O Que Transmito Do Que Me Disseram
O Que Transmito Do Que Me Disseram
O Que Transmito Do Que Me Disseram
Resumo
Abstract
The social practice of storytelling - be drawn comic, written in books or narrated orally - has
always been an object of reflection and an important source of knowledge. This paper
presents the different moments of the Narrative Studies (classical, structuralist, mythological
and hermeneutical), highlighting some of its concepts and methodologies. The goal is to
contrast them with current transmedia narratives - those who, according to Jenkins (2008),
develop unevenly and combined in various media simultaneously, forming a narrative
universe or an analog reality, where the audience begins to participate. And the result of this
reflection is that even the theory is becoming interactive narrative goal.
Resumen
La práctica social de la narración - se elaborará cómic, escrito en los libros o narrado por vía
oral - siempre ha sido un objeto de reflexión y una importante fuente de conocimiento. Este
artículo presenta los diferentes momentos de los Estudios de Narrativa (clásica,
estructuralista, mitológicos y hermenéuticas), destacando algunos de sus conceptos y
metodologías. El objetivo es contrastar con las narrativas transmedia actuales - los que, según
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1 INTRODUÇÃO
Os estudos narrativos, como campo de reflexão teórica, têm duas origens opostas e
complementares. Em primeiro lugar, estão os estudos clássicos a partir de A Poética de
Aristóteles (2006). Em seguida, estão os diferentes tipos de estudos estruturalistas e de análise
discursiva sobre várias formas de narrativa: Vladimir Propp (1978), Roland Barthes (2008),
Gérard Genette (1972) e A.J. Greimas (1976, 1989). Em um terceiro momento, estão os
estudos narrativos inspirados na psicologia junguiana, principalmente Joseph Campbell
(1990) e Mircea Eliade (1992).
Com Umberto Eco (1976) e Paul Ricoeur (1994, 1995, 1997), os estudos narrativos
passaram a também incluir os textos não ficcionais (como a crônica histórica e o jornalismo).
Nessa quarta modalidade dos estudos, a formação cognitiva de nossa identidade enquanto
sujeitos sociais é o resultado histórico das estórias que nos contaram e que contamos aos
outros: a fabulação. O essencial então é saber como retransmitimos o que nos contaram.
E, nos dias de hoje, a grande maioria das estórias que nos contaram e que nós
contamos são midiatizadas, isto é, são transmitidas, distribuídas e recebidas através dos meios
de comunicação eletrônicos. Há aqui dois objetivos conexos: revisar as metodologias e
conceitos dos estudos voltados para investigação das narrativas orais e das estórias escritas; e
observar como e em que as narrativas audiovisuais se diferenciam se suas antecessoras,
apontando uma metodologia de análise capaz de entendê-las e explicá-las.
2 DESENVOLVIMENTO
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Conceitos Definição
Autor Contribuição
Os personagens são mais importantes que as funções narrativas e o papel do narrador (mediador
Todorov
entre autor e leitor)
Não há apenas uma estrutura narrativa, mas várias estruturas sobrepostas. As estruturas profundas
seriam lógicas e acrônicas, formada por relações de contradição, oposição e contraponto (o quadrado
semiótico), aos elementos dessas relações, Greimas chamava ‘actante’ (que é equivalente a
Greimas
personagem/função). Essas relações inconscientes entre os actantes das estruturas profundas se
tornam dinâmicas nas estruturas intermediárias e voltam a ser simultâneas nas estruturas
superficiais.
Fonte: Adaptado pelo autor de Propp (1978), Barthes, 2008, e Greimas (1976).
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O trabalho de Campbell influenciou cineastas como George Lucas (Star Wars foi
concebido a partir da jornada do herói) e escritores como Christopher Vogler, roteirista de
Hollywood e executivo da indústria cinematográfica que usou as teorias de Campbell para
criar um memorando para os estúdios Disney, depois desenvolvido como o livro (1997).
Paul Ricoeur absorveu os conceitos de Aristóteles, do estruturalismo e da mitologia,
utilizando a metodologia narrativa das estórias para demonstrar que a historiografia (a
narrativa produzida pelos historiadores) é uma apenas construção poética.
