Persp. Teol.

35 (2003) 71-86

LEX ORANDI LEX CREDENDI

ORIGEM, SENTIDO E IMPLICAES DE UM AXIOMA TEOLGICO

Francisco Taborda SJ

Seguindo o dinamismo da volta s fontes, a teologia sacramental redescobriu na Patrstica uma forma de abordar os sacramentos, distinta da maneira a que o II Milnio do cristianismo nos tinha habituado. Enquanto a Escolstica, responsvel pela sistematizao da teologia sacramental, havia ensinado a abord-los dedutivamente, a Patrstica refletiu sobre os sacramentos sem preocupao sistemtica, mas a partir da celebrao vivida em comunidade, indutivamente. nesse contexto que adquire nova fora o antigo adgio lex orandi lex credendi, retomado em tempos recentes, inclusive pelo magistrio eclesial e no sempre com muita fidelidade ao sentido original1.

Informaes gerais em K. FEDERER: Lex orandi lex credendi. LThK2 VI, 10011002. A. SCHILSON: Lex orandi lex credendi. LThK3 VI, 871-872. Uma ampla discusso em G. WAINWRIGHT: Doxology. The Praise of God in Worship, Doctrine and Life: a Systematic Theology. New York: Oxford University Press, 1980, 218-283. Veja-se tambm C. GIRAUDO: In unum corpus: Trattatto mistagogico sulleucaristia. Cinisello Balsamo (Milano): San Paolo, 2001, especialmente 22-27 (tr. bras.: Num s corpo : Tratado mistaggico sobre a Eucaristia. So Paulo: Loyola, 2003, no prelo).

71

Este estudo pretende inquirir sobre as origens do adgio, para compreend-lo melhor; considerar as transformaes a que foi submetido e, por fim, ressaltar suas implicaes para a teologia atual.

1. O adgio em seu contexto original2

A expresso, consagrada como verdadeiro axioma3, encontra-se originalmente no opsculo conhecido como Indiculus de gratia Dei [Pequeno catlogo sobre a graa de Deus], oriundo da Cria Romana, no sc. V, por muito tempo atribudo ao Papa Celestino I, hoje considerado unanimemente pela crtica como da autoria de Prspero de Aquitnia4. Prspero ( depois de 455)5 foi um leigo com boa formao teolgica. Embora atrado para Marselha pela fundao do mosteiro de Vtor de Lrins, nunca se tornou monge. Quando iniciou a polmica semipelagiana, entrou em contato epistolar com Agostinho que lhe enviou duas de suas obras: o De predestinatione sanctorum (A predestinao dos santos) e o De dono perseverantiae (O dom da perseverana). Em 431 foi a Roma, onde obteve de Celestino I uma carta aos bispos da Glia, esclarecendo sobre a heresia dos mosteiros da Provena. Volta a Marselha, onde fica at a morte de Joo Cassiano (440), quando se muda para Roma. L se pe a servio do Papa Leo Magno. O semipelagianismo6 uma reformulao moderada do pelagianismo. Pelgio ( 427) negara a necessidade da graa para que o ser humano possa realizar o bem. Agostinho saiu em defesa da absoluta prioridade da graa. Os semipelagianos, temendo que a posio de Agostinho acabasse por anular o livre arbtrio, negar os mritos humanos e levar a uma predestinao fatalista, procuraram um meio termo, pois esta2 Cf. a ampla pesquisa histrica de K. FEDERER : Liturgie und Glaube. Eine theologiegeschichtliche Untersuchung. Freiburg in der Schweiz: Paulusverlag, 1950. P. DE CLERCK: Lex orandi, lex credendi. Sens originel et avatars historiques dun adage quivoque. QuLi 59 (1978) 193-212 (aqui: 194-206). WAINWRIGHT: ob. cit., 224-235. GIRAUDO: ob. cit., 22-27. Veja-se tambm P. DE CLERCK: La prire universelle, expression de la foi, em: A. PISTOIA / A. M. TRIACCA (ed.): La liturgie, expression de la foi: Confrences de Saint-Serge. XXVe Semaine dtudes Liturgiques. Paris, 27 30 Juin 1978. Roma: Ed. Liturgiche, 1979, 129-146. 3 Como define GIRAUDO: ob. cit., 2224, axioma uma sentena que goza de particular dignidade (cf. grego ajxivwma) e autoridade. Enquanto princpio que no tem necessidade de ser demonstrado, ou princpio primeiro, admitido por todos e, portanto, absoluto, normativo. Um exemplo clssico de axioma deve-se fazer o bem e evitar o mal. 4 Cf. PRSPERO DE AQUITNIA: De gratia Dei et libero voluntatis arbitrio, 8. PL 51, 209-210 (DS 246). A obra mais conhecida como Indiculus de gratia Dei e tambm chamada de Capitula de gratia. 5 Cf. D. RAMOS-LISSN: Prosper Tiro v. Aquitanien, em LThK3 8, 644-645. 6 Cf. G. L. MLLER: Semipelagianismus, em LThK3 9, 451-453.

