Moral Catolica - Servais-Théodore Pinckaers
Moral Catolica - Servais-Théodore Pinckaers
Moral Catolica - Servais-Théodore Pinckaers
A MORAL CATÓLICA
A MORAL
CATÓLICA
2ª edição
Tradução
Paulo Jacobina
□ QUADRANTE
São Paulo
2017
Título original
La mora/e catholique
Ilustração da capa
Cristo «Pantocrator» (séc. XII). Mosaico na Basílica
de São Paulo Extramuros (séc. XII). Foto de Douglas Catisti
Até 1930, os manuais de teologia moral foram escritos um contato mais vivo com o mistério de Cristo e com a
segundo o estilo de Santo Afonso Maria de Ligório ( 1696- História da Salvação. O objetivo era aperfeiçoar a teologia
-1787), que adotava o estudo de casos para aprofundar no moral, de maneira que sua exposição científica estivesse
conhecimento moral; ou então seguindo alguns comenta- mais nutrida da doutrina das Sagradas Escrituras e mais
ristas de São Tomás, que procuravam as razões que esta- apta a explicar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo
riam por trás das normas. Entretanto, ambos os métodos (cf. Decreto Optatam totius, n. 16).
centravam o estudo da vida moral no conhecimento das Foi esse o passo mais decisivo para a renovação da Teo-
leis e da sua aplicabilidade nas diversas circunstâncias da logia Moral: centrar os estudos teológicos na Sagrada Escri-
vida humana. O enfoque que se dava à moral era demasia- tura para que, com Cristo como referência, fosse possível
damente jurídico: procurava-se entender que condutas se- explicar a grandeza da vida moral dos fiéis a partir da gran-
riam «obrigatórias» e quais as situações em que se estaria deza dEle. A moral necessita de Jesus como modelo; os
diante de uma exceção à regra. fiéis devem aspirar à identificação com Ele; a Bíblia serve
Entre 1930 e 1960, as discussões acabaram tendo por para compreendê-lo e conhecê-lo melhor (cf. Concílio Va-
fruto a produção de novos manuais e o surgimento de no- ticano II, Constituição Gaudium et spes, 22).
vos enfoques para a compreensão da vida moral do cristão. O enfoque que se adotou, então, com relação à moral
Diferentes autores buscavam um novo princípio reitor que foi mais positivo do que nunca: afirmar o bem, mais que
estruturasse a exposição da teologia moral. Influenciaram- proibir o mal. Afirmar o Bem, que se identifica com Jesus,
-nos positivamente os movimenros que, no século XX, e empreender o seu seguimento, uma vez que a vida moral
contribuíram para a renovação da teologia em geral, a sa- é a vida em Cristo; e viver em Cristo exige segui-lo. Daí a
ber: o bíblico, o litúrgico e o carismático. Dentre as ques- importância central da caridade no estudo teológico, como
tões suscitadas por essa busca, duas concentraram mais a insistia a Lumen gentium, já que essa virtude é precisamen-
atenção dos estudiosos: 1) Existe uma moral especificamen- te o centro da pregação e do agir de Jesus.
te cristã? Se sim, em que consistiria? 2) Qual a ligação en- A teologia moral, assim, sem deixar de contemplar as
tre a vida cristã e a lei natural, válida mesmo para os não- obrigações morais e sem extirpar os deveres e as leis da vida
-cristãos? de todo cristão, não se detém mais apenas no mero determi-
O Concílio Vaticano II contribuiu extraordinariamente nar o que é obrigatório - como a Santa Missa dominical -
para esse processo de renovação. A constituição Lumen gen- nem na análise das exceções à regra - como os impedimen-
tium frisou o fato de que a caridade - não devidamente tos graves. Busca-se agora apresentar o ideal da imitação de
considerada no antigo esquema moral fundamentado nas Jesus Cristo e estudar os meios para alcançar a plenitude da
obrigações - é o fruto mais apreciado da Igreja. Da mesma identificação do discípulo com o Mestre. Passa-se a falar
forma, o decreto Optatam totius, sobre a formação sacerdo- mais da grandeza da vocação cristã e de como chegar à sua
tal, propôs que todas as disciplinas teológicas passassem a perfeita realização, mais do que como não errar.
8 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
moral católica demonstrou grande estabilidade ao longo da teologia moral ao longo dos últimos séculos e determinou
história, tanto nos seus ensinamentos como na sua aplica- que houvesse um esforço de renovação nesse domínio. Ele
ção. Pode ser comparada a uma rocha que permanece fir- pediu uma apresentação da moral alimentada pela doutrina
me em meio a flutuações de pensamentos e práticas. da Escritura e dos Padres da Igreja 1; mais firmemente unida
Os cristãos, contudo, não se contentaram apenas com ao ensinamento dogmático sobre a Trindade, Cristo e os sa-
observar e transmitir regras de conduta. Desejosos de com- cramentos; e melhor fundamentada, tanto científica como
preender os ensinamentos que receberam e confrontados filosoficamente, para assegurar uma confrontação mais judi-
com as filosofias e a cultura do seu tempo, esforçaram-se ciosa com o pensamento contemporâneo (cf. Decreto Opta-
para apresentar, explicar e sistematizar a doutrina evangéli- tam totius sobre a formação sacerdotal, n. 16). Essas deter-
ca, a fim de torná-la mais compreensível para os outros ho- minações estão em harmonia com as aspirações de muitos
mens, defender a sua mensagem contra os ataques e man- cristãos que redescobriram a Bíblia e a liturgia e - mais
ter o seu vigor missionário. A teologia moral nasceu desse conscientes das suas responsabilidades no mundo - procu-
trabalho de reflexão cristã e desde então tem alimentado a ram encarar os novos problemas éticos suscitados pelo pro-
Igreja na sua pregação e catequese. gresso da ciência e da tecnologia.
Toda essa reflexão, levada a cabo como que em osmose
com a cultura de cada época, produziu numerosas e varia-
das obras, enxertadas no ensinamento moral comum sob os
auspícios do Magistério eclesial. O patrimônio cristão é
mais rico e diversificado do que se costuma pensar. Forma
Nossos planos e limites
uma espécie de memória cultural da qual todos depende-
mos, mesmo sem saber, e determina em grande medida a É nesta perspectiva, ao mesmo tempo bíblica e humana,
nossa forma de abordar os problemas morais. Assim, mes- que se insere este livro. Ele é dividido em duas partes. A
mo um estudo breve dos conceitos morais que se desenvol- primeira apresenta as fontes da moral cristã e as suas prin-
veram no seio da Igreja pode ser bastante útil, especial- cipais etapas de desenvolvimento teológico. A segunda ofe-
mente nestes tempos em que os próprios fundamentos da rece uma exposição sintética da moral católica que se esfor-
moral são questionados e muitas vezes chacoalhados, tanto ça para ser fiel às suas origens e consistente com as exigên-
por teólogos como por leigos. cias de renovação.
Um esforço de renovação (1) São chamadbs de «Padres da Igreja1> os teólogos cristãos que reúnem as
seguintes notas: {l) ortodoxia; (2) santidade; (3) reconhecimento por parte da
Igreja Católica; e (4) antiguidade. A ortodoxia de doutrina não se entende no
O Concílio Vaticano II reconheceu a existência de certas sentido de imunidade total de erros, mas como a fiel comunhão doutrinal
deficiências e limitações nos manuais usados para ensinar com a Igreja. (N. do E.)
12 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
Moral «católica»
Há mais um esclarecimento a ser dado. O assunto deste
livro é a moral tal como ensinada pela Igreja Católica até PARTE I
os nossos dias. Portanto, não trataremos diretamente da
ética protestante nem do ensinamento moral da Igreja Or-
todoxa. Todavia, damos ao termo «católico» um sentido UMA HISTÓRIA MAIS RICA
amplo. A moral católica possui um parentesco estreito,
apesar das diferenças, com a das outras confissões em razão
DO QUE SE PENSA
das suas fontes primitivas, incluídas as judaicas, e da longa
história comum. Ela pode ser, portanto, de interesse de to-
dos os cristãos e de todas as pessoas comprometidas com a
reflexão ética 2•
(2) Para se entender melhor o que se segue, é aconselhável ler o item "O pa-
pel da lei natural nos estágios da educação moral", à pág. 130. (N. do E.)
I. As fontes evangélicas
mente. Com efeito, a moral tornou-se para nós o domínio O Sermão da Montanha logo se impõe. É o primeiro
das obrigações e imperativos legais, deixando de lado a dos cinco discursos que articulam o Evangelho de Mateus.
questão da felicidade e da perfeição. Assim, separou-se no- Foi composto de maneira a ser um resumo dos ensinamen-
tavelmente da espiritualidade e da parênese, a simples exor- tos de Jesus sobre a justiça, sobre as regras morais propos-
tação. Tais divisões eram desconhecidas na Antiguidade, e tas aos seus discípulos. Trata-se da explicação do chamado
não é possível aplicá-las aos escritos do Novo Testamento à conversão: «Arrependei-vos, o Reino de Deus está próxi-
sem cair no anacronismo. No entanto, muitos intérpretes, mo» (Mt 4, 17).
teólogos e exegetas acabaram por considerar que os textos Esse discurso - que reúne num conjunto ordenado
escriturísticos que iam além do nível das obrigações estritas palavras que devem ter sido proferidas em diversas oca-
não pertenciam propriamente à moral; isso explica porque siões - é um modelo da catequese moral primitiva. Pode
geralmente atraem tão pouco interesse. Essas categorias ser chamado de «carta magna da vida cristã». O Sermão
usuais constituem um grande obstáculo intelectual no ca- goza da autoridade do próprio Senhor, expressa em fór-
minho de retorno às fontes primitivas da vida cristã. mulas categóricas: «A menos que a vossa justiça ultrapasse
Os textos evangélicos pressupõem uma outra concepção aquela dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos
da moral: a moral como resposta à questão da felicidade e Céus»; «Vós ouvistes o que foi dito [...] Eu, porém, vos
da salvação, e como descrição dos caminhos sapienciais que digo ... ».
levam à santidade e à perfeição na prática das virtudes e O texto passou por um trabalho de redação que não
dos preceitos; A partir dessa perspectiva, a moral abrange tem sido suficientemente apreciado: está composto de fra-
um domínio maior e recupera uma dimensão sapiencial e ses curtas, frequentemente dispostas de modo a formar pe-
espiritual que lhe é imprescindível. O Sermão da Monta- quenas unidades, como as bem-aventuranças. São como
nha, por exemplo, responde diretamente à questão moral condensados de doutrina, destinados tanto à transmissão
compreendida desse modo. Ele começa anunciando as oral como à meditação, e organizados num corpo de dou-
bem-aventuranças; depois, estende os caminhos da moral trina inspirada por uma sabedoria mestra. O Sermão não é
traçados nos Dez Mandamentos até o preceito «sejam per- um mosaico de diros disparatados. Certamente, não segue
feitos, como vosso Pai celestial é perfeito». a lógica da razão abstrata; conforma-se, sobretudo, aos mo-
vimentos - muitas vezes contrastantes - da inteligência
profunda do coração humano que a experiência revela.
O Sermão da Montanha Como São João Crisóstomo e Santo Agostinho entende-
ram bem e explicaram aos seus ouvintes, o Sermão é dirigi-
Percorramos rapidamente as principais passagens do do a todos, a começar pelos pobres e aflitos. Não está, por-
Novo Testamento que apresentam catequeses morais, de- tanto, reservado a uma elite espiritual, como muitas vezes
tendo-nos sobretudo em dois textos característicos. se ouvirá dizer mais tarde.
18 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS I. AS FONTES EVANGÉLICAS 19
A estrutura do Sermão da Montanha, em suas linhas amor, em comunhão com o Pai. É neste ponto central do
gerais, é relativamente simples: Sermão que São Mateus insere a oração do Pai Nosso.
1. As bem-aventuranças resgatam as promessas feitas ao 4. A última seção é mais diversificada e reúne ditos qúe
Povo escolhido desde o tempo de Abraão, as numerosas nos convidam a buscar o nosso verdadeiro tesouro no céu.
bênçãos dispersas através das Escrituras, como por exem- Somos exortados a guardar-nos das atrações da riqueza, a
plo nos primeiros versículos do Saltério. Elas concentram a ser benevolentes em nossos julgamentos e a perseverar con-
esperança dos discípulos no Reino dps Céus, paradoxal- fiantemente em nossas orações.
mente destinado aos pobres e aos perseguidos por causa de
Jesus, o que corresponde à experiência das primeiras gera- 5. A conclusão do Sermão resume o ensinamento da
ções cristãs. Os Padres da Igreja viram nas bem-aventuran- Lei na Regra de Ouro 3, como um critério prático de dis-
ças a resposta de Cristo à questão da felicidade, tão discu- cernimento; oferece-nos uma escolha entre o caminho es-
tida pelos filósofos, e apresentam Jesus como o verdadeiro treito que leva à Vida e o caminho largo que leva à perdi-
ção. Há ainda a distinção entre os falsos profetas e os ver-
Sábio.
dadeiros discípulos: estes põem em prática a Palavra e exi-
2. Depois de qualificar os discípulos como «o sal da ter- bem os frutos e a firmeza que ela produz.
ra» e «a luz do mundo», o texto passa a descrever a «justi- Ao final, o evangelista destaca a admiração da multidão
ça» da lei moral de acordo com Cristo. Essa descrição de- ante a autoridade de Jesus, que em seguida será confirmada
senvolve cin~o dos Dez Mandamentos de maneira antitéti- por uma série de curas.
ca, ou seja, por meio de contrastes: «Ouvistes o que foi
dito ... Eu, porém, vos digo ... » A Justiça é, assim, colocada As interpretações modernas do Sermão da Montanha li-
ao nível do coração humano, na raiz dos seus atos. É aí daram principalmente com o problema da possibilidade de
que o amor a Deus e ao próximo é formado e atinge seu o levar à prática. Muitas vezes, acabaram por aumentar a
cume no perdão dos inimigos, imitando a misericórdia e a sua dificuldade pela tendência de projetar nesse discurso a
perfeição do Pai celestial. ideia de que Lei é um código de obrigações. Na realidade,
o Sermão descreve os caminhos para o Reino dos Céus ao
3. Em seguida, há a retificação dos três principais atos qual o Espírito Santo- quer conduzir os discípulos por meio
da vida religiosa: a esmola (forma típica da assistência mú- da fé operante pela caridade em Jesus. Assim, o Sermão da
tua), a oração e o jejum (principal forma de ascese). Em Montanha integra-se num Evangelho que anuncia «Jesus
vez de praticar esses atos para ser visto pelos homens, o
cristão deve praticá-los pelo amor do Pai, que vê o que se (3) A Regra de Ouro está expressada em Mt 7, 12: "Tudo o que quereis que
passa em segredo. Retornamos mais uma vez ao nível das os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Nisso se resumem a Lei e os profe-
intenções do coração, que nos colocam, pela fé e pelo tas". (N. do E.)
20 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS I. AS FONTES EVANGÉLICAS 21
Cristo, o Filho de Deus» e nos chama a crer nEle. Impos- do ensinamento da primeira parte da epístola, que trata da
sível para os que contam apenas com as próprias forças, o justificação pela fé, da vida segundo o Espírito e do amor a
Sermão da Montanha mostra-se acessível aos humildes que Cristo. A paraclese explica como são chamados a viver con-
sabem acolher a graça e o amor. Esta é a interpretação dos cretamente aqueles que acreditam em Jesus e são animados
Padres da Igreja. pelo seu Espírito. Essa progressão é natural e não causaria
dificuldades se, de novo, certas categorias teológicas poste-
riores não tivessem intervindo para cortar o fio condutor
A «paraclese» na Carta aos Romanos que une as duas partes da Carta. Entre os católicos, essa se-
paração expressou-se na divisão entre teologia dogmática, à
Encontramos um segundo exemplo de ensinamento qual pertenceriam os ensinamentos sobre a fé, e teologia
moral na segunda parte da Carta aos Romanos, nos capítu- moral, à qual a segunda parte da Carta foi relegada e sub-
los 12 a 15. É um modelo de catequese apostólica. O esti- sequentemente reduzida a uma forma de exortação espiri-
lo é diferente daquele do Sermão: o Sermão goza da auto- tual. Entre os protestantes, a oposição ocorreu entre a fé,
ridade do próprio Senhor, cujas palavras são relatadas em que justifica por si só (início da Carta) e as obras, conjun-
fórmulas inimitáveis; a Carta aos Romanos apresenta a tamente com as virtudes (segunda parte da Carta).
doutrina de um apóstolo que transmite o que ele recebeu. Na nossa visão, não é possível retornar às fontes apostó-
A passagem começa com uma expressão significativa que licas sem descobrir como restabelecer a conexão entre o ato
reaparece regularmente em São Paulo: «Exorto-vos, portan- de fé e a vida moral e reconstituir, assim, a unidade inte-
to, irmãos ... ». gral da Carta aos Romanos.
O ensinamento moral dos apóstolos faz-se sob a forma A paraclese dos capítulos 12 a 15 possui ainda uma es-
de uma exortação entre irmãos, em nome do Senhor; dEle trutura própria e esquematiza para nós as linhas dominan-
recebe a sua força. Chamaremos a isso de «paraclese», por tes da moral evangélica, encerrando-se com uma resposta a
causa da palavra grega que Paulo emprega: parakaleô («eu certos problemas específicos. Vejamos as partes dessa expo-
exorto»), da qual vem o nosso «Paráclito» para designar o sição:
Espírito Santo (Jo 14, 26). Preferimos essa expressão à ha-
bitual «parênese», porque «parênese» evoca uma simples re- 1. A vida cristã é um verdadeiro culto. É uma liturgia
comendação no campo espiritual, sem qualquer impacto na qual oferecemos a Deus, como sacrifício vivo, os nossos
direto na moral. Esse grande texto aos Romanos foi segui- corpos e nossas pessoas, discernindo o que é bom, o que
damente comentado pelos Padres e pelos primeiros escolás- lhe agrada. O termo grego para «corpo» («sôma») emprega-
ticos. No entanto, como o Sermão da Montanha, foi mui- do aqui evoca o corpo de Cristo oferecido na Eucaristia e
to negligenciado nos anos que se seguiram. o corpo que forma a Igreja (12, 1-2). Podemos, portanto,
A paraclese da Carta aos Romanos depende diretamente falar de uma dimensão litúrgica da moral cristã.
