitam contrastar com
da antes mesmo da pandemia, tem assisti- as emoções e o uso de tecnologia digital na
do esses profissionais e tem imbricado em pandemia, tendo em vista que os professo-
suas emoções. Contudo, poucas pesquisas res de línguas se encontram – ainda – to-
na área da LA trazem a relação entre o uso talmente submersos a essa realidade. Para
dessa ferramenta e emoções de professores. além, estes profissionais se viram obrigados
Á vista disso, entendemos a necessidade a dominar as tecnologias e suas variadas
de revisitar estudos que investigam emo- ferramentas e plataformas para ensino de
ções de professores e tecnologias digitais, a línguas sem ou com pouco apoio em estu-
fim de sugerir novas pesquisas envolvendo dos que investiguem suas emoções e que
lisação das aulas presenciais. investiguem, de igual modo, como a tecno-
9 Duolingo é uma plataforma de ensino de idiomas logia tem sido utilizada para desenvolver
que compreende um site, aplicativos para diver-
habilidades orais em inglês. O resultado: de
sas plataformas e também um exame de profi-
ciência digital. um lado, temos profissionais que percebem
10 O Lyrics Training é uma plataforma online para suas emoções sendo afetadas devido ao en-
aprimorar o listening através de atividades com
sino de línguas mediado pela tecnologia; e
música.
11 A ChatClass é uma Edtech fundada em Nova York, de outro, a carência de estudos que investi-
que visa democratizar o ensino de inglês utili- guem suas emoções e apontem novos cami-
zando inteligência artificial. A plataforma utiliza
nhos para o ensino de LI mediado por novas
ferramentas presentes no dia a dia dos brasilei-
ros, como o Whatsapp. Recentemente, o Chat- tecnologias.
Class foi a ferramenta escolhida para a realização Assim, por entender a urgência de nos
da Olimpíada de Inglês no Brasil, que mobilizou aprofundar em tais estudos, apresentamos
mais de 100 mil alunos dos ensinos Fundamen-
tal 2 e Médio em escolas públicas e particulares algumas pesquisas produzidas por autores
brasileiras que inter-relacionam as emoções, o ensino
cial. Diante disso, os autores apontam que contextualizada” (GOMES JUNIOR E PUCCI-
“a presença do outro na interação face a NI, 2019, p. 2)
face afetou negativamente os participantes, Em suma, através do que foi apontado
demonstrando que a forma como os pares por Gomes Junior e Puccini, percebe-se a
interagem, seja síncrona ou assíncrona, é inevitabilidade de estudos que possibilitem
um aspecto determinante nas emoções dos a continuidade de investigações acerca das
aprendizes”. Para além, Aragão, Paiva, Go- emoções e tecnologias, e que inter-relacio-
mes Junior (2017) ao sugerir que os resul- nem tais temas, para que possibilite ao edu-
tados diferem dos resultados das pesquisas cador compreender suas próprias emoções
realizadas em ambientes formais de ensino, em relação ao ensino (BARCELOS, ARAGÃO,
concluem que o estudo das ferramentas di- 2018). Da mesma forma, foi observada a
gitais para a aprendizagem e desenvolvi- necessidade de apresentar estratégias que
mento de habilidades orais de LI pode cor- corroboram para o desenvolvimento das ha-
roborar para emoções positivas em expe- bilidades orais em inglês e promovam, seja
riência de aprendizagem. em ambiente virtual e/ou presencial, opor-
O próximo estudo a ser apresentado foi tunidades para reconhecer o poder trans-
produzido por Gomes Junior e Puccini em formador das emoções.
2019. Estes, por sua vez, desenvolveram um Neste sentido, os estudos apresentados
estudo semelhante ao citado acima, no qual até aqui reforçam a urgência de pesquisas
nos apresentam um panorama da produção que contemplem a inter-relação entre emo-
acadêmica sobre o uso de tecnologias digi- ções e tecnologias digitais no ensino de lín-
tais para a aprendizagem e desenvolvimen- guas. Através do mapeamento proposto nes-
to de habilidades orais em inglês. te trabalho, se torna possível refletir acerca
Gomes Junior e Puccini (2019) coleta- deste tema no campo da LA. Assim, refor-
ram e categorizaram trabalhos de 2013 a çamos as contribuições e discussões que as
2017, com o auxílio da ferramenta Google pesquisas aqui elencadas podem provocar e
Acadêmico. Assim, os autores concluíram subsidiar futuras pesquisas empíricas que
que a partir do mapeamento e análise des- considerem esta abordagem.
ses estudos foi possível perceber que o uso Ainda em 2019, outro estudo foi pro-
das tecnologias digitais contribui para a duzido com a autoria de Gomes Junior e
aprendizagem de línguas. Todavia, os auto- Gutierrez, que envolve tecnologias digi-
res apontam a emergência de novos estudos tais e emoções. Este próximo investiga as
e estratégias de aprendizagem em contexto affordances12 de ferramentas digitais para
digital móvel, que considerem a possibili- o ensino de línguas. O estudo também foi
dade de impactos linguísticos, emocionais, produzido com estudantes da UFMG, para
cognitivos, sociais e locais neste campo de o desenvolvimento de habilidades orais em
atuação. inglês. Para tanto, os autores conduziram
Embora escassas, os autores indicam que uma pesquisa partindo da criação de um
os resultados das pesquisas elencadas mos- curso de extensão online, através do uso
traram diversas contribuições pedagógicas.
Contudo, também foi verificado “a necessi- 12 Baseado em Gibson (1986), o termo é utilizado
em razão do que um ambiente possa oferecer,
dade de expansão de seus horizontes com considerando seus aspectos positivos e/ou ne-
vistas a uma abordagem mais integrada e gativos.
da plataforma Moodle, oferecido pelo Cen- VA, GOMES JUNIOR, 2017; ARAGÃO, 2017)
tro de Extensão da Faculdade de Letras da são decorrentes em aprendizes de uma lín-
UFMG (CENEX/FALE). Os dados coletados gua estrangeira e que o uso das tecnologias
objetivavam identificar as percepções e o digitais tem apresentado resultados posi-
papel que as tecnologias digitais e as affor- tivos no desenvolvimento de habilidades
dances desempenham no desenvolvimento orais. Ainda, Aragão (2017) Paiva; Gomes
de uma língua estrangeira. Junior (2017); Gomes Junior et.al., (2018) e
Ao identificar as emoções, os autores con- Paiva (2018) salientam que muitos apren-
cluem que os resultados sugerem “uma per- dizes se sentem inseguros na prática oral
cepção positiva, autônoma e construtivista da LI.
dos aprendizes diante do desenvolvimento No estudo das affordances produzido
de habilidades por meio de tecnologias digi- por Gomes Junior e Gutierrez (2019), ain-
tais” (GOMES JUNIOR E GUTIERREZ, 2019, da é possível verificar que os resultados
p. 105). Para além, foi possível identificar a do curso demonstram que os participantes
redução de emoções negativas que refletem superaram o medo de falar a língua-alvo
na aprendizagem de inglês. Durante o estu- e aprenderam a criar atividades dinâmi-
do, os autores utilizaram como ferramentas cas. Para os autores, a affordance percebi-
digitais: Voki, Vocaroo, Fotobabble, PodBean da reforça os resultados já apresentados
e UTellStory. Segundo Gomes Junior e Gu- por Aragão (2017), Aragão, Paiva e Gomes
tierrez (2019), a análise do uso dessas fer- Junior (2017), Gomes Junior et al. (2018)
ramentas permitiu perceber as seguintes e Paiva (2018), ao concluir que “o uso de
affordances: “possibilidade de ampliar o tecnologias digitais para o desenvolvi-
vocabulário, de praticar a pronúncia e per- mento de habilidades orais parece reduzir
der o medo”. Ademais, também se percebeu emoções negativas como medo, ansiedade
melhorias na autonomia dos participantes, e desconforto” (GOMES JUNIOR e GUTIER-
uma vez que os mesmos tiveram a oportu- REZ, 2019, p. 18). Nesse estudo, também
nidade de avaliar seu próprio desempenho foram constatadas percepções positivas,
no decorrer do curso de extensão e apren- autônoma e construtivista dos aprendizes
deram a lidar com situações inesperadas. diante do desenvolvimento de habilidades
Outro aspecto na pesquisa de Gomes Junior por meio de tecnologias digitais, contras-
e Gutierrez (2019), que é importante desta- tando com os resultados dos estudos an-
car, aponta como as interações e motivações teriormente citados. Ademais, foi possível
dos estudantes corroboram para a constru- perceber melhora dos aspectos linguísti-
ção de uma aprendizagem eficaz no ambien- cos, sociais e emocionais nos estudantes e
te virtual. a redução de emoções negativas, abrindo
Assim, reiteramos que o mapeamento espaço para melhorias que envolvem as
aqui apresentado revela como as emoções emoções e as tecnologias digitais, que os
de professores e aprendizes de LI refletem autores jugam como elementos importan-
de maneira positiva ou negativa no am- tes propiciados pelas tecnologias digitais
biente virtual em atividades que envolvem no desenvolvimento de habilidades orais
interação. Pesquisas como as que trazemos em inglês.
nesse esboço, revelam que os fatores de an- Neste contexto, outro estudo que traz
siedade, insegurança, medo (ARAGÃO, PAI- aprofundamento sobre o uso de tecnologias
Diante dos estudos aqui apresentados, cialmente nesse contexto pandêmico. Para
é importante salientar que, embora os soft- além deste esboço, pensemos nos profissio-
wares não tenham sido criados com objeti- nais por trás das telas, e o quanto suas emo-
vos pedagógicos, quando utilizado para fins ções têm embasado suas ações; e de que
educacionais, seu uso tem se demonstrado forma a inter-relação entre emoções, tec-
satisfatório, conforme apontado por alguns nologia e desenvolvimento das habilidades
pesquisadores (MARTINS; GOUVEIA, 2019, orais tem corroborado para o entendimento
PACZKOWSKI; PASSOS, 2019, SANTOS; SAN- da dimensão desse campo de estudo.
TOS NETA; MARTINS, 2019). Fica evidente a urgência de estudos que
Destaca-se ainda a identificação de tra- investiguem emoções e tecnologia, bem
balhos com produção de textos orais com como pesquisas que apontem novas pers-
tecnologias digitais (UCHÔA, 2014, SOUZA, pectivas para o estudo das emoções de alu-
2014, LEMOS, 2017), treinamento da pro- nos e professores de LI considerando o pa-
núncia com aplicativos (ALMEIDA, 2015; norama pré e pós-pandemia.
MARTINS, 2015), produção de textos escri-
tos em quadrinhos digitais (SILVA, 2013), Conclusão
e produção colaborativa de textos online À vista dos estudos apresentados ao longo
(LEANDRO, 2014). Outra área de estudos deste texto, percebemos a necessidade de
com indicação de tendências inovadoras são produzir pesquisas que discutem emoções
as pesquisas-ações com smartphones como de professores e tecnologias digitais que
em Costa (2013) e Lemos (2017). fortaleçam o ensino/aprendizagem de in-
Temos, ainda, uma gama de estudos que glês mediada pela tecnologia e contribua
nos mostram como o uso de tecnologias di- para uma melhor compreensão das emoções
gitais no ensino de inglês tende a aumentar nesse contexto da pandemia da COVID-19.
a interatividade na língua em uso concomi- No entanto, o andamento de pesquisas fu-
tantemente com o aumento da motivação de turas que inter-relacionem as emoções e as
estudantes no engajamento em tarefas co- tecnologias digitais não seria possível sem
municativas (ALMEIDA, 2015; COSTA, 2013; antes revisitar estudos de autores que têm
LEMOS, 2017; PEREIRA, 2016; PEIXOTO, se ocupado de investigar tais temas. Com o
2015; SILVA, 2013; SOARES, 2013; SOUZA, intuito de avaliar as contribuições dessas
2014). Estudos focados na produção oral pesquisas para essa área, apresentamos um
em inglês aliadas a diversas estratégias de recorte temporal de 2017-2021, trazendo
desenvolvimento de habilidades orais com estudos dos seguintes pesquisadores: Ara-
tecnologias digitais móveis tendem a im- gão (2017); Aragão, Paiva, Gomes Junior
pactar positivamente e fortalecer projetos (2017); Gomes Junior e Puccini (2019);
de formação inicial e continuada de profes- Gomes Junior e Gutierrez (2019; de Terra
sores de inglês (ARAGÃO, 2017; ARAGÃO, (2019; Nunes (2020).
PAIVA, GOMES JUNIOR, 2017). A partir das discussões apresentadas
Assim, diante das pesquisas apresenta- pelos autores é que se debruça este texto e
das nesta seção, entendemos a relevância de impulsiona a investigar, mais a fundo, a re-
trazer estudos que apontem a relação entre lação entre emoções e tecnologias digitais.
emoções e tecnologias digitais que corrobo- Alguns fatores foram colocados em pauta:
rem para a compreensão deste tema, espe- o papel das emoções dos professores de LI,
Como os professores se
Os resultados indicam que parte
sentem ao usar o recurso Qualitativa
dos participantes se sentiram mais
de áudio para falar inglês com uso de
confiantes e mais dispostos a se
no WhatsApp? O fato de questionário,
Aragão, comunicar no WhatsApp do que em
as mensagens de áudio entrevista e
2017. contextos face a face. Por outro lado,
serem feitas via WhatsApp representações
outro grupo se sentiu mais inseguro para
deixou-os mais à vontade visuais das
falar inglês com os recursos de gravação
do que em um encontro emoções.
de áudio.
presencial?
Avaliar como as
tecnologias digitais Qualitativa, Os resultados indicam uma avaliação
podem auxiliar no observação das positiva da disciplina associada a
Aragão,
desenvolvimento de interações dos sentimentos de segurança, confiança e
Paiva,
habilidades orais durante estudantes no conforto dos aprendizes ao
Gomes
a aprendizagem de inglês ambiente online, falar inglês mediados por tecnologias
Junior,
como língua adicional ao questionários digitais. Foram também relatadas
2017.
contribuírem para e entrevistas emoções de tranquilidade e de prazer
diminuir emoções semiestruturadas. por alguns participantes.
negativas.