72

vam interessados em que no se viesse a considerar desnecessrio o esforo asctico e espiritual, to importante no monaquismo. Para eles o ser humano deve tomar a iniciativa para obter a graa. A experincia religiosa (initium fidei) est condicionada e proporcional ao esforo humano. Contra os semipelagianos, Prspero sai em defesa da posio de Agostinho. Dado seu prestgio junto aos papas, Prspero teve oportunidade de exercer sua influncia contra o semipelagianismo no s nas disputas locais. Em sua poca romana redigiu sua obra mais famosa o Indiculus de gratia Dei, tambm denominado Capitula de gratia, que a obra que aqui nos interessa. Ela uma coletnea de textos para provar a necessidade da graa para o incio da f. Como os adversrios aceitavam a autoridade papal, os cap. 1-6 recolhem textos dos papas Inocncio I (401-417) e Zzimo (417-418), razo por que, durante muito tempo, o Indiculus foi atribudo a Inocncio I e gozou de prestgio magisterial. O cap. 7 traz as decises do Conclio de Cartago, de 418, e no cap. 8 que aqui interessa mais especificamente Prspero argumenta a partir da norma do orar. Leiamos o texto:
Alm dessas decises inviolveis da beatssima S Apostlica, com as quais os piedosssimos Padres, rejeitando o orgulho da pestfera novidade, nos ensinaram a atribuir graa de Cristo tanto os incios da boa vontade, quanto os progressos devidos a esforos louvveis e a perseverana neles at o fim, consideremos tambm os sacramentos das splicas sacerdotais, que, transmitidos pelos apstolos, so celebrados uniformemente em todo o mundo e em toda a Igreja catlica, para que a norma do orar estabelea a regra do crer (UT LEGEM CREDENDI LEX STATUAT SUPPLICANDI). Quando quem preside as santas assemblias desempenha a misso que lhe foi confiada, apresenta divina clemncia a causa do gnero humano e, gemendo com ele, toda a Igreja pede e suplica que aos infiis seja dada a f; que os idlatras sejam libertos dos erros de sua impiedade; que, tirado o vu que cobre o corao, a luz da verdade se manifeste aos judeus; que os herticos se arrependam, acolhendo a f catlica; que os cismticos recebam o esprito de uma caridade renovada; que aos apstatas sejam concedidos os remdios da penitncia; enfim, que aos catecmenos conduzidos aos sacramentos do novo nascimento seja aberta a morada da misericrdia celeste. O efeito [dessas oraes] demonstra que essas coisas no so pedidas superfluamente nem em vo ao Senhor, pois Deus se digna retirar muitos de toda espcie de erros e, arrancando-os do poder das trevas, os transfere ao reino do Filho de seu amor [cf. Cl 1,13] e dos vasos de 73

ira faz vasos de misericrdia [cf. Rm 9,22-23]. Tudo isso obra de Deus, como o faz perceber o fato de sempre se oferecerem a Deus aes de graas e confisses de louvor pela iluminao ou correo dessas pessoas7.

O argumento de Prspero parte dos sacramentos das splicas sacerdotais (obsecrationum sacerdotalium sacramenta) que se realizam em toda a Igreja, desde os tempos apostlicos. Essa prtica da Igreja deve ser considerada na discusso contra o semipelagianismo, para que a norma do orar determine a regra do crer (isto , a regra de f). Quando o encarregado da orao eclesial, sustentado pela splica de toda a Igreja, pede pela converso dos infiis, dos idlatras, dos judeus, dos hereges, dos cismticos, dos penitentes, dos catecmenos, no o faz em vo, como se mostra pelos efeitos da orao, a graa da converso dessas pessoas. Da se segue que toda vez que uma converso acontece, ela obra da graa de Deus, suplicada pela Igreja. Embora o adgio se encontre numa orao subordinada: para que a norma do orar estabelea a regra do crer (ut legem credendi lex statuat supplicandi), tem valor de princpio universal e a premissa maior do raciocnio de Prspero. O carter subordinado da orao mero fato sinttico. Analisado luz da lgica menor, o argumento de Prspero pode ser esquematizado assim:
A norma do orar determina a norma do crer; ORA, ns oramos para que Deus conceda aos maus a graa necessria converso, e muitos se convertem; LOGO, devemos crer que, aos maus que se convertem, Deus concede a graa necessria converso8.

Depois da anlise da funo sinttica e lgica do adgio no texto de Prspero, passemos ao estudo do contedo do axioma. O que Prspero compreende por lex supplicandi (tal sua expresso), pode ser mais bem esclarecido a partir de outra obra sua, intitulada De vocatione omnium gentium, escrita em Roma por volta do ano de 4509. O autor discute aqui o texto 1Tm 2,1-6 sobre a vontade salvfica universal de Deus, j que os semipelagianos acusam os agostinianos de negarem essa verdade de f. Para refut-los, Prspero chama a ateno para o contexto da percope em questo. Paulo pede que se reze por todos os seres humanos. Prspero identifica a uma ordem de Deus, transmitida pelo apstolo, a ordem da splica (ordo supplicationis). E evoca tambm aqui a orao da Igreja por toda a terra, intercedendo pela converso dos infiis, idlatras, perseguidores, judeus, herticos, cismticos, como argumento contra os semipelagianos.
7 8 9

Todo o captulo 8 pode ser lido em DS 246. GIRAUDO: ob. cit., 24. Cf. PRSPERO DE AQUITNIA: De vocatione omnium gentium I, 12. PL 51, 664-665.

