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A pior pessoa do mundo (Análise Filmica)

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UFPB – 5 a 9/9/2022

A pior pessoa do mundo(?) Juventudes e culturas comunicacionais urbanas na


experiência estética do e no filme1

Fernanda Elouise Budag2


FAPCOM e USJT

Resumo

Disparados pela obra fílmica A pior pessoa do mundo (2021), de Joachim Trier, cineasta
norueguês, pensamos as juventudes e as culturas comunicacionais urbanas hoje.
Interessa-nos tecer considerações e questionamentos sobre aspectos que a obra mobiliza
a respeito das subjetividades jovens: as qualidades que carregam; as formas de ser e estar
nas cidades atravessadas pelas tecnologias digitais; o redesenho das relações sociais; e os
sentidos atribuídos às relações com os objetos e a cultura material. Fazemos nossas
considerações sobre a produção fílmica a partir de duas frentes: do estudo da própria
narrativa e discurso do filme (BARTHES, 2008; SERELLE, 2021; RANCIÈRE, 2017;
XAVIER, 2003; BENJAMIN, 1980) e o que estes lançam; e também da recepção crítica
da obra (SOUSA; SCABIN, 2020), com um levantamento não sistemático de
manifestações sobre o filme por parte da crítica brasileira especializada em cinema em
circulação na cultura digital.

Palavras-chave: comunicação; culturas urbanas; juventudes; tecnicidades; cultura


material.

Introdução

Produção norueguesa, com direção de Joachim Trier, que também assina o roteiro,
junto com Eskil Vogt, podemos iniciar sintetizando que A pior pessoa do mundo (2021) é
um filme que retrata a jornada de Julie (interpretada por Renate Reinsve) em seu
autoconhecimento enquanto jovem ou jovem adulta. Recortando um determinado período
de tempo de sua vida, que inicia em sua fase universitária até próximo aos seus 30 anos, a
história mostra em seus menos de cinco minutos iniciais rapidamente Julie abandonando
o curso de Medicina, enveredando pelo curso de Psicologia e finalmente optando pela
Fotografia. Com uma atitude bastante determinada na escolha final de campo profissional,
depois esse lado da personagem acaba menos evidente em seus relacionamentos amorosos,
que são outros pontos centrais a partir dos quais as identidades de Julie vão sendo
construídas no filme: primeiro com Aksel (Anders Danielsen Lie), escritor de quadrinhos

1
Trabalho apresentado no GP Comunicação, Tecnicidades e Culturas Urbanas, XXII Encontro dos Grupos de Pesquisas
em Comunicação, evento componente do 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), com pesquisa de pós-doutorado em Comunicação e Práticas de
Consumo (ESPM-SP). Mestre também em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM-SP). Docente na Faculdade
Paulus de Tecnologia e Comunicação e Universidade São Judas, e-mail: fernanda.budag@gmail.com.

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em torno de seus quarenta anos e depois com Eivind (Herbert Nordrum), jovem na faixa
etária de Julie e barista em um café; em ambas as relações a protagonista revela uma
faceta mais marcada por dúvidas e questionamentos.
O filme em questão é disparador aqui para pensarmos os modos de representação
das juventudes atuais, assim como suas relações com as tecnicidades e a cotidianidade
nas urbanidades. Indiretamente, é ainda uma forma de pensarmos não apenas as
experiências estéticas sobre os jovens, mas também as experiências estéticas dos jovens.
Com esses interesses, fazemos nossas considerações sobre a produção fílmica a partir de
duas frentes: do estudo da própria narrativa e discurso do filme e o que estes lançam; e
também da recepção crítica da obra, com um levantamento não sistemático de
manifestações sobre o filme por parte da crítica brasileira especializada em cinema em
circulação na cultura digital, buscando identificar as principais leituras empreendidas
nessas repercussões e como trazem (se trazem) algo das juventudes, das urbanidades e
das tecnicidades.
Em termos quantitativos, importante registrarmos que, de acordo com o
Metacritic, site agregador de críticas de cinema popularmente conhecido e legitimado
pela própria crítica, que trabalha com classificação numérica de filmes (o metascore)3, A
pior pessoa do mundo está avaliado em 90 de 100 pontos4, ou seja, uma pontuação
expressivamente positiva. Já nosso olhar qualitativo, resultado da observação da
circulação crítica sobre o filme, mencionada, trazemos de quatro sites de crítica de cinema
escolhidos por sua expressividade digital: Cinema com rapadura, Omelete, Cricríticos e
Filmelier. Assim, tal qual o movimento fluido com que a protagonista se move pela vida,
nossos escritos a seguir, após o estabelecimento conceitual introdutório, vão
transcorrendo passando por nossas observações narrativas e discursivas alternando com
as observações da crítica.

