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Direitos Difusos

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Universidade Estadual da Paraíba

Prof. Antonio Guedes Rangel Junior | Reitor


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Luciano Nascimento Silva | Diretor
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Glauce Suely Jácome da Silva
Rozeane Albuquerque Lima
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2020
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Luciano Nascimento Silva | Diretor
Antonio Roberto Faustino da Costa | Editor Assistente
Cidoval Morais de Sousa | Editor Assistente

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Elizete Amaral de Medeiros | Revisão Linguística
Antonio de Brito Freire | Revisão Linguística
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Depósito legal na Biblioteca Nacional, confome Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA HELIANE MARIA IDALINO SILVA - CRB-15ª/368

D597 Direitos difusos e coletivos: vulnerabilidades e proteção jurídica. [Livro


eletrônico]. / Glauce Suely Jácome da Silva, Rozeane Albuquerque Lima
(Organizadoras). - Campina Grande: EDUEPB, 2020.
2000kb. - 427 p.
Modo de acesso: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books/
ISBN 978-85-7879-521-4 (E-book)
1. Direito Constitucional e administrativo. 2. Direitos humanos. 3. Políticas
públicas e multiculturalismo. 4. Direito trabalhista brasileiro - Reforma. 5.
Ideologia ultraindividualista. 6. Interculturalismo. 7. Direito do consumidor.
8. Direito ambiental - Sociobiodiversidade. I. Silva, Glauce Suely Jácome da
(Organizadora). II. Lima, Rozeane Albuquerque (Organizadora).
21. ed.CDD 342

Copyright © EDUEPB
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação
da Lei nº 9.610/98.
Sumário

APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
As organizadoras.

IDEOLOGIA ULTRAINDIVIDUALISTA DO JUDICIÁRIO


BRASILEIRO COMO OBSTÁCULO À APLICAÇÃO DOS
DIREITOS COLETIVOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
André Augusto Salvador Bezerra

INTEGRAÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS ÉTNICO-


NACIONAIS NAS CIDADES GLOBAIS MULTICULTURAIS. . . . . . . . 33
Alessandra Danielle Carneiro dos Santos Hilário

DIREITOS CULTURAIS, PATRIMÔNIO E DIVERSIDADE:


A PROTEÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS
INDÍGENAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Gilmara Benevides C. S. Damasceno
Luciana de Oliveira Chianca

POLÍTICAS PÚBLICAS EM DIREITOS HUMANOS


E A JUREMA SAGRADA: UMA QUESTÃO DE
RECONHECIMENTO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Camilo de Lélis Diniz de Farias

A DEFICIÊNCIA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA:


DA ANIQUILAÇÃO DA DIFERENÇA AO MODELO DE
INCLUSÃO SOCIAL PELO ACESSO AOS DIREITOS
HUMANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Gustavo Giorggio Fonseca Mendoza
Glauber Salomão Leite

5
O AUMENTO DA DELINQUÊNCIA FEMININA E A
INAPLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Félix Araújo Neto
Sabrinna Correia Medeiros Cavalcanti

APLICAÇÃO DA CARGA DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA


COMO MÉTODO DE CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA IGUALDADE SUBSTANCIAL NO PROCESSO CIVIL
BRASILEIRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Italo Barbosa Leôncio Pinheiro

A GARANTIA DO EFETIVO DIREITO À COMUNICAÇÃO . . . . . . . . 225


Ana Cristina Santos

REFORMA NO DIREITO TRABALHISTA BRASILEIRO:


O CONTEXTO DOS TEXTOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Nadine Gualberto Agra

A INSEGURANÇA JURÍDICA DO CONSUMIDOR NAS


RELAÇÔES CONSUMERISTAS NO ÂMBITO DOS
PAÍSES DO MERCOSUL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287
Fernando Antônio Vasconcelos
Fernanda Holanda V. Brandão
Ilany Caroline da Silva Leandro

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA: UM ESTUDO À LUZ DO


DIREITO DO CONSUMIDOR E DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
Antonio Pedro de Mélo Netto
Mariana Loureiro Gama

O BIODIESEL NO CONTEXTO JURÍDICO BRASILEIRO . . . . . . . . . 341


Talden Farias
Arícia Fernandes Correia

6
O SEMIÁRIDO SUSTENTÁVEL - UMA CONSTRUÇÃO
DISCURSIVA? REFLETINDO CONCEITOS E NARRATIVAS
SOBRE E PARA O SEMIÁRIDO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 379
Cristian josé simões costa
Glauce Suely Jácome da Silva
Rozeane Albuquerque Lima

POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO AMBIENTAL:


REFLEXÕES SOBRE A AMPLIAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA
NO SEMIÁRIDO, O CASO DO MUNICÍPIO DE SUMÉ-PB. . . . . . . 409
Allan Gustavo Freire da Silva
José Irivaldo Alves de Oliveira Silva
Carina Seixas Maia Dornelas
Alecksandra Vieira de Lacerda

7
APRESENTAÇÃO

O
livro Direitos Difusos e Coletivos: Vulnerabilidades e
Proteção Jurídica foi também pensado a partir de um
congresso realizado na cidade de Campina Grande
Paraíba: o I Congresso Internacional de Direitos Difusos.
Tivemos a intenção de reunir as principais temáticas abordadas
ao longo do encontro pelos palestrantes e convidados, temáticas
estas com relevância e repercussão nacional .
Na sociedade atual, de contexto massificado, os interesses cole-
tivos ganharam grande repercussão. Em alguns momentos chegam
a ser mais importantes que os direitos individuais. Nesse cenário,
a defesa dos direitos difusos torna-se um dos grandes desafios das
instituições jurídicas do Estado moderno. Buscando proporcionar
aos profissionais, acadêmicos e aplicadores do direito uma visão
ampliada sobre os interesses difusos e suas repercussões no campo
social é que este livro se propõe a discutir as vulnerabilidades e a
proteção jurídica, compreendendo a vulnerabilidade como caracte-
rística intrínseca e ao mesmo tempo como o próprio fundamento
da formulação das leis protetivas no campo dos direitos difusos. Os
artigos aqui reunidos se propõem a discutir temas nos mais diversos
campos do Direito e diálogos com disciplinas afins e com temáticas
atualizadas nas áreas de consumidor, gênero, patrimônio cultural e
ambiental, questões étnico raciais, trabalho, inclusão dentre outras;
aspectos relevantes para o avanço na carreira acadêmica e jurídica.
Convidamos você, leitor, a passear pelas páginas e mergulhar
nas leituras que te atraem. E, assim fazendo, te convidamos a refle-
tir sobre a relevância destes debates na atual conjuntura nacional.

Boa leitura!
As organizadoras.

9
IDEOLOGIA ULTRAINDIVIDUALISTA DO JUDICIÁRIO
BRASILEIRO COMO OBSTÁCULO À APLICAÇÃO DOS
DIREITOS COLETIVOS

André Augusto Salvador Bezerra1

1 Introdução: a compreensão do problema a partir de dois


julgados

O
presente texto tem início com uma breve apresentação
de dois casos submetidos ao Poder Judiciário, aptos à
compreensão do objetivo da análise que pretendemos
realizar: relacionar a dificuldade da atividade jurisdicional brasi-
leira em aplicar direitos coletivos como um problema ideológico.
Os casos decorrem de processos originados nas demandas
de aproximadamente 5 mil indígenas, que reivindicam o cum-
primento do artigo 231 da Constituição da República para a
demarcação de área de cerca de 47 mil hectares, abarcando porções
dos Municípios baianos de Buerarema, Una e Ilhéus. Trata-se da
demanda pela Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença.
No âmbito desse conflito, foi ajuizada, por particular, ação de
reintegração de posse perante a Justiça Federal em Ilhéus, julgada
procedente, ficando, em 1ª instancia, decretada a expulsão dos
indígenas de determinada fazenda situada na área demarcável. Os
Tupinambá que se encontravam na local recusaram-se a cumprir

1 Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras


legitimidades da Universidade de São Paulo (Diversitas/USP). Membro e
ex-presidente (2014-2017) da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

11
a decisão judicial, permanecendo no pedaço de terra que conside-
ram sagrado e que, em consonância com o estudo multidisciplinar
realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), têm o direito
constitucional de ver demarcada (BRASIL, 2008).
A solução judicial encontrada para o caso merece destaque,
conforme o seguinte trecho:
Autor obteve inicialmente a tutela limi-
nar interdital, confirmada por sentença, e,
posteriormente convertida em mandado
reintegratório, tendo em vista que a comuni-
dade indígena, não só desrespeitou a ordem
de interdito proibitório, como invadiu nova-
mente a área após cumprido o mandado de
reintegração.
[...].
Sendo assim, uma vez que se tornaram inó-
cuas as multas aplicadas ao agente invasor
bem como os meios pacíficos para dirimir o
conflito, não resta alternativa senão utilizar-se
dos instrumentos processuais postos à dispo-
sição do juiz para tornar efetivo o provimento
jurisdicional.
[....].
Isso posto, DEFIRO O REQUERIMENTO
da parte autora para determinar a suspensão
do andamento do processo administrativo
[...] referente à demarcação e da delimitação
da terra indígena Tupinambá de Olivença
no Município de Ilhéus, Buerarema e Una
[...], enquanto perdurar a permanência da
Comunidade Indígena na área da Fazenda
Serra da Palmeira, localizada no Distrito de
Japu, Ilhéus/BA (BRASIL, 2010).

Verifica-se que, a fim de dar efetividade à ordem de reinte-


gração de posse, o Judiciário Federal de 1ª instância determinou a
suspensão de todo o processo de demarcação dos 47 mil hectares

12
conduzido pela Funai, envolvendo os interesses não apenas dos
aproximadamente 5 mil indígenas, mas também dos milhares de
não-índios a serem atingidos pela demarcação: incluem-se, aí,
proprietários de áreas que têm direito à justa indenização pela
eventual perda do domínio em parte do todo demarcável.
Em outras palavras: reconheceu-se judicialmente que o inte-
resse de um único suposto possuidor de terra pode sobrepor-se
aos interesses de milhares de indígenas e proprietários ou possui-
dores de imóveis da região.
Há mais um caso, decorrente da demanda pela TI Tupinambá
de Olivença, a comentar.
Trata-se de ação civil pública que o Ministério Público
Federal (MPF) ajuizou em face da União, objetivando condená
-la aos danos morais coletivos decorrentes de torturas praticadas
contra indígenas, por policiais federais, no contexto da demanda
coletiva pela demarcação de terras. As torturas foram reconhe-
cidas pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(BRASIL, 2011, p. 8).
O processo tramitou da 1ª Vara Federal de Itabuna, tendo,
ao final, sido extinto sem julgamento do mérito, em termos abaixo
citados:
Delimitada a lide, portanto, aos fundamentos
de fato e de direito expostos na inicial, que se
restringem às assertivas acerca da repercus-
são dos eventos narrados sobre “a imagem, a
auto-estima e a identidade das Comunidades
Indígenas Tupinambás”, resta concluir que,
tais alegações, aventadas na forma genérica e
superficial, sem amparo de mínima evidência
da ocorrência de supostas lesões, revelam-se
insuficientes para configurar a necessidade/
utilidade/adequação da tutela coletiva preten-
dida em prol de toda a coletividade indígena
da comunidade.
[...].

13
Na verdade, a violência policial mais traz
danos à imagem da ré do que à coletividade
[...] (BRASIL, 2014).

Ficou, assim, reconhecido que a tortura incidente contra


membros de uma coletividade no contexto de luta por um direito
dessa mesma coletividade não é apta a gerar danos morais coleti-
vos. Sob o raciocínio do julgado, tal fato, quando muito, gera danos
morais (lesões à imagem) na própria ofensora, a União Federal.

2 Uma perspectiva individualista dos direitos

Apesar de terem sido proferidas em processos distintos,


nas decisões acima exemplificadas há a adoção de uma mesma
perspectiva na aplicação dos direitos em discussão: uma visão
individualista.
Nesse aspecto, é necessário lembrar que os direitos que
conhecemos e que estão previstos no ordenamento jurídico têm
a historicidade como elemento essencial. São eminentemente
históricos, advindo, especialmente nas democracias, a partir das
demandas de determinados grupos sociais, presentes em deter-
minados períodos e que terminam reconhecidas pelo Estado na
forma de documentos normativos.
O reconhecimento da propriedade privada, enquanto
direito individual, por exemplo, tem sua História relacionada à
ocupação da burguesia à posição de classe social dominante da
Europa do século XVIII. O direito de greve, por sua vez, encon-
tra sua origem nos movimentos operários dos primeiros tempos
de consolidação do capitalismo, especialmente nas fábricas do
século XIX, perdurando no século seguinte (como no Brasil),
sempre objetivando melhores condições de trabalho. Os direitos
do consumidor, como derradeiro exemplo, decorrem de reivindi-
cações de utentes de produtos e serviços no âmbito da explosão
da sociedade de consumo do capitalismo globalizado dos séculos
XX e XXI.

14
Há, portanto, uma multiplicidade de grupos sociais que lutam
para que suas demandas sejam reconhecidas pelo aparelho esta-
tal. Tais grupos nem sempre ostentam os mesmos interesses; pelo
contrário, é comum haver demandas contraditórias umas com as
outras, mas igualmente reconhecidas pelo Estado, gerando confli-
tos para a aplicação de alguns direitos em detrimentos de outros.
É assim que entendemos a assertiva no sentido de que os
direitos configuram um campo de lutas (STRECK, 2011, p. 7).
Como ressalta Upendra Baxi (2006, p. 171), tem-se um campo
caracterizado pela coexistência de contradições sócio-ideológicas
entre presente e passado e entre grupos sociais distintos.
No plano das ideias, o processo de reconhecimento de direi-
tos levou o campo de lutas ao debate discursivo em torno de duas
bases filosóficas: o ser humano como indivíduo isolado e, por-
tanto, titular de direitos individuais, originados nas Revoluções
Burguesas do século XVIII; ou o ser humano como ente social,
ligado um ao outro por redes de relações historicamente constru-
ídas, titular prevalentemente de direitos coletivos, que encontram
sua gênese nos conflitos por condições dignas de trabalho dos pri-
meiros tempos da Revolução Industrial e ampliando-se nas lutas
pela descolonização de países e povos periféricos nos séculos XX
e XXI (SHIVJI, s.d., p. 1).
Voltando às duas decisões citadas no início deste texto, têm-
se, em ambas, a adoção judicial de uma perspectiva filosófica
individualista de sociedade, a fazer prevalecer os direitos indi-
viduais. A posse de uma pessoa prevalece sobre os interesses de
milhares de índios e não-índios na demarcação de terra; a tortura
sofrida no âmbito de uma luta coletiva não gera danos extrapatri-
moniais na mesma coletividade.
É preciso anotar que a base filosófica individualista não
consiste em peculiaridade da leitura dos direitos no âmbito de
conflitos envolvendo indígenas. Quem acompanha o cotidiano do
Poder Judiciário brasileiro percebe que considerável parcela das
respectivas decisões privilegia a mesma visão.

15
Basta lembrar a dificuldade da atividade jurisdicional reco-
nhecer institutos de índole coletiva, como a indenização por
dano social causada por práticas abusivas de grandes empresas no
âmbito da sociedade do consumo; ou ainda a forma pela qual a
Justiça do Trabalho, de modo geral, trata conflitos eminentemente
sociais na relação capital-trabalho como desavenças isoladas entre
empregados e empregadores; da mesma maneira, a expedição de
mandados possessórios contra pessoas que lutam por moradia nos
centros urbanos ou por reforma agrária no campo, como se os
respectivos conflitos consistissem em meras brigas de vizinhos
por marcos divisores de propriedades; por fim, apenas para não
se alongar em demasia na exemplificação, a lotação do sistema
penitenciário brasileiro por pessoas condenadas, ou simplesmente
acusadas, da prática de crimes contra a propriedade individual2
em contraste com a histórica omissão na exigência de controle e
transparência nos atos da Administração Pública e que poderiam
evitar a prática de delitos contra o patrimônio coletivo.

3 A ideologia das decisões: o ultraindividualismo

A abrangência e a intensidade dos casos e da natureza das


causas, acima mencionadas, permitem dizer que a filosofia indi-
vidualista primordialmente adotada no Judiciário brasileiro tem
uma peculiaridade: trata-se de verdadeiro ultraindividualismo,
uma opção ideológica adotada jurisprudencialmente e que obsta a
efetivação de direitos fundados em uma concepção solidária de
sociedade.

2 Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias relativo


a 2016, 37% dos custodiados brasileiros eram acusados ou condenados pela
prática dos crimes contra a propriedade individual furto e roubo. É uma fatia
superior aos envolvidos com tráfico de drogas (28%) e com homicídio (11%)
(VERDÉLIO, 2017, p.1).

16
Quando mencionamos opção ideológica, estamos cientes dos
múltiplos significados que a expressão tem recebido no âmbito da
Sociologia e da Política. No presente estudo, adotamos a concepção
total de ideologia, formulada por Karl Mannheim3 (1982, p.82), no
sentido de se tratar de um conjunto de “[...] opiniões, declarações,
proposições e sistemas de ideias [...]” presentes em uma época ou
em “[...] um grupo social concreto, por exemplo, a de uma classe,
ocasião em que nos preocupamos com as características e a com-
posição da estrutura total da mente desta época ou deste grupo”.
Por esse entendimento, não estamos a ignorar o significado
crítico (ou forte) da expressão ideologia, a “falsa consciência nas
relações de domínio entre as classes [...]” (STOPPINO, 2010,
p. 585). Anota o próprio Mannheim (1982, p. 91), que, quando
da superação do regime feudal, a emergência da burguesia como
classe dominante veio também acompanhada de “[...] um novo
estilo de pensamento, que finalmente deslocou os modos existen-
tes de interpretar e explicar o mundo”.
Dessa forma, a adoção da visão de mundo burguesa para
além dessa classe social, inclusive por setores de grupos oprimidos
pelo sistema, descortina o problema da falsa consciência, presente
no significado forte do termo ideologia: “[...] as ideias da classe
dominante se tornam as ideias de toda classe social, se tornam as
ideias dominantes” (CHAUÍ, 1994, p. 117).
Existe, dessa maneira, um inevitável vínculo da concepção
de ideologia com os interesses de classes ou dos grupos sociais
em conflito, cujas demandas, como mencionamos acima, podem
ser acolhidas pelo Estado na forma de direitos. Tal inevitabilidade
fica mais clara quando da adoção de visões de mundo, por grande

3 Entendemos que as ideias do húngaro Mannheim (1893-1947) ganham espe-


cial relevância em tempos atuais, e por isso as adotamos neste estudo, pela
similitude daqueles vividos pelo autor entre as duas grandes guerras mundiais
(1918-1939): o crescimento da intolerância e de ideias autoritárias, preocupa-
ção presente em sua obra.

17
parte da sociedade, daquelas que seriam dos interesses dos grupos
dominantes, tendendo “[...] a degenerar em ideologias, cuja fun-
ção consiste em ocultar o real significado da conduta ao invés de
revela-lo” (MANNHEIM, 1982, p. 121).
De todas essas observações, fica notável o caráter conser-
vador do termo ideologia. É certo que se admite que todos os
grupos ou classes sociais em conflito buscam a “[...] realidade
em seus pensamentos e em seus atos, não sendo por conseguinte
de estranhar que esta pareça ser diferente para cada um deles”
(MANNHEIM, 1982, p. 124). Todavia, quando se fala em uma
ação ideológica, considera-se – e é o que consideramos neste texto
-, que se tem uma ação baseada na visão dos grupos dominantes
objetivando a manutenção do poder4.
Voltando aos casos citados no início deste estudo, a sus-
pensão de processo demarcatório da TI Tupinambá de Olivença
termina por beneficiar os interesses econômicos do agronegó-
cio, normalmente contrários à retirada de um pedaço de terra
do comércio em favor dos indígenas. Da mesma forma, o não
reconhecimento de dano moral coletivo por tortura termina por
legitimar um aparelho estatal, como o brasileiro, que historica-
mente faz uso de práticas repressivas primitivas em detrimento
do diálogo democrático5.
Podemos ir além da questão indígena na consideração de
outras espécies de causas. Nesse sentido, o tratamento judicial das
desigualdades presentes nas relações de consumo, da criminalidade

4 E que, na esteira do pensamento de Mannheim, contrapõe-se à ação utópica,


isto é, baseada na visão de mundo das classes e grupos dominados, que querem
que suas ideias passem a ser as dominantes, objetivando o alcance do poder.
5 Estudo publicado por entidades de defesa de Direitos Humanos concluiu
que a tortura perdura como método de investigação no Brasil e que tal
delito permanece impune, mormente em razão da ausência de mecanismos
de “[...] monitoramento dos espaços onde ocorre a tortura [...]” ( JESUS;
CALDERONI, 2015, p. 61)

18
sobre o patrimônio particular, da situação dos que não tem onde
morar ou das explorações nas relações de trabalho, como meros
problemas individuais e privados, termina também por beneficiar
interesses econômicos e governamentais.
Para a melhor compreensão do problema, é importante
perpassarmos a (grave) questão indígena, inicialmente citada,
e alcançarmos, com breve e elucidativo exemplo, as relações de
consumo.
Imaginemos uma instituição financeira que não toma as
necessárias cautelas para a celebração de contratos com clientes e
permite que fraudadores obtenham crédito fazendo uso do nome
de terceiro de boa-fé. Claro que os responsáveis pela fraude não
pagarão a dívida, o que ensejará ao banco a inscrição do nome do
terceiro em órgãos de proteção ao crédito.
O resultado é bem conhecido a muitos que militam no
Sistema de Justiça. Há um dano moral causado pelo banco a uma
pessoa que sequer sabia ter havido uma abertura de crédito em
seu nome. Esta pessoa poderá ajuizar uma indenização por dano
moral individual em face da instituição financeira, que, certa-
mente, conforme maioria jurisprudencial, sairá derrotado e terá
de pagar um valor indenizatório arbitrado judicialmente.
O problema é que esse terceiro de boa-fé talvez não ingresse
com ação indenizatória. Neste caso, o banco causador do dano
não sofrerá qualquer sanção, lucrando ao continuar a não usar as
devidas cautelas na concessão de crédito.
Ora, a situação seria diferente se o caso, tão frequente no
cotidiano forense, fosse tratado coletivamente. Por exemplo, se a
mesma instituição financeira fosse condenada por dano social em
valor elevado, decorrente da negativação descuidada do nome de
cidadãos em entes de proteção ao crédito, a ser destinado, não
para o enriquecimento pessoal de um lesado, mas para instituições
beneficentes ou de defesa do consumidor.

19
Do caso acima concebido, é possível ainda perceber que o
ultraindividualismo que permeia a mentalidade da maioria dos
membros do Judiciário brasileiro prejudica esses mesmos mem-
bros. Lembramos que, somente em 2016, circularam no Brasil
cerca de 102 milhões de processos (BRASIL, 2017), sendo que,
em cerca de 90% deles, envolvendo apenas três categorias de liti-
gantes: Estado, instituições financeiras e empresas de telefonia
(BEZERRA, 2016b).
Vale dizer: temos a tramitação de milhões de processos em
que se discutem casos individuais e que, por serem idênticos a
outros, poderiam ser resolvidos por soluções coletivas.
Tal circunstância corrobora a utilização do sentido crítico do
termo ideologia: consciência falsa, isto é, equivocada, em bene-
fício de grupos que dominam os sistemas econômico e estatal.
Imperceptivelmente, juízes prejudicam a própria qualidade de seu
trabalho; afinal, não são necessárias grandes argumentações para
concluirmos que 102 milhões de processos configura uma quan-
tidade dificilmente administrável.
O que não se percebe, especialmente os próprios juízes, é
que o Judiciário é instrumentalizado para que demandas oriun-
das da sociedade civil sejam silenciadas e para que as violações
coletivas de direito sejam naturalizadas. Eis o efeito primordial
do tratamento caso a caso em processos originados em pro-
blemas sociais de um dos dez países mais desiguais do mundo
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2017).

4 Críticas à tese do ultraindividualismo

As conclusões acima colocadas podem ensejar alguns estra-


nhamentos decorrentes de crenças arraigadas no campo jurídico,
da legislação em vigor ou de fundamentos teóricos do que conhe-
cemos como Estado de Direito.
Com base nessas circunstâncias, descreveremos três possíveis
críticas à hipótese que ora defendemos, para, ao final, refutá-las.

20
4.1 Judiciário e ideologia

A primeira crítica a ser descrita é aquela que se ampara na


crença do dever de neutralidade ideológica pelos membros do
Judiciário.
A existência de juízes neutros consiste em tese originada na filo-
sofia positivista. Prevalente entre o século XIX e a primeira metade
do século XX, o positivismo enxergava o dever de imparcialidade,
imposto em qualquer julgamento, como uma simbiose entre inde-
pendência dos juízes e neutralidade política (SANTOS, 2009, p. 90).
Tal posição, porém, não se sustenta.
Nesse aspecto, para a adequada compreensão do problema,
precisamos salientar que o processo de consagração estatal de
direitos envolve dois momentos.
O primeiro momento consiste no processo de escrita dos
direitos em documentos normativos. O Código de Defesa do
Consumidor, por exemplo, configura a escrita de determinadas
demandas sociais que visam ao equilíbrio entre fornecedores e
utentes nas relações de consumo.
O segundo, por sua vez, configura o momento posterior
da leitura dos documentos escritos, advindo, assim, o trabalho
de interpretação das normas escritas para a respectiva aplicação
concreta. A interpretação do Código de Defesa do Consumidor
advém da leitura da escrita das aludidas demandas sociais que o
compõem.
Ora, nenhum texto escrito é dotado de significado claro. O
processo interpretativo de leitura de direitos passa, então, a ser
influenciado pelos mais diversos fatores, inclusive ideológicos
(BAXI, 2006, p. 168-170).
Daí Eros Grau (2014, p. 72) defender que qualquer decisão
judicial é produto de vasta gama de acontecimentos, dentre os
quais as “[...] convicções do próprio juiz, que pode estar influen-
ciado, de forma decisiva, por preceitos de ética religiosa ou social,
por esquemas doutrinais em voga ou por instâncias de ordem

21
política”. Isso porque, como complementa Rui Portanova (2003,
p. 16), “todo homem, e assim também o juiz, é levado a dar sig-
nificado e alcance universal e até transcendente àquela ordem de
valores imprimida em sua consciência individual”.
Tais observações não significam que o magistrado esteja
isento do cumprimento do dever de imparcialidade.
Deve o juiz declarar-se impedido ou suspeito quando pre-
sente alguma situação legal que faça caracterizar tais situações:
não pode um julgador apreciar processo que tem como parte seu
amigo íntimo, por exemplo. Ademais, tem o juiz o dever de seguir
os ditames do devido processo legal, ouvindo sempre todas as
partes antes de alcançar uma conclusão definitiva no processo e
manifestando, de forma clara, os motivos de fato e de direito que
o levaram a uma decisão.
A ressalva acima exposta não significa ignorar a importância
da visão de mundo do juiz na leitura pessoal - e interpretação - das
normas jurídicas no momento que irá aplicá-las ao caso concreto.
O juiz que cumpre seu dever funcional de imparcialidade será ine-
xoravelmente influenciado por suas ideias e valores.

4.2 Limites legais a soluções coletivas de conflitos.

Uma segunda crítica que pode advir contra a sustentada pre-


valência de ideologia ultraindividualista no Judiciário diz respeito
às limitações legais à solução coletiva de conflitos.
De fato, o Direito brasileiro desconhece uma ação como
a chamada class action estadunidense, na qual “[...] uma pessoa,
considerada individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas,
enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou classe de
pessoas, desde que compartilhem, entre si, um interesse comum”
(BUENO, 1996, p. 95). A ação civil pública do Brasil tem sua
legitimidade ativa a reduzidas entidades, não se olvidando ainda
dificuldades de cumprimento de julgado, que, por vezes, ensejam

22
verdadeiras novas instaurações de processos de conhecimento
individual.
Não podemos, ainda, desconsiderar que o Novo Código
de Processo Civil brasileiro manteve a tradição processual indi-
vidualista. O incentivo, presente em tal diploma, a composições
amigáveis individuais, como a audiência de conciliação e a media-
ção, configura um exemplo desse quadro. Da mesma forma, o veto
ao artigo 333, do mesmo diploma processual, que previa a possi-
bilidade de coletivização da demanda individual.
A realidade, porém, é que frequentemente se têm decisões
ainda mais individualistas do que a própria legislação em vigor.
Os dois casos citados no início deste texto são paradigmáticos.
A lei não prevê que o descumprimento de medida de rein-
tegração de posse concedida em favor de um único suposto
possuidor possa ensejar a suspensão de todo um processo demar-
catório envolvendo os interesses de milhares de indígenas e
não-índios. Além do mais, a lei não proíbe o reconhecimento de
danos morais coletivos em favor de povos que ostentam modo
de vida sócio-coletivo e que, em razão de uma luta coletiva, têm
alguns de seus membros vítimas de tortura praticadas por agentes
do Estado.
Podemos ir mais longe nos exemplos para lembrar a dificul-
dade da jurisprudência em reconhecer danos sociais contra grandes
empresas que, em razão de manobras processuais protelatórias,
não observam o imperativo de ordem pública de cooperar para
solução rápida de litígios (art. 6º, do Código de Processo Civil)
(BEZERRA, 2016a, p. 237). Podemos, por fim, ir ainda mais
adiante e ingressar na jurisdição penal, recordando que o ordena-
mento jurídico prevê penas alternativas ao abarrotado, por decisões
judiciais, sistema penitenciário brasileiro, formado, em considerável
parcela, por condenados ou acusados de crimes contra a proprie-
dade individual, na forma que mencionamos anteriormente.

23
4.3 O individualismo do Estado de Direito

Uma derradeira discordância, a ser citada e que pode ser rea-


lizada à questão ideológica que inserimos neste texto, diz respeito
ao fato de o Direito Ocidental ter uma base filosófica individua-
lista. Do ponto de vista teórico, consideramos essa a crítica mais
forte à nossa hipótese.
Realmente, o que se conhece hoje como Estado de Direito,
oriundo de eventos como a Revolução Francesa de 1789, é pro-
duto da formulação teórica do contrato social: figura de linguagem
que, baseada na obra de autores como Hobbes, Locke e Rousseau,
indica a formação da realidade estatal a partir de um ato humano,
o contrato, objetivando a segurança do próprio ser humano e a
preservação dos direitos então tidos por naturais.
Há, pois, um protagonismo do indivíduo. Daí anotar Bobbio
(2005, p. 15) que:
O contratualismo moderno representa uma
verdadeira reviravolta na história do pensa-
mento político dominado pelo organicismo
na medida em que, subvertendo as relações
entre indivíduo e sociedade, faz da sociedade
não mais um fato natural, a existir indepen-
dentemente da vontade dos indivíduos, mas
um corpo artificial, criados pelos indivíduos à
sua imagem e semelhança e para a satisfação
de seus interesses e carências e o mais amplo
exercício de seus direitos.

Sob a lógica dessa formulação teórica, portanto, não é o indi-


víduo que existe para a sociedade; é a sociedade que existe para o
indivíduo. O Direito, então, passa a objetivar o indivíduo, o que
explica serem os valores legalizados pelas revoluções burguesas,
do final do século XVIII, conhecidos como direitos individuais:
propriedade individual, liberdade de expressão, liberdade de reli-
gião, dentre tantos outros.

24
Sucede que a instituição do chamado Estado de Bem-Estar-
Social, originado no século XIX e consolidado na segunda metade
do século XX na Europa Ocidental, atenuou o individualismo de
origem burguesa. Ao legitimar uma realidade estatal interven-
cionista e dotada do dever de efetivar direitos coletivos e difusos
- como moradia, saúde, educação e ambiente – revelou possibi-
lidades de acolhimento de valores baseados em uma concepção
solidária de sociedade (SHIVJI, s.d., p. 1), ainda que no âmbito
da ideia do contrato social.
A propósito, até mesmo em sociedades cujas constituições
não adotam o Estado de Bem-Estar-Social tem sido possível uma
leitura menos individualista dos direitos. É o caso da aplicação
judicial da class action no país paradigma de defesa, em tese, de
valores individuais: os Estados Unidos da América.
No Brasil vigora uma Constituição que contém direitos
coletivos e difusos baseados no projeto de construção de uma
sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Além disso, o direito
individual por excelência, a propriedade individual (base do sis-
tema capitalista vigente), tem sua proteção constitucionalmente
condicionada a valores solidários decorrentes da observância de
sua função social (art. 5o, XXIII).
Em suma, temos no ordenamento jurídico brasileiro, em tese,
um Estado de Bem-Estar-Social. Todavia, a leitura dos direitos é
mais individualista do que em países em que não há a consagração
normativa de tal realidade estatal.

5 Pensamento e sociedade autoritária

A admissão de direitos metaindividuais em países de tra-


dição individualista, na forma acima mencionada, encontra
fundamento de natureza política: o sistema democrático exige
o reconhecimento de conflitos, interesses e direitos coletivos.
Afinal, a democracia consiste em processo histórico de reinven-
ção permanente, que possibilita à sociedade – na forma de um

25
verdadeiro poder social, conforme Claude Lefort (2011, p. 80) –
pressionar coletivamente o Estado, transformando suas demandas
em direitos, conforme mencionamos no início do presente artigo.
Acolher, portanto, uma ideologia ultraindividualista a negar
conflitos, interesses e direitos metaindividuais é acolher, ainda que
involuntariamente, uma prática contrária a valores básicos de uma
democracia. Isso, em detrimento, por exemplo, de povos indígenas
que não têm sua terra demarcada, consumidores lesados por viola-
ções sistêmicas de oligopólios empresariais, moradores de centros
urbanos privados de moradia digna ou de populações periféricas que
só são lembradas pelo Estado quando da aplicação do Direito Penal.
Sublinhamos o uso da expressão ainda que involuntariamente.
Não estamos a afirmar que o ultraindividualismo autoritário pra-
ticado jurisprudencialmente decorra de uma intenção firme, por
parte dos juízes, de abalar os pilares de uma democracia historica-
mente instável6, como a do Brasil.
Pelo contrário, é possível dizer que se trata de uma prática
pouco refletida. Daí a inserção do ultraindividualismo como um
fenômeno ideológico: a falsa consciência, legitimando os interesses
dos donos do poder, a pretexto de se preservar direitos individuais.
Alcançado o atual ponto do debate, precisamos trazer as
observações de Mannheim (1982, p. 131), no sentido de que “o
pensamento é um processo determinado por forças sociais efeti-
vas, continuamente questionando suas descobertas e corrigindo
seu procedimento”.
Cabe, então, apontar o que é aparentemente óbvio, mas nem
sempre considerado: juízes brasileiros são oriundos da sociedade
brasileira, fazendo refletir, em suas decisões, os valores dessa
mesma sociedade.

6 A ponto de, de 1926 para 2018, dos 25 presidentes do Brasil, apenas qua-
tro foram eleitos pelo voto popular e permaneceram na função até o fim do
mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique
Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva.

26
O autoritarismo é característica histórica da sociedade de
nosso país. Conforme Marilena Chauí (s.d., posições 4173-4260),
formou-se no Brasil - desde os tempos da colonização portuguesa,
passando pela independência política destituída de participação
popular, abolição formal dos escravos, proclamação da República
e processo de industrialização -, uma sociedade eminentemente
hierarquizada, que, bloqueando os debates no âmbito da esfera
pública, nega os conflitos sociais e enxerga, como perigosa, qual-
quer discordância.
É certo que não se pode resumir o problema do autoritarismo
à construção histórica da sociedade brasileira. Há ainda outros
fatores que devemos considerar, inclusive o tendente crescimento
global de práticas estatais autoritárias, que, desde os ataques do
dia 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, têm
levado à substituição da “[...] gestão negociada dos conflitos para
outro padrão de controle e repressão, em grande medida regido
por uma concepção de ordem pública cada vez mais tomada –
colonizada, dizem alguns – pela chamada ‘guerra ao terrorismo’
[...]” (TELLES, 2016, p. 4).
Tal concepção encontrou campo fértil para florescer e dis-
seminar-se no Brasil. Se, como afirma Tzvetan Todorov (2012, p.
63), a prevenção e a segurança consistem na preocupação central
do Ocidente dos tempos atuais, em uma sociedade historicamente
construída sob padrões autoritários, como a brasileira, isso tem
significado restringir, ainda mais, a autonomia da esfera pública,
tratando-se as ações de mobilização coletiva como perturbações
da ordem, a serem, assim, debeladas7.

7 “E isso envolve não apenas o aparato militarizado da chamada contenção do


conflito – tudo isso que vimos em 2013 e 2014 e agora, mais recentemente,
nas últimas manifestações do MPL (Movimento Passe Livre): o dito enve-
lopamento dos manifestantes, a tática do cerco e bloqueio de vias de acesso, o
chamado policiamento desproporcional (ao que se diz, técnicas de gestão de
multidões), tudo isso acompanhado por pesado aparato militarizado (batalhões
de choque, cães, armas ditas não letais” (TELLES, 2016, p. 5).

