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Repositório Digital
Histórico Livre. http://www.historicalstockphotos.com/images/xsmall/29_ulysses_s_grant_abraham_lincoln_and_
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DOI: 10.5433/2237-9126.2013ano6n12p83
Resumo
O artigo é um ensaio que objetiva realizar uma análise compreensiva sob o olhar da Complexidade
de Edgar Morin, da película “Avatar”, considerada como um instrumento semiótico e educacional.
Enfocou-se o princípio sistêmico do Pensamento Complexo. A partir disso, o filme mostrou ser um
texto fecundo, pois funciona como uma escola da vida, permitindo uma identificação e projeção
dos sujeitos contemporâneos, para refletir sobre suas problemáticas psicossociais. “Avatar”
revelou-se um objeto analítico rico, pois permitiu um diálogo intertextual, que explicitou a luta
entre o modelo moderno inflexível e predatório, com os novos elos relacionais e éticos, mais
fluidos e complexos da contemporaneidade. O diretor Cameron acusa uma inicial falência do
modelo científico e utilitário e, ao mesmo tempo, a necessidade de se buscar outro modo mais
humano de se relacionar com o mundo, no qual se inclui a natureza e os hábitos socioculturais
em um viés sistêmico, resultando num modo de ser e estar no mundo terreno e solidário.
Palavras-chave: Cinema. Ética. Cidadania.
Abstract
The article is an essay that aims at a comprehensive analysis, under the Complexity of Edgar Morin,
of the film “Avatar”, considered as a semiotic and educational tool. It focuses on the principle
of systemic Complex Thinking. From there, the film proved to be a fruitful text because it works
like a school of life, allowing identification and projection of contemporary subjects to reflect on
their psychosocial problems. “Avatar” has proved a rich analytical object, it allowed intertextual
dialogue that explained that the struggle between the modern model inflexible and predatory,
with new links relational and ethical, more fluid and complex contemporary. Director Cameron
accuses an initial failure of the scientific and utilitarian model and, at the same time, the need
to seek another more human way of relating to the world, which includes the nature and socio-
cultural habits in a systemic bias, resulting in a mode of being in the earthly world and solidarity.
Keywords: Cinema. Ethics. Citizenship.
tempos:
Deste modo, posto a relevância do filme
Ao discurso eufórico que a tudo comunica como um objeto complexo, partimos em
oponho outra afirmação: quanto mais
desenvolvidos são os meios de comunicação,
direção ao nosso texto olhado, a película
menos há compreensão entre as pessoas. A “Avatar” e sua contextualização, pois
compreensão não está ligada à materialidade Morin (2010) afirma a necessidade do
da comunicação, mas ao social, ao político,
princípio da reintrodução do conhecimento
ao existencial, a outras coisas (MORIN, 2003,
p. 8). no conhecimento, ou seja, operar a inserção
de um conhecimento de uma obra em
Desse modo, Morin (2003) nos apresenta seu contexto, explicitando o tempo e o
um alarmante aviso, em tempos “áureos” espaço de sua produção. Assim como o
da comunicação avançada – da Internet diálogo intertextual dessa obra com outras,
à mobilidade mágica dos celulares – não que possuem princípios organizadores
se assegura com essas materialidades semelhantes.
tecnológicas qualidade afetiva e humana Segundo Knight e Kninght (2003), “ler”
na arte da compreensão da vida. Para um texto fílmico implica em realizar uma
isso, é preciso rever, desconstruir e análise do gênero a oqual este pertence. No
superar paradigmas reducionistas, como o caso de “Avatar”, podemos elencar várias
cartesiano, que influi, ainda hoje, nos campos películas que retratam o gênero de ficção,
institucionais da saúde e da educação. com matizes de romance e aventura, tais
Nessa direção, um filme, quando bem como : a saga “Matrix”, “eXistenZ”, “Os
abordado, elaborado e dialogado, num Substitutos”, “A Ilha”, “Blade Runner”,
contexto de ensino aprendizagem, com “Transfer”, entre outros. Assim como “Matrix”
uma abertura epistêmica e afetiva, pode (1999), recente sucesso do cinema norte
se revelar como instrumento fecundo para americano, “Avatar” também pode ser lido
a compreensão humana. Pois, conforme o como uma narrativa de busca que combina
próprio pensador francês reafirma, o cinema temas clássicos, tais como a descoberta, a
com sua mídia cinemática pode promover iniciação, a total auto realização do herói e o
projeções e identificações amplas sobre triunfo do bem sobre o mal.
