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Nota de Pesquisa

UM POSTO ESPIRITUAL NUMA ORDEM BÉLICA:


REFLEXÕES SOBRE O CAPELÃO MILITAR NAS
MINAS SETECENTISTAS E SUAS IMPLICAÇÕES
NA MANUTENÇÃO DA ORDEM NO ANTIGO
REGIME LUSO
A SPIRITUAL POST IN A MILITARY ORDER:
REFLECTIONS ON THE MILITARY CHAPLAIN IN
THE 18TH CENTURY IN MINAS GERAIS AND ITS
IMPLICATIONS OVER THE LUSO ANCIENT RÉGIME
ORDER MAINTENANCE
GYOVANA DE ALMEIDA FÉLIX MACHADO*

Resumo: Buscamos, na presente nota, explorar as implicações do chamado "posto espiritual”,


que entendemos por uma premissa balizadora e justificativa da função de capelães, encontrado
nas fontes primárias referentes ao século XVIII no exercício da capelania na esfera militar.
Consideramos que o referido termo é prelúdio de um desenvolvimento mais amplo acerca das
funções e performances desse religioso que, numa sociedade de Antigo Regime, passava pelo
crivo de uma disciplina social católica marcada por uma obediência consentida e voluntária ao
monarca, ainda, uma hierarquia social cujo substrato expressava-se segundo os prestígios,
privilégios e status de seu tempo. Sendo assim, a ordem que buscamos investigar no
desempenho desses indivíduos se converte nessa última dinâmica citada a partir da perspectiva
religiosa num ambiente bélico.
Palavras-chave: Minas Gerais; Capelão militar; Tropas militares.

Abstract: We seek in the present note to explore the implications of the so-called spiritual post,
which we understand as a determinant and justifying premise of the chaplain occupation, found
in the primary sources of the 18th century in the chaplaincy execution in the military realm. We
consider that this term indicates the beginning of a broader development about the roles and
performances of these religious people. In, a society of the Ancien Regime went through the
sieve of a catholic social discipline marked by a consented and voluntary obedience to the
monarch and also a social hierarchy whose substratum was expressed according to the prestige,
privileges, and status of its time. Therefore, the order we seek to understand in these people it’s
converted in this last cited dynamic through the religious perspective in the military
environment.
Keywords: Minas Gerais; Military chaplaincy; Military chaplain; Military troops.

Na América lusa, o cargo de "capelão ganhou certo prestígio notadamente a partir da


expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, quando foram, então, retomadas as atividades

* Licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. (E-mail: gyovanafelix@gmail.com).


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missionárias pelo sertão” 1, assim, percebemos ter sido este um ofício que permitia certa
itinerância dos dogmas da moral cristã. Tratando de uma sociedade católica em que os
sacramentos e demais assistências religiosas eram requeridas, observamos que a presença de
capelães no cotidiano das Minas setecentistas se deu desde o seu primeiro momento, fosse a
partir das expedições e nas mais variadas ações que esse indivíduo prestava enquanto se
deslocava, fosse a partir da instituição de capelas, no alicerce dado a Irmandades.
Com uma política religiosa incerta nas primeiras décadas do século XVIII, o clero nas
Minas se desenvolveu sob algumas referências e estigmas, entre elas, a proibição da entrada de
ordens religiosas em Minas Gerais (1711) e, a consequência, foi a formação de um clero, em
sua maioria, secular que “se instalavam nas Minas como ‘indivíduos particulares’ eram, como
os frades, acusados de serem revoltosos, ambiciosos e simoníacos, de faltarem com o ‘pasto
espiritual às ovelhas, de práticas licenciosas, (...)” 2. A tentativa de controle do rei sobre a
nomeação dos padres na prerrogativa do Padroado Régio, o litígio entre autoridades diocesanas
— Bispo do Rio de janeiro e o prelado da Bahia — na disputa pela jurisdição sobre as Minas 3,
e todo o esforço político na região mineira ao longo do século (posteriormente, expressado na
criação da Diocese de Mariana, por exemplo) fizeram com que versasse o controle sobre
eclesiásticos e certa autonomia pela falta de uniformidade inscrita numa política religiosa. Tais
considerações foram cruciais para nossa investigação, a rigor, a compreensão do capelão em
ordens militares do período abarcado como aqueles que, mediante sua perfomance — aqui,
entendemos como performance um conjunto de movimentações, articulações e estratégias em
geral que esses indivíduos dispunham nos requerimentos e práticas ao longo do ofício de
capelão militar —, poderiam auxiliar na tutela e/ou manutenção da ordem, bem como
representar um perigo a essa, mas iremos nos conter no primeiro aspecto.
Partimos de prerrogativas para tal análise que atravessa as ações metropolitanas na
América Lusa e, uma das discussões, diz respeito à relação centro x periferia e a compreensão
de uma monarquia corporativa. Antônio Manuel Hespanha, em “As vésperas do Leviathan”
desenvolveu uma hipótese
na qual monarquia passava a ser entendida como a cabeça da república, porém sem se
confundir com essa, já que nela existiam outros poderes concorrentes (...) Era ela a
‘cabeça pensante’, capaz de articular as jurisdições das várias partes que compunham