22 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS !. AS FONTES EVANGÉLICAS 23
2. Conformados pela fé, os ensinamentos morais colo- Cristo» e a manter-se vigilante, sob a luz dEle, no combate
cam-se no contexto da participação dos fiéis no corpo de contra as obras das trevas (vv. 11-14).
Cristo como membros dotados de uma multiplicidade de
dons e ministérios exercidos para o bem de todos (vv. 3- 7. O apóstolo, em seguida, examina longamente (capí-
-8). É a dimensão eclesial da moral apostólica, que retor- tulos 14 a 15,6) o problema delicado das divergências en-
nará ao primeiro plano na Primeira Epístola aos Coríntios tre os fiéis com relação à dieta e aos dias da semana. A sua
(cap. 12). resposta é um modelo de discernimento cristão no trata-
mento de casos de consciência, algo que também encontra-
3. Essa unidade e essa disponibilidade na Igreja são mos na Primeira Epístola aos Coríntios. São Paulo de-
obra da caridade. Paulo descreve a caridade por meio de monstra com grande refinamento como dar prioridade à
uma série de características que formam uma passagem tí- caridade fraterna na discussão em casos concretos.
pica, composta de notas breves e bem escolhidas que, em
grego, têm assonância e ritmo que facilitam a memoriza- 8. A conclusão retoma os grandes temas da carta inteira
ção. Com essas pinceladas sucessivas, São Paulo pinta-nos a oferecendo o exemplo de Cristo. Cristo fez-se servo de to-
face do cristão (v. 9-13). dos - judeus e pagãos - para que todos vivam como ir-
mãos e irmãs na fé pela misericórdia de Deus e o poder do
4. O quadro completa-se com uma passagem cheia de Espírito Santo.
energia que ·evoca o Sermão da Montanha: o convite a
abençoar os próprios perseguidores, a procurar o que é hu-
milde e a vencer o mal com o bem. Essa é a síntese do Outros textos de ensino moral
ágape evangélico (vv. 14-21).
Depois desses exemplos típicos da catequese moral dos
5. Depois dessa parte mais geral, São Paulo explica qual tempos apostólicos, vamos mencionar brevemente uma sé-
deve ser a atitude dos cristãos perante a autoridade civil, rie de outros textos, quase sempre igualmente ricos, na or-
que àquela época era pagã. Deve-se oferecer à autoridade dem em que aparecem na nossa Bíblia.
civil uma obediência franca e ativa, procedente da própria Primeira Epistola aos Coríntios. Após examinar uma série
submissão a Deus e do amor ao próximo, que o apóstolo de «casos de consciência» sobre o incesto, o recurso a tri-
vê como um resumo de toda a Lei (Rom 13, 1-10). bunais pagãos, fornicação e assim por diante - resolvidos
por meio de argumentação racional e principalmente pela
6. O ensinamento moral paulino possui também uma referência a Cristo (cap. 5-11) -, Paulo apresenta nos capí-
dimensão escatológica: sustentado pela esperança da futura tulos 12 e 13 a hierarquia dos dons do espírito. O princi-
vinda do Senhor, o cristão é convidado a «revestir-se de pal dentre esses dons é a caridade, que une o corpo de
24 SERVAJS-THÉODORE PINCKAERS I. AS FONTES EVANGÉLICAS 25
A primeira carta de São Pedro, que é uma verdadeira verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso
joia de paraclese moral, cujo ensinamento é muitas vezes ou de qualquer modo mereça louvoD> (Fil 4, 8). Trata-se
próximo ao de Paulo e ao do Sermão da Montanha. de um convite para receber com discernimento o que quer
A primeira Epístola de São joão, com seus temas gran- que seja justo e verdadeiro no ensinamento dos filósofos,
diosos e tão característicos: a luz do Verbo e as trevas; o mesmo os pagãos; o próprio Paulo não hesita em tomar,
pecado e o mundo, a caridade e a fé. algumas vezes, empréstimos do estoicismo popular, e ofere-
cer reflexões que apelam ao senso comum humano no jul-
gamento de casos de consciência.
Dois eixos da doutrina moral de São Paulo Essa base dupla - apoiada sobre a fé e a razão, a graça e
a natureza - voltará a aparecer muitas vezes no ensinamen-
Para concluir, voltemo-nos aos dois maiores referenciais to das gerações posteriores. A ênfase, contudo, varia gran-
do ensinamento moral de São Paulo, que nortearão, mais demente ao longo dos períodos da história da Igreja.
Por fim, vale notar uma regra fundamental de inter-
tarde, a teologia.
pretação para todos esses textos evangélicos: para entender
integralmente os seus ensinamentos morais, é necessário
1. Em face à moral judaica (fundamentada no apelo à
colocá-los em prática num espírito de fé. Essa é a condi-
justiça) e à moral grega (que alegava fundamentar-se na sa-
ção da experiência interior que revela a sua verdade, a sua
bedoria), e diante da insuficiência de ambas, Paulo defende
realidade, que pode ser comparada a uma rocha sobre a
uma moral procedente de uma nova fonte: a pessoa de Je-
qual se pode construir solidamente (cf. Mt 7, 24-27). Não
sus, que compartilha com seus discípulos a justiça e sabe-
se trata de uma mera coleção de belas ideias, mas da Pala-
doria de Deus através da fé e da caridade derramadas em
vra que fundamenta a existência e dá vida àqueles que dó-
seus corações por ação do Espírito Santo. O agir cristão,
cil e ativamente a acolhem.
portanto, é igualmente uma vida «em Cristo» e uma vida
«segundo o Espírito». A trilogia da fé, esperança e caridade
dirige os outros dons e virtudes.
balhos de sua iniciativa para explicar o ensinamento moral inclusão da fé e da caridade modifica a perspectiva clássica
cristão aos pagãos, como, por exemplo, O pedagogo, de e transforma mesmo a concepção de virtude: esta passa a
Clemente de Alexandria, ou o tratado Sobre a moral da ser um dom de Deus, uma graça, muito mais do que uma
Igreja Católica, de Santo Agostinho. Existem, ainda, obras obra do esforço humano desassistido.
que abordam questões morais particulares, tais como o
casamento e a virgindade, a mentira, a paciência, o jejum 3. Por fim, o ensinamento moral dos Padres é insepará-
e assim por diante. O doutor de Hipona escreveu traba- vel das grandes correntes espirituais que animavam a Igreja
lhos assim, mas também outros o fizeram, como T ertulia- dos seus tempos e que eles representavam fielmente: a espi-
no e São Cipriano. ritualidade dos mártires, que dominou os primeiros três sé-
culos da Igreja e tocou a vida dos cristãos de todos os es-
2. Uma segunda característica do ensinamento dos Pa- tratos sociais; o ideal da virgindade; a espiritualidade mo-
dres é o uso judicioso das contribuições da cultura e filoso- nástica; a busca da sabedoria que vem do Espírito Santo.
fia greco-romanas. Uma vez estabelecida a primazia da fé e Esses movimentos espirituais preservaram na Igreja inteira
do mistério de Cristo apresentado pela Escritura, os Padres o fermento da vida evangélica. Constituem a melhor parte
não hesitaram em apropriar-se do que encontravam de ver- do ensinamento moral dos Padres, que jamais pensaram
dadeiro e bom no pensamento do seu tempo. Usaram os em separar a espiritualidade da moral. Para eles, todos os
estoicos, como Sêneca e Cícero; os platônicos, como Ploti- cristãos foram chamados para «viver segundo o Espírito»,
no, no caso de Santo Agostinho; ou, como São João Da- cada um de acordo com a graça que recebeu e a diversida-
masceno, voltaram-se ao pensamento aristotélico. Assim, o de das vocações.
pensamento e cultura pagãos foram colocados a serviço do Santo Agostinho nos dá dois exemplos desse esforço de
Evangelho, e dessa colaboração entre fé e razão nascerá a apresentar a moral cristã. No seu opúsculo Sobre a moral
teologia. da Igreja Católica, que responde aos maniqueus, o Bispo de
Os Padres exploraram especialmente os ensinamentos Hipona situa a questão moral num plano racional:
morais pagãos sobre as virtudes, os vícios e a contempla-
ção, bem como adotaram as quatro virtudes cardeais clás- Como, então, de acordo com a razão, os seres hu-
sicas - prudência, justiça, fortaleza e temperança, já men- manos deveriam viver? Certamente, todos querem viver
cionadas no Livro da Sabedoria (8, 7) -, que agrupam ao felizes. E não há ser humano que não concordará com
seu redor numerosas virtudes anexas. Essa assimilação foi essa afirmação quase antes das palavras saírem-me da
facilitada pelo fato de os Padres, como os filósofos, consi- boca (3, 4).
derarem a moral como uma busca da felicidade e enxerga-
rem na aquisição das virtudes a melhor resposta a essa A primeira questão, portanto, é determinar qual é o
questão primordial para todos os homens. No entanto, a bem que pode tornar o homem feliz. Agostinho mostra
32 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS II. O ENSINAMENTO MORAL DOS PADRES DA IGREJA 33
amorosa de Deus. Depois de estabelecer o fim mais eleva- de temor; a caridade e o correspondente dom da sabedoria.
do da vida humana nesses termos, São Tomás analisa o ato Em seguida, aparecem as virtudes cardeais ou morais: a
voluntdrio na sua estrutura e na sua qualidade moral. De- prudência, aperfeiçoada pelo dom do conselho; a justiça e
pois, acrescenta um estudo memorável - e tantas vezes ne- suas muitas virtudes anexas, dentre as quais a virtude da
gligenciado - sobre as paixões e as emoções. Os nossos atos religião, e o correspondente dom da piedade; a fortaleza e
têm dois tipos de princípios, causas ou fontes. Alguns prin- o dom homônimo correspondente; a temperança, com a
cípios são interiores ou pessoais: são as virtudes ou qualida- castidade como uma das suas virtudes anexas e a interven- ·
des dinâmicas do espírito e do coração que são levadas à ção do dom do temor.
perfeição pelos dons do Espírito Santo, juntamente com as Essa teologia moral, dirigida a todas as pessoas, culmina
Bem-aventuranças e os frutos do Espírito Santo. Também numa seção especial dedicada aos carismas, principalmente
possuem os seus contrários: os vícios e pecados. à profecia, e aos estados de vida especiais na Igreja, como o
Outros princípios de ação têm origem exterior a nós: episcopado e a vida religiosa.
primeiro, há a lei, que é o trabalho da sabedoria dotado de Em São Tomás, encontramos claramente uma moral da
uma força impulsora, que nos leva a agir. A lei é multiface- felicidade, das virtudes e dos dons. Ela reúne de maneira
tada: a lei eterna de Deus é inscrita no coração da pessoa memorável a herança cristã (baseada nos Evangelhos e de-
humana como lei natural, que as leis humanas aplicam e senvolvida pelos Padres da Igreja) e a sabedoria humana
tornam mais precisas. A lei também é expressa por revela- (sendo Aristóteles considerado a maior testemunha dessa
ção na Lei Antiga, centrada nos Dez Mandamentos, e na sabedoria).
Lei Nova ou Evangélica, que São Tomás apresenta como O ponto de contato encontra-se no desejo de felicidade,
uma lei interior: é a própria graça do Espírito Santo traba- na aspiração pela verdade e bondade colocada por Deus no
lhando no coração humano através da fé em Jesus Cristo e coração da nossa natureza espiritual para levá-la a Deus e
da caridade. Essa graça, revelada no Evangelho e recebida prepará-la para receber a luz da revelação e as promessas da
nos sacramentos, torna-se um segundo princípio de ação, graça. Esse é o tema do desejo natural de ver a Deus, noção
externo na sua origem, mas muito íntimo pela sua penetra- central no pensamento do Doutor Angélico e posterior-
ção em nós. mente muito discutida. Seguindo a experiência cristã, São
A segunda, e mais particular, parte da teologia moral Tomás mostra quanto o desejo de Deus reside secretamente
organiza-se em torno das sete virtudes principais. Cada na consciência de cada pessoa. Esse desejo está na origem
uma delas é analisada em conjunto com o pecado oposto, da vida moral e não pode ser satisfeito por bem algum, mas
os dons correspondentes do Espírito Santo e dos preceitos somente pelo. próprio Deus. Desse modo, a natureza e a
dos Dez Mandamentos. Em primeiro lugar, vêm as virtu- graça são pré-dimensionadas uma para a outra por uma
des teologais ou divinas: a ft e os correspondentes dons de harmonia fundacional composta pelas duas notas de bonda-
inteligência e ciência; a esperança e o dom correspondente de e verdade que formam o nosso ser espiritual.
42 SERVAIS-THfODORE PINCKAERS III. O PERfODO CLÁSSICO DA TEOLOGIA OCIDENTAL 43
O ensinamento de Tomás de Aquino, portanto, reúne João Duns Scoto (c. 1264-1308), escocês. O «Doutor Sutil». Ad-
de forma primorosa o poder da razão e a iluminação da ex- versário da teologia de São Tomás de Aquino. Proclamou a supre-
macia da vontade. Enterrado em Colônia.
periência contemplativa no conhecimento da fé. O seu tra-
Guilherme de Ockham (c. 1295-1349), inglês. O «Iniciador Ve-
balho continua justamente a ser, mesmo em nosso tempo, nerável (ou Glorioso)». Adversário de João XXII, que o convidou
um modelo clássico e um ponto de referência para a teolo- para Avignon como resultado dos ensinamentos que oferecia em
gia, e mesmo para a filosofia. Desde o século catorze, po- Oxford. Ele se refugiou na Baviera em 1328. É o iniciador do no-
minalismo, proclamando uma liberdade de indiferença e uma mo-
rém, o edifício de teologia moral que Tomás de Aquino ral de obrigação.
construiu tão cuidadosamente foi revirado e substituído Escola Dominicana
por uma concepção profundamente diferente, que ainda Santo Alberto Magno (1193-1280), alemão. O «Doutor Univer-
nos influencia fortemente. sal». Um dos que introduziu os trabalhos de Aristóteles no currícu-
lo universitário. Compôs trabalhos em todos os domínios do co-
nhecimento humano: em teologia, filosofia e ciências naturais. En-
terrado em Colônia.
Principais teólogos escolásticos São Tomás de Aquino (1225-1274), napolitano. O «Doutor An-
gélico». O principal representante da teologia escolástica. Autor da
Pedro Abelardo (1079-1142), francês. Iniciador do método esco- Suma Teológica, Suma contra os gentios, de Comentdrios sobre o
lástico, causador da extensão para o Quartier Latin da escola da Evangelho de João, das Cartas de São Paulo, os trabalhos de Aris-
Catedral de Notre Dame, que se tornará a Universidade de Paris. tóteles, de numerosas Questões disputadas e de numerosos trabalhos
Pedro Lombardo (c. 1100-1160). O «Mestre das Sentenças». Au- menores. Canonizado em Avignon por João XXII em 1323. Enter-
tor e compilador das «Sentenças dos Padres», uma síntese de teolo- rado em Toulouse.
gia, adotada como livro-texto pelas universidades e objeto de. co-
Escola Tomista
mentários por todos os candidatos ao grau de mestre em teologia.
Uma escola formada sobretudo pelos comentadores dos trabalhos
Mestres seculares de São Tomás, dentre os quais:
Felipe Chanceler (c. 1160-1230), francês. Chanceler da Universi- João Capreolo (d. 1444), francês. O «Príncipe dos Tomistas». Au-
dade de Paris, autor da Suma sobre o Bem. tor de um comentário das Sentenças de Pedro Lombarda.
Guílherme de Auxerre (d. 1231), francês. Autor da Summa Aurea. Silvestre de Ferrara (1474-1526). Ensinou em Bolonha. Autor de
um comentário sobre a Suma contra os gentios.
Esco/,a Franciscana
Tomás de Vio (Caetano) (1474-1526). Ensinou na Itália. Princi-
Alexandre de Hales (1180-1245), inglês. O «Doutor Irrefutável». pal comentador da Suma Teológica de São Tomás. Superior da or-
Autor, com um grupo de franciscanos, da primeira Suma de teolo- dem dominicana e cardeal. Um dos interlocutores romanos de Lu-
gia. Apresenta uma moral baseada mais nos mandamentos do que tero.
nas virtudes.
São Boaventura (1221-1274). Toscano. O «Douror Seráfico». Au-
Paralelamente,- houve a chamada Escola mística renana, com Meis-
ter Eckhart (1260-1327), Henrique Suso (c. 1294-1366) e João
tor do Itinerário da Mente para Deus. ministro geral e promotor da
Tauler (e. 1300-1361).
Ordem de São Francisco.