nossos modos de ser e estar no mundo, Com relação aos papéis comunicacionais-
propiciando um novo pensamento acerca enunciativos trazidos por “Avatar”, podemos
da nossa cidadania terrena. Como Morin identificar como emissor (definido como
(2010) comenta ao afirmar que o filme pode o lugar discursivo que produz o texto), as
vir a ser uma escola para o exercício pleno da vozes enunciativas, que produzem o filme
compreensão humana, pois: em seus diferentes aspectos: da montagem
das cenas à sonografia. Já como receptores
No âmago da leitura ou do espetáculo possíveis (aqueles lugares discursivos que
cinematográfico, a magia do livro ou do recebem o texto), encontramos as escutas
filme, faz-nos compreender o que não
compreendemos na vida comum. Nessa vida sociais dos adolescentes e os adultos jovens
comum, percebemos os outros apenas de da contemporaneidade, primordialmente, da
forma exterior, ao passo que na tela e nas cultural ocidental. Podemos especificar que
páginas do livro eles nos surgem em todas
são principalmente, aqueles que apreciam o
as suas dimensões, subjetivas e objetivas.
(MORIN, 2010, p. 50). uso das novas tecnologias, visto que o filme se
nos revela nosso possível duplo, estampado momento em que o humano estava sendo
no medo que temos das nossas facetas mais atacado por cães ferozes de Pandora. Nesse
odiosas, que tem marcado nossos tempos instante, Neyriti interfere no equilíbrio
com eventos horripilantes, pois como não ecossistêmico daquele lugar da floresta e
os caracterizar assim, diante dos genocídios acaba matando um dos animais. Sua ação
recentes na África. Mas ao mesmo tempo, naquele pedaço da natureza de Pandora
nosso duplo também nos revela nossas romperia com a filosofia complexa dos na’vis,
faces solidárias e afáveis, que se mostram na qual todos os seres estão interligados, e
em fenômenos poéticos dos novos tempos, quando se interrompe esse elo, rompe-se
como, por exemplo, nas reuniões entre jovens com a integridade e equilíbrio do planeta.
para lutarem contra a devastação ecológica, Existe, ainda, outra cena elencada (aos
nos movimentos para mantermos uma 65 minutos), na qual se ilustra a relação
economia sustentável no planeta, ou ainda, de Jake com Neyriti. Depois de passar por
na solidariedade trazida em momentos de um aprendizado cultural e étnico, a nativa
conturbação ecológica, como os terremotos reconhece que Jake está pronto para ser
ou maremotos recentes na Ásia. um na’vi. Os dois estão caçando e ele mata
Temos Pandora como a projeção de um um animal com sua flecha. A partir disso,
futuro distante em um possível presente, Jake reage como um nativo, fazendo uma
como um sistema poroso e que vive oração e proferindo as seguintes palavras:
dinamicamente com sua natureza, em um “Eu vejo você, meu irmão, e o agradeço, sua
devir vivaz e instável. Pandora não seria um alma irá retornar para Eywa, mas seu corpo
sistema fechado, pois como Morin (2005) permanecerá aqui, para então servir de
salienta, os sistemas fechados são aqueles alimento ao povo na’vi”.
que se encontram em total homeostase, ou Nessas passagens, começamos a localizar
seja, as trocas de energia e matéria com o os valores da cultura do personagem dos
exterior são nulas. na’vis. Há a valorização da integração dos
Em “Avatar”, Pandora apresenta-se nativos com a natureza, animais e outros
com uma natureza singularizada pela sua seres de Pandora, assim como a valorização
qualidade entrelaçada e interdependente da solidariedade entre eles e a natureza, a
entre os seres nativos, os chamados na’vis, os lealdade e o respeito com o lugar em que
animais, a floresta e com os humanos, recém vivem.