1
DILLMANN, Mauro; ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique. Dos modos de ser soldado e
capelão na militarizada povoação do Rio Grande do século XVIII. Revista Territórios e Fronteiras, Cuiabá, v.
9, ed. 2, p. 366, 2016.
2
FONSECA, Cláudia Damasceno. Freguesias e capelas: Instituição e provimento de igrejas em Minas Gerais. In:
FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (org.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das
constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011, p. 436.
3
Ibidem, p. 427.
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o conjunto do corpo social, seja no reino, seja no ultramar. Com isto temos a ideia de
uma monarquia polissinodal e corporativa de base católica.4

O rei seria a cabeça e, sua função,


não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio
propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por
outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, (...), garantindo a cada qual o
seu estatuto ("foro" "direito" "privilégio"); numa palavra, realizando a justiça.5

A Igreja refletia um desses poderes e/ou braços administrativos da Coroa no Ultramar;


ela detinha o controle das massas segundo os aparatos espirituais que instrumentalizava, a
pregação, por exemplo, era um desses mecanismos de controle das consciências. A partir da
Constituição do Arcebispado da Bahia (1707), vislumbramos uma orientação para o clero e uma
tentativa de organizar a atividade religiosa que ocorria na América Lusa, servindo como um
corpo de leis canônicas que legislavam desde os Sacramentos quanto aos crimes e à Justiça
Eclesiástica, até os meios e recursos circundados a vida do clero para que vivessem em torno
da moral católica. Essa última se desenvolveu não apenas sob as orientações quanto ao caráter
do pregador, mas, também, no que diz respeito ao conteúdo da mensagem que por ele seria
propagada. À vista disso, o pregador deveria “admoestar no que diz respeito aos 'Novíssimos
do Homem', assim definidos no artículo 571 das Constituições: 'Os Novíssimos do Homem são
quatro. O primeiro é Morte. O segundo, Juízo. O terceiro, Inferno. O quarto, Paraíso” 6
Consideramos que, enquanto religiosos, estes capelães dispunham de instrumentos
relativos à própria disciplina social católica 7, uma visão de mundo que interpretava e organizava
a realidade social segundo os preceitos dados pelo catolicismo. Dessa forma, a necessidade de
um capelão no âmbito militar dialogava com o funcionamento da sociedade colonial como um
todo, afinal, a administração dos sacramentos, celebração de missas, entre outros, era algo
esperado na dinâmica dessa sociedade de base católica. Portanto, a presença do capelão nas

4
FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na
época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 2013, p. 26-27.
5
HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A Representação da Sociedade e do Poder. In:
MATTOSO, José (org.). História de Portugal, o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1997, p. 115.
6
MASSIMI, Marina. A pregação no Brasil Colonial. Varia História, Belo Horizonte, vol. 21, nº 34, p. 422, Julho,
2005.
7
“Segundo Hespanha, a ordem no Antigo Regime era sustentada por uma disciplina social na qual a obediência
era amorosa, portanto, consentida e voluntária. Este último fenômeno estava presente em todos os municípios,
apesar de diferenças dos costumes locais, dando-lhes, na falta de uma melhor palavra, uma uniformidade social.
Esta disciplina social difundida pelo clero secular e ordens religiosas, curas das almas, criava uma linguagem
comum à monarquia pluricontinental.” FRAGOSO, João; KRAUSE, Thiago. Sistemas atlânticos e monarquias na
época moderna: anotações preliminares. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Brasil
Colonial (1580-1720). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 37.
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ordens militares não se constitui como uma excepcionalidade no Antigo Regime luso, sobretudo
pela base de atuação dessas instituições,
relacionadas à ideia de manutenção da ordem. As estratégias, táticas e ações foram
construídas num processo de longa duração, marcado por negociações, recuos,
resistências, cooptações e relativas acomodações, que culminaram na legitimação
social de uma visão centrada na necessidade de Ordem.8