IV. O período moderno:
Os manuais de teologia moral
As morais da obrigação
nas morais do dever e do imperativo moral, para as quais o mento das virtudes e dos dons. Além disso, inseriu-se o
filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) fornecerá o tratado sobre a consciência, que irá, daí por diante, ocupar
modelo filosófico. um lugar central. Por último, o tratado sobre a graça foi
Desde o final da Idade Média, essa concepção de mo- removido do domínio da moral e colocado na teologia
ral, juntamente com o nominalismo, espalhou-se pelas uni- dogmática.
versidades. Foi parte do que ficou conhecido como «via Quando se examina o núcleo que rege a estrutura dessa
moderna»: um movimento geralmente aceito pelas diversas moral, pode-se distinguir cinco elementos essenciais, análo-
escolas de teologia a despeito das diferenças existentes entre gos às partes de um átomo.
elas. No século XVII, a moral da obrigação também inspi- A moral da obrigação move-se entre dois polos, um po-
rou os manuais de teologia moral destinados, após o Con- sitivo, o outro negativo: diante da liberdade - geradora de
cílio de Trento, ao uso nos seminários, em especial para atos, compreendida como uma liberdade de indiferença 6 - ,
preparar sacerdotes para a celebração pastoral do sacramen- está a lei que a limita por meio da obrigação. O advento
to da penitência. Os jesuítas foram promotores pioneiros da lei é o que cria a moralidade propriamente dita. A co-
dos manuais, e o protótipo do gênero foi um trabalho feito municação entre esses dois polos é estabelecida por inter-
pelo jesuíta espanhol Juan Azor (1536-1603) intitulado médio da consciência, supostamente neutra, que funciona
Instituições morais. Os autores destes manuais claramente como um juiz que aplica a lei aos atos a serem praticados
visavam seguir a Tomás de Aquino. Porém - animados ou já realizados. O papel da consciência é essencial porque
pelo desejo dé oferecer um ensinamento moral simplifica- ela capacita o sujeito a mover-se desde a universalidade da
do, acessível para os sacerdotes e o povo -, desenvolveram lei à singularidade dos atos. Esses atos são considerados no
uma nova maneira de apresentar a moral que se reflete no contexto das suas circunstâncias particulares e vistos como
formato geral que todos os manualistas, com algumas va- casos de consciência. Daí deriva o termo «casuística»: o es-
riações, seguem. tudo de casos.
A moral passa a ser dividida em duas partes: a moral Por último, os pecados, que, em certa medida, torna-
fundamental, que trata dos princípios elementares, e teolo- ram-se o domínio privilegiado da teologia moral, tanto
gia moral especial, que considera em detalhe as leis que de- porque constituem a matéria do sacramento da Penitência,
terminam o que é permitido ou proibido e que governam quanto porque representam mais diretamente a preocupa-
a resolução dos casos de consciência. ção da lei em sua ação restritiva. No núcleo dessa concep-
A moral fundamental contém quatro tratados: a lei, os
atos humanos, a consciência e os pecados. Ao comparar (6) A liberdade de indiferença, que será tratada com mais vagar na segunda
metade desta obra, supõe que o homem não possui qualquer inclinação natu-
essa estrutura com a da Suma Teol6gica de São Tomás, no- r1, nem m~mo ao bem; encontra-se, assim, num estado de plena indiferença
tamos imediatamente o desaparecimento do tratado sobre a diante da lei ou do mandato divino. Em consequência, agir bem ou agir mal
felicidade e o fim último, bem como a ausência do trata- resume-se a seguir ou não a lei. (N. do E.)
IV. O PERfODO MODERNO, OS MANUAIS DE TEOLOGIA MORAL 51
SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
50
ção da moralidade, monopolizando t~da a sua energia, es- rio de julgamento e condicionam as principais subdivisões
da matéria.
tão a ideia e o sentimento de obrzgaçao.
Tudo pode resumir-se num esquema que parte da lei:
A moral especial
vontade livre
/t obrigação +
◄ ---/-;7 lei
os Dez Mandamentos de Deus, completados pela adição
dos cinco mandamentos da Igreja'. Esse conjunto, normal-
mente, era acrescido de uma breve apresentação das obriga-
ções que cada virtude teologal impõe, seguida de uma aná-
~ atos humanos
/ lise bem mais longa das obrigações relacionadas à adminis-
tração dos sacramentos, especialmente a Penitência e a Eu-
caristia. Ao final, dois capítulos em conclusão, um sobre as
(caso de consciência) censuras e penalidades eclesiásticas, e outro sobre as obriga-
pecado ções próprias àqueles que estão na vida religiosa.
Muitos moralistas costumavam ilustrar os seus ensina-
mentos com uma coleção de casos de consciência especial-
Como origem da moralidade, a lei reg~ sobre todo o mente difíceis, que permitiriam ao autor aplicar a sua pers-
domínio da moral. É, portanto, compreendida como o de- picácia. Esses casos podiam aparecer ao final de cada seção
creto de uma vontade legislativa, e não mais como obra da do livro ou em um volume separado.
sabedoria. A moralidade reduz-se a uma interação v~luntá-
ria entre duas liberdades. A razão, agora, não tera outra
função na vida moral senão expressar a lei, o que confere
A questão do probabilismo
uma singular importância ao texto que a promulga. O es- A questão que absorveu a atenção dos moralistas duran-
tudo da lei, tão rico e variado em São Tomás, ~eduz o seu te o século de Descartes (1596-1650) foi a questão da dú-
foco, nos manuais, aos Dez Mandamentos, vistos_ como
uma expressão da lei natural. A lei natural, escrita p~r
(7) São eles: 1. Participar da Missa aos domingos e outras festas de guarda, fi-
Deus na consciência de cada pessoa, de acordo com o ensi- cando livre de trabalhos e de atividades que pudessem impedir a santificação
namento de São Paulo na Epístola aos Romanos (cf: 1.21; desses dias; 2. Confessar os próprios pecados) recebendo o sacramento da Re-
conciliação pelo menos uma vez ao ano; 3. Receber o sacramento da Eucaris-
2 26-27) torna-se a base sólida sobre a qual a teologia mo- tia pelo menos pela Páscoa; 4.Abster-se de comer carne e observar o jejum nos
r~ é co~struída. Os Dez Mandamentos, ente~d.i~os c~m~ dias estabelecidos pela Igreja; 5. Atender às necessidades materiais da Igreja, cada
qual segundo as próprias possibilidades. (N. do E.)
um código de obrigações éticas, fornecem o cnteno pnma-
52 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS N. O PERfODO MODERNO, OS MANUAIS DE TEOLOGIA MORAL 53
1
1
&
SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS N. O PERÍODO MODERNO, OS MANUAIS DE TEOLOGIA MORAL 55
54
Século XX
Heribert Jane, capuchinho alemão (1885-1967). Manual
de teologia moral católica. Muito empregado e fortemente O período pós-conciliar causou muita turbulência e
jurídico. questionamento acerca das doutrinas tradicionais num
Benoí:t-Henri Merkelbach, dominicano belga (1871-1942). grande número de áreas, especialmente na moral. Essa con-
Suma de teologia moral, 3 volumes. Um trabalho centrado testação trouxe à baila uma questão fundamental: qual é a
nas virtudes, sob a perspectiva de São Tomás. contribuição da fé e do cristianismo para a moral? Dito de
Dominic Prümmer, dominicano alemão (1866-1931). outra maneira, existe uma moral especificamente cristã?
Manual de teologia moral, 3 volumes. Adota a ordem das No passado, tal questão teria parecido insólita, senão es-
virtudes. candalosa, porque o ensino moral católico parecia ser, mes-
Arthur Vermeersch, jesuíta belga (1898-1936). Princípios mo aos olhos dos não-crentes, a parte mais sólida e educa-
de teologia moral. cionalmente útil dos ensinamentos da Igreja. Além disso,
Jean-Benoí:t Vittrant (1892-1942). Teologia moral. Ainda as pessoas em geral não davam muito crédito às morais se-
em uso em alguns seminários. Prefere a ordem das vir- culares baseadas apenas na razão pura. O Deus da Revela-
ção e a autoridade da Igreja pareciam ser necessários a
tudes.
qualquer esforço de dar fundamentos firmes às regras da
Destinados à educação dos clérigos, os manuais de moral eram vida moral.
geralmente escritos em latim. O Concílio Vaticano II introduziu mudanças importan-
tes nesse âmbito. Primeiro, deu aos católicos novo acesso,
60 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTÃ 61
Vista na sua inteireza, a questão da ética cristã tem duas tornos da outra. De rodo modo, embora rudimentar, o
facetas. Há, em primeiro lugar, uma dimensão diretamente processo que empregaram tinha a vantagem de ser simples
cristã, decorrente da relação mais intensa que agora existe e funcional.
entre a ética e a Escritura, entre a ética e os Evangelhos. Por fim, precisamos registrar um evento que teve um
Depois, há uma dimensão humana decorrente da nova re- papel decisivo nos debates subsequentes entre os moralis-
lação que existe entre a ética cristã, a filosofia e as ciências. tas: a publicação, por Paulo VI, em 25 de julho de 1968,
É uma relação existente no nível da razão, e é precisamente da encíclica Humanae vitae e a posição que ela adotou
nesse nível que a tradição colocou a lei natural. contra o uso de métodos artificiais de contracepção. Essa
A questão foi introduzida na Igreja pelas correntes de decisão sobre um problema particular provocou reações
renovação - nos estudos bíblicos, na patrística, na liturgia e cada vez maiores, até o ponto de colocar em questão os
na espiritualidade - que prepararam o Concílio Vaticano II próprios princípios que fundamentam a moral católica tra-
e foram subsequentemente confirmadas por ele. Ainda as- dicional.
sim, o problema foi primariamente colocado no nível da
dimensão racional da ética, algo que a tradição escolástica,
logo após o Concílio de Tremo, já havia enfatizado forte- Existe uma moral cristã? Uma resposta
mente.
Podemos perguntar-nos: urna vez que a moral cristã, Será suficiente recordar urna resposta a essa questão que
como apresemàda nos manuais de teologia, é constituída recebeu muita atenção por parte dos moralistas. É a que
na maior parte por uma série de mandamentos ou normas deu o teólogo Josef Fuchs no seu livro Existe uma moral
que em princípio são acessíveis à razão humana, qual é a cristã? (Edições Paulinas, São Paulo, 1972), uma obra que
contribuição específica da revelação divina a ela? Ou, de tem o mérito de ter em conta todos os dados do problema.
outra maneira: contém o Novo Testamento normas morais Segundo esse autor, devem-se distinguir dois níveis ou par-
que não são encontradas em nenhum outro lugar, nem no tes na moral católica. Em primeiro lugar, a moral católica
Antigo T estamemo, nem em outras religiões, nem no ensi- ensina atitudes gerais que envolvem toda a pessoa, como a
namento dos filósofos? fé, o amor, a imitação de Cristo, e a aceitação da salvação.
Com essa pergunta, os estudiosos procuravam pelo Empregando uma linguagem técnica que evoca Aristóteles
substrato cristão da moral, mas corriam o risco de pouco e Kant, Fuchs chama este nível de «nível transcendental».
encontrar por servirem-se de um método que cortava o A Escritura exprime-se sobre essas atitudes com grande fre-
Evangelho em pedaços. Seria melhor comparar a doutrina quência e claridade. Claramente, neste nível, o ensino mo-
cristã em sua totalidade com outras totalidades, como a ral da Igreja é especificamente cristão.
moral judaica, a grega ou a filosófica. Estaríamos, então, Mas a teologia moral católica também leva em conta as
em posição de comparar os contornos de uma com os con- ações que dizem respeito a áreas limitadas, como a justiça,
64 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTÃ 65
a castidade, o casamento, a vida social, a temperança... Os mana e a cristã no seio da moral católica; em certo sentido,
atos concretos e os casos de consciência podem enqua- divide-a em duas. Como resultado, torna-se difícil distin-
drar-se em diferentes categorias, cujo julgamento é prima- guir qual contribuição o cristianismo fez para a moral no
riamente uma questão racional, porque as diretivas bíblicas nível categórico, no domínio das normas e dos problemas
nessas áreas são mais raras e menos claras. Esse nível é cha- concretos em que o debate moral concentra-se de fato. A
mado de «nível categórico». Fuchs argumenta que quando impressão é que essas questões podem - e até devem - ser
se considera a ética cristã desta perspectiva, vendo-a como tratadas apenas no nível dos valores humanos e dos argu-
um ensinamento que propõe valores humanos universais, mentos racionais. Assim, o cristianismo contribui mera-
então ela é essencialmente uma ética humanística e não es- mente com uma inspiração especial, um ambiente favorável
pecificamente cristã, embora o contexto que a circunda seja ou um contexto que põe os problemas éticos numa moldu-
cristão. ra religiosa; contudo, permanecerá sempre exterior aos jul-
De acordo com esse modo de pensar, a resposta à nos- gamentos morais e à margem da ética.
sa questão tem, portanto, nuances. Existe uma moral cris-
tã? Quando se considera a moral católica da perspectiva
das atitudes transcendentais gerais, a resposta é positiva.
Mas, por outro lado, sob a perspectiva do comportamento A demanda pela autonomia da moral
categórico, a resposta é negativa; a moral cristã, do ponto
de vista do seu conteúdo material, é apenas uma ética hu- O problema da relação entre as dimensões cristã e hu-
mana. mana da moral católica tornou-se mais pronunciado por
Essa solução habilidosa tem vantagens e inconvenientes. conta da «abertura ao mundo» e ao pensamento moderno
Na linha do humanismo renascentista - que influenciou tal como levada à prática no pós-concílio. Destacaremos
profundamente o ensinamento católico - essa resposta en- dois pontos nesse tema particularmente importantes para a
fatiza a dimensão humana e o alcance universal da moral, moral.
uma característica particularmente apreciada no mundo de A distinção radical feita por Kant entre as morais hete-
hoje em que povos e civilizações estão entrando em conta- rônomas (que põem a fonte da lei numa vontade exterior
to como jamais antes. Ela faz aparecer na moral católica o ao homem) e as autônomas (que fazem o imperativo da lei
denominador comum da razão e das normas para abordar aflorar da própria razão humana) espalhou-se entre os mo-
casos de consciência, assim como os novos problemas com ralistas católicos, notadamente os germânicos, o que deu
os quais nos confrontamos tanto no nível individual como margem a uma demanda crescente pela autonomia da mo-
no legislativo. ral, pela separação entre a moral e o cristianismo. Mais
Ainda assim, a distinção que essa resposta propõe tem o precisamente, essa demanda concentrou-se, no período que
defeito de fomentar uma separação entre a dimensão hu- se seguiu à publicação da Humanae vitae, na questão da le-
66 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTÃ 67
gitimidade das intervenções do Magistério e da sua autori- plicitamente a questão de Deus, e portanto da fé e do so-
dade no domínio da moral. brenatural. Por causa disso, de acordo com a sua vocação, a
Consciente da sua missão de transmitir e resguardar a Igreja tem um importante papel a desempenhar nas ativi-
mensagem do Evangelho no campo da fé e da moral, o dades que envolvem os cristãos enquanto humanos e en-
Magistério da Igreja reclamou para si o poder de pronun- quanto crentes.
ciar-se com autoridade não apenas sobre o conteúdo da re- Vemos, portanto, que a afirmação de que não existe
velação cristã, mas também sobre questões morais que esti- uma moral especificamente cristã tem implicações precisas.
vessem arraigadas na lei natural e, assim, fossem pertencen- Se a demanda pela autonomia da moral leva-nos a restrin-
tes ao campo da razão. Essa reivindicação fundou-se na co- gir apenas à razão a tarefa de resolver problemas morais, a
nexão próxima e necessária entre a mensagem do Evange- Igreja e a própria fé não teriam muito o que fazer; ambas
lho e os princípios da lei natural. Também se baseia no re- não representariam senão uma opinião dentre outras, sem-
conhecimento de que a razão humana frequentemente é pre vistas com suspeição e, ainda, como autoritárias. O
obscurecida tanto pela fraqueza como pelo pecado, de «ambiente cristão» da cultura faria pouca diferença para
modo que precisa ser reforçada. mudar essa realidade.