Narrar história é enredar pessoas, instituições e ideias, é também enredar-se como
narrador – seja em textos científicos ou jornalísticos. Assim, por um lado, a intriga é a
inteligência narrativa e resulta da competência do escritor em agenciar incidentes de forma
seletiva e significa, associando acontecimentos segundo seus valores, elegendo sujeitos como
heróis e vítimas, encadeando sub-enredos em uma sequência lógica. E, por outro lado, a
intriga deriva da 'fabulação' de seus leitores e do ambiente cultural em que ela é urdida.
Para Ricoeur, Mimese é a imitação criativa ou representação interpretativa da ação,
através do qual aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos; e Diegese ou
Intriga é o agenciamento de ações, sujeitos e cenários – elementos estruturantes da narrativa –
segundo o desfecho desejado. A Mimese é a imitação criadora da experiência viva. Ela não é
uma cópia, réplica do idêntico; a Mimese produz sentido através da intriga, do agenciamento
dos fatos (1994: 60). Ricoeur estabelece (1994: 85-132) três mimeses: a atividade cognitiva
do enunciador; a configuração da linguagem; e a atividade cognitiva do leitor. E a Diegese é a
Intriga narrativa, essa tríplice estrutura de configuração da linguagem.
De uma forma geral considera-se Diegese como sendo o conjunto de acontecimentos
narrados numa determinada dimensão espaço-temporal, aproximando-a da noção de trama
histórica ou intriga narrativa. Nessa versão, a Diegese não se confunde com o discurso do
narrador nem com a narração propriamente dita, ela é um "ato da fala" que produz o narrado.
Por analogia, ela também pode ser utilizada para designar o universo narrativo, em oposição à
realidade externa de quem lê (‘o mundo real’ ou ‘a vida real’). E por extensão, ‘o tempo
diegético’ e o ‘espaço diegético’ são, assim, o tempo e o espaço que existem dentro da trama.
A tese central da trilogia Tempo e Narrativa (RICOEUR: 1994; 1995; 1997) é afirmar
a identidade estrutural entre historiografia científica e narrativa ficcional.
Um dos grandes feitos de Ricoeur nesse percurso, foi ressaltar a significativa re-
interpretação das noções aristotélicas de intriga (como elaboração secundária) e catarse (como
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sublimação) que pode ser encontrada no clássico A Interpretação dos Sonhos (1990) de
Sigmund Freud.
Para Freud, todo sonho seria ‘a realização simbólica de um desejo inibido’, mas nem
sempre a expressão deste desejo é clara e inequívoca, ao contrário, haveria mecanismos
psicológicos responsáveis pelo mascaramento simbólico dos impulsos recalcados. Freud
chamaria esses mecanismos: condensação, deslocamento, processo de elaboração secundária,
simbolismo e dramatização.
Lacan, ao tomar o inconsciente estruturado como uma linguagem e o sonho como um
discurso a ser decifrado, reconheceu os mecanismos freudianos de condensação e de
deslocamento nos termos ‘metonímia’ e ‘metáfora’, importados da linguística estruturalista. A
dramatização e a simbolização são mecanismos coletivos análogos aos processos de
condensação e deslocamento individuais.
A elaboração secundária é o processo pelo qual, à medida que se aproxima a vigília, o
simbólico é reorganizada. Nos lembramos dos sonhos sempre de trás para frente, apagando
seus detalhes e paradoxos. A Intriga narrativa também é regressiva, organiza a estória detrás
para frente, buscando agenciar os incidentes em função do final desejado. Uma narrativa é
sempre estruturada de trás para frente, planejando as reações dos leitores e dos personagens.
Segundo Freud, o processo de simbolização se explica através de quatro movimentos
de defesa do ego: identificação, projeção, introjeção e sublimação. E, em trabalhos vários
posteriores, Freud equiparou a noção de sublimação a uma 'catarse estética' – semelhante à
catarse terapêutica.
Aristoteles fazia uma oposição entre a catarse trágica e o sentimento cômico. A
tragédia expressa o conflito entre o passado mítico dos deuses e o presente da cidade; a
comédia trata de ridicularizar os costumes e as figuras públicas, usando a ironia e o espírito
cômico. Elas evocam sentimentos diferentes - uma é alegre; a outra, triste. Porém, o que
caracteriza realmente a tragédia não é o final infeliz, mas o fato de: no trágico, a expressão do
ser leva a transcendência da representação; no cômico, a representação da representação
forma uma imitação crítica da realidade. São os dois extremos da linguagem: a transcendência
catártica (o sublime) e a mimesis cômica (o gracioso).