27
As peculiaridades históricas autoritárias do Brasil tornam,
pois, mais intensas, as atuais práticas autocráticas globais.
Daí a naturalização – e, portanto, a não reflexão – das vio-
lações sistemáticas aos direitos coletivos, ainda que estes sejam
reconhecidos normativamente pelo Estado brasileiro: indígenas
oprimidos por ações de pistoleiros e torturadores, famílias sem
moradia ou sem terra para trabalhar, consumidores submetidos
a manipulações de mercado por oligopólios empresariais, traba-
lhadores precarizados, apenas para lembrar algumas situações já
mencionadas. Quando questionadas, tais violações são tratadas
como se configurassem acidentes de índole individual, a serem
solucionados por um processo judicial falsamente baseado em
interesses individuais.
É difícil esperar de um juiz vindo de uma sociedade, como
essa, uma postura diferente.

6 Considerações finais

Costuma-se apontar prioritariamente soluções legislativas


para o enfrentamento de problemas estruturais de um país desi-
gual como Brasil. Quando se reclama da índole individualista dos
processos brasileiros, a colocar em segundo plano soluções pro-
cessuais baseadas em interesses coletivos e a abarrotar o Judiciário
de ações individuais, normalmente são apontados projetos de lei
que focam os chamados processos coletivos.
Não negamos a importância de soluções legislativas, ainda
mais porque, como analisamos neste texto, o Direito Processual
brasileiro realmente dificulta a tramitação de ações coletivas e
prioriza soluções individuais para problemas sociais.
É preciso, porém, ir além. É preciso também que nos atente-
mos para leitura do que já está reconhecido no campo legislativo.
Dessa forma, se existem interpretações excessivamente
individualistas dos direitos, por parte dos juízes, é preciso que
os fundamentos do problema sejam investigados. Por que o

28
ultraindividualismo? Como superá-lo apesar do caráter autoritá-
rio da sociedade?
A título de sugestão, podemos começar a responder tais
questionamentos a partir de reflexões acerca do processo de for-
mação dos juízes: o sistema de educação a que são submetidos
(como os magistrados são teoricamente formados? Qual a res-
ponsabilidade do ensino jurídico pelo quadro que descrevemos?);
o núcleo familiar que os cria (qual a origem dos juízes? Qual o
perfil sócio-econômico de quem ingressa na magistratura?); ou as
suas fontes diárias de informação (como os juízes se informam? O
que eles assistem ou leem?).
Em suma, é preciso que pensemos nos mais diversos media-
dores responsáveis pela perpetuação de pensamentos e práticas
autoritárias da sociedade brasileira, a inexoravelmente alcançar os
magistrados, componentes dessa mesma sociedade.

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32
INTEGRAÇÃO DE GRUPOS VULNERÁVEIS
ÉTNICO-NACIONAIS NAS CIDADES GLOBAIS
MULTICULTURAIS

Alessandra Danielle Carneiro dos Santos Hilário8

Introdução

O
processo de urbanização contemporâneo tem alcançado
patamar inédito e destacável, muito mais propulsionado
pelo contexto de globalização econômica e nos diver-
sos matizes, que foram capazes de interligar, em rede, empresas,
trabalhadores, comércio e, sobretudo, cidades, pessoas e grupos.
As cidades tornam-se cada vez mais heterogêneas, marcadas por
disparidades socioeconômicas crescentes, multiculturalismo pro-
gressivo com repercussões de alta relevância para a garantia do
desenvolvimento urbano sustentável e da própria integridade
e governança urbanas, mormente quanto aos direitos econô-
micos, socioculturais e ambientais. Esse novo perfil de cidades,
multiculturais e heterogêneas, traduz-se em desafio de gover-
nabilidade e efetividade dos direitos econômicos, socioculturais
e ambientais, cujas políticas se constituem em instrumentos

8 Professora Adjunta do Departamento de Ciências Jurídicas de Santa Rita/PB/


CCJ/UFPB, na área de Direito Constitucional e Administrativo. Doutora em
Direitos Humanos e Desenvolvimento pelo Programa de Pós- Graduação em
Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em Direito
Econômico (UFPB/CCJ/PPGCJ). Especialista em Gestão Pública (UNIPÊ/
TCE-PB). Bacharela em Direito (UNIPÊ). Email: alessandrahilario@ccj.ufpb.
br.

33
poderosos e estratégicos de integração cultural, desde que sejam
constitucionalmente adequadas. Categorias como direitos de
grupos, multiculturalidade e interculturalidade, governança glo-
bal transcooperada, cidade global, neossustentabilidade urbana
e transconstitucionalismo, tornaram-se pivôs instrumentais que
demandam reconfiguração urbana com o fito indelével de integra-
ção em patamar alargado, superior e complexo, jurídica, política e
economicamente. Grupos multiculturais de origens étnico-nacio-
nal (indígenas, quilombolas, ciganos) e religiosa (muçulmanos,
judeus, menonitas, amish e castas multiculturais presentes em
dados países, a exemplo da África), imigrantes e refugiados se
disseminam nos espaços urbanos em busca de abrigo. Em regra,
os espaços urbanos de vivência e acolhimento são contrapontos
histórico-culturais, jurídica, constitucional e politicamente em
relação aos indivíduos acolhidos com suas respectivas matrizes de
mesmos espectros, e no que concerne aos grupos multiculturais
pré-existentes de modus vivendi isolado minimamente da maio-
ria da comunidade. A conjuntura densa e paradoxal representa
a disputa do espaço urbano entre grupos multiculturais vulnerá-
veis e a “maioria” da população local. A disputa se manifesta na
busca de condições mínimas de igualdade na fruição de direi-
tos econômicos, socioculturais e ambientais no locus urbano pelos
grupos multiculturais vulneráveis em compatibilidade com suas
necessidades e modus vivendi peculiares. Impõem políticas locais
de integração, aproximação e inclusão na perspectiva de direitos
econômicos, socioculturais e ambientais que, por sua vez, desa-
fiam a governança local pelo grau de transnacionalidade jurídica,
heterogeneidade, complexidade cultural e debilidade administra-
tivo-orçamentária que envolvem a questão. O referido contexto de
disputa revela tensões sob diversas perspectivas e níveis: modelos
de gestão local e global; entre maioria e minoria, ou entre minorias
maiorizantes e maiorias minorizadas; arcabouço jurídico-cons-
titucional doméstico e legislações internacionais sobre direitos

34
humanos com respectiva exigência de readaptação/harmonização
para integração; tensão entre contexto histórico-jurídico e cul-
tural originário peculiar de dada cidade e demanda por postura
jurídica de tolerância e integralizadora. Em vista dessa conjun-
tura complexa, cultural e jurídico-constitucionalmente, a teoria
do universalismo ponderado, em contexto de transconstituciona-
lismo, afigura-se instrumento jurídico-constitucional adequado
à efetividade de direitos econômicos, socioculturais e ambientais
como mecanismo de governança e integração de grupos étnico-
nacionais vulneráveis na cidade global.

Cidades globais multiculturais

Nem toda grande cidade é considerada uma cidade global,


por mais pujante e frenética política e economicamente que seja.
E nem toda pequena cidade é, aprioristicamente, desconsiderada
como cidade global. A abordagem acerca dos parâmetros teóri-
co-ideológicos que sustentam o estudo e a própria concepção de
cidades globais/mundiais torna-se de relevância fundamental para
discernir entre os demais tipos de cidade. Constitui-se em ferra-
menta adequada para posterior enquadramento e compreensão de
determinadas cidades na perspectiva global/mundial e detecção
dos vários níveis de cidade hierarquicamente organizadas dentro
dessa conjuntura global. Para a abordagem técnica e juridicamente
rigorosa quanto à origem e significância do termo cidade global,
é mister recorrer à definição das bases metodológicas que susten-
tam o arcabouço jurídico-sociológico sobre “cidades globais” e/
ou “mundiais”, a partir das perspectivas traçadas pelas respectivas
Escolas de Pensamento ( JACOBS, 2013, p. 1; SOUSA, 2008)
sobre a questão urbana.
A primeira escola de pensamento é a Escola de Ecologia
Humana e Sociologia Urbana de Chicago, da qual as bases teó-
ricas se firmam na percepção da formação de cidades em escala

35
global, e cujos fatores determinantes (objeto de sua pesquisa)
eram especialmente as causas socioeconômicas oriundas do capi-
talismo e a tendência de produzir desenvolvimento econômico
e espacial desiguais. Seus precursores são Roderick Mackenzie,
Robert Park, Ray Pahl, David Harvey, Patrick Geddes, Manuel
Castells e Peter Hall. A segunda escola de pensamento é a Escola
de Estudos Urbanos, cujo foco de pesquisa é a globalização e
seus impactos nas regiões metropolitanas, a partir do estudo
das principais cidades do mundo, com destaque para a proposi-
ção de uma Nova Divisão Internacional do Trabalho como base
da teoria do crescimento urbano, a qual seria responsável pelo
desenvolvimento de uma hierarquia urbana (BRENNER, 2001,
p. 134; SASSEN, 2004 e 200892) liderada por algumas cidades
de comando. Seus expoentes são Michael J. Dear, Allen J. Scott,
Edward Soja, Michael Storper e Mike Davis. Essa escola é uma
espécie de sequência da anterior, cuja premissa evolui para a teoria
da cidade mundial/global, pela qual o capitalismo contemporâ-
neo é a causa da reorganização espacial e do enfraquecimento dos
atores locais/nacional. Autores principais: John, Friedman, Saskia
Sassen, Michael Timberlake e Peter Taylor.
A terceira escola de pensamento é a Escola dos Fatores
Locais/Nacionais, cujas premissas focam causas históricas locais
e/ou nacionais como determinantes para o resultado do desenvol-
vimento urbano (FRIEDMAN, 1995, p. 34). Baseia-se na teoria
da cidade-região como motor da atividade e do crescimento eco-
nômicos, cujo fundamento se centra nos próprios atores locais
como protagonistas do desenvolvimento urbano, por meio das
cidades que continham aglomerações de indústrias complemen-
tares, conglomerados de empresas inovadoras e empreendedoras

9 Sobre a hierarquia urbana, que faz surgir um reescalonamento entre as cidades


(subglobais, globais, regionais), é de se destacar os novos arranjos político-insti-
tucionais que são factíveis e que se afastam da tradicional concepção westfaliana
centrada no estado-nação.

36
de desenvolvimento local. Essas cidades foram as que se mos-
traram mais bem sucedidas. Com fulcro nos estudos das escolas,
erigiu-se uma série de teorias explicativas das causas de surgi-
mento das cidades globais ou regionais.
A. J. Jacobs (2016, p. 84) defende a ideia de que o estudo das
cidades globais e suas diferenças deve necessariamente ser proce-
dido por meio da abordagem integrada e interdisciplinar. O autor
justifica a existência de várias cidades de escala global, mas tão
diferentes entre si, em virtude de uma multiplicidade de contextos
em constantes mudanças, do político ao geoespacial, do local ao
global, todos exercendo influência direta nos resultados do desen-
volvimento. Entre as teorias que explicam a formação da cidade
global, destacamos as teorias da cidade global/mundial, cidades
do sistema mundial e rede de cidade global, cujos estudos concen-
tram-se no impacto que as forças econômicas e mercados globais
exercem nos resultados de desenvolvimento urbano e regional.
Utilizam-se da metáfora ecológica da imagem de teia de aranha
de interconexão para representar os padrões de desenvolvimento
espaciais próprios das cidades-regiões no Século XX. O cresci-
mento e progresso das cidades se dão através dos avanços nos
transportes e comunicações que, por sua vez, ensejam a dicotomia
entre administração da indústria e do comércio. Descentraliza-se
a produção (CARVALHO, 2000, p. 71) e cria-se um padrão espa-
cial axial, periférico e regido por centro de controle, com destaque,
nesse ponto, para as corporações transnacionais.
Teóricos da cidade global ( John Friedman e Saskia Sassen)
asseveram, como análise negativa deste contexto econômico-
global, que o crescimento radical da atividade financeira após os
anos 80, que deu azo a fluxos de capital e de produção transfron-
teiriços, terminou por enfraquecer vivamente a autoridade dos
Estados-Nações. Esse fato propiciou espaço livre às corporações
transnacionais para reorganização geográfica e humana na perse-
cução de seus objetivos corporativos. Desmistifica-se, portanto, a

37
ideia de cidades vinculadas a fronteiras nacionais quanto ao con-
trole e proteção de seu Governo.
Na mesma vertente, entretanto, destaca-se a contribuição
de Janet Abu-Lughod´s (2000, p. 2; 2007, p. 5), um dos expoen-
tes da teoria da cidade aninhada e cidades-regiões incorporadas,
na obra “New York, Chicago, Los Angeles: America´s Global
Cities”. A autora, por intermédio do método histórico-compa-
rativo, arguiu em sua teoria a compreensão de que as “tendências
que geralmente se supõem serem exclusivas da cidade global con-
temporânea [...] desempenharam, de fato, papéis importantes” a
partir de meados do século XIX até meados do século XX nas
cidades de Nova York, Chicago e Los Angeles, cidades objetos de
seu estudo. Mas outros fatores foram decisivos a ensejar diferentes
resultados nas cidades. A autora aglutinou em três eixos as suas
análises sobre os fatores desencadeantes de diferentes trajetórias
de desenvolvimento: eixo1 – a escala do tempo, que categoriza a
reestruturação urbana em cinco ondas de desenvolvimento eco-
nômico de acordo com as inovações tecnológicas; eixo 2 – a escala
espacial, pela qual a autora define, para além das escalas local,
regional e metropolitana, as escalas de espaço nacional e global;
eixo 3 – processos sociais substantivos. Entretanto, após a consoli-
dação das funções globais urbanas em cada cidade e em diferentes
períodos históricos, estas mesmas funções foram modificadas e
reforçadas por diversos fatores locais (tecnológicos, demográfi-
cos, negociais, decisões institucionais e políticas), que, por sua vez,
foram decisivos para a formação do papel econômico global que
as cidades desempenham e resultaram de uma “linhagem histó-
rica complexa”.
Seu objetivo foi desvincular o padrão de interpretação base-
ado na dependência irrestrita das funções urbanas globais como
fatores exclusivos à formação das cidades globais, de maneira a
atrelar esse iter interpretativo aos demais fatores socioeconômicos,
políticos e culturais locais ocorridos ao longo desse período após

38
os anos 70 (ABU-LUGHOD’S, 2000, p. 2). A. J. Jacobs (2016, p.
88) propõe nova estrutura teorética transdisciplinar para amparar
os estudos empíricos e acadêmicos de pesquisadores, fundamenta-
dos na análise de quatro fatores que têm influenciado e formatado
os resultados de desenvolvimento nas cidades-regiões do mundo
nas escalas global, nacional e local: (teoria “cidade como o modelo
de nexo”): Estado, mercado, relações sociais e geoespaço. Dentre
tais fatores, destacamos os estatais e sociais. Os primeiros são con-
cernentes aos casos de governança, às ações (UE, NAFTA, pactos
comerciais) e estruturas governamentais nacionais e subnacionais
que podem afetar, de diversas formas, os resultados do desenvol-
vimento econômico.
Já os fatores sociais que interferem no desenvolvimento
urbano das cidades referem-se a: o ambiente social e civil da
cidade (ética religiosa e cultural protestante na Europa e EUA),
inclusive os seus atributos culturais locais e nacionais; o contexto
sociohistórico peculiar, a exemplo do nível de tecnologia mundial
quando se estabeleceu inicialmente e se urbanizou (Detroit e o
Fordismo); o estágio atual de desenvolvimento econômico e social
da Nação (crescente semiperiferia das nações BRIC e emergentes
em vias de industrialização, Tigres Asiáticos); e, por fim, o con-
texto sociodemográfico nacional e local peculiar, neste inclusas
as relações intergrupais e caraterísticas socioeconômicas (ten-
dências bi-étnicas de Detroit, Nova York). Portanto, a conjuntura
abordada quanto à formação da cidade global, principalmente no
que se refere ao Estado e às relações sociais, enseja um contexto
urbano global multicultural e heterogêneo, posto que, interligada
em rede dos mais diversos matizes, traz relevantes repercussões no
perfil de sociedade, em face da multiplicidade de culturas, assim
como no Estado/governo subnacional, instado que é conduzir e
dirimir as complexidades de uma estrutura urbana de viés econô-
mico, sociocultural e ambiental.

39
A guisa dessa conjuntura, compreendemos esse contexto sob
o enfoque da teoria da adequação urbano-global (HILÁRIO,
2018, p. 65), pela qual a globalização é causa concorrente (ten-
dências/vocações universalizantes) e potencializadora (positiva
ou negativamente) paralelamente aos fatores locais peculiares
como bases que explicam as causas e processos que fomentaram
o desenvolvimento urbano diferenciado em cada localidade na
perspectiva de totalidade/individualidade defendida por Milton
Santos (2006, p. 73 e 76). Parte-se do pressuposto da realidade
e do contexto contemporâneo de globalização que demandam
das cidades e governos locais/nacionais o movimento necessário
de adequação ou reacomodação urbana (intervenções urbanas,
planejamentos estratégicos) em relação à economia/hierarquia
globais e seus inevitáveis reflexos, especialmente quando se trata
de empreender estratégias de integração de grupos étnico-nacio-
nais vulneráveis nesse contexto urbano-global quanto aos direitos
econômicos, socioculturais e ambientais que lhes permitam con-
viver nessa perspectiva urbana contemporânea.
Nesse sentido, além dos fatores analisados por A. J. Jacobs
aqui destacados (Estado e relações sociais), ressaltamos ainda
outro elemento: o contexto jurídico-constitucional, fator instru-
mental de implementação de modificações (inclusive no campo
econômico-urbano) ou de manutenção, em certa medida, das
opções político-governamentais de dada cidade/região em face de
seu arcabouço histórico, político e cultural em transversalidade
com a normativa internacional nesse contexto global. Isso sig-
nifica que, não obstante as causas concorrentes que dão forma e
rumo ao desenvolvimento urbano da cidade, as alterações (aber-
tura de mercado, alianças, planejamentos, etc.) no sentido do
desenvolvimento (inclusive de fundo ideológico) se procedem
mediante atos formais jurídicos e/ou constitucionais, os quais, por
sua vez, são (ou devem ser) guardiões da herança histórica, polí-
tica e sociocultural que orienta, direciona e condiciona as ações
estatais, especialmente em sede de desenvolvimento urbano, o que

40
envolve, simultaneamente, efetivação de direitos humanos, espe-
cificamente econômicos, socioculturais e ambientais às diferentes
matrizes culturais, por mais diversas que sejam.
Esse entendimento leva necessariamente ao movimento de
resistência ou conformação do Estado-Nação e seus entes em
relação à força generalizadora de padrões da economia global,
“globalização contra-hegemônica” (SANTOS, B., 2003, p. 496).
Tal resistência ou a conformação ficarão a cargo do contexto his-
tórico-político e sociocultural de cada nação mediante a aliança
que travou via Constituição, em termos ideais. Significa que
pode ser (e é) possível adequar-se de forma diferenciada nesse
contexto econômico-global, ocupando diferentes níveis na hie-
rarquia urbana global, e não necessariamente o nível de cidade
global padrão, incluindo-se, portanto, até mesmo pequenas cida-
des locais, que, apesar de não preencherem os critérios padrões da
teoria da cidade global, são categorizadas como cidades de pers-
pectiva global e se traduzem em ganhos e vantagens em qualidade
de vida e nação e, portanto, em direitos humanos, especialmente
na perspectiva dos grupos minoritários.
Portanto, em nosso sentir, a cidade global se constitui no
espaço urbano paradoxalmente local (na perspectiva política, geo-
gráfico-territorial, socioeconômica, cultural e ambiental) que, não
obstante não preencha todos os exatos requisitos estabelecidos
pelos teóricos para aferir a sua globalidade (corporações transna-
cionais, atividades de alta tecnologia, serviços especializados, entre
outros), ainda que inexistente um planejamento formal deliberado
nesse sentido, conduzem (ou são conduzidas) sua governança
(sentido amplo) sob o prisma da lógica econômica e constitu-
cional-jurídica global multidisciplinar e readequada. Impende-se,
portanto, de transversalidade global/local de sistemas econômicos
e ordenamentos jurídico-constitucionais que pautam as rela-
ções sociais (estado da política – corporações, Estado, cidadãos,
e, especialmente para os fins deste capítulo, grupos vulneráveis
étnico-nacionais e minorias religiosas), econômicas, culturais e

41
ambientais (essas últimas em sede de políticas públicas de inte-
gração) nessa conjuntura. É sob essa perspectiva que se tomará, a
partir de então, a concepção de cidade global multicultural.

Multiculturalismo, interculturalismo e integração

O ambiente urbano da cidade global ou mesmo de cidade


que não tenha ascendido a esse patamar, mas mantenha relações
de significativas proporções com a economia global, terminou
por se constituir em locus de heterogeneidade singular na história,
para além da heterogeneidade e multiculturalidade preexistentes
e históricas de cada País. Em parte, e decisivamente, a conjun-
tura foi proporcionada por nova divisão do trabalho, entretecida
pela migração empresarial, transnacional e nacional, que trouxe
consigo uma gama considerável, qualitativa e quantitativamente,
de profissionais de alto nível, especialmente no âmbito da ativi-
dade informacional. Em outras situações, não menos expressivas,
a migração foi potencializada pela esperança de novas oportu-
nidades promovidas pela economia transnacional global ou
conjunturas sócio-políticas externas de gravidade elevada (as guer-
ras civis) com repercussões locais (mais uma vez, a relação global/
local). Desse contexto destaca-se no panorama urbano contem-
porâneo uma realidade de potencializada heterogeneidade social
que se opõe como desafio sem precedentes quanto ao contexto
de pluralidade anterior e nata muitas vezes. A heterogeneidade,
por sua vez, engloba profissionais de alto nível de especialização e
repercute sobremaneira no sistema trabalhista e de empregos da
cidade, mas também abarca outros patamares de diversidade que
precisam ser gerenciadas: culturais, religiosas, sociais e políticas,
que se constituem nos demais espectros de vida manejados por
qualquer indivíduo no interior de uma cidade ou mesmo de uma
nação com a qual, acrescente-se, não guardava, originariamente,
relação de pertença, seja transnacional ou nacionalmente (entre
estados).

42
O ambiente heterogêneo, portanto, demanda do Ente
Público Estatal a capacidade de gerenciamento de diferenças, em
seus diversos matizes, mas, sobretudo, o planejamento de políticas
públicas eficazes na distribuição equânime – qualitativa e quanti-
tativamente –, de direitos econômicos, socioculturais e ambientais
em relação aos seus cidadãos. Tal necessidade, em contraposição
com a crise de identidade do Estado103 (amplo senso) nesse ônus,
manifesta a premência de sua reconfiguração – funcional e formal
em sede de instrumentos jurídicos – para conduzir a realidade
contemporânea urbana em contexto de economia global e socie-
dade multicultural. Por sua vez, a temática de reivindicações no
universo urbanístico contemporâneo de multiculturalidade é sin-
gularmente oportuna, tendo em vista a natureza das demandas que
se revestem de peculiaridade e ineditismo (no mínimo, na escala
internacional), em virtude da categoria de direitos pleiteados e da
condição específica de seus titulares em relação ao Estado. Nesse
tópico, a compreensão dessa premissa remete, ab initio, a relacio-
nar quais efetivamente são esses “novos” direitos reivindicados114
(dimensão objetiva da multiculturalidade) e quem os titulariza
(dimensão subjetiva da multiculturalidade).
Nesse sentido, não obstante multiculturalismo e inter-
culturalismo sejam teorias sociológicas, conceitos e ideologias
relevantes e instrumentais que orientam a análise, discussão e
solução para dada realidade social sob a ótica da diversidade cul-
tural (UNESCO, 2001), a abordagem das mesmas se baseia nas
repercussões jurídicas na relação entre Estado, cidadão e direitos

10 É assim que compreendemos a situação de fragilidade do Estado, em virtude


de um desvio de compromisso institucional e formalmente travado com os
seus nacionais em face das pressões econômico-globais, ao que Milton Santos
(2001, p. 34) chama de “fragmentação da desordem”.
11 A referência a novos direitos não induz a uma nova categorização de direi-
tos, mas a uma lista de direitos (econômicos, socioculturais e ambientais) que,
em conjunturas sociais pretéritas, não eram objeto de demandas expressivas no
âmbito internacional, especialmente como meio de autodeterminação.

43
econômicos, socioculturais e ambientais, como instrumento de
auxílio, para composição de conflitos, e subsídio à integração de
tais grupos vulneráveis. Entre as teorias sociológico-filosóficas
sobre pluralidade cultural, o multiculturalismo (KYMLICKA,
1996, p. 10) estuda a diversidade cultural no sentido de condu-
zir ao reconhecimento da identidade de grupos minoritários,
acomodando suas diferenças por meio de políticas públicas. É
considerado uma das ferramentas aos Estados-Nações para esti-
pulação e implementação de políticas públicas de integração. A
expressão multiculturalismo inclui diferentes formas de plura-
lismo cultural, oriundas de múltiplas situações: migração (por
diferentes causas) e diversidade originária125. Pretende-se a inte-
gração de grupos, chamados de “minorias nacionais” (CASALS,
2006, p. 10) à cultura originária, sem, entretanto, desconstituírem-
se como sociedades culturais distintas às quais se impõe respeito.
A proposta multiculturalista para integração de minorias nacio-
nais, em sua dimensão subjetiva, entretanto, termina tangendo
na forma de Estado Federal, pugnando por espécie de “federa-
lismo multinacional assimétrico” (MOREIRA, 2005), pelo qual
a federação seria formada por diversos grupos representativos à
semelhança da pluralidade de nações de matrizes culturais dife-
renciadas (comunidades históricas) dentro do Estado-Nação
(KYMLICKA, 1996, p. 10136).

12 Denominamos diversidade originária àquela referente e existente contempo-


raneamente ao processo histórico de formação de dado Estado-Nação e que,
portanto, guarda com este último vínculo de pertença espontâneo. Decorrência
disso é o que chamamos de crédito cultural ao qual corresponde uma dívida
cultural por parte do Estado. Will Kymlicka, por seu turno, denomina essa
diversidade de “minorias nacionais”, posto que as remete à comunidade histó-
rica de dado Estado.
13 A rigor, considerando a concepção de Estado/Federação Multinacional por
Kymlicka, sociologicamente, o autor não considera o Estado-nação como plu-
ralidade de comunidades históricas internas, e sim como Estado Multinacional,
de formação voluntária ou involuntária. Embora o autor faça essa ressalva, a

44
Não obstante a proposta de assimetria multiculturalista ser
apontada como solução constitucional para a composição de con-
flitos no âmbito da política de integração por meio da efetivação
de direitos econômicos, socioculturais e ambientais, destaca-se
que a responsabilidade e compromisso para a promoção desses
direitos decorrerá do vínculo que se travará entre Estado e sujeito
de direito, inclusive em eventual (e normalmente necessária)
relação de financiamento (direto ou indireto) de sistemas socio-
culturais coordenados pelo ente público nas áreas, por exemplo, de
seguridade social, educação e cultura. A noção e necessidade de
financiamento, ao lado de causas como exigência de vínculos de
cidadania, podem gerar obscuridades ou conduzir a perplexidades
no campo da justiça distributiva de direitos econômicos, sociocul-
turais e ambientais. Notadamente quando a reivindicação tende a
alterar o sistema padrão de prestação do direito e exige estrutura
específica paralela para determinada minoria. Por mais liberal
que o Estado-nação seja, social e economicamente, não perde por
completo a condição de ente prestador ou de bem-estar, ainda que
focado na parcela hipossuficiente dos cidadãos.
O interculturalismo, por seu turno situa-se entre a “moder-
nidade abstrata universalista e a pós-modernidade relativista e
desconstrutivista” (VALER-BELLOTA, 2006, p. 164), portanto
entre liberalismo (multiculturalismo) e comunitarismo. O intercul-
turalismo se baseia em modelo de dialética entre culturas, fundado
na inter-relação entre estas e não na separação ( JERÓNIMO,
2014, p. 3). A proposta interculturalista defende a convivência ou
coexistência cultural (integração) entre diversas matrizes e grupos
culturais a partir de plano de igualdade. Entretanto, enquanto a
ideologia multiculturalista propõe a igualdade com base em direi-
tos coletivos ou de grupos, o que, constitucionalmente pode ser
questionável, o interculturalismo mantém a premissa de direitos

designação de Estado Multinacional não muda as bases constitucionais da


forma de Estado Federal.

45
humanos individualmente titularizáveis, entretanto apoiados na
equidade do discurso nos direitos de proposição, fala, réplica e
argumentação com o fito de integração (Subcomissão da ONU
sobre Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, 2012).
Sinteticamente, são quatro os princípios do interculturalismo
(VALER-BELLOTA, 2006, p. 166): 1. Igualdade entre culturas,
pela qual não há superioridade de uma cultura em relação à outra,
propondo-se “ponto médio” equidistante para valoração das cul-
turas em oposição ao etnocentrismo; 2. Ética procedimental de
convergência, que se funda no método do discurso (ética comuni-
cativa147) e intercâmbio cultural nas relações externas das culturas
orientadas pela cooperação por meio de direitos de fala, propo-
sição e argumentos, que envolvem efetiva participação política e
discurso livre sem coações; 3. Inexistência de direitos universais
“apriorísticos” dos quais descendam valores transculturais comuns;
e 4. O universalismo só tem lugar na ideologia do intercultura-
lismo como objetivo final de acordos efetivados conjuntamente
pelas culturas envolvidas intermediados pelo discurso das razões,
circunstâncias e ideologias de cada uma delas, ensejando uma
espécie de contrato social com o Estado e culturas adjacentes.
A essência do interculturalismo (BETANCOURT, 2005)
está na universalidade comunicável, e não isolada, que protege,
mas não reduz nem exclui padrões culturais minoritários, por
entender que se trata de processo aberto e indefinido de mútuo
crescimento entre as culturas. É o que se chama de “nova uni-
versalização”, pela qual se intenta “lograr uma sociedade em que
convergem harmoniosamente os momentos de universalização
das singularidades e a singularização da universalidade”. É a
ideia de ecumenismo no sentido de se manterem as diferenças e

14 Patrícia Jerónimo relembra o diálogo intercultural como objetivo central das


políticas públicas efetivadas pela União Europeia – multilinguismo, cidadania,
imigração e relações externas.

46
promover a sua convivência. A ideia de homogeneidade é substi-
tuída pela ideia de nova universalidade.
Em face dessa abordagem, é cediço que conduzir a multicul-
turalidade não é tarefa de somenos importância ou dificuldade,
em face da escassez de recursos, sejam formais (normatividade
minimamente adequada) ou materiais (financeiros e humanos).
Por outro lado, já referimos que há cidades que, apesar de não
serem formalmente globais segundo os critérios designados pelos
teóricos da cidade global, têm perfil de magnitude nas diversas
dimensões – social, política, econômica e cultural, potencializado
pelas minorias imigrantes. Em países como África, Índia, Israel,
Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, a multiculturalidade gera
desafios homéricos de governabilidade em seus variados matizes.
A transversalidade, sobretudo, da norma jurídica nacional com
normas internacionais em contraposição com direitos sectários
de base cultural e religiosa (que abordam questões centrais da
vida civil como casamento, propriedade e trabalho) é ponto nodal
que precisa ser equacionado para se conferir governabilidade bem
sucedida do ponto de vista da efetivação de direitos econômicos,
socioculturais e ambientais.
Paradigmático é o caso de alguns vilarejos beduínos de ori-
gem árabe que foram removidos de sua área originária e não
são reconhecidos pelo Estado de Israel, não figuram em mapas
oficiais, não constam de placas de sinalização de direção, não
são servidos por sistemas de energia elétrica, água ou esgotos e
obtêm serviços escassos de educação e saúde, não obstante sejam
reconhecidos como cidadãos israelenses. Paralelamente, outros
assentamentos são largas áreas de terra ocupadas por comunida-
des judias para cumprimento de propósitos estatais de agricultura
e turismo, providas de sistemas de água, esgotos e eletricidades, e a
cujos titulares, o Estado de Israel reconhece cidadania, entretanto,
supostamente com fruição diferente de direitos econômicos,
socioculturais e ambientais.

47
Tais casos concretos, entre outros abordados por Mazen
Masri (2017, p. 1), demonstram a complexidade de efetivação
de direitos econômicos, socioculturais e ambientais, notada-
mente quando se trata de Estado Nacional constitucionalmente
estruturado pela identidade cultural nacional. Essa identidade
é positivada na Constituição Israelense (WAISBERG, 2008, p.
10715), ao preconizar que se trata de Estado Judeu e Democrático,
aliando aspectos culturais e políticos. Pressupõe a identidade
cultural como vínculo de pertença, cidadania e como requisito à
obtenção daqueles direitos pelo Estado, sob o argumento de que a
maioria judaica deve ser preservada em Israel para manter a con-
dição de Estado Judaico. Outras situações no âmbito do exercício
de direitos econômicos, socioculturais e ambientais podem causar
perplexidade e, analogamente, demandam postura estatal de equa-
lização de conflitos culturais intraexistentes por meio das Cortes
Supremas, cenário propício à aplicação do interculturalismo ou
da teoria intercultural da constituição (GALINDO, 2004, p. 133)
como instrumento de efetivação de Direitos Humanos em face
de plêiade de normas jurídicas transversais de viés cultural: nacio-
nais, internacionais e internas.
No mesmo sentido os casos de uso de véus, de fardamento
para educação física, crucifixos nas escolas públicas france-
sas (direito à educação), instalação de tendas nas varandas de
apartamentos por judeus para celebrar o “sucôt” ou a festa dos

15 O Estado de Israel não dispõe de Constituição formal e promulgada como


documento único. Sua constituição é formal e não escrita. Seu arcabouço cons-
titucional é formado a partir das Leis Básicas de Israel, que dispõem sobre a
formação e o papel das principais instituições do Estado e as relações entre
as suas autoridades, além de tratarem sobre direitos civis. Seu sistema jurí-
dico é, portanto, misto, composto tanto pelo direito romano-germânico como
pela common law, esta última em razão do Mandato Britânico que precedeu a
criação de Israel. Seu direito se move, eminentemente, por meio de casos e pre-
cedentes. Destaca-se a Lei Básica sobre “Dignidade da Pessoa Humana e sua
Liberdade” (sobre direitos humanos, embora verse apenas sobre parte destes).

48
tabernáculos (direito à habitação), pleito de pensão por morte
(direito à previdência social) de viúva cigana na Espanha, cuja tra-
dição cultural dispensa o casamento civil. Tudo isso, entre outras
situações que se caracterizam por ponto intercessório e confli-
tuoso entre direitos culturais minoritários e direitos econômicos,
socioculturais e ambientais da Nação/cidade de residência ou de
acolhimento.
Em quaisquer dos casos tomados como paradigma, as com-
plexidades sobre direitos econômicos, socioculturais e ambientais
não resolvidas no âmbito da legislação nacional (constituição e
leis infraconstitucionais), em transversalidade com o direito inter-
nacional e legislação cultural minoritária, são administradas pelas
Cortes Superiores, Cortes Supremas e Tribunais Constitucionais
Internacionais a que se vinculam cada Estado-Nação dentro da
respectiva realidade geográfica e político-constitucional. Os tri-
bunais têm-se apoiado em interpretação conforme o contexto
histórico-cultural que embasa os fundamentos constitucionais de
dado Estado-Nação. A interculturalidade (UNESCO, 2001, p. 6),
nesse contexto, instrumentaliza interpretação constitucional dia-
logada entre as culturas envolvidas no impasse relativo aos direitos
econômicos, socioculturais e ambientais, reforçada por uma teoria
constitucional adequada e compatível com a realidade posta à aná-
lise. A constitucionalização do Estado-Nação não é simplesmente
a formalização normativa de lista de direitos que internacional-
mente se reputou como inalienáveis e obrigatoriamente fruíveis
pelos indivíduos, mas, sobretudo, consigna arcabouço histórico-
cultural e político que gera créditos (aos nacionais) e débitos (ao
ente público gestor) de viés cultural em matéria de direitos eco-
nômicos, socioculturais e ambientais.
Em outras palavras, não obstante se reconheça inequi-
vocamente a natureza das multiculturalidades nacionais nos
Estados-Nações, em seu viés sociológico e antropológico, histó-
rico-culturalmente forjados, os pleitos de direitos humanos daí

49
advindos não serão adequadamente conduzidos, senão pela via
jurídico-constitucional, ainda que sociológica e antropologica-
mente fundadas. A conjuntura normativa, entrementes vigente em
sua forma constitucional, pressupõe vivamente as concepções de
soberania (ainda que relativizada), nacionalidade/residência, cida-
dania (ainda que reconfiguradas pela polietnicidade superveniente
ou não) e Estado como relevante articulador e intermediário de
direitos aos seus cidadãos (ainda que externamente compelido a
tal).