A necessidade das tropas nas Minas se deu mediante três conveniências: o controle
social, a preservação da tranquilidade e do sossego públicos 9; tal dinâmica teria corroborado
para uma série de fatores, tendo em vista as características geopolíticas e econômicas nas Minas.
A rigor, possuíam um repertório de "práticas coletivas e individuais, teria funcionado por
manter em níveis toleráveis a violência, permitindo a arrecadação dos impostos e o
desenvolvimento econômico das Minas Gerais" 10. E, aqui, cabe destacar, que existiam
diferentes tipos de tropas e “elas envolviam, na maioria das vezes, a presença de um pequeno
corpo militar, o exército de linha, que convivia com várias disposições auxiliares, como as
milícias, as ordenanças, as bandeiras e os bandos armados, e se integrava a elas.” 11 Os
documentos por nós encontrados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) dizem respeito as
Tropas pagas (tropas de linha).
Destarte, Cotta aponta que, dentro do Estado-maior12, o capelão se encontrava ao lado
do sargento mor e do auditor — representantes do clero, da alta oficialidade e do perito nas leis,
respectivamente13 —. Na prática, a desenvoltura da capelania dentro dos corpos militares partia
de alguns aspectos elencados, sobretudo, na obra "Norte de Capelães e Guia de militares"
(1727) de autoria do padre dominicano Marcos Salzedo:
Esta obra buscava orientar religiosos a proceder corretamente nos princípios da fé para
com os militares, num discurso cristão que buscava modular a moralidade dos seus
fiéis (civis e militares) a fim de garantir comportamentos adequados, baseados nos
princípios cristãos. Tais mecanismos de controle de atitudes e de regulação das
consciências eram, possivelmente, elementos eficazes na manutenção da ordem.14

8
COTTA, Francis Albert. Para além da desclassificação e docilização dos corpos: organização militar nas
Minas Gerais do século XVIII. Mneme: revista de humanidades, [s. l.], v. 1, n. 1, p. 20-21, ago./set. 2000.
9
COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: políticas da ordem e o universo militar nas Minas Setecentista.
2004. Tese (Doutor em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, [S. l.], 2004.
10
Ibidem, p. 11.
11
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros.
In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Brasil Colonial (1720-1821). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014. cap. 10, p. 483.
12
Centros especializados na logística militar necessários, segundo Cotta, para a direção e apoio das forças
militares.
13
COTTA, Francis Albert. No rastro dos dragões: políticas da ordem e o universo militar nas minas setecentista.
Orientador: Prof. Dr. Douglas Cole Libby. 2004. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2004, p. 256.
14
Op. Cit., p. 370.
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Somado a isso, o capelão deveria ser responsável pelo pasto espiritual, a boa direção das
consciências militares, a administração dos sacramentos, entre outros pontos que comunicam
as expectativas que se tinha sobre um capelão no período. Não temos evidências suficientes de
que os sujeitos nas Minas tenham tido acesso à obra de autoria do Padre Marcos Salzedo, já que
ela fazia parte da coleção do Brigadeiro José da Silva Paes, primeiro comandante militar do Rio
Grande e primeiro governador de Santa Catarina. No entanto, Álvaro Antunes aponta que, no
século XVIII, os maiores grupos proprietários de livros em Vila Rica foram os militares e
clérigos15. Além disso, é viável considerar que a obra nos permite acesso a certa medida da
percepção mais ampla que se tinha sobre o capelão militar. Por isso, a compreendemos como
uma visão fruto daquela sociedade.
Mobilizamos tal obra apontando para os esforços de estruturação e especialização deste
posto nos corpos militares. Sugerindo ser um posto militar, a capelania nestes corpos tinha como
característica o pagamento em soldo, diferentemente do usual para eclesiásticos, a saber, o
pagamento em côngruas. Por exemplo, no Regimento de Dragões nas Minas (1775), o capelão
tirava como soldo 20$000 por mês16. Segundo "Antônio de Morais, o soldo seria a paga do
soldado, portanto, um tipo de remuneração característico da classe militar" 17; isto posto,
entendemos a capelania enquanto um posto militar nos corpos desta natureza, no entanto,
ocupado por um religioso. Como um ponto comparativo, acrescentamos os capelães que
atuavam na Marinha Mercante portuguesa pois, além de terem “um papel de mediador da
salvação das almas, o capelão era também um oficial”18. Ainda, nesse outro espaço de atuação,
percebeu-se diferentes motivos na adesão do ofício, não sendo exclusivo, portanto, a
administração dos sacramentos. Entre os motivos, o benefício de usar a viagem em razão de
interesses pessoais enquanto recebia remuneração. 19
O “posto espiritual” — termo que nos auxiliou nas ponderações ao longo da
investigação —, estaria dentro de um conjunto de expectativas relacionadas aos preceitos da
Igreja e a necessidade disso se fazer presente na realidade dos soldados que eram assistidos
espiritualmente. Esses últimos seriam, portanto, as ovelhas as quais o capelão apascentaria