Freud também considera o cômico ('o chiste') como sendo oposto ao trágico. Como o
inconsciente funciona dentro da oposição dos princípios do prazer e da realidade, o trágico
nos evoca a presença da morte e o cômico provoca uma carga pulsional psicofísica
semelhante ao orgasmo, mais em menor intensidade.
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E uma vez que os arquétipos psicológicos são universais, as histórias que contamos
também são. Campbell e seus seguidores exploram este modelo.
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Digamos nosso ponto de vista então sem arrodeio: é a distinção entre estórias de ficção
e história 'real' que dessacralizou as narrativas 1. A história e a ciência nos dizem quem somos
e as estórias ficcionais nos dizem como não somos, ampliando assim nosso universo cultural.
A narrativa ficcional expressa o 'não-ser'; é uma ampliação de nosso Self para compreender o
outro, para expansão de nossas referências culturais. E a narrativa sagrada é um encontro do
Ser com 'o que não é'.
Para o filósofo inglês R. G. Collingwood, há duas artes: a grande arte (art proper, a
arte propriamente dita), é aquela capaz de levar a uma maior compreensão dos sentimentos e a
uma ampliação e regeneração da consciência; e a má arte, a arte 'assim chamada' (so called)”,
que serve a corrupção da consciência e têm dois tipos ideais: o divertimento e a 'arte mágica'
ou utilitária (COSTA, 2006, 30).
Com base nesses critérios, pode-se até dividir as narrativas entre sagradas e profanas.
No entanto, nos tempos da globalização, com as estórias industrializadas através da mídia,
essa distinção não funciona. Na prática, há sempre os três elementos - a ampliação e
reafirmação da identidade cultural e ética (o aspecto cognitivo); a diversão e o entretenimento
(o aspecto lúdico); e a sugestão política de mudança e/ou de conservação dos valores sociais
(o aspecto pedagógico) - distribuídos em diferentes graus, tanto no caso das narrativas
ficcionais como das narrativas ditas 'reais', as jornalísticas ou cientificas.
Walter Benjamim em A Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica (1983, 5-
28) ressalta o impacto que a produção em série de objetos pela indústria teve sobre a
percepção. Houve um tempo em que apenas as moedas e a xilogravura eram objetos
produzidos em série. A obra de arte era única no tempo e no espaço e isso lhe conferia uma
áurea, uma presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de modo idêntico. A arte,
então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto' para se tornar expressiva dos sentimentos e
crítica da injustiça social.
Benjamim (1985b) observa que, com a reprodutividade técnica, também há uma
mudança na forma como contamos estórias.
No ambiente tradicional, as estórias eram transmitidas oralmente e, portanto, eram
repetidas sempre da mesma forma – como exigem as crianças em seus primeiros anos.
Quando ganhavam versões escritas, os narradores não se assumiam como autores da narrativa:
1Trabalho essa questão em A estória de Jesus Cristo como narrativa (GOMES, 2011) - uma estória é sagrada
porque é histórica e mítica ao mesmo tempo, assim como a vida de Sidarta Gautama, a dos orixás africanos e de
outros personagens históricos (ancestrais de uma comunidade) que se tornaram, pela sua história de vida,
entidades simbólicas (deuses ou forças da natureza).
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Homero, Hesíodo, Virgílio, Apuleio apenas recontam narrativas que ouviram. A ênfase
cognitiva era na narrativa.
No ambiente moderno, no entanto, o contador de estórias (escritores, cineastas,
artistas) deve ‘ser criativo’, original e primar pela novidade, não só contando uma mesma
estória de diferentes formas, mas sempre contando novas estórias. Tornou-se lugar comum
não apenas recontar histórias clássicas com um estilo autoral, mas também combinar histórias
de diferentes culturas e épocas, relacionando-as, misturando seus personagens e textos,
fazendo citações para serem reconhecidas. A ênfase moderna é no narrador.
Em outros textos (1983, 29-56), Benjamim diz que artista moderno é que tem a 'áurea',
que é sua vida que dá sentido à sua obra. Para ele, a produção em série deslocou a
singularidade da arte do campo do objeto para o interior do sujeito, transformando a
‘espiritualidade da criação’ na ‘genialidade do criador’. Tal fato instaurou a metalinguagem
(ou a relação explícita entre o enunciador e a referência) no coração da arte moderna e das
narrativas audiovisuais. No contexto narrativo moderno, o narrador é um sub personagem e os
personagens, sub narradores das estórias.