Grupos vulneráveis multiculturais étnico-nacionais no


contexto urbano: governança global transcooperada

Para tratar sobre grupos vulneráveis multiculturais, é fun-


damental a concepção de diversidade cultural, especialmente em
razão da densidade e complexidade que o termo suscita. Portanto,
diversidade cultural se refere à multiplicidade de formas pelas
quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expres-
são. Tais expressões são disseminadas entre e dentro dos grupos
e sociedades. Exterioriza-se por numerosas formas pelas quais
se expressa, enriquece-se e propaga-se o patrimônio cultural
da humanidade mediante a pluralidade de expressões culturais,
modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição de
expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias
empregadas. É fonte dos direitos humanos (VIEYTEZ, 2015, p.
3) que, historicamente, foi fortemente influenciada pela Reforma
Protestante na condição de minoria, em oposição ao poder cató-
lico, a qual conduziu a teorias baseadas na resistência e combate
à assimilação e repressão, o que deu ensejo à ideia de tolerância
religiosa, pela qual se iniciou o espectro de proteção às minorias.
Na diversidade cultural, destacam-se as minorias, grupos
minoritários ou vulneráveis. As minorias e seus direitos são objeto
de proteção jurídica e internacional por meio da Declaração

50
das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes
a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas
(ONU, 1992a), Convenção-Quadro do Conselho da Europa
para a Proteção das Minorias Nacionais e Declaração Americana
sobre os Direitos Indígenas (CONSELHO EUROPEU, 1995;
CIDH, 1997), Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
(UNESCO, 2001) e Convenção sobre a Proteção e a Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO, 2005).
Embora a definição de minoria não seja unanimidade, seus prin-
cipais caracteres são objeto de convergência. Esses caracteres
são realçados na definição apontada por Francesco Capotorti,
ex-relator especial da ONU na Subcomissão sobre Prevenção
da Discriminação e Proteção das Minorias (OHCHR, 2012a),
segundo o qual se trata de grupo quantitativamente inferior ao
remanescente da população de dado Estado, não predominante,
cujos integrantes, mesmo sendo pátrios do Estado, detêm carac-
terísticas étnicas, religiosas ou linguísticas diversas do resto da
população e manifestam, ainda que implicitamente, senso de soli-
dariedade quanto à preservação da cultura, das tradições, religião
e língua.
Jules Deschênes (OCHCR, 1985, p. 226; ONU, 1986), por
seu turno, é incisivo ao dispor que não há critérios definidos que
satisfaçam a uma definição universal do termo minoria, embora
não impeça de lhe configurar um padrão. A citada dificuldade é
oriunda da variedade de situações nas quais as minorias existem:
em áreas definidas e separadas da parte dominante da população
ou espalhadas por entre a comunidade nacional, o que termina
por tornar ambígua a ideia de isolamento em alguns casos; outros
grupos têm “forte senso de identidade coletiva e histórico-cultu-
ral” e de autodeterminação seguida de reivindicação de direitos
peculiares e conexos, que se assemelham à escusa de consciên-
cia (GONÇALVES, 2010). E em outros casos, essa noção é
fragmentada. Não obstante tal dificuldade conceitual, algumas

51
características podem ser apontadas como padrão e alcançam ine-
quivocamente a maioria dos grupos. Sendo assim, minoria pode
ser considerada um grupo “não dominante” de indivíduos que
partilham características nacionais, étnicas, religiosas ou linguís-
ticas que o distinguem da população dominante, acompanhados
do desejo coletivo de preservação de sua identidade cultural e de
aceitação perante os demais na comunidade.
Interessante destacar também que, não obstante o critério
numérico manifestado na definição de minoria, em alguns casos,
especialmente naqueles que se referem a situações crônicas de
exclusão socioeconômica vinculada, de toda forma, a critérios
étnicos ou religiosos, observa-se o inverso: maioria ao invés de
minoria (VIEYTEZ, 2015, p. 13). A tônica, portanto, fica ads-
trita a situações desvantajosas no campo de direitos econômicos,
socioculturais e ambientais, em face dos critérios étnicos, religio-
sos e linguísticos, considerados como vínculo de separação do
resto nacional, a exemplo da África do Sul.
Ratificando a oposição à ideia numérica de grupo empreen-
dida por Caportoti, apresenta-se o conceito de minoria fundado
em “maiorias minorizadas” e “minorias maiorizantes”, cuja ilus-
tração baseada no regime de Apartheid como paradigma é muito
elucidativa e tem especial relevância nesse contexto e notadamente
na realidade contemporânea. As expressões remetem, respectiva-
mente, a grupos “sub-representados” e “sobrerrepresentados”, em
relação aos quais o direito (constitucional) deve servir de ins-
trumento de resistência à dominação (de igualização) contra as
últimas e de mecanismo de integração concernente às primeiras
(WILHELMI apud BALDI, 2013a, p. 106; WILHELMI, 2013b,
p. 83, SANTOS, B., 2003; PASTOR, 2008, p. 228). Essa função
constitucional (nacional) de integração é denominada de “inclu-
sividade multicultural” por Canotilho (2002, p. 1434), baseado
nas ideias de Habermas (1999, p. 107), para quem, na perspec-
tiva transnacional, seria caso de “inclusão integrativa de minoria

52
etnonacional quanto à identidade cultural”, pela qual as minorias
mantêm seus costumes, tradições, religiões e normas sociais de
forma relativamente harmônica, ensejando uma nova concepção
de patriotismo, o “patriotismo constitucional” (HABERMAS,
2001, p. 95), de fundamento mais abstrato (“solidariedade abs-
trata”), desvanecendo a ideia de comunidade de origem.
Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56), por sua vez, des-
considerando o critério numérico, consigna minoria relacionada
ao direito das pessoas e grupos de serem iguais quando a diferença
não é causa de inferiorização e, em decorrência disto, propugna a
necessidade de estabelecimento da igualdade e da diferença como
espécie de faces de uma mesma moeda: igualdade que não des-
considere as diferenças, e diferença que não “produza, alimente
ou reproduza as desigualdades”. A política da igualdade se desen-
volve amparada na ideia de redistribuição socioeconômica como
práticas ou concretudes do princípio da igualdade, sem, contudo,
cogitar das diferenças. Por outro lado, a política da diferença não
se concretiza por meio da “simples” redistribuição, mas, sobretudo,
por intermédio do reconhecimento das diferenças culturais. Não
obstante a discussão sobre a inclusão ou não dos não nacionais
(“novas minorias”), consideramos acertada a concepção ampla de
minorias que abrange todas as categorias de grupos e pessoas que
se diferem da cultura majoritária dominante em razão de critérios
linguísticos, étnicos e religiosos em situações de desvantagem crô-
nica e histórica. Incluem-se, portanto, na concepção de minorias
os imigrantes, por trabalho ou sociais (transnacionais ou nacio-
nais, isto é, migrações entre as regiões do País), refugiados e os
apátridas, aos quais devem ser garantidos direitos socioeconô-
micos, culturais e ambientais respectivamente às peculiaridades
culturais, conforme vínculo de pertença juridicamente pautado e
em absoluta consonância com entendimento firmado pela ONU
e seus instrumentos normativos.

53
Por outro lado, o contexto urbano-global no qual tais grupos
vulneráveis estão insertos revela-se desafiador do ponto de vista
das ações de integração por meio de políticas públicas distribu-
tivas de direitos econômicos, socioculturais e ambientais. É nessa
conjuntura global de empresas transnacionais, migrações empresa-
riais e de força de trabalho, nova divisão internacional do trabalho,
multiculturalidade crescente e formação de cidades globais em
que se enquadram os novos desafios de governabilidade. Forja-se
nova concepção de governo, que, entretanto, não desconfigura a
instituição Estado, muito embora se opere, à semelhança da rela-
tivização de soberania sob a égide dos primeiros instrumentos
formais de defesa de direitos humanos, a reconfiguração das bases
de sua governabilidade. Os governos se movimentam com intuito
de criar condições, estratégias e políticas públicas que satisfaçam
as necessidades dos cidadãos (direitos econômicos, socioculturais
e ambientais) e que estabeleçam ambiente de sustentabilidade,
tido como cenário socioeconômico, político e jurídico que pro-
picie estabilidade e renovação constante de recursos necessários
à boa qualidade de vida para as gerações presente e futura. Nesse
sentido, a governança global transcooperada (HILÁRIO, 2018,
p. 217) no ambiente contemporâneo multicultural e heterogêneo
orienta-se em direção à nova concepção de sustentabilidade que
se caracteriza pela agregação de mais um aspecto à multidiscipli-
naridade que lhe é inerente: a perspectiva cultural.
A governança global transcooperada se constitui em capa-
cidade governativa conduzida por forças/atores plurais, entre
as quais entidades públicas, não governamentais e privadas, em
contexto de cidade global ou cidades globalmente orientadas.
Refere-se a governo que, ainda que local, se move em dupla dire-
ção: internamente, quanto aos seus cidadãos/administrados; e
externa e transnacionalmente (embora internamente inspirado),
referente ao contexto social, econômico, cultural e jurídico glo-
bal, com o qual estabelece relações de trocas, mediante funções

54
de moderação, regulação, intermediação e, sobretudo, integração/
agregação. Além desse aspecto, a governança global transcoope-
rada lança a sua capacidade governativa em direção à implantação
de políticas para satisfação de demandas, cujo resultado se dá pela
cooperação/interação entre titulares de direitos e outros organis-
mos e organizações nas esferas internacional e transnacional. Tal
cooperação ocorre especialmente quanto à atividade jurisdicional
- “transjudicialismo” – (SLAUGHTER, 2004) em face da omis-
são/insuficiência pública interna.
Nesse contexto de perfil de governabilidade transcooperada
subjacente à condução de multiculturalidades vulneráveis, a abor-
dagem acerca da concepção de sustentabilidade cultural invoca a
necessidade de sua contextualização em relação aos instrumentos
normativos que a vinculam à implementação de políticas públicas
econômicas, socioculturais e ambientais. Assim, no 11º objetivo,
entre outras diretivas, a Agenda 2030 recomenda o incentivo à
urbanização sustentável e inclusiva, bem como fomento à capa-
cidade de planejamento e gerenciamento participativo, integrado
e, igualmente, sustentável, de assentamentos humanos (expres-
são que remete à generalidade de origem e etnicidades). Além
disso, orienta firmemente ao fortalecimento de esforços no sen-
tido de proteger e salvaguardar o patrimônio natural e cultural do
mundo. A análise conjugada dos objetivos em epígrafe implica
em inferências relevantes e instrumentais ao reconhecimento de
nova concepção de sustentabilidade no contexto urbano multicul-
turalizado em conjuntura de globalização (neossustentabilidade
urbano-cultural). Ainda que considerada como decorrência desta
última, parte-se da análise do conceito de patrimônio cultural
como elemento que vincula os dois objetivos referidos sob os pila-
res da sociedade e meio ambiente em que se funda.
Por sua vez, as estimativas globais consubstanciam cresci-
mento da população urbana em mais da metade atualmente e,
em 2030, estima-se que 60% ou 2/3 da população mundial será

55
urbana (UNDESA, 2016). A ONU trata, especificamente, sobre
os problemas de assentamentos (moradias) humanos – como um
dos elementos para a sustentabilidade urbana – e, para tanto, toma
como base o Relatório de Atividade Global UN-HABITAT de
2015, pelo qual se reconhece que, desde o último século, o mundo
tornou-se mais rapidamente urbanizado, de maneira que, em
2008, pioneiramente, a população urbana se sobrepôs à população
rural mundial, fato este que marcou decisiva e definitivamente o
“novo milênio urbano”.
Isso significa que a governabilidade urbana na cidade global
inclina-se, a todo vigor, para governança global transcooperada,
inspirada pelo desenvolvimento sustentável multidisciplinar.
Entretanto, em contexto de multiculturalidade ascendente, esse
desenvolvimento inclina-se, cada vez mais, para neossustentabi-
lidade urbano-cultural, pautada por medidas de gerenciamento
e políticas públicas de equalização (no sentido de minimização
de distorções) da diversidade cultural no atendimento de direitos
econômicos, socioculturais e ambientais.

Proteção jurídica das vulnerabilidades no espaço urbano:


transconstitucionalismo e universalismo ponderado

A governabilidade, portanto, importa na administração de


direitos minoritários, não raro em conflito com direitos de maio-
ria, bem como se fundamenta em teoria hábil a conformar a
transversalidade de direitos insertos em instrumentos normativos,
para formatação de políticas públicas e concretização judicial de
tais direitos, quando for o caso. A proteção de direitos culturais de
reflexos socioeconômicos e ambientais em conjuntura de globali-
zação e grandes transformações sociais, por meio de arcabouço de
instrumentos normativos internacionais, e em face da presença de
multiculturalidades nos espaços urbanos, traz relevantes consequ-
ências para a governabilidade urbana e para a nova concepção de
sustentabilidade urbana em seu viés cultural.

56
A realidade fática ilustra vigorosamente essa premissa,
nomeadamente quanto aos conflitos étnicos, religiosos e políticos
em várias regiões e continentes do mundo. A crescente diversi-
dade cultural tem propiciado uma espécie de miscigenação global.
Por um lado, desvanece culturalmente as cidades – reputando-as
simplesmente multiculturais –, e por outro, produz tal hetero-
geneidade e complexidade de demandas (direitos econômicos,
socioculturais e ambientais), fundadas em normas sobrepostas
(internacionais e nacionais), que ensejam necessário reposiciona-
mento estatal quanto às suas funções. Nesse sentido, apontam-se
três impactos imediatos das reivindicações e demandas de direitos
originadas da heterogeneidade cultural urbanamente dispersa e
alvos de ações e medidas governamentais no sentido da neossus-
tentabilidade urbano-cultural:
a) Complexidade da governança local transcooperada e
multi orientada: neossustentabilidade urbano-cultural e
demandas múltiplas
b) Reconfiguração estatal: paradiplomacia e preempção
c) Transversalidade de normas: necessidade de paradigmas
jurídicos
A complexidade da governança local transcooperada e multi
orientada é consequência natural de conjunturas plurais cultural-
mente, que conduzem à necessidade de tal nível de governança
hábil a gerir a heterogeneidade de demandas oriundas das pecu-
liaridades de grupos ou comunidades sob sua gestão. Não persiste
a figura de governo central autônomo na coordenação de socie-
dade uniforme com demandas lineares, ainda que se trate de
cidades de multiculturalidade reduzida. O ativismo dos grupos
de minorias étnicas internos, ainda que mínimo, é suficiente para
exigir a versatilidade governamental, para redução de desigualda-
des e atender pleitos de integração. A governança transcooperada,
ainda que local, admite múltipla orientação. É governança que se
move para seus administrados, mas também para a perspectiva
global que com ela interage e dialoga, influenciando-a. No plano

57
interno, trata-se de governança multifocal, pelo que as demandas
internas tornam-se mais complexas em face das singularidades
da diversidade cultural. São exemplos: demandas envolvendo lín-
gua materna, liberdade religiosa (islamismo), habitação (ciganos),
educação, saúde, entre outras. O grande desafio reside em com-
patibilizar as demandas e legislações internas com os objetivos e
direitos de espectro internacional e seus respectivos instrumentos
normativos, especialmente quando divergentes entre si. Não se
trata de se haverem por, originariamente, incompatíveis. Ao con-
trário. No entanto, duas questões precisam ser discutidas a esse
respeito.
1. Não obstante inicialmente compatíveis – demandas
internas x legislações local/nacional e internacional – a
forma de efetivação das mesmas variará de acordo com
imperativos locais ou nacionais orientados por para-
digma jurídico-constitucional próprio;
2. A convergência de direitos juridicamente tutelados
(local/nacional e internacionalmente) não exclui possi-
bilidade de provocação individual e coletiva às instâncias
extragovernamentais e supranacionais. Igualmente, não
prejudica cooperação local/nacional e internacional para
propósitos de efetividade, em virtude de violação de
direitos, especialmente nos casos de omissão/ineficiência
estatal em face de seus municípios.
Nesse sentido, muito se debate sobre os limites da jurisdição
doméstica em face de instrumentos normativos internacionais
a que se reconheceu e sobre a reconfiguração estatal para ade-
quadamente se postar nessa conjuntura –, contextos em que o
paradigma jurídico-constitucional proposto é de extrema valia
e instrumentalidade. Interdependência transnacional múltipla e
domesticamente relevante é termo que designa espécie de depen-
dência recíproca além das fronteiras domésticas e com interesses
igualmente recíprocos, múltipla tanto em sua concepção subjetiva

58
– atores de vários matizes, governamentais e privados, como em
sua concepção objetiva no que concerne aos fatores nacionais
ou domésticos que a motivam – sejam políticos, econômicos,
ambientais ou culturais – considerados de tal importância que
impulsionam o ente a se postar e atuar na esfera internacional ou
transnacional em forma de cooperação.
Ao lado do protagonismo dos governos subnacionais na
esfera internacional, ressalta-se a transversalidade de normas
como último impacto imediato das reivindicações e demandas
de direitos econômicos, socioculturais e ambientais originadas da
heterogeneidade cultural no espaço urbano-global. A proteção
desses direitos, em espectro global e do ponto de vista de cada
Estado-nação, tem ensejado conjuntura de normas protetivas
transversais sobrepostas – internacionais e nacionais –, induzindo
a erigir métodos de justaposição e aplicação uníssona dos direitos
previstos, bem como um paradigma jurídico-constitucional para
efetividade desses mesmos direitos, em face da heterogeneidade
legiferante e cultural que envolvem a temática. Tal transversa-
lidade de normas se manifesta sob a coexistência de múltiplos
instrumentos normativos no âmbito internacional – com carac-
terísticas de lei maior ou geral na previsão e regulação de direitos
humanos amplamente considerados – em subjacência às consti-
tuições nacionais, que, por sua vez, orientam as políticas públicas
das unidades subnacionais.
O transconstitucionalismo se apresenta como teoria
constitucional alternativa a explicar o constitucionalismo da
contemporaneidade, que emerge da necessidade de solução de
problemas de alta complexidade em face da crescente, complexa e
heterogênea sociedade urbano-global, bem como da impotência
ou limitação do Estado quanto ao enfrentamento dos proble-
mas comuns que se lhe apresentam em contexto de integração
da sociedade mundial por outras ordens jurídicas internacionais,
igualmente envolvidas com a solução das mesmas questões. A

59
proposta transconstitucional de Marcelo Neves, ao contrário de
certo “vácuo” metodológico na teoria interconstitucional de J. J.
Gomes Canotilho, mais focada na apresentação das dificulda-
des enfrentadas pelo interconstitucionalismo, toma como base a
“razão transversal” (NEVES, 2012, p. XXIII) do filósofo alemão
Wolfgang Welsch (apud NEVES, 2012), a qual funciona como
“ponte de transição”, de comunicação entre dois sistemas (jurí-
dicos e sociais) ou entre duas ou mais ordens jurídicas, ou seja,
os casos de transconstitucionalismo pluridimensional dos direitos
humanos (NEVES, 2012, p. XXIV).
Tal razão transversal seria a faculdade de efetivar transições
ou, em outras palavras, segundo Wolfgang Welsch, seria a própria
“metanarrativa pós-moderna”, por meio da qual se orientam as
comunicações em direção a uma solução compatível e adequada.
Essa razão transversal, como método de transição para a solu-
ção dos impasses jurídicos transnacionais e outros, amparada
em uma metanarrativa pós-moderna, encontra guarida na opi-
nião de Teubner e Korth (2009) quanto à lei substantiva. Nesse
caso, entendemos que as declarações e convenções de direitos
humanos em gênero, não obstante tenham “status” de “soft law”,
especialmente quando incorporadas ao ordenamento jurídico
pela relevância de seu conteúdo, tornando-se assim equivalência
de “hard law”, constituem-se em discurso universal para ambas as
ordens, ainda que seja preexistente. Portanto, pode-se originar um
concerto (“lei híbrida”) pela adaptação e coadunação dos direi-
tos previstos na lei substantiva e efetivados ou concretizados nas
ordens respectivas conforme sua matriz histórico-cultural.
Além disso, a transversalidade como critério metodoló-
gico tem dupla significância: 1. Aspecto material ideológico, no
sentido de inspirar e orientar, por meio da razão em sentidos
plúrimos e baseada em metanarrativa universal pós-moderna, a
busca por soluções de conflitos de direitos humanos em diferentes
ordens jurídicas; 2. A transversalidade topográfica que sustenta

60
a inexistência de hierarquia formal entre as ordens jurídicas
manifesta relação de convergência ou concorrência entre essas,
inclusive no tocante a assuntos conexos do ponto de vista dos
direitos humanos, donde se originam os conflitos. Nesse contexto,
para a máxima efetivação desses direitos em consonância com as
variantes culturais que lhe são subjacentes, é imprescindível uma
correta e adequada concepção, além de enquadramento jurí-
dico-constitucional dos direitos humanos, notadamente direitos
socioeconômicos, culturais e ambientais. Tais direitos são consi-
derados como premissa básica essencial à elaboração de políticas
públicas de integração nessa área, sob pena da perpetuação de mero
nominalismo de direitos ou de políticas-padrões, divorciadas das
necessidades reais dos cidadãos, inclusive de fundo cultural, seja
por omissão/exclusão social ou por desvio de finalidade específica
equivalente ao grupo carente.
O universalismo ponderado (HILÁRIO, 2018, p. 256) é
proposta de categoria de direitos humanos alternativa às cate-
gorias de universalismo e relativismo cultural, em contexto de
transconstitucionalismo entre duas ordens jurídicas (nacional
e supranacional), e cujas bases fundamentais não se sustentam
diretamente em elementos específicos de ordem filosófico-socio-
lógica (valor intrínseco do homem, ética, moral, cultura), ainda
que se reconheça a sua procedência e vinculação ao homem, mas
vinculam-se, indissociavelmente, a uma adequada dogmática jurí-
dico-constitucional sob quatro premissas:
1. A dignidade da pessoa humana enquanto princípio jurí-
dico-constitucional de valor supremo; 2. Direitos abstratos,
genéricos e substantivos, na condição de bens jurídicos cons-
titucionalmente outorgados e suas respectivas caraterísticas
fundamentais e princípios; 3. Direitos substantivos passíveis
de adjetivação ou efetivação/concretização com base na teoria
constitucional de Robert Alexy (1993, p. 16) sobre a dicoto-
mia de normas entre regras e princípios (dualidade da eficácia

61
das normas constitucionais: direitos/efetivação de acordo com o
padrão histórico-cultural e político que forjou a ordem constitu-
cional de dada sociedade e que orientará a implementação desses
direitos como um sistema de recompensas aos déficits e lacunas
na história político-constitucional do Estado-Nação. 4. Por fim, a
ideia de equilíbrio entre fechamento e abertura (Habermas, 1999,
p. 105), como base para enfrentamento do desafio da globaliza-
ção sobre o Estado (marcado pelo pluralismo), por meio de nova
forma de autocondução democrática na constelação pós-nacio-
nal: universalismo ponderado em suas três dimensões (políticas
públicas, normativas e judiciais), o qual fundamenta a ideia de
Estado multicultural e heterogêneo (pela superação da ideia de
nação homogênea com base na solidariedade abstrata).

Considerações finais

A realidade contemporânea de crescente urbanização em


contexto de globalização em seus diversos matizes, em concorrên-
cia com fatores locais/nacionais, tem propiciado interligações em
rede, sejam de ordem econômica ou social, jurídica e até política.
É nesse contexto que emergem as cidades globais, caracterizadas,
sobretudo, por uma heterogeneidade cultural complexa, da qual se
destacam os grupos étnico-nacionais vulneráveis, conjuntura que
tem desafiado governos subnacionais e o próprio arcabouço jurí-
dico-constitucional quanto à integração de tais categorias tendo
em vista, notadamente, vasta e densa normatização internacio-
nal de direitos humanos, nomeadamente de proteção às minorias
vulneráveis.
Os grupos étnico-nacionais vulneráveis no contexto urbano-
global são responsáveis por demandas complexas que desafiam
a governabilidade subnacional, pois em regra, tais demandas se
caracterizam por intersecção importante, e nem sempre conver-
gente, entre o quadro jurídico-constitucional doméstico e a plêiade

62
normativa internacional especificamente protetiva de minorias.
Tais demandas impõem versatilidade ao governo subnacional
e invocam aparato mais robusto, administrativa e orçamenta-
riamente, a exemplo de pleitos relacionados à língua, educação,
atos civis, trabalho, entre outros. Isso porque tais demandas, em
verdade, revestem-se de instrumentalidade para aplicação de
políticas públicas de direitos culturais subjacentes aos grupos
vulneráveis étnico-nacionais, entretanto de reflexos econômicos,
sociais e ambientais, como medidas de integração ao ambiente
urbano-global por excelência.
A procedimentabilidade de tal integração só se torna
exequível por intermédio da concepção de uma categoria jurídico-
constitucional adequada que permita uma leitura intercultural dos
direitos humanos, especialmente no âmbito de minorias culturais
tão diversas em suas cosmovisões que refletem, inequivocamente,
na forma de realização desses direitos. A solução, portanto, per-
passa necessariamente pela compreensão dos direitos humanos em
sua dupla inferência: como regras e, portanto, direitos universais e
abstratos aplicáveis a qualquer categoria de pessoas culturalmente
independentes; e como princípios, pela técnica da ponderação no
caso concreto entre os demais princípios envolvidos e em busca da
maior efetivação possível do direito em questão, sob a fundamen-
tação teórica da dicotomia de normas de direitos fundamentais.

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América Latina. Aguascalientes: CENEJUS, 2013a.

68
DIREITOS CULTURAIS, PATRIMÔNIO E
DIVERSIDADE: A PROTEÇÃO DOS
CONHECIMENTOS TRADICIONAIS INDÍGENAS

Gilmara Benevides C. S. Damasceno16


Luciana de Oliveira Chianca17

1. A proteção internacional dos direitos culturais, do


patrimônio e dos bens culturais e da diversidade cultural

O
s resultados dos esforços da preocupação internacional
com a proteção do patrimônio cultuaral e de seus bens,
direitos culturais, da diversidade e da proteção dos direi-
tos culturais indígenas tiveram início a partir de meados da década
de 1960, com a elaboração do Pacto Interncional dos Direitos

16 Doutoranda em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-graduação em


Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Historiadora
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em
Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Pesquisadora do LABIRINT – Laboratório Internacional de Investigação em
Transjuridicidade. http://www.labirint.co/ Membro associado ao International
Law Association - Ramo brasileiro (ILA-BRASIL). E-mail: gilmara.benevi-
des@yahoo.com.br.
17 Doutora em Antropologia pela Université Bordeaux 2 (França), é professora
Associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da
Paraíba. Atua no programa de Mestrado em Antropologia da UFPB. Pesquisa
a cultura popular e o patrimônio cultural com ênfase nas dinâmicas urbanas
da sociedade brasileira contemporânea, buscando suas articulações com os
territórios rurais e com a cultura globalizada. E-mail: lucianachiancaufpb@
yahoo.com.br.

69
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), promulgado pelo
Brasil a partir do Decreto nº 591/7/1992:
O PIDESC estabelece a obrigação dos Estados
em reconhecer e implementar progressivamente
os direitos nele enunciados. Possui um Comitê
de Direitos Humanos próprio, e, somente
em 2008, passou a contar com um protocolo
facultativo em que conta com o mecanismo de
petições individuais. O instrumento foi criado
na expectativa de que tenha o “extraordinário
poder de impactar positivamente o grau de jus-
ticiabilidade dos direitos econômicos, sociais
e culturais nas esferas global, regional e local”
(PIOVESAN, 2011, p. 255).

No ano de 1982, ocorreu no México a Conferência


Mundial sobre Políticas Culturais (Mondiacult), até a presente
data uma referência no que diz respeito aos direitos culturais.
A cultura é vista como um conjunto de características espiritu-
ais, materiais, intelectuais e emocionais passou a ser fortemente
relacionada ao desenvolvimento a partir de uma política cultu-
ral baseada no respeito à diversidade cultural18.
A Conferência de Direitos Humanos de Viena, ocorrida em
Junho de 1993, seguiu a mesma linha universalista e veio para
reforçar a positivação dos direitos econômicos, sociais e cultu-
rais, inclusive com a proposta de criação de novas abordagens
– como um sistema de indicadores para a avaliação dos progres-
sos na realização dos direitos enunciados no PIDESC.
Na Declaração de Viena afirma-se o compromisso com a
Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) no tocante às

18 Posteriormente, a Comissão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento ela-


borou o relatório “A Nossa Diversidade Criativa” em 1995; e, em 1998, como
decorrência dessas práticas houve a Conferência Intergovernamental sobre
Políticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998).

70
ações concertadas e individuais, enfatizando-se o desenvolvimento
de uma cooperação internacional efetiva com vista à consecução
dos objetivos, incluindo o respeito e a observância universais dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos.
A Declaração de Viena incita (artigo 5º) à realização de um
esforço concentrado, que garanta o reconhecimento dos direitos
econômicos, sociais e culturais aos níveis nacional, regional e
internacional. Para tanto, ressalta (artigo 13) sobre o dever coo-
peração em busca das condições favoráreis para garantir o pleno
e efetivo gozo dos direitos do homem pela eliminação de todas
as violaçõs dos direitos do homem e suas causas, bem como os
obstáculos ao gozo desses direitos.
Artigo 5º. Todos os direitos humanos são
universais e indivisíveis, interdependentes
e inter-relacionados. A comunidade inter-
nacional deve tratar os direitos humanos
globalmente, de maneira justa e equânime,
com os mesmos parâmetros e com a mesma
ênfase. As particularidades nacionais e regio-
nais e bases históricas, culturais e religiosas
devam ser consideradas, mas é obrigação dos
Estados, independente de seu sistema político,
econômico e cultural, promover e proteger
todos os direitos humanos e fundamentais.
Artigo 13. Os Estados e as organizações inter-
nacionais, em cooperação com organizações
não governamentais, devem criar condições
favoráveis a nível nacional, regional e interna-
cional para garantir o pleno e efetivo gozo dos
direitos do homem. Os Estados deverão elimi-
nar todas as violações dos direitos do homem
e suas causas, bem como os obstáculos ao gozo
desses direitos. 

Por sua vez, a Declaração Universal sobre a Diversidade


Cultural (DUDC) foi adotada pela Conferência Geral da

71
UNESCO na sua 31.ª sessão, em 02/11/2001. A Declaração traz
a integração entre direitos humanos tradicionais e outras catego-
rias, reconhecendo que valores da diversidade cultural também
são direitos humanos. Não à toa, em seu artigo 1º intitulado
“Identidade, Diversidade e Pluralismo”, nela convenciona-se que
a diversidade cultural é patrimônio comum da humanidade, na
qual se manifesta a originalidade e pluralidade de identidades:
Artigo 1º. A cultura assume diversas formas ao
longo do tempo e do espaço. Esta diversidade
está inscrita no caráter único e na pluralidade
das identidades dos grupos e das sociedades
que formam a Humanidade. Enquanto fonte
de intercâmbios, inovação e criatividade, a
diversidade cultural é tão necessária para a
Humanidade como a biodiversidade o é para
a natureza. Neste sentido, constitui o patri-
mônio comum da Humanidade e deve ser
reconhecida e afirmada em benefício das gera-
ções presentes e futuras.

Ainda, no artigo 7º, a Declaração convenciona o patrimônio


cultural como forma de criatividade, “devendo ser preservado, valo-
rizado e transmitido às gerações futuras”. Por sua vez, em seu artigo
11, incentiva ao estabelecimento de parcerias entre o sector público,
o sector privado e a sociedade civil para garantir a preservação da
diversidade cultural como forma de desenvolvimento econômico:
Artigo 7.º A criação tem as suas raízes na tra-
dição cultural, mas floresce em contacto com
outras culturas. Por esta razão, o patrimônio,
sob todas as suas formas, deverá ser preser-
vado, valorizado e transmitido às gerações
futuras enquanto testemunho da experiência
e das aspirações humanas, de forma a fomen-
tar a criatividade em toda a sua diversidade e a
inspirar um diálogo genuíno entre as culturas.

72
Artigo 11. As forças de mercado, só por si, não
podem garantir a preservação e promoção da
diversidade cultural, que é fundamental para
um desenvolvimento humano sustentável.
Desta perspectiva, deverá ser reafirmada a pre-
ponderância das políticas públicas, em parceria
com o setor privado e a sociedade civil.

A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade


das Expressões Culturais foi assinada em Paris, em outubro de
2005. Foi ratificada pelo Brasil em 2007 e publicada pelo Decreto
nº 6177, de 1.8.2007. A Convenção visa fortalecer a cooperação
e a solidariedade internacionais, em espírito de parceria, cujo
objetivo é o aprimoramento das capacidades dos países em desen-
volvimento. A convenção traz a definição de “diversidade cultural”
em seu artigo 4º:
Artigo 4º. Para os devidos fins da presente
Convenção, fica definido que: a “diversidade
cultural” refere-se à multiplicidade de formas
pelas quais as culturas dos grupos e socieda-
des encontram sua expressão. Tais expressões
são transmitidas entre e dentro dos grupos e
sociedades. A diversidade cultural se manifesta
não apenas nas variadas formas pelas quais se
expressa, se enriquece e se transmite o patri-
mônio cultural da humanidade mediante a
variedade das expressões culturais, mas tam-
bém através dos diversos modos de criação,
produção, difusão, distribuição e fruição das
expressões culturais, quaisquer que sejam os
meios e tecnologias empregados.

A iniciativa da Convenção é de proteger e de promover a


diversidade das expressões culturais (artigo 8º), indicando que “as
partes poderão adotar quantas medidas considerarem necessárias

73
para proteger e preservar expressões culturais” e sobre a promoção
da cooperação internacional (artigos 12 e 17):
Artigo 8º. 1. Sem prejuízo em relação ao que
está disposto nos Artigos 5 e 6, uma Parte
poderá determinar as situações especiais nas
quais as expressões culturais em seu territó-
rio correm risco de extinção, ou são objeto de
uma grave ameaça ou ainda requerem medidas
urgentes de conservação. 2. As Partes poderão
adotar quantas medidas considerarem neces-
sárias para proteger e preservar as expressões
culturais nas situações as quais faz referência
o parágrafo 1, conforme as disposições da pre-
sente Convenção. 3. As Partes informarão ao
Comitê Intergovernamental todas as medidas
adotadas para o cumprimento das exigências
que a situação apresentar e o Comitê poderá
formular as recomendações que lhe forem
convenientes.
Artigo 12. As Partes procurarão fortalecer sua
cooperação bilateral, regional e internacional
para criar condições que facilitem a promoção
da diversidade das expressões culturais, levando
em consideração especialmente as situações
contempladas nos Artigos 8 e 17, particular-
mente com o objetivo de: a) facilitar o diálogo
entre as Partes sobre políticas culturais; b)
reforçar as capacidades estratégicas e de gestão
das instituições do setor público, mediante os
intercâmbios profissionais e culturais inter-
nacionais e o aproveitamento compartilhado
das melhores práticas; c) reforçar as associa-
ções com a sociedade civil, as organizações
não governamentais e o setor privado, e entre
todas estas entidades, para fomentar e promo-
ver a diversidade das expressões culturais; d)
promover o uso de novas tecnologias e estimu-
lar a colaboração para estender o intercâmbio

74
de informação e o entendimento cultural, e
fomentar a diversidade das expressões cultu-
rais; e) fomentar a assinatura de acordos de
co-produção e co-distribuição.
Artigo 17. As Partes cooperarão para mutu-
amente se prestarem assistência, conferindo
especial atenção aos países em desenvolvi-
mento, nas situações referidas no Artigo 8.

A Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade


Cultural foi o “primeiro tratado internacional a elevar a cul-
tura a um patamar jurídico” (ROIZMAN, 2014, p. 140). Esta
Convenção foi ratificada como tratado internacional pelo Brasil,
internalizado pelo sistema jurídico nacional, somando-se aos
direitos culturais já garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Já a Declaração de Friburgo sobre os Direitos Culturais, criada
em 2007, define em seu artigo 2º o termo cultura, “identidade
cultural” e “comunidade cultural”:
Artigo 2º. a) O termo “cultura” abrange os
valores, as crenças, as convicções, as línguas, os
saberes e artes, as tradições, as instituições e os
modos de vida através dos quais uma pessoa
ou grupo exprime a sua humanidade e o sig-
nificado que atribui à sua existência e ao seu
desenvolvimento; b) A expressão “identidade
cultural” é entendida como a soma de todas
as referências culturais através das quais uma
pessoa, por si só ou em conjunto com outras,
se define ou constitui a si mesma, comunica
e deseja ser reconhecida na sua dignidade; c)
“Comunidade cultural” designa um grupo de
pessoas que partilham referências constitutivas
de uma identidade cultural comum que dese-
jam preservar e desenvolver.

Segundo a Declaração de Friburgo, a proteção da identidade


cultural – de um grupo ou de uma sociedade e o gozo dos direitos,

75
liberdades e responsabilidades culturais indica “que esse processo
deve poder ser assumido livremente por todos na diversidade de
referências, e não ser imposto por alguma determinação coletiva”
(MEYER-BISCH e BIDAULT, 2014, p. 48).
No tocante ao patrimônio cultural, sua apropriação pelas
pessoas é um conjunto de recursos para ser mantido e valorizado,
permitindo uma “ponte temporal” entre as gerações passadas e
futuras. “É por isso que ele pode ser definido como “capital cultu-
ral” visto que ele significa um conjunto de saberes complementares,
recursos para o sujeito” (MEYER-BISCH e BIDAULT, 2014,
p.60).
Preâmbulo, Declaração de Friburgo sobre os
Direitos Culturais. Reafirmando que a cul-
tura deve ser considerada como o conjunto
dos aspectos distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma
sociedade ou grupo social, e que ela engloba,
além das artes e das letras, os modos de vida, as
maneiras de viver em conjunto, os sistemas de
valores, as tradições e as crenças.