Prólogo: situando o discurso narrativo e a recepção crítica

3
Metascore é uma pontuação atribuída pelo Metacritic que consiste em uma média ponderada das resenhas
dos principais críticos e publicações de um determinado filme. A equipe do Metacritic lê as críticas e atribui
a cada uma uma pontuação de zero a cem, que então ganham um peso, sobretudo baseado na fonte e na
qualidade da revisão (FREQUENTLY asked questions. Metacritic. Disponível em:
https://www.metacritic.com/faq#item11. Acesso em: 07 jul. 2022).
4
THE WORST person in the world. Metacritic. Disponível em: https://www.metacritic.com/movie/the-
worst-person-in-the-world. Acesso em: 07 jul. 2022.

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Em conformidade com a estrutura de A pior pessoa do mundo que, como a própria


produção situa ao início, trata-se de um filme em doze capítulos, um prólogo e um epílogo,
também organizamos nossos escritos em três grandes partes. Assim, à semelhança de um
prólogo, trazemos nesta nossa parte inicial uma contextualização conceitual, expondo
elementos precedentes elucidativos sobre o olhar que lançamos ao objeto de estudo; tanto
acerca do que estamos entendendo enquanto recepção crítica do filme quanto a respeito da
noção de narrativa da qual partimos para pensar o filme e as demais questões que ele nos
suscita.
Estabelecidas as bases iniciais do prólogo, os escritos que as sucedem
correspondem ao grosso de nossas observações sobre o filme e o que este comunica acerca
das juventudes, das culturas urbanas e das tecnicidades. Por fim, no equivalente a nosso
epílogo, nas considerações finais, trazemos um arremate, complementando o sentido de
todo o exposto.
Em uma primeira camada metodológica, procuramos nos aproximar do filme a
partir do estudo direto de sua narrativa; por isso a necessidade de situarmos desde a partida
o que estamos entendendo por narrativa, até mesmo para elucidar também como
compreendemos que o seu estudo – o estudo dos recursos narrativos – nos possibilita
pensarmos sobre a realidade concreta: nesse caso, as relações das juventudes com a
cotidianidade, as urbanidades, as tecnicidades e a cultura material.
Antes de tudo, estamos em conversa aqui com os estudos da narrativa que se
desenvolvem com a abordagem da análise estrutural da narrativa (BARTHES et al., 2008)
e passam pela narratologia, abarcando a passagem dos estudos da narrativa da base literária
para o cinema e outras mídias. É desse núcleo comum que partimos e, nisso, dois aspectos
– distintos, mas que também podem ser congruentes – nos saltam quando buscamos
estabelecer uma base para a noção de narrativa: um está relacionado à forma narrativa e
outro a como os sentidos são trabalhados na narrativa (SERELLE, 2021).
Da perspectiva da análise estrutural da narrativa, temos que

inumeráveis são as narrativas do mundo. [...] a narrativa [...] está presente no


mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura [...], no vitral, no
cinema, nas histórias em quadrinhos [...] (BARTHES, 2008, p. 19).

Quando Barthes coloca que a narrativa marca presença nesses variados tipos,
gêneros e espaços textuais, está sinalizando para o primeiro aspecto da narrativa que
sublinhamos, para uma questão de forma, de particularidades constituintes da narrativa

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que acenam para a tradição clássica dos estudos da narrativa desde Aristóteles (2011), os
quais dizem respeito a questões como ordenação sequencial e hierárquica dos fatos,
organização temporal dos acontecimentos e constituição de personagens e suas vivências
em determinado espaço-tempo. Inclusive tal abordagem, estando relacionada a uma
tomada de consciência da narrativa enquanto construção, vincula-se à perspectiva da
virada linguística no século XX, que passa a enxergar a centralidade da linguagem e sua
não neutralidade. Enfim, nesse enfoque, narrativa diz respeito a um artifício de que se
lança mão para passar mensagens, a uma estrutura de fácil compreensão por ser
compartilhada social e culturalmente; e nesse ponto narrativa aproxima-se da noção de
ficção que Rancière (2017) delineia ao resgatar a poética aristotélica:

A ficção é um modo de apresentação que torna as coisas, as situações ou os


acontecimentos perceptíveis e inteligíveis; um modo de ligação que constrói
formas de coexistência de sucessão e de encadeamento causal entre os
acontecimentos e confere a essas formas as características do possível, do real
ou do necessário. Ora, essa dupla operação é exigida em toda parte onde se
trata de construir um certo sentido de realidade e de formular a inteligibilidade.
(RANCIÈRE, 2017, p. 12).