E se a ênfase clássica é na forma narrativa e a ênfase moderna é centrada no narrador e
na metalinguagem, a ênfase atual está narratividade do receptor, a fabulação. O público deixa
de ser contemplativo e passa a interferir na construção da narrativa, orientando o narrador e os
personagens.
Porém, o fato da sacralidade narrativa hoje é do receptor que se torna co enunciador
das estórias que lhes contam ainda é insuficiente para entender o valor das histórias sagradas.
Na verdade, a “jornada do herói” é um processo simbólico de formação histórica e mítica do
sujeito no ocidente, nas sociedades patriarcais. Outras culturas tem histórias sagradas que
fogem bastante aos modelos narrativos.
Será que, ao invés de compreender e explicar o efeito espiritual das narrativas sobre
nossas vidas, os estudos narrativos apenas padronizaram ainda mais as estórias, gerando
modelos para a produção em série de enlatados audiovisuais pela grande indústria cultural?
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realistas ressaltam outros aspectos da realidade. Por exemplo, para enfatizar o ambiente
olfativo, criamos um universo em que apenas o herói tem nariz.
Hoje, no que diz respeito à televisão e às narrativas seriadas atuais, a Diegese agora é
mais bem compreendida como um 'universo narrativo'. O universo narrativo é uma segunda
realidade (BYSTRINA, 1995), um 'mundo paralelo' à realidade cotidiana do público, que
funciona uma analogia de comportamento, 'um espelho' em que alguns aspectos culturais
semelhantes são ampliados e outros são desconsiderados ou modificados. Um universo
narrativo é formado por várias estórias dentro de uma narrativa maior subdividida em partes.
As estórias atuais são 'seriadas', isto é, divididas em episódios regulares que usam ganchos de
tensão e suspense para manter a atenção da audiência durante períodos segmentados de tempo
de recepção: o romance de folhetim; as histórias em quadrinhos; as radionovelas, em que a
narrativa seriada se fragmentou ainda mais devido as inserções comerciais. A partir dos anos
60, chega-se a grade de programação da TV e a narrativa seriada audiovisual em sua forma
atual.
Na narrativa seriada, o contexto de recepção estruturado como ‘cotidiano’, isto é,
como a fabricação de dias aparentemente iguais pela indústria cultural. As narrativas seriadas
reforçam e são geradas pelas rotinas de vida da cultura mecanizada da sociedade industrial.
Eis porque os seriados são frequentemente chamados de ‘enlatados’. O consumo fragmentado
e descontinuo das narrativas seriadas levam a uma recepção repetitiva, cumulativa e aberta,
onde o público interfere na narrativa enquanto ela se desenvolve2. Aos poucos as narrativas
audiovisuais seriadas foram se tornando mais interativas, sendo adaptadas para vários
suportes e se transformaram nas atuais narrativas transmidiáticas. Assim, além do universo
narrativo e da participação do receptor, há outro fator importante nas narrativas atuais: elas se
distribuem de forma desigual e combinada em diferentes suportes ao mesmo tempo.
2
Omar Calabrese (1987) formulou um modelo para análise de narrativas seriadas em três estruturas. A primeira
estrutura é o contexto de enunciação coletivo e não autoral. Vários profissionais participam da produção em série
em regime colaborativo. Hoje, no entanto, há uma profunda desindustrialização da produção audiovisual e a
tecnologia permite fenômenos autorais como o animê e o mangá japoneses, feitos de forma artesanal. É claro que
a grande mídia ainda ocupa o lugar de grande contadora de estórias da vida contemporânea, mas o computador
permite a possibilidade da produção de estórias audiovisuais em série por um único autor. Já a segunda,
representa a adequação das mensagens (e do pensamento) a este modelo serial. A serialidade narrativa
proporciona linguagem fragmentada e descontínua, na qual a repetição de alguns elementos e a variação de
outros, bem como a imposição de um determinado ritmo de exibição determina características próprias e
específicas. Os elementos variáveis funcionam de forma cumulativa, estabelecendo uma continuidade com as
expectativas e conhecimentos do público, formando gradativamente um universo narrativo de analogia com a
narrativa da vida real. E a terceira função corresponde à recepção, ao consumo descontinuo e fragmentado das
narrativas. Além do público não ser presencial, ele também não é passivo, interferindo diretamente na narrativa
enquanto ela se desenvolve.