Em seu artigo 3º o diploma internacional dispõe sobre iden-


tidade e patrimônio culturais como direitos culturais. A definição
de cultura utilizado na Declaração de Friburgo faz referência à
Conferência Mundial do México sobre as Políticas Culturais, a
Mondiacult, e em consonância com o que diz a DUDC.
Artigo 3º. Toda pessoa, individualmente ou
em coletividade, tem direito: a. de escolher
e ter respeitada sua identidade cultural, na
diversidade dos seus modos de expressão; este
direito exerce-se, especialmente, em conexão
com as liberdades de pensamento, consciên-
cia, religião, opinião e expressão; b. de escolher
e ter respeitada sua própria cultura, assim
como as culturas que em suas diversidades

76
constituem o patrimônio comum da huma-
nidade; isso implica particularmente o direito
ao conhecimento dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais, valores essenciais
desse patrimônio; c. de ter acesso, particular-
mente pelo exercício dos direitos à educação
e à informação, aos patrimônios culturais que
constituem expressões das diferentes culturas
bem como dos recursos para as gerações pre-
sentes e futuras.

Em 2013 foi elaborado o Relatório da ONU sobre Direitos


Culturais pela relatora especial na área dos direitos culturais,
Farida Shaheed. O documento foi realizado por solicitação do
Conselho dos Direitos Humanos e trata, principalmente, sobre
liberdade de expressão artística. O relatório mostra que os direitos
culturais referem-se a um conjunto de questões amplas, em sua
forma material ou imaterial de expressão artística.
Portanto são direitos culturais a informação e a comuni-
cação, a língua; a identidade e o pertencimento a comunidades
múltiplas, diversas e mutantes; a construção de sua própria visão
do mundo e a liberdade de adotar um modo de vida específico;
a educação e a formação; o acesso, a contribuição e a participa-
ção na vida cultural; o exercício de práticas culturais e o acesso
ao patrimônio cultural material e imaterial (RELATÓRIO DA
ONU, s/d).

2. A proteção do patrimônio natural e da diversidade biológica

A proteção do patrimônio natural é importante para a manu-


tenção da diversidade biológica19 e para a sobrevivência humana
no planeta. Todavia há uma ligação entre o patrimônio natural,

19 De acordo com a Convenção da Diversidade Brasileira (CDB), a diversidade


biológica é a variabilidade de organismos vivos de todas as origens compreen-
dendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas

77
os direitos humanos e à proteção dos bens patrimoniais naturais
e culturais. De modo que a valorização do patrimônio natural
e do cultural estão inter-relacionados com o desenvolvimento
econômico.
O desenvolvimento econômico necessita de mercados diver-
sos, como por exemplo o turismo, em que associam diferentes
aspectos relacionados ao processo de “valorização dos diversos
patrimônios culturais e naturais, assim passaram a possibilitar,
também, uma reflexão sobre como conciliar o usufruto dos patri-
mônios culturais e naturais com a sua conservação” (FRANCO,
2015, p. 155).
O desenvolvimento econômico, assim como acontece em
todo o mundo, no Brasil depende da proteção do patrimônio
natural e do patrimônio cultural. Muito embora o país sofra ao
longo de décadas com o tráfico de animais silvestres, com a explo-
ração da riqueza e da diversidade da flora e da fauna nativa, tenta
dar alguma proteção jurídica aos conhecimentos ancestrais e ao
patrimônio imaterial das comunidades tradicionais indígenas
– exploradas desde os tempos de sua colonização do território
pátrio.
A exploração e o tráfico internacional de recursos biológicos
– a biopirataria20 – é uma forma complexa de crime, pois existe
neste tipo penal a associação de diversos delitos como a apro-
priação ilegal de recursos naturais, bem como a má-utilização dos
conhecimentos e saberes tradicionais como forma de monopoli-
zação de tais conhecimentos.

aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda


a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.
20 A biopirataria é a exploração do comércio ilegal da fauna e da flora. No Brasil
esse tipo de tráfico ilícito engloba a exploração e o comércio ilegais de madeira;
o tráfico de animais e plantas silvestres; além do patrimônio genético brasileiro
e da exploração do patrimônio genético nacional e aos conhecimentos tradicio-
nais associados.

78
E, primordialmente, ao conceituar-se
Biopirataria, ponderar-se-á a necessidade de
considerá-la infração penal ou não porque a
legislação como um todo é lacunosa, inexis-
tindo tipificação do crime de Biopirataria, o
que induziria à aplicação, tão apenas de forma
subsidiária e incipiente, da Lei de Crimes
Ambientais (Lei n. 9.605/98) (PANCHERI,
2013, p. 444).

A Convenção Sobre Diversidade Biológica ou Convenção


da Biodiversidade (CDB) é um tratado internacional multilateral
elaborada no âmbito ONU em 1992, durante a Eco-92 e entrou
em vigor em 29 de dezembro de 1993. Até o ano de 2015, o
número substancial de 175 países a ratificaram, inclusive o Brasil
pelo Decreto nº 2.519 de 16 de março de 1998.
A biopirataria não está tipificada no Código Penal (CP),
instaurado pelo Decreto-lei 2.848/1940 ou sequer na Lei de
Crimes Ambientais de nº 9.605/1998, mas foi trazida pela pri-
meira vez durante a Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
que aconteceu no Rio de Janeiro entre os dias 5 a 14 de Junho
de 1992 e que por isso ficou conhecida também como Rio92 ou
Eco92. A CDB trata sobre a conservação do ecossistema, as espé-
cies e recursos genéticos, o uso sustentável dos recursos biológicos
e naturais e consequentemente a repartição justa e igualitária dos
benefícios criados pela sua utilização.
Além do conceito de biopirataria serão tomados como refe-
rência pela CDB pelo Decreto Legislativo nº 2/1994, os conceitos
de diversidade biológica e de biotecnologia21 como parte de uma
política de conscientização internacional do “valor intrínseco da
diversidade biológica e dos valores ecológico, genético, social, eco-

21 De acordo com o artigo 2º da CDB: Biotecnologia significa qualquer aplicação


tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus deriva-
dos, para fabricar ou modificar produtos ou processas para utilização específica.

79
nômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da
diversidade biológica e de seus componentes” segundo consta na
Convenção.
Dentre os objetivos da CDB estão a conservação da diversi-
dade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a
repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização
dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos
recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias per-
tinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e
tecnologias, e mediante financiamento adequado.
Além da CDB, neste artigo analisaremos também o que
diz a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) sobre as comunidades tradicionais e a CDB como instru-
mentos jurídicos de proteção dos bens ambientais e de inclusão
social no âmbito internacional. Em relação ao Brasil, estudaremos
como a Constituição Federal de 1988 como instrumento de pro-
teção ao patrimônio natural e do patrimônio cultural.
O conceito de sociobiodiversidade está inserido na CDB, ele
também está ligado ao desenvolvimento econômico e portento
pode ser compreendido como sendo a relação entre bens e ser-
viços gerados a partir de recursos naturais e dos conhecimentos
tradicionais, cuja finalidade é formar cadeias produtivas de inte-
resse desses povos e tribos, inclusive pequenos agricultores e da
agricultura familiar:
O primeiro parágrafo do preâmbulo da
Convenção sobre a Diversidade Biológica
reconhece o valor intrínseco da diversidade
biológica, também em suas dimensões social
e cultural22. O termo “sociobiodiversidade”
fortalece essa ideia, embora seja ossível pres-

22 Preâmbulo – Conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica e dos


valores ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural,
recreativo e estético da diversidade biológica e de seus componentes.

80
cindir disso, uma vez que são intrínsecas as
dimensões social e cultural no conceito de
diversidade biológica (KISHI, 2015, p. 210).

A fim de demonstrar como o conceito de sociobiodi-


versidade está devidamente inserido na realidade brasileira,
exemplificaremos sua utilização a partir do processo judicial
movido pelas erveiras do mercado Ver-o-Peso contra a empresa
Natura Cosméticos S. A., amplamente divulgado através da MP
nº 2.186-16/2001 (MOREIRA, 2015, p. 185-208):
Revogada pela Lei nº 13.123/2015, que regula-
menta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da
Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do
Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15
e os §§ 3o  e 4o  do Artigo 16 da Convenção
sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo
Decreto no  2.519, de 16 de março de 1998;
dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético,
sobre a proteção e o acesso ao conhecimento
tradicional associado e sobre a repartição de
benefícios para conservação e uso sustentável
da biodiversidade; revoga a Medida Provisória
no  2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá
outras providências.

2.1 A exploração da diversidade brasileira

Ao longo da história ocidental, a busca pelas substâncias – do


latim specia – decorreu de comércio, de troca ou de tráfico ilícito.
A literatura histórica remonta às primeiras navegações do período
quinhentista, origem de sua circulação entre os continentes. Para
se ter uma ideia, entre os séculos XVI e XVII uma viagem de
caravela partia da cidade de Salvador, no Brasil e demorava apro-
ximadamente quarenta dias até chegar no ponto mais próximo na
África, a cidade de Luanda.

81
O objetivo de tais viagens era o comércio das especiarias
em que as mais buscadas eram aquelas mais ativas, usadas para
condimento, remédio e perfumaria. As especiarias eram muito
procuradas, mas devido à dificuldade de encontrá-las era um
produto raro e vendidas a um alto preço, usadas em pequenas
quantidades:
Houve produtos, como o açúcar, que foram
especiarias mas, com a introdução de seu
consumo em massa, deixaram de ser. São
condimentos, entre outros, a noz-moscada, o
gengibre, a canela, o cravo e, naqueles tem-
pos, sobretudo a pimenta, a ponto de se usar
a expressão “caro como pimenta” (FAUSTO,
1995, p. 26).

Assim como o açúcar hoje conhecemos outras especiarias


largamente difundidas pelo mundo inteiro. O café, o alho e a
cebola eram mais utilizadas pelas camadas populares, ao passo que
nas classes abastadas eram preferidos os “os condimentos mais
finos como os odores aromáticos, suaves, lembrando o perfume
das flores” (FAUSTO, 1995, p. 29).
A forte exploração da diversidade brasileira teve um início a
partir da riqueza do encontrada in loco pelo colonizador desde o
tráfico da árvore de pau-brasil. No ano de 1503 se registra o do
nome “Brasil” como sendo: “seu cerne, muito vermelho, era usado
como corante, e a madeira, de grande resistência, era utilizada na
construção de móveis e de navios” (FAUSTO, 1995, p. 42).
É sabido que a troca entre europeus e nativos indígenas foi
a primeira forma de exportação do pau-brasil, custando a devas-
tação de algumas áreas ao longo do litoral. Por isso os europeus
foram adentrando o território com o uso dos conhecimentos e da
força indígena – que recebiam dos portugueses objetos fabricados
como tecidos e facas. Como os franceses não reconheciam a posse

82
portuguesa das terras locais praticaram a exploração do pau-brasil
ao longo da costa brasileira como pirataria – atualmente associado
a biopirataria:
De acordo com Fiorillo e Diaféria, “a biopi-
rataria consiste na coleta de materiais para a
fabricação de medicamentos no exterior sem
o pagamento de royalties23 ao Brasil, materiais
esses oriundos principalmente da região da
Amazônia, onde a diversidade dos recursos
genéticos é imensa” [...] Também corrobora
para a definição de biopirataria, Nohara, que
a conceitua como: […] o envio não autori-
zado de recursos genéticos de origem vegetal
ou animal para fora do país. Compreende a
atuação de estrangeiros envolvidos com mul-
tinacionais ou instituições cientificas que
extraem os conhecimentos das comunidades
locais acerca da utilização da biodiversidade,
coletam o material, patenteiam-no, sem con-
ceder qualquer participação nos lucros para
aqueles que fornecem tanto a matéria-prima
como os conhecimentos acumulados por anos,
e pior, é possível, ainda, que as comunidades
sofram represálias jurídicas na utilização dos
mesmos recursos por quebra de patente ou não
pagamento de royalties (GOMES, 2009).

Desde o período colonial a região Norte do Brasil é o cená-


rio da extração das substâncias ativas até então desconhecidas
pelos europeus e objeto do intenso contrabando por parte de
ingleses, franceses, holandeses, irlandeses... As substâncias eram

23 Royalty é um termo hoje amplamente difundido cuja origem é a língua inglesa


tem como radical a palavra royal compreendido como pertencente à realeza.
Assim nos dias atuais os royalties passaram a ser vistos como tudo aquilo que
pertence ao rei, ao monarca, ao inventor ou a guarda do Estado e de uma nação.
É um tipo de regalia e de proteção de direitos.

83
provenientes de plantas cultivadas pelos nativos e extraídas para
serem utilizadas com finalidades medicinais, amplamente conhe-
cidas como as “drogas do sertão” cultivadas pelos indígenas.
De modo que, além de seu valor intrínseco para os grupos
nativos, tais substâncias também passaram a ter um valor econô-
mico para aqueles que as comercializavam. Os jesuítas atuaram
na exportação de tais substâncias utilizando para isso a força e os
conhecimentos tradicionais indígenas, o que posteriormente foi
usado como um dos motivos de sua expulsão do território brasileiro.
A partir de então teve início o conflito entre indígenas
e colonos pela coleta e utilização dessa riqueza proveniente da
extração das substâncias, antes era feita pelos religiosos. De modo
que houve uma tentativa do Estado de se contrapor e de limitar o
contrabando das especiarias coletadas, extraídas e levadas para o
exterior pelos colonos. Como sabemos, o Brasil é um país muito
rico em sua diversidade natural, cuja variabilidade de organis-
mos vivos abrange não apenas ecossistemas terrestres marinhos e
aquáticos, mas outros complexos ecológicos “de que fazem parte,
compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre
espécies e de ecossistemas”, de acordo com a Lei nº 9.985/2000
que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza (SNUC).
A diversidade da região Norte do Brasil, devido a sua riqueza
de plantas silvestres, de fungos e bactérias, além de inúmeras
formas de vida animal que ainda sequer foram pesquisadas, são
extremamente procuradas pela indústria de cosméticos e pela
indústria farmacêutica a fim de criar produtos que demonstrem
seguir a ideologia da sustentabilidade num contexto ambientalista.
Portanto, não apenas o patrimônio genético da região mas
as formas de exploração pelas comunidades locais tradicionais
tornaram-se parte deste mercado, do qual participam grandes
empresas internacionais e nacionais. No presente contexto, em se
tratando da biopirataria, de acordo com a Comissão Parlamentar
da Biopirataria, criada em 2003:

84
[...] o Brasil perde por ano mais de U$S 5,2
bilhões com o tráfico ilegal de animais e de
conhecimentos tradicionais e remédios de sua
flora. Sendo que o mercado Mundial de medi-
camentos feitos de plantas chega a U$S 400
bilhões por ano. E cerca de 20 mil extratos de
plantas nativas saem ilegalmente do Brasil por
ano. Já o mercado de tráfico de animais movi-
menta em torno de U$20 bilhões anualmente,
visto que dos animais silvestres comercializa-
dos no Brasil cerca de 30% sejam exportados
(GOMES, 2009).

Quando se trata dos royalties devidos ao país e que deixam


de ser pagos devido a biopirataria, é importante perceber que a
cadeia de apropriação de tais riquezas tem de um lado cientis-
tas, turistas e pesquisadores de grandes empresas e de outro a
população nativa guardiã dos conhecimentos de como se extrair
tais substâncias, mas que são excluídas da participação dos lucros
gerados pela matéria-prima, burlando-se ainda os seus direitos de
propriedade intelectual.

2.2 O caso das erveiras do Mercado Ver-o-Peso x a Natura


Cosméticos S/A.

Na cidade de Belém do Pará, onde hoje funciona o mercado


Vero-o-Peso24, no século XVII funcionou um posto de pesagem
de mercadorias comercializadas e de fiscalização de tributos, atu-
almente um ponto turístico e ponto comercial histórico e cultural

24 O mercado Ver-o-Peso é muito mais que um lugar de comércio, é um terri-


tório onde se estabelecem relações sociais e culturais intensas. Por essa razão,
é um cadinho de saberes, fazeres e modos de viver no qual ganham relevância
os conhecimentos tradicionais, daí ser considerado “mercado cultural” [...] Os
conhecimentos tradicionais no mercado são repassados de geração em geração,
frequentemente recriados e reinventados dentro de relações sociais, políticas e
culturais específicas [...] (MOREIRA, 2015, p. 190-191).

85
da cidade. Aquela cidade possui uma forte tradição de cultivo de
plantas e sementes, bem como da extração de substâncias para o
comércio de ervas em que se utiliza os conhecimentos tradicionais
das comunidades indígenas, atividade cuja pessoa que a realiza
passa a ser conhecida como erveiro ou erveira.
As ações jurídicas de proteção da biodiversidade brasileira
contra os atos de apropriação de grandes empresas de cosméticos,
de medicamentos e até mesmo por parte de cientistas estrangeiros
são recentes no Brasil. Como exemplo disso, de forma resumida
será apresentada aqui a ação judicial promovidos contra a Natura
Cosméticos S.A. pelas erveiras do mercado Ver-o-Peso.
Uma pesquisadora da empresa esteve em Belém no ano
de 2001 para realizar o levantamento de princípios ativos para
a criação de novos produtos “com base na biodiversidade e
nos conhecimentos tradicionais ali existentes” (MOREIRA,
2015, p. 191). Somente dois anos depois a empresa lançou uma
linha de perfumaria chamada Ekos, totalmente produzida sob
o conceito do respeito à biodiversidade e do desenvolvimento
sustentável.
Nos vídeos produzidos pela empresa as mulheres nativas que
cultivam e comercializam ervas – conhecidas como as erveiras –
no mercado Ver-o-Peso descrevem os usos de essências e suas
finalidades espirituais e ritualísticas.
Posteriormente, um grupo de erveiras do mercado foi até
à Comissão de Biodireito e Bioética da OAB/PA em abril de
2005 informando terem recebido o valor de quinhentos reais pela
utilização do vídeo e que não havia contrato que tratasse sobre o
uso dos conhecimentos tradicionais (MOREIRA, 2015, p. 193),
de modo que não teria havido uma repartição de benefícios. A
comercialização ilegal afeta as comunidades nativas, que mui-
tas vezes são ludibriadas devido à ingenuidade e a necessidade
financeira.

86
A ação transcorreu sob medida provisória, a MP nº 2.186-
16/200125 na qual se regulamentava e dispunha sobre o acesso ao
patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradi-
cional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia
e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização,
e dá outras providências como fundamentado na Constituição
Federal e na CDB.
Antes de ser revogada pela Lei 13.123/2015, a citada MP
2.186-16/2001 tratava insatisfatoriamente do acesso ao patri-
mônio genético para fins de pesquisa científica, prospecção ou
desenvolvimento tecnológico passa a depender de autoriza-
ção prévia, concedida pelo Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético (CGEN), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente
(MMA).
Por sua vez, a CDB tem como propósito a repartição justa
e equitativa dos benefícios advindos da utilização dos recursos
genéticos, os royalties. O diploma jurídico analisado traça uma
distinção entre os países de origem dos recursos genéticos – que
possuem esses recursos genéticos em condições in situ; e aqueles
países provedores de recursos genéticos – que detém os recur-
sos genéticos coletados de fontes in situ, incluindo populações de
espécies domesticadas e silvestres, ou obtidas de fontes ex situ, que
possam ou não ter sido originados nesse país.
A princípio, numa análise literal a CDB não tratou os
recursos genéticos e biológicos como patrimônio comum da
humanidade, mas pertencente ao país detentor do poder sobe-
rano sobre estes recursos – de modo que a esta cabe o dever de

25 Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição, os arts. 1o,


8o, alínea “j”, 10, alínea “c”, 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade
Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso
ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à
tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá
outras providências.

87
preservar, de conservar e de promover o uso de forma sustentável
dos seus bens naturais:
Além disso, a apropriação de recursos gené-
ticos e biológicos deverá ser realizada
apenas com a autorização do país de origem
e, das populações tradicionais possuidoras dos
conhecimentos tradicionais integrados à bio-
diversidade. Este fato está intrinsecamente
ligado ás patentes (Lei n.9.279/96 art.18) e à
propriedade intelectual, disciplinada pela Lei
n.9.610/98 (GOMES, 2009).

No exemplo sobre as erveiras do mercado Ver-o-Peso, de iní-


cio a Comissão de Biodireito desvinculou a imagem das pessoas
utilizadas num vídeo institucional da empresa Natura Cosméticos
S.A. e também o uso dos conhecimentos tradicionais. A OAB/
PA questionou então ao MMA se existia alguma autorização do
CGEN “para acesso e uso dos referidos conhecimentos tradi-
cionais, bem como para o desenvolvimento dos perfumes Breu
Branco e Priprioca, da linha Ekos” (MOREIRA, 2015, p. 194).
Somente no ano de 2005, após uma batalha que denunciou
a exploração de um vazio legislativo nacional sobre a apropriação
indevida de conhecimentos tradicionais das comunidades tradi-
cionais, a OAB/PA em conjunto com o MPE/PA passaram a atuar
sobre as alegações da empresa privada, que apesar de reconhecer
o uso dos conhecimentos tradicionais, apenas o identificava como
conhecimento difuso na região e que a CGEN não possuía “regu-
lamentação para a repartição de benefícios nesses casos”:
Em 13 de abril de 2006, em resposta a CGEN,
a empresa, valendo-se de ampla argumentação,
sustentou que as erveiras do Ver-o-Peso não
poderiam ser consideradas comunidade local ou
indígena, e reiterou seu entendimento de que o
acesso teria recaído sobre “conhecimento ampla-
mente difundido” (MOREIRA, 2015, p. 197).

88
Ao longo do ano de 2006 a empresa continuou alegando em
sua defesa a falta de regulamentação protetiva às comunidades
tradicionais, o que posteriormente levaria o MPF e o MPE/PA
a instaurarem uma investigação. Consequentemente em outubro
do mesmo ano foram assinados o termo de Anuência Prévia, o
Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e a Repartição de
Benefícios por Acesso ao Conhecimento Tradicional Associado –
todos contendo cláusula de confidencialidade de acesso ao seu
conteúdo e aos seus termos.

3. A proteção da sociobiodiversidade no Brasil

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma


organização internacional que no ano de 1989 aprovou a
Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, lançadas pos-
teriormente às normas internacionais anunciadas na Convenção
107 sobre as Populações Indígenas e Tribais, de 1957. Nos dias
atuais, a Convenção 169 da OIT é tratada desde então como o
instrumento jurídico internacional que favorece a inclusão social
dos povos indígenas, no Brasil ela foi promulgada via Decreto nº
5.051/2004:
A Convenção 169, adotada em 1989 e que no
Brasil é norma cogente, dissocia-se totalmente
da anterior Convenção 107 da OIT, já que
estabelece padrões internacionais de proteção
do desenvolvimento dos direitos das popula-
ções indígenas, com destaque à tutela de sua
cultura. Reconhece que os Estados devem res-
peitar o especial significado da relação desses
povos tradicionais com suas terras e particular-
mente seus valores culturais e espirituais. Prevê
a necessidade de consulta prévia desses povos
e da participação de seus representantes em
qualquer projeto de desenvolvimento regional
ou local (KISHI, 2015, p. 215).

89
As diferentes concepções de cultura preveem atividades, ins-
tituições, padrões culturais de criação e difusão, além do processo
ou estado de desenvolvimento social de um grupo, um povo, de
uma nação e o aprimoramento de seus valores (MACHADO,
2013, p. 164).
Deve-se lembrar que a proteção ao meio ambiente abrange
além do meio ambiente natural como o solo, a atmosfera, a água,
etc., o meio ambiente artificial, que é o espaço urbano construído;
e o meio ambiente cultural (MAZZILLI, 2015, p. 182):
A expressão patrimônio cultural tem sido uti-
lizada em doutrina para referir-se ao conjunto
dos bens e interesses que exprimem a integra-
ção do homem com o meio ambiente (tanto
o natural como o artificial), como aqueles de
valor artístico, estético, histórico, turístico, pai-
sagístico ou arqueológico, nesse rol incluídos
os valores até mesmo imateriais referentes à
identidade, à ação e à memória dos diferen-
tes grupos formadores da sociedade brasileira
(MAZZILI, 2015, p. 213).

Há ainda o conceito de patrimônio social, que é aquele ligado


ao interesse social de grupos, de classes, de categorias de pessoas
que vivenciam algum tipo de hipossuficiência como a pobreza ou
o desemprego; assim como o mesmo conceito pode existir para
defender a sociedade como um todo pela proteção de valores
materiais ou imateriais como o patrimônio cultural (MAZZILLI,
2015, p. 213).
Fazendo uma relação entre o desenvolvimento e a proteção
do patrimônio natural e do patrimônio cultural, o conceito de
sociobiodiversidade é compreendido como a relação entre bens
e serviços gerados a partir de recursos naturais, a fim de formar
cadeias produtivas que promovam a inclusão social dos povos e
comunidades tradicionais, familiares e de pequenos agricultores

90
desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Econômico
(MDA).
O conceito de sociobiodiversidade está completamente em
sintonia com a necessidade de proteção dos direitos econômicos,
sociais e culturais, sobretudo quando empregados a fim de favore-
cer as nossas comunidades tradicionais e indígenas:
O Brasil – como todo o mundo – vive uma
época em que é preciso buscar elementos para
proteger todos os direitos humanos, em par-
ticular os econômicos, sociais e culturais, pela
força com que se apresentam na Constituição
atual, e, mais do que tudo, pela emergência que
o problema “social” se coloca [...] Incorporar e
proteger os direitos humanos é essencial para
um país como o Brasil, que busca crescer e se
desenvolver (inclusive economicamente), ultra-
passando as marcas do passado e do presente,
relacionadas a uma colonização fragmentada e
autoritária (LIMA JUNIOR, 2001, p. 11).

Um outro diploma internacional que favorece a sociobio-


diversidade é a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito
dos Povos Indígenas, aprovada na 107ª Sessão Plenária de 13 de
setembro de 2007 e assinada no Rio de Janeiro em 2008, no qual
as partes se manifestam sobre a autonomia dos povos indígenas:
[...] estabelece que os povos indígenas têm
o direito de manter, controlar, proteger e
desenvolver o seu patrimônio cultural, seus
conhecimentos tradicionais, suas expressões
culturais tradicionais e as manifestações de
suas ciências e tecnologias, compreendidos os
recursos humanos e genéticos, as sementes, os
medicamentos, o conhecimento das proprie-
dades e da fauna e da flora, as tradições orais
e literaturas, os desenhos os esportes e jogos

91
tradicionais e as artes visuais e interpretativas.
Também têm o direito de manter, contro-
lar e proteger e desenvolver sua propriedade
intelectual sobre o mencionado patrimônio
cultural, seus conhecimentos tradicionais e
suas expressões culturais tradicionais. Também
dispõe expressamente a Declaração que, em
conjunto com os povos indígenas, os Estados
adotarão medidas eficazes para reconhecer e
proteger o exercício desses direitos (KISHI,
2015. p. 216).

O conceito de sociobiodiversidade comunica-se dessa


maneira com a autonomia dos povos indígenas e com a ideia de
biodiversidade como fonte de subsistência da vida humana e da
natureza. A sociobiodiversidade “reclama um novo olhar sobre a
diversidade biológica, um olhar integrado e compromissado com
a sustentabilidade das presentes e futura gerações humanas e não
humanas” (KISHI, 2015, p. 210).
Ao mesmo tempo, o conceito nos apresenta o perigo da
convivência com a industrialização por parte das comunidades
tradicionais, o que é um ponto a ser observado na promoção da
sociobiodiversidade: “os modos de criar, de fazer e de viver cons-
tituem também formas culturais de elevado sentido popular que
vão se perdendo nas formas de industrialização substitutiva”
(SILVA, 2001, p. 113).
É importante lembrar que o artigo 216, §1º26 da CF prevê
a valorização e a proteção dos modos de vida social e cultural das
comunidades e suas formas de conhecimento, inclusive a valoriza-
ção das comunidades tradicionais, tratando-se da proteção desses
bens como patrimônio cultural imaterial:

26 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e ima-


terial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão [...]

92
A importância do elemento cultural na forma-
ção das experiências, valores e identidades dos
indivíduos é patente. Constituída e vivenciada
a partir das relações sociais dos indivíduos, o
aparato simbólico em que se constitui a cul-
tura é fator essencial à formação das visões
de mundo de pessoas e grupos. São vários os
comportamentos, ideias e artefatos que con-
vêm significados, permitem a atribuição de
sentido e formam o contexto onde se desen-
volvem as pessoas (SOUZA, 2012, p. 24).

A proteção à cultura tradicional indígena consta na CF/1988


em seus artigos 23127 e 23228, nos quais que se reconhece a organi-
zação social, os costumes, a línguas, as crenças e as suas tradições
como manifestações culturais, assim como os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam de modo perma-
nente e suas atividades produtivas “imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessá-
rias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes
e tradições” (SILVA, 2001, p. 85).
Em consonância com os diplomas internacionais e os artigos
supracitados – a Declaração da ONU sobre o Direito dos Povos
Indígenas, os artigos 216, 231 e 232 da CF/1988 – o Decreto nº
6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento dos
Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT):

27 Art. 231, caput - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens.
28 Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo.

93
Art.  1o - Fica instituída a Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais  -  PNPCT,
na forma do Anexo a este Decreto. Art.  2o
-
Compete à Comissão Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais  -  CNPCT, criada
pelo Decreto de 13 de julho de 2006, coorde-
nar a implementação da Política Nacional para
o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Art.  3o  - Para os
fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-
se por: I - Povos e Comunidades Tradicionais:
grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam
e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados
e transmitidos pela tradição; II  -  Territórios
Tradicionais: os espaços necessários a repro-
dução cultural, social e econômica dos povos
e comunidades tradicionais, sejam eles uti-
lizados de forma permanente ou temporária,
observado, no que diz respeito aos povos indí-
genas e quilombolas, respectivamente, o que
dispõem os  arts. 231 da Constituição  e  68
do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias  e demais regulamentações; e
III  -  Desenvolvimento Sustentável: o uso
equilibrado dos recursos naturais, voltado para
a melhoria da qualidade de vida da presente
geração, garantindo as mesmas possibilidades
para as gerações futuras. Art. 4o - Este Decreto
entra em vigor na data de sua publicação. 

94
3.1 A sociobiodiversidade como fundamento jurídico da lei
13.123/2015

A Lei 13.123/2015, que revogou a MP 2.186-16/2001 é


bastante atual em relação aos temas atinentes à sociobiodiversi-
dade. O instrumento jurídico trata em seu artigo 1º sobre bens,
direitos e obrigações relativas ao patrimônio genético – exceto o
humano – e refere-se ao patrimônio natural como “bem de uso
comum do povo” encontrado em condições  in situ, inclusive as
espécies domesticadas e populações espontâneas, ou mantido em
condições ex situ, desde que encontrado em condições in situ no
território nacional, na plataforma continental, no mar territorial e
na zona econômica exclusiva.
O mesmo artigo 1º, II trata exatamente sobre conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético, “relevante à con-
servação da diversidade biológica, à integridade do patrimônio
genético do País e à utilização de seus componentes”. A lei dis-
corre então nos incisos seguintes sobre o acesso à tecnologia e a
sua transferência para a conservação da biodiversidade e à explo-
ração econômica do “produto acabado ou material reprodutivo
oriundo de acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tra-
dicional associado”.
A Lei 13.123/2015 busca resolver o problema da repartição
justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração econô-
mica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo de
acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional
associado, para conservação e uso sustentável da biodiversidade.
A citada lei interfere sobre a remessa para o exterior de
parte ou do todo de organismos, vivos ou mortos, de espécies ani-
mais, vegetais, microbianas ou de outra natureza, que se destine
ao acesso ao patrimônio genético. Bem como a implementação
de tratados internacionais sobre o patrimônio genético ou o

95
conhecimento tradicional associado aprovados pelo Congresso
Nacional e promulgados.
Ainda no tocante ao conceito de sociobiodiversidade, a lei
declara no artigo §1º, artigo 1º que o acesso ao patrimônio gené-
tico ou ao conhecimento tradicional associado será efetuado sem
prejuízo dos direitos de propriedade material ou imaterial que
incidam sobre o patrimônio genético ou sobre o conhecimento
tradicional associado acessado ou sobre o local de sua ocorrência.
É importante dizer que de acordo com o artigo 2º, II:
“conhecimento tradicional associado” é a informação ou prática
de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor
tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos
associada ao patrimônio genético. O conhecimento tradicional
protegido abrange aquele de “origem não identificável” o que
encerra o dilema do “conhecimento difuso” utilizado como des-
culpa no caso das erveiras do mercado Ver-o-Peso contra a Natura
Cosméticos S.A.
A comunidade tradicional é o grupo que se reconhece como
tal e que possui forma própria de organização social, que ocupa e
usa território e recursos naturais “como condição para a sua repro-
dução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela
tradição”.
O acesso aos conhecimentos tecnológicos, à pesquisa, ao
desenvolvimento de tecnologias, ao cadastro de acesso ou remessa/
transferência de patrimônio genético também são ordenados na
Lei 13.123/2005, inclusive com seus instrumentos jurídicos pró-
prios: acordo de repartição de benefícios, notificação de produto,
acordo setorial, atestado de regularidade de acesso e termo de
transferência de material:
Artigo 2º - Além dos conceitos e das definições
constantes da Convenção sobre Diversidade
Biológica - CDB, promulgada pelo  Decreto

96
no 2.519, de 16 de março de 1998, consideram-
se para os fins desta Lei: [...] XIX - notificação
de produto - instrumento declaratório que
antecede o início da atividade de exploração
econômica de produto acabado ou material
reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio
genético ou ao conhecimento tradicional asso-
ciado, no qual o usuário declara o cumprimento
dos requisitos desta Lei e indica a modalidade
de repartição de benefícios, quando aplicável,
a ser estabelecida no acordo de repartição de
benefícios; XX - acordo de repartição de bene-
fícios - instrumento jurídico que qualifica as
partes, o objeto e as condições para repartição
de benefícios; XXI - acordo setorial - ato de
natureza contratual firmado entre o poder
público e usuários, tendo em vista a repartição
justa e equitativa dos benefícios decorrentes
da exploração econômica oriunda de acesso
ao patrimônio genético ou ao conhecimento
tradicional associado de origem não identi-
ficável; XXII - atestado de regularidade de
acesso - ato administrativo pelo qual o órgão
competente declara que o acesso ao patrimô-
nio genético ou ao conhecimento tradicional
associado cumpriu os requisitos desta Lei;
XXIII - termo de transferência de material
- instrumento firmado entre remetente e des-
tinatário para remessa ao exterior de uma ou
mais amostras contendo patrimônio genético
acessado ou disponível para acesso, que indica,
quando for o caso, se houve acesso a conheci-
mento tradicional associado e que estabelece
o compromisso de repartição de benefícios
de acordo com as regras previstas nesta Lei
[...] Parágrafo único – São de competência da
União a gestão, o controle e a fiscalização das
atividades descritas no  caput, nos termos do
disposto no inciso XXIII do caput do art. 7o da

97
Lei Complementar no 140, de 8 de dezembro
de 2011.

De acordo com o artigo 3o, o acesso ao patrimônio genético


ou ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa
ou desenvolvimento tecnológico, assim como a exploração eco-
nômica de produto acabado ou material reprodutivo – que seja
oriundo desse acesso – apenas serão realizados mediante cadas-
tro, autorização ou notificação, e serão submetidos a fiscalização,
restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições
estabelecidos nesta Lei e no seu regulamento:
Art. 3o O acesso ao patrimônio genético exis-
tente no País ou ao conhecimento tradicional
associado para fins de pesquisa ou desenvolvi-
mento tecnológico e a exploração econômica
de produto acabado ou material reprodutivo
oriundo desse acesso somente serão realizados
mediante cadastro, autorização ou notificação,
e serão submetidos a fiscalização, restrições
e repartição de benefícios nos termos e nas
condições estabelecidos nesta Lei e no seu
regulamento.