De fato, a lei natural, como expressa nos Dez Manda-
mentos, sempre foi uma das principais bases do ensinamen-
to moral da Igreja. Noutras palavras, a Igreja não crê que O abandono da lei natural à luz
possa negligenciar nada que seja humano, nada que assegu- da filosofia e da ciência
re a dignidade da pessoa humana. O Papa Paulo VI chegou
a afirmar que a Igreja é «perita em humanidade». Esse vasto debate teve mais uma consequência. Uma
O debate é importante, ao mesmo tempo concreto e ge- vez que os teólogos morais, depois do Concílio, voltaram a
ral. Vemos nele o crescimento da separação que criticamos prestar atenção ao caráter racional da sua disciplina, po-
entre o transcendental e o categórico. É possível, em nome der-se-ia esperar que conservassem a doutrina da lei natu-
da autonomia da moral, negar à Igreja e ao seu Magistério ral, como uma pedra angular, a fim de aproveitar o que ela
o direito de intervir com autoridade especial nas discussões oferecia de sólido na construção do edifício moral. Na rea-
sobre os problemas éticos contemporâneos? Trata-se de lidade, porém, uma abertura acrítica ao pensamento mo-
uma proposta inadmissível: embora se possa, em teoria e derno, aliada a uma reação alérgica contra a casuística, le-
abstrato, separar a ordem da fé da ordem da razão, da graça vou-os a abandonar esse bem.
e do humano, a ação as reúne no concreto da sua realiza- O projeto de envolver-se com o pensamento moderno
ção e da sua experiência; o agir humano é existencialmente requeria ousadia e profundo discernimento. Lamentavel-
totalizante. Como apontado pelo filósofo Maurice Blondel, mente, essas qualidades não são muito frequentes. Houve
todo ato voluntário, quer se reconheça ou não, coloca im- quem se contentasse apenas com adaptar a moral à «mo-
68 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTAO DA MORAL CRISTA 69
dernidade», a ponto de reter apenas elementos díspares dos vimento psicológico da infância à maturidade traz luz sobre
ensinamentos, organizados de qualquer modo ou segundo a formação da personalidade humana. Contudo, essa análi-
as opiniões reinantes. Como resultado, a teologia moral ca- se por si só não pode definir a experiência moral, já presen-
tólica correu o risco de desintegrar-se. De fato, como man- te nas crianças (algumas vezes de forma mais viva que nos
ter a doutrina da lei natural quando se abraça correntes de adultos), nem estabelecer as regras da vida moral.
pensamento que põem de lado a natureza humana estável e A diferença fundamental entre a moral e as ciências re-
universal e dão primazia às decisões existenciais, evolução side na atitude metodológica que cada uma pressupõe. As
histórica ou à luta social e pluralismo cultural? Posta em ciências empregam um método de observação que trata o
oposição ao progresso do pensamento e ao crescimento da comportamento humano como um «fato» perante o qual o
liberdade, a natureza aparece como algo a subjugar e não é pesquisador, em nome da objetividade, deve manter uma
mais como uma regra interior a seguir. certa distância e neutralidade. Essas ciências obtêm conhe-
Falta-nos ainda falar das ciências e da tecnologia, que cimento exterior, conhecimento do que é observável, ou
exercem um tipo de fascinação sobre nós por suas desco- do que os filósofos chamam de «fenômenos». Não preten-
bertas e êxitos. dem nem são capazes de atingir o que «deve ser feito»,
Os moralistas foram particularmente atraídos pelas ciên- aquilo que deve ser, de acordo com a natureza das coisas.
cias do homem, pela psicologia, psicanálise, sociologia e, Não são normativas nem serão jamais capazes de constituir
mais recentemente, pela biologia e pelos problemas que uma ética.
surgem na medicina e na genética. T ai conhecimento é de Por outro lado, a experiência moral é diferente da expe-
fato útil, até necessário, de modo a fazer julgamentos ade- riência científica por ser interior. Não podemos atingir a
quados sobre o homem e distinguir as circunstâncias das sua natureza e o seu núcleo sem recorrer a uma reflexão so-
suas ações. Mas aí também o discernimento é indispensá- bre o próprio engajamento pessoal no agir em si mesmo.
vel. Não se pode simplesmente transpor para a teologia Se a observação científica deve ser feita a frio, a percepção
moral, sem modificações, os métodos e categorias das ciên- moral requer o fogo da ação. O método principal na mo-
cias humanas. As pesquisas dos sociólogos, por exemplo, ral, portanto, é refletir sobre o próprio ato e a sua origem
podem ser esclarecedoras sobre os costumes de um povo livre dentro de nós, o que só se pode conhecer interior-
num certo contexto, mas não podem mudar a moral, mente. Esse é o significado do preceito socrático «Conhece
como se o ensino moral fosse uma lei civil que se muda a ti mesmo». É aqui, no coração da consciência da nossa
pela pressão da maioria. De fato, não é raro que a resistên- própria atividade, que a lei moral se torna mais evidente
cia de um pequeno grupo, ou mesmo de uma só pessoa, para nós, pois é aí que a lei moral impera. Assim, o conhe-
prevaleça, em razão da autenticidade do seu testemunho cimento moral é essencialmente normativo. Mais que uma
em favor de um valor moral específico. ciência, é uma sabedoria.
De maneira parecida, a análise dos estágios de desenvol- Devemos também distinguir cuidadosamente a lei mo-
70 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTÃ 71
ral das leis científicas extraídas da observação. Elas perten- Exemplos de atos intrinsecamente maus são: mentir, de
cem a duas ordens diferentes. Assim, não podemos esperar acordo com Santo Agostinho e Kant; contracepção artifi-
que a ciência demonstre a verdade de uma lei natural de cial, de acordo com a encíclica Humanae vitae; aborto e
ordem moral. Por outro lado, seria um erro grave abando- tortura, e assim por diante. Qualquer tentativa, porém, de
nar essa doutrina somente porque ela não é «científica». Os gerar uma lista de tais atos abre imediatamente uma dis-
próprios cientistas vêm reconhecendo cada vez mais que a cussão, porque o julgamento sobre atos particulares depen-
ciência e a tecnologia isoladas não são suficientes quando o de de normas concretas e princípios gerais, como os Dez
homem está em causa. Os problemas com que nos con- Mandamentos. Assim, pode-se colocar a questão da seguin-
frontamos hoje põem a ética e a ciência num contato cada te forma: existem leis morais que sejam universalmente ver-
vez mais profundo, desafiando-nos a delinear mais clara- dadeiras e válidas em todos os tempos, lugares e situações,
mente as relações que devem existir entre ambas de modo de tal modo que seria sempre uma falta moral violá-las?
a permitir uma colaboração fecunda. Essa questão põe-nos de volta à lei natural e como aplicá-la
em casos concretos.
O Papa Pio XII abordou esse problema na sua crítica à
A questão dos atos intrinsecamente «moral da situação», que defendia caber à consciência de
maus e as leis universais cada pessoa julgar, de acordo com uma hierarquia de valo-
res pessoais, se uma lei universal é aplicável a uma situação
Devemos completar nosso quadro com algumas palavras
particular ou não («Discurso à Federação Mundial das Mu-
sobre um debate que continua a polarizar os teólogos mo-
lheres Jovens», 18 de abril de 1952). No entanto, depois
rais hoje: a questão dos atos intrinsecamente maus e o sis-
do Vaticano II, o debate tomou uma nova forma.
tema de análise moral chamado de «proporcionalismo» ou
«consequencialismo». Resumidamente, aqueles que são normalmente chama-
A questão dos atos intrinsecamente maus foi levantada dos de «revisionistas» colocam o julgamento moral na com-
no início das discussões sobre a moral cristã que delinea- paração, na ponderação dos efeitos bons e ruins que uma
mos acima, e, como elas, está historicamente ligada à con- ação causa em determinada situação com vista ao bem bus-
trovérsia em torno da encíclica Humanae vitae. Atos intrin- cado. Tudo depende da proporção estabelecida entre as
secamente maus são aqueles moralmente maus em si mes- consequências de um ato, e daí o nome «proporcionalis-
mos, independentemente de qualquer circunstância ou si- mo» ou «consequencialismo» dado a esse sistema de análise
tuação; são atos que não se pode jamais fazer'. A questão é moral.
se tais atos existem. É verdade que ações concretas muitas vezes causam efei-
tos contrários. Construir uma usina gera riqueza e empre-
gos, mas também danifica o ambiente. Um remédio neces-
(9) Cf. S. Pinckaers, Ce qu'on ne peut jamais faire, Éditions Universitaires.
Fribourg, Suíça, 1986. sário à saúde de um paciente pode gerar efeitos colaterais
72 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRJSTÂ 73
indesejáveis. Uma ação feita com a melhor das intenções humano, visto como um meio para um fim, e os efeitos
pode, algumas vezes, gerar resultados desastrosos. Parece, que ele causa, o proporcionalismo ajusta-se bem à mentali-
portanto, que, de modo geral, pode-se aplicar, ao agir hu- dade tecnicista do nosso tempo. O nível pré-moral que o
mano, o método de calcular a proporção entre os efeitos proporcionalismo descreve como o lugar essencial de julga-
bons e maus. Além disso, para formar um juízo adequado, mento remete fortemente ao domínio próprio da técnica.
será necessário levar em conta, tanto quanto possível, todas Isso explica a popularidade que essa concepção de moral
as circunstâncias intervenientes e as consequências resultan- adquiriu. No entanto, também explica porque se pode cri-
tes, em graus de distância variável, da própria ação. ticá-lo como uma mera forma de utilitarismo.
Os revisionistas, porém, esclarecem que esse juízo é pre- Quando consideramos a lógica própria do proporciona-
liminar e reside no que eles chamam de «nível pré-moral». lismo, é difícil perceber como é possível conciliar este siste-
O ato adquirirá valor moral quando a vontade aceitar o ato ma de análise moral com os pronunciamentos recentes do
na sua relação com a lei moral. Portanto, eles distinguem o Magistério defendendo a universalidade das normas morais
nível de «correção» do nível de «bondade» moral. e a existência dos atos intrinsecamente maus. De fato,
No que diz respeito à lei moral, fonte da obrigação mo- como demonstrar que certas ações são más em si mesmas e
ral, esses autores dão atenção especial a como ela foi for- que certas normas são aplicáveis universalmente, sem exce-
mulada e aplicada de vários modos diferentes por diferen- ções, quando o julgamento moral depende, em cada caso,
tes culturas e diversos tempos através do curso da história. de uma série de circunstâncias e consequências objetivas e
Os revisionistas tomam um cuidado especial em identificar subjetivas muitas vezes claramente variáveis? Podemos sem-
de perto as normas concretas que governam uma ação na pre imaginar circunstâncias imprevistas que, por modificar
sua própria particularidade. a situação, seriam um obstáculo para a formulação de uma
Uma última coisa que deve ser apontada: o «proporcio- lei universal. No final das contas, quando se é confrontado
nalismo» está listado dentre as morais «teleológicas», que se com um problema moral difícil, pode-se facilmente imagi-
opõem às morais «deontológicas». O proporcionalismo nar que se está numa situação moral única, pelo simples
identifica o valor moral na sua relação com o fim pretendi- fato de que se está pessoalmente implicado naquela situa-
do, vendo o ato como um meio para obter um fim (em ção. Surge então o perigo de cair precisamente naquela for-
grego, telos significa «fim», daí o nome teleologia). O valor ma de relativismo moral que o Magistério da Igreja achou
moral de um ato é, assim, relativo ao fim. Por outro lado, conveniente advertir aos fiéis.
as morais deontológicas (do grego, deon, aquilo que deve
ser feito), seguindo o modelo kantiano, defendem que um As variações da consciência
ato pode ser absolutamente bom ou mau, independente-
mente das circunstâncias, incluído o fim almejado. Vale destacar também uma considerável mudança de
Ao dar prioridade, no juízo moral, à relação entre o ato mentalidade que afetou o papel e o significado da cons-
74 SERVA!S-THÉODORE P!NCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTÃ 75
ciência. Os manuais deram à consciência uma posição cen- centro de gravidade da teologia moral para mais longe da
tral: ela é a intermediária entre a lei e a liberdade; aplica a lei e mais perto da liberdade, do sujeito e da consciência. A
lei aos atos específicos e os julga em nome da lei. Nessa consciência passaria a ser o juiz supremo da vida moral,
perspectiva, a tarefa primária dos moralistas é a de resolver embora não se costume dar muita atenção ao equívoco que
casos de consciência. A consciência torna-se, assim, o lugar surge quando se associa tão proximamente a consciência
por excelência da vida moral. O centro de gravidade, con- com a opinião pessoal de cada um, que não raramente é
tudo, permanece a lei. A consciência e os teólogos morais autojustificante.
são meramente os seus intérpretes. Essa mudança gradual no significado da palavra «cons-
A consciência pode, no entanro, exercer uma função ciência» foi facilitada pelo fato de vivermos em sociedades
mais rica e variada do que meramente impor obrigações le- democráticas, onde as decisões costumam ser tomadas pelo
gais. Na tradição cristã, como explicada pelo Cardeal N ew- cálculo da opinião majoritária. Nesse contexto, os próprios
man (1801-1890), por exemplo, a consciência representa a moralistas ficam também tentados a resolver os problemas
voz de Deus que ressoa na intimidade do coração humano, de consciência apelando às correntes mais fortes da opinião
num diálogo íntimo. A consciência julga e ordena de ma- pública ou a basear-se em estudos aparentemente científi-
neira soberana, mas também convida à conversão e traça os cos que medem a opinião pública e revelam as visões majo-
caminhos às vezes surpreendentes que levam à vocação. A ritárias, revestidas automaticamente com uma autoridade
consciência é profundamente pessoal, e mesmo assim pode dita moral.
formar laços profundos de comunhão eclesial. Assim, opiniões diversas (como as que ocorreram du-
A consciência, vista dessa forma, é o que Newman cha- rante os conflitos sobre o probabilismo) e debates subse-
mava de «o primeiro vigário de Cristo». De qualquer quentes entre maiorias e autoridades substituem o estudo
modo, já no século XIX, Newman apontava um desvio im- sério dos princípios subjacentes aos problemas morais, que
portante no significado da palavra: notou que, para mui- demandam competência e experiência. Em tal atmosfera,
tos, um apelo à consciência já não mais evocava uma refe- estamos muito distantes da visão de consciência descrita
rência a um juiz interior, mas significava simplesmente «a por Newman: uma consciência que faz julgamentos na pre-
prerrogativa de um inglês de agir segundo a própria vonta- sença de Deus, pela escuta da sua voz soberana, ou talvez
de», sem levar em consideração Deus ou qualquer autori- mais acuradamente, uma consciência que se deixa julgar
dade religiosa (Carta ao Duque de Noifolk). por Deus e se guiar por sua lei através de uma obediência
Com efeito, a consciência é urna faculdade com duas fecunda, aberta e inteligente. Um sinal que permite distin-
faces: olha para Deus e para a lei, mas também representa guir a consciência verdadeira da falsa é certamente que a
o sujeito, o «eu» pessoal de que faz parte. Ora, por reação consciência verdadeira sempre apresenta um desafio, como
ao legalismo excessivo, surgiu em certos meios católicos no o caminho estreito e íngreme do Evangelho, que faz um
pós-concílio urna espécie de alergia jurídica que mudou o contraste acentuado com o caminho largo e plano que leva
76 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS V. A QUESTÃO DA MORAL CRISTA 77
à eterna condenação. Ao mesmo tempo, a consciência ver- ensinamento constante da Igreja sobre o caráter pecamino-
dadeira dá aos que a seguem uma paz e gozo que nenhum so dos atos homossexuais.
fato exterior pode turvar, enquanto a falsa consciência ine- A instrução Donum vitae, da Congregação para a Dou-
vitavelmente provoca dúvida e divisão, transigência e con- trina da Fé (22 de fevereiro de 1987), considera as ques-
fusão. tões de bicética. Ela reafirma o respeito devido aos nascitu-
ros e a dignidade da procriação. Respondendo às questões
contemporâneas levantadas pelo avanço em biotecnologia,
Documentos do Magistério a carta rejeita a fertilização in vitro como moralmente ilíci-
ta, mesmo quando é «homóloga», quer dizer, entre marido
Vamos concluir esta primeira parte do nosso estudo res- e mulher.
saltando os principais documentos recentes do Magistério A Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo (24 de
que tratam de assuntos éticos. maio de 1990), da Congregação para a Doutrina da Fé,
A encíclica Humanae vitae (25 de julho de 1968) con- aborda a relação entre os teólogos morais e o Magistério, a
denou os meios artificiais de controle de natalidade. colaboração que deve existir entre eles, e os casos de dis-
A exortação apostólica Familiaris consortio (22 de no- senso que podem surgir. Ela demarca os níveis de autorida-
vembro de 1981), de João Paulo II, expôs a doutrina cristã de que os diferentes documentos do Magistério podem
do casamento na sua integridade: situação atual e os planos apresentar e os níveis de assentimento que determinam.
de Deus; comunidade de pessoas comprometidas com a Devemos acrescentar muitos discursos de João Paulo II.
transmissão da vida e a educação dos filhos; a participação Citemos, entre outros «A experimentação biológica» (23 de
na vida social e a missão da Igreja a serviço da humanida- outubro de 1982); «Diagnóstico pré-natal e cirurgia» (4 de
de; e o apostolado para a família, especialmente nos casos dezembro de 1982); «Os perigos da manipulação genética»
difíceis do divórcio e segundas núpcias. (29 de outubro de 1983); «Oposição à eutanásia» (6 de se-
A Declaração sobre a eutanásia da Congregação para a tembro de 1984); «O mistério da vida e da morte» (21 de
Doutrina da Fé (5 de maio de 1980) esclarece e torna mais outubro de 1995).
precisa a terminologia tradicional e o ensinamento com Todos esses documentos são guiados pela mesma preo-
respeito aos assuntos do fim da vida, em resposta às novas cupação: o respeito pela pessoa humana e a sua vida, desde
questões colocadas pelos avanços na tecnologia médica. a concepção até a morte. Eles expressam o desejo comum
A carta publicada pela Congregação para a Doutrina da de promover a dignidade de todas as pessoas e de salva-
Fé sobre o cuidado pastoral das pessoas homossexuais (1 de guardar os seus direitos fundamentais em conformidade
outubro de 1986), lamenta o mau tratamento que as pes- com o direito natural.
soas homossexuais frequentemente sofrem e solicita atenção
pastoral urgente para eles. Ao mesmo tempo, reafirma o
PARTE II
UMA REFLEXÃO
MAIS DIFÍCIL DO QUE
SE PODE IMAGINAR
VI. A liberdade e a felicidade
Morais da felicidade
e morais da obrigação
gia quanto em filosofia, descobre-se que é possível dividi-la De fato, não é esse o problema presente em todas as
em dois grandes períodos. No primeiro período, que se es- nossas consciências? Não reconhecemos que a lei moral fre-
tende da Antiguidade à Idade Média, a moral foi entendi- quentemente demanda que renunciemos à felicidade, en-
da como uma resposta à questão da felicidade, posta com tendida como prazer, conforto ou utilidade? Não sentimos
agudeza pela experiência do mal e do sofrimento. Todas as que a preocupação com a felicidade corre o risco de intro-
escolas de pensamento aceitavam esse ponto de partida sem duzir nas nossas vidas um fermento de egoísmo capaz de
discussão. Diferiam entre si pelas suas respostas a questões viciar as nossas melhores intenções?