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O termo ‘narrativa transmidiática’ foi elaborado por Jenkins (2008), levando em conta
esses três elementos: a participação da audiência na narrativa; a sugestão de que o universo
narrativo é uma realidade; a presença dos principais personagens da narrativa em diferentes
suportes. Os três elementos são interdependentes: a participação do público se deve ao seu
envolvimento emocional com a realidade narrativa; ampliada pelas narrativas em vários
suportes, muitas delas produzidas pelos próprios fãs3. Assim, não se trata apenas da narrativa
literária adaptada em outros suportes ou de enfatizar seus personagens (como na TV), mas sim
de criar e gerir um universo de várias estórias em que diversos personagens interagem
segundo as regras próprias do universo, através de livros, filmes, quadrinhos, programas de
TV, sites de internet, games, etc.
A passagem das narrativas terciárias seriadas da TV e do rádio para as atuais
narrativas transmidiáticas (ou da Mimese audiovisual simples para Mimese emocional e da
Diegese-intriga para Diegese-universo) se deu de forma gradativa e cumulativa, sem grandes
rupturas, em grande parte, através da autoconfiguração das próprias narrativas.
Na narrativa seriada, sempre houve retorno da recepção: as telenovelas fazem
pesquisas de opinião, o rádio usava o telefone e até os romances de folhetim recebiam cartas.
Recentemente, no entanto, a recepção de produtos midiáticos está deixando de ser individual
(e individualizante) e se tornando em uma atividade de consumo grupal.
Atualmente, há diferentes pontos de vista sobre o tema. Há os que acreditam que
recepção do cinema e da TV (assistida em ambiente familiar nos tempos da válvula) já era
coletiva e que a recepção individual é própria da leitura silenciosa – Walter Benjamin, por
exemplo. Outros, como Jenkins, pensam que apenas agora com a cultura participativa e com
segmentação interativa das redes sociais é que estamos elaborando uma recepção grupal do
conteúdo midiático. Podem-se somar esses pontos de vista: a recepção era coletiva, mas
circunstancial, e só agora está se perenizando em grupos.
3
Segundo Jenkins, desde meados dos anos 90 já é possível identificar produções de narrativas transmidiáticas na
indústria de entretenimento norte-americana. Geralmente, a história é introduzida por uma mídia (um filme, por
exemplo) e incrementada através de outras (séries de TV, sites com diversas funções, blogs, games, quadrinhos,
animações, romances), ampliando seu desenvolvimento narrativo e expandindo seu universo, permitindo não
apenas a criação de novos conflitos, novas estórias e personagens, como também novas maneiras de se consumir
e interagir com esse universo com a participação interativa do público através de blogs, sites, etc. Exemplos?
Dawson’s Creek (um seriado teem agregado a um site onde é possível acessar o computador do personagem
principal a partir de seu computador: o Dawson’s Desktop), A bruxa de Blair (vídeo imitando uma gravação
caseira associada a documentários falsos de modo a construir um universo ficcional aparentemente verdadeiro);
e Lost, que utilizou vários recursos: minivídeos para celular com estórias rápidas que não passam na TV, perfis
dos personagens na internet, podcasts (arquivos de áudio) semanais discutindo os episódios e entrevistando os
atores, diretores, produtores e roteiristas da série, a lostpédia (uma enciclopédia wiki criada por fãs), e um site
falso da empresa aérea Oceanic Airlines, supostamente responsável pelo desaparecimento dos personagens após
um acidente.
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morte e do destino – quase fora da narrativa. Essa é o principal antagonista do anti-herói pós-
moderno (protagonista/narrador) em sua narrativa tragicômica4.
As moiras também representam as três dimensões de efeito que as narrativas têm sobre
seus leitores/ouvintes. As narrativas têm uma dimensão emocional (causam alegria, medo,
raiva, amor) que funciona a partir da noção de pertencimento territorial, da ampliação e/ou
reafirmação da identidade étnica. Essa dimensão corresponde à bruxa do presente. Também
há uma dimensão psicológica em que nossa mente associa e compara as estórias simbólicas à
nossa história biográfica, representando a bruxa do passado. E as narrativas possuem ainda
uma dimensão sagrada em que nosso espírito sonha seus destinos – é a bruxa do futuro. Além
das emoções e das tradições, essa é a dimensão sagrada das narrativas que, através da
imaginação individual, nos faz sonhar e reavaliar a vida. Para Bystrina, a arte é “uma
mensagem que comunica a si mesma, que tem por referência principal sua própria estrutura”.