A Lei 13.123/2015 institui em seu artigo 6o  a criação do


Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), no âmbito
do MMA, como órgão colegiado de caráter deliberativo, norma-
tivo, consultivo e recursal, responsável por coordenar a elaboração
e a implementação de políticas para a gestão do acesso ao patri-
mônio genético e ao conhecimento tradicional associado e da
repartição de benefícios.
O órgão é formado por representação de órgãos e entidades
da administração pública federal que detêm competência sobre as
diversas ações de que trata esta Lei com participação máxima de
60% (sessenta por cento) e a representação da sociedade civil em
no mínimo 40% (quarenta por cento) dos membros, assegurada a

98
paridade entre o setor empresarial, o setor acadêmico e as popula-
ções indígenas, comunidades tradicionais agricultores tradicionais.
Todo o Capítulo III da lei trata sobre o conhecimento tradi-
cional associado e a sua proteção jurídica, ele é formado por três
artigos: o artigo 8º que trata sobre a proteção aos conhecimen-
tos tradicionais associados ao patrimônio genético de populações
indígenas; o artigo 9º sobre o acesso ao conhecimento tradicional
associado de origem identificável está condicionado à obtenção
do consentimento prévio informado e o artigo 10 sobre a garantia
de direitos sobre a criação, detenção, desenvolvimento e conser-
vação do conhecimento tradicional associado pelas populações
indígenas:
Art. 8o  Ficam protegidos por esta Lei os
conhecimentos tradicionais associados ao
patrimônio genético de populações indígenas,
de comunidade tradicional ou de agricultor tra-
dicional contra a utilização e exploração ilícita.
§ 1o  O Estado reconhece o direito de popu-
lações indígenas, de comunidades tradicionais
e de agricultores tradicionais de participar da
tomada de decisões, no âmbito nacional, sobre
assuntos relacionados à conservação e ao uso
sustentável de seus conhecimentos tradicionais
associados ao patrimônio genético do País, nos
termos desta Lei e do seu regulamento. § 2o O
conhecimento tradicional associado ao patri-
mônio genético de que trata esta Lei integra
o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser
depositado em banco de dados, conforme
dispuser o CGen ou legislação específica. §
3o São formas de reconhecimento dos conhe-
cimentos tradicionais associados, entre outras:
I - publicações científicas; II - registros em
cadastros ou bancos de dados; ou III - inven-
tários culturais. § 4o O intercâmbio e a difusão
de patrimônio genético e de conhecimento

99
tradicional associado praticados entre si por
populações indígenas, comunidade tradicio-
nal ou agricultor tradicional para seu próprio
benefício e baseados em seus usos, costumes e
tradições são isentos das obrigações desta Lei.
Art. 9o O acesso ao conhecimento tradicional
associado de origem identificável está condi-
cionado à obtenção do consentimento prévio
informado. § 1o  A comprovação do consen-
timento prévio informado poderá ocorrer, a
critério da população indígena, da comuni-
dade tradicional ou do agricultor tradicional,
pelos seguintes instrumentos, na forma do
regulamento: I - assinatura de termo de con-
sentimento prévio; II - registro audiovisual do
consentimento; III - parecer do órgão oficial
competente; ou IV - adesão na forma prevista
em protocolo comunitário. § 2o  O acesso a
conhecimento tradicional associado de origem
não identificável independe de consentimento
prévio informado. § 3o O acesso ao patrimô-
nio genético de variedade tradicional local
ou crioula ou à raça localmente adaptada ou
crioula para atividades agrícolas compreende o
acesso ao conhecimento tradicional associado
não identificável que deu origem à variedade
ou à raça e não depende do consentimento
prévio da população indígena, da comunidade
tradicional ou do agricultor tradicional que
cria, desenvolve, detém ou conserva a varie-
dade ou a raça.
Art. 10. Às populações indígenas, às comunida-
des tradicionais e aos agricultores tradicionais
que criam, desenvolvem, detêm ou conservam
conhecimento tradicional associado são garan-
tidos os direitos de: I - ter reconhecida sua
contribuição para o desenvolvimento e con-
servação de patrimônio genético, em qualquer

100
forma de publicação, utilização, exploração
e divulgação; II - ter indicada a origem do
acesso ao conhecimento tradicional associado
em todas as publicações, utilizações, explora-
ções e divulgações; III - perceber benefícios
pela exploração econômica por terceiros, direta
ou indiretamente, de conhecimento tradi-
cional associado, nos termos desta Lei; IV
- participar do processo de tomada de decisão
sobre assuntos relacionados ao acesso a conhe-
cimento tradicional associado e à repartição de
benefícios decorrente desse acesso, na forma
do regulamento; V - usar ou vender livremente
produtos que contenham patrimônio genético
ou conhecimento tradicional associado, obser-
vados os dispositivos das Leis nos 9.456, de 25
de abril de 1997, e 10.711, de 5 de agosto de
2003; e VI - conservar, manejar, guardar, pro-
duzir, trocar, desenvolver, melhorar material
reprodutivo que contenha patrimônio gené-
tico ou conhecimento tradicional associado.
§ 1o  Para os fins desta Lei, qualquer conhe-
cimento tradicional associado ao patrimônio
genético será considerado de natureza coletiva,
ainda que apenas um indivíduo de popula-
ção indígena ou de comunidade tradicional o
detenha. § 2o O patrimônio genético mantido
em coleções ex situ em instituições nacionais
geridas com recursos públicos e as informações
a ele associadas poderão ser acessados pelas
populações indígenas, pelas comunidades tra-
dicionais e pelos agricultores tradicionais, na
forma do regulamento.

Como resposta à biopirataria e contra a exportação, o


Capítulo IV institui sobre o acesso, a remessa e a exploração eco-
nômica, sujeitando as atividade ligadas ao patrimônio genético ou
conhecimento tradicional associado, remessa para o exterior de

101
amostras de patrimônio genético de amostras para o exterior de
patrimônio genético e a exploração econômica de produto aca-
bado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio
genético ou ao conhecimento tradicional associado.
De acordo com o artigo 11, §1º é vedado o acesso ao patri-
mônio genético ou ao conhecimento tradicional associado por
pessoa natural estrangeira. A remessa para o exterior de amostra
de patrimônio genético depende de assinatura do termo de trans-
ferência de material, na forma prevista pelo CGen.
No Capítulo V, sobre a repartição de benefícios, resumido
aqui em seus artigos 17, 18 e 19 ordena-se que os benefícios
resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de
material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético
de espécies encontradas em condições in situ ou ao conhecimento
tradicional associado, ainda que produzido fora do Brasil, serão
repartidos, de forma justa e equitativa, sendo que no caso do
produto acabado o componente do patrimônio genético ou do
conhecimento tradicional associado deve ser um dos elementos
principais de agregação de valor, em conformidade ao que a pre-
sente lei estabelece:
Art. 17. Os benefícios resultantes da explo-
ração econômica de produto acabado ou de
material reprodutivo oriundo de acesso ao
patrimônio genético de espécies encontradas
em condições in situ ou ao conhecimento tra-
dicional associado, ainda que produzido fora
do País, serão repartidos, de forma justa e equi-
tativa, sendo que no caso do produto acabado
o componente do patrimônio genético ou do
conhecimento tradicional associado deve ser
um dos elementos principais de agregação de
valor, em conformidade ao que estabelece esta
Lei. § 1o Estará sujeito à repartição de bene-
fícios exclusivamente o fabricante do produto

102
acabado ou o produtor do material repro-
dutivo, independentemente de quem tenha
realizado o acesso anteriormente. [...]
Art. 18 – os benefícios resultantes da explora-
ção econômica de produto oriundo de acesso
ao patrimônio genético ou ao conhecimento
tradicional associado para atividades agrícolas
serão repartidos sobre a comercialização do
material reprodutivo, ainda que o acesso ou a
exploração econômica dê-se por meio de pes-
soa física ou jurídica subsidiária, controlada,
coligada, contratada, terceirizada ou vinculada,
respeitado o disposto no § 7o do art. 17. § 1o A
repartição de benefícios, prevista no  caput,
deverá ser aplicada ao último elo da cadeia
produtiva de material reprodutivo, ficando
isentos os demais elos. [...]
Art. 19. A repartição de benefícios decorrente
da exploração econômica de produto acabado
ou material reprodutivo oriundo de acesso ao
patrimônio genético ou ao conhecimento tra-
dicional associado poderá constituir-se nas
seguintes modalidades: I - monetária; ou II
- não monetária, incluindo, entre outras: a)
projetos para conservação ou uso sustentável
de biodiversidade ou para proteção e manuten-
ção de conhecimentos, inovações ou práticas
de populações indígenas, de comunidades
tradicionais ou de agricultores tradicionais,
preferencialmente no local de ocorrência da
espécie em condição  in situ  ou de obtenção
da amostra quando não se puder especificar
o local original; b) transferência de tecnolo-
gias; c) disponibilização em domínio público
de produto, sem proteção por direito de pro-
priedade intelectual ou restrição tecnológica;
d) licenciamento de produtos livre de ônus;
e) capacitação de recursos humanos em temas

103
relacionados à conservação e uso sustentável
do patrimônio genético ou do conhecimento
tradicional associado; e f ) distribuição gratuita
de produtos em programas de interesse social.
§ 1o No caso de acesso a patrimônio genético
fica a critério do usuário a opção por uma das
modalidades de repartição de benefícios pre-
vistas no caput. [...]

A Lei 13.123/2015 também prevê sanções administrativas


bem como a criação de um fundo nacional para a repartição de
benefícios e de um programa nacional de repartição desses benefí-
cios. Ainda como consta em seu artigo 47 ordena sobre a concessão
de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre
produto acabado ou sobre material reprodutivo, obtido a partir de
acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional asso-
ciado fica condicionada ao cadastramento ou autorização.

Conclusões

A preservação da diversidade cultural e da diversidade


biológica está ligada à proteção do meio ambiente a partir de
instrumentos jurídicos principalmente no âmbito do direito
constitucional, do direito ambiental, do direito internacional e
do direito administrativo. A proteção do patrimônio natural e do
patrimônio cultural e de seus bens encontra proteção em diversos
diplomas internacionais, bem como na legislação do ordenamento
pátrio brasileiro.
A preservação da diversidade biológica portanto está relacio-
nada à preservação da diversidade cultural, em seus aspectos mais
amplos como a vida em comunidade e no direito à cultura. De
modo que a preservação do patrimônio natural e do patrimônio
cultural são direitos inerentes, fundamentais, à vida e à sobrevi-
vência da própria espécie humana.

104
Por sua vez, as comunidades e sociedades humana necessitam
se desenvolver economicamente a fim de se sustentarem para que
as próximas gerações sobrevivam. Os conhecimentos transmiti-
dos ao longo dessas gerações – e que serão preservados – estarão
comprometidos caso haja uma ruptura da cadeia econômica que
os sustenta.
As sociedades humanas precisam se desenvolver economica-
mente ao mesmo tempo em que protege os seus direitos sociais e
conquista os seus direitos culturais. Não é uma tarefa simples nos
dias atuais, em que o sistema capitalista nos mostra os resultados
mais cruéis de exclusão econômica, social e cultural dos povos
com seu mecanismo sofisticado e agressivo.
A sociobiodiversidade surge como uma nova perspectiva
ética em defesa dos princípios dos direitos fundamentais – como
da dignidade humana e dos direitos culturais – das comunidades
nativas como as tribos indígenas e dos conhecimentos tradicio-
nais dentro deste intenso processo de fragmentação cultural e da
globalização econômica (KISHI, 2015, p. 209).
A sociobiodiversidade, cujo conceito recente ajuda a funda-
mentar estudos acadêmicos, também está presente na legislação
mais atual de proteção dos modos culturais e intelectuais desses
grupos tradicionais. A Lei 13.123/2015 foi criada para resolver
os problemas que a MP 2.186-16/2001 já não resolvia, passados
dezesseis anos de sua publicação.
Para exemplificar o conceito de sociobiodiversidade, ana-
lisamos neste artigo o caso específico das erveiras do mercado
Ver-o-Peso contra a empresa privada Natura Cosméticos S.A.,
que aproveitou-se de uma lacuna existente na legislação nacional
para burlar a distribuição de lucros advindos da utilização dos
conhecimentos indígenas utilizados na criação de produtos cos-
méticos da linha Ekos, amplamente comercializados em território
nacional e internacional.

105
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107
SOUZA, Allan Rocha de. Direitos culturais no Brasil. Rio de
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108
POLÍTICAS PÚBLICAS EM DIREITOS HUMANOS
E A JUREMA SAGRADA: UMA QUESTÃO DE
RECONHECIMENTO

Camilo de Lélis Diniz de Farias29

1. Introdução

A
ntes de chegar propriamente à questão central do pre-
sente ensaio, entendo que é necessário situar o seu objeto,
e tentar descrevê-lo, sem porém incorrer em categoriza-
ções, fugindo ao máximo de uma perspectiva cartesiana, o que
seria contraditório quando se fala em reconhecimento.
A Jurema Sagrada é antes de mais nada um complexo místico
e polissêmico: é árvore, ritual, técnica, dom e religião, no qual cada
uma dessas significações interagem entre si: no culto à Jurema se
bebe o vinho feito da árvore, mas também ocorre a manifestação
da Jurema-dom, seja através da cura, seja através da incorporação,
tudo permeado pelo seu aspecto técnico – ou de saber popular.
A multiplicidade de sentidos não se encerra em seu aspecto
cosmológico: de base originalmente indígena, o que se reflete
no culto aos Caboclos, Canindés e Encantados, no uso proemi-
nente da fumaça e dos maracás em seu ritual e, principalmente,

29 Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestre em


Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela Universidade Federal da
Paraíba. Professor do Centro de Ensino Superior Reinaldo Ramos – CESREI
e da Escola Superior da Magistratura “Desembargador Almir Carneiro da
Fonseca” – ESMA/PB. Email: camiloldf@gmail.com.

109
na veneração à jurema-árvore e ao consumo da bebida dela pre-
parada; a Jurema Sagrada sofreu ao longo dos anos influências
diversas, notadamente a do Catolicismo, Paganismo europeu
e, mais recentemente, do Candomblé e da Umbanda. É preci-
samente na sua relação com os cultos de matriz africana que se
encontra talvez a questão central de análise deste ensaio.
Na Paraíba, o seu encontro com as tradições africanas se
deu por volta dos anos 60 do século passado. Barros (2011, p.20)
afirma que:
A cidade de Campina Grande, seguindo uma
tendência que se verifica no estado da Paraíba,
a partir de meados do século XX, sofrerá
influência das religiões de marcas afrobrasilei-
ras, mais propriamente da Umbanda (de São
Paulo) em decorrência do processo de legali-
zação dessas práticas em nível nacional e do
Candomblé de Pernambuco, com a vinda de
alguns candomblecistas para a cidade. Essa
influência, como sugerem alguns autores,
resultou em médio prazo, num processo acen-
tuado de hibridização com as correntes locais.

Assim sendo, têm-se na Jurema Sagrada uma tripla polis-


semia, uma multiplicidade de sentidos, de influências e práticas
rituais e, por fim, de sujeitos, o que impõe a necessidade de aten-
ção diferenciada em sede de promoção de políticas públicas mas
que,como se verá, serviu como justificativa para a sua marginali-
zação enquanto culto religioso.

2. Políticas públicas em direitos humanos: uma abordagem


geral

Sinteticamente, as políticas públicas em direitos humanos


consistem em ações levadas a cabo pelo poder público com o evi-
dente intuito de promover os direitos humanos em seus vários

110
aspectos e dimensões, nas diversas áreas de atuação do Estado.
Nesse sentido, é a afirmação de Dworkin (2002, p. 36) de que
políticas (dentre as quais as públicas) são:
Aquele tipo de padrão que estabelece um obje-
tivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em
algum aspecto econômico, político ou social da
comunidade (ainda que certos objetivos sejam
negativos pelo fato de estipularem que algum
estado atual deve ser protegido contra mudan-
ças adversas).

Pode-se afirmar que esta perspectiva de atuação positiva do


Estado foi inaugurada a partir da segunda dimensão dos direitos
fundamentais, associados, principalmente, aos direitos sociais. Por
uma razão lógica, não se poderia conceber que garantias como
educação e saúde se concretizassem sem que houvesse uma atuação
concreta do Estado, em oposição à ideia dos direitos “negativos”
consagrados anteriormente. Assim sendo, consolida-se a ideia
da necessidade de ações para a concretização fática dos direitos
humanos, cujo avanço continua ao longo do tempo, quando novos
direitos são positivados de acordo com a necessidade dos sujeitos.
Assim sendo (BUCCI, 2001, p. 08).:
A percepção dessa evolução nos faz perceber
que a fruição dos direitos humanos é uma
questão complexa, a qual vem demandando
um aparato de garantias e medidas concre-
tas do Estado que se alarga cada vez mais, de
forma a disciplinar o processo social, criando
formas que neutralizem a força desagregadora
e excludente da economia capitalista e pos-
sam promover o desenvolvimento da pessoa
humana.

Isto significa, portanto, que as políticas públicas em direitos


humanos não dizem respeito apenas às garantias que demandam

111
uma prestação positiva para se concretizarem. Na verdade mesmo
as aquelas mais abstratas, como o devido processo legal e o direito
de ir e vir, para serem realmente efetivas, necessitam de um apa-
rato, tal como uma máquina judiciária (contratação de servidores
e remuneração dos mesmos, estruturação de diplomas legais,
dotação de órgãos etc).
É importante aqui destacar que a adoção e estruturação de
políticas públicas em direitos humanos enunciam uma tomada de
posição por parte do Estado, estando as mesmas carregadas, por-
tanto, de um forte teor valorativo. Não são, portanto, simples ações
desconexas, mas sim uma opção política em se fazer efetivos deter-
minados direitos. Neste sentido, pontua Joan Scott (2002, p. 15):
A igualdade é um princípio absoluto e uma
prática historicamente contingente. Não é a
ausência ou a eliminação da diferença, mas sim
o reconhecimento da diferença e a decisão de
ignorá-la ou de levá-la em consideração. R. R.
Palmer, escrevendo no Dictionary of the History
of Ideas, coloca isso assim: “A igualdade requer
um ato de escolha, pelo qual algumas diferen-
ças são minimizadas ou ignoradas enquanto
que outras são maximizadas e postas a se
desenvolver”.

Muito embora já houvesse, sobretudo nos países demo-


cráticos, a noção da necessidade de efetivação de direitos e,
consequentemente, da necessidade de estruturação de políticas
que os instrumentalizassem, apenas no pós-guerra fria este pano-
rama terá sofrido,efetivamente, uma viragem política: até então,
em virtude da tensão ideológica que o mundo vivenciava, havia
a ideia de dicotomia entre os direitos civis e sociais, representada
mormente na concepção de dois pactos distintos em 1966, sendo
o destinado aos direitos civis massivamente assinado pelos paí-
ses capitalistas, e o referente aos sociais endossado pelos países
socialistas.

112
Somente com o fim desta situação é que se firma a ideia
de indissociabilidade dos direitos humanos, isto é, da necessidade
de se praticar simultaneamente tanto os direitos civis, quanto os
sociais, culturais etc. Sobre a Conferência de Viena, se pronuncia
Vannuchi (2010, p. 124):
Em 1993, em Viena, uma Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos realizada
pela ONU trouxe dois importantes avanços:
firmou o conceito de indivisibilidade dos direi-
tos humanos (quando determinado direito
humano é violado, os demais ficam automati-
camente contaminados, e recomendou a todos
os países a elaboração de planos nacionais de
direitos humanos.

Com efeito, é com a Conferência de Viena que se consolida


a noção de que a defesa e a promoção dos direitos humanos são
um dever prioritário dos Estados. Chamo atenção para o verbete
“promoção”, por ele indicar que esse trabalho de defesa dos direi-
tos do homem passa, necessariamente, por uma atuação prática,
materializada em intervenções na realidade concreta. Tanto é que
a conferência foi acompanhada de um plano de ação, o que expli-
cita a preocupação não apenas com a enunciação, mas também
com a concretização dos direitos humanos, ressaltando, desta
maneira, o dever de participação ativa do Estado nessa seara, em
oposição à passividade e absenteísmo da perspectiva estritamente
liberal, que permeou os primeiros anos da história dos direitos
humanos na modernidade.
Agora, uma vez delineado o conceito de políticas públicas
e a sua aplicação aos direitos humanos incumbe questionar: de
que modo se estruturam as políticas públicas aplicadas aos cultos
religiosos, em especial à Jurema Sagrada? Quais são os principais
entraves e desafios à sua efetivação? Tais questões passam, neces-
sariamente por reflexões de ordem histórica, política e identitária,

113
que serão centrais para a nossa análise, tópicos que serão desen-
volvidos a seguir.

3. A trajetória política da Jurema Sagrada

A história política de todas as religiões não cristãs no Brasil


é intimamente relacionada à repressão. A colonização do territó-
rio brasileiro foi patrocinada pela Igreja Católica, o que implicou
tanto em uma forte vinculação do catolicismo enquanto doutrina
e instituição às políticas do Estado brasileiro, quanto na liberdade
da mesma realizar seu trabalho de doutrinação e repressão em
território nacional.
Neste sentido, teve destaque a atuação do tribunal do santo
oficio em terras brasileiras. Especificamente para a Jurema
Sagrada, isto implicou em perseguição e marginalização. Já no
século XVIII se encontram registros de condenação de nativos
por praticarem o adjunto da jurema30, que seria a preparação da
beberagem enteógena que era amplamente consumida com o
intuito de conseguir uma ligação entre a terra e o mundo dos
encantados.
A independência do Brasil levou à formação de um impé-
rio autônomo, desvinculado de Portugal e, consequentemente, à
necessidade de se ter uma Constituição. Assim sendo, em 1824,
foi outorgada a primeira Carta Magna brasileira. Em relação à
religião, ela estabelecia que o catolicismo era o culto oficial do
país, e que às outras formas de religiosidade era garantida apenas a
manifestação privada, não sendo permitidos portanto a realização
de quaisquer rituais públicos. Continuava, portanto, instituciona-
lizada a perseguição às religiões não cristãs.

30 “Mais representativa foi a denúncia que o mesmo Pedro Monteiro de Macedo


fez em 1739, em carta ao rei D. João V, sobre a participação de frades em um
ritual praticado entre indígenas Kanindé e Xukuru aldeados em Boa Vista, na
capitania da Paraíba.” (FREIRE, 2013, p. 27).

114
Com a proclamação da República, adotou-se a separação
entre o Estado e a Igreja, todavia a previsão não representou
avanço concreto para as religiões de matriz afro-ameríndia. O
decreto 119-A/1890, em que pese ter possibilitado o divórcio
entre os poderes públicos e eclesiásticos e, consequentemente, a
liberdade religiosa, não foi suficiente para alterar a correlação de
forças existentes, como a influência da Igreja Católica nas instân-
cias do poder.
Della Cava (1975, p.10) afirma que
Com exceção do período da República Velha
(1890-1930), o Estado brasileiro – a des-
peito de sua ideologia – aceitou esse arranjo
(a manutenção do catolicismo como religião
oficial) e garantiu à Igreja Católica Romana
um conjunto de privilégios (especialmente
em assuntos educacionais e sociais) de que
nenhuma instituição brasileira particular, reli-
giosa ou de qualquer outro tipo, gozou.

Tal situação permanece até os dias de hoje, com a diferença


de que também as igrejas evangélicas conseguem, cada vez mais,
ampliar o seu espaço de influência na vida política do Brasil, o
que alerta para a necessidade de garantir a efetividade do Estado
laico, sob pena de enormes retrocessos no campo dos direitos
humanos.
A previsão de liberdade religiosa em decorrência da laici-
dade do Estado não foi para todos. Uma vez superado o discurso
da religião oficial, permaneceram vivos e institucionalizados os
discursos que criminalizavam as práticas religiosas de matriz
afro-ameríndia e aqueles que a tipificavam enquanto doença ou
fetichismo, o que legitimava tanto a perseguição policial quanto
a descredibilização, a exotização ou mesmo a imposição de um
tratamento psiquiátrico para tais religiões e seus adeptos.
Aires (2014, p. 91) tece preciosas considerações sobre o tema:

115
A perseguição às religiosidades afro-amerín-
dias, durante a primeira metade do século XX,
era legitimada a partir dos discursos e práticas
jurídicas e/ou científicas. O primeiro Código
Penal republicano, promulgado pelo Decreto
nº 847, de 11 de outubro de 1890, previa penas
severas para quem “praticar o espiritismo, a
magia e seus sortilégios, usar de talismãs e car-
tomancias para despertar sentimentos de ódio
ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e
ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a
credulidade pública”. (Art. 157) O dispositivo
legal garantia ao Estado o uso dos aparelhos
repressivos sobre umbandistas, candomblecis-
tas e catimbozeiros.

Já Ofélia Barros, em sua tese de doutorado, traz outro impor-


tante registro histórico, datado de 1937, que dá conta do teor da
repressão sofrida pela Jurema na Paraíba:
[...] Acompanhado dos soldados Francisco
Catarino, João Felício e Francisco Caldino, o
comandante do destacamento surpreendeu
João Inocêncio da Costa e Joana Amorim cer-
cados de mais de quarenta pessoas fazendo
“macumba”. Lá estavam em volta de uma
pequena mesa onde velas ardiam e se encontra-
vam uma garrafa de aguardente, três cachimbos,
um sapo seco com a boca costurada, um novelo
de linha enfiado num couro de cobra, uma
mochila cheia de terra de cemitério e um grande
galho de jurema. A presença da polícia ocasio-
nou grande pânico, tendo sido possível prender
somente dez pessoas. A polícia prossegue para
apanhar outros núcleos de feitiço. ( Jornal A
Imprensa apud BARROS, 2011, p. 71).

À mesma época, notadamente na Bahia, os Candomblés


passaram a conquistar legitimidade e a iniciar o seu processo de

116
legalização e conquista de espaço político. Intelectuais como Jorge
Amado e Pierre Verger passaram a frequentar as mais tradicio-
nais casas do ketu baiano, o que lhes conferiu inegável visibilidade
cultural e política. Na Paraíba, contudo, permanecia a margi-
nalização do Catimbó, considerado um culto inferior, posto ser
miscigenado, fugindo da ideia da pureza nagô, discurso assumido
pelo Candomblé e que será melhor discutido adiante.
Mesmo as alterações na lei penal não foram suficientes para
garantir a liberdade de culto aos juremeiros. Descriminalizado o
baixo espiritismo, permanecem o delito de curandeirismo e contra-
venções penais ligadas à perturbação do sossego e outros ditames
morais como justificativa para a perseguição.
Contudo, em 1966, sob o governo João Agripino31, entrou
em vigor a Lei Estadual nº 3.443, que garantiu formalmente, em
transcrição literal de seu artigo 1º, “o livre exercício dos cultos
africanos no Estado da Paraíba, observadas as disposições cons-
tantes desta lei”. Ora, o referido dispositivo, ao mencionar apenas
os cultos africanos, deixou de fora o Catimbó, que até então não
tinha incorporado de forma determinante estes elementos, tendo
que imiscuir-se junto à Umbanda e ao Candomblé Nagô, ou
mesmo a negar a sua identidade para poder gozar de legalidade.
Desta forma, ocorreu por um lado um certo silenciamento
da Jurema e, por outro, o nascimento de uma prática híbrida da
religiosidade de matriz afro-ameríndia tipicamente paraibana. A

31 Em decorrência de sua atuação em prol da liberação dos cultos de matriz


afro-ameríndia – sobretudo considerando a forte repressão desencadeada no
governo do seu antecessor, Pedro Gondim, João Agripino passou a ser tratado
como “salvador” e “protetor” destas religiões. Em uma evidente demonstração
de retribuição, característica central dos sistemas de dádiva, Agripino, filho
de Iemanjá, foi homenageado em um ponto executado até os dias de hoje em
diversos Terreiros paraibanos. Soares (2009) afirma que em torno de sua figura
foi criado todo um imaginário, semelhante ao ocorrido em relação à Princesa
Isabel quando da abolição da escravidão.

117
partir da análise de Santiago (2008, p. 03) é possível compreender
este processo de hibridização como estratégia de sobrevivência:
Em meados do século XX, no Estado parai-
bano, ocorre a aproximação do Catimbó com a
Umbanda em virtude do movimento de expan-
são desta pelo país. Assim, foi se delineando a
Umbanda cruzada com Jurema como resultado
da junção dos rituais da tradição juremeira/
catimbozeira com a Umbanda trazida oficial-
mente para o referido Estado nos fins de 1960.
Até essa época predominava na Paraíba a prá-
tica do Catimbó, tratado como caso de polícia.
Os catimbozeiros ou juremeiros desejosos de
se libertarem da pressão policial aceitaram se
engajar na estrutura da nascente Federação
dos Cultos Africanos do Estado da Paraíba,
encampadora da doutrina umbandista.
Contudo, a forte influência da jurema se fez pre-
sente na reorganização sincrética dos elementos
religiosos da umbanda paraibana. (grifo nosso)

As tais disposições consistiam, ainda, numa tentativa de


regulamentar, por meio da criação da Federação dos Cultos Africanos
do Estado da Paraíba, estas religiões, que têm como característica
essencial – em que pese o forte apelo à hierarquização – a ausência
de institucionalização e de uma autoridade central, sendo cada
terreiro uma esfera de poder em separado. Assim sendo, empre-
endeu-se um trabalho de colocação sob rígido controle tanto das
práticas ritualísticas, em seus mais variados aspectos – com desta-
que para a imposição de novos parâmetros, em especial a inclusão
dos elementos da Umbanda e Candomblé na Jurema – quanto
dos sujeitos que professavam esta fé32, o que evidentemente impôs

32 Dentre as normas regulamentadoras, estavam a proibição de toques após às


22h00min, bem como do uso de roupas inadequadas e a presença de criança
nas giras.

118
modificações, ressignificações e readaptações dos antigos rituais
de Catimbó.
Ainda sobre as Federações, em nossa pesquisa constata-
mos que a sua associação ao poder local, sobretudo em termos
do estabelecimento de uma relação de gratidão pela “libertação”
dos terreiros acabou gerando uma cooptação política dos afro-re-
ligiosos. Considerando que tratava-se de um período ditatorial,
em que líderes religiosos como Dom Hélder Câmara e Dom José
Maria Pires, em Pernambuco e Paraíba, respectivamente, denun-
ciavam os abusos do regime, as religiões de matriz afro-ameríndia
permaneceram silentes, a despeito de agregarem sujeitos social-
mente vulneráveis, com grande potencial de articulação política.
É importante que se atente para o fato de que a regularização
dos terreiros se dava através da secretaria de segurança pública,
o que revela tanto uma ruptura apenas parcial com a situação
de controle policial que vigia anteriormente, ante à incapaci-
dade e incompetência das instituições de segurança para tutelar
a liberdade religiosa dos sujeitos; mas também uma consequente
necessidade de implantação de uma moralidade na condução dos
rituais, ocasionando em evidente tentativa de higienização do
culto.
Vale lembrar que, conforme se aduz dos trechos de repor-
tagens colacionados anteriormente, a exacerbação na descrição
de práticas ritualísticas incomuns aos padrões cristãos foi um
importante mecanismo legitimador da perseguição ao Catimbó.
O termo, aliás, foi proscrito e negativamente associado à bruxaria
e à baixa magia, feita com o intuito de provocar o mal, o que ainda
povoa o imaginário do povo-de-jurema paraibano.
Ainda, a Lei condicionava o funcionamento dos referidos
cultos à requisitos como autorização policial, regularização dos
terreiros perante o registro civil e prova de idoneidade moral e
sanidade mental dos seus dirigentes. Há, ainda, relatos orais de
antigos catimbozeiros que dão conta da existência, também, de tes-
tes de mediunidade, no qual o médium supostamente incorporado

119
era submetido a provas, que iam desde ao desafio de adivinhar
onde estavam determinados objetos ritualísticos escondidos pre-
viamente, até situações extremas, como dançar em um círculo de
fogo ou manipular sem qualquer proteção plantas como a urtiga,
que provocam intensa queimação. Segundo relatos a mim trans-
mitidos na observação dos terreiros, pessoas de Campina Grande
chegaram a morrer durante tais testes, o que seria um motivo de
vergonha ante a comprovação de que a incorporação seria, na ver-
dade, fingimento.
Percebe-se, portanto, que a tal libertação do povo-de-jurema
não se deu por completo, haja visto ser ainda exercida forte dis-
ciplina sobre os cultos e suas práticas. Uma vez criada a referida
Federação, esta passou a reforçar o controle exercido sobre os
terreiros, atuando inclusive ao lado do aparelho repressor esta-
tal335. Apenas em 1981, com a promulgação da Lei Estadual nº
4242/81, foi dispensada a autorização policial para o funciona-
mento dos terreiros na Paraíba.
O primeiro desafio político da Jurema Sagrada é, portanto, o
de existir. A intensa perseguição empreendida contra o Catimbó
desde a era colonial, sem dúvidas, impôs ao mesmo a perda de
muitas de suas tradições, bem como a necessidade de se resig-
nificar para poder sobreviver. Muito embora jamais tenha tido
pretensões de se institucionalizar, constituindo-se desta forma
enquanto um culto marginal, esta tônica provocou por longos
anos um silenciamento da Jurema Sagrada, o que é essencial para
compreendermos a sua colocação à margem das políticas públicas.

33 O controle exercido se dava, sobretudo, no que se refere aos costumes e à rela-


ção dos cultos com a vizinhança, sendo fartos os relatos de intervenção policial
nos Terreiros em função do barulho provocado pelos toques. Vale salientar que
tal repressão se liga intimamente ao período histórico da ditadura militar que
vigia à época. Ainda, Soares (2009) registra que o intenso controle exercido pela
Federação deu causa a diversas cisões, havendo atualmente diversas federações
em funcionamento em todo o Estado.

120
Outro desafio que se impõe é o da sobrevivência da Jurema
enquanto culto, diante da sua convivência com o Candomblé e a
Umbanda, considerados mais refinados ou mesmo civilizados do
que ela. Como afirma Barth (2005), as interações culturais sujei-
tam-se a “processos de controle, silenciamento e apagamento de
experiências”. Neste sentido, é bastante presente a ideia de que a
Jurema deve continuar a ser um culto secundário, quiçá inferior,
muito embora seja por meio dela que os terreiros angariam mais
fieis e dinheiro, uma vez que ela tem um apelo mais popular, e de
melhor assimilação que o Candomblé.
Tal situação tem impactos que vão além das práticas religio-
sas e rituais dos terreiros, influenciando fortemente a forma como
as políticas públicas em direitos humanos tem sido construídas
e aplicadas. Ora, em tempos pós Constituição de 1988, à qual se
seguem o fortalecimento destas políticas públicas e de diversos
instrumentos legais e governamentais, como explicar este delay34
político da Jurema Sagrada?
Para melhor entender este processo de hierarquização das
práticas religiosas afro-ameríndias e a consequente colocação da
Jurema em uma posição de inferioridade, raiz do processo de invi-
sibilidade política da mesma, é necessário compreender as razões
históricas e políticas da afirmação da já mencionada pureza nagô e
as suas consequências na estruturação das políticas públicas.
Daí decorre o terceiro desafio, este de maior complexidade,
embora intimamente ligado – e consequência dos anteriores – que
é: como fazer da Jurema Sagrada sujeito de políticas públicas em direi-
tos humanos? A questão será melhor debatida no tópico a seguir.

34 A expressão diz respeito às situações em que, numa transmissão de rádio ou


TV, existe uma diferença de tempo entre o acontecimento da situação que se
pretende transmitir e a sua chegada, via áudio ou imagem, aos espectadores.
Utilizo a expressão para retratar o fato de que embora haja políticas públicas
voltadas para religiões de terreiro, estas não chegam, ou chegam em menor grau
à Jurema Sagrada, problema central deste trabalho.

121
4. A Pureza Nagô x A Mistura da Jurema: a implantação de
políticas públicas e a luta por reconhecimento

Até por volta dos anos 30 do século XX, o Catimbó estava


junto ao Candomblé e a recém-nascida Umbanda na mesma situ-
ação de marginalidade e perseguição já exposta anteriormente, de
modo que não era raro os seus rituais acabarem nas delegacias
de polícia. Cada um dos cultos, por outro lado, adotou diferentes
estratégias de sobrevivência.
O Brasil à época ainda forjava a sua identidade nacional:
a escravidão acabara de ser abolida e a República proclamada.
O redesenho das estruturas políticas impunha, por outro lado,
a necessidade de uma escrita sobre a história e a formação do
povo brasileiro, em que o papel do negro, que deixara de ser res –
embora com cidadania ainda absolutamente limitada – passou a
ser uma das discussões centrais.
Ainda vigoravam neste tempo perspectivas racistas, oriundas
da literatura médica do século XIX, que procuravam atribuir aos
povos africanos uma inferioridade mental e cultural, e inaptidão
para diversos aspectos da vida cidadã. O Brasil, país fortemente
miscigenado, estas teorias foram amplamente utilizadas para
enunciar e especular a suposta decadência brasileira em função
desta mistura de raças. O branqueamento da população era uma
necessidade inescapável, estando o país fadado ao ostracismo caso
isto não ocorresse.
Nesta perspectiva, ocorre a gradativa substituição do dis-
curso do controle policial pela disciplina médica. Assim sendo,
ocorre a descriminalização das práticas do Candomblé, substi-
tuída pelo seu acompanhamento, notadamente em Pernambuco,
pelo Serviço de Higiene Mental, que irá promover em 1930 o I
Congresso Afro-Brasileiro, importante marco histórico da pers-
pectiva da afirmação de uma pureza nagô.

122
Sob a influência da obra de Gilberto Freyre, que destacava
o papel do negro a formação do Brasil, e seguindo ainda a pers-
pectiva de autores como Ruth Landes, Nina Rodrigues, Edison
Carneiro, Arthur Ramos e, principalmente, Roger Bastide, o
Candomblé é elevado ao status de religião pura, de marca da
resistência do povo negro à inculturação e, portanto, digno de
tratamento superior, em detrimento às macumbas – aí incluso o
Catimbó – que pela sua miscigenação de práticas, seriam cultos
inferiores e degenerados35.
Barros (2011, p. 31) sintetiza esta forma de pensamento:
Ao construir ou apropriar-se da idéia da supe-
rioridade nagô, Bastide traçou uma sofisticada
referência para o Candomblé, como uma reli-
gião de origem africana, possuidora de uma
rica mitologia, com aspectos aglutinadores
de uma religião comunitária e em oposição a
ela, elaborou uma descrição das religiosidades
afro-brasileiras sincretizadas, como degene-
rescência daquela. Ao proceder dessa forma, o
autor formou um campo de estudo que sob sua
influência por muito tempo buscou privilegiar
tradições religiosas que, de certa forma, reme-
teram a esse modelo.