chegados. Dentre as várias tribos, o filme Morin (2005) ressalta ainda a importância
enfoca a organização dos Onamaticayas, no da informação em movimento para a
qual Jake Sully é inserido como membro novo compreensão de um sistema. Ele afirma
para aprender a ser um deles. que a apreensão de sentido gerada em
Podemos usar duas cenas típicas para uma rede de informações favorece uma
iluminar dois traços do princípio sistêmico abertura comunicacional, que não é fator
aqui abordados, ou seja, sua abertura e suficiente, mas necessário para a arte da
interdependência. Segue sua descrição: compreensão. Por exemplo, em Pandora
Na primeira cena escolhida (aos 32 e sua biosfera encontramos um sistema
minutos e 31 segundos do filme), Neyriti, aberto, como já apresentado, na qual
quando conhece Jake, fica emocionalmente existe uma rede intrínseca de informações
incomodada, pois teve que intervir num que se retroalimentam. Tudo em Pandora
cada vez mais fica mais difícil de realizar: o da da qual eles fazem parte. Há uma visão
desconexão com o mundo da comunicação. solidária terrena do mundo na abordagem
Já em Pandora, ocorre o contrário, pois a de Cameron para Pandora, em contraposição
conexão dos na’vis com a natureza e de todo ao antropocentrismo do homem no novo
esse ecossistema acontece continuamente, planeta.
numa rede instável e viva. Podemos afirmar que, em Pandora, a
O tema da conexão eco-organizadora em cultura na’vi possui uma disponibilidade e
Pandora pode ser imageticamente ilustrado abertura diante o Outro, buscando uma
por diferentes e intrigantes cenas no filme. Por maior solidariedade, condição essencial
exemplo, naquela em que os na’vis se ligam para promover a arte da compreensão
com os Banshees, seus animais de poder, a terrena. Para ilustrar essa possibilidade
conexão dos nativos com a Árvore das almas, observa-se (aos 41 minutos e 18 segundos
que conecta esses seres com toda a rede de do filme) o contrato intercultural entre Jake
força do planeta. Podemos ainda apontar (representando o líder do povo do céu,
a força dessa temática numa das cenas homens) e os Na’vis (representados pelo pai
finais, em que os nativos de diferentes clãs e mãe de Neyriti). Nessa cena, é oferecido
só conseguem reaver Pandora quando essa aos nativos uma oferta cultural de Jake Sully,
grande rede de energia se comunica, ou seja, os ensinamentos de sua “tribo”, sobre suas
se conecta, e Ewya toma partido e mobiliza técnicas militares. Aqui se revela o objeto de
as forças naturais para combater a ambição valor de troca oferecido ao povo de Pandora.
humana (às 2 horas e 18 minutos do filme). Jake chega junto com Neyriti à Grande
No mundo mítico de Pandora, explicita-se Árvore dos primitivos, onde ocorre uma
a visão de mundo sistêmico, interdependente acolhida desconfiada, pois os líderes dos
e solidário, pois os seres de Pandora acreditam na’vis não queriam mais o “povo do céu”
que “[...] a energia que flui de todas as coisas (humanos) em seu território. A Xamã, mãe
vivas é só emprestada e deve ser um dia de Neyriti, avalia Jake em seu avatar para
devolvida [...]”. O nativo não se coloca acima sancionar ou não a sua permanência junto a
dos demais seres da natureza, pois acreditam eles. A Tsa´hik, como é chamada essa mulher
que são apenas parte de um todo. Os com poderes místicos, vai avaliar a sorte de
seres azuis respeitam os outros seres, como Jake para receber a mensagem de Ewya,
respeitam a sua espécie. O que importa é o a grande alma mantenedora da energia
equilíbrio interativo e respeitoso entre tudo cósmica de Pandora. Jake emite um convite
o que é vivo. sedutor, dizendo a ela que veio para aprender.