como, por exemplo, o papel do prazer. No que diz respeito
à lei, viam-na como uma obra de sabedoria mais do que
uma restrição voluntária da liberdade. O divórcio entre a felicidade e a moral
A partir do século XIV, as coisas mudaram completa-
mente. A questão da felicidade é logo posta de lado, e a Podemos ver, portanto, que tanto na história como na
análise moral foca cada vez mais nas obrigações impostas experiência, ocorreu um certo divórcio entre a felicidade e
pela lei como expressão da vontade divina. Os manuais de a moral: podemos levar uma vida moral sem renunciar à
teologia moral já não continham um tratado sobre a felici- felicidade? Podemos ser felizes sem transgredir as exigências
dade como encontramos em São Tomás, embora o santo da moral? A questão é crucial, pois, de fato, não podemos
tenha permanecido a grande autoridade. Consequentemen- renunciar nem a um nem a outro.
te, na visão dos manualistas, podia-se construir uma ética e Além disso, o assunto, digamos, transborda até o amor
viver uma vida moral sem sequer considerar a questão da que espontaneamente associamos com a felicidade. Será
felicidade. Kant, por sua vez, critica o que chama de «eu- que o amor não deveria também ser regrado pela lei para
demonismo» (do termo grego eudemonia, que significa feli- não se tornar uma paixão perigosa? Nesse sentido, Kant dá
cidade), condenando qualquer sistema que introduzisse nas prioridade ao dever acima do amor na sua interpretação do
intenções morais uma consideração da felicidade vista primeiro mandamento de Deus. Para ele, esse mandamen-
como um fim. Ele sustenta que «todos os eudemonistas são ro impõe um dever e não um sentimento. Similarmente, os
egoístas práticos» e assevera que «fazer do eudemonismo o manuais de teologia moral reduzem o tratado sobre a cari-
fundamento da virtude é a eutanásia da moral». Era uma dade a uma exposição das obrigações ligadas a esta virtude.
reação contra o utilitarismo, que estava surgindo na Ingla- Disso resulta outra questão crítica: pode-se amar por obri-
terra e propunha a felicidade como o fim da ética moral, gação, para satisfazer uma obrigação? Quer dizer, para agir
mas uma felicidade vista como o bem-estar do maior nú- moralmente, deve-se reprimir o amor e podar a sua_ exube-
mero de pessoas. Kant queria resguardar a qualidade da in- rância? Pois, se este é o caso, será que a lei moral não é
tenção por meio de uma pura obediência ao imperativo ca- algo que extingue o amor e talvez a caridade?
tegórico. O debate tem consequências importantes para a relação
84 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 85
entre a moral e os Evangelhos. Por acaso o Sermão da O livre-arbítrio é a faculdade da razão e da vontade
Montanha não começa precisamente apresentando-nos as pela qual escolhemos o bem com a assistência da graça,
bem-aventuranças, que, segundo os Padres, são a resposta ou o mal sem essa assistência (Sentenças, b. 2, dist. 24,
de Cristo à questão da felicidade? O Evangelho também c. 3.).
não nos promete, em muitas passagens, recompensas para
nós? Será que devemos evitar certas passagens do Evangelho São Tomás explicara que o livre-arbítrio procedia da ra-
porque elas encorajam o interesse pessoal e favorecem o eu- zão e da vontade. Era, assim, um poder de decidir derivado
demonismo? das nossas duas faculdades espirituais e vivificado pelas in-
Assim, o nosso problema fica ainda maior. O divórcio clinações à verdade, ao bem e à felicidade que as animam.
entre a moral e a felicidade tem implicações para a nossa Daí poder-se chamá-lo de liberdade de qualidade ou de
relação com a Escritura. A questão é a seguinte: como re- perfeição. Ele é o poder de realizar ações excelentes, ações
conciliar a vida moral com a felicidade e o amor e colocá- que são tanto boas como verdadeiras, embora o agente pos-
-la em contato irrestrito com o Evangelho? sa circunstancialmente falhar e agir mal.
Ockham inverte diretamente a relação: o livre-arbítrio
não procede da razão e da vontade; pelo contrário, prece-
A raiz do problema: a liberdade de-as no nível da ação, porque podemos escolher entre
de qualidade e a liberdade de indiferença pensar e não pensar, querer ou não querer. Por consequên-
cia, o livre-arbítrio é a primeira faculdade do homem, cujo
Na nossa visão, as raízes do assunto que levantamos re- ato originalmente não depende de nada, mas apenas da sua
sidem em duas concepções distintas da liberdade, que gera- livre escolha. O livre-arbítrio será definido como o poder
ram dois tipos de moral: a liberdade de indiferença, que é de escolher indiferentemente entre contrários, entre o sim
a fonte da moral da obrigação, e a liberdade de qualidade, e o não, entre o bem e o mal. Portanto, pode ser bem defi-
que inspira as morais da felicidade e da virtude. Façamos nido como uma liberdade de indiferença.
agora uma breve digressão no nosso estudo. V ale a pena. Trata-se de uma verdadeira revolução que se opera na
Historicamente, a teoria da liberdade de indiferença concepção do homem e do seu agir. Ela começa pelo rom-
surgiu na virada do século XIV na crítica ao pensamento pimento com a natureza espiritual e suas inclinações, espe-
tomista feita pela escola franciscana, especialmente na obra cialmente sua inclinação à felicidade. Ockham afirma que a
de Guilherme de Ockham, o iniciador do nominalismo pessoa humana pode escolher indiferentemente entre ser
que logo se espalhou largamente. feliz e não ser feliz, bem como entre preservar ou não a sua
Tudo gira em torno da interpretação da definição clás- existência. A natureza já não é a fonte da liberdade; está
sica do livre-arbítrio formulada em meados do século XII subordinada à escolha, sendo inferior e externa a ela. A fa-
por Pedro Lombardo nas suas Sentenças: mosa máxima dos antigos, sequi naturam («siga a nature-
86 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 87
za») perde o seu sentido; no seu lugar, uma nova visão sur- quando as virtudes florescem como um talento nas artes: é
ge: domina naturam. A dominação e escravização da natu- uma força ousada, inteligente e generosa, a capacidade de
reza torna-se o ideal. Consideremos como duas concepções realizar plenamente trabalhos de longa duração que trazem
profundamente diferentes da moral surgem dessas duas de- frutos a muitos; assegura facilidade e prazer na ação.
finições de liberdade. Comecemos considerando a liberda- Da liberdade de qualidade procede uma ciência moral
de de qualidade, visão comum aos pensadores da Antigui- que aborda diretamente a questão da felicidade e do bem
dade, fossem eles cristãos ou pagãos. absoluto, que a considera decisiva para a orientação da vida
no seu todo e a formação das qualidades morais em parti-
cular. Essa ciência organiza-se sobre as bases das principais
Como a liberdade de qualidade virtudes que fortalecem a liberdade e aperfeiçoam o agir,
gera morais da felicidade sem, contudo, negligenciar o exame dos defeitos opostos,
Podemos comparar a liberdade de qualidade com uma dos vícios e dos pecados contrários. Ela completa-se pelo
habilidade adquirida numa arte ou profissão; é a capacida- estudo da lei na sua função educativa, numa obra que con-
de de realizar os nossos atos quando e como se quer, como juga a sabedoria e o amor, e até a coerção às vezes neces-
trabalhos de alta qualidade perfeitos na sua área. Desde o sária na lura contra o mal. ·
nascimento, recebemos a liberdade moral como um talento Essa concepção de liberdade abre-se facilmente a um
a ser desenvolvido, como uma semente contendo o conhe- encontro com a revelação cristã. A inclinação natural à ver-
cimento da ve'tdade e a inclinação para o bem e a felicida- dade e ao bem é obra de Deus. Ele conforma o homem à
de, uma inclinação diversificada em função do que os anti- semelhança da sua sabedoria e bondade e, como um mestre
gos chamavam de semina virtutum, as sementes das virtu- interior, chama-o a uma participação maior na sua liberda-
des. No início da vida, essa capacidade ainda é fraca, como de criativa. A nossa ligação com Deus é íntima e de nas-
é o caso de uma criança ou de um aprendiz. Devemos for- cença. Ele toca a essência de nossa personalidade no nosso
mar a nossa liberdade, como a nossa personalidade, por desejo de felicidade e amor. Esse laço não limita a liberda-
uma educação apropriada em que é possível distinguir três de humana, mas a fundamenta: quanto mais o homem está
etapas principais, de acordo com as idades da vida: na in- aberto à ação de Deus com um coração justo e sincero,
fância, há o aprendizado das regras e normas do agir, du- tanto mais pode ver a própria liberdade interior florescer,
rante o qual aprendemos com o auxílio da família e dos como São Paulo ensina. Dessa forma, podemos facilmente
professores como ter uma vida disciplinada. Depois há a reconhecer na narrativa da Escritura a ação libertadora de
adolescência na vida moral, caracterizada pela independên- Deus em prol do seu povo e a do Espírito Santo no cora-
cia progressiva e iniciativa pessoal crescente, guiada pelo ção de todos os cremes. Uma colaboração próxima entre a
próprio gosto pela verdade e pelo bem e reforçada pela ex- graça e a liberdade pode ser estabelecida, acima e além dos
periência pessoal. Aparece então a idade da maturidade, inevitáveis debates sobre o pecado.
88 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 89
O advento da revelação divina ocasionou uma profunda tureza está agora subordinada à liberdade. A natureza esta-
transformação na doutrina das virtudes. A primeira fonte belece apenas um relacionamento exterior caracterizado por
da excelência moral não está mais localizada no homem, suas diferenças: a onipotência do Criador dá a Ele total po-
mas em Deus, por Cristo. Essa transformação é evidente der sobre o homem, que Ele exerce especialmente por
na doutrina das virtudes morais «infusas», que não são «ad- meio da lei moral. A lei moral expressa a vontade divina,
quiridas» por esforços humanos isolados, mas implantadas que é perfeitamente livre e soberana, e limita a liberdade
no homem pelo Espírito Santo. De qualquer modo, embo- humana, prescrevendo ou proibindo certos atos com a for-
ra divinas, essas virtudes não são por isso menos pessoais - ça da obrigação. A lei é a fonte da moralidade. De fato, o
são como os atos de crer, de esperar e de amar - e eficien- ato humano, uma vez que nasce de uma escolha entre con-
tes, pois assumem interiormente as chamadas virtudes «hu- trários, é por natureza indiferente; torna-se moralmente
manas» agrupadas em torno das quatro virtudes cardeais: a bom ou mal na medida que se conforma ou não à obriga-
prudência (ou sabedoria prática), a justiça, a fortaleza (ou ção legal. A própria lei depende inteiramente de Deus.
coragem) e a temperança (ou autodomínio). Assim, no Deus poderia, em princípio, por um mero exercício de
contexto de uma educação gradual guiada pela luz do vontade, modificar quaisquer dos preceitos legais. Ockham
·Evangelho, pode desenvolver-se entre Deus e o homem levou essa visão até o seu extremo lógico. Sem hesitar, afir-
uma cooperação ativa, cujos princípios são a fé e o amor e mou que, se Deus ordenasse alguém a odiá-10, neste caso
em que o Espírito Santo intervém com seus dons como o próprio ódio tornar-se-ia bom, por ser um ato de obe-
um mestre artesão. diência à vontade do Criador. Seria impossível expressar
Bem compreendida, a doutrina das virtudes que aper- mais claramente a visão de que a obediência à lei tem prio-
feiçoam a liberdade de qualidade tem uma afinidade muito ridade sobre o amor.
próxima com a Escritura e parece mesmo necessária se qui- Com o nominalismo, testemunhamos a formação da
sermos explicar o seu ensinamento sobre a forma de viver primeira moral de obrigação: a vida moral será, daí por
dos seguidores de Cristo. diante, circunscrita pelas obrigações. O desejo de felicidade
será sistematicamente posto de lado.
Qual é concretamente a lei moral segundo essa visão?
Como a liberdade de indiferença Nós a encontramos, em primeiro lugar, nas Escrituras, ins-
gera moralidades de obrigação piradas por Deus, especialmente nos Dez Mandamentos,
entendidos como um código de obrigações morais, e nas
Ao passar para a liberdade de indiferença, vemos nascer conclusões que se pode chegar a partir deles. Os preceitos
um novo universo moral, instalado entre duas liberdades morais são, em princípio, subordinados ao livre-arbítrio di-
que se confrontam: a liberdade do homem e a liberdade de vino e ao seu «poder absoluto». Ainda assim, retêm a sua
Deus. Não há vínculos naturais entre as duas, porque a na- permanência e validade dentro do que Ockham denomi-
90 SERVAIS-THEODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 91
nou de «curso ordinário» das coisas, determinado pelo «po- Duas formas de liberdade,
der ordenador de Deus». Isso permite ao moralista conti- dois tipos de moral
nuar empregando a expressão «lei natural» para descrever a
lei moral. Liberdade de qualidade Liberdade de indiferença
Nessa concepção, a vontade divina é evidente para nós,
1. Capacidade de agír com exce- 1. É a capacidade de escolher
pela reta razão, sob a forma de imperativos morais. Todo lência e perfeição a qualquer entre contrários.
mundo sabe, por experiência, que a razão impõe ou proíbe momento que se queira.
cerras condutas. Mais precisamente, a razão nos revela tais 2. Procede da razão e dá. vonta- 2. Precede e domina toda incli-
imperativos, mas não nos fornece as razões para eles, porque de, da inclinação natural pela nação natural. Procede apenas
não há outras razões que a própria pura vontade divina. verdade, bondade e felicidade. da vontade em sua «indiferença»
a contrários.
Portanto, devemos obedecer tais preceitos simplesmente
3. Dada em semente, desenvol- 3. Está inteiramente presente
porque eles são ordenados, e não por causa de algum moti- ve-se gradualmente através da desde o início e em cada ato da
vo, como a utilidade ou o prazer que proporcionam. Essa educação até alcançar a maturi- vida moral.
visão já chega bem perto de expressar o imperativo categóri- dade.
co de Kant. Além disso, podemos ver os esboços da visão de 4. Une os atos de alguém num 4. Cada ato moral é indepen-
que os imperativos morais reteriam a sua validade mesmo se todo ordenado por uma finali- dente de rodos os outros. A vida
dade que os liga interiormente. moral é uma sucessão de «casos
Deus não existisse. Ligados em primeiro lugar ao livre-arbí-
O fim principal é a ((felicidade)> de consciência». A teologia mo-
trio divino, já estão a um passo da sua separação de Deus. obtida através da união com o ral é uma casuística governada
O campo da moral foi profundamente abalado. Passou ,<bem absoluto,,. pela obediência à lei.
a ser ocupado por atos individuais dispersos que se suce- 5. A virtude é uma qualidade da 5. A virtude é o hábito de sub-
dem sem conexão, sendo o produto disparatado de uma li- liberdade, a capacidade pessoal, meter-se à lei.
tanto adquirida quanto infusa,
berdade que - a qualquer momento - pode empenhar-se
de agir com perfeição. Produz
num contrário ou no outro. Não há mais preocupação alegria.
com a meta geral que uniria esses atos na mesma intenção: 6. A lei tem um papel educativo 6. A lei é externa à liberdade,
o bem comum ou a felicidade. Temos, ao invés disso, uma no crescimento da liberdade. É que a limita através das obriga-
moral de atos, de casos de consciência. Pouca referência é uma obra de sabedoria e cor- ções. É obra da pura vontade do
feita à educação ou ao progresso porque essa visão moral responde aos nossos pendores legislador.
mais íntimos.
pressupõe uma liberdade que se dá inteiramente no instan-
7. Gera uma moral de felicidade 7. Gera uma moral da lei e da
te em que a consciência acorda na alma. É uma liberdade e virtude, que brota das próprias obrigação. A quesrão da felicida-
que não conhece degraus e só pode ser limitada na sua ex- inclinações interiores. de é extrínseca à moralidade.
pressão externa. A virtude perde, aqui, seu papel formativo
e torna-se nada mais que um hábito.
92 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 93
Como reverter o divórcio A redescoberta da natureza espiritual
entre a felicidade e a moral
A chave para a renovação é a redescoberta da nossa na-
Retornemos ao nosso problema central, o divórcio entre tureza espi-ritual no seu anseio espontâneo pela verdade,
a moral e a felicidade. Poderia parecer que temos uma expli- pela bondade e 0pela felicidade, brotando de um único im-
cação sólida para este divórcio, arraigada tanto na história pulso primário. Referimo-nos aqui à «natureza» no seu sen-
como na própria lógica interna do pensamento. Essa separa- tido original, significando «desde o nascimento», mas ela é
ção teve a sua origem no surgimento da liberdade de indife- espiritual, feita à imagem de Deus. Ela é parte da própria
rença e na sua ruptura com as inclinações da natureza espiri- constituição da nossa personalidade, como um princípio de
tual expressadas na aspiração â felicidade. Assim, a moral universalidade. Essa renovação da liberdade a partir das raí-
perdeu a fonte interior de liberdade que a nutria e viu-se zes requer mais de nós do que uma simples discussão de
forçada a buscar por uma fonte nova e externa. Noutras pa- ideias. Só pode ser alcançada pela experiência de uma ação
lavras, o homem não era mais moral de nascença; tinha que pessoal verdadeira e boa; pela reflexão humilde e paciente
se tornar moral artificialmente, pelo constrangimento da lei que refaz o seu percurso; pela graça de uma luz quieta que
imposta por Deus, pela sociedade ou pela pura razão. devemos aprender a esperar. É aí, sob essa claridade íntima
Esse divórcio foi tão profundo que alterou a noção mais em que o bem refulge, que o desejo pela felicidade é reve-
fundamental da moral: a concepção do bem. No passado, lado no que tem de melhor. Excluído da moral, porém, ele
o bem e a felicidade formavam um conceito só, expressado aparece deformado e falsificado, embora esse anseio seja ele
por uma única palavra: a bondade, o bonum em latim. A próprio um raio da imagem divina dentro de nós. Como
felicidade era a irradiação do bem, como o lado reverso de restaurar o desejo de felicidade em sua natureza primitiva,
uma qualidade só. Agora, definida por sua conformidade uma natureza que estava tão profundamente unida ao bem
com a obrigação legal, o bem é entendido como separado que era ela própria um sinal de excelência moral?
da felicidade e mesmo oposto a ela: o desejo de ser feliz
parece ameaçar a pureza das intenções e a liberdade, em ra-
zão do anelo que a felicidade continua a despertar no inte- Prazer e alegria: duas concepções
rior do homem. Parece até que a pessoa moralmente boa de felicidade
agora experimenta um medo instintivo da felicidade.