Com o auxílio
Foi observado que a produção científica
Apresentar um panorama da ferramenta
não se encontra em estágios iniciais
da produção acadêmica “Google
e apresenta abordagens amplas e
sobre o uso de tecnologias Acadêmico”,
diversos aportes teóricos. Sobre o
Gomes digitais móveis para foram coletados
desenvolvimento de habilidades orais
Junior e a aprendizagem de trabalhos de
em inglês os resultados das pesquisas
Puccini, línguas estrangeiras e 2013 a 2017 e
mostram diversas contribuições
2019 adicionais, em especial, agrupados em
pedagógicas, entretanto foi verificado
para o desenvolvimento categorias de
a necessidade de expansão de seus
de habilidades orais em acordo com seus
horizontes com vistas a uma abordagem
inglês. objetivos e gêneros
mais integrada e contextualizada.
acadêmicos.
Desenvolvimento
de curso de Nesta pesquisa, algumas das affordances
extensão online percebidas pelos estudantes foram:
na plataforma possibilidade de ampliar o vocabulário,
Moodle. O curso de praticar a pronúncia e perder o
Investigar as affordances teve duração medo. Vale ressaltar que também
Gomes de ferramentas digitais de 6 semanas houve limitações tais como dificuldades
Junior e para o desenvolvimento e foi oferecido técnicas em relação ao uso de
Gutierrez, de habilidades orais em no segundo determinadas ferramentas. Ademais,
2019 Língua Inglesa. semestre de 2017 houve um crescimento de autonomia
a 30 estudantes dos participantes, enfatizando como as
de diversos cursos interações e motivações dos estudantes
da Universidade foram fundamentais na construção de
Federal de Minas aprendizagem no ambiente virtual
Geras
Investigar a percepção
dos estudantes sobre
Esses resultados sugerem que as
o desenvolvimento de
Questionários, ferramentas tecnológicas apresentam
habilidades orais em
entrevistas benefícios complementares às
uma disciplina de inglês
semiestruturadas práticas tradicionais voltadas para
Terra, para fins acadêmicos,
e relatórios desenvolvimento de habilidades orais,
2019 buscando identificar
reflexivos propiciando uma experiência mais
como as atividades
produzidos pelos positiva em que a aprendizagem, e não o
tecnologicamente
participantes gerenciamento de emoções negativas, é o
mediadas contribuem
foco do aluno.
para o desenvolvimento
dessas habilidades.
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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Em 1987 o escritor e crítico literário Oscar D’Ambrosio publica no então jor-
nal Estado de São Paulo uma matéria intitulada: “Guimarães Rosa encontra
seu duplo: Hilda Hilst.” Partindo desta identificação literária e ancorando-
se em entrevistas concedidas pela autora, em que reconhecia não só a pro-
ximidade poética de suas obras, como o apreço e a influência sofrida pelo
escritor, este trabalho se dedicará a investigar um traço comum a estes au-
tores, o obsessivo processo de nomeação de Deus e do Diabo. Fazendo de
Deus uma de suas investigações não só literárias, como também filosóficas
e cotidiana, Hilda Hilst colocou em prosa, e poesia, sua excruciante dúvida
quanto à existência divina. Na outra margem, encontramos Guimarães Rosa
que, em Grande Sertão: Veredas, tece uma personagem questionante, impas-
sível diante da (im)possível existência do Diabo. Riobaldo, em seu périplo,
concebe uma vasta cartografia onomástica e pictórica daquele que tanto diz
evitar. Traço comum nos autores, investigaremos essa evidente necessidade
de nomeação, buscando o sentido latente deste privilégio adâmico.
Palavras-chave: Hilda Hilst; Guimarães Rosa; nomeação; Deus; Diabo.
Abstract:
NAMING IS A CALL TO RESISTANCE: THE NAMING OF
GOD AND THE DEVIL IN HILDA HILST AND GUIMARÃES
ROSA’S WORKS
In 1987, the writer and literature critic Oscar D’Ambrósio publishes in the
* Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia, Membro do Grupo de Pes-
quisa POEIMA – Grupo de Pesquisa Poéticas do Imaginário. Editor da Revista Téssera. Bolsista da CAPES.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9445282234952092. E-mail: vitor_vhlg@hotmail.com.
são feitas de sua obra com a de outros auto- influência, exercidos por sua obra.
res e artistas.” (PÉCORA, 2018, p. 14). N - Você sempre lembra da emoção que lhe
Pécora observa que os trabalhos compa- causou a primeira leitura de Campo geral.
rativos à obra da autora encontram lugar de Você chegou a dividir essa emoção com o
destaque em sua fortuna crítica. Adélia Pra- Rosa?
do, Clarice Lispector, Silvia Plath, Lya Luft e HH - Eu cheguei a ligar para ele, tamanho
Samuel Beckett são alguns dos nomes que foi o impacto que a saga de Miguelim me
ocupam a maior parte destas pesquisas. O causou. E ele, do outro lado do telefone: “O
estudioso evidencia ainda que: menino aqui é genial”. Ele era muito vaidoso,
sabia de sua importância. E quando li Gran-
[...] essas comparações parecem ser larga- de sertão..., perguntei a ele quem o iria tra-
mente reforçadas pela discussão de gênero. duzir. Parece que quem o traduziu nos Esta-
Apenas Beckett não é mulher entre as prin- dos Unidos não foi muito feliz, mas na Itália
cipais comparações, e curiosamente ele é o a tradução ficou bonita. Aliás, quem verteu o
único autor da lista imediatamente perti- Rosa para o italiano foi Maryvonne Lapouge,
nente ao trabalho mais nuclear de Hilda, até a mesma que está agora traduzindo o meu li-
porque citado muitas vezes por ela própria vro Contos d’escárnio - textos grotescos para
como uma de suas referências principais. o francês, e que deve sair até o ano que vem
As outras estão ali mais porque interessam pela Gallimard. (DINIZ, 2018, p. 153)
à discussão das questões da mulher e do fe-
minino na literatura etc., não porque digam Nesta entrevista concedida pela autora à
respeito a questões internas ou específicas revista Nicolau, Hilda além de expor a forte
de sua obra. (PÉCORA, 2018, p. 15). comoção que a obra de Rosa lhe provocou,
nos revela uma aparente relação de proxi-
Assim, superada esta questão concer-
midade com o autor. Muito além do apre-
nente às pesquisas comparativas que inten-
ço elogioso à obra, a autora comungava da
tam, com frequência, perscrutar a obra da
referenciação que a crítica lhe atribuía en-
autora correlacionando-a ao feminino e ao
quanto duplo de Guimarães:
gênero, o crítico nos expõe outros nomes
presentes neste minucioso levantamento N - Já que Guimarães Rosa é seu duplo, o que
bibliográfico: você mais aprecia na escritura dele?
“De tanto te pensar, sem nome, inteira sem jamais ouvir o nome verdadeiro
de Deus. E talvez fosse melhor assim, pois o
me veio a ilusão” significado do nome é tão obscuro quanto a
O nome Divino não deve ser pronunciado, pronúncia.”. (BLOOM, 2006, p. 152)
muito embora o façamos à exaustão, con- A preocupação em torno da pronun-
trariando preceito mandamental inscrito ciação do nome divino, atualmente, já não
em Êxodo (20:7): “Não tomarás o nome do nos soa como um gesto ameaçador, uma
Senhor, teu Deus, em vão, porque o Senhor vez que a regra mandamental “Não tomará
não terá por inocente o que tomar o seu o nome do SENHOR teu Deus, em vão [...]”
nome em vão” (Bíblia, 2015, p. 87) assim (BÍBLIA, Êx, 20, 7) parece não só ter sido
nos adverte o mandamento informando que esquecida como também desaguado no
o nome divino não deve ser empregado le- distanciamento do homem moderno para
vianamente, pois não se trata de um nome com o Divino.
qualquer. Mas, esta preocupação quanto à repre-
Harold Bloom (2006) comentando a res- sentação e possibilidade de nomeação de
peito do nome de Javé, menciona que a for- Deus, remonta já dos tempos de Pseudo-
ma como se pronunciava o nome do próprio Dionísio Areopagita, tendo sido um dos pri-
Deus na bíblia hebraica, YHWY, se perdeu meiros a tratar deste problema. Sua obra, Os
diante da tradição oral, que guardou para si nomes Divinos, nos remeterá a uma reflexão
a pronúncia correta do nome sagrado, sendo sobre a experiência da linguagem diante da
o atual Yahweh, “[...] apenas uma conjectura noção mística que circunda Deus. Assim,
[...]”. (p. 151) Vislumbra-se que a tradição como um ser finito e limitado, como o ho-
religiosa, no despontar de sua origem, cui- mem, acessará o entendimento divino uma
dava para que o nome divino fosse empre- vez que esse se faz infinito e ilimitado?
gado em ocasiões especialíssimas, uma vez
Como queda dicho, nadie debe atreverse
que não se tratava de um nome qualquer a hablar o pensar algo de esta supraesen-
[...] depois que Alexandre, O Grande, con- cial y secreta Divinidad fuera de lo que nos
quista a Palestina, em 333 antes da Era Co- han manifestado divinamente las Sagra-
mum, o emprego do Nome Divino passa por das Escrituras. Pues como, efectivamente,
mudanças. Após a volta da Babilônia, ocorri- Dios mismo nos ha manifestado de forma
da no século V antes da Era Comum, o nome extraordinaria en las Escrituras sobre si
já era considerado mágico, e não podia ser mismo, ninguna criatura puede llegar a co-
pronunciado. Deus era chamado, então, de nocerle y contemplarle tal como es, ya que
Elohim (ser ou seres divinos), ou Adonai Él lo trasciende todo supraesencialmente.
(meu senhor) (BLOOM, 2006, p. 151, parên- (AREOPAGITA, 2007, p. 6)
teses do autor)
Para o influente autor da mística cristã
Contudo, foi com a chegada dos gregos, ocidental o homem não deve atrever-se a fa-
que se referiam a Deus como Theos, que os lar, ou conjecturar, sobre a magnitude divina
judeus, sofrendo influências diretas, passa- de Deus, a não ser que as faça dentro daqui-
ram a se referir a ele como Kyrios “[...] pala- lo que as próprias sagradas escrituras con-
vra grega que significa Adonai, ou Senhor”. ceberam, pois nenhuma criatura chegará a
(BLOOM, 2006, p. 151) Assim, conforme conhecê-lo e contemplá-lo intimamente. O
menciona o grande crítico americano, à Areopagita, perscrutando todos os nomes
época de Jesus “era possível viver uma vida divinos legados pelos teólogos a Deus, con-
ceberá que a única forma de se falar Dele é literária, e de uma aguçada preocupação
através do silêncio. mística-transcendente, não se distanciou
De fato, para Pseudo-Dionísio, Deus é ine- daquilo que podemos chamar de “oportu-
fável, e o único modo de falar dele adequa- nidade adâmica”, concedida por Deus ao
damente é o silêncio. Quando alguém fala, é homem quando lhe autorizou nomear Sua
para ocultar os mistérios divinos daqueles criação, e a empregou ao arrepio da própria
que não podem alcançá-los (Epístola IX, 1, noção de respeitabilidade religiosa. Hilda
452) (AREOPAGITA apud ECO, 2018, p. 396)
Hilst não quer nomear a criação, mas quer
Contudo, Eco (2018) analisando o com- nomear o Criador. Essa busca insondável do
portamento de Dionísio, dirá que esta ati- Deus por meio dos nomes será uma de suas
tude será continuamente contestada pelo obsessões não só literária:
comportamento oposto, ou seja, o Areopa- Eu queria demais me aproximar da ideia de
gita busca incessantemente traduzir aquele um Deus, de um Deus que tenha sido execu-
que julga intraduzível, dizer aquele que se tor de tudo, entende? Desse mundo que é
diz indizível, entender aquele que entende tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa
ser ininteligível: mania eu não tirei nunca da minha vida até
hoje. Quer dizer, de existir uma potenciali-
Este comportamento mistérico é, no entan-
dade qualquer, que você nomeia de algum
to, continuamente contestado pelo compor-
nome e eu nomeio Deus de vários nomes:
tamento oposto, a persuasão teofânica de
Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscu-
que, sendo Deus a causa de todas as coisas,
ro, O Sem Nome. É uma vontade de, de re-
todos os nomes lhe caberão, no sentido de
pente, estabelecer um intercâmbio com essa
que todo efeito remete à causa (dei nomini
divini I,7), de modo que a deus são atribuí- força muito grande [...] (DINIZ, 2018, p. 86)
das formas e figuras de homem, de fogo, de Observemos que a autora intenta uma
âmbar, e dele são louvadas as orelhas, os aproximação com Deus, e essa aproxima-
olhos, os cabelos, o rosto, as mãos, os om-
ção subverte certa respeitabilidade que
bros [...] (ECO, 2018, p. 397)
sempre fora exigida quando da pronuncia-
Muito embora vislumbremos que tenha ção do nome divino. Nomes como “Cara Es-
havido uma preocupação quanto a salva- cura”, “Sorvete Almiscarado”, “O Obscuro”,
guarda do nome divino, e até mesmo quanto são empregados visando subverter a noção
à possibilidade de compreensão humana da ininteligível dada ao divino, destronando-o
substância deste nome, o homem enquanto e reaproximando-o do homem por meio da
ser dotado de linguagem – linguagem essa carnavalização.
que lhe fora outorgada por Deus a fim de Bakhtin (1987) conceberá que o des-
que continuasse sua criação, pois tendo Ele tronamento causado por meio da carnava-
formado todos os animais do campo e todas lização vem acompanhado de injúrias bem
as aves “ [...] trouxe-os ao homem, para ver como se caracteriza como um rebaixamento.
como ele lhes chamaria, e o nome que o ho- O rebaixamento é enfim o princípio artístico
mem desse a todos os seres viventes, esse essencial do realismo grotesco: todas as coi-
seria o nome deles” (BÍBLIA, Gn, 2, 19-20) sas sagradas e elevadas aí são reinterpreta-
– a emprega intuindo acessar a essência das das no plano material e corpora [...] é o céu
coisas, por isso diz e nomeia. que desce à terra não o inverso [...]