Nesse direcionamento, para além de narrativa dizer respeito a uma estrutura


ordenada que imprime sentido aos eventos dispostos, é também uma forma familiar
(conhecida) de tornar esses eventos compreensíveis. Adicionalmente, essa lógica aponta
para a necessidade de que a concretude da vida parece solicitar ser colocada na forma
narrativa para ser pensada e fazer nexo. Nesse ponto justifica-se nossa escolha por pensar
sobre as juventudes a partir de um filme: a obra fílmica, em sua forma narrativa, permitindo
a compreensão dos fenômenos, agora converte-se em locus para pensarmos sobre esses
mesmos fenômenos de modo inteligível. Possibilita-nos pensarmos ao menos sobre alguns
sentidos possíveis para as representações propostas pela obra. Aqui encaixa-se o segundo
aspecto da noção de narrativa que nos interessa destacar, sobre o modo com que trabalha
os sentidos do texto: a narrativa, enquanto troca de experiência coletiva, faz jus ao caráter
polissêmico da linguagem e não esgota um sentido fechado.
O discurso narrativo, sendo composto, como explica Xavier (2003), pela fábula (o
conteúdo da história) e pela trama (modo como o conteúdo é tecido), suscita que um
mesmo material (a fábula), sendo tramado de maneiras distintas, proponha sentidos
diversos. Ou, nos termos benjaminianos, no clássico texto em que trata da questão do
narrador, temos que a narrativa apenas alude aos sentidos, sem determiná-los
univocamente de modo fechado. Narrar, enquanto aconselhar “[...] é menos responder a

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uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada” (BENJAMIN, 1980, grifo nosso). Os sentidos de uma narrativa permanecem
abertos porque, sendo a narrativa da ordem da experiência vivida coletivamente – forma
de aquisição de conhecimento e de troca de experiências coletiva –, o espectador da
narrativa dá continuidade a ela após narrada ao apropriar-se da história, significando-a e
dando sucessão a sua própria história articulada à original.
Enfim, partimos desse ponto de vista da narrativa enquanto prática discursiva
construída e é nesse enquadramento que entendemos narrativa e a partir do qual lançamos
um olhar direto à narrativa de A pior pessoa do mundo. Por fim, em uma segunda camada
metodológica, adensamos o olhar de terceiros sobre a obra por meio do que estamos
chamando de recepção crítica. Com uma proposta de recepção crítica da obra estamos
dialogando com perspectiva de Sousa e Scabin (2020) que, em consonância com o
conceito de mediação enquanto processo de negociação cultural (COULDRY, 2008;
SILVERSTONE, 2002), concebem um conceito expandido de recepção, abarcando o que
se produz em torno da obra a partir de sua circulação em instâncias de crítica, como as
publicações da crítica especializada ou manifestações do público nas redes sociais digitais.

De modo mais específico, buscamos refletir sobre a possibilidade de


materialização de lugares de crítica a partir dos quais se possam ler produções
televisivas por meio da análise comparativa das mediações construídas na
esfera do jornalismo profissional e entre a audiência não especializada.
Considerando que a série em foco tematiza, a princípio, a vida de indivíduos
periféricos, interessa-nos ainda discutir a possibilidade, por parte das instâncias
de crítica, de engajar-se na construção de caminhos para a avaliação da
legitimidade da representação do outro. (SOUSA; SCABIN, 2020, p. 164).

É na esteira da perspectiva de continuidade permanente da história que


perseguimos os possíveis sentidos trabalhados em A pior pessoa do mundo e os captados
pela crítica especializada em circulação no ambiente digital, encerrando o circuito
complexo que parte da concretude da vida, ganha sentidos no simbólico e a eles vamos
condensando nossos significados.

Trama central: o que nos dizem o filme e a crítica?

Neste momento apresenta-se relevante registrarmos uma sinopse do filme A pior


pessoa do mundo em circulação em site de grande expressão, porque este se conforma
como uma chave inicial de leitura e entendimento da obra:

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A Pior Pessoa do Mundo é dividido em um prólogo, um epílogo e 12 capítulos


que seguem Julie em sua busca por si mesma. Julie é jovem, bonita, inteligente
e não sabe exatamente o que deseja em uma carreira ou parceiro. Uma noite
ela conhece Aksel, um conhecido romancista gráfico 15 anos mais velho que
ela, e eles rapidamente se apaixonam. Todavia, ela também conhece um barista
de café, Eivind, que também está em um relacionamento. Julie tem que decidir,
não apenas entre dois homens, mas também quem ela é e quem ela quer ser.
Entre idas e vindas, Julie escolhe com [quem] quer ficar e mais problemas
surgem em sua vida. O longa aborda um momento específico da vida em que
a energia inquieta da imensa possibilidade da juventude se mistura com a
sensação melancólica e existencial sobre aceitar a pessoa mais difícil que você
pode conhecer: você mesmo - e que mudanças fazem parte de sua vida.5