15
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Os ânimos e ânimos e a posse de livros em Minas Gerais (1750-1808). In:
MEGIANI, Ana Paula. O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séc.
XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009.
16
Op. Cit., p. 254.
17
MACHADO, David Prado. A privatização da fé: capelas domésticas nas Minas Gerais dos séculos XVIII e
XIX. Orientador: Prof. Dr. André Guilherme Dornelles Dangelo. 2019. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019, p. 80.
18
Rodrigues, Jaime. Capelães na marinha mercante portuguesa: engajamento e perfis profissionais (séculos XVIII
e XÌX). Revista de Indias, Madrid, LXXIX/276, p. 406, 2019.
19
Ibidem, p. 407.
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mediante a direção de suas consciências segundo os preceitos moralizantes da Igreja católica.
O alto grau de militarização da sociedade colonial 20 apresenta um sintoma também na
identificação da função dos clérigos — e, por conseguinte, capelães — na expressão do seu
ofício, pois os associava, de forma literal, a combatentes na guerra travada entre bem e mal,
Deus e diabo, paraíso e inferno. À vista disso, observa-se o chamado a integração plena da
“milicia de Cristo” — que os identifica enquanto soldados —, como sinaliza o artigo 471 das
Constituições21, ao falar sobre a proibição dos clérigos de se ocuparem com ofícios
(Corregedor, Ouvidor, Juiz, Escrivão, etc.) e negócios seculares.
Todos os esforços que se buscava garantir na figura do capelão dentro de corpos
militares, apontam para um objetivo, a rigor, o controle. A obediência adquirida pela boa
direção das consciências, ou seja, pela submissão aos princípios moralizantes da Igreja católica
(uma das bases tradicional e fundamental da sociedade de Antigo Regime), seria um elemento
que auxiliaria na manutenção da ordem e/ou lógica normativa de Antigo Regime. O capelão,
enquanto representação simbólica da ordem nos corpos militares, dispunha de certo tipo de
conduta, desempenho e, ao fim e ao cabo, perfomance para cumprir sua missão nos quadros e
expectativas da sociedade que pertencia, mais, da Igreja a qual representava.
O primeiro capelão militar por nós encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino, Padre
José Cordeiro Paes (capelão da Companhia dos Dragões do Ouro, provido em 10 de Março de
1721), tem a marca em seu requerimento – já no assento do posto, por Conde Dom Pedro de
Almeida –, da ideia do capelão enquanto aquele que atende a demanda do "posto espiritual dos
soldados e atender a se eles satisfazem os preceitos da Igreja do que muitas vezes podem deixar
de fazer quando pelas quadragésimas andam em diligência do serviço de Sua Majestade" 22.
Assentado no Livro do Registro das Patentes e Provisões, a nomeação do Pe. José na qualidade
de capelão daquela Companhia segue desta forma:
Havendo respeito a tudo isso e a concorrerem na pessoa do padre Joseph Cordeiro
Paes todos os requisitos necessários para este emprego. O nomeio por capelão das
duas companhias de dragões e terá cuidado de receber na sua mão os escritos das
confissões dos oficiais e soldados para os entregar no tempo determinado aos párocos
das freguesias onde forem assistentes e assim mais atenderá a tudo ademais que for
necessário e conveniente as consciências dos sobreditos e vencerá de soldo o que lhe
tocar pelo regimento militar na forma do quádruplo com que se paga as ditas tropas e
se lhe sentará praça e se registrará nos livros da vedoria.23