Como diminuir essa divisão? Como reconciliar a moral Vamos propor aqui um princípio de renovação que está
e a felicidade, quer no pensamento, quer na experiência? ao alcance de todo mundo. As suspeitas que recaem sobre
Ao apresentar-nos o modelo de outro tipo de moral, a no- o desejo humano de felicidade são as seguintes: trata-se de
ção da liberdade de qualidade indica um caminho para a um sentimento interessado, individual e facilmente egoísta;
resposta e traz a promessa de uma renovação. é o contrário do amor desinteressado, do esquecimento de
94 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 95
si e da generosidade normalmente atribuídas ao valor mo- ritate», a alegria nascida da verdade. Ele explica isso magni-
ral, que exige um sentido de dever. Se o deixarmos pene- ficamente, dirigindo-se diretamente a Deus:
trar na vida moral, o foco primário será a busca do confor-
Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas
to pessoal ou o utilitarismo, do bem individual em oposi-
àqueles que desinteressadamente te servem, cuja alegria
ção à universalidade das normas morais. Por isso os siste-
és tu mesmo. E a vida feliz consiste em sentir alegria jun-
mas que fazem da felicidade o critério do julgament~ mo-
to de Ti, em Ti, por Ti.
ral foram classificados como «utilitaristas» e «hedomstas».
Por trás de todas essas suspeitas está a primazia da expe- As bem-aventuranças evangélicas, do mesmo modo, cul-
riência sensível. minam, após a purificação que operam, no convite à ale-
Ora, quando se lê atentamente os autores - sobretudo gria reservada aos perseguidos em razão do nome de Cris-
os cristãos - que consideram a vida moral como uma busca to. Claramente, não se trata de um convite ao prazer.
da felicidade, percebe-se prontamente que estavam perfeita- Lidamos, aqui, com duas experiências profundamente
mente cientes do problema. A sua primeira preocupação diversas, o prazer e a alegria, que arraigam duas concepções
era enfrentar o problema do prazer como uma experiência distintas de felicidade: uma pertence ao domínio dos senti-
humana primitiva e tomar uma posição a respeito dele, em dos; a outra diretamente ao nível moral e espiritual.
nítido contraste com os moralistas modernos, que em geral V ale destacar as suas diferenças essenciais: o prazer é
raramente tratam disso. uma sensação agradável, uma «paixão» causada pelo conta-
Mas o aspecto chave para discernir é que a melhor defi- to com um bem exterior. A alegria, no entanto, é algo inte-
nição de felicidade oferecida pelos autores da velha visão rior, como o ato que a causa: é o efeito direto de uma ação
vai além do prazer e fundamenta a felicidade na experiên- de qualidade, como o sabor de uma tarefa longa finalmen-
cia da alegria, algo bem diferente do prazer. Santo Agosti- te completada. Também é o efeito, em nós, da verdade
nho dá testemunho disso nas suas Confissões (Livro 1O, 21). compreendida e da bondade amada. Assim, associamos a
O Bispo de Hipona começa apresentando a própria ques- alegria com a virtude, tendo-a como um sinal da autentici-
tão da felicidade em termos de alegria: dade virtuosa.
O prazer é o oposto da dor, o seu contrário; ambos são
Assim como todos estão de acordo em quererem ser essencialmente incompatíveis. A alegria, por outro lado,
felizes, assim também estariam de acordo em querer sen- nasce da provação, da dor enfrentada, do sofrimento aceito
tir alegria, se lhes perguntassem isso, e a esta alegria cha- com coragem e amor.
mam vida feliz. O prazer é. breve, variável e superficial, como o contato
que o causa. A alegria é duradoura, como as qualidades, as
Agostinho oferece, então, sua famosa definição de felici- virtudes que a produzem.
dade, que se tornou clássica: «A vida feliz é gaudium de ve- O · prazer sensível é individual, como a sensação; dimi-
SERVAIS-THÉODORE P!NCKAERS VI. A LIBERDADE E A FELICIDADE 97
96
nui quando o bem que a causa é compartilhado e desapa- nante na consciência dos cristãos primitivos. Por outro
rece quando privado dele. A alegria é comunicativa; cresce lado, raramente se encontra ali o termo hedoné (prazer). Os
com o compartilhamento e recompensa os sacrifícios as- autores sagrados o evitavam, ou empregavam-no num sen-
sumidos livremente. A alegria pertence à pureza e à genero- tido pejorativo, como na parábola do semeador, na qual a
sidade do amor. riqueza e os prazeres, como espinhos, sufocavam a boa se-
mente (Lc 8, 4-11,15).
A natureza avisa-nos, por um sinal claro, que o Sem dúvida, não devemos exagerar a separação entre o
nosso objetivo foi atingido. prazer ·.e a alegria, porque podem coexistir e interagir entre
Esse sinal é a alegria. si. Contudo, devemos distinguir claramente as experiências
Refiro-me à alegria, não ao prazer. específicas que cada um deles gera se quisermos descobrir a
O prazer é apenas um artifício imaginado pela na- verdadeira natureza da nossa inclinação à felicidade. Com
tureza para dirigir a criatura à preservação da sua efeito, não se pode restringir esse desejo nos limites da expe-
vida; não indica a direção para a qual a vida é lança- riência sensível, pois ele pertence à esfera do nosso coração e
da. Mas a alegria sempre anuncia que a vida venceu, da nossa mente, onde, no mais profundo do nosso ser, en-
que avançou, ganhou terreno. Toda grande alegria contra-se com o anelo pela verdade, a bondade e o amor
que constituem a ordem moral. Como separar a alegria e a
tem uma nota de triunfo.
Ora, se tomarmos essa indicação em conta e se- felicidade da busca da verdade, da lura pelo bem e dos ape-
guirmos essá nova linha de faros, descobriremos que, los do amor, sem extinguir a sua vitalidade espiritual? .
onde houver alegria, há criação; quanto mais rica a Assim, a experiência da alegria gera um eudemonismo
criação, tanto mais profunda a alegria. (se quisermos insistir no uso deste termo) totalmente dife-
Henri Bergson, A Energia espiritual: rente daquele que mereceu a crítica de Kant. A alegria é
palestras e ensaios perfeitamente compatível com a excelência moral; é um si-
nal dessa excelência e contribui para o seu aperfeiçoamen-
to. A fonte da alegria encontra-se nas profundezas do nosso
ser, nas raízes de nossa liberdade, quando essa liberdade se
Como a alegria pode reconciliar
abre para a efusão do bem e da verdade.
a felicidade e a vida moral
No entanto, para permitir que as águas dessa fonte jor-
A Bíblia confirma esta perspectiva. O Novo Testamento rem em nosso interior, temos que tomar uma decisão pes-
refere-se à alegria de modo frequente e variado. O tema da soal de grande custo: ao receber o chamado para um bem
alegria está presente por toda parte: surge espontaneamente maior, um bem que nos revelará a verdadeira alegria no
na Carta aos Filipenses (4,4): «Alegrai-vos sempre no Se- núcleo de nossa existência, acaso conseguiremos romper as
nhor! Repito, alegrai-vos!». A alegria é um aspecto domi- correntes do encanto do prazer por meio de uma renúncia
98 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
ça mesma do Espírito Santo?» (Sobre o Espírito e a Le- um movimento suave que produz, nas nossas almas, sabe-
tra, 24) doria e amor. Esse movimento interior é a essência, por as-
Em todo caso, a lei nova contém certos elementos sim dizer, da Nova Lei. É isto que o Profeta já havia anun-
que nos predispõem a receber a graça do Espírito ciado há muito tempo: «Na mente, lhes imprimirei as mi-
Santo e dizem respeito ao uso dessa graça. Esses ele- nhas leis, também no coração lhas inscreverei» üer 31, 33).
mentos são secunddrios, por assim dizer, na lei nova. A experiência cristã o confirma ao chamar o Espírito Santo
O fiel precisa ser instruído a respeito deles, tanto por de «Mestre Interior»: Ele ilumina-nos quanto à Palavra que
pregação quanto por escrito, sobre em que deve acre- ouvimos e move-nos a vivê-la com sinceridade.
ditar, ou mesmo sobre o que deve fazer. Claramente, o termo «lei» adquire, aqui, um novo sen-
Em conclusão, afirmamos que a Lei Nova é pri- tido, muito distante de qualquer jurisdicismo; é um apro-
mariamente uma lei infasa, mas secundariamente uma fundamento e enriquecimento espiritual do conceito. A
lei escrita. Nova Lei aproxima-se da lei natural, cujas raízes são, de
São Tomás de Aquino, Suma igual modo, interiores. Ela também se torna a regra do
Teológica I-II, q. 106, a. 1 amor infuso pelo Espírito Santo. Afinal, acaso as palavras
não estão a serviço da realidade e da experiência?
lhos: ela depende do Espírito Santo, que acende a fé e en- torna-se a regra interior que guia as ações criativas e cons-
sina, desde o interior, a sabedoria e a justiça de Deus. trutivas de alguém. Ela origina a esperança, que dá energia à
O advento da fé causa uma transformação original e vida. A fé em Cristo, portanto, é como uma lei interior ca-
paz de construir a vida moral do cristão.
substancial na vida moral. Centra-a numa pessoa concreta:
Jesus Cristo, que se torna - na sua particularidade históri-
ca, no seu corpo que sofreu e ressuscitou - a fonte e a cau- A seiva: a caridade
sa da justiça e da sabedoria. Em suma, Ele tornou-se a fon-
te e a causa da excelência moral para aqueles que creem. «Agindo pela caridade» (Gál 5, 6). Se a fé é como a
Jesus não é meramente um sábio ou um modelo. Por meio raiz, a caridade é como a seiva que alimenta o tronco e ele-
dos laços pessoais que · a fé e o amor iniciam, estabelece va-se pelos galhos numa rede de virtudes que produz os
uma comunhão espiritual tão próxima entre Si e os discí- fruros deliciosos das boas ações. É através desse novo amor
pulos que São Paulo apresentará a vida do cristão como revelado e compartilhado em Cristo que o Espírito Santo
uma «vida em Cristo». O Apóstolo chega a afirmar que «já age em nós. O primado da caridade sobre os dons e as vir-
não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gál 2, tudes é claramente ensinado por São Paulo na Primeira
20). Essa visão. é única dentre as morais e religiões do Epístola aos Coríntios (capítulos 12 e 13), e por São João,
mundo: para os cristãos, a pessoa de Jesus tornou-se o cen- que faz dela o Novo Mandamento (Jo 13, 34). É um ensi-
tro da vida moral, como Ele é também o centro da oração namento rico. Por causa da sua força e universalidade, que
e da liturgia qu:e a alimenta. se estende até os inimigos, podemos reivindicá-lo como
Convém notar que é aqui que a fé adquire a sua plena uma doutrina especificamente cristã. Na medida em que se
força. Ter fé não significa, como quer parecer hoje em dia, desdobra, ela revela como a caridade anima todas as vir-
uma mera opinião sobre a vida ou a adesão mental a um tudes.
credo. A fé é um ato vital; relaciona uma pessoa com outra
para sempre. Dessa forma, o casamento está arraigado num
ato de fé entre os esposos, ligados por seu amor, e comporta A caridade e as virtudes
certa compreensão de um futuro comum, o que é, em certo
sentido, profético. Do mesmo modo, cada decisão frutuosa, A caridade é normalmente descrita como a mãe e a for-
quer no campo pessoal, quer no campo político ou mesmo ma das virtudes. Realmente, ela gera e inspira a sua unidade
artístico, deriva de um ato de fé numa certa «ideia» que ins- orgânica, que a teologia agrupa em torno das virtudes car-
pira e guia o trabalho à sua completude. Nenhuma ciência, deais e teologais. As virtudes são interconectadas, agindo e
propriamente entendida, pode produzir a intuição da fé. crescendo juntas como os membros de um corpo vivo.
Trata-se de um conhecimento que pertence a uma ordem Deve-se ressaltar, no entanto, que, mesmo tendo adota-
diferente. A fé - ligada à vida e ao amor na sua aparição - do a concepção filosófica das virtudes, os escritores cristãos
106 SERVAIS-THÉODORE P!NCKAERS VlL O ESPÍRITO SANTO E A NOVA LEI 107
transformaram profundamente essa concepção precisamen- nismo de amor que fundamenta a ação do Espírito Santo
te por causa de sua experiência com a caridade. As virtudes na vida dos fiéis.
dos filósofos, independentemente da sua elevação e abertu- A intervenção do Espírito Santo no crescimento das vir-
ra, deixam as pessoas sozinhas nos seus esforços, sempre tudes mostra-nos que o Espírito age em nós pelos caminhos
tentadas a fechar-se na sua própria excelência. A interven- ordinários dos esforços diários, mais do que por revelações
ção do amor nas raízes das virtudes provoca uma transfor- extraordinárias, moções súbitas ou carismas excepcionais.
mação vital: colocando-nos em comunhão com a pessoa de Ele nos move como uma seiva, cujo movimento não vemos
Cristo, a caridade deixa-nos receptivos às moções do seu nem sentimos de tão discreto que é ante as atividades e
Espírito, de tal maneira que já não podemos considerar as projetos que nos absorvem. Ainda assim, o seu estímulo
virtudes como propriedades pessoais. Embora permaneçam gradual, junto com a fidelidade confiante, prepara o cami-
como algo profundamente pessoal dentro de nós, torna- nho para o florescimento da primavera e a maturação do
ram-se propriedade dAquele que agora as inspira. Daí re- outono. E então o Espírito pode produzir em nós obras às
sulta uma atitude interior característica do amor: uma re- vezes surpreendentes, pois os dons - como inspirações pro-
ceptividade ativa, uma recepção dinâmica, uma obediência fundas - podem mover-nos além da simples medida da ra-
alegre e criativa ao Espírito, que gera um agir mais forte,· zão no uso dos bens, e em atos de generosidade, coragem e
porque já não é o agir de um indivíduo solitário. Através desprendimento. São Francisco de Assis, por exemplo, tor-
da caridade, essa atitude, unida docilmente à iniciativa, nou-se o amante da Senhora Pobreza; São Vicente de Paulo
transfere-se às outras virtudes e marca as suas ações. e Madre Teresa dedicaram-se aos destituídos. Houve tam-
bém mártires como São Cipriano em Cartago, e a humilde
Biandina, em Lyon, a qual, seguindo o exemplo de Estêvão
A caridade e os dons do Espírito Santo nos Atos dos Apóstolos, manteve uma confiança pacífica - e
A fim de dar uma expressão mais satisfatória dessa ex- até mesmo alegre - em face dos tormentos e da morte.
Dessa forma, os dons levam as virtudes à sua perfeição.
periência concreta, São Tomás, nos passos de Sanro Agosti-
nho, desenvolve à sua doutrina dos dons que, juntamente
com as virtudes, nos tornam dóceis aos impulsos do Espíri-
to de Cristo. A lista dos sete dons é extraída de Isaías (11, Os elementos materiais da Nova Lei
1-8, como aparecem na Septuaginta). São eles: sabedoria,
entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor Em um belíssimo texto inspirado pelo prólogo do
a Deus. Os dons conferem aos nossos atos uma vitalidade Evangelho de São João, São Tomás completa o seu ensina-
e perfeição mais elevadas. Como vimos, São Tomás rela- mento sobre. a Nova Lei mostrando-nos como a graça do
ciona um dom com cada virtude. Dessa forma, as virtudes Espírito Santo nos vem do Filho de Deus feito homem.
e os dons formam as duas faces de um só e mesmo orga- Ele demonstra, então, como a Nova Lei contém, além dos
108 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS Vil. O ESPfRITO SANTO E A NOVA LEI 109
elementos espirituais já mencionados, certas realidades sen- moral pessoal. Como os Evangelhos, o Sermão dirige-se à
síveis que, de algum modo, encarnam a graça de modo a comunidade eclesial que ajudou a formar. Assim, pode-se
transmiti-la a nós, bem como certos atos concretos que nos dizer que ele dá à Igreja a sua constituição fundamental: é
dão uma parcela do seu próprio agir. Não importa quão a base primeira da legislação eclesial, bem como das regras
intelectuais sejamos, não somos puros espíritos. Para rece- e constituições que as comunidades religiosas desenvolve-
ber a Palavra de Deus, precisamos de sinais tangíveis. A ram ao longo da história.
Palavra nos chega através dos nossos olhos e ouvidos, pelo De qualquer maneira, o Sermão não é como os outros
que está escrito ou pregado; precisamos, ainda, colocar essa textos legais precisamente por ser o instrumento do Espíri-
Palavra em prática com o nosso corpo. O Filho de Deus to Santo para o trabalho de justificação e santificação. Se
andou por esse caminho de um modo surpreendente, pela tomado apenas no nível material, o texto do Sermão certa-
Encarnação até a Cruz. A graça do Espírito, da mesma ma- mente não pode justificar e santificar alguém além da me-
neira, chega-nos através de realidades materiais: por livros, dida dos Dez Mandamentos. Talvez seja ainda menos apto
como a Bíblia, cujo ensinamento moral culmina no Ser- neste particular porque as suas exigências são tão grandes
mão da Montanha; através de objetos sagrados e ações es- que podem parecer impossíveis. Porém, quando a graça do
colhidas, que são os sacramentos e a liturgia em torno de- Espírito de Cristo intervém, com fé e amor, o Sermão tor-
les (Suma Teológica, Ia IIae, q. 108, a. 1). na-se um instrumento adequado para tal trabalho: descre-
ve, no coração da experiência cristã, os caminhos para a li-
bertação espiritual. Com tal força de animação, merece de
O Sermão da Montanha, texto da Nova Lei
fato ser chamado de uma «lei da liberdade» (cf. Tg 1, 25).