74

Ao tentar identificar a lex supplicandi que deve determinar a lex credendi, os liturgistas, a partir dos exemplos dados por Prspero, muitas vezes pensaram tratar-se de uma ao litrgica concreta, a orao universal da Sexta-feira Santa, cujas intenes apresentam notvel semelhana com a lista fornecida por Prspero. Entretanto, considerando mais de perto o texto, v-se que a lex em questo no um texto litrgico, nem qualquer uso litrgico ou determinada maneira de orar, mas a ordem de Paulo, em 1Tm 2,1-2, para que se interceda por toda a humanidade. O texto , alis, uma simples recomendao, mas Prspero o interpreta como ordem, lei, preceito, obrigao. a lex supplicandi ou o ordo supplicationis. Embora pudesse ter citado outras intenes como a conservao da hierarquia da Igreja, a perseverana dos fiis, o descanso eterno dos falecidos em Cristo, Prspero menciona apenas as intenes que se referem aos maus, pois elas abrem caminho para sua concluso numa argumentao a fortiori: se Deus intervm em favor dos maus, quanto mais o far em relao aos bons. Vale dizer: tambm os bons precisam da graa de Deus para suas boas obras e para sua perseverana. Prspero acrescenta que a lex supplicandi obedecida pela Igreja por toda parte do mundo. Isso fundamental na polmica. Para entender a importncia da universalidade do uso da Igreja, leiamos um texto do Commonitorium do semipelagiano Vicente de Lrins ( cerca de 450):
Na Igreja catlica deve-se cuidar sobremaneira de manter o que foi crido em toda parte, sempre e por todos (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est). Pois verdadeira e propriamente catlico o que como o mostra a fora mesma e a etimologia do nome abraa quase universalmente tudo. Mas isso acontecer s se seguirmos a universalidade, a antiguidade, o consenso unnime. Seguiremos a universalidade, se afirmarmos que verdadeira s a f que a Igreja inteira professa por todo o orbe terrestre; a antiguidade, se de nenhum modo nos afastamos do sentido que manifestamente abraaram nossos santos antepassados e pais; seguiremos igualmente o consenso unnime, se, em relao a essa mesma antiguidade, nos ativermos s definies e s sentenas de todos, ou pelo menos de quase todos, os sacerdotes e mestres10.

Diante da universalidade das preces dirigidas a Deus em favor dos maus, os semipelagianos devero aceitar o argumento de Prspero, j que foi seu prcer mesmo, Vicente de Lrins, quem estabeleceu como critrio da doutrina ortodoxa o que foi acreditado em toda parte, sempre e por todos. Aplicando lex orandi, poderamos dizer que o que em toda parte, sempre e por todos foi objeto de orao s
10

VICENTE

DE

LRINS: Commonitorium I, 2. PL 50, 640.

75

pode ser normativo da f. A norma permite, portanto, concluir que a lex orandi o prprio sensus fidelium, a universalidade no tempo e no espao daquilo que a Igreja, conduzida pelo Esprito Santo, faz ao orar. A ao do Esprito nesse contexto aparece claramente, quando Prspero pergunta retoricamente em outra obra: Ou o que a Igreja pede todos os dias em favor de seus inimigos, isto , em favor daqueles que ainda no creram em Deus, por acaso no o faz pelo Esprito de Deus?11. Por fim, a lex supplicandi se expressa no contedo da orao da Igreja. Prspero menciona as intenes em que a Igreja ora. Se a Igreja pede por essas pessoas, a prova de que s Deus o autor de sua converso. A ordem de suplicar, dada em 1Tm e obedecida pela Igreja sob a orientao do Esprito Santo, determina a regra de f. Teramos assim os seguintes critrios para qualificar a lex orandi: 1) Considerando um primeiro nvel de argumentao, o que pesa para determinar o que lex orandi sua fundamentao escriturstica. 2) Esta reforada pelo uso da Igreja, o sensus Ecclesiae expresso na sua prtica litrgica. Este segundo nvel de argumentao pesa tanto mais quanto a prtica de origem apostlica, seguida desde ento e conhecida por todas as Igrejas no mundo todo (semper et ubique). 3) S ento entra o terceiro nvel da argumentao: o contedo da prece da Igreja. Vale dizer: as frmulas litrgicas no valem por si, seno por se basearem na Escritura e serem atestadas pela Tradio em todas as partes. Significa que no qualquer uso litrgico ou expresso da orao da Igreja , por si, expresso da f. A liturgia lugar teolgico na medida em que fundada sobre a Escritura e em que d, da Tradio viva, seu eco particular, que potico, simblico e existencial, bem mais que racional12.

2. O contedo do axioma
Se a formulao consagrada do axioma obra de Prspero de Aquitnia, seu contedo foi tomado de Agostinho. Encontramo-lo em vrios textos do Bispo de Hipona, em diversas formulaes. Um primeiro exemplo pode ser tomado de uma carta de Agostinho contra Pelgio dirigida ao Papa Inocncio I. Argumentando em favor

11

PRSPERO DE AQUITNIA: Contra Collatorem, 12, 3. PL 51, 245: Aut quod Ecclesia quotidie pro inimicis suis orat, id est, pro his qui necdum Deo crediderunt, numquid non ex Spiritu Dei facit? 12 DE CLERCK: art. cit., QuLi 1978, 206.

76

da necessidade da graa, o bispo de Hipona parte da orao litrgica e, referindo-se ao pedido do Pai-nosso no nos deixeis cair em tentao, escreve: A prpria orao um testemunho clarssimo da graa13. Em sua obra De dono perseverantiae (O dom da perseverana), Agostinho escreve:
Oxal aqueles que, por lentido de corao e por fraqueza, no podem ou ainda no podem compreender as Escrituras ou seus comentrios, quer ouam, quer no ouam nossas disputas sobre esta questo, prestem maior ateno a suas oraes, oraes que a Igreja sempre teve e ter (orationes..., quas semper habuit et habebit Ecclesia), desde seus primrdios at que este mundo acabe14.