20
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; RANGEL, Ana Paula dos Santos; SOBRINHO, Juliano Custódio &
MONTEIRO, Lívia Nascimento. Os homens ricos das minas nas malhas do império português. Revista Eletrônica
de História do Brasil. Juiz de Fora, volume 7, número 2, jul-dez, 2005, p. 3.
21
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. op. cit. livro terceiro, título IX, p. 186.
22
AHU-Minas Gerais, cx. 10, doc. 39.
23
Idem.
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O processo arrolado no Requerimento indica a permanência do padre em pouco menos
de cinco meses no posto. Este fora nomeado no dia 10 de março de 1721 e teve baixa dada por
Lourenço de Almeida (Governador das Minas de 1721 a 1732) no dia 2 de Outubro do mesmo
ano, sob o pretexto de ser desnecessário um capelão para as ditas tropas. O padre, portanto,
requereu o tempo em que, segundo o mesmo, "serviu sua fé de ofício” — pelo contexto,
acreditamos que há uma referência quanto a natureza de seu cargo e, não necessariamente, a
expressão “fés de ofício”. Identificamos, ainda, o esforço do referido padre em se abster da
responsabilidade da baixa; assim sendo, disse que esta última não foi dada por alguma falta que
cometeu.
A nomeação do primeiro governador das Minas (Dom Lourenço de Almeida) auxiliou
no processo de adensamento e institucionalização da Coroa portuguesa em suas possessões
ultramarinas considerando as habilidades políticas requeridas para aquele quadro nas Minas. A
demanda seria de “um indivíduo capaz de apascentar os espíritos mais exaltados mediante a
utilização equilibrada de negociação e firmeza de ação, de concessões e punições, evitando ao
máximo a perturbação da ordem social política vigente” 24. Assim sendo, não descartamos a
possibilidade de a baixa dada por Almeida ao padre José ter sido um exemplo da tentativa de
minimização de possíveis sublevações devido ao ambiente politicamente instável e a
participação de religiosos de toda natureza nestas. O capelão dentro do espaço bélico poderia
ser um problema gestado com efeito em larga escala.
Acrescentamos que o mesmo padre se apresentou para o requerimento de certidão do
tempo em que serviu como "capelão mor" das Companhias de Dragões do Ouro. Contudo,
apenas "poucos anos após a independência, foi exarado o Decreto Imperial de 7 de julho de
1825, que criou o cargo de Capelão-Mor”25. Não descartamos a hipótese de que tal atitude do
padre indica a tentativa de se apresentar no documento como, de fato, o mais preparado para o
ofício que havia sofrido baixa, o que, de certa forma, atenuaria o possível estigma causado pelo
desligamento em meses de serviço.
Sobre o Padre João Rodrigues do Paço (capelão do Regimento de Dragões de Minas
Gerais, provido em 1780), sua nomeação instituiu a sua obrigação em "residir sempre no corpo
do seu regimento, e observar inteiramente as condições que por ele lhe são impostas" 26; neste
requerimento, foi evidenciado por Dom Rodrigo José de Menezes as obrigações e condições do

24
SANTOS, Lincoln Marques dos. Das qualidades de um governante para as Minas: a trajetória político-
administrativa de Dom Lourenço de Almeida. XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2007, p. 5.
25
Op. Cit., p. 18.
26
AHU-Minas Gerais, cx. 123, doc. 107.
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capelão dentro do Regimento. Colabora, também, para a nossa compreensão no que diz respeito
ao reconhecimento desse indivíduo, ao menos no que foi ordenado oficialmente, dentro do
corpo que serviria. À vista disso, o requerimento diz:
Pelo que o Tenente Coronel Comandante do mencionado regimento lhe mandará fazer
os assentos necessários na matrícula e mais partes precisas, e nas cartas desta para a
todo tempo cometer, e o conheça por capelão do corpo dele, e como tal o trate e estime,
e da mesma os oficiais e soldados em virtude desta provisão que lhe mandei passar
por mim assinada (...)27

Sua provisão de confirmação no emprego de capelão deste Regimento foi dada em 10


de dezembro de 1785, sob o governo (nas Minas) já de Luís da Cunha Menezes. Em 1799, ou
seja, 14 anos depois, encontramos outro requerimento para confirmação de carta de sesmaria
do mesmo padre e, o que irá nos chamar a atenção é a localização de sua Fazenda:
Por cuja fazenda confronta do nascente com a fazenda do mestre de Campo Ignácio
Correia Pamplona, do poente com sesmaria do Tenente Luiz Antônio da Silva do Sul
com outra igual fazenda do Capitão Manuel Barbosa Soares e do Norte com o rio de
São Francisco (...)28