Dotado com a autoridade do Senhor, o Sermão da Podemos apontar três razões para justificar a prática de
Montanha foi considerado pelos Padres a principal fonte São Tomás de chamar a Lei Evangélica de «lei da liber-
de instrução moral e inspirou diretamente a maioria dos dade»:
movimentos de renovação espiritual na Igreja: São Tomás,
portanto, não hesita em apresentá-lo como o texto específi- 1. O Sermão da Montanha não acrescenta nenhum pre-
co da Nova Lei, análogo aos Dez Mandamentos para a Lei ceito material aos Dez Mandamentos. Pelo contrário, visto
Antiga. a partir do contexto evangélico, liberta-nos das múltiplas
O Sermão, no entanto, não deve ser considerado isola- observi\ncias externas da lei judaica, retendo apenas os pre-
damente. Ele é o ápice e o ponto de convergência do ensi- ceitos morais essenciais. Isso nos permite concentrar os
namento moral da Escritura como um todo e do Novo nossos esforços e a nossa atenção no nível do «coração», lá
Testamento em particular. Devemos interpretá-lo, portan- onde as virtudes são formadas e florescem a partir da fé
to, em relação com a totalidade das Escrituras das quais faz amorosa. Por essa moderação e flexibilidade vigorosa, o
parte. O Sermão também não diz respeito somente à vida Sermão prepara e promove o crescimento espiritual.
VIL O ESPÍRITO SANTO E A NOVA LEI 111
i!O SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
2. O Sermão da Montanha leva-nos para uma nova or- amor liberta-nos porque nos faz agir com o nosso pleno
dem das coisas. A lei, de regra, estabelecia entre as pessoas consentimento, por nossas próprias inclinações e por gozo
uma relação de mestre-servo. A lei era expressa no impera- espiritual, na imitação de Cristo e de acordo com o impul-
tivo, e sancionava faltas predeterminadas. A Nova Lei colo- so do Espírito. Não podemos, todavia, desfrutar ou exerci-
ca-nos em relações de amizade com o Senhor, como Ele tar tal liberdade sem haver aceitado as renúncias e as purifi-
próprio diz: «Já não vos chamo servos, porque um servo cações necessárias para o aprendizado do verdadeiro amor e
não sabe o que seu mestre faz. Chamo-vos amigos, porque a libertação dos nossos instintos egoístas. Essa é a obra das
eu vos disse tudo o que ouvi do meu Pai» (Jo 15, 15). bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-12), que nos levam da po-
breza e a humilhação à pureza e a paz num coração que se
Na amizade, já não cabem os imperativos e as ordens.
torna inteiramente receptivo à ação do Espírito.
Os amigos interagem num nível mais pessoal, com exorta-
ções (como na «paraclese» apostólica) ou conselhos. A No-
va Lei difere das outras leis precisamente por adicionar
conselhos aos seus preceitos que reclamam a iniciativa pes- Os sacramentos: instrumentos da Nova Lei
soal, algo que as virtudes e os dons preparam-nos para le-
var a cabo. A meta do Sermão, portanto, é ensinar-nos a Os sacramentos constituem o segundo elemento mate-
viver a nossa liberdade espiritual no contexto da nossa rela- rial da Nova Lei. São parte necessária de uma moral em
ção de amizade com o Senhor e com os irmãos, produzida que a graça de Cristo possui um papel essencial por conta
em nós pela caridade. São Paulo refere-se à liberdade dos da força interior que nos dá e da união vital com o Senhor
filhos de Deus, distinguindo-a da condição dos escravos ou que realiza, como expresso na comparação entre o corpo e
das crianças menores na casa do Pai (Rom 8, 14-17; Gál 4, os membros, entre a videira e os sarmentos.
1-7). Os sacramentos são instrumentos do Espírito Santo que
Os conselhos evangélicos dirigem-se a todos os cristãos, nos comunicam a graça por meio de palavras e gestos, si-
a cada um conforme a sua situação particular e vocação. nais sensíveis e expressivos, como a água do batismo, o pão
Serão, depois, condensados nos três votos de pobreza, cas- e o vinho da Eucaristia, a unção com óleo e a imposição
tidade e obediência, fundamentos da vida religiosa, ordena- das mãos. A Igreja dispôs a administração dos sacramentos
da à perfeição da caridade e ao testemunho evangélico para numa liturgia centrada na celebração da Paixão e Ressur-
Igreja inteira. reição do Senhor, da qual a Eucaristia é o «memorial».
Além disso, também estruturou as épocas do ano para re-
3. Não podemos seguir o Sermão da Montanha por coa- produzir na _vida dos fiéis as principais etapas ou «misté-
ção, obrigação ou dever. Ele somente pode ser realizado nas rios» da obra de Cristo. Para os cristãos, a liturgia - a for-
nossas vidas pelo caminho do amor, que repousa no centro ma mais alta de oração - mantém laços estreitos com a
do seu ensinamento e é o primeiro dom do Espírito. Esse vida moral, como demonstra o uso constante· dos textos
112 SERVA!S-THÉODORE PINCKAERS VII. O ESPfRITO SANTO E A NOVA LEI 113
morais e espirituais do Novo Testamento nas cerimônias fático a este respeito, como as palavras de Jesus aos seus
da Igreja. De acordo com São Paulo, a vida moral é uma Apóstolos nos demonstram:
forma de culto espiritual; ela gera, na vida de cada pessoa,
aquilo que a liturgia eucarística significa (Rom 12, 1). Sabeis que os governadores das nações as dominam
e os grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser as-
sim. Ao contrário, aquele que quiser ser grande entre
As instituições eclesiais a serviço vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro
da Nova Lei dentre vós, seja o vosso servo. Assim como, o Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar
Por fim, podemos aplicar a nossa definição da Nova Lei a vida como resgate por muitos. (Mt 20, 25-28).
às instituições eclesiais, e mostrar por qual razão não pode-
mos opô-las à ação do Espírito Santo; tais instituições são Essa é a revolução interior que a graça de Cristo opera
também seus instrumentos. Embora a ação moral seja bem em nós. Ensina a empregar as instituiçõ~s e a exercer a au-
pessoal, uma vez que é animada pela fé e pelo amor de toridade num espírito de serviço, com desapego e generosi-
Cristo, sempre possui uma dimensão eclesial. Integra-se ne- dad_e, imitando o «serviço» de Cristo, que deu a vida «por
cessariamente na vida da Igreja, compreendida como «cor- muitos». De fato, a dedicação a um cargo de autoridade
po de Cristo» animado pelo Espírito. São Paulo sempre desenvolve um feixe de diversas virtudes: cuidado com 0
posiciona seu énsinamento moral dentro dessa moldura, bem comum, atenção com as necessidades de cada pessoa,
entendida de um modo muito vital e realista. Como a pró- discernimento sobre o que é apropriado, coragem e perse-
pria Nova Lei, essa comunhão de vida e de ação é, princi- verança em tomar decisões, paciência fraterna e capacidade
palmente, algo espiritual; contudo, ela deve estar encarnada de perdão frente a críticas, desprendimento no serviço a
em realidades exteriores e visíveis. As instituições da Igreja um projeto que não nos interessa ou não nos pertence in-
são realidades deste tipo: a hierarquia eclesial, as organiza- dividualmente. O ministério pastoral é uma das formas
ções comunitárias de todos os níveis, as regulamentações consumadas da caridade fraterna e uma escola muito ins-
da lei canônica, e assim por diante. Isso foi desenvolvido trutiva de experiência moral.
no curso dos séculos a partir das sementes evangélicas e A doutrina da Nova Lei, portanto, capacita-nos a mos-
forma o suporte necessário para a ação da Igreja. trar todas as dimensões da moral cristã e ordenar os seus
As instituições na Igreja apresentam certos problemas, diversos elementos. Dirige-se a uma vida que é tanto pes-
conforme o uso que delas se faz. Tornam-se perigosas soal quanto eclesial; ela é ao mesmo tempo profundamen-
quando tratamo-las, por analogia com meras instituições te espiritual e encarnada; une o Espírito à letra do Evange-
humanas, como veículos para ambições pessoais, interesses lho, a fé aos sacramentos, a oração interior ao desdobra-
específicos ou dominação orquestrada. O Evangelho é en- mento da liturgia. Ela liga o sopro do Espírito ao geren-
114 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS
pensável à moral apoiando-a na razão. Todavia, não tive- de primária que podemos discernir nos relâmpagos das in-
ram êxito em superar a oposição entre a natureza e a liber- tuições da mente ou no impulso primitivo do amor. Essa
dade; ela reaparecia com relação à razão. Continuaram a redescoberta tem uma importância capital. Permite-nos
afirmar que a lei natural é uma lei interior, mas a conside- compreender como a moralidade e a lei natural têm suas
raram como exterior à liberdade, em alguns casos vendo-a raízes na nossa própria liberdade. Ela também nos capacita
como uma lei meramente biológica, como no caso da se- a apreender que a lei natural não funciona primariamente
xualidade. pela coação, mas pela atração. Por fim, permite enxergar
Daí provém a opinião de que a própria moralidade nos que a lei natural é uma lei vital que governa o dinamismo
é externa: não somos morais de nascença, mas nos rorna- e o desenvolvimento das nossas faculdades de ação, tornan-
mos morais sob a pressão da lei ditada por Deus, pela Igre- do-as fecundas.
ja ou pela sociedade e seus costumes. A moralidade tor-
na-se um artifício necessário à vida social. Pode-se adotá-la As cinco inclinações que fundamentam
pessoalmente, mas ela variará de acordo com os caprichos a lei natural em nós
das diferentes eras e culturas, e dependerá inclusive da le-
gislação civil e das decisões da maioria. Passaremos a expor as inclinações naturais que nutrem a
A questão é grave porque toca os fundamentos dos di- nossa liberdade seguindo o panorama que São Tomás pro-
reitos humanos que lutamos para reforçar atualmente, nos põe quando considera os preceitos da lei natural (Suma
nossos esforços· de estabelecer um mínimo de consenso éti- Teológica Ia. IIae. q. 94 a. 2). Essa doutrina está substan-
co e jurídico pelo mundo. cialmente presente em Cícero, num texto que, aparente-
Ora, não há natureza sem interioridade. O termo «na- mente, Tomás nunca leu (Dos deveres I, capítulo IV).
tureza» designa precisamente a causa do nascimento, a ori- Podemos identificar cinco inclinações fundamentais.
gem da vida no mais profundo da interioridade. A tragédia Elas brotam dos componentes essenciais da nossa natureza e
da liberdade de indiferença é que ela se afasta da interiori- recolhem singularmente as ideias gerais que os filósofos cha-
dade espiritual e da vida que brota daí como um chamado mam de «transcendentais» ou de «qualidades universais».
vital pela verdade, bondade e felicidade. Não teria chegado A primeira inclinação na origem de todo ato humano é
o tempo de recuperar as raízes espirituais que subsistem, a aspiração ao bem. Como vimos, ela é inseparável do de-
sob as agitações intelectuais, na profundidade da nossa sejo de felicidade. Essa inclinação torna-se conhecida no
consciência? plano intelectual através da noção de bem, compreendida
A compreensão da liberdade de qualidade mostra-nos o como a plenitude da qualidade, e corresponde à expe-
caminho a seguir para recobrar as fontes mais íntimas que riência da bondade. Ela une as outras inclinações em um
regam a mente e o coração humanos. São as nossas aspira- só feixe dinâmico.
ções ou inclinações naturais. São como uma espontaneida- Sob a égide da aspiração ao bem, segue-se a inclinação
118 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 119
para a preservação do próprio ser, tão fundamental quanto pelo bem, a repulsão pelo mal, ou, mais precisamente, uma
a própria existência. Ela manifesta-se na ideia e na expe- atração ou repulsão de acordo com a nossa percepção de
riência do Ser, no sentido do real. Ela nos põe em comu- como as coisas são, conforme a nossa razão e a nossa cons-
nhão com todos os seres. ciência.
Os humanos são seres vivos e têm o poder de transmitir O bem é mais que um dever. Significa uma qualidade,
a vida, através do exercício da sexualidade. A raça humana uma perfeição que atrai e causa o amor. Quando ausente,
é dividida em machos e fêmeas para a geração e educação incita um desejo e um movimento na sua direção como
da prole, uma verdade que se expressa tanto em nossas para um fim. Quando alcançado, causa alegria e felicidade.
consciências quanto na nossa linguagem. Neste nível, esta- O bem é amável, desejável.
mos em comunhão com todas as criaturas vivas sobre a A escolha entre o bem e o mal brota dessa atração por-
terra. que, limitados no coração e na mente, podemos escolher
A quarta inclinação é fundamentalmente espiritual: é a como bem aquilo que, na verdade, é um mal, ou ter por
aspiração pela verdade, que se manifesta na ideia e no co- mau aquilo que de fato é bom. Podemos, por exemplo,
nhecimento do Verdadeiro, como objeto próprio do inte- optar por uma riqueza adquirida imoralmente e ignorar as
lecto na sua função teórica e prática. Essa inclinação nos exigências da justiça. Uma vez que o objeto amado nos
põe em comunhão com todas as outras criaturas intelec- conforma a si, os nossos juízos morais podem tornar-se dis-
tuais. torcidos e os nossos gostos, desordenados. Ainda assim, o
Por fim, o homem tem uma inclinação natural à vida sentido do bem e do mal subsiste sob as faltas e a cor-
em sociedade, uma inclinação que brota da nossa percep- rupção como o desejo de saúde persiste sob a doença.
ção do outro e que constitui o nosso ser pessoal em relação A atração pelo bem é expressa comumente em um dos
com o Bem. Ela gera o desejo da comunicação e da comu- primeiros princípios da moral: é preciso fazer o bem e evi-
nhão, e manifesta-se na linguagem. tar o mal. Isso não expressa primeiramente uma obrigação
Consideremos resumidamente cada uma dessas inclina- de fazer o bem, mas a atração do bem, que se prolonga
ções para mostrar como elas fundamentam a lei natural e pela injunção de procurar o verdadeiro bem e evitar o mal
seus diversos preceitos, inscrevendo-os no próprio coração real, além das aparências e ilusões. É essa pressão da verda-
da nossa personalidade livre. de no bem, no interior da própria atração, que está na ori-
gem do sentido íntimo do dever e da obrigação. Esse senti-
do, no entanto, não reduz a atração pelo bem a meros de-
1. A inclinação natural ao bem
veres e obrigações, pois ele nos leva, além disso, em direção
A inclinação para o bem é um instinto espiritual primi- à perfeição do bem.
tivo e, assim, é indefinível. Podemos descrevê-lo em termos O bem está ligado ao amor por ser a sua causa direta.
do que ele causa em nós: a atração espontânea e o gosto Consequentemente, podemos discernir as espécies de bem
120 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 121
Do mesmo modo que apreciamos melhor a saúde proteger um valor moral, como o amor a Deus, o amor à
quando estamos doentes, assim também tornamo-nos mais pátria ou o amor à justiça, esta inclinação pode levar-nos
sensíveis às nossas inclinações para o bem quando somos até mesmo ao sacrifício da própria vida.
confrontados com o mal e a dor, especialmente quando A inclinação para preservar o ser é expressa no quinto
advertidos dos nossos próprios pecados, se estes não nos mandamento («não matarás»), que determina o respeito
cegaram. Em todo caso, que a alegria supere esse sofrimen- para com a vida do outro, estendido até o respeito a seus
to também é revelador. bens. Ele fundamenta o direito de proteger a própria vida
e de obter o que for necessário para assegurar uma existên-
cia digna. Também nos impõe, como obrigação natural,
2. A inclinação natural que cuidemos da nossa saúde física e moral.
para preservar o ser A inclinação à existência é aperfeiçoada pela virtude da
fortaleza, que é sobretudo uma coragem de ser e de viver,
A inclinação à preservação do ser é fundamental. Afeta corroborada ainda pela esperança, que nos faz capazes. de
a nossa própria substância, a conservação da nossa existên- enfrentar as dificuldades e provações da vida.
cia e a vida que subjaz em todas as nossas atividades. Ela A virtude cristã da esperança coroa esta inclinação vital
gera a vontade de existir e o amor à saúde. Também nos natural dando-nos o dom da ajuda divina na realização de
dá um senso de realidade e fundamenta nosso direito à le- promessas que ultrapassam toda a expectativa humana. A
gítima autodefesa. jornada para esta «esperança contra a esperança», no entan-
Essa inclinação, no entanto, não é dirigida simplesmen- to, não ocorre sem um desafio profundo, do qual o sacrifí-
te para a conservação. Também é dinâmica. Impulsio- cio de Abraão é modelo.
É no contexto dessa inclinação que surgem os proble-
na-nos para o que promove o nosso avanço: para o ali-
mento, para a vestimenta, a formação de um lar e assim mas do suicídio (o apelo do nada é como uma doença e
uma ruptura no seio da inclinação à manutenção do ser),
por diante. Ela preside o progresso e desenvolvimento do
do aborto, da tortura, da mutilação e da eutanásia.
nosso ser.