Mas o enfoque da argumentao de Prspero um pouco diferente do de Agostinho: enquanto este argumenta a partir da orao da Igreja e de seu contedo para concluir pela necessidade da graa, a argumentao daquele primeiramente bblica (a ordem de Paulo em 1Tm). Agostinho, por sua vez, no o primeiro a assumir a orao da Igreja como critrio de f. Nesse ponto ele devedor de outro Padre da Igreja: Cipriano de Cartago, que, em seu comentrio do Pai-nosso, mencionado por Agostinho, cria a expresso lex orationis15 e usa mesmo o latim lex orandi, to prximo lex supplicandi de Prspero de Aquitnia. Para Cipriano de Cartago o Pai-nosso norma para a vida crist. Se o Senhor ensinou a invocar o Pai como Pai nosso (e no: meu), quis que um orasse pelo outro, como ele prprio nos conduziu todos unidade16. E prossegue observando que essa lex orandi j foi observada pelos trs jovens na fornalha ardente que oravam a uma s voz (cf. Dn 3,51). No caso, porm, a expresso lex orandi se refere obrigao de orarmos uns pelos outros, de pensarmos nos outros, quando oramos. Posteriormente, explicando o de cada dia do po nosso, Cipriano fala do desapego dos bens, da ajuda aos pobres e acrescenta: Para que cada um de ns se possa preparar para isso, aprenda a orar

AGOSTINHO: Ep. 177, 4. PL 33, 766: Ipsa igitur oratio clarissima est gratiae testificatio. ID.: Ep. 217, 2 e 6. PL 33, 978-981. Alis, aqui entraria em questo toda a Ep. 217 e especialmente o resumo que Agostinho faz no final Ep. 217, 30. PL 33, 989. ID.: De dono perseverantiae 23, 63-65. PL 45, 1031-1033 (mas em particular o n 63, col. 1031-1032). 14 AGOSTINHO, De dono perseverantiae 23,63 (PL 45, 1031). 15 Cf. AGOSTINHO: Ep. 217, 2. PL 33, 979. CIPRIANO DE CARTAGO: De oratione Dominica, 8 e 20. PL 4, 523-524 e 533. 16 CIPRIANO DE CARTAGO: De oratione Dominica 8. PL 4, 524: sic orare unum pro omnibus voluit, quomodo in uno omnes ipse portavit.

13

77

assim e a conhecer, pela lei da orao, como deva ser17 . E, em outra parte, referindo-se mesma orao, escreve: Portanto, quando [o Senhor] deu a lei de orar, acrescentou: E quando estiverdes orando, se tiverdes alguma coisa contra algum, perdoai-lhe... (Mc 11,25)18. Cipriano, que no escreve em contexto da polmica contra o semipelagianismo, se apia num texto bblico, o Pai-nosso, utilizado na liturgia, e est, assim, mais perto de Prspero que de Agostinho. Em outras palavras: para Cipriano e Prspero a autoridade da lex orandi se assenta na Bblia como a Igreja a compreende e pratica na liturgia. Por outro lado, entre Cipriano e Agostinho/Prspero h outra diferena: a lex orationis de Cipriano antes critrio de ortoprxis que de ortodoxia, enquanto em Agostinho e seu seguidor Prspero critrio de ortodoxia. Com isso j se antecipa uma problemtica que voltar mais adiante (cf. ponto 5).

3. A inverso do axioma19
O adgio foi longo tempo esquecido, at que no sc. XIX, Prosper Guranger (1875), um dos iniciadores do movimento litrgico, o ressuscitou, fazendo valer no s no sentido de Prspero: na direo da lex orandi lex credendi, mas tambm num sentido novo, invertendo o adgio: a lex credendi determina a lex orandi. Na perspectiva de seu ultramontanismo20, Guranger viu a liturgia como veculo do magistrio romano. Para ele, a liturgia romana, como liturgia da Igreja do Papa, a que, por excelncia, exprime a f catlica. Dentro dessa perspectiva, o adgio comea a ser usado em documentos pontifcios. Pio IX emprega-o na bula Ineffabilis Deus, de 8 de dezembro de 1854, para fundamentar o dogma da imaculada conceio, proclamado por essa bula21. Pio XI emprega o adgio na encclica Quas
17

ID.: ib., 20. PL 4, 533: Ad quod ut possit unusquisque nostrum parare se, sic discat orare et de orationis lege qualis esse debeat noscere. De resto, seu bigrafo antigo PONTIUS: Vita Caecilii Cypriani 7. CSEL vol. 3, pars 3, p. XCVII, referindose aos feitos de Cipriano diz ter ele transmitido a lei da prece evanglica. 18 CIPRIANO DE CARTAGO: De catholicae ecclesiae unitate, 13. PL 4, 509-510: Ideo et cum orandi legem daret, addidit dicens: Et cum steteritis ad orationem, remittite.... 19 Cf. DE CLERCK: art. cit., QuLi 1978, 206-208 (Guranger).208-211 (at a Mediator Dei). Matizes na interpretao, a partir de WAINWRIGHT: ob. cit., 218-224. 20 O ultramontanismo se caracterizava pela busca de estrita submisso doutrina e prtica da Igreja romana, pela orientao contrria Ilustrao e revoluo burguesa e, conseqentemente, s liberdades democrticas, adotando uma base teolgica tendente ao tradicionalismo e ao fidesmo. Cf. K. SCHATZ: Ultramontanismus, em LThK3 10, 360-362. 21 Acta et decreta Sacrorum Conciliorum recentiorum. Collectio Lacensis VI, Friburgi Brisgoviae: Herder, 1882, 836-843 (aqui: 837).