A obra hilstiana responde a essa afirma- Esses rebaixamentos, não têm um caráter
ção. A autora, dotada de uma inventividade relativo ou moral abstrato, são pelo contrá-
(1956), partindo daquilo que escolhemos Se já nas primeiras linhas Riobaldo conta
chamar como “oportunidade adâmica” con- a estória do nascimento de um Diabo multi-
cedida aos homens, opera o mesmo meca- facetado, com corpo de bezerro, cara de ca-
nismo que a autora. chorro e riso de gente, logo em seguida con-
Rosa, em sua magna opus, concebe um tradirá a si próprio dizendo: “Do demo? Não
romance dialógico, dando voz a Riobaldo, gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em
personagem principal que rememorará seu falso receio, desfalam no nome dele – dizem
passado de forma não linear, incorporando só: Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evi-
à narrativa diversos relatos cuja cronologia ta, se convive.” (ROSA, 2001, p. 24). Riobal-
não obedece ao fidedigno avanço dos fatos, do diz não glosar do Diabo, todavia censu-
havendo saltos e regressões, uma vez que ra aqueles que não o fazem afirmando que
Riobaldo depõe ter dificuldade de pôr em evitar é conviver. Repreendendo esses que
ordem as ideias. não o dizem afirma que não dizer é evitar e
Grande Sertão: Veredas (1956) traz no evitar é conviver em demasia. Logo, ele que
bojo de si uma infinita possibilidade de diz não dizê-lo com ele convive demasiada-
horizontes capazes de serem explorados. mente.
Consciente da grandiosa empreitada literá- Esta obstinada autocensura quanto à
ria que havia operado, Guimarães Rosa, não empregabilidade do nome do Diabo foi mui-
por acaso, ao final de seu romance inscreve to bem pinçada por Guimarães Rosa das
um denotativo símbolo do infinito, mostran- tradições populares. Cousté (1996) mencio-
do-nos que, superada a travessia daquelas nará que “[...] em muitas tradições popula-
veredas, se faz preciso regressar ao início e res procura-se não nomeá-lo diretamente,
empreender nova jornada. como uma maneira de evitar uma invoca-
Apesar da pluralidade de horizontes ção.” (p. 249). Assim, evitando de invocá-lo,
capazes de serem explorados, o instigante a tradição popular sedimentou o costume de
processo de nomeação do Diabo – empreen- referir-se a ele indiretamente: “o maligno, o
dido durante toda a narrativa por Riobaldo! inimigo, o tentador, o maldito, o homem de
– será aquele ao qual nos deteremos, como negro, o homem vermelho, o príncipe das
fizemos anteriormente. trevas etc.” (COUSTÉ, 1996, p. 249). Essa
Embora Riobaldo ao longo do romance cristalização se dá não por expressa adver-
intente, através de fatigantes reiterações, tência advinda das sagradas escrituras, vez
provar que “o Arrenegado” (ROSA, 2001, p. que nada mencionam quanto à proibição de
55)não existe, sua postura ambígua diante falar-se diretamente sobre ele. A Bíblia Sa-
da existência do “Capiroto” (ROSA, 2001, p. grada não admoesta aquele que emprega
64) é perceptível já nas primeiras páginas do seu nome, tampouco censura aquele que o
livro: faz, a única expressa advertência que temos
Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro quanto a pronúncia de um nome está em
branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu Êxodo 20:7: “Não tomarás em vão o nome
– ; e com máscara de cachorro. Me disseram; do Senhor, o teu Deus [...]. (BIBLIA, Êx, 20,
eu não quis avistar. Mesmo que, por defei-
7), e esse nome é o nome de Deus.
to como nasceu, arrebitado de beiços, esse
figuraça rindo feito pessoa. Cara de gente, A postura ambígua e fatigante de Rio-
cara de cão: determinaram – era o demo. baldo, como bem rubricou Dora Ferreira da
(ROSA, 2001, p. 24) Silva (1957) em artigo intitulado O Demo-
Conquanto diversos sejam os epítetos –, talvez este seja um dos pontos, ou melhor,
outorgados por Riobaldo à figura mítica do dos fragmentos, que nos é possível vislum-
mal, somos levados a perceber que, por trás brar essa influência.
desta intenção nomeadora há, para além da A obsessão pela compreensão das duas
intenção de acesso à intimidade do ser, uma das principais figuras míticas da tradição
desmedida vontade de poder conter a arbi- judaico-cristã é aferível diante da vitrine
trariedade do caos que a vida não só pode de nomes empregados àquelas duas en-
representar, como representa já nas pri- tidades. Hilda destroniza Deus, rebaixa-o
meiras páginas de Grande Sertão: Veredas como quem empreendesse o mesmo gesto
(1956), quando os fatos nos são apresenta- divino da expulsão do paraíso, sublocando
dos, inobservado a razão cronológica. -o no mundo da linguagem humana, onde a
A variedade de nomes empregados por “oportunidade adâmica” a fez senhora: “É
Rosa buscando aceder a mesma essência, neste mundo que te quero sentir / É o único
nos põe em acordo com a filosofia platôni- que sei. O que me resta. / Dizer que vou te
ca, pois é visando uma excessiva necessida- conhecer a fundo [...]” (HILST, 2017, p. 414)
de de assimilação, buscada através de cada Mas a concepção de Deus para a autora
nome tomado aqui como mero instrumento muitas vezes assemelha-se à noção de Dia-
facilitador, que o autor, em detrimento de bo roseana pois, assim como pensa Riobaldo
Deus, empreenderá sua jornada às instân- de que “[...] o diabo vige dentro do homem,
cias da figura do mal, pois certo é que “O que os crespos do homem [...]” (ROSA, 2001, p.
não é Deus, é estado do demônio. Deus exis- 26), Hilda também não concebe um Deus
te mesmo quando não há, mas o demônio emancipado da figura humana:
não precisa de existir para haver” (ROSA, Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
2001, p. 74), embora não se prescinda de
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
sua existência para que haja o que quer que
seja, pois Deus há mesmo quando não há, lá Quantas me darás para o meu outra vez
está ele, ou aqui, existindo a contendo. amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim,
“Todos os nomes eles vão Sem Nome,
Deus está encerrado dentro da lingua- a poeta é necessário buscá-lo, pois se não o
gem da poeta que, infatigavelmente, se põe faz fica afastada “[...] de uns fios de conheci-
em seu encalço, mesmo que consagrada à mento”. (HILST, 2017, p. 417)
morte; acaso outras vezes venha a ser con- Diante da necessidade de empregar con-
sagrada à vida, continuará buscando-o, por trole sobre a arbitrariedade do mundo, Hilda
que ele vige dentro dela, ele é a busca em- e Guimarães Rosa tomam em suas mãos um
preendia por sua linguagem, mas também poder evocatório, intentando por meio dele
seu sustentáculo: “Teu pasto que é meu ver- empregar controle sobre o caos dos eventos
so orvalhado de tintas [...]” (HILST, 2017, p. inatingíveis pela limitada compreensão hu-
432). Todavia seu comportamento contradi- mana. Fazem da nomeação um artifício não
tório ante a existência divina é tão oscilante só de conhecimento, mas também de con-
quanto aquele conferido por Guimarães a trole e poderio ao romperem com o senso
Riobaldo. Ao passo que afirma a existência comum no que refere às concepções de bem
mítica do Deus em si mesma, vê-se sozinha e de mal.
se o reduz à atividade pensante: Mas, o que haveria num simples nome?
Estou sozinha se penso que tu existes. Nomear está para além de empreender pa-
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizi- lavras, é instaurar uma aproximação com
nhança. aquilo que se evoca através do nome e, no
E igualmente sozinha se tu não existes. encalço de Heidegger, “[...] as coisas nomea-
De que me adiantam
das são evocadas em seu fazer-se coisa”
Poemas ou narrativas buscando
(HEIDEGGER, 2003, p. 17). Quando Hilda e
Aquilo, que se não é, não existe Rosa empregam diversos nomes a Deus e
Ou se existe, então se esconde
ao Diabo, estão convocando “[...] para uma
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas
proximidade a vigência do que antes não ha-
Naquelas não evidências via sido convocado” (HEIDEGGER, 2003, p.
Da matemática pura? É preciso conhecer
16). Se nomear importa estreitar distâncias
Com precisão para amar? Não te conheço.
convalidando proximidades, logo o proces-
Só sei que desmereço se não sangro.
so nomeador é uma convocação ao cumpri-
Só sei que fico afastada
mento de uma existência, de um estar-se no
De uns fios de conhecimento, se não tento.
mundo, um fazer-se no mundo.
(HILST, 2017, p. 417)
O “privilégio adâmico”, concessão di-
Perseguidora da materialidade divina, vina ao homem, concedeu-lhe a primazia
das provas daquilo que “[...] se não é, não da nomeação; ele não cria os seres, mas os
existe / Ou se existe, então se esconde / Em nomeia, ou seja, os convoca, e convocar é
sumidouros e cimos, nomenclaturas [...]” trazer à proximidade do mundo inteligível.
(HILST, 2017, p. 417), é ansiando pela com- Nossos dois autores convocam seus mitos
provação da existência de Deus, pelo acesso empregando-lhes nomes, chama-os ansian-
à substância do seu ser, que a própria autora do aplacar a caótica arbitrariedade daquilo
será a criadora de diversas nomenclaturas que ao homem não foi dada a inteira com-
que intentarão evidenciá-lo, pois se escon- preensão; nomeia-os reiteradas vezes bus-
de, ainda que não saiba se o faz nas palavras cando, infatigavelmente, a exata medida, a
ou “Naquelas não evidências / Da matemá- exata apreensão daquilo que os assola, mas
tica pura?”. (HILST, 2017, p. 417). Mas para há sempre a morte, aprendida incompreen-
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
Resumo:
Este artigo objetiva analisar o silenciamento feminino representado no conto
de fadas tradicional “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen, publi-
cado inicialmente em 1837, em comparação com o conto de fadas moderno
“Uma voz entre os arbustos”, de Marina Colasanti, publicado pela primeira
vez em 1992. Neles, é possível estudar como a sociedade patriarcal mantém
as mulheres no espaço privado, enquanto aos homens pertence o espaço pú-
blico. Assim, limitadas à esfera doméstica por muito tempo, as mulheres não
podiam se expressar, discursar ou escrever publicamente, uma vez que es-
sas eram consideradas atividades masculinas. Nesse contexto, o silêncio das
mulheres era uma forma de mantê-las submissas aos homens. Desse modo,
comparamos esses dois contos de fadas a fim de identificar os sentidos do
silêncio das protagonistas produzidos em momentos históricos diferentes:
romantismo e contemporaneidade. Para isso, adotamos conceitos da teoria
feminista de gênero, conforme autoras como Mary Del Priore (2020), Chi-
mamanda Ngozi Adichie (2015), Adriana Piscitelli (2009), Heleieth Saffioti
(2004); a ideia de poder segundo Michel Foucault (2011), e conceitos sobre
os contos de fadas de acordo com Luís da Câmara Cascudo (2012), Mariza
Mendes (2000), Nelly Novaes Coelho (1991), entre outros.
Palavras-chave: Patriarcado; Mulheres; Silenciamento; Contos de fadas.
Abstract:
The silencing of women in “The little Mermaid”, by
Hans Christian Andersen and “A voice among the
bushes”, by Marina Colasanti
This paper aims to analyze the silencing of women presented in the tradi-
cional fairy tale “The little mermaid”, by Hans Christian Andersen, published
originally in 1837 in compared to the modern fairy tale “Uma voz entre os
arbustos”, by Marina Colasanti, published for the first time in 1992. From
the tales, it is possible to study how patriarchal society retains the women
in private sphere, while the public space belongs to men. For this reason,
limited to domestic sphere for so long, women were not allowed to express
themselves, discuss nor write openly, since such activities were considered
typically for men. Therefore, the silence of women was a way to keep them
obediente to men. Thereby, we compare these two tales in order to identify
the meaning of silence of the main female characters in different time pe-
riods: romanticism and contemporaneity. For this purpose, we adopt con-
cepts from feminist theory, as reported by authors such as May Del Priore
(2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2015), Adriana Piscitelli (2009), Helei-
eth Saffioti (2004); the idea of power as stated by Michel Foucault (2011)
and conceptions on fairy tales according to Luís da Câmara Cascudo (2012),
Mariza Mendes, Nelly Novaes Coelho (1991), among others.
Keywords: Patriarchy; Women; Silencing; Fairy tales.
