Francisco Liberal Fernandes
Francisco Liberal Fernandes
Francisco Liberal Fernandes
Comemorativos
dos 20 anos da FDUP
VOLUME I
2017
Comissão Organizadora:
Helena Mota
Juliana Ferraz Coutinho
Maria Raquel Guimarães
Miguel Pestana de Vasconcelos
Paulo de Tarso Domingues
Rute Teixeira Pedro
ESTUDOS COMEMORATIVOS DOS 20 ANOS DA FDUP
VOLUME I
COMISSÃO ORGANIZADORA:
Helena Mota
Juliana Ferraz Coutinho
Maria Raquel Guimarães
Miguel Pestana de Vasconcelos
Paulo de Tarso Domingues
Rute Teixeira Pedro
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Novembro, 2017
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1. Enquadramento
A garantia constitucional do princípio da justa (ou adequada) indemnização
quando o direito de propriedade é objecto de extinção forçada não pode deixar
de ser confrontada – assim o impõe a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais individuais – com as formas de aquisição ex lege daquele direito
consagradas no Código Civil, com destaque especial para a acessão (industrial)1,
a usucapião ou os direitos potestativos de aquisição2.
Com efeito, a Constituição prevê várias formas de desapropriação forçada por
acto de autoridade pública: a requisição e a expropriação por utilidade pública
(art. 62º, nº 2); a expropriação de solos urbanos para efeitos urbanísticos (art.
65º, nº 4); a intervenção e a apropriação em geral dos meios de produção (art.
83º) ou dos meios de produção abandonados (art. 88º). Por outro lado, o facto de
algumas das figuras ablativas do direito de propriedade consagradas no Código
Civil não conterem uma explícita credencial constitucional3 permite questionar a
respectiva legitimidade4, a que acresce, relativamente à usucapião, o facto de a
lei civil não prever qualquer indemnização a cargo do usucapiente, embora o
mesmo já não aconteça relativamente à acessão e aos direitos potestativos de
aquisição5.
Embora do ponto de vista formal a legitimidade constitucional da “acessão e
da usucapião não esteja expressamente garantida – ao contrário do que sucede
com a expropriação, a requisição ou a nacionalização –, tais figuras não poderão
ser postas em questão6 se o seu fundamento se retirar de direitos ou interesses
tutelados pela Constituição, ainda que previstos fora do respectivo texto (art. 16º,
nº 1, da CRP)7. Acresce que o reconhecimento da acessão e da usucapião
também não é alheio à tutela do direito à iniciativa económica, na medida em
que pressupõem, em maior ou menor escala, o exercício da liberdade de
investimento e da liberdade de estabelecimento8.
Por razões de simplificação, limitar-nos-emos nestas considerações breves à
hipótese do art. 1340º do Código Civil, ou seja, à acessão industrial imobiliária
em caso de obras feitas com materiais próprios em terreno alheio, e à usucapião
de imóveis (art. 1287º e s. do mesmo Código).
3 Esta questão específica de legitimidade não se colocava ao tempo em que o do Código Civil foi aprovado,
porquanto a Constituição de 1933 concebia “o direito de propriedade e a sua transmissão em via ou por
morte, nas condições determinadas pela lei civil” (art. 8º, nº 15).
4 Cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I,
Coimbra Editora, 2007, pág. 805; aliás, estes Autores já haviam levantado a mesma questão na edição de
1984 da mesma obra (p. 336). Ainda quanto à necessidade de credencial constitucional para as formas
ablativas do direito de propriedade não previstas na Constituição, veja-se o acórdão do Tribunal
Constitucional nº 491/2002. Sobre esta questão da legitimidade constitucional, veja-se o desenvolvido
estudo de VASSALO ABREU, “Usucapião de imóveis sem indemnização” cit., pág. 217 e ss.
5 Outro exemplo de ablação da propriedade, na vertente do direito a uma indemnização justa, verifica-se
relativamente ao direito de superfície. Com efeito, no caso de superfície temporária, a expiração do
respectivo prazo tem como efeito a aquisição automática pelo proprietário do solo da propriedade da obra
ou das árvores, tendo o superficiário, na falta de convenção em contrário, direito a uma indemnização,
calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1538º, nºs 1 e 2, do Código Civil). Nas
palavras de ORLANDO DE CARVALHO, a “reversão ao dominus soli de todas as obras ou plantações no
termo da superfície temporária, bem como, por fim, na atribuição a esse dominus de um direito de
preferência na transmissão a título oneroso quer da superfície quer das coisas inerentes e vem a permitir,
como é obvio, uma exploração do trabalho alheio, ou do investimento alheio, e sobretudo a favor de
proprietários inertes (o id quod plerumque accidit) – tanto mais se, como na lei portuguesa, a reversão, na
superfície temporária, só excepcionalmente é indemnizável e mesmo então nos limites do enriquecimento
sem causa” (Direito das coisas, coordenação de Liberal Fernandes/Raquel Guimarães/Regina Redinha,
Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pág. 248).
6 Aliás, a propriedade é um direito garantido “dentro dos limites e das restrições previstas na Constituição
(e na lei, quando a Constituição possa para ela remeter ou quando se trate de revelar limitações
constitucionalmente implícitas)...” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 801).
7 Cf., por todos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 317 s., e 388 e s.; Tribunal
Constitucional, acórdão nº 205/2000 (proc. nº 390/96).
8 Cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 789. Ainda segundo estes A., o direito de
iniciativa económica é “um direito fundamental (e não apenas um princípio objectivo da organização
económica), que “não está constitucionalmente...ligado ao direito de propriedade” (idem, pág. 789 e s.), o
que não impede que ambos possam entrar numa relação de conflito.