Ignácio Correia de Pamplona, um dos vizinhos do Padre João, também conhecido por
ter sido um dos que delataram as pretensões de Tiradentes e os seus companheiros, dispunha de
um posto de oficial superior e, no que segue do documento, identificamos outros vizinhos com
patentes elevadas, um tenente e um capitão, respectivamente. Pelo longo tempo em que foi
capelão do Regimento, é possível que tenha utilizado como estratégia a sedimentação de
relações com o oficialato, o que se converteu na conformidade (direta ou indiretamente,
consciente ou inconscientemente) do mesmo aos procedimentos costumeiros de seu tempo; o
que, em alguma medida, pode ter impulsionado e auxiliado na manutenção da ordem.
Tendemos a acreditar que a capelania militar é um ofício de natureza militar que, no
entanto, é ocupada por um religioso. Por conseguinte, observamos que o “posto espiritual”
militar ocupado por um capelão possui um conjunto de sentidos que possibilitaria notabilidade
em vista da hierarquia ordinária atribuída a esses indivíduos dentro da organização clerical,
afinal, todos os cargos requeridos pelos indivíduos aqui suscitados faziam parte da Tropa Paga.
Assim, a capelania militar era admitida por um religioso que justificava sua presença dentro
dos argumentos compatíveis a esse universo mantido pela ordem de Antigo Regime, bem como
percebemos que, através de sua performance neste espaço, corroborava para a manutenção
dessa mesma ordem.

27
Idem.
28
AHU-Minas Gerais, cx. 148, doc. 17.
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Referências Bibliográficas
Fontes Primárias
AHU, Projeto RESGATE/Minas Gerais, caixa 10, documento nº 39. REQUERIMENTO do pe.
José Cordeiro Pais, capitão-mor das Companhias de Dragões das Minas do ouro, solicitando
certidão do tempo que serviu como capitão no posto de capelão-mor da Companhia dos Dragões
das Minas do Ouro.
AHU, Projeto RESGATE/Minas Gerais, caixa 123, documento nº 107. REQUERIMENTO do
pe. João Rodrigues do Paço, capelão do Regimento de Dragões de Minas Gerais, solicitando a
D. Maria I a mercê de o confirmar no exercício do referido cargo.
AHU, Projeto RESGATE/Minas Gerais, caixa 148, documento nº 17. REQUERIMENTO do
pe. João Rodrigues do Paço, pedindo confirmação da carta de sesmaria de 3 léguas de terra na
paragem chamada Ribeirão de São Mateus, da freguesia de São Bento de Tamanduá, termo da
Vila de São José, Comarca do Rio das Mortes.
CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, feitas e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 5° Arcebispo do dito
Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: propostas e aceitas em o Synodo Diocesano,
que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. S. Paulo: Typog. 2 de dezembro
de 1853, Antonio Louzada Antunes.

Teses, artigos e livros


ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; RANGEL, Ana Paula dos Santos; SOBRINHO, Juliano
Custódio & MONTEIRO, Lívia Nascimento. Os homens ricos das minas nas malhas do império
português. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora, volume 7, número 2, jul-
dez, 2005.
ALMEIDA, Marcelo Coelho. A religião na caserna: o papel do capelão militar. 2006.
Dissertação (Mestre em Ciências da Religião) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, 2006.
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Os ânimos e ânimos e a posse de livros em Minas Gerais (1750-
1808). In: MEGIANI, Ana Paula. O Império por escrito: formas de transmissão da cultura
letrada no mundo ibérico (séc. XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009.
COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: políticas da ordem e o universo militar nas
Minas Setecentista. 2004. Tese (Doutor em História) - Universidade Federal de Minas Gerais,
[S. l.], 2004.
______. Para além da desclassificação e docilização dos corpos: organização militar nas Minas
Gerais do século XVIII. Mneme: revista de humanidades, [s. l.], v. 1, n. 1, ago./set. 2000.
DILLMANN, Mauro; ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique. Dos modos de
ser soldado e capelão na militarizada povoação do Rio Grande do século XVIII. Revista
Territórios e Fronteiras, Cuiabá, v. 9, ed. 2, 2016.
FONSECA, Cláudia Damasceno. Freguesias e capelas: Instituição e provimento de igrejas em
Minas Gerais. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (org.). A Igreja no Brasil:
normas e práticas durante a vigência das constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São
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