78

primas, de 11 de dezembro de 1925, com a qual institui a festa de Cristo Rei22, e na constituio apostlica Divini cultus, de 20 de dezembro de 1928, sobre a liturgia e o canto gregoriano23. Pio XII recorre ao adgio na encclica Divino afflante Spiritu, de 30 de setembro de 1943, sobre a Sagrada Escritura24 e na constituio apostlica Munificentissimus Deus, de 1 de novembro de 1950, com que proclamou o dogma da assuno de Nossa Senhora25. Mas foi na encclica Mediator Dei, de 1947, que abordou diretamente o axioma. Primeiramente rejeita a interpretao modernista de G. Tyrrell que, a partir do adgio, entende a liturgia como experincia da verdade: se uma doutrina na liturgia produz frutos de piedade e vida crist, a Igreja a aprova; caso contrrio, a rejeita. A vivncia religiosa subjetiva se tornaria norma de f. Explicando o adgio, Pio XII o usa em duas mos: a lex orandi lex credendi se torna tambm lex credendi lex orandi. Ou seja: encontra nele dois sentidos distintos: por um lado, como vinha sendo assumido como sentido tradicional, a liturgia justifica a doutrina; por outro, tira da a conseqncia de que ento o magistrio deve regrar o uso litrgico. Ao princpio de que a lei do suplicar deve estabelecer a lei do crer (legem credendi lex statuat supplicandi) acrescenta sua inverso: a lei do crer deve estabelecer a lei do suplicar (lex credendi legem statuat supplicandi)26. De Clerck considera essa inverso do adgio uma concepo no tradicional e to unilateral como a de Tyrrell, criticada por Pio XII. Entretanto, Wainwright mostrou que o controle da liturgia com fins dogmticos pertence tradio da Igreja, foi praticada na antiguidade, usual na Igreja Catlica e tambm conhecida nas Igrejas oriundas da Reforma27. Segundo Wainwright, j Paulo fez assim, quando, a partir de critrios doutrinais, como a inteligibilidade da mensagem crist, a prioridade da edificao da Igreja, o fato de Deus ser um Deus da paz e no da confuso, tratou de estabelecer regras para as prticas carismticas no culto em Corinto (cf. 1Cor 14). No mesmo sentido vai a instruo sobre a ceia do Senhor, em 1Cor 11, baseada na soteriologia e na escatologia. Na Igreja antiga encontramos reclamaes de Orgenes sobre os bispos que introduzem na orao eucarstica idias excntricas que querem propagar28. Cipriano denuncia o uso de palavras
22

23

AAS 17 (1925) 598. AAS 21 (1929) 33-34. 24 AAS 35 (1943) 311. DS 3828. 25 AAS 42 (1950) 758-760 e 769. 26 AAS 39 (1947) 521-600 (aqui: 541). 27 Cf. WAINWRIGHT: ob. cit., 251-271. 28 Cf. ORGENES: Dilektoi prs Herakleiden, 4. SChr 67, 62-62, no contexto de tudo que precede. Cf. Entretien dOrigne avec Hraclide. Introduction, textes, traduction et notes Jean SCHERER. Paris: Cerf, 1960 (cf. introduo 31-32).

79

ilcitas na orao eucarstica pelos novacianos29. Em termos gerais, pode-se dizer que a preocupao antiariana teve efeitos profundos na liturgia30. Com relao Igreja Catlica, Wainwright aduz exemplos do dogma confirmado pela liturgia ou por ela antecipado, mas tambm de doutrinas incentivadas pelos papas atravs da liturgia (assim a festa de Corpus Christi, na Idade Mdia, a da Imaculada Conceio, a partir do sc. XV, e a de Cristo Rei, no sc. XX, todas com sentido de inculcar alguma verdade dogmtica). O uso do latim na liturgia romana foi defendido a partir do temor de que a lngua vulgar possibilitasse adulteraes doutrinais nas tradues31. Tambm os Reformadores, para fazer prevalecer sua doutrina, modificaram a liturgia eucarstica, de acordo com a teologia que julgavam adequada32. Os exemplos aduzidos em favor da legitimidade da inverso do axioma no levam em considerao os trs critrios de Prspero: fundamentao bblica, uso imemorial e universal da Igreja, contedo da prece, mas se detm no contedo e vem na liturgia uma forma de transmitir determinada idia e no a celebrao do mistrio, tal como ainda o entendia Prspero. Com isso j se passa questo da liturgia como lugar teolgico.

4. Corolrio do axioma: a liturgia como lugar teolgico

O primeiro sentido do axioma, que tambm o mais usual, a lex orandi como critrio da lex credendi, traz consigo um perigo, contra o qual se deve advertir: o de passar por cima do carter prprio da liturgia que no racional, discursiva, mas simblica, existencial, celebrao do mistrio. Se, porm, preciso manter a diferena de linguagem dos dois mbitos distintos, a celebrao e a doutrina, levanta-se o problema de como relacionar liturgia e teologia, como a liturgia, que, por natureza, simblica, comunitria, pode ser fonte adequada de conhecimento teolgico. Perguntar pela relao liturgia teologia perguntar pela liturgia como lugar teolgico, lugar da expresso da f, em que a revelao se torna acessvel a ns33. Melchior Cano ( 1560), cuja monumental

29

30

Cf. CIPRIANO DE CARTAGO: De catholicae Ecclesiae unitate, 17. PL 4, 529. Cf. J. A. JUNGMANN: Die Stellung Christi im liturgischen Gebet. Mnster/Westf.: Aschendorff, 1925, 151-168. 31 Assim ainda Pio XII na Mediator Dei, AAS 39 (1947) 545. 32 Exemplos tomados de todos os ramos da Reforma, em WAINWRIGHT: ob. cit., 263271. 33 Cf. G. LUKKEN: Per visibilia ad invisibilia. Anthropological, Theological and Semiotic Studies on the Liturgy and the Sacraments (edited by Louis VAN TONGEREN and Charles CASPERS). Kampen: Pharos, 1994, 242.