35 Vale mecionar que este pensamento é causador da atribuição de uma hie-


rarquização em que o Candomblé se afirma como superior ao Catimbó não
apenas em função de sua pureza étnica e ritual, mas também em função de
ter o Candomblé uma performance ritualística considerada mais disciplinada,
enquanto na Jurema se constrói uma sacralidade muito próxima do profano: Os
Orixás não falam e o culto é intensamente ligado ao preceito, isto é, à abstinên-
cia temporária de certas práticas como as sexuais. As entidades de Jurema, por
sua vez, falam, bebem, fumam e não negam que “trabalham para o mal”. Esta
dicotomia, já teorizada por Roberto Motta (2008) também é atribuidor de um
status de inferioridade da Jurema, considerando sobretudo a sua análise à luz
de uma moralidade cristã, muito embora seja essa sacralidade profana um dos
principais motivos que fazem da Jurema um culto de maior apelo popular do
que o Candomblé.

123
Para além da atribuição de um estatuto de inferioridade, a
perspectiva da afirmação da pureza nagô, enquanto encampada
pelo Serviço de Higiene Mental, estava voltada ao sufocamento
mesmo das tradições miscigenadas, dentre as quais a Jurema.
Michelle Rodrigues (2014, p. 45), em sua tese de doutorado,
publicada em 2014, a primeira no Brasil a lidar com a questão
da visibilidade política da Jurema Sagrada se pronuncia de modo
enfático sobre esta questão:
O Serviço de Higiene Mental atuava não
somente sobre os indivíduos, mas sobre toda
a população – ou pelo menos a população
das áreas carentes e periféricas de Recife,
aglomerados caracteristicamente compos-
tos por negros e mestiços. Embora Ulysses
Pernambucano tenha se afastado, a priori, da
antropologia psiquiátrica de Nina Rodrigues
quanto ao conceito de raça, o papel da reli-
gião africana continua como tônica de suas
pesquisas sobre as reminiscências negras na
sociedade brasileira. Desse modo, o SHM, por
meio de Ulysses Pernambucano, que conse-
guiu junto ao Secretário da Segurança Pública
a transferência da supervisão sobre as religiões
africanas no país (RIBERIO, 1988), toma para
si a tarefa de investigar as práticas religiosas
como causas de distúrbios mentais, criando,
assim, uma política de controle no que diz res-
peito à medicina social (DANTAS, 1988) e a
segurança pública23. Tendo como espelho a
experiência de Canudos, já observada por Nina
Rodrigues (1939), o SHM se pôs como missão
o combate a formas religiosas que implicavam
em degeneração social e desordem social.

Neste contexto, operou-se a quase que completa invisibili-


zação da Jurema Sagrada ante a sua convivência com a Umbanda

124
e o Candomblé. Embora em todos os estudos consultados36 e
pela minha observação, a Jurema seja o culto mais popular, a pro-
cura e a afirmação de uma identidade mais ligada à Umbanda,
ao Nagô recifense e mesmo ao espiritismo kardecista tornou-se
tanto uma necessidade de sobrevivência quanto uma conveniência
ante ao estabelecimento de disputas de mercado entre os terrei-
ros. A pesquisa de campo permitiu concluir, ainda, que poucos
Terreiros em Campina Grande referenciam entidades de Jurema
em seus nomes, preferindo a identificação com estas outras reli-
giões mediúnicas.
Os impactos desta situação no que se refere à estruturação
de políticas públicas voltadas ao povo de terreiro são evidentes,
uma vez que as mesmas ainda são fortemente indexadas à questão
racial, sobretudo considerando o Candomblé enquanto espaço de
resistência e preservação da memória do povo negro, para além
de suas crenças, incluindo também a tradição oral e a linguagem.
Para o Catimbó, culto essencialmente miscigenado, resta o desafio
de ocupar espaços que justifiquem a sua inclusão nestas políticas,
em uma verdadeira luta por reconhecimento.
Para discutir esta luta política do povo de Jurema, é neces-
sário discutir a teoria do reconhecimento, mas também analisar o
conteúdo dos instrumentos legais que originam e regulamentam
as políticas públicas aplicadas no contexto das religiões de matriz
afro-ameríndias.
Os primeiros marcos normativos a serem analisados são os
contidas na Constituição, que é a base de todo o ordenamento
jurídico. Neste sentido, a atual Carta Magna brasileira, promul-
gada em 1988, é bastante pródiga: além da previsão da laicidade
do Estado, presente desde a Carta de 1891, encontram-se outras
disposições que delineiam uma relação de cooperação entre
as religiões e o poder público, com destaque para a imunidade

36 Motta (2005); Peixoto (2011); Barros (2011); Rodrigues (2014).

125
tributária dos templos religiosos, o ensino religioso e o reconhe-
cimento dos efeitos civis do casamento religioso. Daí decorrem,
ainda, outras disposições, tais como a previsão de recolhimento
à prisão especial do ministro de culto religioso até o trânsito em
julgado da sentença condenatória criminal, contida no artigo 295,
VIII do Código de Processo Penal.
Entretanto, mesmo estas disposições gerais – que sequer
podem ser consideradas políticas públicas stricto sensu – não
encontram aplicabilidade (ou têm dificuldades e retrições para
tal) à Jurema Sagrada. Como exemplos apreendidos a partir de
minha observação, destaco o fato de os terreiros da cidade de
Campina Grande continuarem a pagar impostos como se fossem
apenas residências comuns e, ainda, o fato de um juremeiro da
cidade ter sido preso em cela comum antes que houvesse sentença
definitiva em 2014.
Decorrem daí duas constatações: a primeira diz respeito à
insuficiência da tutela generalista dos direitos humanos, uma vez
que ela não leva em consideração aspectos culturais e identitários
que impõem um tratamento diferenciado que se torna necessá-
rio para a promoção da cidadania daqueles grupos considerados
minoritários, e que sofreram – e continuam a sofrer – uma opres-
são institucionalizada.
Neste sentido, por exemplo, é diferente o conteúdo da
liberdade religiosa para o catolicismo e religiões protestantes
em relação ao Candomblé e a Jurema Sagrada, sobretudo con-
siderando que muitas das políticas direcionadas à promoção da
diversidade religiosa representam verdadeira perda de privilégio
para aquelas religiões, dominantes no cenário político brasileiro.
É importante, ainda, superar a perspectiva essencialista que pauta
a tutela dos direitos ligados à religião, que a trata como mero
exercício da crença, algo essencialmente individual, o que acaba
por deixar de lado a ligação dela com questões raciais, étnicas e
territoriais.

126
A segunda se refere à dificuldade de efetivação destes direi-
tos, muito embora os mesmos já estejam previstos há décadas, e
sequer sejam questionados em sua aplicação às religiões cristãs.
Neste ponto, chega-se à reflexão proposta por Bobbio (1992),
sobre a diferença entre simplesmente prever direitos e garantir a
sua efetividade prática. Aliás, que sentido têm os direitos sem que
seja observado o seu gozo por parte dos sujeitos?
Outros instrumentos legais importantes são a lei nº 9.459/97,
que incluiu no âmbito de proteção da lei nº 7.716/89 a liberdade
religiosa (criando, ainda, a figura da injúria qualificada por ofensa a
elementos de). Ainda, cabe destacar a lei nº 11.345/08, que incluiu
a história e cultura indígena como conteúdo obrigatório nas esco-
las de ensino fundamental e médio, em complementaridade à lei
nº 10.639/03, que o fez no tocante aos temas afro-brasileiros, o
que consiste em base legal para a inclusão de conteúdos que men-
cionem a Jurema enquanto pertença religiosa, numa perspectiva
de ensino religioso voltada à promoção da diversidade, em oposi-
ção à perspectiva confessional37 e, por fim, a lei nº 12.966/14, que
inclui no âmbito de tutela da ação civil pública a defesa da honra
de grupos étnicos, raciais e religiosos.
Todavia, mais uma vez se encontram dificuldades de apli-
cação destes dispositivos mesmo ao Candomblé e, ainda mais, à
Jurema Sagrada, o que evidencia a necessidade premente de se
obter reconhecimento, sendo a partir de qual que decorre o defe-
rimento e a tutela de direitos. O reconhecimento acaba tendo que
se processar também por intermédio das instituições públicas, tais
como o judiciário, o que nem sempre ocorre, tendo sido de conhe-
cimento nacional a sentença da Justiça Federal do Rio de Janeiro

37 O Supremo Tribunal Federal entendeu, no entanto, pela constitucionalidade do


ensino religioso confessional em estabelecimentos públicos.

127
que negou ao Candomblé o status de religião, o que resulta na
negação também de todos esses direitos aqui mencionados38.
Esta situação se deve, em grande parte, ao fato de que o
deficiente reconhecimento que as religiões de terreiro se deu, em
grande parte, não a partir de seu enquadramento como tal, mas
sim enquanto simples manifestações culturais, o que se refletiu,
particularmente na Paraíba, pela participação de terreiros em
exposições folclóricas. Com isso, a efetivação da cidadania reli-
giosa tornou-se mais distante para elas.
Neste sentido, pontua Giumbelli (2008, p. 85):
Embora a base legal contra a qual se conquis-
tou a extensão do reconhecimento do estatuto
de “religião” cobrisse, como se mencionou, os
cultos mediúnicos em geral, o contraste entre
o espiritismo e outras práticas é inegável. Os
espíritas não apenas ficaram menos vulnerá-
veis às incursões repressoras, como também
exercitaram amplamente as prerrogativas civis
concedidas às associações religiosas. Sabe-se
que muitos terreiros de umbanda e candomblé,
por outro lado, não possuem registro em cartó-
rio. Um comentarista, que é também militante,
constata que “na cidade de São Paulo ainda
hoje nenhum templo de candomblé tem asse-
gurada a imunidade tributária, os ministros
não conseguem obter inscrição no sistema de

38 “Começo por delimitar o campo semântico de liberdade , o qual se insere no


espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros. No caso, ambas
manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma reli-
gião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica
e ausência de um Deus a ser venerado. Não se vai entrar , neste momento, no
pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela,
não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religio-
sas afro-brasileiras não se constituem em religiões [...]” (TRF- 2. Processo nº
0004747-33.2014.4.02.5101. !7ª Vara Federal. Juiz Federal Eugenio Rosa de
Araujo).

128
seguridade social e os cartórios se recusam a
reconhecer a validade dos casamentos cele-
brados no candomblé” (Silva Jr. 2007:315).
Mais do que isso: alguns dados e a memória
dos adeptos registram que, em período recente
(anos 1960 e 70), havia exigências de autori-
zação administrativa ou registro policial para
permitir o funcionamento de terreiros. Todas
essas características evidenciam a dificul-
dade que os cultos de possessão de referência
africana encontram para se adequar ou serem
reconhecidos em seu estatuto de “religião”. E
se é possível notar investimentos que buscam
produzir essa adequação e reconhecimento,
também se pode constatar a construção de
uma outra via de presença da religião no
espaço público (grifos meus).

Como anteriormente discutido, as Conferências de Viena e


Durban – esta especificamente acerca de questões raciais – repre-
sentaram importante avanço para a estruturação de políticas
públicas de enfrentamento ao racismo, de onde decorre a sua apli-
cação às religiões de matriz afro-ameríndia.
A Conferência de Durban, especificamente, seguiu a trilha
de Viena, estabelecendo o combate ao racismo como prioridade e
dever dos Estados e da comunidade internacional. A religião foi
amplamente mencionada, tanto como importante traço cultural
dos povos afro e indígenas, o que enuncia uma proteção vincu-
lada à questão racial39, transcendendo, porém, o seu âmbito de
proteção para além do relativo aos povos afrodescendentes, o que

39 “14. Insta os Estados a reconhecerem os severos problemas de intolerância


e preconceito religioso vivenciados por muitos afrodesecendentes e a imple-
mentarem políticas e medidas designadas para prevenir e eliminar todo tipo
de discriminação baseada em religião e nas crenças religiosas, a qual, combi-
nada com outras formas de discriminação, constituem uma forma de múltipla
discriminação”.

129
representa um importante mecanismo que possibilita à Jurema
Sagrada o reconhecimento e a tutela de sua identidade por meio
de políticas públicas.
No Brasil as políticas públicas voltadas à religião também
se inserem no contexto das políticas de promoção da igualdade
racial. Nos três Planos Nacionais de Direitos Humanos já elabo-
rados no Brasil a perspectiva foi a mesma. Os outros principais
marcos legais, a saber: o Decreto nº 4.886/03 que instituiu a
Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial e a Lei nº
12.288/10 representam importante avanço na luta por direitos
e cidadania, porém fecham seu âmbito de tutela às religiões de
matriz africana, sem nenhuma menção aos cultos indígenas, onde
melhor poderia se enquadrar o Catimbó.
Muito embora no campo da hermenêutica possa se esten-
der a sua proteção aos cultos miscigenados, como a Jurema, é
importante que o seu âmbito de tutela inclua expressamente estas
religiões, de modo a propiciar a segurança jurídica à preservação
destas tradições, que não podem ser desprestigiadas, como ocor-
reu a partir da adoção da perspectiva da pureza nagô e da sua
superioridade em detrimento dos outros cultos.
Desta forma, é possível afirmar que se estruturou, no campo
do direito brasileiro, uma cidadania religiosa, consistente na pro-
teção deferida às religiões, a partir da sua separação – ao menos
formal – do Estado, ao lado do reconhecimento de sua impor-
tância na estruturação da vida social. Esta cidadania religiosa, em
nossa percepção, abarca tanto a previsão de garantias jurídicas
como as constantes da Constituição de 1988 quanto a partici-
pação das instituições religiosas no debate político brasileiro,
franqueando-se, portanto, a sua inserção na esfera pública
A proteção às religiões de matriz afro-ameríndia, no
entanto, deve ir além da tutela ligada meramente ao exercício da
crença, visto que a elas estão intimamente ligados outras ques-
tões, sobretudo aquelas pertinentes à identidade cultural e racial

130
afro-brasileira e indígena. Assim sendo, a questão racial e a pre-
servação do patrimônio histórico e cultural dos povos africanos
são elevadas a categorias passíveis de defesa.
Ocorre que a Jurema Sagrada, como já se assinalou reitera-
damente, não é um culto de matriz puramente afro, mesclando
outros elementos culturais em uma síntese própria, que também
merece ser tutelada nesta perspectiva. Outro desafio diz respeito
ao reconhecimento do seu patrimônio cultural como digno de
proteção.
É aqui que entra a importância do reconhecimento
enquanto fator de promoção da cidadania e inclusão social. A
articulação política de juremeiros e juremeiras é essencial para
que este âmbito de proteção deferido às religiões de matriz afro
seja estendido também ao Catimbó, o que passa pela afirmação da
sua identidade enquanto ato político, de modo a dar cacife às suas
reivindicações por direitos (Bauman, 2003).
Neste mesmo sentido, Axel Honneth (2003, passim) eviden-
cia que é esse autorreconhecimento um primeiro passo essencial,
uma vez que
A degradação valorativa de determinados
padrões de auto-realização tem para seus por-
tadores a consequência de eles não poderem
se referir à condução de sua vida como algo
a que caberia um significado positivo dentro
de uma coletividade; por isso, para o indivíduo,
vai de par com a experiência de uma tal desva-
lorização social, de maneira típica, uma perda
de autoestima pessoal, ou seja, uma perda da
possibilidade de se entender a si próprio como
um ser estimado por suas propriedades e capa-
cidades características.

Embora siga em uma perspectiva diferente da adotada por


Axel Honeth e Charles Taylor, Nancy Fraser, a partir de uma

131
perspectiva pós-socialista, teoriza o reconhecimento como uma
categoria que não é contraditória ou oposta à redistribuição,
enunciando, por outro lado, problemas de uma teoria do reco-
nhecimento vinculada inexoravelmente a questões identitárias,
sobretudo quando postas em situação de disputa, isto é, quando
dentro da perspectiva dos direitos de grupo, a ideia da afirmação
de uma identidade exclua de seu pertencimento certos indivíduos.
Almeida (2011, p.39), citando a autora, pontua que:
Assim, a partir de questões de pertencimento e
procedimento, para Fraser (2009), a dimensão
política refere-se, prioritariamente, à questão da
representação. Consequentemente, uma falsa
representação ocorreria “quando as fronteiras
políticas e/ou as regras decisórias funcionam de
modo a negar a algumas pessoas, erroneamente,
a possibilidade de participar como um par, com
os demais, na interação social – inclusive, mas
não apenas, nas arenas políticas” (FRASER,
2009, p.21). Aqueles desprovidos de possibili-
dade de formular reivindicações tornar-se-iam
não-sujeitos em relação à justiça

Portanto, chama-se atenção para a necessidade de estabele-


cer espaços de luta que transcendam a mera afirmação identitária.
Para a Jurema Sagrada a situação descrita acima é bem evidente
quando se nega a ela o estatuto de religião digna de proteção pelos
instrumentos legais destinados à tutela das religiões de matriz
afro-brasileira.
Como alternativa, entendo ser necessária, ao lado da afir-
mação da identidade juremeira, difereciando-a em relação ao
Candomblé e à Umbanda, a ampliação – ou transformação, na
perspectiva fraseriana – dos instrumentos de tutela, o que pode
ocorrer em vários campos, como o político, jurídico e até mesmo
o linguístico. Por exemplo, ao se substituir a expressão “religiões

132
de matriz afro-brasileira” por “povos de terreiro” nos dispositivos
legais que estabelecem políticas públicas em direitos humanos no
contexto religioso, não restam dúvidas acerca da possibilidade de
inclusão da Jurema Sagrada em seu âmbito protetivo.
A articulação política já produziu importantes avanços para
o povo de Jurema. Em Pernambuco, por exemplo, a mobilização
levou à conquista materializada na Lei Estadual nº 13.298/07,
que instituiu a semana estadual da vivência e prática da cultura
afro-pernambucana, em que a Jurema Sagrada assume papel cen-
tral, tanto por ser considerado o destaque às vivências locais de
religiosidade afro-ameríndia, quanto pela elevação da figura de
Malunguinho, líder do Quilombo do Catucá e divindade cultu-
ada pela Jurema à elemento central do resgate e preservação do
patrimônio histórico destas religiões.
Na Paraíba, ainda há muito a se avançar. Todavia, em 2009,
foi conseguido o tombamento do Sítio do Acais, no município de
Alhandra, referência territorial para todos os praticantes do culto
da Jurema Sagrada, dada a importância da tradição juremeira ali
iniciada. Merece destaque, também, a participação de juremeiros e
juremeiras em órgãos representativos, como conselhos municipais
de juventude, educação e igualdade racial que, a despeito de suas
limitações práticas, sinalizam para um maior reconhecimento da
Jurema como manifestação religiosa, sem dissociá-la das questões
étnico-raciais.

5. Conclusão

Como visto, é possível que a Jurema Sagrada rompa as amar-


ras da invisibilidade e se constitua enquanto sujeito de direitos,
sobretudo numa perspectiva de proteção às religiões de matriz
afro-ameríndia que vá além de uma tutela generalista e essencia-
lista, contemplando também aspectos raciais e de preservação do
patrimônio histórico, artístico e cultural.

133
Entretanto, dentre os muitos desafios, encontra-se o do
reconhecimento, sobretudo em relação à instituição de polí-
ticas públicas voltadas às religiões de matriz afro-ameríndia.
Necessário, portanto, estabelecer meios que enquadrem a Jurema
como passível de proteção por meio destes instrumentos.
Todavia, entendo ser necessária a ampliação destes critérios.
Por exemplo, os terreiros deixaram de ser um espaço de resis-
tência apenas do povo negro – a Jurema Sagrada, por exemplo,
nunca teve neste aspecto uma preocupação política central, o que
poderia justificar um tratamento secundário, evidenciando a insu-
ficiência deste critério – se constituindo hoje como um território
no qual outras identidades e sujeitos subalternos, como mulhe-
res e LGBTs não apenas resistem, como se empoderam. Pautar
esta diversidade dentro dos terreiros – uma diversidade dentro da
diversidade – é outra injunção.
No campo da operacionalização prática há outro desafio:
interiorizar as políticas públicas. Especificamente na Paraíba veri-
fica-se uma dificuldade de fazer chegar aos municípios do interior
do Estado políticas que já encontram razoável aplicação na capi-
tal e região metropolitana, bem como de representação política
junto às instâncias e órgãos de representação. Resolvidas estas
questões, enfim, poder-se-á, enfim, ter um panorama político em
que a invisibilidade da Jurema Sagrada seja superada.

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134
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139
A DEFICIÊNCIA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA:
DA ANIQUILAÇÃO DA DIFERENÇA AO MODELO DE
INCLUSÃO SOCIAL PELO ACESSO AOS DIREITOS
HUMANOS

Gustavo Giorggio Fonseca Mendoza40


Glauber Salomão Leite41

Introdução

O
presente trabalho analisa o modo como a deficiência foi
explicada e valorada no curso da história. Com isso, afere
a evolução das respostas sociais e estatais conferidas ao
tema.
Na primeira parte, descreve, ainda que de forma resumida,
como a deficiência foi concebida em diferentes momentos da his-
tória humana. E, na segunda, a partir dos estudos sobre deficiência,
discorre sobre os modelos teóricos e suas implicações concretas
nas explicações sobre a matéria, a saber: modelo de prescindência,
modelo biomédico ou reabilitador e o modelo social.

40 Mestre em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa/UNIPÊ.


Especialista em Direito Empresarial pelas Faculdades Metropolitanas Unidas
– FMU/SP. Professor do Centro de Educação Superior Reinaldo Ramos/
CESREI. Advogado.
41 Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo/PUC-SP. Professor do Programa de Mestrado e da Graduação
em Direito do Centro Universitário de João Pessoa/UNIPÊ. Professor
da Universidade Estadual da Paraíba/UEPB e da Faculdade Integrada de
Pernambuco/FACIPE.

141
A partir dessas premissas, analisa a abordagem que está
sendo conferida à questão atualmente, no Brasil, e o modo como
a exclusão social das pessoas com deficiência vem sendo tratada.
Trata-se de pesquisa exploratória, pautada na análise de
material bibliográfico já produzido sobre o tema. Com isso, o
artigo focou o disposto em livros, artigos científicos e legislação
sobre o assunto, revelando-se, assim, pesquisa eminentemente
dogmática.

1 Pessoas com deficiência na Pré-história e na Antiguidade

Ao longo da história, a forma como as sociedades lidaram


com as pessoas com deficiência evoluiu. Foi desde a eliminação
dessas pessoas até a luta pela plena inclusão social. Nesse percurso,
Flávia Piovesan (2009) considera a existência de quatro fases: a
primeira, marcada pela intolerância; a segunda, pela invisibili-
dade; a terceira, pelo assistencialismo; e a fase atual, com foco nos
direitos humanos e na inclusão plena.
As duras condições do meio ambiente e a difícil luta pela
sobrevivência fazem acreditar que os indivíduos com algum tipo
de deficiência, durante a Pré-história e a História Antiga, eram
eliminados ou abandonados à sua própria sorte. Ainda assim, exis-
tem alguns indícios de tentativas de reabilitação desses indivíduos,
o que mostra que alguns tenham sido poupados do extermínio.
No Egito Antigo, embora a prática do infanticídio em
crianças com deficiência fosse muito frequente, também existem
evidências de tentativas de tratamentos de doenças congênitas.
Em uma múmia da V Dinastia (2.500 a.C.), foi encontrada uma
fratura de membro inferior com uma faixa imobilizadora. Um
baixo relevo da época mostra um sacerdote com uma perna com
musculatura diminuída, em consequência de possível poliomie-
lite, apoiado em uma muleta.

142
Entre os hebreus, a deficiência era considerada um castigo
por pecados. Porém, o infanticídio era proibido, embora os indiví-
duos com deficiência não pudessem exercer os ofícios sacerdotais.
Embora não pudessem apresentar-se para oferecer sacrifícios
ou o pão ao seu Deus, não estavam totalmente alijados das coisas
sagradas: “Mas podem comer o pão de seu Deus, proveniente das
ofertas santíssimas e das ofertas santas” (LEVÍTICO, 21:22). A
economia hebréia, baseada na agricultura e na criação de gado, dava
a oportunidade a que pessoas com deficiência pudessem trabalhar
plantando ou exercendo o pastoreio, o que lhes conferia certo valor.
Na Grécia clássica, dois aspectos são importantes na consi-
deração da deficiência: o ideal de beleza, de saúde, e o início de
uma medicina técnica. Inaugura-se uma medicina fundamentada
no equilíbrio dos humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis
negra, procedentes, respectivamente, do coração, do sistema res-
piratório, do fígado e do baço.
A saúde era o resultado do equilíbrio, a Eucrasia, entre os
humores e a doença. O contrário era a Discrasia, o desequilíbrio.
As doenças na Grécia Clássica eram o resultado de causas natu-
rais. O culto à saúde e à beleza determina a prática de eliminação
daqueles que não cumprem os padrões estabelecidos, principal-
mente na cidade de Esparta.
Conhecida por seu poderoso exército, composto por solda-
dos perfeitos, que eram, geralmente, separados dos pais aos sete
anos de idade para receber treinamento militar, descartava, por
decisão do Conselho de Anciãos, as crianças que estivessem fora
dos padrões de perfeição exigidos (GUGEL, 2007). A eliminação
era defendida, inclusive, pelos notáveis que pensavam a sociedade
Grega, como Platão e Aristóteles, por exemplo.
Porém, é em Roma que a mendicância aparece como ofí-
cio e prática de aumentar deliberadamente as deformidades. A
finalidade de despertar a compaixão se iniciou, paralelamente, à
utilização das crianças com deficiência com esse mesmo objetivo.

143
As dificuldades para administrar a grande extensão do
Império Romano, o esgotamento do expansionismo militar,
a escassez de mão de obra escrava, as mudanças provocadas na
sociedade pelo cristianismo (que não aceitava a divindade do
imperador), as ameaças das invasões bárbaras, e outros aconteci-
mentos, iniciaram a crise do Império Romano, que culminou com
sua derrocada. A população migra para o campo, onde se refugia
em fortificações. A sociedade se ruraliza, a terra é a principal fonte
de riquezas e a Igreja assume um papel hegemônico em relação
à vida de todos. Deus e o Demônio passam a nomear todos os
aspectos da vida de um mundo politicamente fragmentado, cuja
única força unificadora é o cristianismo.
Trata-se de um mundo pobre e, embora o infanticídio fosse
proibido pelo cristianismo, as pessoas com deficiência se constitu-
íam em fonte de renda nas exibições públicas. Elas eram confinadas
ou utilizadas como forma de manipulação de interesses, ao mobi-
lizar a culpa imaginária de famílias, já que se considerava a pessoa
com deficiência como produto dos pecados cometidos pelos pais.
Essas pessoas eram separadas do resto da sociedade e colocadas
em vários tipos de guetos.
A segregação de pessoas com deficiência e com doenças
mentais é um exemplo de confinamento em grande escala, só
comparável com o confinamento dos leprosos.
No ano 583, a Assembleia dos Bispos de Lyon decidiu criar
os leprosários. Porém, a grande exclusão se deu na Idade Média.
Uma vez diagnosticado por um médico, sacerdote ou até por um
barbeiro, era emitido decreto em que se declarava que o indiví-
duo era leproso. O sintoma fundamental para que se emitisse esse
decreto era a desfiguração do rosto pela doença, embora muitas
pessoas fossem internadas pelo simples fato de que alguém afir-
masse que eram leprosas.
Uma vez diagnosticada, a pessoa era levada à Igreja por
um sacerdote, onde se deitava sobre um lençol negro, como se

144
estivesse morta, e assistia a missa pela última vez. Terminada a
homilia, era levada à porta da igreja, onde o sacerdote proferia
as seguintes palavras: “agora morres para o mundo, mas renas-
ces para Deus” e lhe entregava um capuz marrom ou cinza, uma
matraca, um caneco, dois lençóis, uma bengala, uma faca e um
prato. Ao mesmo tempo, ela era informada sobre todos os lugares
que não poderia frequentar e os comportamentos que passaria a
adotar, todos com a finalidade de não contaminar as pessoas das
aldeias por onde passasse (PEREZ DE CELLIS, 2003).
Nesse período, a lepra volta a ser o resultado de um castigo
pelos pecados cometidos. Entretanto, quando os Cruzados con-
traíram a doença, ela deixa de ser pecado para se converter em
uma enfermidade santa. É possível que muitos desses cruzados
não tivessem lepra, mas sim sífilis. Ainda assim, os leprosários se
multiplicaram na Idade Média.
A posição da sociedade em face dos leprosos, assim como da
deficiência, foi marcada pela ambivalência. Embora não contribu-
íssem com a sociedade, entendia-se que todas as pessoas, inclusive
aquelas com deficiência, cumpriam os desígnios de Deus e tinham
uma missão a desempenhar. No contexto da divisão ocupacional
da vida corporativa, estavam inseridos como mendigos que espe-
ravam pelas riquezas supraterrenais e a caridade dos ricos.
Ainda assim, o tipo de economia da sociedade medieval
permitia que algumas pessoas com certas deficiências pudessem
realizar algum tipo de trabalho. Porém, na maioria das vezes, na
condição de escravos.
Grandes epidemias, guerras, invasões e cruzadas provocaram
o aumento no número de pessoas com limitações funcionais de
todos os tipos, o que trouxe consigo consequências, no mínimo,
ambivalentes. Por um lado, a mendicância e a proteção da Igreja
se converteram na melhor oportunidade de subsistência. Mas, por
outro, o grande número de pessoas com deficiência, e a ameaça
social que constituíam, acabavam por gerar acusações de bruxaria

145
e de possessão demoníaca. Laís Vanessa Carvalho de Figueiredo
Lopes mostra que:
Na Europa feudal e medieval, muitas pessoas
com deficiência passaram a ser aceitas como
parte de grupos para trabalhar nas terras ou
nas casas de famílias. Mas sempre quando
tinha alguma praga, elas eram culpadas pelo
mal social. Como reação, milhares de pessoas
com deficiência vagavam em penitência para
ganhar as chagas ocasionadas na sociedade.
Algumas acreditavam que com isso consegui-
riam apagar a sua característica. Predominava
o horror de ser diferente, pois poderiam ser
acusados de males com os quais não tinham
nenhuma relação, dentre as quais a magia
negra e a bruxaria – prática que os protestan-
tes categorizavam e abominavam (LOPES,
2007, p.43).

Com o advento da Idade Moderna – que muitos historia-


dores situam entre a tomada de Constantinopla pelos Turcos, em
1453, e a Revolução Francesa, em 1789 – encontramos indícios de
uma nova forma de abordagem da deficiência. Essa se consolidará
depois da Primeira Guerra Mundial, principalmente com a cria-
ção de normas legais que se referem à elaboração de reabilitação
das pessoas.
Durante o Renascimento a medicina produziu grandes
avanços, pressionada pela necessidade de tratamento de uma
grande quantidade de feridos nas Cruzadas. Ambroise Paré criou
uma técnica para ligar as artérias nos amputados. Na Alemanha,
criaram-se as próteses e aparelhos ortopédicos que representa-
ram um avanço na liberdade e na integração dos indivíduos com
deficiência.
Com a Revolução Industrial, houve enorme divisão social do
trabalho, em que os detentores dos meios de produção contratavam

146
somente aqueles considerados aptos para gerar riquezas através de
jornadas de trabalho longas e em péssimas condições. O trabalho
insalubre e exaustivo transformava indivíduos sadios em pessoas
doentes. Nesse sentido, pode-se dizer que a economia capitalista,
tão necessitada de mão de obra, aumentava o número de pessoas
incapazes ou com capacidade diminuída para o trabalho.
Tais pessoas eram vistas como um fardo, por não estarem
aptas para o trabalho.
Apenas em meados dos anos 70, do século XX, a deficiência
passa a ser reconhecida como uma questão de direitos humanos.
Somente a partir desse momento, portanto, começam a ser for-
muladas políticas voltadas à inclusão social dessas pessoas e o
acesso a direitos considerados essenciais a uma vida digna.

Evolução dos modelos sobre a deficiência

O pintor surrealista belga René Magritte (1898-1967) escre-


veu abaixo de seu quadro “A Traição das Imagens”, em que se vê
um cachimbo: “Ceci n’est pas une pipe”. Ele chamou atenção para o
fato de que aquilo não é um cachimbo, mas, sim, a representação,
um modelo de cachimbo.
Da mesma forma, podemos entender os modelos teóricos.
Eles não são a realidade, mas uma abstração redutora, o resultado
de um recorte da realidade na qual ressaltamos características.
Essas, desde nossa perspectiva, são importantes definidoras do
objeto. Assim, ignoramos outras que, desde nosso ponto de vista,
são secundárias e não definidoras.
Dessa maneira, vemos que os modelos sejam contingentes
ao momento histórico. Porém, ao mesmo tempo, contribuem para
a construção da história, na medida em que oferecem o suporte
para as ideias e ações que se formam em torno do modelo.
Puig de la Bellacasa (1990) considera a existência de três
modelos na compreensão da deficiência: um modelo associado

147
a uma visão animista clássica, associada ao castigo divino ou à
intervenção do demônio; um segundo modelo em que prevalece
a intervenção médico-profissional sobre a demanda do sujeito; e,
por último, um modelo que tem como paradigma a autonomia
pessoal e a conquista de uma vida independente, como objetivo
básico.
Nessa mesma linha de raciocínio, Agustina Palácios (2008),
em trabalho sobre deficiência, apostila a existência de três mode-
los em sua abordagem. São eles: o modelo da prescindência, o
modelo reabilitador e o modelo social.
A definição histórica de tais modelos permite esmiuçar
como a deficiência foi enxergada ao longo da história, ao mesmo
tempo em que delineia as eventuais respostas da sociedade e do
Estado ao problema da exclusão social vivenciada pelo enorme
grupo populacional composto dos indivíduos com alguma limi-
tação funcional.

2.1 O modelo da prescindência

A noção de ser humano na Antiguidade era muito distinta


da que hoje utilizamos. Fustel de Coulanges, um dos mais famo-
sos historiadores franceses, publicou, em 1864, a obra intitulada
“Cidade Antiga”. Nela, ele mostra como a religião e o culto esta-
vam na base de todas as instituições. Sendo assim, a origem de
todas as cidades era também religiosa. A religião, que havia dado
origem ao Estado, dele recebia a sustentação como forma de man-
ter-se a si mesmo. O indivíduo, então, pertencia ao Estado e, como
tal, estava obrigado a defendê-lo em quaisquer circunstâncias.
A sociedade necessita da disputa de seus membros nos mais
distintos trabalhos para sobreviver. Aqueles que não eram capa-
zes de exercer alguma função eram considerados prescindíveis. A
sociedade não pode prescindir do trabalho, mas pode prescindir
do indivíduo que não o realiza, que não contribui para a vida da

148
comunidade e que, em função de sua incapacidade, necessita que
outro o ajude.
Por outro lado, o indivíduo com deficiência trazia em si
uma mensagem diabólica e suas desgraças faziam com que suas
vidas não merecessem a pena ser vividas. As práticas eugênicas e
o isolamento social constituíam-se nas formas como a sociedade
prescindia desses indivíduos. “La sociedad decide prescindir de las
personas con discapacidad, ya sea través de la aplicación de políticas
eugénicas, ya sea situándolas en el espacio destinado para los anormales
y las clases pobres” (PALACIOS, 1988, p. 46).
Entretanto, como antes referido, desde o advento do cristia-
nismo, começou-se a pensar sobre a existência de uma alma em
cada indivíduo, apesar de suas diferenças, ainda que persistissem
dúvidas quanto a isso em vários setores da Igreja. Em consequ-
ência disso, as práticas infanticidas começaram a ser condenadas,
embora as deficiências das crianças continuassem a ser considera-
das o resultado dos pecados dos pais.
Durante a Idade Média, a marginalização desses indivíduos
permitiu à igreja o exercício da caridade. Tal ação significa que
tinham esse papel social que talvez pudéssemos traduzir como
expiação da Igreja por seus próprios pecados.
Durante a Baixa Idade Média, a caridade deu lugar à exclu-
são e à perseguição, fruto das modificações sociais causadas pelas
guerras e pelas epidemias, que trouxeram como consequência o
aumento de pessoas com deficiência com todos os problemas de
natureza social consequentes. Esse é um período em que o demô-
nio está presente em tudo àquilo que representa a diferença e as
pessoas com deficiência, principalmente os que manifestam essa
diferença na dimensão psíquica. Esses passaram a ser filhos do
pecado e de Satã.
Ideias e práticas antigas convivem com uma nova visão de
mundo em períodos históricos que se sucedem. No início do
Renascimento, dois monges Beneditinos, Heinrich Kramer e

149
Jacobus Sprenger, em 1487, escrevem o Malleus Maleficarum. A
obra estabelece, entre outras “evidências” de possessão demoníaca,
a falta de resposta do indivíduo aos tratamentos da época.
Como acontece até hoje, o destino dos indivíduos não estava
marcado apenas por sua deficiência, mas era matizado por perten-
cer a uma determinada classe social. Um exemplo paradigmático
é a do Imperador Cláudio. Apesar de sua deformidade, ocupou o
posto mais alto em Roma. Na Grécia, pessoas que nasciam cegas
exerciam muitas vezes o papel de “interpretadores de sonhos” e
ganhavam seu próprio sustento indo de casa em casa oferecendo
esse trabalho, que era muito valorizado.

