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A Tradição Como Princípio de Conhecimento Teológico - W. Kasper

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TEOLOGIA 2020.2
TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Docente: Pe. Ronny Santos de Abreu
______________________________________________________________________

KASPER, W., «Tradizione come principio di conoscenza


teologica», in Teologia e Chiesa, Brescia 1989, 74-103.

A TRADIÇÃO COMO PRINCÍPIO DE CONHECIMENTO


TEOLÓGICO

Combinação realmente estranha: próprio aquela Escritura a qual se recorre


para submeter à crítica a tradição dissolve a autoridade da própria Escritura,
mostra a insustentabilidade do puro “princípio escriturístico” e leva à
redescoberta do princípio da Tradição.
No nosso século, ocorreu que próprio o método da “história dos
formulários” elaborado por Martin Dibelius, Rudolf Bultmann e outros, e
oposto por tanto tempo, esse método que colocava em questão a historicidade
da maior parte dos ditos e fatos de Jesus, considerando-os tradições da
comunidade, descobriu o papel de extraordinária importância que a tradição
assume mesmo antes da Escritura e dentro da própria Escritura. Assim a
“história dos formulários” reinterpretava a Escritura como um condensado
da tradição, descobria que mesmo antes dos escritos do Novo Testamento
existiam fórmulas de fé e de confissão bem precisas e normativas, como a
que Paulo, por exemplo, obteve da tradição e, por sua vez, retransmite:
“Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 15,
3; cf. 11, 23). As cartas pastorais, com sua insistência na necessidade de
permanecer firmes no “depósito” da fé (parathēkē), reafirmam este vínculo
com a tradição no novo contexto que veio a se formar na era pós-apostólica.
O princípio da Tradição, portanto, é fundado na mesma Escritura.
Não surpreende, então, se os primeiros pais santos, quando nos séculos II
e III a Igreja teve que enfrentar o confronto mais difícil de sua história, ou
seja, com a Gnose que distorceu a fé cristã em um nível especulativo,
desenvolveram como a mais importante “regra da verdade” próprio o
princípio da tradição. Somente o que é transmitido na Igreja como doutrina
dos Apóstolos1 deveria ser considerado verdadeiro. Já Irineu e Tertuliano

1
Cf. IRENEO, Adv. Haer. III, 3, 1: «Podemos encontrar a tradição, anunciada pelos
Apóstolos em todo o mundo, em cada igreja, somente porque que estamos dispostos a ver
a verdade». - TERTULLIANO, De praescript. 21; cf. 6 e 37; Apol. 47; De corona 2-4:
«Portanto, é certo que toda doutrina ... em sintonia com aquelas igrejas apostólicas deve
ser considerada verdade, pois sem dúvida possui o que as igrejas receberam dos
Apóstolos, os Apóstolos de Cristo e Cristo de Deus».
2

consideravam explicitamente a tradição como princípio de natureza


epistemológica.
Se durante a crise que atravessava a Igreja do século XVI os reformadores
opuseram à tradição eclesiástica a Sola Scriptura, o Concílio de Trento
aderiu firmemente a esta escolha fundamental da Igreja antiga e definiu que
a Escritura e a Tradição devem ser recebidas com igual piedade e respeito,
sendo o testemunho do Evangelho, a única fonte da verdade da salvação, de
modo que nas coisas relativas à fé e à moral não se pode interpretar a
Escritura “contra o sentido que a Santa Madre Igreja reconheceu e
reconhece”2. Para a teologia católica, a tradição é considerada princípio e
critério indispensável de conhecimento teológico.
Também hoje o princípio da tradição é altamente controverso. Desde que
o Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II lançaram o programa de uma
necessária atualização da Igreja e de sua fé, iniciou um conflito que ainda
está em pleno andamento e que diz respeito à relação que existe entre
tradição e renovação, portanto, o mesmo sentido e normatividade do
princípio da tradição. Renovação eclesial significa atualização criativa da
tradição, como pensavam os teólogos que prepararam o concílio e
contribuíram decisivamente para os seus pronunciamentos, ou podemos nós,
como gostariam certos teólogos que se passam por progressistas, desatar as
reinterpretações conciliares da própria tradição e, silenciosamente, deixá-la,
tendo o cuidado de desenvolver apenas aqueles aspectos do concílio que são
mais “aspirantes ao futuro”? No período pós-conciliar, a questão é
desenvolvida no confronto com a rígida abordagem dos tradicionalistas: o
que é, então, a “tradição”? Deve ser entendida como um conjunto bem
compacto de ensinamentos e disciplinas, ou não, em vez disso, como o
processo histórico e vital da transmissão?
Tanto na disputa entre os apoiadores de uma corrente mais tradicionalista
e aqueles que seguem uma linha mais progressista, como na abordagem
intermediária - que é também aquela que propomos em nossa contribuição e
que apoia uma compreensão histórica da tradição - não se trata apenas de
conteúdos singulares da tradição e nem mesmo de questões singulares ainda
a serem plenamente esclarecidas, como especialmente aquela, assim
controversa, antes e durante o concílio, da relação entre Escritura e Tradição,
ou mais precisamente da completude ou incompletude da Escritura. O
problema, pelo menos como hoje se põe, vai mais fundo e envolve a natureza
e o significado da própria tradição. Estamos diante de um problema
fundamental da fé e, talvez, é a questão mais importante para o futuro da
Igreja.