A sinopse acima deixa entrever duas grandes marcas do filme: a questão das
juventudes (na figura da personagem principal), descrita sobretudo com a qualidade da
inquietude, e a questão da construção de si. A imagem de cartaz do filme6, com a
protagonista, Julie, correndo, à parte da cena a que a imagem realmente pertence na obra,
é signo da saga de sua personagem: está correndo, seguindo ou perseguindo seu
autoconhecimento, e faz isso sorrindo, com leveza.
Ainda que tenha consciência e sinta as pressões sociais a que está exposta e sua
busca para se encontrar seja uma constante, não há um estado de tensão e nem uma dureza
permanente no filme. Como exploramos melhor mais à frente, essa ausência de tensão
pode estar atrelada à boa estrutura social do país em que esta jovem está e que lhe permite
conduzir de modo mais leve a vida. Nesse sentido, essa representação opera colidindo
com condições das juventudes latino-americanas marcadas por exclusões, que vão
enrijecendo a vida cotidiana nas grandes cidades. Nesse sentido o filme passa longe de
tratar das diversas dimensões das juventudes que passariam por perspectivas decoloniais
e questões interseccionais (gênero, raça e classe).
O filme é mostrado/contado intercalando uma narração em terceira pessoa (com
uma narradora que não é revelada) com o desenrolar do enredo em primeira pessoa (do
ponto de vista de Julie). Esse tipo de construção faz jus a um filme que se propõe mais
reflexivo (XAVIER, 2003), trabalhando uma montagem que justapõe narrador (que expõe
a sua uma versão possível) e cena para explorar tanto a subjetividade, os pensamentos e
o drama interior da protagonista quanto a potencial de inserção no tempo e espaço
ordinários das personagens.

5
Fonte: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-279214/.
6
A imagem pode ser conferida aqui: https://www.papodecinema.com.br/filmes/a-pior-pessoa-do-mundo/.

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Conseguimos facilmente depreender que a narradora intervém no fluxo da história


(configurando sentidos) e suas interrupções indiciam para um recurso que ilustra o quanto
o fluxo de nosso tempo contemporâneo é constantemente interrompido; como inclusive
explicita enfaticamente o discurso inicial da narradora logo ao início do prólogo,
chamando a atenção para as descontinuidades e suspensões de nossas atividades a que
estamos expostos hoje com plataformas digitais de comunicação:

Julie decepcionou a si mesma. Isso costumava ser fácil. Ela ainda estava entre
as melhores estudantes, mas havia muitas interrupções, atualizações, notícias,
problemas globais insolúveis. Ela sentia uma inquietação torturante, que
tentou superar estudando, afogando-a em inteligência digital. Isso estava
errado. Não era ela. Ela escolheu medicina porque era muito difícil conseguir
admissão. Onde as excelentes notas dela, na verdade, nada significavam. Mas
ela teve uma revelação. A paixão dela sempre foi a alma. A mente, não o corpo.
[...] Era como se uma janela tivesse sido aberta. Ela o deixou [o namorado].
Mesmo ficando devastado, ele tinha que respeitar o modo como ela assumiu o
controle da própria vida. (A PIOR..., 2021).

Antes mesmo do prólogo o filme inicia com uma cena da protagonista, Julie, em
pé em uma sacada, mirando o horizonte, fumando e digitando ao celular. Somando essa
cena inicial, em que figura o uso do celular, simbolizando a paisagem contemporânea na
qual o dispositivo tem sempre presença, com a narração preambular supracitada, temos
que Julie, portanto, é jovem produto de nosso tempo contemporâneo. Marcada por
inquietações, contato constante com tecnologias de comunicação digital, rápidas
transformações (tecnológicas e digitais) e contínuo fluxo de informações que
descontinuam o fluxo diário de nossas atividades e pensamentos. A estrutura episódica
(prólogo, doze capítulos e epílogo) assumida para o filme inclusive contribui para
concretizar a metáfora do caráter fragmentário e descontinuado das experiências vividas
hoje. As indicações às categorias do Oscar 2022 de Melhor Roteiro Original e Melhor
Filme Internacional, ainda que não tenham resultado em premiação, já atestam a favor da
construção narrativa do filme, que se apresenta bastante verossímil (RICOEUR, 1994)
por trazer representações que se reportam como possibilidades da realidade.
Mas Julie, tal qual juventudes de sua geração, não é somente produto, é também
produtora de seu tempo, em consonância com a noção de jovens enquanto “[...] sujeitos
ativos e produtores de práticas, subjetividades e identidades, capazes de contribuir tanto
para suas próprias transformações, quanto para as mudanças desejadas, em direção à
equidade, à paz, ao fortalecimento da democracia e à diminuição das desigualdades”
(BORELLI; SOARES, 2021, p. 2). Para exemplificar mais concretamente, podemos
assentar que o filme está em diálogo com o discurso circulante (CHARAUDEAU, 2010)