Considerações iniciais
A produção científica, acadêmica ou mesmo de fadas moderno chamado “Uma voz entre
artística produzida por homens comumente os arbustos”, de Marina Colasanti. A finali-
se destaca em relação aos materiais produ- dade dessa investigação é perceber como a
zidos por mulheres ainda hoje, uma vez que época da produção desses textos interferiu
o silenciamento delas perdurou por muitas na representação literária de suas persona-
gerações. Se pensarmos, por exemplo, em gens, que ora reforçam modelos comporta-
uma lista com os principais nomes da nossa mentais, ora rejeitam esses paradigmas.
literatura brasileira, quantos são escritores Para isso, o estudo desses dois contos
e quantas são escritoras? é feito a partir de conceitos da teoria femi-
Limitadas ao espaço doméstico por mui- nista de gênero, segundo Mary Del Priore
to tempo, não havia interesse das socieda- (2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2015),
des na educação formal das mulheres, o que Adriana Piscitelli (2009), Heleieth Saffioti
interferia certamente na sua habilidade de (2004); da concepção de poder, consoante
falar, de maneira mais crítica e assertiva, so- Michel Foucault (2011); pelos conceitos so-
bre assuntos mais complexos, como políti- bre contos de fadas de acordo com Luís da
ca, economia ou artes. Por esse motivo, as Camara Cascudo (2012), Marina Colasanti
mulheres eram frequentemente tachadas (2004), Mariza Mendes (2000), Nelly No-
de “tagarelas”, “fúteis” e “fofoqueiras”, por vaes Coelho (1991), entre outros.
produzirem discursos considerados vazios,
desconexos ou irrelevantes. O poder no patriarcado
Nesse contexto, objetivamos analisar, Sendo o feminismo uma atividade política,
neste artigo, como o silenciamento das mu- de produção de teorias mediante análises,
lheres foi representado no conto de fadas partimos principalmente da vertente do fe-
tradicional “A Pequena Sereia”, de Hans Ch- minismo radical, que não deve ser, contu-
ristian Andersen, em paralelo com o conto do, entendido pejorativamente como “ex-
tremismo”. A corrente recebe esse nome pos, isto é, o patriarcado presente na Roma
“[...] por acreditar que a raiz das opressões Antiga não é o mesmo patriarcado do Brasil
sofridas pelas mulheres está nos papéis Império.
sociais atribuídos ao gênero (REIF, 2019, Conforme aponta Friedrich Engels
on-line)”, ou seja, entendemos que o conví- (1891/2021), é importante lembrar que,
vio entre homens e mulheres foi polarizado entre os povos primitivos, a divisão de tra-
pelo poder nas mãos deles a partir do pa- balho e os papéis sociais não eram tão de-
triarcado, sendo essa polarização o radical, finidos assim, ou seja, até a fase superior
isto é, a base da coerção feminina. Sobre o da barbárie, as mulheres eram mais livres
poder, Michel Foucault (2011) afirma que e não necessariamente estavam subordina-
ele é imanente às relações em que existem das aos homens da sua tribo ou não eram
desigualdade e desequilíbrio, o que inclui consideradas inferiores a eles.
questões econômicas, de conhecimento, ét- Ainda segundo o autor, o surgimento da
nicas ou sexuais. agricultura, da criação de instrumentos e
Quanto ao patriarcado, Mary Del Priore o aumento da escravidão alterou o regime
(2020) afirma que essa organização está vigente que seguia a descendência familiar
presente em quase todas as culturas do pelo lado materno (direito materno) para
mundo, a qual “[...] se define como sistema prevalecer então a descendência paterna
em que os homens têm a tarefa de alimen- (direito paterno). Para que isso aconteces-
tar e proteger a família, assumindo todas as se, foi preciso mudar, consequentemente, as
funções fora de casa. Às mulheres cabem a relações de matrimônio. Se antes eram por
organização do lar e a educação dos filhos” grupos, agora seriam monogâmicos. Só as-
(DEL PRIORE, 2020, p. 10). Considerando sim seria possível ter certeza da paternida-
esse conceito, a autora explica que a par- de dos filhos, os quais seriam herdeiros dos
tir dos anos 1970, com a segunda onda do meios de produção que os homens da tribo
feminismo, essa concepção passou a impli- fabricavam.
car também a ideia de “opressão das mu- Nesse sentido, “o desmoronamento do
lheres pelos homens” (DEL PRIORE, 2020, direito materno foi a grande derrota his-
p. 10). tórica do sexo feminino em todo o mundo.
Seguindo essa perspectiva, consoan- O homem apoderou-se da direção da casa;
te Adriana Piscitelli (2009), o patriarcado a mulher viu-se degradada, convertida em
se refere, portanto, a um sistema em que a servidora [...]” (ENGELS, 1891/2021, p. 69).
diferença sexual é usada para estabelecer Nessa perspectiva, Engels (1891/2021)
a “subordinação” da mulher pelo homem. afirma que o primeiro antagonismo de clas-
Corroborando essa ideia, para Heleieth Sa- ses ocorreu entre mulheres e homens a par-
ffioti (2004), o patriarcado é uma forma de tir da monogamia.
expressão do poder político, que se consti- Percebemos, assim, que a instauração do
tui como regime de “dominação e explora- patriarcado a partir do casamento monogâ-
ção” das mulheres pelos homens. mico alterou fatalmente a importância que
A autora ressalta, contudo, que o patriar- as mulheres tinham na sociedade, as quais
cado é um fenômeno em transformação, o passaram a ser consideradas apenas pela
que significa que essa organização política sua capacidade de gerar os herdeiros dos
sofreu/sofre alterações ao longo dos tem- homens. Veremos, a seguir, como a litera-
tura foi importante para que as mulheres espaço público. Desse modo, grande parte
expressassem sua voz e desequilibrasse o das mulheres não cultivavam a oratória,
domínio masculino no patriarcado. os códigos culturais e, consequentemen-
te, tinham medo de falar em público: “[...]
Vozes silenciadas perfeitamente compreensível depois de
Para que a fala das mulheres fosse “levada a séculos de respeitoso quase silêncio, ou da
sério”, muitas escritoras no século XIX usa- completa abdicação do ato de se expressar
ram pseudônimos masculinos. Entre elas publicamente com a própria voz, palavras e
estão Mary Ann Evans (1819-1880), que ideias” (FREITAS, 2002, p. 118, grifo da au-
adotou o nome de George Eliot; as irmãs tora). Por conseguinte, falar em público era
Charlotte (1816-1855), Emily (1818-1848) uma atividade considerada exclusivamente
e Anne Brönte (1820-1849), eram, respecti- masculina. Por um longo período, se uma
vamente, os irmãos Currel, Elis e Acton Bell; mulher falasse em público, isso seria visto
e Aurore Dupin (1804-1876), que assinava como invasão do espaço masculino.
como George Sand. Além disso, as atenienses, na Grécia Anti-
No século XX, Nelle Haper Lee (1926- ga, tinham um aposento separado do restan-
2016) decidiu usar seu segundo nome, pois te da casa, o gineceu, de acordo com Engels
soava mais masculino, e Alice Bredley Shel- (1891/2021) e Blanc (2014). Se chegasse
don (1915-1987) adotou o nome James Tip- alguma visita, elas deviam se retirar para
tree Jr. Em 1998, Joanne Kethleen Rowling esse quarto. Os homens, por sua vez, saíam
(1965-) foi aconselhada pela editora que bem cedo de casa e podiam se dedicar aos
publicaria seu famoso livro Harry Potter a esportes, às conversas no ginásio, ao culto
assinar apenas suas iniciais. das artes e às reuniões políticas livremente,
Nesse contexto, Howard Bloch (1995) ar- já elas saíam apenas durante festejos reli-
gumenta que a escrita das mulheres foi por giosos ou acompanhadas de uma escrava, o
muito tempo inferiorizada. O autor aponta, que indica que muitas mulheres das classes
por exemplo, que o psiquiatra italiano Ce- mais altas viviam quase enclausuradas no
sare Lombroso (1835-1909) sugeriu que espaço doméstico em certos lugares. Nesse
as mulheres escrevessem apenas cartas, ou sentido, Engels (1891/2021) afirma que “as
seja, “[...] este é outro modo de dizer que a donzelas [atenienses] aprendiam a fiar, te-
escrita das mulheres é menos séria, mais su- cer e coser e, quando muito, a ler e a escre-
perficial, ou ligada àquilo que é considerado ver. Eram praticamente cativas e só lidavam
a superfície da escrita – ornamento, estilo, com outras mulheres (ENGELS, 1891/2021,
retórica que agrada sem alcançar a verdade” p.77, grifo nosso).
(BLOCH, 1995, p. 77). Desse modo, na famosa pólis grega, nem
Nesse contexto, se a mulher se sentia à todos os habitantes eram considerados “ci-
vontade para expressar-se no lar (espaço dadãos”, uma vez que nem todos tinham
privado), o mesmo não acontecia no es- participação política. Nesse sentido, “[...]
paço público, no qual os homens tinham consistia, antes, dos seus cidadãos: os guer-
mais liberdade. Segundo Zilda de Oliveira reiros que defendiam a pólis. Escravos, mu-
Freitas (2002), o homem reservou o am- lheres e artesão estrangeiros, chamados de
biente doméstico para que a mulher fosse méticos, não podiam ser cidadãos” (BLANC,
a “rainha do lar”, enquanto ele reinava no 2014, p. 11, grifo nosso).
No Brasil do século XIX, segundo Mary os constantes maus-tratos sofridos por ela,
Del Priore (2020), havia receio da hegemo- seus filhos e companheiras na fazenda do
nia masculina de que a leitura e a escrita capitão Antonio Vieira de Couto. Também
fossem usadas “erroneamente” pelas mu- questionava o fato de ter sido separada de
lheres, por isso a educação ofertada às bra- seu marido, sendo esse fato inédito naquele
sileiras era muito precária, embora outros período. Sua carta foi encontrada em 1979
países já criticassem o ensino superficial e no Arquivo Público do Piauí pelo historia-
defasado aqui. Mesmo assim, a autora res- dor Luiz Mott.
salta que as mulheres já tinham o hábito de A crença de que as mulheres deviam se
ler livros de oração, tratados morais e ro- limitar ao espaço doméstico não se restrin-
mances franceses; estes últimos eram, con- ge, porém, ao período antigo. Mesmo na
tudo, condenados pelos padres, que consi- contemporaneidade existem culturas que
deravam sua leitura pecado. O fato é que ainda pregam essa ideia. Lembremos que
os romances proporcionavam às mulheres Malala Yousafzai, jovem paquistanesa, foi
a fuga das regras sociais limitantes às quais baleada aos 15 anos por tentar garantir seu
estavam submetidas pelo patriarcado colo- direito ao estudo no Vale do Swat, o qual ha-
nial. Durante a leitura, não havia controle da via sido dominado por um grupo extremis-
sua imaginação, o que representava a elas ta religioso chamado Talibã que, no final de
um momento de liberdade. 2008, anunciou que todas as escolas femini-
Assim, a leitura colocava em risco o do- nas seriam fechadas. Nessa época, o Talibã
mínio masculino. Quanto mais conhecimen- já havia bombardeado e destruído cerca de
to as mulheres adquiriam, menos submissas 400 escolas de acordo com Malala Yousafzai
se tornavam. Foi o que aconteceu com Lucia- (2013).
na de Abreu (1847-1880). Brasileira aban- O líder do Talibã, Fazlullah, criou uma rá-
donada em Porto Alegre, tornou-se profes- dio, a Mulá FM, e durante seu programa, de-
sora e uma bem-sucedida proprietária de fendia que as mulheres não deviam estudar,
escola particular. Consoante Mary Del Prio- pois sua função era cuidar do espaço do-
re (2020), foi a primeira mulher a discursar méstico: “As mulheres devem cumprir suas
em público no país, na Tribuna da Sociedade responsabilidades dentro de suas casas. So-
Partenon Literário, em 1872, a fim de defen- mente em casos de extrema necessidade elas
der o direito das mulheres à emancipação. podem sair, cobertas com o véu” (YOUSAF-
Falou com vigor sobre a lamentável condi- ZAI, 2013, p. 125, grifo nosso).
ção das mulheres na sociedade e defendeu O fato é que Malala, ainda na infância,
o direito delas à instrução superior e à li- percebeu que sua educação era muito im-
berdade de exercer qualquer profissão. Se a portante e, apoiada e incentivada por seu
fala feminina podia ser hesitante em público pai, não se submeteu ao silêncio imposto
pela falta de prática, isso não aconteceu com pelo Talibã. Ela passou então a dar entrevis-
Luciana de Abreu. tas na televisão paquistanesa: “Quanto mais
Outro exemplo de resistência foi a escra- entrevistas eu dava, mais forte me sentia e
va Esperança Garcia (1751-?) que viveu na mais apoio recebia. Tinha apenas onze anos
capitania do Piauí e em 1770, segundo Mary e parecia mais velha, e a mídia gostava de
Del Priori (2020), fez uma reclamação ofi- ouvir uma menina” (YOUSAFZAI, 2013, p.
cial por escrito ao governador denunciando 151). Posteriormente, passou a escrever um
blog, denunciando a opressão que havia no Vale ressaltar, ainda de acordo com o
Swat, principalmente para as mulheres. Na filósofo que, embora o poder aconteça em
verdade, ela contava para um correspon- relações desiguais, essas relações são, por
dente da BBC em Peshawar o que acontecia, outro lado, sempre “móveis”, o que reforça
e ele postava sua fala no blog. Para sua segu- a ideia de que as mulheres sempre resisti-
rança, também adotou um pseudônimo, Gul ram às estratégias masculinas de controle,
Makai. uma vez que, para o autor, onde existe po-
Percebemos então que, por mais que os der, existe resistência, sendo esta inerente
homens tenham desenvolvido estratégias àquele. O discurso (oral ou escrito) torna-
a fim de manter o poder para si, as mulhe- se, portanto, elemento ambíguo de poder,
res nunca foram totalmente resignadas. Ou- visto que tanto pode reforçar os modelos
sando falar e escrever publicamente, elas em vigor quanto desequilibrá-los.
rejeitavam o modelo patriarcal vigente e De acordo com Zilda de Oliveira Freitas
tomavam para si o controle. Segundo o Fou- (2002), a literatura, produto de discurso,
cault (2011), o poder provém de todos os permitiu que as mulheres se libertassem
lugares e, portanto, está em toda parte, “[...] tanto por meio da leitura dela quando pela
não é uma instituição nem uma estrutura, escrita. Era, pois, um refúgio, um registro do
não é uma certa potência de que alguns se- inconformismo às leis que lhes proibiam o
jam dotados: é o nome dado a uma situação acesso à criação artística. Dessa forma, a li-
estratégica complexa numa sociedade de- teratura era para elas “[...] um território libe-
terminada” (FOUCAULT, 2011, p. 103, grifo rado, clandestino. Saída secreta da clausura
nosso). O que explica o fato de que o poder da linguagem e de um pensamento mascu-
não pertence aos homens, porque a ideia de lino que as pensava e descrevia in absentia”
“pertencimento” estaria associada ao deter- (FREITAS, 2002, p. 119).
minismo biológico como se os homens ti- Nesse contexto, a literatura foi funda-
vessem “nascido” com o poder dentro deles. mental para que as mulheres rompessem
Por outro lado, o poder tampouco pertence com a subordinação ao patriarca da família,
às mulheres, como se fosse algo que elas de- e a escrita e a leitura literária passaram a ser
vessem “recuperar”. Se pensássemos assim, ferramentas de subversão. Para Marina Co-
estaríamos voltando ao determinismo tam- lasanti (2004),
bém. a função da literatura não está no reforço
Como bem explicado por Foucault das instituições, nem na reprodução dos pa-
(2011), o poder se consegue estrategica- drões morais vigentes. A literatura se vivifica
mente. Assim, quando os homens proibi- e encontra sua função justamente na crítica,
ram, por exemplo, que as mulheres lessem, na desconstrução simbólica, na constante
procura de aprimoramento e crescimento
escrevessem ou falassem em público, retira-
social (COLASANTI, 2004, p. 63).