80

obra intitulada De locis theologicis sistematiza a questo dos lugares teolgicos, simplesmente ignorou essa condio da liturgia, com conseqncias histricas para ambas, teologia e liturgia, j que o livro de Cano foi durante sculos uma obra fundamental e determinante para a metodologia teolgica. Graas retomada do adgio lex orandi lex credendi, a condio de lugar teolgico voltou a ser atribuda liturgia, como j o haviam feito Agostinho e Prspero de Aquitnia. A fonte da teologia a f da Igreja, no s a f explicitada em dogmas e outras verbalizaes, mas tambm a f vivida concretamente em obras, nos smbolos, nos ritos34. Essas expresses de f citadas por ltimo (prtica e celebrao crists) constituem a teologia primeira; o que fazem os telogos e o magistrio teologia segunda35. A primeira no menos importante que a segunda. Pelo contrrio, sem a primeira, a segunda perde o contato vivencial com o mistrio, sua fonte originria, sai do caminho seguro, corre o risco de tornar-se rida e estranha revelao. Dando ateno teologia primeira, o telogo mantm a modstia e a atitude doxolgica36. A liturgia um dos lugares teolgicos primeiros, porque a experincia crist comea a fazer parte da vida humana, quando se expressa em smbolos37. A f crist deve, sim, expressar-se em ortoprxis, mas no suficiente plena estrutura da experincia de f. Faz-se necessrio que se expresse em smbolos que do aos sentimentos e disposies ntimas estatura e forma, pois no smbolo o ser humano atualiza sua verdade mais nuclear com todas as suas faculdades. o que acontece na liturgia. Expressar a f na liturgia capital para que a f seja assimilada interiormente e passe s aes. Nenhuma outra expresso de f substitui a liturgia, como a prosa no substitui a poesia e as palavras no substituem a msica38. H mesmo quem diga que a liturgia no apenas um lugar teolgico insubstituvel, mas uma maneira de ser da revelao crist, uma teologia primria que d orientao a toda teologia, principalmen-

Cf. E. SCHILLEBEECKX: A liturgia, lugar teolgico. Revelao e teologia. So Paulo: Paulinas, 1968, 189-192. 35 Cf. G. GUTIRREZ: El Dios de la vida. Lima: Pontificia Universidad Catlica del Peru, s/d [1982], 6-8. Cf. tambm D. POWER: Duas expresses da f: liturgia e teologia. Conc(Br) n 82 (1973) 225-232. 36 Doxa, em grego, significa glria e tambm opinio, sentena. A palavra ortodoxia (a doxa [opinio] correta) aparentada com doxologia (a palavra de doxa [glorificao]), pois se expressar corretamente sobre Deus dar-lhe glria, reconhecer seus benefcios. 37 Cf. LUKKEN: ob. cit., 244. O mesmo se poderia dizer em termos de festa: cf. Francisco TABORDA: Sacramentos, prxis e festa: Para uma teologia latino-americana dos sacramentos. Petrpolis: Vozes, 41998. 38 LUKKEN: ob. cit., 245.

34

81

te em sua reflexo sobre Deus, porque a liturgia dilogo com Deus39. Entretanto, importante no confundir os distintos planos. A liturgia fundamentalmente celebrao do mistrio de Cristo40, enquanto a teologia aprofunda esse mesmo mistrio no contexto de uma determinada cultura, com o instrumental da racionalidade prpria a essa cultura. A liturgia expressa a f de modo evocativo, potico, simblico, existencial e assim nos pe em contato com o evento fundador. Sua finalidade primeira no expressar a f racionalmente, mas celebr-la existencialmente e transportar-nos sacramentalmente ao evento-base de nossa f. A partir da se deve dizer que o axioma no pode ser interpretado simplistamente como se o uso litrgico nos fornecesse a norma da f. um curto circuito epistemolgico que leva canonizao do status quo eclesial. Tampouco parece adequado querer reduzir a teologia a liturgia pensada, por mais original e apaziguadora que parea a expresso atribuda a Walter Kasper41. Orientando-nos por Prspero de Aquitnia, o criador do axioma em sua forma consagrada, poderamos indicar trs passos para o uso adequado da liturgia como lugar teolgico em acordo com a tradio42. Deve-se, primeiramente, perguntar a que lex, a que lei de Escritura a prtica litrgica em questo obedece. Num segundo passo, cabe observar como a Igreja, ao concretizar essa prtica litrgica em realizaes particulares que a universalizam, responde aos dados escritursticos que a fundamentam. Um terceiro passo seria interrogar como a liturgia, com seus ritos e textos, celebra aquela lei da Escritura. Alm disso, seria preciso levar em considerao como se pode e deve ser fiel quela lei, respondendo s necessidades dos cristos de hoje ou das pessoas que chegam f a partir de determinado ambiente cultural completamente estranho ao mundo mediterrneo de cultura semtico-helenstica (inculturao da liturgia).