O povo de Pandora não usa a razão A mulher na’vi responde dizendo que “é difícil
utilitarista para explicar a sua existência, como encher uma taça que já está cheia”. O humano
os humanos no filme o fazem, e diríamos, no em sua roupagem nativa azul retruca que sua
cotidiano atual e presencial também. A cena “taça está vazia” e se apresenta como um
que mostra todos de braços dados em uma guerreiro do clã dos homens do céu, chamado
comemoração simboliza essa conexão entre de Cabeças de Pregos. Nesse instante (aos
todos os indivíduos e a importância dada 46 minutos do filme), o líder dos na’vis
ao coletivo e ao todo. Todas as decisões e interrompe sua esposa, a xamã, e afirma
resoluções da espécie são tomadas frente que será interessante aprender com Jake os
à comunidade e em respeito à energia modos de ser desse clã, sancionando sua
permanência junto à tribo primitiva dos seres das competências pragmáticas com Neyriti
azuis. Nesse contexto é oferecida ao humano (aos 64 minutos do filme), e afirma em seu
uma possibilidade de compreensão. Veremos vídeo diário que “a linguagem dos na’vis é
que, num primeiro momento, esse contrato chata”. Compara a sua aprendizagem com o
fracassará, pois Jake estará ainda implicado processo mecânico de desmontar uma arma,
com interesses escusos, tais como denunciar onde o que importa é a repetição dos passos.
os pontos fracos da tribo Onomaticaya para Essa lógica trazida pelo filme nos remete ao
os militares em sua base. império da visão técnica, fragmentada e
A visão humana em Pandora pode ser mecânica predominante na Modernidade,
identificada como o lugar do estrangeiro, instaurada pelo pensamento cartesiano
denominado como “o povo do céu”, que gera, aliado ao positivismo criminoso levado às
como ilustrado aqui, a recusa dos nativos, últimas consequências.
que já tiveram experiências interculturais Pandora intertextualiza, portanto, a
desastrosas. Essa tribo humana é figurada história recente do Ocidente europeu,
pelo jovem Jake Sully, que lidera os “cabeças retomando a América colonizada do século
de pregos”, referência simbólica à rigidez XV, convidando-nos, por exemplo, a reviver
da natureza humana. Podemos realizar nossa história brasileira, em que num
aqui uma reflexão da condição humana em processo agressivo de dominação europeia,
Pandora, sinalizando que esta sofre do que alimentado pelo enriquecimento, pela
Morin (2005) denominou de patologia da exploração das nossas matérias-primas,
razão. Quadro tipológico marcado pelo matou e ignorou a solidariedade com a terra
viés instrumentalista, que busca manter e seus nativos. Fizemos das Américas na
uma coerência racionalizadora sobre suas Modernidade o palco de um combate desleal
atividades, ou seja, o homem em “Avatar” é e sangrento, que até hoje ainda ressoa em
alimentado apenas pela ambição, diante da nossos olhares, diante da luta desigual entre
riqueza e do controle territorial. Em função os poucos nativos que temos e os interesses
disso, constrói e age diante o mundo, no latifundiários.
sentido do controle das variáveis, sem lidar O filme Avatar e o modo de existir em que
com a incerteza e a caoticidade que a vida o homem é relatado nos convidam, conforme
em movimento desperta. Podemos ilustrar Morin (2005) nos ensinou, a compreender
a valorização técnica-racional em várias que nossas sociedades humanas são máquinas
imagens do filme, tais como: o cuidado com o não triviais, pois elas necessariamente lidam
arsenal exploratório mantido pelos militares; com eventos imprevisíveis, ou seja, passam
o manuseio seduzido das armas robustas em e conhecem diferentes momentos de crises
verdadeiros simulacros de guerra; o contexto sociais, culturais ou econômicas. Diferente
do biolaboratório, altamente tecnológico; de uma máquina trivial, em que podemos
assim como as naves e helicópteros equipados conhecer todos os circuitos de entrada e
com um arsenal bélico impressionante. saída, o homem e suas sociedades não
Toda uma engrenagem técnico-científica podem ser descritas como um sistema
em busca de domínio e sucesso da missão fechado e previsível. Viver uma crise significa
implementada. aprender a lidar com as incertezas que dela
Há de se destacar uma cena em que Jake decorrem, pois os controles falham, a ordem
encontra-se em situação de apropriação é desordenada e os conflitos atualizam-se.
Referências
AVATA R . W i k i p e d i a . D i s p o n í v e l
em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Avatar_%28filme%29>. Acesso em: 2
nov. 2012.