ram delas engenhosamente a possibilidade
de registraram também sua participação Percebemos então que, para a escritora,
na sociedade como produtoras de cultura. a literatura proporciona a transformação do
Sendo a História conhecida basicamente do status quo, pois altera os papéis sociais dos
ponto de vista deles por séculos, as partes sujeitos, modificando a estrutura da socie-
em que as mulheres apareceriam eram es- dade. A literatura aparece então como ins-
trategicamente suprimidas. trumento de reação delas contra o domínio
masculino e como tentativa de serem reco- lantes, como o gato, o pato e o rato, sem que,
nhecidas como produtoras de cultura tam- entretanto, saibamos seus nomes, porque o
bém. As mulheres encontraram, na arte da que importa ali é o papel que representam,
escrita, o refúgio necessário para recupera- constituindo-se como categoria social.
rem a força que precisavam para rebelar-se, Embora usados comumente como sinô-
inicialmente pela leitura e em seguida pela nimos, contos de fadas e contos maravilho-
escrita, ou seja, pela emissão de sua voz. sos não são exatamente iguais de acordo
Chimamanda Ngozi Adichie (2015) afir- com Nelly Novaes Coelho (1991). Para a es-
ma que ainda existem, na sociedade, muitos tudiosa, os contos de fadas são histórias que
estereótipos negativos sobre as mulheres surgiram entre o povo celta na versão de
e sobre as mulheres feministas principal- poema, cujo tema principal era o amor. Sen-
mente, o que limita sua participação socio- do assim, a problemática deles é de cunho
cultural, porém a autora defende que “a cul- “existencial”, de autorrealização e amadure-
tura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cimento da personagem central, principal-
cultura. Se uma humanidade inteira de mu- mente por meio da união homem-mulher no
lheres não faz parte da nossa cultura, então desfecho. O ponto de partida na narrativa é
temos que mudar nossa cultura” (ADICHIE, com frequência um encanto, uma metamor-
2015, p. 48). Nesse sentido, a literatura, en-
fose, uma aventura ou uma partida do lar.
tendida como discurso, pode proporcionar
Os contos maravilhosos, por outro lado,
a reflexão sobre o status quo e impulsionar
teriam surgido no Oriente. No século VI, ain-
essa mudança. A seguir, trataremos especi-
da segundo a autora, circulava uma famosa
ficamente do gênero literário conto de fa-
coletânea desses contos na Índia, chamada
das necessário ao desenvolvimento deste
Calila e Dimna. A problemática nessas nar-
artigo.
rativas é “social” e está ligada, portanto, à
Concepções sobre os contos de autorrealização no âmbito socioeconômico,
isto é, pela conquista de bens, poder, rique-
fadas zas e, consequentemente, mudança na con-
Para Luís da Câmara Cascudo (2012), os dição social. O ponto de partida é geralmen-
contos de encantamento caracterizam-se te a miséria ou a necessidade física de so-
pelo “[...] elemento sobrenatural, o encanta- brevivência. Os contos maravilhosos podem
mento, dons, amuletos, varinha de condão, representar ainda a polarização entre o bem
virtudes acima da medida humana e natu- e o mal.
ral” (CASCUDO, 2012, p. 308). Nesse senti- Aceitando-se a distinção feita pela estu-
do, contos de fadas, contos maravilhosos ou diosa, seriam contos de fadas “A Cinderela”;
contos de encantamento referem-se àque- “Branca de Neve”; “A bela adormecida”; “O
las histórias marcadas pelo maravilhoso e patinho feio”; “A Pequena Sereia”; “A Bela e
pela fantasia sem causar estranhamento em a Fera”; “Pele de asno”; “A rainha das neves”
quem as lê. Os personagens são tradicio- e “Rapunzel”. Entre os contos maravilhosos,
nalmente “tipos”, pois representam funções destacamos “João e o pé de feijão”; “O gato
sociais e, por isso, muitos não têm nome. de botas”; “João e Maria”; “A pequena vende-
Assim, é comum encontrarmos o rei, a prin- dora de fósforos”; “O pequeno polegar”; “Ali
cesa, o príncipe, a camponesa, o lenhador, a Babá e os 40 ladrões” e “A história de Aladin
fada madrinha, além de alguns animais fa- e a lâmpada maravilhosa”.
Com relação ao nome “conto de fadas”, Ela também tira lentamente sua roupa
vale ressaltar que a presença da fada não é, na frente dele, como se estivesse num strip-
contudo, obrigatória e que, quando ela apa- tease. Ao final, ela é devorada por ele, assim
rece, não é principal. Para Marina Colasan- como na primeira versão escrita por Char-
ti (2004), as fadas têm uma função muito les Perrault em que a garota também mor-
importante para os leitores, visto que elas re. Com a preocupação em não traumatizar
são “[...] mediadoras entre dois mundos in- as crianças e produzir-lhes alívio, esse final
dispensáveis ao equilíbrio do ser humano, o foi substituído pelos irmãos Grimm com a
da realidade e o do imaginário. São nossas inserção de um caçador, que mata o lobo e
interlocutoras com o silêncio” (COLASANTI, salva tanto a menina quanto a avó.
2004, p. 222). Ainda segundo Darnton (1986), inicial-
Já dentro da narrativa, Nelly Novaes Coe- mente “Cinderela” se torna empregada,
lho (1991) explica que a fada aparece para porque fugia do pai, que queria se casar
ajudar a personagem principal em uma si- com ela, o que hoje é considerando inces-
tuação-limite, pois não seria possível re- to e moralmente pavoroso. O incesto ainda
correr a nenhuma solução natural. É difícil aparece em “Pele de asno”, a qual também
precisar a origem das fadas, mas a estudiosa precisa fugir do castelo para não ser obriga-
afirma que as primeiras referências a elas da a se casar com seu pai, entretanto essa
aparecem nas novelas de cavalaria durante história não é tão disseminada quanto Cin-
a Idade Média, compondo o folclore céltico derela (que teve o incesto suprimido). Outra
-bretão. história que também caiu no esquecimento
Essas histórias, que circulavam entre os é “Barba azul”, na qual o marido costumava
adultos, foram adaptadas posteriormente degolar suas esposas e manter seus cadáve-
para atender as crianças quando se come- res trancados num aposento à chave (hoje
çou a construir a ideia de infância no século feminicídio).
XVIII, uma vez que, antes desse período, não Existe um conto chamado “Sol, Lua e Tá-
havia a preocupação que existe hoje com o lia” que teria dado origem à famosa “Bela
que elas viam ou ouviam, e tampouco se re- adormecida”. Nele, Tália é uma jovem prin-
conhecia a “infância” como uma fase espe- cesa que também cai em sono profundo ao
cial da vida. Assim, quando essas narrativas se espetar com uma farpa. Ela é deixada
surgiram, não havia público específico e elas desacordada no bosque e lá aparece um rei
circulavam, com muito interesse, entre os que se deita com ela, porque a achou mui-
adultos. to bonita. Nove meses depois, ela dá à luz,
Para atingir o público infantil, essas nar- ainda inconsciente, um casal de gêmeos
rativas foram cada vez mais reduzidas e sua- (Sol e Lua). Essa versão é também pouco
vizadas para atender à ideia de inocência conhecida, uma vez que o ato do rei carac-
que se formava acerca das crianças, na so- terizaria estupro. Assim, as versões que
ciedade burguesa que ascendia. Assim, em conhecemos hoje são bem mais leves que
uma das primeiras versões conhecidas de as primeiras versões que eram contadas
“Chapeuzinho Vermelho”, segundo Robert aos pequenos.
Darnton (1986), a menina, sem saber, come Marina Colasanti sempre defendeu, em
o corpo da avó e bebe seu sangue oferecidos entrevistas e livros, que seus contos de fa-
pelo lobo como se fossem um “lanche”. das não são “histórias para criancinhas”,
num sentido pejorativo, pois ela percebia nessa criação, estimulando as personagens,
certo “desapontamento e desinteresse” assim, ora a manterem o patriarcado, ora a
do interlocutor (principalmente se fosse rejeitarem os modelos vigentes.
homem) quando ela contava que escrevia A protagonista da história de Hans Chris-
esse gênero textual. Assim, a autora fazia tian Andersen é uma jovem sereia que canta
questão de sempre lembrar aos leitores e dança com perfeição. Seu canto representa
que os contos de encantamento não eram aqui sua forma de expressão. Sendo o can-
destinados às crianças quando surgiram, to das sereias considerado atraente, vemos
visto que outrora havia muita crueldade que sua voz é principalmente associada à
neles também. sedução feminina, que tinha força apenas
Em entrevista, a escritora explica que nos limites do mar. Aqui ele não representa
ela se interessa em escrever contos de fadas fuga nem liberdade, uma vez que não leva
porque essa narrativa “[...] trata dos senti- a sereia a lugares distantes nem desconhe-
mentos mais antigos dos seres humanos: o cidos. Na verdade, a sereia não podia deixá
amor, o medo da morte, o medo da vida, o -lo. Tanto ela quanto suas irmãs não podiam
ódio, a inveja, o eterno desejo de crescimen- cruzar seus limites, exceto por um instante:
to, essa coisa que o ser humano tem de abrir “Quando vocês fizerem quinze anos,” dis-
as asas da alma e voar” (COLASANTI, 1997, se-lhes a avó, “vamos deixá-las subir até a
p. 127). Isso significa que essas histórias são superfície e se sentar nos rochedos ao luar,
válidas por tratarem de sentimentos ineren- vendo passar os grandes navios” (ANDER-
tes às pessoas, independentemente do tem- SEN, 2010, p. 213), o que indica que, para
po em que vivem. a protagonista, o mar representa o espaço
Sendo assim, contos de encantamento doméstico, não o público.
são histórias construídas a partir de acon- Finalmente ao completar seus quinze
tecimentos mágicos. Embora o contexto anos, a protagonista nada até a superfície
das estórias remeta à Idade Média, tratam e vê um belo príncipe que comemora seu
de questões próprias do ser humano, como aniversário num navio. Por causa de um
o amor, o medo, a inveja, o perdão, a mor- acidente, o jovem cai nas águas, mas é logo
te... Passaram a ser destinados às crianças salvo pela sereia, que o leva a uma praia, es-
a partir da construção da ideia de infância condendo-se em seguida no mar antes que
no século XVIII, sendo adaptadas a partir de ele pudesse vê-la. Ao acordar, o monarca vê
então a esse público. A seguir procederemos uma menina próxima a ele e pensa que a ga-
à comparação entre um conto de fadas tra- rota o havia salvado.
dicional e um moderno sob a perspectiva da Encantada pelo príncipe, a sereia deci-
teoria apresentada até aqui. de ir à terra firme para encontrá-lo, ou seja,
deixar o mar, seu espaço privado. Para isso,
O canto inaudível da sereia recorre à bruxa do mar (um elemento má-
Objetivamos comparar o conto “A Pequena gico) e pede-lhe que lhe dê pernas como as
Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma dos humanos. A bruxa é considerada a fada
voz entre os arbustos, de Marina Colasanti, má e representa, portanto, o mal, o que sig-
com foco na representação do silenciamen- nifica que o resultado de sua mágica geraria
to feminino em cada narrativa e identificar consequências negativas à protagonista. A
como o contexto de produção interferiu bruxa então lhe diz:
Que idiota você é! Mas sua vontade vai ser do casamento, o encanto das pernas seria
atendida e vai lhe trazer desventura, minha quebrado, e ela poderia voltar para o mar.
linda princesa. Você quer se livrar da sua Para isso, entrega-lhe uma faca.
cauda de peixe e ter no lugar dela um par de
A sereia hesita bastante e de repente
tocos para andar como um ser humano, de
modo que o jovem príncipe se apaixone por joga a faca no mar, mas a água “[...] ficou ver-
você e lhe dê uma alma imortal (ANDERSEN, melha no lugar em que caiu, e algo parecido
2010, p. 231). com gotas de sangue ressumou dela. Com
um último olhar para o príncipe e seus olhos
Assim, além de a jovem sereia sentir,
anuviados pela morte, ela saltou do navio
enquanto caminhasse, que estaria pisan-
no mar e sentiu seu corpo se dissolver em
do em faca afiada, para ficar com o prínci-
espuma” (ANDERSEN, 2010, p. 244). Como
pe, ela teria de abrir mão de sua voz. Desse
vermos, ao contrário do desfecho feliz que
modo, não poderia nunca mais se expressar
se consagrou nessa história da união entre
(cantar/falar) e a condição para poder par-
a sereia e o príncipe, a versão de Andersen
ticipar do “mundo dos homens” era perma-
necer em absoluto silêncio. Inicialmente a tem um final surpreendente, pois a protago-
sereia hesitou: nista morre, vira espuma do mar, e o prínci-
pe se casa com outra pessoa.