5. Lex orandi lex credendi lex agendi

Na discusso em torno relao teologia liturgia e a condio de lugar teolgico desta ltima se esquece facilmente um aspecto da vida crist: a tica, a prtica, a vida concreta, que o cho onde a
39 40

Cf. LUKKEN: ob. cit., 256. CLERCK: art. cit., QuLi 1978, 211 (itlico meu). 41 Cf. A. SCHILSON: Gedachte Liturgie als Mystagogie. berlegungen zum Verhltnis von Dogmatik und Liturgie, em: E. SCHOCKENHOFF / P. WALTER (Hrsg.): Dogma und Glaube. Bausteine fr eine theologische Erkenntnistheorie. FS Bischof Walter KASPER. Mainz: Matthias-Grnewald-Verlag, 1993, 213-234. 42 Cf. DE CLERCK: art. cit., QuLi 1978, 212.
DE

82

f celebrada vivida e que esta deve impregnar43. Aqui entra a crtica protestante ao movimento litrgico, na Igreja catlica ou nas prprias Igrejas oriundas da Reforma, expressa lapidarmente pelo telogo e mrtir Bonhoeffer: S quem grita em favor dos judeus, tem o direito de cantar gregoriano44. A vida crist apresenta trs momentos que lhe so intrnsecos: liturgia f tica (compreendendo sob esta ltima a a prtica da vida crist de cada dia). Se no se leva em considerao a interdependncia dos trs momentos, no se esclarecem as relaes entre quaisquer dos outros dois componentes da trade. Assim como na Trindade no se podem considerar as relaes entre duas pessoas sem levar a srio a terceira, ou seja, sem considerar as duas pessoas em questo na perspectiva intratrinitria total, assim tambm orao f agir so trs aspectos da existncia crist to fundamentalmente unidos que toda reflexo sobre a relao entre dois sem o terceiro inadequada45. Na teologia latino-americana, essa problemtica foi sentida no tocante ao mtodo ver julgar agir, to usado na prtica pastoral e na reflexo teolgica da teologia da libertao46. Pouco a pouco se foi tornando mais freqente acrescentar dois elementos trade clssica e falar em ver julgar agir celebrar rever47. Com isso, por um lado, fica claro o carter espiral do mtodo: o ver scio-analtico no um primeiro momento isolado, que surge como que do nada (ex nihilo sui et subjecti), mas j sempre um rever iluminado pelo julgar teolgico e pelo agir e animado pelo celebrar; por outro lado, a realidade (ver), a f (julga) e a prtica (agir) provm da comunicao do mist~erio vivenciada na liturgia e dever ser assimiladas existencialmente na celebrao da f, para penetrarem todas as fibras do ser humano.

43 Cf. T. BERGER: Lex orandi lex credendi lex agendi. Auf dem Weg zu einer kumenisch konsensfhigen Verhltnisbestimmung von Liturgie, Theologie und Ethik. ALW 27 (1985) 425-432. Desde uma perspectiva completamente distinta, a questo abordada por A. M. TRIACCA: Le sens thologique de la liturgie et/ou le sens liturgique de la thologie. Esquisse initiale pour une synthse, em: A. PISTOIA / A. M. TRIACCA (ed.): La liturgie, son sens, son esprit, sa mthode. Liturgie et thologie: Confrences de Saint-Serge. XXVIIIe Semaine dtudes Liturgiques. Paris, 30 Juin 3 Juillet 1981. Roma: Ed. Liturgiche, 1982, 321-337. 44 D. BONHOEFFER, citado por E. BETHGE: Dietrich Bonhoeffer. Theologe Christ Zeitgenosse. Mnchen: Chr. Kaiser Verlag 1967, 685. 45 Cf. a dimenso trinitria da relao entre prxis e festa. Cf. F. TABORDA: Cristianismo e ideologia. Ensaios teolgicos. So Paulo: Loyola, 1984, 81-84. 46 Cf. C. BOFF: Teologia e prtica. Teologia do Poltico e suas mediaes. Petrpolis: Vozes, 31993. 47 Assumido, por exemplo, como bvio na carta s CEBs elaborada pelos bispos presentes ao X Encontro Intereclesial de Comunidades Eclesiais de Base, Ilhus, BA, julho de 2000. Cf. F. TEIXEIRA: O resgate e a afirmao de um sonho. O X Encontro Intereclesial de CEBs. PerspTeol 32 (2000) 393-413 (aqui: 408).

83

Jon Sobrino, em sua reflexo sobre a orao crist, j havia chamado a ateno a essa unidade. A orao crist sempre constituda por trs momentos: ouvir a Palavra de Deus, fazer o que se escutou e responder na ao de graas ou no pedido de perdo48. Entre as formas de ouvir a Palavra de Deus est, sem dvida, tambm a teologia, pois ela um ouvir que reflete e aprofunda intelectualmente a Palavra49. Essa estrutura do orar cristo poderia tambm ser expressa em termos de lex orandi lex credendi lex agendi. Aos trs mbitos prprio o momento doxolgico50. Nesse sentido, a liturgia cume e tope da vida crist. Ela explicita que a meta dos outros dois mbitos da existncia crist o louvor de Deus51. Em ltima anlise, trata-se sempre do mistrio de Deus num momento celebrado, noutro pensado, noutro praticado. A unidade inseparvel dos trs mbitos confirmada pela unidade dos trs mnus que cabem ao cristo pelo batismo-crisma: sacerdote profeta rei52. Eles constituem uma unidade, em que cada ttulo acentua um aspecto diferente j contido nos outros: ao sacerdote cabe a liturgia, ao profeta a proclamao da Palavra, ao rei a criao de comunho e comunidade. Todos os trs constituem indissociavelmente o sacerdcio comum dos cristos, sua vocao a dar glria a Deus em todas as suas aes. A relao entre os trs termos liturgia-f-tica traz consigo uma conseqncia altamente positiva para o dilogo ecumnico, mas tambm simplesmente para a vida da Igreja. Relacionando a lex agendi com a lex orandi e a lex credendi , evita-se qualquer perigo de pelagianismo, pois a tica deixa de ser um dever a ser executado como obra nossa e passa ser vista como conseqncia da liturgia e da f. Porque cremos que Deus se manifestou assim em seu Filho Jesus e nos enviou seu Esprito e porque somos envolvidos, pela misericr48