2
Cf. DS 1501; 1507; NR 87; 93. Neste sentido, a Constituição Dogmática do Vaticano II
Dei Verbum não somente confirmou o Concílio de Trento, mas inseriu seus próprios
enunciados no conjunto de "Cristo-Espírito-Igreja", e desta forma os aprofundou.
3

Obviamente, se pedirmos ajuda aos documentos do magistério eclesiástico


e à teologia que os explica, encontraremos muito pouco. O magistério e a
teologia sublinham o “dado” da tradição, mas não explicam em que consiste
esta tradição. Os próprios dicionários filosóficos nos fornecem muito
parcamente ou nenhuma informação sobre a questão. Estranhamente, somos
continuamente confrontados com um conceito de tradição vago e
indeterminado. E esta carência de reflexão esconde os seus perigos: por
exemplo, o abandono do princípio da tradição, mas também o de sua
instrumentalização ideológica.
A concepção primorosamente cristã de tradição está enraizada no modo
bíblico de entender a verdade e a realidade. O Antigo Testamento pensa de
acordo com o esquema de “promessa-cumprimento”. Já a promessa
originária a Abraão assume uma dimensão universalista (cf. Gn 12, 3).
Nenhum cumprimento histórico poderá exauri-la, mas alimentará uma
promessa nova, ainda maior. A tradição do êxodo no Egito se torna profecia
de um novo êxodo, a tradição da conclusão da aliança no monte Sinai se
torna esperança de uma nova aliança, o primeiro Adão se torna týpos do novo
Adão.
A releitura sempre nova nos leva assim a um modo profético e tipológico
de entender a tradição3. O contínuo presente e futuro são interpretados em
analogia com o passado da história da salvação, mas o passado em analogia
com as novas experiências da história.
O Novo Testamento retoma este esquema de promessa e cumprimento,
para esclarecê-lo à luz do cumprimento escatológico-definitivo que
acompanha toda promessa em Jesus Cristo. Enquanto plenitude do tempo,
Jesus Cristo não é o fim sem futuro, mas sim o novo e definitivo início. O
que nele aconteceu de uma vez por todas também assume um significado
único (cf. Rm 6, 10; Hb 10, 10). Assim, desde o início, a Igreja conheceu a
tensão entre a fidelidade incondicional às origens, qual fundamento
permanente, e a exigência de se fazer tudo para todos (cf. 1Cor 9, 22). Já no
interno do Novo Testamento, o único anúncio normativo e permanente,
aquele de Jesus Cristo, se atualizou em termos sempre novos, em situações
continuamente diversas. No próprio coração do anúncio do Antigo e do Novo
Testamento observamos uma compreensão vital e histórica da continuidade
e identidade da tradição.
Jesus Cristo é, em pessoa, a exegese definitiva do Antigo Testamento, a
Tradição definitiva. Na cruz Jesus é o Entregue, mas também aquele que se
entrega: ele é em pessoa o ato e o conteúdo da tradição4. A cruz e a
ressurreição serão então a tradição, e como tal são a origem, o conteúdo e o
3
Cf. G. V. RAD, Theologie des Alten Testaments, vol. II, München 1960, 329-346, 370-
401.
4
Cf. W. POPKES, Christus traditus. Eine Untersuchung zum Begriff der Dahingabe im
Neuen Testament, Zürich – Stuttgart 1967.
4