“Mas se me tira a minha voz, disse a Pequena
Essa fatalidade é mais comum nos con-
Sereia, “o que me sobrará?”
tos desse escritor, visto que, diferentemente
“Sua linda figura”, disse a bruxa, “seus movi- de Perrault e dos irmãos Grimm, que com-
mentos graciosos e seus olhos expressivos.
pilaram as histórias com certo humor e “fi-
Com eles pode encantar facilmente um cora-
ção humano... Bem onde está sua coragem? nal feliz”, predomina nele uma atmosfera
Estique sua linguinha e deixe--me cortá-la melancólica e, segundo Nelly Novaes Coelho
fora como meu pagamento” (ANDERSEN, (1991), suas narrativas representam sua vi-
2010, p. 233). são de mundo como um “vale de lágrimas”
Observe que, ao cortar a língua fisica- (COELHO, 1991, p. 77). Não é recorrente,
mente da princesa, a bruxa representa tam- portanto, em sua escrita, o ludismo ou a le-
bém a sociedade que domestica as mulheres veza. “Os momentos de humor e descontra-
para se casarem e serem obedientes. Ser bo- ção, em Andersen, são poucos. Predomina,
nita seria suficiente para conseguir o casa- em geral, um ar de tristeza ou dor” (COE-
mento; sua aparência é o que importa, seu LHO, 1991, p. 77).
pensamento não. Quando vai morar no cas- Vale lembrar que Hans Christian Ander-
telo do príncipe, já com pernas e sem voz, son era um escritor dinamarquês que publi-
a sereia lamenta não poder cantar para ele: cou vários volumes de Contos (com narrati-
“Oh, se pelo menos ele soubesse que abri vas destinadas às crianças) a partir de 1835
mão de minha voz para sempre estar com e continuou escrevendo até 1872, quando
ele” (ANDERSEN, 2010, p. 236). se machucou gravemente ao cair da cama e
Pouco tempo depois, o jovem príncipe faleceu em 1875. Foi influenciado pela tra-
acredita que uma princesa de outro reino gicidade romântica, característica que po-
era a menina que o salvara no mar e decide demos perceber no conto analisado aqui.
se casar com ela, mas isso levaria a protago- Vale reforçar que o príncipe não se casa
nista à morte. Para se salvar, a bruxa avisa à com a sereiazinha, pois ele pensa que sua
sereia que se ela matasse o príncipe antes salvadora é outra menina e isso só acontece
porque a protagonista não pôde lhe contar pendia das boas ações dos humanos para se
quem era. O silenciamento da protagonis- tornar, de fato, livre. Sua morte foi mais um
ta foi, portanto, o causador de sua morte. É aprisionamento. Nesse sentido, de acordo
exatamente o silêncio imposto às mulheres com Mariza Mendes (2000), os contos tra-
que as leva ao sofrimento e com frequência dicionais não estimulavam a subversão; os
à morte. Lembremos dos inúmeros casos exemplares, na verdade, ensinavam o con-
de violência doméstica que muitas esposas formismo necessário para a manutenção da
ainda sofrem sendo o próprio companheiro ordem social que se instaurava.
o agressor. A magia, as fadas e o sobrenatural apare-
O conto de Andersen é a representação ciam, por conseguinte, nas narrativas para
de uma mulher resignada. A sereia permitiu acalentar os leitores e alimentar seus so-
que a bruxa (a sociedade patriarcal) a silen- nhos. Para a autora, “a magia é o sonho que
ciasse e, ao ter a possibilidade de subverter ajuda a suportar pacientemente os reveses
esse estado, permaneceu calada, o que a da vida. Essa é a lição transmitida pelas fa-
leva à morte. Esse conto, ao mesmo tempo das” (MENDES, 2000, p. 58). Assim, produ-
em que desconstrói a ideia de realização to de seu tempo, Andersen era influenciado
amorosa feliz, também conota a impossibili- pelos modelos da época e produziu uma li-
dade de se romper com o status quo. teratura visando, em parte, à manutenção
Em “A Pequena Sereia”, a morte da prota- da sociedade em que vivia.
gonista não representa, portanto, sua liber-
tação, pois seu corpo fica preso na atmosfera A noiva que desistiu de ser
como se fosse parte do ar e ficaria lá por sé- boneca
culos como punição por deixar o mar. Como a Influenciada pela segunda onda do feminis-
sereia não conseguira a alma imortal que tan- mo no século XX a partir de 1960, os contos
to queria por meio do amor do príncipe (que de fadas produzidos por Marina Colasanti
não se casou com ela), as outras entidades foram marcadamente inspirados pelas teo-
do ar explicam: “com trezentos anos de boas rias que surgiam, embora a autora tenha
ações, você também pode conquistar uma dito abertamente que não seguia especifica-
alma imortal” (ANDERSEN, 2010, p. 245). mente nenhuma corrente. Em 1968, a escri-
O conto reforça ainda o caráter morali- tora, ilustradora, jornalista e ensaísta publi-
zante e didático que essas histórias passa- cou seu primeiro livro Eu sozinha e continua
ram a ter quando foram adaptadas para as escrevendo ainda hoje.
crianças, pois uma das companheiras eté- Raros são os escritores que, a partir do
reas da sereia explica-lhe que se as crianças Modernismo, se aventuram a criar contos de
se comportarem bem, o tempo de sua reclu- encantamento. A maioria escreveu paródias
são diminui: “[...] para cada dia que encon- das histórias tradicionais, uma vez que es-
tramos uma boa criança, que faz mamãe e sas narrativas passaram a ser muito critica-
papai felizes e merece o amor deles, Deus das por reforçarem funções sociais do regi-
abrevia nosso tempo de sofrimento [...] e as- me patriarcal de outrora. Certamente que o
sim um ano é subtraído dos trezentos” (AN- momento de produção é determinante para
DERSEN, 2010, p. 246). quem escreve, assim os contos tradicionais
Nesse sentido, a personagem principal apresentam os modelos sociais da época em
não tinha controle sobre si, uma vez que de- que surgiram.
No entanto, Marina Colasanti voltou-se deixou-a sozinha, indo beber com o cochei-
para a produção original de contos de fa- ro” (COLASANTI, 2009, p. 43). Vejamos que
das, sem depreciá-los como acontecia nes- o permanente silêncio da moça não causa
se período. Vale ressaltar que, segundo Ana estranheza nos homens que consideram
Maria Machado (2010), esses contos apare- esse comportamento positivo e louvável.
ciam cada vez mais reduzidos e limitados ou O silêncio representava, pois, obediência
“totalmente pasteurizados”, retirando-se, e submissão, sendo, portanto, uma qualida-
frequentemente, a simbologia neles que se de valorizada socialmente, visto que uma
volta para os anseios humanos; processo mulher que falasse com frequência era ta-
que começara a acontecer para atender ao chada de tagarela e fútil, como mencionan-
público infantil. Ainda de acordo com a es- do anteriormente.
critora, o gênero “[...] era acusado dos mais Porém, certo dia – numa nova tentativa
diversos males: elitismo, sexismo, violên- de levar a boneca ao castelo – a filha do esta-
cia, moralismo, maniqueísmo” (MACHADO, lajadeiro, percebendo que se tratava de uma
2010, p. 21). boneca, troca sua roupa pela dela e assume
Desse modo, vale ressaltar que os con- o lugar da noiva do rei, que ao vê-la pensa
tos de fadas modernos de Marina Colasanti que ali “estava a mais bela das jovens. A mais
são atualizados e não previsíveis. A mor- delicada. A mais silenciosa. Ali estava a es-
te, por exemplo, é algo bem recorrente nas posa que tanto buscara” (COLASANTI, 2009,
suas narrativas feéricas numa tentativa de p. 45). Observe que a aparência da mulher
ressignificar seu conteúdo, constantemente é muito valorizada e os adjetivos que o rei
simbolizando libertação da protagonista ao lhe atribui reforçam que ele procurava uma
contrário do que vimos com a sereiazinha. esposa resignada e obediente e bonita.
No seu conto “Uma voz entre os arbus- Toda a corte estava encantada com a fu-
tos”, presente no livro Entre a espada e a rosa, tura rainha: “Lenta e gentil nos gestos, só
publicado originalmente em 1992, um gru- abria a boca de vez em quando para sorrir,
po de saltimbancos substitui uma de suas sem pronunciar uma única palavra. No mais,
atrizes por uma bela boneca, que chama a maneava a cabeça, cobria os lábios com os
atenção de muitos, inclusive de nobres cava- dedos, parecendo apenas um pouco mais
leiros que passavam durante o espetáculo. viva que a boneca” (COLASANTI, 2009, p.
Eles contam ao rei sobre “[...] aquela moça 47), o que evidencia novamente a valoriza-
de rara beleza e doce silêncio” (COLASANTI, ção da sociedade pela mulher que não fala,
2009, p. 43), o qual logo deseja que ela seja não questiona sua condição, nem os mode-
sua noiva. Assim, ordena que a busquem e a los sociais vigentes.
levem para seu castelo. Os saltimbancos, ao Para Wanessa Zanon Souza (2009), “a
receberem o comunicado real e com medo domesticação masculina faz-se presente de
de contarem a verdade, entregam a boneca forma que as mulheres se veem condiciona-
muito bem arrumada. das a seguirem o padrão comportamental
Durante a viagem, o pajem para numa es- a que foram submetidas durante toda sua
talagem, porque está com sede e pergunta à vida” (SOUZA, 2009, p. 16). Nesse contexto,
bela jovem se ela queria algo: “Mas não rece- a domesticação é um fator estrategicamente
bendo resposta, atribuiu o silêncio ao mais instigado nas mulheres, cuja finalidade é fa-
puro recato e, achando melhor não insistir, zer com que sejam dependentes e obedien-
tes para que a dominação masculina possa produzindo tão assertivos discursos e por
prevalecer. Assim, a noiva era o resultado do quem havia se apaixonado. Sabendo que ela
modelo de domesticação feminina. não seria silenciada pelo marido, pois ele
Como vimos antes, o discurso é uma for- ficara interessado por tudo o que ela teria
ma de poder, quem o exerce melhor, man- para lhe dizer, “[...] sob os vivas do povo os
tém o controle consigo. Enquanto as mulhe- noivos saíram sorridentes, liderando o cor-
res permaneciam em silêncio, o discurso era tejo” (COLASANTI, 2009, p. 49), ou seja, os
visto como uma habilidade dos homens. No dois se casam.
conto, ao perceber que sua noiva não tenta- Percebemos que a narrativa apresenta
va se apropriar do discurso, ela se torna a um “final feliz” mais comum aos contos de
rainha perfeita, pois o comando do rei nun- fadas. Contudo, isso só aconteceu, porque
ca seria ameaçado por ela. a jovem sabia que não seria condenada ao
A jovem passa a se preocupar, porém, silenciamento nessa união. O conto revela
com o futuro de eterno silêncio que teria também que Marina Colasanti não reprova a
a partir do casamento. Ela começa então a relação entre homem e mulher, como acon-
falar sozinha ou com as flores do jardim. O teceu em algumas correntes do feminismo,
rei um dia ouve aquela conversa, aquela voz que os colocam como eternos adversários.
entre os arbustos. No início, gostava apenas No início dos movimentos feministas,
do som da voz dessa mulher que ele não sa- havia grande rejeição aos homens, e mui-
bia quem era, pois não conseguia vê-la, mas tas defendiam que a autonomia feminina só
logo “[...] começou a reparar nas palavras, aconteceria com a inversão dos papéis, ou
surpreendendo-se com a beleza e acerto da- seja, com a opressão deles pelas mulheres,
queles discursos que pareciam brotar por pensamento que Marina Colasanti não de-
entre as árvores” (COLASANTI, 2009, p. 47) fende. Para ela, é possível sim haver igualda-
e de repente pareceu-lhe enfadonho o silên- de de direitos e deveres entre ambos os se-
cio de sua noiva. xos e que podem coexistir harmonicamente.
A filha do estalajadeiro, sem saber que Assim, quando a autora afirma que homens
era ouvida pelo rei, sente-se cada vez mais e mulheres são diferentes, isso não significa
angustiada, sem supor que seu noivo já não que um seja melhor que o outro, embora o
apreciava mais silêncio mordaz dela e tam- sistema patriarcal tenha enaltecido carac-
bém já não se sentia feliz. No dia do casa- terísticas consideradas socialmente como
mento, os dois ficam hesitantes, pensando tipicamente masculinas e menosprezado as
no longo silêncio que os esperava. A jovem, peculiaridades tidas como femininas.
certa de que não era a vida que queria ter, Nesse sentido, tanto mulheres quanto
decide então falar, contar que não aguenta- homens são produtores de cultura, no en-
va perder sua voz, que não poderia mais fin- tanto, como dito anteriormente, os mate-
gir e que precisava ser ouvida. riais produzidos por elas foram constante-
Assim, a moça abre mão de ser a rainha, mente ignorados. Marina Colasanti (2004)
de ter o casamento que muitas desejariam salienta, acerca dos contos de fadas, que
em favor de sua voz, de não ser condenada eles foram criados e repetidos tanto por ho-
ao silêncio eterno. O que ela não esperava, mens quanto por mulheres, contudo, como
porém, é que o rei lhe reconhecesse a voz, a escrita foi privilégio masculino por muito
a mesma voz da moça que falava no jardim tempo, apenas eles foram reconhecidos pela
história literária como os seus grandes au- assim a ser respeitados por nobres burgue-
tores. Desse modo, “os homens tornaram-se ses como histórias cheias de ensinamento e
donos dos contos assim como eram donos preceitos morais” (MENDES, 2000, p. 48).
das mulheres. A elas deixaram apenas o pa- Essas mulheres ficaram conhecidas
pel de repetidoras, uma vez que repetir é como “preciosas” e teriam desenvolvido
função mantenedora” (COLASANTI, 2004, p. essa atividade literária durante o barroco
239). francês ativamente, embora fossem ridicu-
Por isso, quando falamos de contos de larizadas por alguns homens da época. O
fadas, pensamos primeiramente em Charles fato de não as conhecermos melhor, é por-
Perrault, nos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm que infelizmente elas não conseguiam ir
e Hans Christian Andersen, porém as mu- além dos salões franceses, numa época em
lheres foram parte importantíssima no pro- que muitas não podiam sequer frequentar
cesso de registro desses contos oriundos da escolas e academias. Aquelas que quisessem
tradição oral. aprender a ler e escrever teriam de fazê-lo
O livro Histórias ou narrativas do tem- em casa.
po passado com moralidades, publicado em Perrault era frequentador desses salões
1697 por Perrault, tornou-se famoso sob literários e foi nesse ambiente que se teria
o novo título Contos da Mamãe Gansa. De inspirado. Muitos dos contos apresentados
acordo com Robert Darnton (1986), Per- pelas mulheres que o autor conheceu nesses
rault recolheu os contos do seu livro a partir ambientes foram posteriormente publica-
da tradição oral do povo francês e “princi- dos sem que elas fossem reconhecidas como
palmente da babá de seu filho” (DARNTON, suas autoras. Como percebemos, o discurso
1986, 24). Nessa perspectiva, o uso de “gan- das mulheres foi engenhosamente abafado
sa” e não de “ganso” induz que as narrativas pelo discurso masculino.
de encantamento fossem histórias tradicio- Em “Uma voz entre os arbustos”, perce-
nalmente contadas por mulheres, além do bemos então que Marina Colasanti rejeita
fato de o escritor recorrer a uma mulher (a a ideia de que a mulher deve se resignar a
babá) para compô-las. ter um marido que não a valorize e respeite.