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hoje do empoderamento feminino. Ou ainda melhor: Julie é a representação da jovem


mulher empoderada, independente. Em determinada cena do capítulo 9 o filme tem a
preocupação de fazer a protagonista colocar em pauta em um de seus enunciados os temas
do pós-feminismo, da sexualização grosseira e do privilégio masculino. Klimiuc7, em sua
resenha para o Cinema com Rapadura, atravessa essa questão do empoderamento:

[...] outra abordagem fascinante de Trier é a exaltação de sua protagonista como


o verdadeiro centro e essência de sua história, sem jamais deixá-la orbitar em
torno de um homem ou outro interesse amoroso qualquer, ou sequer tornar a
ausência de uma carreira algo verdadeiramente prejudicial à sua história. Ao
contrário, o roteiro cria situações nas quais Julie é pressionada por não estar
casada, por não querer filhos, por não ter criado uma carreira assim que saiu da
faculdade, e por não se segurar em um relacionamento quando o homem a quer.
Ela pensa nela, e daí o título que, para muita gente, a torna a “Pior Pessoa do
Mundo”. (KLIMIUC, 2022).

Julie é agente transformador de si ao performar suas decisões de mudança –


sobretudo ao início e ao final do filme – e também nessas demais quebras de padrões
sociais que adota. Outro exemplo dessa representação da juventude enquanto agente
transformador, dessa vez voltadas ao coletivo, aparece quando Julie escreve um artigo,
intitulado Sexo oral em tempos de #MeToo8, que, segundo a narradora, veio a ser
publicado em um site e acabou gerando muitos compartilhamentos e comentários nas
redes sociais. É uma forma de participação política da juventude que Julie encampa. No
artigo o posicionamento feminista da personagem é explicitado e ela, com o texto,
contribui com o avanço de discussões para o debate público entre feminismo e sexo em
relações heterossexuais:

Uma amiga me contou que fez sexo com um cara que colocava o pênis na boca
dela enquanto segurava a cabeça dela. Ela ficou confusa, porque ela gostou.
Ela ficou com muito tesão. É possível ser feminista e gostar de coisas assim?
A maioria das mulheres que conheço são ambivalentes ao sexo oral. Elas
fingem que gostam e esperam que isso as deixe com tesão. Eu gosto de flácido.
Eu o faço ficar duro em vez de deixá-lo entrar em mim pronto. (A PIOR...,
2021).

7
KLIMIUC, Denis Le Senechal. A Pior Pessoa A Pior Pessoa do Mundo (2021): e a melhor de todas as
intenções. Cinema com rapadura. 2022. Disponível
em: https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/610529/critica-a-pior-pessoa-do-mundo-2021-e-a-melhor-
de-todas-as-intencoes/. Acesso em: 07 jul. 2022.
8
O termo “MeToo”, que em tradução literal significa “EuTambém”, foi criado em 2006 pela ativista norte
americana Tarana Burke em uma campanha contra o abuso e assédio sexual (MeToo Movement), para
ajudar mulheres vítimas a se defenderem. A expressão tem o propósito de quebrar o silêncio sobre o assunto
ao levantar a bandeira do “eu também já fui agredida sexualmente”. Posteriormente o termo ganhou mais
expressividade em 2017, quando a Atriz Alyssa Milano incentivou, via sua conta no Twitter, que pessoas
que já sofreram agressões sexuais se manifestassem fazendo uso da hashtag “MeToo”. Seu apelo viralizou
globalmente e pessoas do mundo todo compartilharam experiências.

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Em uma mirada rasa, Julie, enquanto representação de juventudes recentes,


poderia ser traduzida como um sujeito superficial, autocentrado e individualista – que
seriam os pontos que talvez fizessem jus ao título de “pior pessoa do mundo”, como
Klimiuc (2022) também sugere. Mas essa não é a questão. Ou: Julie pode ser também
isso, mas não é apenas isso. Julie é trabalhada como personagem complexa, múltipla e
não linear. E também podemos situar que, em certo sentido, representa os jovens plurais
em suas múltiplas singularidades, nos termos colocados por Borelli, Rocha e Oliveira
(2009) ao estudarem os jovens na cena metropolitana de São Paulo.
Lola Ortega9, ao escrever sua crítica para o site Filmelier, aciona, para referir-se a
Julie, reflexões de Bauman (2021) do final do século XX, sobre o processo de liquefação
das identidades, que seria uma resposta comportamental volátil a padrões tecnológicos
também voláteis10. Ainda que traçada há mais de duas décadas, a descrição manifesta-se
pertinente em relação a Julie e as juventudes recentes:

Em outras palavras, quando Zygmunt Bauman escreveu sobre o indivíduo na


modernidade líquida, poderia muito bem estar escrevendo sobre Julie, uma
jovem cuja única certeza na vida é não saber exatamente o que quer dela e, ao
mesmo tempo, querer tudo: talvez seja fotógrafa, talvez tente a sorte como
escritora, talvez entre em uma festa espontaneamente e se apaixone por acaso
por um homem, enquanto mantém um relacionamento romântico com outro.
[...]
Porque, se a característica fundamental da modernidade líquida é a mudança
constante e, portanto, a infinita possibilidade de aperfeiçoamento, o contrário
também é verdadeiro: as pessoas, sempre mudando, nunca deixarão de ser
falíveis, e todos nós nos machucaremos em algum momento. E não há nada de
errado com isso. (ORTEGA, 31 mar. 2022).