2.2 O Modelo Biomédico ou Reabilitador

As profundas transformações na vida econômica, política,


social e cultural que aconteceram a partir do século XV foram
modelando o que seria chamado de Modernidade. Porém, deve-se
advertir que muitos aspectos da cosmovisão prevalente na Baixa
Idade Média persistiram durante algum tempo.
Os estudos científicos tiveram um grande impulso, surgindo
um grande interesse pela astronomia, matemática, medicina, física,
botânica, zoologia, entre tantos outros campos de pesquisa. Para
construir sua independência, ainda que hoje sabemos relativa, a
ciência teve que se desvincular da religião cujo caráter dogmático
impedia seu desenvolvimento.
O corpo e suas relações com o mundo, que até então haviam
sido ordenadas desde os polos divindade/malignidade, são reor-
ganizados em bases científicas. Mas, embora a perspectiva médica
tenha aparecido com a Modernidade, somente no século XVIII,
com o desenvolvimento da ciência dita moderna, esse modelo foi
consolidado.
Nessa perspectiva, a deficiência é vista como uma realidade
intrínseca ao indivíduo. É entendida como uma “deficiência

150
corporal, mental ou física”. É uma reação lógica e natural do
corpo a uma determinada lesão e que tem como consequência
uma limitação em sua participação social.
Tal modelo segue a lógica da causa e efeito: uma doença ou
trauma causa uma deficiência orgânica e funcional; o resultado é
uma incapacidade para a pessoa, que instrumentaliza o que virá a ser
chamado Modelo Biomédico ou Reabilitador. A deficiência resul-
tará em desvantagem social. É, portanto, claramente o resultado de
condições individuais que devem ser abordadas clinicamente.
As intervenções propostas são curativas e, em última ins-
tância, visam curar a pessoa ou pelo menos possibilitar sua
reabilitação para a sociedade. No plano legislativo e político, as
soluções propostas envolvem sistemas de compensação, como o
seguro de invalidez, que avalia a deficiência em termos de perda
de ganhos devido a uma limitação pessoal.
É importante lembrar que a grande expansão do modelo
biomédico ou reabilitador se desenvolve no contexto da Primeira
Guerra Mundial e se consolida depois da segunda. Henry-Jacques
Stiker, em seu livro A History of Disability (1977), situa o surgi-
mento da noção de “reabilitação dos deficientes” (uma noção que
está na raiz do modelo individual) nas cinzas da Primeira Guerra
Mundial. Esse evento trouxe uma ruptura na forma de conceber o
que então era referido como “enfermidade”. A guerra é uma catás-
trofe e como Stiker (1977) ressalta: “um desastre não gera desvio.
Uma catástrofe está se desenrolando” (STIKER, 1997, p. 128).
A sociedade, portanto, tem uma obrigação moral para a
guerra desativada: os ferimentos devem ser curados, os membros
perdidos são substituídos e as feridas devem ser cicatrizadas para
“reintegrar” as pessoas. Todos os esforços se orientam no sentido
de reconduzir o indivíduo com deficiência ao cotidiano que sem-
pre lhe foi comum.
Todavia, essa “reintegração” está baseada na cura da “enfer-
midade”, vez que a deficiência é concebida como um problema

151
de origem médica e de cunho individual, afeito tão somente à
pessoa com alguma limitação funcional. Os problemas relativos
à deficiência, portanto, não são traduzidos a partir de um quadro
de exclusão social.
De certa forma, a abordagem médico-reabilitadora pretende
diluir as diferenças, fazendo-as desaparecer no todo social homo-
gêneo. Stiker (1977) identifica, através dessas novas noções de
“reintegração” e “reabilitação”, uma mudança profunda na gestão
da diferença pela sociedade. Nessa perspectiva, não se trata de
uma sociedade baseada na igualdade, mas, sim, na identidade “no
sentido de ser a mesma” (STIKER, 1977, p. 155), o que inevita-
velmente leva à negação da alteridade.
Ao patologizar a deficiência, mediante a necessidade de ade-
quação daqueles que tinham alguma disfunção do corpo ou da
mente aos padrões sociais de “normalidade”, o modelo reabilita-
dor acabou por estigmatizar todos os que estivessem fora desse
modelo de ser humano “standard”.
Ficava, dessa forma, estabelecido um padrão de normalidade
ao que se necessitava alcançar através da cura e da reabilita-
ção. A pessoa com deficiência deixa de ser alguém de quem se
possa prescindir, passando a ser visto como um indivíduo com
uma patologia que deverá ser objeto de atenção médica, “a quem
é imprescindível reabilitar física, psíquica e sensorialmente”
(PALACIOS, 2007, p. 15).
É importante registrar que, sob esse modelo, a pessoa com
deficiência não era concebida enquanto sujeito de direitos, mas
tão somente como alguém merecedor de caridade e de políticas
assistencialistas.
A despeito disso, a consolidação do modelo médico, sem
dúvida, representou um avanço quando comparado ao modelo de
prescindência, por estar assentado em uma base científica e não
religiosa, e por ter promovido a ampliação da cobertura assistencial
a todos aqueles que tinham uma deficiência, independentemente
de sua origem causal.

152
2.3 Modelo Social

Um novo paradigma na abordagem da deficiência considera


que suas causas são de natureza social. Se as circunstâncias de
uma determinada enfermidade são biológicas, a deficiência é uma
construção social, consequência da ausência de políticas destina-
das à remoção das barreiras que impedem a plena inclusão do
sujeito.
A guisa de esclarecimento, o termo “paradigma” foi utilizado
por Thomas Kuhn (2007) para se referir ao “conjunto de crenças,
valores e técnicas comuns a um grupo que pratica um mesmo tipo
de conhecimento”. Essas crenças, valores e ideias, durante algum
tempo, se mostram capazes de resolver as questões pertinentes a
um determinado tema, até que o surgimento de novas evidências
coloca em cheque o paradigma vigente que não consegue mais dar
conta da realidade.
Na década de 1960, surgiram muitos movimentos sociais,
em vários lugares do mundo. Esses tinham em comum denún-
cias de marginalização, discriminação e reivindicações de grupos
minoritários – mulheres, negros, homossexuais – de que se lhes
reconhecessem sua identidade, seus direitos de cidadania e se lhes
respeitassem as suas dignidades. Tais movimentos surgem margi-
nalizados, ante o olhar assustado de uma tradição que pressente a
derrocada de toda uma forma de viver, que não encontra mais em
suas próprias convicções as respostas para as realidades emergentes.
Multiplicam-se, assim, os questionamentos à cultura, ao
comportamento que maltrata, esgota e contamina a terra e ao
consumismo destrutivo. Pouco a pouco, eles vão causando a
erosão dos paradigmas até então vigentes. Nesse contexto, come-
çam a surgir críticas contundentes, por exemplo, ao modelo de
tratamento psiquiátrico baseado na violência, no isolamento e
afastamento de suas relações sociais.
Nos Estados Unidos, um grupo de pessoas com deficiên-
cia protagoniza um movimento chamado Independent Living

153
Movement (Movimento de Vida Independente). Ele rechaçava o
isolamento em instituições, a submissão a programas de reabilita-
ção, a medicalização e a ideia de que o trabalho era a única forma
de integração social. No centro de seus objetivos, preconizava-
se que cada pessoa é capaz de tomar as rédeas de sua existência,
administrando sua própria vida. Nessa perspectiva, a questão dos
direitos humanos surge com os argumentos oportunos para resga-
tar a pessoa com deficiência de seus limites, conduzindo-a a uma
posição de ator social.
Assim, percebe-se que o modelo médico reabilitador preten-
dia a cura e adaptação do indivíduo ao meio social. Valendo-se,
para isso, da educação especial, das quotas laborais e dos serviços
de assistência institucionalizados. Já o novo modelo, social, supõe
o entendimento de que, apesar de existirem aspectos que dizem
respeito às próprias condições biomédicas do indivíduo, a catego-
ria “pessoa com deficiência” pertence a outra dimensão de análise:
a dimensão da relação do indivíduo com a sociedade.
A lesão do corpo não explica o fenômeno social e político
das condições de subalternidade das pessoas com deficiência.
Como lembram Luciana Bampi et al. (2010, p. 32): “Explicar que
a situação de opressão sofrida pelos deficientes é devida às per-
das de habilidades, provocadas pela lesão, é confundir lesão com
deficiência”.
Dessa maneira, vemos que as causas que originam a defi-
ciência não são as mesmas que originaram a condição médica.
Enquanto, por exemplo, a causa da poliomielite é o poliovírus
(ainda que condições sociais também possam facilitar sua pato-
gênese), a causa da deficiência são as omissões da sociedade em
assegurar ao indivíduo que suas necessidades sejam levadas em
consideração na organização social e na prestação de serviço.
Sob esse ponto de vista, as desvantagens sofridas no coti-
diano pelas pessoas com limitações funcionais são fruto, não de
tais disfunções do corpo ou da mente, mas das barreiras físicas,
comportamentais, culturais e econômicas impostas pela sociedade.

154
Assim, as respostas para a alteração desse quadro de exclusão
social passam necessariamente pela supressão de tais barreiras e
não pela adequação da pessoa com deficiência.
É reconhecer que as mudanças devem ser implementadas no
meio social e não na própria pessoa, mediante a percepção de que
a deficiência não é uma questão de natureza médica individual.
E, ao basear a deficiência em barreiras estruturais, impõe-
se ao Estado e a toda a sociedade o dever de suplantar tais
obstáculos.
O grande e qualitativo salto da abordagem social da defi-
ciência está em superar sua ideia de enfermidade, que deve ser
tratada para se adaptar à sociedade existente. O modelo social
ultrapassa a ideia de que a sociedade esgota suas responsabilida-
des na medida em que lhes oferece tratamento médico e auxílios
sociais para enfrentar a desvantagem social.
(...) devido a que a sociedade construiu um
entorno preparado somente para um deter-
minado padrão de pessoas, com determinadas
características, e para solucionar esse estado
de coisa deve-se reconhecer os direitos de
igualdade e de não discriminação também das
pessoas com deficiência; trata-se de conseguir,
consequentemente, que seja a sociedade a que
se adapte para dar espaço a todo tipo de pes-
soas (MALDONADO, 2013, p. 45).

Portanto, a deficiência deixa de ser um atributo pessoal para


ser a síntese de múltipla determinação em que características físi-
cas ou psíquicas são consideradas como próprias da diversidade
humana. As limitações, que antes eram atribuídas exclusivamente
às condições físicas ou psíquicas do indivíduo, são, na verdade,
consequentes às barreiras impostas pela sociedade. Tais barreiras
se materializam em obstáculos arquitetônicos, ambientais, atitu-
des discriminadoras, excludentes e que reproduzem as condições
de assimetria e desigualdade existentes na sociedade.

155
Dessa forma, o modelo social transfigurou a forma de olhar
a deficiência. Essa passou a ser vista, não como um problema pró-
prio, mas, sim, como uma construção social. Tal modelo permite
que, além de se levar em conta a falha sensorial, motora ou psí-
quica, seja considerado o grau de dificuldade/impedimento para
sua inclusão social, a variar de acordo o nível de comprometi-
mento da deficiência física, motora e mental da pessoa e ao tipo
de sociedade em que o indivíduo vive (MADRUGA, 2013).
Nesse sentido, Débora Diniz et al. (2007) afirmam que:
Deficiência é resultado de uma interação com-
plexa das pessoas com a sociedade. Em um
ambiente hostil à diversidade corporal, é pos-
sível imaginar uma pessoa com restrições leves
de habilidades que experimente a deficiência
de forma severa. A mesma restrição de habili-
dade em um ambiente receptivo à diversidade
não pode levar à experiência da deficiência
(DINIZ, 2007, p. 3).

Essa nova compreensão exige um grande trabalho no sentido


de tornar visíveis as pessoas com deficiência junto à elaboração
de políticas emancipadoras. Essas assim serão na medida que
contemplem estratégias, não apenas de prevenção ou de compen-
sação, mas de plena participação de todos através da remoção de
quaisquer tipos de barreiras.
Jorge Maldonado (2013) considera que o deslocamento do
problema da deficiência do indivíduo para a sociedade supõe,
necessariamente, que ele tenha que ser contextualizado cultural,
geográfica e historicamente. Declara, ainda, que o dano à pessoa
se constitui apenas em parte da questão cuja resolução supõe uma
intervenção sobre a sociedade que deverá remover todas as formas
de barreiras que impeçam o desenvolvimento das capacidades dos
indivíduos. Dessa forma, percebe-se que as barreiras culturais
sejam o alicerce para a consolidação dos obstáculos tangíveis.

156
Na abordagem da pessoa com deficiência, o corpo, a família
e a sociedade devem ser vistos de uma nova perspectiva. No corpo
são as possibilidades, as capacidades, as habilidades que devem ser
ressaltadas e potencializadas, e não os limites, as impossibilidades.
O trabalho junto à família deverá ser de resolução do luto e des-
construção da identificação do outro como incapaz. No que tange
à sociedade, ao meio ambiente, esse deverá propiciar elementos de
equidade que possibilitem o pleno desenvolvimento das capacidades.
A nova formulação teórica sobre a deficiência resgata a ideia
de Direitos Humanos e Direitos de Cidadania, ambos emoldura-
dos pelo princípio inarredável da dignidade humana. Enquanto o
modelo médico tenta a reabilitação do indivíduo, aqui é a sociedade
que necessita ser reabilitada para que se adapte às necessidades de
todas as pessoas. Significa entender que a normalidade não existe
como fato natural, mas é uma complexa construção cultural. E é
precisamente a partir dessa “normalidade construída” que a defi-
ciência se define:
(...) a partir de la carencia, de la falta, de la dife-
rencia, enfatizando los déficit, los límites, aquello
que les falta a las personas, como expresión de una
ruptura con el ideal de completud de lo humano
(VALLEJOS, 2005, p.33).

A reabilitação, eixo do modelo médico, tem como objetivo


diluir as diferenças, aproximando o indivíduo ao padrão da “nor-
malidade”. Disso depende a possibilidade de gozar de direitos em
condições de igualdade a todas as pessoas. Ao contrário, a defi-
ciência, vista desde a perspectiva da diversidade, supõe um salto
importante, desde direitos e liberdades fundamentais como abs-
tração à aplicação real desses direitos às pessoas com deficiência.
E mais, supõe o reconhecimento de que sempre surgirão novas
necessidades e, portanto, o ordenamento jurídico deverá propiciar
condições de adaptação constante a essas necessidades.

157
É que, em termos práticos, os obstáculos sociais à inclusão
das pessoas com deficiência geram, como resultado, a falta de
acesso a direitos considerados essenciais ou a diminuição desse
mesmo acesso.
Uma resposta a essa questão, passa, necessariamente pela
implementação de medidas que assegurem às pessoas com defi-
ciência os mesmos direitos humanos assegurados ao restante da
população. A inclusão supõe, assim, igualdade de direitos e não a
adoção de simples políticas assistencialistas.
Além do desenvolvimento teórico que teve lugar durante os
últimos anos, o modelo social da deficiência necessitou, e con-
tinua necessitando, de um corpo normativo que lhe dê suporte
para sua plena e eficiente aplicação. O desenvolvimento pleno e a
democracia têm, na tolerância e no respeito à diversidade, sua base
e, no bem-estar dos indivíduos, sua principal meta. Assim, todo
questionamento sobre a deficiência (des)vela o tipo de sociedade
que pretendemos construir.
Um divisor de águas nesse sentido foi a aprovação, em 2006, da
Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Trata-se, até hoje, do diploma internacional mais relevante no
tocante à promoção dos direitos desse grupo populacional. E isso
por um motivo bastante simples: foi esse o tratado internacional
que consolidou, no plano normativo, o modelo social de deficiência.
Destaque-se que o Brasil não apenas é signatário do tratado, como
o incorporou ao direito interno, em 2008, por meio do Decreto
Legislativo 186, de 9 de julho. Com isso, a Convenção passou a
vigorar em nosso país com status de emenda constitucional.
A Convenção não criou novos direitos, na medida em que, a
rigor, teve como norte a afirmação dos princípios da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em relação às pessoas
com deficiência. De sorte que o seu objeto foi exatamente reafir-
mar tais direitos em face desse grupo populacional e a previsão de
medidas especiais para a sua realização.

158
É possível afirmar, de modo geral, que a norma em comento
é perpassada em toda a sua extensão, pelo princípio da igualdade
e proibição de tratamento discriminatório, com vistas à garantia,
em favor das pessoas com deficiência, de todos os direitos huma-
nos assegurados às demais pessoas.
Importante registrar que, em 2015, foi editada a Lei 13.
146, denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, que
regulamentou a Convenção da ONU em nosso país e tratou de
sedimentar o modelo social de direitos humanos no âmbito da
legislação ordinária.
Uma variante do modelo social, ainda não completamente
desenvolvida, mas recentemente elaborado, é o chamado “Modelo
da Diversidade”. Trata-se de uma proposta conceitual que pre-
tende abandonar o termo “deficiência” para em seu lugar adotar
a expressão “diversidade funcional”. Esse termo surge com o
Movimento de Vida Independente, em 2005, na Espanha, cons-
tituído por pessoas “deficientes”. O conceito de diversidade
funcional representa uma reação às qualificações que se apoiam
em uma carência enquanto pretende que a nova expressão, fun-
damentada na diversidade de funcionamentos, represente uma
proposta emancipadora (PEREIRA, 2009).
Esse modelo propõe a mudança de erradicar a capacidade
como indicador, substituindo-o pela ideia de dignidade humana
e, com isso, reconhecer o mesmo valor e os mesmos direitos para
todas as pessoas. Nessa proposta, a noção de capacidade é distinta
à apresentada por Amartya Sen, estando mais próxima à noção de
“habilidades”, pois reivindica o valor da diversidade humana e a
participação nessa diversidade do grupo dos “deficientes”.
Dessa forma, o eixo teórico desse modelo é a dignidade
humana e não as capacidades individuais entendidas como habi-
lidades. Porém, trata-se de um modelo ainda em discussão.

159
Conclusões

A incorporação da Convenção da ONU ao direito interno


pátrio, com natureza de emenda constitucional, é um sinal inequí-
voco da consolidação, ao menos no plano normativo, do modelo
social de direitos humanos em nosso país.
Esse indicador é confirmado com a aprovação do Estatuto
da Pessoa com Deficiência, que, conforme assinalado, regulamen-
tou o referido tratamento internacional, sedimentando o modelo
social no plano da legislação infraconstitucional, além de ter con-
solidado a legislação ordinária sobre deficiência no Brasil.
Destaque-se, todavia, que mesmo antes do advento da
Convenção, o Brasil já tinha uma legislação moderna sobre a
temática e não distante dos valores e princípios insculpidos
na norma em destaque, vide o disposto, por exemplo, na Lei
10.098/2000, que trata de acessibilidade e continua em vigor
atualmente. É dizer que, no plano normativo, o país já tinha uma
legislação que, em certa medida, flertava com o modelo social
mesmo antes deste paradigma ter sido formalmente incorpo-
rado à nossa legislação.
Entretanto, a despeito desse quadro normativo, é fato que
ainda vivenciamos uma tentativa de afirmação do modelo social
de deficiência no Brasil. Estamos, na verdade e a duras penas, em
uma lenta e difícil transição do modelo biomédico para o modelo
de direitos humanos.
Há um fosso gigantesco que separa o plano formal e abstrato
da legislação das práticas sociais e da cultura arraigada sobre a
matéria, vide o fato de que em relação às pessoas com deficiência
ainda vigora, em regra, uma mentalidade paternalista e práticas
não emancipatórias, incompatíveis com um modelo pautado na
igualdade de oportunidades e na promoção dos direitos humanos.
O fato de o Judiciário, ao decidir as demandas que envol-
vem pessoas com deficiência e a negação de direitos, fundamentar

160
os julgados na legislação ordinária, esquecendo da Convenção da
ONU e até mesmo do Estatuto da Pessoa com Deficiência é um
claro indicador disso.
Não por acaso, o Comitê da ONU sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência, ao analisar, em 2015, o relatório produ-
zido pelo Brasil sobre a aplicação da Convenção em nosso país
aduziu, dentre outras coisas, que existiram avanços na concre-
tização dos direitos das pessoas com deficiência, mas que ainda
persiste a carência de políticas sistematizadas para a consecução
desse objetivo e que o modelo social ainda necessita ser retirado
do papel e efetivamente implementado.
Ao que tudo indica, portanto, estamos no caminho certo,
mas este é apenas o início de uma longa caminhada no sentido
da efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil.

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163
O AUMENTO DA DELINQUÊNCIA FEMININA E A
INAPLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Félix Araújo Neto42


Sabrinna Correia Medeiros Cavalcanti43

Introdução

O
número de mulheres em centros penitenciários repre-
senta, nos índices gerais, uma porcentagem bastante
inferior ao número de homens reclusos, variando entre
2% e 9% do total de pessoas privadas de liberdade. No entanto,
se observa que nos últimos anos se produziu um considerável
aumento da população carcerária feminina. Este incremento vem
sendo detectado em vários lugares do mundo, inclusive nos países
pertencentes à América Latina. No Brasil, a taxa de delinquência
feminina na década de 50 era de 2% em relação à masculina. Já
no ano de 2000, passou a representar 3,5% de toda a população
carcerária brasileira. Em 2008, o número de mulheres presas havia
crescido duas vezes e meia mais do que o de presos em nosso país.
Dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) reve-
lam que entre os anos 2000-2012 a cifra de mulheres custodiadas
no sistema penitenciário saltou de 5.601 para 22.583, um avanço

42 Doutor em Direito Penal e Política Criminal pela Universidade de Granada-


Espanha. Advogado e Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
43 Doutora em Direito pela Universidade de Salamanca-Espanha. Advogada e
Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

165
bastante superior ao crescimento da população carcerária mascu-
lina. O último relatório do Ministério da Justiça sobre o sistema
penitenciário brasileiro informa que, do total de 726.712 pessoas
privadas de liberdade, até junho de 2016, 42355 eram mulheres
(BRASIL, 2017).
O tema da mulher e sua relação com o sistema de justiça
penal é pouco desenvolvido, denotando uma carência de estudos
e investigações sistematizadas sobre a criminalidade e a crimi-
nalização feminina. O Direito Penitenciário prestava até pouco
tempo atrás reduzida atenção à mulher, não só pelo paternalismo
do legislador, mas também por sua baixa frequência nos níveis de
criminalidade, quase limitada a delitos relacionados com a reputa-
ção social. Em consequência disso, os dados sobre as mulheres nas
prisões são vagos e insuficientes, uma vez que os estudos peniten-
ciários se limitaram a reproduzir os estudos feitos para os homens
privados de liberdade sem considerar as diferenças biopsicológicas
e comportamentais existentes entre o sexo masculino e feminino.
Os poucos estudos que tratam das diversidades existentes
entre homens e mulheres afirmam que os dois sexos diferem em
suas taxas de criminalidade porque são distintos tanto hormonal
como neurologicamente e essas diferenças influiriam na probabi-
lidade que alguns indivíduos têm de implicarem-se em atividades
delitivas. As diferenças, segundo estas investigações, estariam nas
condutas violentas, tanto contra objetos como contra pessoas, menos
frequentes na mulher, que também participa em menor variedade
de delitos que o homem (CARBONEL, 2006, p.267-268).
A maior participação da mulher na vida social, política e
econômica do país em que vive, trouxe também a sua inserção
no mundo da criminalidade. O incremento da população peni-
tenciária e a falta de uma política planificada para atender à nova
realidade deram lugar a soluções de emergência que se consoli-
daram e passaram a ser seguidas como opções definitivas. Assim
como ocorre na sociedade, as necessidades mais básicas das inter-
nas têm sido reiteradamente ignoradas.

166
Apesar das últimas décadas terem testemunhado uma
importante batalha em favor dos direitos humanos das mulheres,
na prática, a situação tem mudado muito lentamente (GOMES,
2015). Diante desta intrigante problemática, faz-se necessário
investigar as prováveis consequências do aumento da delinquência
feminina  dentro de uma nova percepção de ordem político-social
pautada constitucionalmente pela igualdade entre homens e
mulheres.
O tema é de relevante interesse social e a importância tanto
no âmbito jurídico como no acadêmico reside na necessidade de
provocar discussões sobre o aprisionamento de mulheres e seus
impactos para as políticas de segurança, administração peni-
tenciária, assim como para as políticas específicas de combate à
desigualdade de gênero.
Tratou-se de uma revisão bibliográfica, realizada a partir do
arcabouço teórico proveniente de estudos relacionados à teoria
geral da pena e à execução penal. Na estruturação deste trabalho
foi inicialmente considerada a evolução histórica dos estabeleci-
mentos penais para mulheres e as normas aplicadas às reclusas
no Brasil. Em seguida, foram abordados aspectos relevantes da
delinquência feminina e analisada a nova interpretação do trá-
fico privilegiado no Supremo Tribunal Federal, bem como seus
reflexos no tocante à execução da pena privativa de liberdade,
sobretudo no que se refere à população carcerária feminina e suas
particularidades.

1. Evolução histórica dos estabelecimentos penais para


mulheres

Durante os Séculos XV e XVI, nos quais o cárcere servia


apenas para guardar os acusados até a sentença final, não havia
diferenças entre homens e mulheres, uma vez que os delitos gra-
ves se castigavam com a morte para ambos. No caso de delitos
mais leves, às mulheres se impunham algumas penas corporais,

167
vergonha pública e desterro. Este tratamento específico justificou
que se pedisse para as mulheres casas de trabalho (DONDERIS,
2006, p.130). A partir do Século XVII em muitas cidades euro-
peias se criaram instituições de correção, consideradas precedentes
da prisão atual, a exemplo das conhecidas casas de trabalho da
Holanda (Spinhuis), que se destinavam a recolher prostitutas e
vagabundas no intuito de promover o trabalho como meio de vida
moral.
Ainda que a prisão como pena autônoma não tenha sido
usada pelo Estado até a chegada do Iluminismo, as mulheres con-
sideradas delinquentes eram confinadas em casas conduzidas por
ordens religiosas, que tinham por finalidade moldar o caráter e
purgar a impureza e a perversidade presente no ser humano. Os
princípios básicos eram a vigilância e a disciplina para conver-
ter mulheres más em damas virtuosas, o que demonstra o caráter
moralizante e repressivo dos primeiros estabelecimentos penais
femininos. A prisão tinha já um sentido diferente para homens
e mulheres. Para os primeiros, lugar de tortura, para as mulheres
foi um lugar de adestramento moral, fazendo com que a grande
transformação do Século XVIII, no que diz respeito à pena pri-
vativa de liberdade, seja mais visível no caso dos homens do que
no das mulheres que já vinham cumprindo os objetivos de puri-
ficação, trabalho e disciplina presentes nas casas de misericórdia
(QUEIROZ, 2010).
Claro exemplo dessa priorização de um gênero em preju-
ízo de outro é a arquitetura penitenciária. A arquitetura de um
lugar determina em grande parte o tratamento a ser dado a quem
dela se utiliza. Nunca os centros para mulheres foram desenha-
dos pensando em suas necessidades especiais ou nos programas a
serem desenvolvidos com vistas ao retorno para a sociedade.
No Século XIX finalmente se abandona a orientação mora-
lista e penitente dos estabelecimentos de detenção e criam-se as
casas de correção de mulheres dirigidas pelo governo geral, através

168
da administração dos presídios. A partir do Século XX uma série
de normas internacionais provocou a reforma das legislações peni-
tenciárias para acomodá-las aos tratados e convenções de direitos
humanos. Entre estas normas destacam-se as Regras Mínimas
para o Tratamento de Reclusos aprovadas pela ONU em 1955
(COMPARATO, 2010, p.122). Com inspiração na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, as Regras Mínimas
para o Tratamento de Reclusos passam então a proibir em caráter
universal as diferenças de tratamento fundadas em razão de raça,
cor e sexo no âmbito penitenciário (6.1). Ainda dentro deste con-
junto de mandamentos aponta-se a necessidade de contar com
instalações especiais para presas grávidas, que acabaram de dar à
luz ou convalescentes (23.1) podendo ter seus filhos em sua com-
panhia por um tempo determinado, variável em sua quantidade
de país para país.
No VI Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção de
Delitos e Tratamento do Delinquente, celebrado em 1980, também
se aprovaram propostas para combater o quadro de discrimina-
ções sofridas pelas mulheres no cárcere e resguardar os direitos já
conquistados por elas, mas não efetivados satisfatoriamente nos
ordenamentos internos de diversos países (PIOVESAN, 2015, p.
279-280).
No entanto, o principal marco normativo internacional no
tocante à problemática do encarceramento feminino são as cha-
madas Regras de Bangkok. Em dezembro de 2010, a Assembleia
Geral da ONU aprovou normas para o tratamento das mulheres
presas ou cumprindo medidas não privativas de liberdade.
As Regras de Bangkok procuram complementar as Regras
Mínimas para o Tratamento de Presos de 1955 e as Regras
Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de
Liberdade (Regras de Tóquio) considerando as demandas e
características específicas das mulheres, como a maternidade, sua
forma de envolvimento com o crime, as perdas financeiras, o uso

169
de drogas, a condição de estrangeira, a questão da saúde men-
tal e o direito de contato com a família e de amparo aos filhos
quando reclusas. O processo de amamentação também apresenta
destaque no documento, assinalando a importância de as crian-
ças permanecerem com suas mães nestes primeiros momentos de
vida, abordando, inclusive, o momento da separação (GOMES,
2015).
O conjunto de 70 regras aponta ainda a falta de informação
sobre o assunto e a necessidade de fomentar investigações, estu-
dos e divulgação sobre a realidade e dificuldades de mulheres em
conflito com a lei.

2. Normas aplicadas às mulheres presas no Brasil

A Lei de Execução Penal brasileira de 1984(LEP), consi-


derada uma das mais avançadas entre as nações democráticas,
estabeleceu nos termos do seu Art. 14 a assistência à saúde do
preso ou internado, de caráter preventivo e curativo, compreen-
dendo atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Na
realidade, as mulheres no cárcere brasileiras, já debilitadas em sua
saúde em decorrência da baixa qualidade de atendimentos básicos
negados fora da prisão, dependem em grande parte da iniciativa
graciosa das autoridades para terem acesso a cuidados com sua
saúde, controle de natalidade e campanhas educativas de pre-
venção ao HIV e outras doenças venéreas. O procedimento mais
comum é a ausência de atenção médica contínua e especializada,
prestando-se tão somente uma assistência emergencial dos casos
mais sérios.
A Resolução nº 14, do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994,
instituiu as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil.
Em seu Art.7º determina que os presos pertencentes a catego-
rias diversas devam ser alojados em diferentes estabelecimentos

170
prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais
tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena
a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o
tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princí-
pio da individualização da pena. Para as mulheres decide ainda
que estas cumprirão pena em estabelecimentos próprios e que lhe
serão asseguradas condições para que possam permanecer com
seus filhos durante o período de amamentação dos mesmos. O
Art. 17 da Resolução prevê ainda que o estabelecimento prisional
destinado a mulheres disporá de dependência dotada de material
obstétrico, para atender à grávida, à parturiente e à convalescente,
sem condições de ser transferida a unidade hospitalar para trata-
mento apropriado, em caso de emergência.
A Lei nº 11.942, de 27 de maio de 2009, acrescentou algu-
mas medidas à Lei de Execução Penal com o intento de melhorar
as condições do exercício da maternidade dentro da prisão. O
parágrafo segundo do Art. 83 da LEP dispõe que os estabeleci-
mentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçários,
onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive ama-
mentá-los, no mínimo até 06(seis) meses de idade. Segundo o
Art. 89, igualmente modificado pela Lei 11.942/09 garante-se
que as penitenciárias femininas tenham seção para gestante e
parturiente e creche para abrigar as crianças maiores de 06(seis)
meses e menores de 07(sete) anos, atendidas por pessoal quali-
ficado, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja
responsável estiver presa (MARCÃO, 2010, p.53).
No Brasil, como em vários países da América Latina, boa
parte das instituições penais esteve a cargo de ordens religiosas
missionárias e a estrutura arquitetônica sempre foi a de um con-
vento, modelo que reflete como já visto anteriormente, uma lista
de obrigações morais e um papel a ser representado na vida nova
das reclusas. Com o aumento da população de mulheres presas,
quando se construíram novas prisões, foram apenas duplicados os

171
modelos arquitetônicos dos presídios masculinos por resultar mais
simples e econômico. São frequentes ainda os casos de presídios
antigos com péssima estrutura e superlotação que improvisam
espaços adaptados para as reclusas como uma espécie de anexo do
presídio masculino.
Nos 244 estabelecimentos que abrigam a população carcerá-
ria feminina no Brasil, apenas 107 possuem leitos para gestantes
ou parturientes (BRASIL, 2017). Por causa da escassez de recur-
sos há uma inclinação em atender em primeiro lugar aos pedidos
dos estabelecimentos penitenciários masculinos que, por ser um
grupo mais numeroso, possui mais apelo em termos gerais. Esta
matéria está dentro da problemática das minorias, já que a estrita
separação entre homens e mulheres decorrentes de normas uni-
versais ocasionou um trato discriminatório (NAREDO, 2002,
p.188).
A maternidade afeta um elevado número de internas no país
e muitas das presidiárias têm os seus partos realizados dentro do
cárcere. Por inspiração das Regras de Bangkok (2010), que con-
tou com a participação do Brasil em sua elaboração, entrou em
vigor, em 13 de abril de 2017, a Lei n. 13434, que acrescenta pará-
grafo único ao art. 292 do Código de Processo Penal, para vedar
o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico
-hospitalares preparatórios para a realização do parto, bem como
em mulheres durante a fase do puerpério imediato (PEIXOTO,
2017).
A maior preocupação daquelas que são mulheres e mães pri-
vadas de liberdade é o bem-estar de seus descendentes. Por isso,
sofrem mais os efeitos do encerro que os homens, por terem que
suportar a dor e a ansiedade de viver o distanciamento de seus
filhos.
A idade permitida para que os menores fiquem com suas
mães varia de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o
Art. 5º, L da Constituição Federal determina que “às presidiárias

172
serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos
durante o período de amamentação”. Na França a idade limite é de
18 meses; na Irlanda, Suécia e Dinamarca é de 01 ano; Grécia e
Suíça permitem que mãe e filho permaneçam juntos até 02 anos;
Itália e Portugal 03 anos; no Canadá a criança pode ficar com a
mãe até os 05 anos e nos Estados Unidos não está permitido em
quase nenhum Estado.
Segundo especialistas a separação entre mãe e filho não é
aconselhável entre os 08 e 18 meses (DONDERIS, 2006, p. 145).
A permanência da mãe com o bebê durante um determinado
tempo não configura direito da mulher, mas sim direito do filho,
considerado como um benefício (ou um mal menor) o contato
com sua genitora, o recebimento do leite materno e das primeiras
noções de afetividade para a ordem e o desenvolvimento de uma
educação integral.
Por outro lado, um maior tempo da criança com a mãe em
um ambiente penitenciário adiciona ao sistema estatal a manu-
tenção e a integração de crianças ao ambiente dessocializador e
estigmatizante do cárcere. Por isso, são vários os ordenamentos
jurídicos que preveem a possibilidade de evitar a pena de prisão
de curta duração quando a mulher esteja grávida ou com filhos
de pouca idade. Na América Latina, especialmente no Brasil,
Argentina, Paraguai e Venezuela a pena curta de mulheres grá-
vidas, com filhos pequenos ou com necessidades especiais pode
ser cumprida em domicílio particular. O intuito da medida é que,
dentro das finalidades da sanção penal, e sempre quando possível,
a criança não venha a nascer ou crescer dentro da prisão.
Recentemente, no dia 20 de fevereiro de 2018, a Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de
votos, conceder Habeas Corpus coletivo (HC 143641) para
determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar de
mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam ges-
tantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com

173
deficiência, sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas
elencadas no artigo 319 do Código de Processo Penal. A decisão
foi comunicada aos presidentes dos Tribunais estaduais e federais,
inclusive da Justiça Militar estadual e federal, para que, no prazo
de 60 dias, sejam analisadas e implementadas de modo integral as
determinações fixadas pela Turma (BRASIL, 2018).
O principal argumento utilizado pelo Coletivo de Advogados
em Direitos Humanos para impetrar o habeas corpus foi de
que o confinamento de mulheres grávidas em estabelecimen-
tos prisionais precários retiraria delas o acesso a programas de
saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e
ainda privaria as crianças de condições adequadas ao seu desen-
volvimento, constituindo-se em tratamento desumano, cruel e
degradante, que afronta os mandamentos constitucionais rela-
cionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis
e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa. Cabe
ressaltar que os cuidados com a mulher presa se direcionam tam-
bém a seus filhos, logo a situação em análise no HC 143641 viola
igualmente o artigo 227 da Constituição, que estabelece priori-
dade absoluta na proteção às crianças.
Segundo o relator do processo, ministro Ricardo
Lewandowski, a situação degradante dos presídios brasileiros
já foi discutida pelo STF no julgamento da medida cautelar na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF
347). Desta forma, o remédio constitucional impetrado seria
a única solução viável para garantir acesso à Justiça de grupos
sociais mais vulneráveis. O ministro destacou ainda que o legisla-
dor tem se revelado sensível a essa realidade e por isso foi editada
a Lei 13.257/2016 (Estatuto da Primeira Infância) que trouxe
aspectos práticos relacionados à custódia cautelar da gestante e da
mãe encarcerada, ao modificar o artigo 318 do CPP. O disposi-
tivo autoriza o juiz a converter a prisão preventiva em domiciliar
quando a mulher estiver grávida ou quando for mãe de filho de
até 12 anos incompletos (BRASIL, 2018).