Por sua vez, os irmãos Grimm, para es- Todavia, a união entre os personagens, no
creverem seu livro Contos de fadas para final da história, indica que homens e mu-
crianças e adultos, publicado inicialmente lheres não precisam ser eternos inimigos e
entre 1812 e 1822 recorreram, segundo Jan que pode haver equilíbrio na relação entre
Ziolkowski (1992), a duas informantes ale- ambos.
mãs Johanna Isabella e Marie Hassenpflug,
vizinhas dos folcloristas, as quais também Considerações finais
conheciam as versões de Perrault. A sociedade patriarcal define funções e com-
Já Mariza Mendes (2000) afirma que, portamentos específicos para mulheres e
quando Perrault publicou seu livro de con- homens. De acordo com a teoria feminista de
tos de fadas, já havia na França um grande gêneros apresentada neste artigo, esse siste-
interesse por esse tipo de histórias graças ma permite que homens sejam superiores às
às mulheres: “Elas [...] se encarregaram de mulheres. Enquanto eles eram majoritaria-
garantir em seus salões literários um espa- mente produtores de cultura – com destaque
ço para os ‘contos da velha’, que começaram aqui para a literatura –, uma vez que podiam
ir e vir livremente entre o espaço público e o sejam menos citadas que eles. Para romper-
privado, as mulheres foram constantemente mos com essa condição, devemos, portanto,
limitadas à esfera doméstica. mudar nossa cultura para que a população
Muitas mulheres tiveram sua voz silen- reconheça o valor dos materiais produzi-
ciada, porque era uma estratégia masculi- dos pelas mulheres. Para que isso aconteça,
na para manter o poder sobre as mulheres. precisamos, então “[...] criar nossas filhas de
Certamente, havia várias manifestações de uma maneira diferente. Também precisa-
resistência entre elas, por meio inicialmente mos criar nossos filhos de uma maneira di-
da leitura e da produção literária. A literatu- ferente” (ADICHIE, 2015, p. 28, grifo nosso).
ra, assim como todo discurso, é ambivalente,
uma vez que pode tanto validar modelos e Referências
comportamentos sociais, quanto rejeitá-los ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos
e enfraquecê-los. feministas. Tradução de Chritina Baum. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Ao compararmos os contos “A Pequena
Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma ANDERSEN, Hans Christian. A pequena sereia.
voz entre os arbustos”, verificamos que, In: CONTOS de fadas de Perrault, Grimm, An-
dersen & outros. Ana Maria Machado (Apre-
influenciados pelo contexto de produção, sentação). Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
o conto de Andersen simboliza o silencia- de Janeiro: Zahar, 2010. p. 209-246.
mento da protagonista como algo necessá-
BLANC, Cláudio. Guia da mitologia grega. São
rio para atingir seu objetivo, isto é, casar-se Paulo: Online, 2014. p. 5-24.
com o príncipe. Seu silenciamento parado-
BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a in-
xalmente impede que ela seja bem-sucedi-
venção do amor romântico ocidental. Tradu-
da, pois, como não pôde contar ao príncipe ção de Cláudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora
que o havia salvado no mar, ele se casou com 34, 1995.
outra princesa, fazendo com que a pequena CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no
sereia se sacrificasse. Sua morte não repre- Brasil. São Paulo: Global, 2012. p. 308-310.
senta, porém, sua libertação, visto que esta-
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 2. ed.
va condenada a ser uma entidade etérea por São Paulo: Ática, 1991.
300 anos.
COLASANTI, Marina. Longe como meu querer.
Por outro lado, no conto de Marina Cola-
São Paulo: Ática, 1997. Entrevista concedida à
santi, observamos que o casamento deixou Editora Ática.
de ser o objetivo da jovem quando ela per-
COLASANTI, Marina. Aos sofistas, a culpa. In:
cebeu que estaria fadada ao silenciamento COLASANTI, Marina. Fragatas para terras dis-
eterno, caso se casasse com o rei. Entretan- tantes. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 57-64.
to, como a escritora não perpetua a relação
COLASANTI, Marina. Entre a espada e a rosa.
de opressão dos homens contra as mulhe- São Paulo: Melhoramentos, 2009. p. 42-49.
res, ao ficcionalizar que ambos poderiam
DARNTON, Robert. O grande massacre dos
conviver em harmonia, o conto termina com
gatos e outros episódios da história cultural
a união dos jovens, porque o rei reconhece o francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de
valor do discurso produzido por sua noiva. Janeiro: Graal, 1986.
Desse modo, hoje as mulheres não preci- DEL PRIORE, Mary. Sobrevivente e guerreiras:
sam mais se esconder atrás de pseudônimos uma breve história da mulher no Brasil de 1500
masculinos para serem lidas, embora ainda a 2000. São Paulo: Planeta, 2020.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
* Profesora de Castellano desde el año 1993, titulada de la Universidad del Bío Bío (Chile). Magister en
Educación de la Universidad de Concepción (Chile) y Magister en Gestión Educacional de la Universidad
San Sebastián (Chile). Actualmente cursa el doctorado en Literatura Latinoamericana de la Universidad
de Concepción (Chile). E-mail: mireramos@udec.cl
tagonista, para recordar y constatar cuán si- meteórico de colon de su tío. Los cánceres
milares pueden ser entre sí los integrantes metastásicos de páncreas y de hígado de las
de una familia, no solo por rasgos físicos o tías. El cáncer de pecho que le extirparon a
por los lazos afectivos adoptados, sino tam- la madre. (MERUANE, p. 67).
bién por enfermedades que se transmiten Es así como comienza a recorrer este ál-
por herencia o se adquieren por costumbre. bum de imágenes familiares, recogiendo los
A partir de esta novela es posible anali- pedazos de una vida que quedó en el país del
zar la enfermedad como una forma de habla pasado donde aún vive su familia y a la que
del cuerpo desde su propio y legítimo lugar se siente atada por la genética y los afectos,
de enunciación; ficcionando sobre sí mismo como las piezas de un engranaje al que per-
como entidad biológica independiente, pero tenece, en las buenas y en las malas, y es la
en interdependencia con la voluntad de un clave necesaria para disipar la incertidum-
yo que en esta novela acepta que el cuer- bre de sus afecciones físicas y emocionales
po revele su propia razón y explicación de y, por cierto, el lugar más apropiado para
aquello que no funciona dentro del sistema concebir una heterotopía donde el cuerpo
familiar de la protagonista y los demás inte- manda por sobre las culpas y el fracaso.
grantes de su familia; su pareja, su padre, su Cada capítulo de la novela es una anam-
madrastra, su hermano mayor y una pareja nesis literaria sobre la vida y enfermedad
de mellizos, medio hermanos menores. de Ella y los integrantes de la familia, pero
Ella, la protagonista, agobiada por la falta sin detenerse en la semántica clínica de sus
de tiempo y el exceso de trabajo como pro- causas y efectos, tampoco en el estigma de
fesora de ciencias planetarias en diferentes una tragedia; sino más bien en la posibilidad
escuelas, manifiesta su deseo de ser salvada de un evento que ciertamente puede ocu-
por alguna enfermedad que le permita obte- rrir, así como suceden los nacimientos, los
ner una licencia médica de un par de meses cumpleaños o los funerales, en una familia
para dedicarse de lleno a escribir su tesis de como ésta donde además ambos padres son
doctorado sobre agujeros negros en el uni- médicos. Eso es lo interesante en la escritu-
verso. ra de Meruane, convivir con la enfermedad
En la búsqueda y auscultación de su y abrir paso al lenguaje para deletrearla tal
cuerpo, hombro, brazo, cuello, cabeza, en cual, con sus dinámicas propias, incluso con
cierta forma atrae la presencia de extraños humor, y otorgarle un cierto poder de enun-
síntomas de una posible enfermedad, que la ciación que desde luego, en Sistema nervioso
lleva a la consulta de distintos especialistas (2018), va más allá de padecer una enferme-
y a la toma de muchos exámenes de labo- dad y morir con ella, tal como lo retratara el
ratorio para poder dar con un diagnóstico propio Bolaño en uno de sus ensayos sobre
acertado que la deje conforme a ella y a su Enfermedad y poesía:
padre, un médico general, que permanente- Mallarmé quiere volver a empezar, aun a sa-
mente está cuestionando los resultados de biendas que el viaje y los viajeros están con-
esos exámenes y las opiniones médicas de denados. Es decir, para el poeta de Igitur, no
sólo nuestros actos están enfermos sino que
sus colegas. Todo a través de llamadas tele-
también lo está el lenguaje. Pero mientras
fónicas que mantiene con su hija a larga dis- buscamos el antídoto o la medicina para cu-
tancia. En su memoria reviven el cáncer de rarnos, lo nuevo, aquello que sólo se puede
garganta de su abuelo materno y el cáncer encontrar en lo ignoto, hay que seguir tran-
sitando por el sexo, los libros y los viajes, porque los avances de la microbiología y el
aun a sabiendas de que nos llevan al abismo, uso de tecnologías le han cambiado la fiso-
que es, casualmente, el único sitio donde nomía monstruosa a las enfermedades:
uno puede encontrar el antídoto.” (BOLAÑO,
2003, p. 156). Basta ver una enfermedad cualquiera como
un misterio, y temerla intensamente, para
Meruane sigue una ruta similar a través que se vuelva moralmente, si no literalmen-
de sus personajes que colindan con la enfer- te, contagiosa. Así, sorprende el número de
medad, especialmente Ella, una viajera ha- enfermos de cáncer cuyos amigos y parien-
cia lo ignoto, a otros planetas inhabitados, tes los evitan, […] como si el cáncer, fuera
a estrellas muertas, a agujeros negros, que una enfermedad infecciosa. (SONTAG, 1980,
p. 2).
la llevan siempre más allá, hasta perderse y
tener que aceptar el fracaso de una investi- Eso lo saben muy bien los personajes de
gación nunca terminada. Pero aun así, conti- Meruane, quienes contrariamente a ese tipo
nuar viajando, incluso para acompañar a su de ocultamiento y temor, dejan ver sus enfer-
padre en las postrimerías de una enferme- medades, en la naturalidad de sus expresio-
dad terminal, que es parte de la heterotopía nes y en la cotidianeidad de sus vidas, hasta
de ambos, “Trato hecho dice el Padre viendo con un cierto grado de humor. “Este niño
saltar chispas alrededor de la hija, la hija to- tiene piduyes, decía la Madre antes de decir,
cada por la luz, además, dice, me lo debes, después, cuando empezara a romperse, que
me haces falta en ese viaje, tú eres la experta tenía huesos de loza. Su hijo de porcelana,
en el más allá.” (MERUANE, p. 277). lo llamaba la Madre a escondidas del Padre.
Desde la perspectiva de la filósofa y en- Su hijo trizado.” (p. 198), entregando ciertas
sayista Susan Sontag, el miedo a las enfer- pistas sobre cómo se deja fluir al lenguaje
medades, intratables e incomprendidas, del cuerpo, sin entrar en contradicción con
como la tuberculosis, el cáncer y posterior- la voluntad ni tampoco dejarse abatir por el
mente el sida; que tuvieron que afrontar las lado inhóspito de la enfermedad, que cier-
sociedades industrializadas, incluso desde tamente lo es, pero acá es construido como
mucho antes, ha justificado el uso de las un lugar heterotópico de sana convivencia
metáforas para interpretarlas como las que entre cuerpo, vida y enfermedad.
roban vida o representan la degradación La protagonista es una especie de enlace
del cuerpo, que es consumido por síntomas roto dentro de un sistema familiar que narra
como la tos sangrante, los efluvios pestilen- en primera persona los distintos episodios
tes o el aspecto indigno de tumores que es familiares, que le dan pulso a su propia exis-
necesario ocultar bajo ciertas metáforas, tencia y van mostrando de alguna manera
que además son una forma de control, “Las la falla que comienza a languidecer sus fun-
metáforas patológicas siempre han servido ciones individuales dentro del contexto de
para reforzar los cargos que se le hacen a la un sistema en el que orbitan Ella y sus inte-
sociedad por su corrupción o injusticia […] grantes. Atados entre sí por la fuerza de los
y para expresar una insatisfacción por la so- afectos y las tensiones que cortocircuitan la
ciedad como tal” (SONTAG, 1980, p. 35). armonía de sus relaciones; lo que en pala-
Meruane, al igual que Sontag, coinciden bras de Andrea Kottow significa:
en que ese terror infundido hasta ahora es […] explorar la idea de cortocircuito, dado
totalmente pasado de moda, especialmente que pareciera ser que en la novela de Merua-
enfermedad como una heterotopía en este la falla que está dentro de ella, pero también
análisis tiene sentido. dentro del sistema familiar.
Sistema nervioso en ningún caso es una
narración de síntomas o de consecuencias Referencias
de una enfermedad que determine la volun- BOLAÑO, R. El gaucho insufrible. Barcelona:
tad de sus personajes, si bien las padecen, Editorial Anagrama. 2003.
ninguno sucumbe a ante ellas por injuriosas FOUCAULT, M. El cuerpo utópico. Las hete-
que sean. Tampoco se tornan en el elemento rotopías. Buenos Aires: Nueva visión. 2010.
desencadenante de cada relato, más bien es-
KOTTOW, A. Cuerpo, materialidad y muerte
tán allí todo el tiempo, acompañando a sus en Sangre en el ojo y Sistema nervioso de Lina
dueños, definiendo sus devenires, revelan- Meruane. Universidad Adolfo Ibáñez. Orillas:
do su ser. Dicho de otra forma, cada sujeto revista d’ispanistica, ISSN-e2280-4390. 8,
es su propia enfermedad. 5-18. 2019.