De fato, na vivência de Julie, o que há de permanente são as transformações.


Ortega resume:
‘A Pior Pessoa do Mundo’ é um filme sobre encontrar nossa vocação, buscar
o amor e acreditar que o encontramos apenas para trocá-lo por outro, lidar com
expectativas (de todos os tipos), entender como nossos relacionamentos
passados nos moldam, lidar com a nostalgia, se preocupar com tudo que pode
dar errado, aceitar o que dá errado e modificar os planos de vida que
achávamos imutáveis. (ORTEGA, 31 mar. 2022).

Julie tem um comportamento, no geral, marcado por indefinições na carreira e nos


relacionamentos e esta é uma questão trabalhada de modo naturalizado e não

9
ORTEGA, Lilo. ‘A pior pessoa do mundo’ e a fome pela vida. Filmelier. 31 mar. 2022. Disponível em:
https://www.filmelier.com/br/noticias/a-pior-pessoa-do-mundo-critica. Acesso em: 07 jul. 2022.
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Avanços cada vez mais rápidos de novas tecnologias digitais e a globalização levaram a uma perda da
sensação de controle sobre os acontecimentos e nos conduziram a comportamentos mais inconstantes.

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problematizada enquanto “patologia geracional”; uma estratégia narrativa que


potencializa a história para os tempos atuais e que a crítica também reconhece:

A força do filme do cineasta norueguês Joachim Trier é que ele reconhece


essas indefinições como partes intrínsecas do viver e oferece um retrato
sensível e honesto do que é ser um jovem adulto nos dias de hoje, com todas
as inquietações e angústias envolvidas no processo. E ele o faz sem moralismo:
a jornada de Julie não existe para ser um modelo de certo ou errado; ela apenas
existe, como a de todos nós, e traz consigo as emoções genuínas que
experimentamos a cada dia. (AMENDOLA, 24 mar. 2022, grifo no original).11

Por outro lado, Rogério Victorino (24 mar. 2022)12, em sua crítica para o site
Cricríticos, levanta um bom ponto ao traçar um paralelo entre os jovens noruegueses,
retratados no filme na figura de Julie, e os jovens brasileiros: na Noruega, com um bom
sistema do Estado de Bem-Estar Social, alto PIB, elevado nível de desenvolvimento
humano, leis que prezam igualdade de gênero e sobretudo educação garantida e baixa
taxa de desemprego, os jovens têm mais assegurado um tempo maior para definirem uma
profissão. Enquanto no Brasil fatores como a necessidade de entrada precoce no mercado
de trabalho para sustento da família, somada à impossibilidade de pagar pelo ensino
privado dada a limitação de renda reduzem a viabilidade do acesso ou da permanência na
educação superior; reduzindo escolhas e enxugando o tempo dedicado a elas.
Mesmo ponto é levantado por Ortega (2022), que inclusive atribui a leveza com
que Julie conduz a sua vida justamente à condição econômica privilegiada.

O que não significa cair no lugar-comum de que ‘A Pior Pessoa do Mundo’ “é


um filme universal”. Ao contrário, há um inegável ar de privilégio econômico
na leveza com que Julie decide, como se não fosse nada, mudar de carreira
duas vezes e queimar as becas e as economias da mãe para se financiar (depois
ela passa a trabalhar em uma livraria para se sustentar). (ORTEGA, 2022).

Portanto, a trama (a forma que a matéria ganha) não é, de modo algum, universal,
mas a matéria, o substrato que é a experiência humana das juventudes parece ter, sim,
algo que fala sobre e conversa com os jovens globalmente. Se, por um lado, há uma
representação de juventude privilegiada que contrasta com as juventudes latino-
americanas, como apontado, por outro lado, o retrato de uma vivência atravessada por
sentido de urgência e incertezas conversa com as juventudes brasileiras (e possivelmente

11
AMENDOLA, Beatriz. A pior pessoa do mundo faz recorte sensível e sincero da vida adulta. Omelete.
24 mar. 2022. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/a-pior-pessoa-do-mundo-faz-
recorte-sensivel-e-sincero-da-vida-adulta. Acesso em: 07 jul. 2022.
12
VICTORINO, Rogério. Crítica | A pior pessoa do mundo. Cricríticos. 24 mar. 2022. Disponível em:
https://cricriticos.com/2022/03/24/critica-a-pior-pessoa-do-mundo/. Acesso em: 07 jul 2022.