(1995, 24)
Bem vistas essas questões, pode-se agora combinar as noções das três mídias (e de sua
união na transmídia) com as de Mimese e Diegese.
4
Dois exemplos concretos da presença das moiras como antagonistas do herói pós-moderno: a grafic novel
Sandman, de Neil Gaiman (GOMES, 2013a); e o seriado de TV Xena, a princesa guerreira (GOMES, 2013b).
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3 CONSIDERAÇÕES
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hermenêutica filosófica e literária de Ricoeur, dando a ela novos instrumentos analíticos para
o estudo das narrativas midiáticas atuais: Benjamim, Cabrese, Jenkins … Graças a essas
alianças que conseguiu-se equilibrar forças com o inimigo epistemológico - a máquina
midiática; sendo então capaz de compreendê-la por inteiro e assim assimilá-la na narrativa
hermenêutica.
As narrativas audiovisuais da mídia, principalmente a ficção científica, ocuparam o
lugar do arquétipo feminino, que é raptada pelo antagonista, precisando ser resgatada pelo
protagonista. Sugeriu-se ainda que, tanto o casamento entre 'os mocinhos' (a hermenêutica e a
imaginação narrativa) como a vitória do vilão (a mídia), nos leva de volta às estórias sagradas,
re-unindo as narrativas ficcionais e históricas que foram separadas desde tempos imemoriais.
Chega-se então ao clímax do suspense: A Intriga midiática é legítima? Qual a solução
para o conflito triangular entre narrativa, tempo e meta comunicação? Como integrar o esboço
de uma teoria interpretativa das mídias à hermenêutica em geral e à nossa meta narrativa em
particular? E finalmente: como terminaremos este texto?
Uma boa classificação primária para narrativas (sejam fictícias ou reais) pode ser
proposta a partir da solução do conflito, subdivindo-as em: as de final feliz e as de fim trágico
(independente de elementos dramáticos cômicos ou trágicos). As históricas com final feliz são
as pedagógicas e hipnóticas. São narrativas para produzir esperança e fazer com que todos
acreditem que 'as coisas vão dar certo’, fazendo com elas realmente deem certo. E as histórias
com fins trágicos são aquelas que querem nos alertar que as coisas podem terminar mal. As
narrativas trágicas são as que, pela catarse transcendente da representação, expiam nossas
culpas e medos, nos ensinando a viver uma vida sem ilusões.
Bom, coerentes com tudo que foi dito e defendido até aqui, dois finais podem se
constituir para este ensaio:
O final feliz – A utopia social: a imaginação criativa casa-se com narrativa histórica. Final
que aponta para uma nova configuração cultural em escala planetária em que a narrativa da
história escrita se encerra com o desfecho previsto desde o começo: a nova jerusalém do
Apocalipse é um retorno ao jardim do éden na Gênesis, como sustenta a exegese do crítico
Frank Kermode (RICOEUR,1995, 40-47). E, nesse desfecho utópico - acrescente-se por
minha conta: a mídia teria a missão histórica da condução narrativa deste ‘happy end’
escatológico, re-combinando conscientemente os aspectos simbólico e referencial da
linguagem em narrativas integrais; reeducando a sociedade para uma vida menos destrutiva.
O fim trágico – A distopia social: seremos controlados por máquinas. A intriga das mídias não
é mais que mera manipulação de um poder gerenciado por quem não sabe o que realmente o
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A mídia antes da máquina – entrevista de Harry Pross a Norval Baitello Junior. Acervo do CISC: Centro
Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. Publicado no JB Online, Caderno Ideias. Sábado, 16 de
outubro de 1999.
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Assim, outra conclusão que se atreve chegar aqui é que se confirma a ideia, presente
na narratologia estruturalista e em Joseph Campbell, de que as histórias/estórias, sejam elas
orais, escritas ou audiovisuais, formam uma única narrativa que conta a si mesma e que tem
por referência principal sua própria estrutura.
E que eu apenas transmito o que me disseram...
REFERÊNCIAS
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Stoff, Andy Wachowski, Larry Wachowski; Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski;
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