Esses trs momentos explicitados por Cf. J. SOBRINO: La oracin de Jess y del cristiano. Bogot: Paulinas, 1979, 64-65. Cf. ID.: Jesus, o libertador. I: A histria de Jesus de Nazar. So Paulo: Vozes, 1994, 207-211. 49 Nesse contexto, lembre-se a proposta de uma teologia orante (Hans-Urs von Balthasar) ou de uma teologia de joelhos (eine kniende Theologie) (Karl Rahner). 50 O que poderia permitir que se entendesse corretamente a afirmao de que tudo orao. 51 To certo como a dogmtica no ela mesma doxologia, to certo que ela, como doutrina sobre Deus, no pode separar-se da doxologia e tornar-se autnoma, sem sofrer prejuzo. A doutrina sobre Deus no doxologia, mas cabe a ela introduzir na doxologia e pr-se a seu servio. E. SCHLINK: kumenische Dogmatik: Grundzge. Gttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1983, 65. Quanto relao entre tica e doxologia, lembre-se a afirmao deuteropaulina: E tudo o que fizerdes de palavra ou ao, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando graas a Deus, o Pai (Cl 3,17). 52 Cf. F. TABORDA: ob. cit. (Nas fontes...), 235-240.

84

dia de Deus, no movimento intratrinitrio, participando em Cristo da vida divina pela ao do Esprito, procuramos corresponder com nossa vida condescendncia de Deus para conosco. A liturgia, por sua vez, no ser simplesmente um momento de vivncia esttica, mas o deixar que o mistrio de Deus penetre nossas vidas, e o de trazer para diante (offerre) de Deus o que estamos tentando viver no dia-a-dia. E a f no ser um conhecimento de curiosidade intelectual, mas a entrega a Deus numa vida de seguimento de Jesus e na celebrao da gratuidade do Deus que se manifesta atravs de gestos que nos transportam ao momento fundante de nossa f, o mistrio pascal de Cristo. Visto assim se poderia dizer que Agostinho, ao comentar Jo 15,13 (Ningum tem maior amor que aquele que d a vida por seus amigos), sintetizou de forma feliz a inter-relao dos trs aspectos mediante uma exegese espiritual de Pr 23,1-2:
Quando te assentares para comer mesa de um poderoso, observa e entende as coisas que te so oferecidas, e serve-te delas, sabendo que ser preciso que prepares coisas semelhantes [Pr 23,1-2]. Qual a mesa do poderoso, seno aquela de onde se toma o corpo e sangue de quem entregou sua vida por ns? E o que sentar-se a essa mesa, seno aproximar-se humildemente? E o que observar e entender as coisas que te so oferecidas, seno reconhecer dignamente to grande graa? E o que servir-se sabendo que ser preciso preparar coisas semelhantes seno o que j disse, que como Cristo entregou sua vida por ns, assim tambm ns devemos entregar nossas vidas pelos irmos? Como diz tambm o apstolo Pedro, Cristo sofreu por ns deixando-nos um exemplo, para que sigamos suas pegadas [1Pd 2,21]. Isso preparar coisas semelhantes. Isso fizeram os santos mrtires com ardente amor. Se no celebramos em vo suas memrias e, no banquete em que eles foram saciados, nos aproximamos da mesa do Senhor, preciso que, como eles, tambm ns preparemos coisas semelhantes53.

Analisando o texto de Agostinho encontramos: 1) uma prtica litrgica fundada na Escritura e celebrada sempre e em toda parte: a ceia eucarstica, pela qual somos transportados pelos sinais do po e do vinho ao mistrio fundante da doao da vida que Cristo realizou no Calvrio (lex orandi); 2) um dado de f do qual se faz o memorial: a entrega de Cristo por ns (lex credendi); 3) um agir a que nos compromete a participao na eucaristia: se Cristo se entregou por ns, devemos entregar-nos pelos irmos e irms (lex agendi). Ao mesmo tempo em que encontramos no texto de Agostinho a ntima conexo entre lex orandi, lex credendi e lex agendi, verificamos presentes no mesmo texto as condies de Prspero de Aquitnia para que tenha validade
53

AGOSTINHO: In Joannis evangelium tractatus 84,1. PL 35, 1846-1847.

85

axiomtica seu adgio tornado clebre: a lei da Escritura, a universalidade no tempo e no espao, o contedo da celebrao54 . Mediante o texto de Agostinho, podemos, pois, confirmar a plausibilidade de complementar o axioma de Prspero, ampliando-o para: legem credendi et legem agendi lex statuit supplicandi (a norma do suplicar estabelece a norma do crer e a norma do agir). A liturgia poderia ser considerada no s um lugar teolgico, mas tambm um lugar tico, uma fonte de conhecimento da moralidade do agir cristo e de impulso para esse agir.

Francisco Taborda SJ, nascido em Bag, RS, em 1938, doutor em Teologia pela Westflische Wilhelms-Universitt (Mnster/Westf.), professor de Teologia Sistemtica na Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, Belo Horizonte MG. Publicou, entre outras obras, Sacramentos, prxis e festa: para uma teologia latino-americana dos Sacramentos, Petrpolis: Vozes, 1998, 4a ed.; Matrimnio Aliana Reino: para uma teologia do matrimnio como sacramento. So Paulo: Loyola, 2001; Nas fontes de vida crist: uma teologia do batismo-crisma. So Paulo: Loyola, 2001. Endereo:Av. Dr. Cristiano Guimares, 2127 31720-300 Belo Horizonte MG e-mail: ftaborda@cesjesuit.br

54

Cf. acima sob o item 1 no final.

86