A inclinação para preservar o ser também sustenta os
Essa inclinação não pertence unicamente à nossa vida fí-
avanços na medicina e na saúde pública que desempenham
sica, mas também compromete o nível espiritual: cria o
um papel tão importante nas nossas sociedades.
amor-próprio natural que fundamenta todas as nossas
ações, e é o antecedente de toda introversão egoísta. Dessa
forma, fornece a medida do amor que devemos ao nosso se- 3. A inclinação ao matrimônio
melhante, de acordo com o segundo mandamento («Deves
amar o teu semelhante como a ti mesmo» [Mt 22, 39]), e é A inclinação sexual é comum entre o homem e os ou-
o fundamento da regra de ouro (cf. Mt 7, 12). De modo a tros seres vivos, mas realiza-se nos humanos de modo mais
124 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 125
perfeito. Ela cumpre-se no matrimônio, que une um ho- posltlva: atua a serviço do amor, contribuindo para a sua
mem e uma mulher por toda a vida. Não é algo simples- pureza, retidão e duração.
mente biológico, _embora tal componente seja uma carac- Esta inclinação concede em cada pessoa um direito na-
terística sua; ela envolve a personalidade inteira pelos laços tural ao casamento, ao qual corresponde o dever de abraçar
da afeição. Distinguem-se comumente dois fins no ma- as responsabilidades sobre o cônjuge e os filhos.
trimônio: primeiro, a geração - o dom da vida - e a edu- O cristianismo, desde o seu começo, enxertou sobre
cação das crianças, que asseguram o crescimento e con- esta inclinação a santificação do casamento e o chamado à
tinuidade da espécie humana e da sua herança cultural; virgindade, dirigido a alguns. O chamado à virgindade não
depois, há o amor e o apoio mútuo do casal. As duas fina- é uma rejeição nem um desdém para com o casamento,
lidades fortificam-se mutuamente. Uma não pode reali- mas um testemunho e uma consagração especial ao amor
zar-se sem a outra, pois a lei do amor é o dom e a fecun- de Cristo, vivido segundo a diversidade de vocações na
didade. Igreja. A castidade cristã é obra especial do Espírito Santo,
Também é possível demonstrar como as outras inclina- inspirando um amor novo no coração dos fiéis.
ções desenvolvem-se no contexto da família. A família é o
local das primeiras experiências de vida. É onde aprendemos
4. A inclinação ao conhecimento
sobre amor e felicidade, fazemos os nossos primeiros juízos
da verdade
concretos sobre o bem e o mal e recebemos nossa primeira
educação moral. A família é onde adquirimos um sentido A inclinação à verdade é própria da natureza espiritual.
de existência e confiança na vida. É nela que fazemos nossas Ela cria a comunhão entre os seres dotados de razão. Apa-
primeiras descobertas cognitivas e aprendemos nossa lín- rece nessa luz original que são os primeiros princípios da
gua-mãe. É onde descobrimos as diferenças entre os sexos e razão especulativa e prática 10 , especialmente no princípio
entre as personalidades. A sua diversidade de relações faz da moral de «fazer o bem e evitar o mal». Ela gera o amor
família o modelo e principal célula da sociedade. pela verdade, comparável ao anelo de toda criatura pela
A inclinação sexual deve ser regulada para desenvol- luz.
ver-se adequadamente. Três dos Dez Mandamentos diri- Dessas primeiras percepções da inteligência partem,
gem-se a ela: o quarto, que prescreve o respeito aos pró- pelo trabalho da razão e pelo contato com a realidade, as
prios pais; o sexto, que relaciona o ato sexual ao casamen-
to; o nono, que interdita a luxúria. São preceitos a serviço
(1 O) A razão especulativa é a faculdade da razão enquanto procura responder
da castidade, que é uma das formas da temperança ou do às perguntas o quê e por quê:. "o que é o mundo?", "por que_ existem as coi-
autodomínio sobre os instintos e sensações. Se a castidade sas?", "'quem é Deus?", "o que é bom (em geral) e o que é mau (em geral)?".
tem a conotação negativa de luta contra os excessos e des- Já a razão prática procura responder à pergunta"que devo fazer aqui e agora?'~
Não são, pois, duas faculdades ou capacidades diferentes, mas uma só .e a
vios da sexualidade, também é uma virtude profundamente mesma razão que se volta para vertentes diferentes. (N. do E.}
126 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 127
diferentes ciências, em especial a ciência moral, que consi- mente, especialmente no campo moral, no que diz respeito
dera todas as coisas da perspectiva do bem, adotando como à situação de vida de cada um e os seus problemas concre-
norma os preceitos da lei natural. A sua tarefa é aplicar es- tos. A inteligência tem uma função primária a desempe-
ses preceitos judiciosa e efetivamente nas ações concretas, nhar na vida moral. É preciso restaurá-la, inclusivamente
buscando assegurar a qualidade e perfeição delas. na sua dimensão contemplativa.
Diversas virtudes aperfeiçoam a inteligência neste traba- O anelo pela verdade fornece um fundamento natural à
lho, que depende grandemente da experiência: a virtude da fé cristã porque a fé é mais do que uma obediência vo-
ciência, entendida como a capacidade de estudar e direcio- luntária. Ela responde à luz da Palavra revelada por uma
nar as próprias ações; a sabedoria, que reúne o conheci- aquiescência intelectual, como ocorre entre mestre e discí-
mento e a experiência numa visão unificada da vida e do pulo. A fé desenvolve o amor à verdade com o apoio dos
agir. Mais especificamente, há a prudência, que discerne o dons de inteligência e ciência. Em razão do amor que a
bem num ato particular; é a virtude própria da razão que acompanha, a fé nos instila uma certa conaturalidade com
penetra a ação para moldá-la. Nas morais da virtude, a as realidades divinas. Ela ilumina e alimenta a nossa expe-·
prudência tem uma função central, correspondente ao pa- riência espiritual. ·
pel da consciência nas morais da obrigação. Existe, no en-
tanto, esta diferença: a prudência busca descobrir o que há
de melhor no concreto, e não meramente o que é permiti- 5. A inclinação natural para a vida
do ou proibido. Sua ação é dupla: o juízo prático e a de- em sociedade
terminação para agir, que move à ação. Não se pode ser
verdadeiramente prudente quando o discernimento não A inclinação para a vida em sociedade pressupõe uma
afeta a ação. concepção do ser humano como um «animal social» ou
A inclinação natural para a verdade é universal. No en- «político», como um ser espontaneamente tendente a as-
tanto, adquire um foco particular na vida moral quando sociar-se com outros. Sem dúvida, esta tendência repousa
alinhada com a experiência ativa da pessoa, na qual toda a na nossa necessidade de outros para sobreviver, mas tem
realidade é refletida como num microcosmos, especialmen- um fundamento ainda mais profundo: a sensibilidade para
te pelas relações da pessoa com os outros e com Deus. com o outro, que resulta no amor, na afeição e na amizade
A inclinação à verdade é o foco do oitavo mandamento, e deteriora-se pelos sentimentos contrários. A amizade recí-
que proíbe o falso testemunho e a mentira. Esses preceitos proca é mais natural do que a luta e a rivalidade. O ho-
negativos estão a serviço de um apelo dinâmico que estabe- mem não é, primariamente, o lobo do homem, embora
lece diferentes direitos e deveres: o direito a uma educação certamente possa tornar-se assim.
adequada de acordo com cada sociedade e capacidade de O sinal dessa disposição natural é a palavra. Em con-
cada indivíduo; o dever subsequente de cultivar a própria traste com os animais, que meram·ente trocam gritos, os
128 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 129
humanos inventaram uma linguagem que os capacita a co- para que este imponha ou mantenha a paz, indispensável
municar os sentimentos, pensamentos e necessidades, a ex- para todos.
pressar o bem e o mal, a justiça e a injustiça, a revelar os Por outro lado, de acordo com a liberdade de qualida-
movimentos íntimos da mente e do coração. A vida inteira de, a sociedade é natural ao homem por causa da inclina-
de um ser humano pode ser transcrita em linguagem. As ção que o impele para os outros. Ela manifesta-se como
inclinações naturais, em particular, estão refletidas na pró- um amor ou amizade espontâneos que toma diversas for-
pria estrutura gramatical da linguagem. A compreensão do mas de acordo com os diferentes tipos de comunicação:
bem expressa-se nos adjetivos; a sensibilidade ao ser, nos afeição familiar, amizade pessoal, sentimento natural, soli-
substantivos; a sexualidade, nas palavras com gênero; a ver- dariedade social ou a solidariedade entre os que exercem o
dade revela-se no verbo que determina o verdadeiro e o fal- mesmo ofício, e assim por diante. A assistência da socieda-
so; por fim, a inclinação para a vida em sociedade pode de, começando pelos trabalhos dos educadores, é necessária
encontrar-se nos pronomes, «eu», «tu», «ele», e nos nomes para a formação e maturação da liberdade. As inevitáveis
singulares e plurais. Pode-se mesmo estabelecer uma rela- lutas entre as pessoas, não importa quão duras sejam, en-
ção entre as inclinações e os sentidos, de acordo com uma xertam-se sempre no desejo natural de amizade, comó uma
certa afinidade entre eles. Podemos associar o bem com o febre ou ferimento afetam o corpo.
paladar, com o sabor (sapor) que dá o seu nome à sabedo- A inclinação à vida em sociedade é desenvolvida pela
ria (sapientia). A visão é o mais cognitivo dos sentidos e virtude da justiça, entendida como o firme desejo de dar a
está relacionado com a verdade. A palavra está ligada à au- cada um o que lhe é devido. O objeto da justiça é o direito,
dição. O tato e o olfato põem-nos em contato com o que no seu sentido objetivo, expresso pela lei. A justiça cobre as
existe; também exercem um papel na sexualidade. São ape- interações exteriores com outros, nos níveis familiar, social
nas sinais sugestivos, mas são reveladores do caráter natural e nacional, mas também em relação a Deus, na virtude da
das nossas inclinações. religião. A justiça, portanto, tem um alcance geral. A sua
O reconhecimento do caráter primitivo da inclinação à regra é estabelecer tanto uma equidade relativa, quanto
vida em sociedade tem grandes consequências. De acordo uma equidade estrita nas relações de troca. Sua meta é a
com a teoria da liberdade de indiferença, o indivíduo vem harmonia e a paz.
primeiro; firma-se isoladamente e reivindica a sua liberda- Para além da justiça há a amizade, como um desabro-
de. A luta para satisfazer os próprios desejos põe os ho- char das relações humanas numa relação mais pessoal de
mens em oposição e provoca uma rivalidade que põe em benevolência recíproca em liberdade e igualdade.
risco a vida de todos. A luta, aqui, aparece em primeiro lu- No plano cristão, novamente encontramos a caridade
gar. A sociedade será vista como uma criação artificial ftm- como a virtude que inspira essas relações no coração da
damentada no poder delegado pela coletividade de indiví- Igreja, uma sociedade que é simultaneamente espiritual e
duos a uma autoridade suprema - um rei ou o Estado - institucional. Devemos notar novamente quão distante es-
130 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 131
tamos de outras concepções de Igreja. A liberdade de indi- ficar os fundamentos da vida moral. Essa coação é expres-
ferença fomenta a rivalidade entre poderes, a oposição en- sada nos preceitos negativos dos Dez Mandamentos. A arte
tre a liberdade dos indivíduos e das instituições, e assim pedagógica do educador será a de ajudar o pupilo a perce-
por diante. A liberdade de qualidade procura sobretudo a ber a correspondência entre essas obrigações e o anelo hu-
coordenação e a colaboração, e o desenvolvimento da Igre- mano mais profundo pelo bem e pela verdade.
ja como um corpo harmonioso. É neste nível que as morais da obrigação mantêm seu
Na medida do possível, demonstramos como a lei natu- valor. Historicamente, pr.eencheram por séculos o papel de
ral não é imposta externamente ao homem por alguma rea- oferecer ao povo cristão a primeira educação moral. A cen-
lidade ou vontade exteriores. Ela é verdadeiramente inte- sura que podemos fazer a elas é que limitaram a vida moral
rior; vem de nascença. Ela está inscrita no nosso coração ao domínio das obrigações e à luta contra o pecado. Falha-
pela mão de Deus, que nos criou à sua imagem. Podemos, ram em demonstrar suficientemente que a lei profunda da
sem dúvida, gravar esses princípios na rocha, ou escrevê-los vida moral, na raiz das obrigações, é a tendência ou anelo
em livros, mas eles coincidem com os anelos que alimen- pelo progresso, algo que é verdadeiro para todas as formas
tam o dinamismo das nossas faculdades. Assim, a lei natu- de vida; tampouco compreendeu como preparar o fiel para
ral não é estática, mesmo quando seus princípios são for- as etapas posteriores da vida.
mulados de modo restritivo. Ela é essencialmente dinâmi- Essa crítica, no entanto, não se dirige ao papel das
ca, como as virtudes que ela tem a tarefa de desenvolver obrigações como tais, pois a obrigação é indispensável nes-
em nós. se estágio. De fato, seria uma grave ilusão tentar construir
uma moral sem obrigações. A tarefa do moralista é indicar
o papel exato da obrigação no serviço às virtudes que
O papel da lei natural nos estdgios guiam o desenvolvimento moral. A obrigação está aí para
da educação moral ensinar os rudimentos, os preceitos essenciais, e para deli-
near aquelas coisas sem as quais a virtude não é possível,
Será útil considerar como o papel da lei varia em fun- sem as quais o desenvolvimento moral não é possível. Por
ção das etapas de educação moral que guiam o crescimento isso, o assassinato é proibido porque destrói a justiça e a
da liberdade. Na primeira etapa, dedicada à aprendizagem caridade.
das regras pedagógicas e da autodisciplina, experimentamos O segundo estágio do progresso moral, caracterizado
a lei como algo externo. Concretamente, a lei nos é apre- pelo crescimento da iniciativa pessoal, supõe uma interiori-
sentada pelos educadores. A sua tarefa primária é combater zação da lei, resultado de uma crescente percepção da cor-
em nós os defeitos, pecados, bem como o crescimento da- respondência entre esses preceitos e as nossas melhores e
ninho de desejos e vontades. Neste estágio, uma certa coa- mais profundas aspirações. Isso surge da experiência da
ção em forma de obrigação é necessária, de modo a solidi- ação correta. Tornamo-nos inclinados a seguir à lei, não
132 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS VIII. LEI NATURAL E LIBERDADE 133
pela coação, mas pela atração e pela opção pessoal, apesar além das .distinções entre nações e raças, tempos e cultu-
das fraquezas e inclinações contrárias que podem permane- ras. É flexível o suficiente para adaptar-se às inevitáveis di-
cer em nós. Descobrimos que a virtude produz alegria, ferenças, e forte o suficiente para inspirar renovações e
muito além do nível dos nossos esforços e tentativas. convergências. Porque a moral deve ser um fermento do
No terceiro estágio de desenvolvimento moral, estágio progresso se quiser tornar-se de novo uma ciência de vida
da maturidade e da maestria, a lei torna-se o suporte de e ação.
uma força inventiva e criativa em nós, instrumento do
Espírito que infunde nos nossos atos a sua plena qualidade
moral e espiritual. Começamos a entender a razão de São
Tomás chamar a graça do Espírito Santo de Lei: essa graça,
por meio da caridade, inspira o progresso moral do crente
e leva-o a uma perfeição cada vez mais renovada. A lei, en-
tão, associa-se com o desdobramento interior da sabedoria
e da bondade. Marca o seu ritmo.
Prefácio............................................................................................... 5
Introdução.......................................................................................... 9
Estabilidade e variedade em moral................................................ 9
Um esforço de renovação ................................................ :............. 10
Nossos planos e limites................................................................. 11
Moral «católica» ............................................................................ 11
PARTE I
UMA HISTÓRIA MAIS RICA
DO QUE SE PENSA
L As fontes evangélicas....................................................................... 15
A catequese moral primitiva.......................................................... 15
O Sermão da Montanha............................................................... 16
A «paraclese» na Carta aos Romanos............................................ 20
Outros textos de ensino moral...................................................... 23
Dois eixos da doutrina moral de São Paulo.................................. 26
li. O ensinamento moral dos Padres da Igreja................................... 29
III. O período clássico da teologia ocidental ...................................... 37
São Tomás de Aquino: a moral da felicidade
e das virtudes............................................................................ 37
IV. O período moderno: Os manuais de teologia moral.................... 47
As morais da obrigação................................................................. 47
A moral especial .............................................................. :,............ 51
140 SERVAIS-THÉODORE PINCKAERS ÍNDICE 141
PARTEII
UMA REFLEXÃO MAIS OIFfCIL DO QUE
SE PODE IMAGINAR...................................................................... 79
VI. A liberdade e a felicidade ............................................................. 81
Morais da felicidade e morais da obrigação .................................. 81
O divórcio entre a felicidade e a moral......................................... 83
A raiz do problema: a liberdade de qualidade e a liberdade
de indiferença ........................................................................... 84
Como a liberdade de qualidade gera morais da felicidade ............ 86
Como a liberdade de indiferença gera
moralidades de obrigação.......................................................... 88
Como reverter o divórcio entre a felicidade e a moral.................. 92
A redescoberta da natureza espiritual............................................ 93
Prazer e alegria: duas concepções de felicidade ............................. 93
Como a alegria pode reconciliar a felicidade e a vida moral......... 96
VII. O Espírito Santo e a Nova Lei................................................... 99
A Nova Lei ou Lei Evangélica...................................................... 100
Os elementos espirituais da Nova Lei ........................................... 102
Uma lei interior............................................................................ 102
A raiz: a fé em Cristo.................................................................... 103
A seiva: a caridade......................................................................... 105
A caridade e as virtudes ................................................................ 105
A caridade e os dons do Espírito Santo ........................................ 106
Os elementos materiais da Nova Lei............................................. 107
O Sermão da Montanha, texto da Nova Lei ................................ 108
Os sacramentos: instrumentos da Nova Lei.................................. 111
As instituições eclesiais a serviço da Nova Lei............................... 112
ESTE LIVRO ACABOU DE SE IMPRIMIR
A!º DE NOVEMBRO DE 2017.