paradigma de toda tradição cristã. A autotradição objetiva de Deus mediante


Jesus Cristo se torna a realidade subjetiva em nós através da efusão do
Espírito Santo5. A história de Jesus, a sua pessoa e obra, especialmente a sua
morte e ressurreição, no Espírito Santo se fazem historicamente presentes e
eficazes. Por meio dele, Jesus Cristo e a sua obra estão continuamente
presentes na comunidade dos fiéis (cf. 2Cor 3, 17).
Resumindo, podemos portanto dizer que, em termos cristãos, a tradição é
a autotradição de Deus através de Jesus Cristo no Espírito Santo para uma
presença contínua na Igreja6. A tradição é a memória de Jesus Cristo que
ocorre no Espírito Santo, é a Palavra de Deus que mediante o Espírito vive
nos corações dos fiéis7.
O evento da tradição apresenta assim uma estrutura sacramental, o que
significa que os processos humanos ou eclesiais da tradição são um sinal
atualizante e instrumento da autotradição de Jesus Cristo no Espírito Santo.
A fonte e auge de toda tradição eclesial é a Celebração Eucarística, onde ela
se atualiza de uma vez por todas. A partir da Eucaristia e em sua perspectiva
existe toda uma série de outras formas de tradição eclesial. Pensemos não
apenas nos testemunhos oficiais da tradição (liturgia, profissão de fé, textos
conciliares e outras formas nas quais o Magistério se expressa), mas também
no testemunho que os cristãos concedem diariamente, especialmente o
testemunho dos santos. Mas também é importante o testemunho que nos
oferecem os Padres da Igreja, os teólogos e a arte cristã. Como ensina o
Concílio Vaticano II, a tradição se efetua na doutrina, na vida e no culto da
Igreja, de fato em tudo o que a Igreja é, em tudo o que a Igreja acredita (cf.
DV 8).
É lícito, então, perguntar-se: como traduzir, na prática, esta precisa
concepção da tradição? Uma particular dificuldade diz respeito à globalidade
dos testemunhos da tradição. Eles não se apresentam em toda a
homogeneidade, mas sim em extrema verdade, de fato com fortes tensões,
que exigem interpretações diferenciadas. Para um correto discernimento
devemos recorrer a critérios, que praticamente coincidirão com as regras de
discernimento dos espíritos. Sem qualquer pretensão de completude,
lembraremos apenas três destes critérios:
1. O Espírito é o Espírito de Cristo (cf. Rm 8, 9), ou o Espírito do Filho
(cf. Gl 4, 6). A sua tarefa é nos recordar tudo o que Jesus disse e fez (cf. Jo
14, 26; 16, 13ss). O critério mais importante para qualificar a tradição nas
tradições consistirá, então, na confissão de Jesus Cristo como o Senhor (cf.

5
Cf. K. BARTH, Kirchliche Dogmatik, vol. I/2, § 16, onde se fala do Espírito Santo como
realidade e possibilidades objetivas da revelação.
6
É o que ele descreveu, utilizando o conceito de “autotradição”, J. S. DREY (cf. J. R.
GEISELMANN, op. cit. 177ss., 250ss.).
7
É uma concepção pneumática já encontrada nos Santos Padres. Cf. IRENEO, Adv. Haer.
III, 24, 1; cfr. III, 4, 2; Demonstr. 41.
5