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outras). Inclusive esse retrato transparece também quando se coloca em pauta questões
geracionais. Pontualmente a personagem Karianne posiciona-se sobre a geração que foi
jovem antes de Julie: “É mesmo, nós tínhamos mais liberdade. Ser jovem hoje em dia é
diferente. Eles sofrem muita pressão. Não têm tempo de pensar. Estão sempre na frente
de uma tela. William, por exemplo [referindo-se ao filho]. Se não colocamos limites, ele
só vive no digital” (A PIOR..., 2021). A personagem está se referindo a nossa inserção
digital, que configura, conforme situa Santaella (2003)13, uma cultura digital, cujas
marcas registradas são justamente a produção e circulação de informação em grau
exacerbado potencializadas pela convergência das mídias. Uma cultura (digital) que vai
firmando entre os jovens comportamentos, experiências, formas de viver e pensar
entrecruzados com as tecnologias digitais. Portanto, está representada na trama do filme
a tecnicidade, “[...] que nomeia então o que na sociedade não é só da ordem do
instrumento mas também da ordem da sedimentação de saberes e da constituição das
práticas” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 235). Ainda que embalado por um certo
discurso moralista que condena o digital implicitamente como causador das mazelas do
mundo e enquadra o “estar em frente à tela” como algo negativo, o filme aponta para
configurações de novas práticas e expressividades que o digital sedimenta cultural e
socialmente.
Retomando a questão geracional, a própria Julie, um pouco mais adiante, também
reflete sobre suas conquistas de até então em contraste com as conquistas, com a mesma
idade, das mulheres de sua família que vieram antes dela:

Aos 30 anos, Eva, a mãe de Julie, já era divorciada há dois anos. Uma mãe
solteira e contadora de uma editora. Aos 30, a avó de Julie tinha três filhos.
Interpretou Rebecca West na peça Rosmesholm, no Teatro Nacional. Aos 30,
a bisavó de Julie, Astrid, era viúva, sozinha com quatro filhos. A trisavó de
Julie teve sete filhos. Dois morreram de tuberculose. A tataravó de Julie,
Herta, era mulher de um comerciante, com seis filhos em um casamento sem
amor. A pentavó de Julie nunca fez 30 anos. (A PIOR..., 2021).

Julie não chega a concluir nada com seu devaneio. De todo modo, ele é novamente
representação de seus temores e incertezas a respeito das decisões e feitos até ali. Em
verdade, a obra deixa a entender um aparente estado mais tranquilo e satisfeito da

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A autora situa a cultura digital, em curso, como a formação cultural atual que é resultado complexo de
um processo cumulativo de formações culturais anteriores – a cultura oral, a cultura escrita, a cultura
impressa, a cultura de massas e a cultura das mídias –; que foram fertilizando gradativamente o terreno
sociocultural para a emergência da cultura digital caracterizada pela convergência das mídias e busca ativa
da informação por parte dos atores sociais que prezam o acesso à informação (SANTAELLA, 2003).

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personagem com suas escolhas somente após uma elipse narrativa (com uma passagem
de tempo não precisamente definida que supostamente deixa de fora um certo período da
vida da protagonista), quando, tendo terminada a relação com Eivind após um aborto
espontâneo de uma gravidez não planejada, ela aparece finalmente trabalhando como
fotógrafa e protagonizando mais efetivamente sua carreira.
Além da fotografia, entre as formas culturais, enquanto experiências estéticas, que
mais representam no filme as relações da juventude com a cidade e com a cultura material
localizamos os livros e os quadrinhos. Inclusive há um discurso da personagem Aksel a
respeito:
O mundo que eu conhecia desapareceu. Pra mim tudo se resumia a loja de
discos. Pegava o bonde para folhear quadrinhos usados na Pretty Price. Posso
fechar os olhos e ver os corredores da Vídeo Nova em Majorstua. Cresci em
uma época em que a cultura era transmitida através dos objetos. Eles eram
interessantes porque nos podíamos viver entre eles. Nos podíamos pegá-los.
Segurá-los em nossas mãos. [...] Isso é tudo o que eu tenho. Passei minha vida
fazendo isso. Colecionando todas essas coisas, quadrinhos, livros. Eu apenas
continuei mesmo quando isso parou de me dar as poderosas emoções que
sentia no início dos meus 20 anos. Eu continuei mesmo assim. Agora isso é
tudo que me resta. Conhecimento e memórias das coisas estúpidas e fúteis que
ninguém dá a mínima. (A PIOR..., 2021).