9 De acordo com o mesmo regime, a autonomia jurídica dessas coisas incorporadas (partes integrantes ou
componentes) só é readquirida com a sua desafectação ou separação da coisa principal; vide ORLANDO
DE CARVALHO, op. cit., pág. 163 e s.
10 Veja-se o art. 1212º, nº 2, do Código Civil – relativo ao contrato de empreitada de construção de imóveis
em que os materiais, incorporados no prédio que é pertença do dono da obra, são fornecidos pelo
empreiteiro – que se afasta do regime do art. 1340º.
11 Sobre esta noção de boa fé, veja-se PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, com a colaboração de
HENRIQUE MESQUITA, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1984, pág. 164. Segundo estes
AA., o conceito de autorização a que, para definir a boa fé do incorporante, se alude no nº 4 do art. 1340º
compreende tanto a declaração de vontade, explícita ou implícita, do proprietário da coisa, como pode
resultar da celebração de um acto translativo inválido ou de um contrato-promessa em que se confira ao
promitente-comprador a faculdade de servir-se de imediato da coisa, como se já lhe pertencesse.
12 Sobre as concepções relativas à forma como opera a aquisição do direito real por acessão, veja-se
VASSALO ABREU, op. cit., pág. 213, nota 31.
13 Vide ORLANDO DE CARVALHO, op. cit., pág. 165.
14 Cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 968. Por outro lado, se o carácter genérico
do interesse da promoção do “acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção
directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham” (art. 93º, nº 1, alínea b), da
CRP) ou “os regimes...de outras formas de exploração da terra alheia serão regulados por lei de modo a
garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador” (art. 62º, nº 1, da CRP) poderão servir de
fundamento constitucional relativamente à acessão industrial em caso de plantação ou sementeira em
terreno alheio ou à usucapião que verse sobre a propriedade rústica, o mesmo não será extensível à acessão
quando se trate de obras em prédios de outrem ou à usucapião sobre prédios urbanos.
15 Vide Orlando de Carvalho, op. cit., pág. 233.
18 Veja-se VASSALO ABREU, op. cit., pág. 222 e s. Se a ordenação do domínio (das estruturas sócio-
económicas) cabe primeiramente aos direitos reais, não deixa de ser necessária, todavia, “uma utensilagem,
por assim dizer, anormal, que preencha alguma brecha que apesar de tudo se verifique: alguma dúvida sobre
a existência de um direito, ou sobre a sua atribuição, ou sobre a sua natureza. Uma ordenação dominial
provisória para ocorrer às lacunas da ordenação definitiva: uma via de recurso para impedir de momento as
soluções de continuidade no funcionamento dos direitos que constituem os mecanismos de tutela jurídica
que o Direito selecciona para o domínio sobre os bens...” (ORLANDO DE CARVALHO, op. cit., pág. 233).
19 Cf. VASSALO ABREU, op. cit., pág. 250 e s. “Na sua função de estabelecer uma ordenação dominial
provisória que evite o colapso da ordenação definitiva, a posse desempenha um duplo papel: cobre desde
logo a lacuna, suprindo a falta do direito, e permite o trânsito para um direito novo, reconstituindo aquela
ordenação... Mas a posse não é apenas um bem que merece tutela. Na sua força jurísgena, aspira ao direito,
tende a converter-se em direito. Daí que o ordenamento, não somente a proteja, como a reconheça como um
caminho para a autêntica dominialidade, reconstituindo, através dela, a própria ordenação definitiva. É o
fenómeno da usucapião... A posse é assim um indício do direito, um valor de conhecimento do direito.
Donde não só a presunção de direito que se liga à posse, mas também a admissão de que a posse, por certo
lapso de tempo e com certas características, deve conduzir ao direito real que indicia” (ORLANDO DE
CARVALHO, op. cit., pág. 262 e 263).
20 Como se sabe, a usucapião pode verificar-se independentemente da má fé ou da boa fé do possuidor, e
do facto de a posse ser adquirida de forma originária ou derivada.
21 Assim, por exemplo, no caso de o proprietário vender o prédio a outrem, sendo o negócio nulo por vício
de forma.
22 Parece-nos que esta conclusão será igualmente aplicável na seguinte hipótese: A vende a B (nulidade
formal); B é esbulhado por C. Como se sabe, este poderá adquirir por usucapião; ora, nesta hipótese poder-
se-á colocar o problema de saber se a presunção de propriedade de que B goza (art. 1268º do Código Civil)
é digna da tutela conferida pelo art. 62º da CRP, uma vez que C não terá de o indemnizar caso adquira por
usucapião. Julga-se que esta norma da lei fundamental compreende apenas o proprietário “de direito” ou
incontestado, o que não é o caso de B; aliás, se C usucapir é contra A e não contra B, pelo que,
relativamente a este, a não obrigação de indemnizar não será contrária à CRP.
23 Afastamo-nos parcialmente de VASSALO ABREU, para quem “qualquer interpretação do regime da
usucapião (cf. os artigos 1287º e seguintes do Código Civil) que legitime a perda ou privação forçada do
direito de propriedade por via deste mecanismo, sem que se preveja qualquer tipo de indemnização a favor
do anterior titular, será uma interpretação de muito duvidosa constitucionalidade, para não dizer que será
mesmo uma interpretação em desconformidade com a Constituição...” (op. cit., pág. 268). Como decorre do
que ficou dito subscrevemos esta afirmação apenas na parte em que a usucapião tem origem no
desapossamento por usurpação do anterior titular do direito de propriedade.