En tanto al cuerpo le sea permitido re- MERUANE, L. Sistema nervioso. Santiago de
velar los misterios de su corporalidad, dis- Chile: Penguin Random House. 2018.
minuye su rebelión contra el yo, así como
SONTAG, Susan. La enfermedad y sus metáfo-
el sentimiento de culpa y fracaso, que final- ras. El sida y sus metáforas. Editorial Debolsi-
mente logra disipar al detectar el punto de llo. Santiago: Random House. 2008.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1
[...] somos marcados pelos lugares e pe- porque são em grande quantidade. Ater-me
los tempos em suas múltiplas dimensões e -ei à essência da obra de Silva, ao tema por
sentidos denotativos e conotativos que nos ela tratado.
envolvem. Ou dizendo metaforicamente, os
Silva inicia dizendo que explicamos e
lampejos dos vaga-lumes nos iluminam e
nos obscurecem nas nossas trajetórias in- “desexplicamos” o tempo inteiro. “Desex-
dividuais e coletivas no ambiente-mundo e plicar” é explicar algo já sabido por alguém
também, em particular, através das narra- a esse alguém, porém explicando de outra
tivas historiográficas produzidas no tempo maneira, acredita o autor. Inspirado em
(SILVA, 2020, p. 12). Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Silva
O objetivo deste escrito é resenhar a obra assevera ser preciso desformar e desnatura-
“Acre, formas de olhar e de narrar: natureza lizar o mundo. É essa a perspectiva de sua
e história nas ausências” (2020), de Fran- “desexplicação”. Em seu livro, o autor, com
cisco Bento da Silva. O autor é professor da leitura fácil e ao mesmo tempo elevada den-
Universidade Federal do Acre (UFAC), nos sidade teórica, nos “desexplica” fragmentos
cursos de Graduação em História, Mestrado da história do estado brasileiro do Acre.
em Ensino de História e Mestrado e Douto- Os fenômenos vitais negam a existência de
rado em Letras: Linguagem e identidade. O disciplinas separadas e estanques e negam,
livro possui quatro capítulos e a obra é pro- ainda, que o ser humano não tenha relação
veniente de sua pesquisa de Pós-doutorado direta com o seu (meio) ambiente. Nessa di-
no Programa de Pós-graduação em História reção, por certo, “a fantasia, o desejo, o dis-
da Universidade Federal do Rio de Janeiro curso e a ideologia do humano civilizado se-
(UFRJ), concluída em 2020. No livro, Silva parado da natureza é um mito incessante e
analisa muitas obras literárias sobre a re- ainda permanente em grupos hegemônicos
gião do Acre, escritas nos séculos XIX e XX, da chamada tradição ocidental iluminista”
bem como muitos autores e muitas perso- (SILVA, 2020, p. 12).
nagens. Analisa poemas, charges e imagens Nesse sentido, “desdizer e desexplicar, re-
(fotografias) publicadas em jornais brasilei- mar contra as narrativas hegemônicas que
ros no/do referido período. Não me aterei a foram sendo tecidas e cristalizadas como as
citar tais trabalhos, autores e personagens únicas e verdadeiras no mundo gestado pela
[...] o Acre como espaço social, geográfico uma distância que é estética, de (des)gosto,
e político é uma invenção, tal qual a Ama- de (des)semelhança e de afeição ou rejeição.
zônia. Constitui-se em uma comunidade [...] parte das vozes letradas [..] se posiciona
imaginada, re-imaginada, narrada e re-nar-
[...] como sujeitos diferentes, incomodados
rada por múltiplas vozes durante a primei-
ra metade do século XX. Em muito, essas
e descentrados dos demais que vivem como
operações ocorreram de fora para dentro eles no mesmo espaço [...] acreano” (SILVA,
em relação ao Acre e a Amazônia, mas tam- 2020, p. 27).
bém operou no sentido inverso e teve como Neste capítulo, Silva nos mostra que a
centro irradiador as vozes locais que irão selva é vista como inculta. A riqueza natu-
reverberar suas construções discursivas ral tem direcionamento exógeno e não serve
em jornais, relatórios, livros e fotografias para o local (na visão do colonizador). “Há
(SILVA, 2020, p. 22).
natureza demais e sociedade de menos”
Sobre as imagens do Acre do passado (SILVA, 2020, p. 27). Há uma queda pela de-
(fotos, por exemplo) consigna o autor: “[...] nominação de deserto, porque a selva pa-
olhamos para elas sempre com o olhar do rece não ter tempo, parece ser estagnada.
presente, algo que terá continuidade de- Nessa perspectiva, narrativas historiográfi-
pois de nós com quem em outros contex- cas daquele momento monumentalizavam
tos porventura queira [/quiser] re-iniciar os documentos oficiais. Sobre identidades,
a jornada inacabada da ‘remontagem’ his- frisa o autor: “[...] indígenas, brancas, ca-
toriográfica no contínuo movimento de ex- boclas, sertanejas, nordestinas, brasileiras,
plicar e desexplicar” (SILVA, 2020, p. 22). A turcas, sírias, peruanas, bolivianas, etc. [...]
própria imagem da capa do livro de Silva o senso comum apresenta essas identida-
nos proporciona uma profunda reflexão so- des como sendo essencializadas e perenes”
bre o papel dos indígenas no/do Acre pre- (SILVA, 2020, p. 31). Sobre os bolivianos, Sil-
térito. A imagem nos explica e “desexplica” va enuncia que na lide Acre-Bolívia, para a
o contexto indígena daquela época. Afinal, maioria das narrativas brasileiras apenas os
nas narrativas sobre a Amazônia, os “indí- interesses brasileiros eram legítimos, váli-
genas [...] são invisibilizados nessas narra- dos e aceitáveis. Nada se fala sobre os que-
tivas e apresentados como destituídos de reres bolivianos.
direitos e de subjetividades, animalizados Ademais, “o Acre é então o outro geográ-
ou humanizados como inferiores ao ho- fico, o outro cultural, o espaço das ausên-
mem branco” (SILVA, 2020, p. 24). cias que estão sempre em maior destaque
Falo agora sobre o Capítulo I do livro, do que as permanências geradas pelo fazer
chamado “O Acre como deserto conquis- humano” (SILVA, 2020, p. 36). Por parte dos
tado: amansar e civilizar como missão”. escritores que viajaram pelo Acre e quise-
Neste capítulo inicial são narradas ausên- ram o descrever em seus textos, havia uma
cias sobre o Acre (e “a Amazônia”) que são incalculável preocupação “em descrever o
relacionadas a estereótipos como o de “va- real e o verdadeiro das relações humanas e
zio”, de “imensidão”, de “lugar não civiliza- históricas ali existentes de forma objetiva,
do” e de “lugar à margem da história”. O Acre mesmo quando se tratam de textos ficcio-
é visto como “longe” nas literaturas entre nais” (SILVA, 2020, p. 40). O conjunto desses
1904 e 1962, mas essa distância é também estereótipos sobre a Amazônia e o Acre, os
uma distância estética. Silva nos fala que “há vendo (apenas) como “vazios”, “desertos”
etc., Silva nos diz que é o que José Pimenta notícias e fotografias sobre o/do Acre, so-
(2015) chama de “Amazonismo” e Gerson bre/de festas no Acre, dizendo “o melhor
Albuquerque (2016) nomina de “Amazonia- estabelecimento local”, em relação a ima-
lismo”. gens de casas de festas simples, de madei-
Silva aborda os discursos envoltos na ra, em Xapuri, por exemplo. Havia muito
categoria “cearense”, representante de um preconceito, deboche e ironia em face do
dos povos que colonizaram o “terrível” Acre. Acre, narra o autor. “O Acre torna-se se o
“O bandeirante paulista é apontado como antípoda do Rio de Janeiro em matéria ar-
aquele que desbrava terras salubres, bem si- quitetônica e em relação aos padrões de
tuadas topograficamente [...]. A saga tardia bom gosto, refinamento e cosmopolitismo”
do sertanejo cearense é superior porque foi (SILVA, 2020, p. 54).
realizada em uma ‘zona tórrida’, região ‘in- Discorro agora brevemente sobre o Capí-
fecta’” (SILVA, 2020, p. 46). Sobre os cearen- tulo II, chamado “Bichos, florestas e doen-
ses que “conquistaram” o Acre, Silva, citan- ças: o outro mundo selvagem”. Neste capí-
do Durval Muniz de Albuquerque Júnior, diz tulo as ausências sobre o Acre se referem a
que as: questões higiênicas, de alimentação, de (in)
[...] narrativas sobre os intrépidos, corajosos salubridade, de clima e de costumes. Silva
e heroicos nordestinos foram uma forma das clarifica que “viajantes, exploradores, natu-
elites nordestinas se contraporem a uma ralistas, religiosos, militares e outros tantos
narrativa historiográfica emanada [...] desde
teceram desde muito tempo os mais varia-
o século XIX, em que predominou a tese da
dos discursos e sentenças sobre o lugar que
conquista do território nacional como obra
do bandeirante português/paulista. A cha- visitavam ou do qual recebiam informações
mada conquista do Acre é então a oportuni- por meio de terceiros” (SILVA, 2020, p. 58).
dade dessa narrativa regionalista do Norte/ As sentenças e discursos são tantos que,
Nordeste emergir, algo que em grande me- por exemplo, a ideia de “eldorado” é el do-
dida foi realizado por intelectuais cearenses, rado, ou seja, o ouro. Os colonizadores que-
estado de onde provinha boa parte desses
riam encontrar ouro na Amazônia a todo
migrantes (SILVA, 2020, p. 46).
custo. Para muitos estrangeiros, se as pes-
Sobre os governantes estrangeiros do/ soas do Acre fossem “civilizadas” o clima da
no Acre Federal, Silva diz: região, a quentura, por exemplo, melhoraria.
Devemos ter em mente que na ótica desses “A relação de causa e efeito seria então auto-
governantes, as cidades amazônicas vão mática: gente civilizada, clima em harmonia
se constituindo para gentes e pessoas que com os humanos” (SILVA, 2020, p. 62). Para
deveriam incorporar os “usos e costumes
muitos colonizadores/viajantes, as florestas
corretos” instituídos por decretos no meio
amazônicas eram inesgotáveis/imensas: “O
citadino. Por isso deveria haver a separação
clara das práticas do mundo rural/florestal, adjetivo imenso era, para muitos cronistas,
daquelas das cidades governadas por essas um termo incapaz de descrever o que seria
autoridades que eram geralmente militares - objetiva e subjetivamente - a rede flores-
com formação em engenharia e medicina tal amazônica que se torna uma das meto-
(SILVA, 2020, p. 49). nímias mais usuais para alegorizar a região
Nessa direção, no século XIX, alguns jor- até os dias de hoje” (SILVA, 2020, p. 63).
nais, notadamente do Rio de Janeiro – ca- Contraditoriamente, Silva nos lembra
pital brasileira daquela época, publicavam que a região narrada como de valor inferior
ricos que transitaram no campo da ironia e luta do Acre para se tornar brasileiro “car-
da galhofa” (SILVA, 2020, p. 114). regam o olhar no elemento patriótico e de
Silva dicciona que a América e Amazônia defesa dos sempre indigitados interesses
são nomes femininos, porque há uma fetichi- do Brasil, do Acre e dos brasileiros do Acre.
zação de ver esses lugares como mulheres. Isso ocorre mesmo que internamente seus
São regiões “simbolicamente desvirginadas próceres tivessem divergências pessoais”
e conquistadas pelo homem branco, cristão (SILVA, 2020, p. 142).
e europeu” (SILVA, 2020, p. 115). Consoante Sobre o Acre, tem-se que há:
o autor, o Acre primeiramente é visto como [...] um conjunto de ausências que lhe são
um “estorvo” para a nação brasileira. É vis- narradas, outorgadas, sentidas, determina-
to como um lugar longe, “vazio” e “povoado das, visualizadas e inventadas. Temos um
por selvagens indígenas e migrantes tumul- Acre que é em grande medida mostrado
tuários” (SILVA, 2020, p. 121). como um não-lugar, seja como sociedade ou
parte de alguma nação (Brasil, Peru e Bo-
Sobre o Acre, diz Silva:
lívia) até os anos iniciais do século XX. Um
Domesticar o território e suas gentes deveria território visto como desterritorializado
ser obra estatal que precisava ali se estabe- porque não teria marcas humanas na lógica
lecer e regular o lugar e suas gentes através do progresso e das nacionalidades que lhes
dos poderes militar, fiscal, judiciário e exe- disputavam. Outra ausência narrada com
cutivo. E, ao longo do tempo, irem sendo mi- frequência é a do pioneiro/colonizador que
norados os decantados atrasos e ausências lhe “conquista” tardiamente, portanto ela
culturais e materiais, centradas no descom- logo é preenchida pelas narrativas vencedo-
passo histórico, da incipiente infraestrutura, ras dos brasileiros do Acre. Sua incorpora-
do distanciamento político e pátrio dos seus ção ao Brasil em 1903 gerou, após esta data,
nacionais que ali viviam. O que é estorvo novas disputas genealógicas, heroificantes e
político, cultural e geográfico, compensava consequentemente de reelaborações de ou-
pela possibilidade presente de riqueza que tros discursos em torno das ausências ou su-
oferecia e de remissão futura que estaria peração delas. Por definição, temos um Acre
fadada a ocorrer por mão dos operosos he- diverso e repetidamente inventado (SILVA,
róis, colonizadores e administradores (SILVA, 2020, p. 144).
2020, p. 131).
Para concluir sua obra, o autor diz que
Sobre o Movimento Autonomista, Silva no livro teve o “intuito de desexplicar, des-
escreve que, embora tenha algum senso de construir e remontar, em uma narrativa de
“justiça”, basicamente as demandas dos “au- fundo historiográfico, algumas questões
tonomistas” foram sempre ligadas a inte- quase sempre apresentadas como obvias”
resses das elites econômicas locais daquele (SILVA, 2020, p. 146). É nessa perspectiva
momento que desejavam mais autonomia e que relevo o livro de Silva como um elemen-
um lugar de protagonismo na política da re- to com força incisiva para nos fazer refletir
gião. Conforme o autor, foram criadas várias sobre a história do Acre a partir de outros
narrativas e construídos vários heróis sobre olhares, olhares que tentam “desexplicar”
a “Revolução Acreana”. Assim, o Acre passou o que sempre fomos “programados” para
a “ter uma história”. “O Acre não estava mais enxergar como “o verdadeiro”, como “a ver-
à margem da história. A sentença euclidiana dadeira história do Acre”. Ainda hoje há
havia sido superada” (SILVA, 2020, p. 139). preconceitos geográficos e sociais contra o
Nesse contexto, todas as narrativas sobre a Acre, muitos provindos de próprios brasilei-
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.