Os objetos de consumo culturais então aparecem representados enquanto


mobilizadores de experiências vividas e, sobretudo, acionadores de afetos e trajetos pela
cidade. Ainda que o enunciado acima tenha um tom melancólico e pessimista, muito em
virtude do fato do personagem enunciador estar enfrentando um câncer em fase terminal,
os objetos são instrumentos objetificadores de emoções. Perspectiva semelhante é
sustentada por Miller (2013), que defende o ponto de vista da capacidade dos objetos, ou
“trecos” como denomina, de nos formatarem como seres sociais. Construímos relações
sociais através dos objetos e, no caso da personagem em questão, é bastante evidente essa
formatação, visto que todo seu consumo de quadrinhos na infância e juventude levou-o a
trabalhar com a arte dos quadrinhos na fase adulta.

Epílogo: considerações finais

Em parte mais avançada no filme o espectador vem a saber que a cena inicial de
Julie em uma sacada fitando o horizonte trata-se de um flashforward que reaparece
cronologicamente corretamente inserida no tempo em momento determinante da vida da
personagem, marcando o início do “capítulo 2: infidelidade”, quando Julie conhece Eivind
e desestabiliza a já instável relação com Aksel. Quando fazemos a escolha por estudar a

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realidade concreta via narrativa construída tem a ver com isso: com essa organização e
produção de sentidos para compreensão de interpretações possíveis. No caso de A pior
pessoa do mundo, escolhas narrativas ajudaram a imprimir uma carga emocional e afirmar
determinadas leituras da experiência humana, mundana da protagonista. Por isso nos
valemos desse espaço final para amarrar algumas observações sobre os elementos que
nos interessavam nas representações postas em circulação: as qualidades das
subjetividades das juventudes, a cultura material, as relações sociais e as vivências
urbanas atravessadas pelo digital.
Contrariamente ao que o título sinaliza, de que a protagonista seria a pior pessoa
do mundo, o filme não traz efetivamente em sua trama discursos de julgamentos morais
sobre a personagem. A depreender de Julie, as subjetividades das juventudes seriam
plurais, sobretudo em virtude de seu caráter fluido: são mutáveis, inconstantes e, por que
não, desordenadas. Nesse ponto, a representação trava diálogo com as juventudes
brasileiras, ou latino-americanas. A grande fragilidade nas representações trazidas pela
obra é a limitação ao trabalhar com os padrões branco, de classe média/alta,
heteronormativo e dentro de um cenário social eurocentrado privilegiado; passando longe
do urgente debate interseccional.
Enfim, a representação de juventude que salta da obra é de agente transformador
de si e do coletivo. Ao final na narrativa a protagonista finalmente parecer ter se
encontrado melhor (ao menos por enquanto, porque nada é dado e tudo está em
movimento) e parece se sentir mais protagonista de sua existência, ao contrário de como
se sentia antes: “Me sinto como uma espectadora em minha própria vida” (A PIOR...,
2021). Afinal, a fotografia teria potencial para ser outra forma de participação política da
personagem (ação anteriormente centrada no discurso oral e escrito).
Mesmo que a produção traga discursos de viés incriminador das tecnologias
digitais que nos acompanham em nossa cotidianidade, as relações sociais retratadas dão-
se em sua totalidade na presencialidade e sem as mediações diretas dos dispositivos
tachados como agentes que interrompem nossas vivências. A verdade é que o ambiente
digital entra como pauta de diálogos e narrações, mas não como objeto da trama. De todo
modo, o filme é locus para observação da paisagem contemporânea entrelaçada pela
cultura digital. Afinal, a qualidade imediata do digital reflete em nossas ações cotidianas
e modos de experienciar nossas realidades.

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Por sua vez, as materialidades da cultura, que tanto fundamentam nossas vidas e
permitem – também dada sua natureza narrativa – compreender os atores sociais,
participam em A pior pessoa do mundo como instrumentos objetificadores de emoções.
Os objetos em questão, livros e quadrinhos, tão característicos da cultura impressa e da
cultura das mídias (SANTAELLA, 2003)14, que dependem dos suportes físicos para
consumo, são gatilhos com potência para nos transportar a experiências vividas; o que
explica a prática do colecionador. Objetos, que firmam no material o imaterial (afetos,
emoções, experiências) atuam em nossas subjetividades e, nesse ponto, deixam
transparecer o contraste entre a estabilidade material e tangível dos objetos com as
instabilidades da juventude, simbolizando ainda a manifestação dos embates geracionais
entre Aksel e Julie. As nossas relações com nossas subjetividades, tanto quanto com os
objetos estão em movimento. No filme, os objetos da cultura material além de acionarem
memórias e afetos, ainda mobilizam a vivência com a cidade e trajetos pelo urbano,
sinalizado apenas com sutil ocupação de territórios e usos da cidade.

Referências

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A cultura impressa é marcada pela democratização do acesso aos registros; e da cultura das mídias é
fundamentada no princípio de um consumo ativo e segmentado; no consumo individualizado e na cultura
do disponível.

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