1Cor 12, 3). O critério primário de toda tradição é o próprio Jesus Cristo, a
Tradição primitiva. Mas Jesus Cristo é “perceptível” para nós apenas no
testemunho dos apóstolos, de modo que o testemunho apostólico é
constitutivamente parte do evento de Cristo. Mas também os escritos do
Novo Testamento, que condensam precisamente este testemunho, participam
da normatividade do evento de Cristo8. A tradição neotestamentária deve ser
a alma e a norma de toda sucessiva tradição eclesial (cf. DV 24; OT 16). Este
poderia ser considerado o “princípio católico da Escritura”, aquele que está
precisamente no fato de que a Escritura, lida à luz e sob a orientação da
tradição, pode se tornar, por si mesma, determinante quando se trata de
interpretar a tradição e de examinar criticamente as singulares tradições. Por
esta razão, o método histórico-crítico de exegese das Escrituras, dentro da
tradição eclesial, tem uma função importante, que naturalmente será
especificada de forma mais adequada.
2. O Espírito nos une à Bíblia não apenas de uma forma legalista, mas
espiritual. A própria Bíblia critica um biblicismo rígido, desprovido de
espírito e apegado à letra, já que expressa sua mensagem em situações de
constante mudança. O Senhor é Espírito e “onde está o Espírito do Senhor,
aí há liberdade” (2Cor 3, 17). O Espírito recorda Jesus e ao mesmo tempo
introduz profeticamente no futuro (cf. Jo 16, 13). A sua tarefa está na
atualização da novidade de Jesus, próprio em seu caráter de novidade,
tornando-a espiritualmente fascinante9. Ele atualiza a mensagem e a obra de
Jesus Cristo em termos sempre respondentes aos diversos “sinais dos
tempos” (cf. GS 3s). Isto significa que não se trata de uma adaptação acrítica
às mentalidades do tempo, mas de um confronto sempre novo com o tempo
e com o “mundo” (cf. Jo 16, 18s). Neste sentido, é próprio conforme à
tradição superar continuamente a letra da Escritura mirando o Espírito.
Definitivamente, a tradição é o que os Santos Padres chamavam de “sentido
espiritual da Escritura”10. A renovação desta exegese espiritual ou tipológica
é uma das tarefas mais importantes do aprofundamento metodológico da
teologia católica. Somente por esta via é possível elaborar - o que no fundo
ainda falta na teologia católica - uma teoria e uma criteriologia adequadas da
história dos dogmas e da teologia.
3. É o único e mesmo Espírito que opera com os seus diversos dons.
Portanto, os diferentes dons e efeitos do Espírito devem se integrar,
interpretar e corrigir uns aos outros (cf. Rm 12, 3s; 1Cor 12, 4s; Ef 4, 2s). O
critério indispensável para o discernimento dos espíritos é, então, aquele que
mostra como a unidade do Espírito é garantida e a comunhão eclesial não
comprometida, mas sim “edificada”. O critério da tradição verdadeira estará,
8
Cf. K. RAHNER, Über die Schriftinspiration (QD 1), Freiburg i.Br. 1958, 55ss.
9
Cf. IRINEO DI LIONE, Adv. Haer. III, 17, 1.
10
Cf. H. DE LUBAC, Geist aus der Geschichte. Das Schriftverständnis des Origenes,
Einsiedeln 1968.
6

então, na unanimidade e na sintonia com a fé da Igreja inteira, de todos os


lugares e de todos os tempos. Próprio em vista de tal consenso, o magistério
da Igreja deverá desdobrar o próprio serviço. Em uma similar prospectiva, a
tradição pode ser especificada como a compreensão eclesial da fé11. Na
verdade e na plenitude dos testemunhos da tradição, se tratará então de
identificar “o fio condutor”, e para isso não é suficiente - por mais
indispensável que seja - a erudição histórica. Em vez disso, é necessária uma
certa sensibilidade espiritual, pois de outra forma não é possível reconhecer
nas muitas tradições a única e comum tradição. Somente o sensus fidei é
capaz de estabelecer onde é dado um verdadeiro consensus fidei, e não
apenas uma opinião, talvez bastante difundida, mas ligada a uma
determinada época. Portanto, a eclesialidade dos teólogos não tem o
significado de mera conformidade exterior, mas exige verdadeiramente um
real sentire ecclesiam.
Podemos então concluir que uma relação responsável com a tradição
implica, além do sentir-se vinculado aos testemunhos históricos do que nos
foi prometido, também em nos mantermos livres para uma verdade mais
ampla. A tradição será então um princípio de conhecimento teológico que
abre o presente e revela o futuro. A reflexão sobre o significado da tradição
é um dos pré-requisitos importantes para uma renovação da Igreja e da
teologia.

Walter KASPER.
Resumo e tradução: Pe. Ronny SANTOS DE ABREU.

11
Cf. EUSEBIO, Hist. eccl. V, 28, 5: Phrónēma ekklēsiastikón.

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