174
No julgamento do habeas corpus, para a formação do
entendimento majoritário, foram também lembradas demandas
semelhantes como a decidida pela Corte Suprema argentina, que,
em caso envolvendo pessoas presas em situação insalubre, reco-
nheceu o cabimento de habeas coletivo. O mesmo ocorreu com o
Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em situação envolvendo
presos colocados em contêineres, transformou um HC individual
em habeas corpus coletivo.

3. Aspectos relevantes da delinquência feminina

As diferenças no tratamento aos dois gêneros podem ser


representadas entre outros aspectos pelos desiguais níveis de ame-
aça à segurança comunitária durante o cumprimento das penas.
A conduta da mulher é menos violenta tanto no terreno delitivo
como no penitenciário, sendo significativo o número de internas
que progridem do regime fechado para o semiaberto ou aberto
por terem demonstrado, além do cumprimento de parte da sen-
tença, satisfatória conduta carcerária. Também a elas são impostas
menos sanções disciplinares devido à melhor adaptação à vida
prisional e ao comportamento mais receptivo aos programas ou
tratamentos que são desenvolvidos dentro dos estabelecimentos
penais.
Nos estabelecimentos femininos há menos motins, quan-
tidade inferior de objetos perigosos e um índice mais baixo de
tentativas de fuga. Por esses motivos, costuma-se criticar a dureza
das prisões para mulheres no que diz respeito ao controle, vigi-
lância, meios de segurança excessivos e desproporcionais à menor
agressividade e violência detectada entre as detentas. Afasta-se
então por critérios econômicos, de comodidade, e em nome de
uma falsa segurança coletiva, uma política de gênero que garanta
uma organização adequada aos princípios de individualização da
pena e ressocialização da mulher reclusa (DONDERIS, 2006,
p.135).

175
Outra preocupante característica do universo penitenciário
feminino é o fato de que as mulheres são vítimas mais vulneráveis
à violência nas prisões pelo pessoal encarregado da administra-
ção carcerária (TAVARES, 2009, p.119). São inúmeros os casos
denunciados a órgãos oficiais e entidades não governamentais
acusando a ocorrência de agressões físicas, psicológicas e conta-
tos sexuais não desejados somados às experiências traumáticas
de abuso familiar e humilhações que muitas delas já trazem do
mundo exterior. As situações de risco a que estão expostas se veem
agravadas pela impossibilidade de autonomia frente aos responsá-
veis pela segurança e em alguns casos até de outros presos.
O Governo Federal já admitiu a existência de maus-tratos.
A conclusão está no balanço feito pelo grupo interministerial que
desde 2007 elabora propostas para reformular o sistema carcerá-
rio feminino (TAVARES, 2009, 133). O relatório 2017/2018 da
Anistia Internacional reconhece que as pessoas reclusas seguem
sendo submetidas a condições cruéis, desumanas ou degradantes
no Brasil. A tortura se emprega de forma habitual como método de
interrogatório, castigo, controle, extorsão e humilhação, segundo o
informe anual da organização internacional de proteção de direi-
tos humanos (ANISTIA INTERNACIONAL, 2018, p.90-91).
No que diz respeito às características pessoais mais relevan-
tes e comuns às mulheres encarceradas se pode citar, em primeiro
lugar, a baixa escolarização e escassa preparação laboral, uma vez
que costumam realizar, antes da prisão, tarefas sem qualificação
técnica, como atividades de limpeza ou o comércio informal. As
mulheres encarceradas estão em sua grande maioria (55%) entre
os 18 e 29 anos. Das 42355 apenadas no sistema penitenciário até
junho de 2016, 51% tinham no máximo o Ensino Fundamental
Incompleto, sem contar com as mulheres que apenas se alfabeti-
zaram ou são completamente analfabetas (BRASIL, 2017).
Apesar da globalização e das enormes modificações ocorri-
das nos mercados em todo o mundo, os cursos ou trabalhos que

176
as reclusas realizam na prisão seguem sendo sexistas. São ofere-
cidas geralmente oficinas de maquiagem, corte, costura, cozinha
ou artesanato. Se o objetivo da pena é devolver à sociedade um
bom cidadão, no caso da mulher se trata de devolver uma boa mãe
e esposa. Não há, como nas atividades laborais masculinas, uma
preparação pensada nas necessidades do mercado, o que resulta
em uma saída ainda mais difícil da liberada pela assustadora falta
de emprego que ameaça trabalhadores com especialização pro-
fissional e vem assolando até países desenvolvidos e de solidez
econômica. Este campo é um dos que requerem com mais urgên-
cia uma revisão desde uma perspectiva de gênero, no sentido de
erradicar qualquer tipo de discriminação em relação às condições
de acesso ao trabalho, de oferta de empregos e de remuneração
adequada (BRASIL, 2011).
Outro aspecto peculiar em relação à população feminina é
a responsabilidade adicional da mulher em relação aos filhos e
outros membros da família, estendendo os efeitos negativos da
prisão ao resto do núcleo doméstico. O ingresso na prisão repre-
senta na maioria dos casos a ruptura de laços afetivos importantes
para o desenvolvimento de uma relação familiar estável e equili-
brada (BENITO DURÁ, 2009, p.207).
Quanto aos tipos de crimes mais cometidos pelas mulheres
houve um gradativo abandono do estereótipo de homicídio pas-
sional, com forte conteúdo de amor ou ciúme. Ainda que os delitos
femininos contra pessoas sejam em mais da metade dos casos pra-
ticados contra familiares ou pessoas íntimas, como namorados,
noivos ou amantes, já é cada vez maior a presença da mulher em
outros delitos violentos, como furtos, roubos, estes seguidos ou não
de morte e sequestros. A maioria das mulheres presas provém de
setores sociais marginalizados, o que lhes coloca em uma situação
desvantajosa a nível laboral (BENITO DURÁ, 2009, p. 203).
Estudos da CEPAL (Comissão Econômica para América
Latina e Caribe) demonstram que a pobreza afeta de forma

177
diferente aos homens e mulheres. A desigualdade de oportu-
nidades que afeta as mulheres para conseguirem um trabalho
remunerado prejudica suas possibilidades de alcançar a autono-
mia econômica. A falta de autonomia econômica, por sua vez,
coloca essas mulheres em uma situação mais vulnerável e incre-
menta a possibilidade de que boa parte delas caia na miséria.
Dados significativos mostram que as mulheres contribuem de
maneira expressiva para a redução da pobreza, mas sofrem com
mais severidade seus efeitos (BENITO DURÁ, 2009, p. 204).
Estes dados ilustram como o controle social afeta aos setores mais
frágeis econômica e socialmente.
O incremento da população de mulheres encarceradas e com
penas cada vez mais prolongadas deve-se basicamente aos cri-
mes relacionados com o microtráfico de drogas, denunciando a
necessidade urgente de examinar as consequências para este grupo
em participar deste tipo de atividade. De acordo com o Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias, do total de 42355 presas
registradas até junho de 2016, mais de 60% cumprem pena por
tráfico interno ou internacional de entorpecentes. O segundo lugar
neste ranking de delitos fica a cargo dos crimes contra o patrimô-
nio (11%), especialmente por roubo e furto, e só então aparecem os
crimes contra a pessoa (6%), sendo em sua grande parte processos
de homicídios simples ou qualificados (BRASIL, 2017).
Apesar do considerável envolvimento nos crimes relaciona-
dos ao tráfico de drogas, o percentual de mulheres no comando
dos negócios continua sendo pequeno, assim como em outras ins-
tâncias da sociedade civil. Nas organizações como as do tráfico
alguns estudos destacam uma participação feminina em torno de
30%, mas sempre em atividades menores da atividade criminosa.
Desse número, somente cerca de dois por cento atinge cargos de
maior responsabilidade e poder, como o de gerente do tráfico,
mesmo assim, alcançando níveis hierárquicos mais altos porque
substituem o companheiro que já está encerrado, cumprindo pena

178
por tráfico de drogas. Os delitos decorrentes da venda de substân-
cias entorpecentes têm, portanto, natureza social e integram uma
realidade que se constrói a partir de um controle social altamente
discriminatório e seletivo (BENITO DURÁ, 2009, p. 204).
O mais contraditório no aumento de crimes praticados pela
população feminina é que na maioria dos casos as mulheres, ao
contrário dos homens, que normalmente têm o apoio de suas
mães e esposas quando ingressam na prisão, não contam com a
ajuda de seus maridos/companheiros. Sofrem o abandono, a des-
vinculação amorosa, afetiva e social como um adicional na pena
privativa de liberdade, ainda que tenham entrado no mundo do
crime por influência do parceiro.
Para dificultar ainda mais o processo de volta à sociedade,
critérios moralistas ainda são utilizados nos centros penitenci-
ários para a concessão do direito de visitas íntimas às reclusas
embora, assim como os homens, elas também tenham o direito
de desenvolver sua sexualidade e escolher livremente seus parcei-
ros. Nos casos em que há alguma regulamentação, se observa um
claro trato discriminatório em relação às mulheres. É comum que
somente delas se exija o uso de contraceptivos, que estejam casa-
das ou tenham uma relação estável. Diferentemente dos presídios
masculinos, onde a fila de familiares e esposas nos dias de visita
começa na madrugada, as penitenciárias femininas estão sempre
vazias (PADOVANI, 2009).

4. A nova interpretação do tráfico privilegiado e seus reflexos


na população carcerária feminina

A sanção criminal deve atuar sobre a coletividade, provo-


cando sua consciência jurídica e mostrando-lhe as consequências
da violação das normas penais. Não obstante, a pena deve estar
também voltada ao condenado, ao buscar que este não volte a
delinquir.

179
Dentre os desafios enfrentados pelo direito penal contempo-
râneo está a questão fundamental de resolver o conflito existente
entre a prevenção geral e a prevenção especial ou, dito de outro
modo, o conflito entre segurança e liberdade, equilibrando as
reivindicações da população, os direitos e garantias dos que delin-
quiram e as influências socioculturais que estão implicadas neste
cenário de prioridades individuais e coletivas, manifestado na pre-
sença do Estado soberano.
O aumento da criminalidade e a escassez de resultados prá-
ticos na meta de ressocialização dos encarcerados criaram nas
sociedades uma reação de descrédito ante os ideais garantistas.
A sensação de impunidade e de insegurança tem despertado
uma necessidade de repressão dura, colocando em crise o próprio
direito penal e seus princípios, fundados em ideais humanitários,
característicos de um Estado Democrático de Direito.
Nesta realidade, tem se produzido uma diminuição das
intervenções de justiça penal, com a redução de gastos e medi-
das de recuperação do indivíduo na execução penitenciária. Os
tratamentos se concentram nos casos de indivíduos considerados
perigosos, a exemplo dos agressores sexuais, criminosos violentos
ou relacionados ao tráfico de entorpecentes. Buscando incapaci-
tar esta espécie de delinquente para futuros delitos e controlar o
risco, pouco a pouco, a intenção de reintegrar deixa de ser prio-
ridade nas instituições penitenciárias. O objetivo imediato já
não é melhorar o delinquente ou desenvolver sua capacidade de
discernimento, mas reduzir a incidência do delito e proteger a
coletividade. Assim, o preso considerado comum fica esquecido
no cárcere, sem tratamento, à espera que sua pena termine. O
mundo de hoje, considerado “civilizado”, vem perdendo o sentido
de comunidade e o autocontrole parece transformar-se em indi-
ferença social (ARAÚJO NETO, 2009).
Ao mesmo tempo em que a pretensão de reinserção social
vem perdendo fôlego, ressurgem as ações de “justiça expres-
siva” como objetivo político generalizado. A exposição de uma

180
legitimidade retributiva, de fácil aceitação pública, com a apro-
vação de leis draconianas e medidas paliativas de contenção dos
índices de violência reforça a falsa certeza popular de que é melhor
encarcerar mais e compreender menos (CAVALCANTI, 2013).
A prisão moderna representa um aparelho disciplinar ofi-
cial, que prescreve princípios de isolamento em relação ao mundo
exterior, como consequência pelos delitos praticados contra a segu-
rança e a paz em sociedade. No Brasil, ela representa superlotação
extrema, condições degradantes, tortura e violência institucional.
Nos últimos anos, vários casos relativos às condições prisionais
violadoras da dignidade humana dos detentos foram encaminha-
dos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O Brasil é, atualmente, com mais de 700 mil presos, o terceiro
colocado no ranking dos países com maior população carcerá-
ria no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Ao
crescente e massivo encarceramento, soma-se o caráter seletivo do
sistema penal. Segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de
80% da população prisional é de condenados por crime contra o
patrimônio ou tráfico de drogas. O perfil destas pessoas reclusas
traz um quadro desolador: são jovens, pobres, negras e sem ins-
trução, submetidas historicamente a diversas outras espécies de
marginalização social (BRASIL, 2017).
O ano de 2016 representou um marco importante para a polí-
tica de combate às drogas. No âmbito internacional, no intuito de
analisar progressos e desafios sobre o tema, foi realizada em abril a
Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre o problema
mundial das drogas (UNGASS). No Brasil, naquela ocasião, a Lei
11.343/2006 completava 10 anos em vigor e, a despeito de claros
avanços, sobretudo em aspectos extrapenais, refletia a tendência
regional do recrudescimento de penas para o tráfico de drogas e
do encarceramento massivo de pessoas.
Seguindo a linha de punição exemplar para aqueles que
comercializam substâncias entorpecentes, através dos inúme-
ros verbos contidos no art. 33 da Lei de Tóxicos, em obediência

181
também à Lei 8072/90, o tráfico ilícito de drogas é equiparado
aos crimes hediondos. Quis o legislador que o condenado por
tipo penal hediondo, via de regra, não permaneça em liberdade,
nem tenha sua pena permutada ou comutada de qualquer modo.
Assim, conforme preceitua a lei específica comentada e a própria
Constituição Federal, em seu art. 5º, XLIII, os crimes hediondos
são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, por eles res-
pondendo os mandantes, os executores e aqueles que, podendo
evitá-los, se omitirem.
No que se refere à aplicação da sanção penal, o condenado
por crime hediondo ou assemelhado cumprirá a pena em regime
inicialmente fechado e a progressão de regime dar-se-á apenas
após o cumprimento de 2/5(dois quintos) da pena, se o apenado
for primário, e de 3/5(três quintos) se for reincidente. Aduz ainda
a Lei 8072/90 que em caso de sentença condenatória o juiz deci-
dirá, fundamentadamente, se o réu poderá apelar em liberdade.
Nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal, a
prova da alegação cabe a quem a fizer, mas a aplicação prática da
Lei 11.343/2006 obriga a pessoa acusada a provar que o porte
de drogas se dá somente para consumo pessoal, sob pena de ser
enquadrada como traficante. Neste cenário de restrição de direi-
tos, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a interferir algumas
vezes, importando em modificações na redação original da lei em
tela.
Em atenção ao princípio da individualização da pena, o
STF decidiu que seria inconstitucional o cumprimento da pena
em regime integralmente fechado (HC 82.959). Posteriormente,
decidiu que também existiria afronta à Constituição Federal
a fixação automática do regime inicial fechado (HC 11.840).
A jurisprudência do STF evoluiu ainda no sentido de retirar a
vedação à liberdade provisória em abstrato (HC 104.339) e à
substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas
de direitos (HC 97.256).

182
No dia 23 de junho de 2016, o Plenário de nossa Corte
Constitucional desconsiderou a hediondez do tráfico privilegiado,
previsto no art. 33, §4º da Lei de Drogas (HC 118. 533). Desta
forma, tendo como base o princípio da proporcionalidade, nos
casos em que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se
dedique a atividades criminosas e nem integre organizações cri-
minosas, além da redução de pena de cabível, de um sexto a dois
terços, serão afastadas as regras previstas para os crimes hedion-
dos e equiparados.
Em tempos de fortalecimento do punitivismo, merece des-
taque a decisão do Supremo Tribunal Federal, demonstrando a
prevalência da prevenção especial positiva. De fato, ao analisar a
reprimenda aplicada deve observar-se se esta encontra proporcio-
nalidade com o crime, de modo que não haja nem sanções pífias,
nem punição em excesso.
No campo prático, o incremento da população de mulheres
encarceradas deve-se basicamente aos crimes relacionados com
o microtráfico de drogas. O mais grave é que quase todas sofre-
ram sanções desproporcionadas, sobretudo dada a participação de
menor importância na atividade ilícita.
Aspectos específicos referentes à atuação dos agentes na
função vulgarmente como “mula”, que transportam a droga, já diri-
giram profundos debates no Supremo Tribunal Federal, de modo
que, em caso análogo, o então Ministro Ayres Brito ressaltou que
o exercício da função de “mula” ou “avião”, embora imprescindível
para o tráfico, por si só, não configura a participação em organi-
zação criminosa. Assevera o ministro que o tráfico, normalmente,
recruta pessoas socialmente vulneráveis para a perigosa tarefa de
transporte da droga em bagagens, ou mesmo no próprio. Este tipo
de atividade não gera reconhecimento dentro do “mundo do trá-
fico” e pode ter finalidade de um único transporte de mercadoria,
denotando o caráter descartável dessas pessoas para a organização
criminosa (HC 101.265).

183
Além disso, cabe assinalar a observação do Ministro Luís
Edson Fachin que, em seu voto, aponta para o crime de associa-
ção para o tráfico, que reclama liame subjetivo estável e habitual,
direcionado à prática do tráfico de substâncias entorpecentes, e
não é equiparado a hediondo. Assim, continuasse o Supremo a
considerar o tráfico privilegiado como crime hediondo, estaria
conferindo ao traficante ocasional tratamento penal mais duro
que o dispensado ao agente que, de forma estável, se associa para
exercer a traficância (HC 118.533).
A partir do importante precedente criado pelo STF serão
possíveis as necessárias e justas revisões no tocante a progressão
de regimes, uma vez que se lançou um olhar diferenciado sobre
a referida modalidade de tráfico de drogas, com desdobramento
direto no tecido social, ao afastar a incidência dos efeitos da Lei
de Crimes Hediondos. Assim, no plano jurídico, a novel interpre-
tação reordena o tratamento legal conferido à significativa parcela
de condenados, redimensionando as manifestações judiciais e
garantindo direitos, até então não reconhecidos.
Pode-se afirmar que a decisão do Supremo Tribunal Federal,
por ocasião do julgamento do HC 118.533, revela, de modo ani-
mador, uma postura firme de reafirmação do Direito Penal como
ultima ratio. Deste modo, mesmo presente a expansão do Direito
Penal no ordenamento jurídico brasileiro e diante do quadro
midiático desfavorável, o STF decidiu de modo a chocar-se com a
opinião pública e com a manifestação de outros tribunais, apoian-
do-se em parâmetros técnicos e de política criminal.
É certo que o conteúdo da referida decisão modificou, neste
ponto, o panorama jurisprudencial, especialmente porque os
precedentes, exarados até então, apontavam que a causa de dimi-
nuição de pena, prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006,
não provocava o afastamento da  hediondez do crime de tráfico
de drogas.

184
Ocorre que os julgados anteriores confrontavam, no plano
teórico, com a finalidade assinalada à pena, durante o momento
da execução penal. Isto porque o ordenamento brasileiro consagra,
nesta fase, a prevenção especial positiva como preocupação de pri-
meira ordem. Tanto é assim que o Brasil subscreve o Pacto de San
Jose da Costa Rica e outros diplomas legais, comprometendo-se
em promover a readaptação social dos condenados, buscando evi-
tar, com apoio de instrumentos de política criminal, o contágio
criminal e os efeitos degradantes da pena de prisão.
Na perspectiva prática, verificou-se índice elevado de encarce-
ramento, fundamentado em condenações por tráfico privilegiado,
notadamente, de pessoas do sexo feminino, que normalmente não
se dedicavam a prática criminosa, servindo, na maioria dos casos,
somente para transportar a droga para companheiros e familiares,
tornando-se este dado, um fato real a ser refletido pelo próprio
Judiciário.
Também é certo que esta corajosa manifestação da Suprema
Corte causará reflexo direto nas condenações transitadas em jul-
gado, ensejando a necessidade de rever pedidos de progressão de
regime, livramento condicional entre outras demandas no âmbito
da execução penal.

Considerações Finais

A evolução penitenciária da mulher passou pela convivência


com os homens nas masmorras à espera da condenação capital,
sua reclusão moralizante em centros religiosos e, finalmente, uma
progressiva humanização da execução de sua pena privativa de
liberdade em documentos internacionais e no ordenamento jurí-
dico interno brasileiro. A prática, no entanto, está ainda muito
longe das intenções almejadas dentro de uma política de respeito
aos direitos humanos.

185
As mulheres sofrem mais que os homens os efeitos do
confinamento, uma vez que suas condições carcerárias são com-
provadamente piores por falta de espaço, insuficientes recursos
financeiros e inadequados meios, tanto materiais como pessoais,
de aplicar os programas voltados para a reinserção social da con-
denada. Os sistemas penitenciários não previram as necessidades
específicas do gênero feminino e por isso são encontradas sérias
deficiências no que diz respeito ao limitado acesso à educação,
ao trabalho e à capacitação profissional. Também é manifesta a
ausência de atenção médica contínua e especializada e nos casos
de auxílio à maternidade, os centros prisionais não dispõem de
uma estrutura mínima para acompanhamento da gravidez e a
manutenção de berçários, conforme prevê a Lei de Execução
Penal de 1984. Elas têm ainda de conviver muitas vezes com o
peso da direção familiar à distância, a ausência dos filhos maiores
ou, em outro extremo, o completo abandono dos que a cercavam,
como consequência do estigma de ser criminosa.
Sob o argumento da igualdade tem-se massificado a totali-
dade da população sem satisfazer as necessidades peculiares dos
diversos grupos, credos e gêneros que compõem qualquer vida em
comunidade. O ser humano deve ser reconhecido por sua essência
única e não padronizado por um sistema que negue o direito à
diferença. A igualdade material, que realmente deve ser buscada,
é aquela que permite estarem todos os indivíduos em condições
iguais de tratamento e oportunidades, com respeito à sua dig-
nidade, valor fundamental a qualquer Estado Democrático de
Direito.
As críticas à legitimidade e eficácia da prisão afetam por igual
a homens e mulheres, mas sendo as mulheres um número mais
reduzido, apesar de crescente, seria menos complicado implan-
tar aos delitos leves cometidos por elas novas formas alternativas
de execução da sentença condenatória que possam represen-
tar um aumento significativo das chances de ressocialização e

186
da construção de um novo projeto de existência para famílias
inteiras. Sendo bem-sucedidas estas práticas, poderiam inclusive
ser, gradativamente, estendidas também à população carcerária
masculina.
Quando se trata de conter o avanço dos níveis de delinquên-
cia feminina é preciso reconhecer que o fenômeno do crime está
implicado, fundamentalmente, das realidades socioeconômicas de
uma determinada sociedade e, nesse contexto, as consequências
de séculos de uma cultura extremamente patriarcal aparecem em
variadas formas de desigualdades e conflitos. A consideração dos
fatores específicos de delinquência das mulheres implica incluir a
perspectiva de gênero no âmbito penal e penitenciário, com o fim
de debilitar os processos de exclusão social que levam ao delito,
reduzindo assim o encarceramento de pessoas e os números refe-
rentes à reincidência.
Neste sentido, em meio ao turbulento cenário jurídico bra-
sileiro atual, em que se constatam manifestações pautadas no
expansionismo exacerbado do Direito Penal, surgiu, no âmbito da
Suprema Corte, decisão inclinada às teorias preventivo-especiais
positivas, por ocasião do polêmico julgamento do HC118.533 do
STF, datado de 23 de junho de 2016, que decidiu, por maioria,
que o tráfico privilegiado não apresenta natureza hedionda.
Em que pese a pauta proposta pelo ímpeto do populismo
punitivo, consistente, em resumo, no endurecimento do Direito
Penal e no uso exagerado de prisão, a Suprema Corte considerou,
entre outros fatores, a flagrante desproporcionalidade no trata-
mento equiparado a hediondo, bem como o alcance massivo a
pessoas do sexo feminino, contribuindo para o aumento da popu-
lação carcerária.
Também aparece como um fio de esperança a Lei
13434/2017, que proíbe o uso de algemas em mulheres grávidas
durante o parto e no período de puerpério imediato, e a recente
decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal que,

187
já neste ano, determinou a substituição da prisão preventiva por
domiciliar para mulheres presas gestantes ou mães de crianças
de até 12 anos ou com alguma espécie de deficiência. Apesar da
clara influência nestes eventos das Regras de Bangkok, assumidas
como compromisso pelo Estado brasileiro, ainda são urgentes o
fomento e a implementação prática no País das normas de direito
internacional dos direitos humanos.
As diferenças entre os índices de encarceramento inaceitáveis
ou satisfatórios e sua evolução não se explicam de acordo com os
índices de criminalidade, mas sim pelas distintas políticas sociais
e penais aplicadas e o grau de disparidade que exibem. Ao invés
da repressão exacerbada dos tempos de guerra em que parecemos
estar atualmente, é preciso pensar e realizar medidas de preven-
ção ao delito com políticas públicas de combate à pobreza, ao
desemprego e à falta de educação. Devem também ser priorizadas
soluções judiciais que facilitem a utilização de alternativas penais
ao encarceramento, principalmente nas hipóteses em que não haja
sentenças condenatórias irrecorríveis. Somente assim as mulheres,
que já são maioria da população, poderão mudar o quadro de pro-
funda discriminação em que vivem e escolher, verdadeiramente,
caminhar de acordo com a lei.

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192
APLICAÇÃO DA CARGA DINÂMICA DO ÔNUS
DA PROVA COMO MÉTODO DE
CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
IGUALDADE SUBSTANCIAL NO PROCESSO
CIVIL BRASILEIRO

Italo Barbosa Leôncio Pinheiro44

Introdução

O
direito processual civil, ao longo dos anos, passou a ser
concebido, do ponto de vista de sua função jurídica,
como um instrumento a serviço do direito substancial
(ou material). Isso significa que ele mantém uma relação de inter-
dependência necessária com o direito material, na medida em
que tem como objetivo a construção de um método adequado
à verificação da veracidade e, consequentemente, da existência
de um direito material deduzido em juízo, a fim de outorgar a
competente tutela jurisdicional às situações amparadas pelo orde-
namento jurídico.
Nesta seara, também o processo, enquanto operação que se
destina a compor um litígio – ou naqueles casos de jurisdição gra-
ciosa – é concebido como um verdadeiro instrumento de efetiva
realização do direito material deduzido em juízo.

44 Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/PT. Advogado.


Assessor da 2ª Promotoria de Família e Sucessões do Ministério Público do
Estado da Paraíba.

193
Em um cenário onde o processo está cada vez mais compro-
metido com a justa composição do litígio – entendida esta como a
efetiva adequação do processo ao direito material – e, consequen-
temente, com a busca da verdade real, o estudo da distribuição
do ônus probatório no processo mostra-se de suma importância
para o alcance das finalidades que lhe são inerentes, mormente no
que diz respeito à inversão do ônus probatório, haja vista que o
referido instituto concretiza diversos princípios fundamentais na
perspectiva substancial da tutela jurisdicional, entre eles o princí-
pio da igualdade das partes e da cooperação.
Neste sentido, o presente trabalho tem como escopo o estudo
da inversão do ônus da prova no processo civil em uma perspec-
tiva voltada para o princípio da igualdade das partes (paridade de
armas), sem, contudo, olvidar da existência de um direito proces-
sual subjetivo à prova.

1 A prova

A despeito do que ocorre com alguns institutos e concei-


tos jurídico que, muitas vezes, dizem respeito, tão somente, a
determinado ramo do direito, a noção de prova, nas palavras de
ECHANDIA “não apenas tem relação com todos os setores do
Direito, mas transcende o campo geral deste, para estender-se
a todas as ciências que integram o saber humano e, inclusive, à
prática diária da vida”45. Talvez seja esse o motivo pelo qual a ter-
minologia “prova” é utilizado em diferentes sentidos, sendo que o
sentido jurídico-processual é o que verdadeiramente importa no
curso do presente trabalho.
1. Com efeito, juridicamente, a palavra “prova” também
é utilizada em vários sentidos. Os principais, e que são
mais utilizados pela doutrina, são três, muito embora

45 ECHANDIA, Hernando Devis. Teoria General de le PruebaJjudicial. 5 ed.


Buenos Aires: Victor P. de Zavalía Editor, 1981, t.1, p.9.

194
cada um deles seja utilizado, não raras às vezes, em mais
de um sentido: A prova como meio; como atividade e a
prova como um resultado.46
2. ECHANDIA, citando FLORIAN, professa que a noção
de provas abarca três aspectos, a saber: a) sua manifesta-
ção formal, que seriam “os meios utilizados para levar ao
juiz o conhecimento dos fatos, incluindo depoimentos,
documentos, indícios, etc.”, em outras palavras, os meios
de prova; b) seu conteúdo essencial, “que são as razões
ou motivos extraídos desses meios sobre a existência ou
inexistência dos fatos”; c) seu resultado subjetivo, que é
o convencimento do julgador. Neste sentido, “o juiz con-
clui se há, ou não, prova de determinados fatos”.47

2 Função da prova

A todo aquele que se debruça sobre o estudo da prova no


processo vem à mente a questão da função (ou finalidade) da
prova e, via de regra, vem consigo a ideia de que a prova destina-
se à investigação da veracidade dos fatos jurídicos ocorridos sobre

46 LEONARDO GRECO, citando MICHELE TARUFFO aduz que este autor


“acentua a diversidade de significados de prova (p. 414), ora como demonstra-
ção, ora como experimento, e também se refere à sua dimensão polissêmica
(p. 421- 423): 1) aquilo que serve ou pode servir para confirmar ou falsificar
uma asserção relativa a um fato da causa (meios de prova); 2) o resultado da
produção dos meios da prova e da sua avaliação pelo juiz; 3) O meio lógico e
gnoseológico e o procedimento”. (GRECO, Leonardo. O Conceito de Prova.
Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV. Nº 4 e Ano V, Nº 5;
2003/2004. p. 213). No mesmo sentido: GASTAL, Alexandre Fernandes. A
Suficiência do Juízo de Verossimilhança para a Decisão das Questões Fáticas. 2006.
203 f. Tese [Doutorado em Direito] – Curso de Pós Graduação em Direito,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul. 2006. p. 24;
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial.  2. ed. São
Paulo: Max Limonad, 1952, p. 16.
47 ECHANDIA, Hernando Devis. Compendio de Pruebas Judiciales. Tomo I. Santa
Fe, Argentina: Rubinzal-Culzoni, 1984. p. 21.

195
os quais incidirá a norma jurídica abstrata, que deverá regular
determinada situação. Com efeito, a função da prova ocupa papel
de suma importância, principalmente sob a ótica do processo
moderno, que tem como um dos seus objetivos fundamentais, a
justa composição do litígio.
Nesta senda, há no processo uma verdadeira reconstrução
dos fatos concretamente ocorridos e, só então, convencido das
alegações das partes, o juiz aplica a norma anteriormente abstrata
que passará a reger aquele fato. Sobre esta reconstrução fática,
CARNELUTTI afirma que “a primeira tarefa de julgar é recons-
truir o evento, o tribunal não poderia proceder à comparação do
fato com a norma antes de tê-lo reconstruído”48.
Ao lecionar sobre a importância da verdade e da prova no
processo, CHIOVENDA expõe que o processo de conhecimento
trava-se entre dois extremos, nomeadamente, a demanda e a sen-
tença, através de uma série de atos, sendo que “esses atos têm,
todos, mais ou menos diretamente, por objeto, colocar o juiz em
condições de se pronunciar sobre a demanda e enquadram-se par-
ticularmente no domínio da execução das provas” 49.
É bem verdade que a efetividade da tutela jurisdicional é um
dos escopos do processo moderno, consubstanciado em assegurar
ao demandante exatamente aquilo que ele teria caso seu direito
não tivesse sido violado, dispondo dos meios de tutela adequados,
em consonância com as normas de direito substancial, no menor
espaço de tempo e com o mínimo de esforço possíveis. 50

48 CARNELUTTI, Francesco. Diritto e Processo, Napoli: Morano, 1958, p. 94.


49 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, vol. 1 e vol. 2,
trad. Paolo Capitanio, Campinas: Bookseller, 1998, p. 72.
50 ALBINO ZAVASCKI, em posicionamento semelhante afirma que “o direito
fundamental à efetividade do processo – que denomina também, generica-
mente, direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa – compreende,
em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também
e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com

196
Essa busca pela efetividade da tutela jurisdicional fez brotar
a necessidade de buscar-se a verdade dos fatos tal qual ocorridos
no plano material, em outras palavras, a busca pela efetividade,
entre outras coisas, fez surgir a necessidade da busca pela verdade
material em detrimento da busca formal. Neste sentido, a prova
visa “de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à apli-
cação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado
de convicção, assente na certeza relativa do facto”. 51
Percebe-se, então, que a finalidade da prova é, antes de mais,
convencer o juiz de quem merece o provimento jurisdicional favo-
rável, através de uma decisão justa. Em outras palavras, a finalidade
da prova é “prestar-se como peça de argumentação, no diálogo
judicial, elemento de convencimento do Estado-Jurisdição, sobre
qual das partes deverá ser beneficiada, com a proteção jurídica do
órgão estatal”. 52
Com efeito, a importância fundamental do direito proba-
tório ocorre pelo fato de que nada pode ser pleiteado em juízo
(pelo menos não com êxito), se o destinatário do pretenso direito
não possuir um mínimo de embasamento probatório, objetivando
corroborar suas alegações. Muito embora em alguns processos as
partes discutam apenas o direito material aplicado ao caso, em
muitos outros o conflito dos litigantes versa acerca das arguições

potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos”. (ZAVASCKI, Teori Albino.


Eficácia Social da Prestação Jurisdicional. Revista de Informação Legislativa, v. 31,
n. 122, abr./jun. 1994, p. 294).
51 VARELA, Antunes; BEZERRA, J. Miguel; NORA, Sampaio e. Manual de
Processo Civil – De acordo com o Dec.-Lei 242-85. 2. ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2004, p. 435/436.
52 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil: Processo de Conhecimento. 10. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2011, v. 2, p. 75.

197
baseadas em fatos, onde é imprescindível a sua demonstração a
fim de que o juiz possa apreciá-los. 53
Nesta perspectiva, muito mais do que tentar reconstruir os
fatos, a prova assume, nas palavras de MARINONI “um papel
de argumento retórico, elemento de argumentação, dirigido, a
convencer o magistrado de que a afirmação feita pela parte, no
sentido de que alguma coisa ocorreu, merece crédito” 54.

3 Ônus da prova

A distribuição do ônus da prova no processo apresenta-se


como um tema que detém estreita ligação com a prestação juris-
dicional, tendo em vista que o resultado final do processo se
manifesta não apenas como elemento de interesse das partes liti-
gantes, mas também da própria administração da justiça e sofre
grande influência das regras e da forma como o encargo probató-
rio é distribuído no caso concreto.
Ao propor a ação, o autor afirma ter ocorrido um determi-
nado fato, o qual, no entanto, pode não corresponder à verdade.
O réu, por sua vez, pode opor uma afirmação contrária, negar a
veracidade das alegações autorais ou aduzir um fato impeditivo,
extintivo ou modificativo do direito deste, cujo teor pode também
não condizer com a verdade. Cabe às partes lançar mão de elemen-
tos probatórios tais que convençam o julgador da verossimilhança

53 Pensar o contrário seria, na visão de MARIANA BORGES REMATOSO


“possibilitar a instalação de um verdadeiro caos jurídico, no qual bastaria que
determinada pessoa fizesse uma simples alegação e, consequentemente, se
beneficiaria dos direitos atinentes à mesma”. (RETAMOSO, Mariana Borges.
A (in)eficácia da prova emprestada in Revista de Direito Privado, ano 11, nº 41,
jan/mar 2010, p. 153).
54 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil, ob. cit., p. 76.

198
das suas alegações objetivando a obtenção de êxito no término do
processo.
Desta forma, proposta a ação, as partes têm interesse em ofe-
recer ao julgador todos os elementos de prova possíveis a fim de
que seja dado um provimento legítimo a respeito da controvérsia,
capaz de por fim ao conflito de interesses, obtendo um pronun-
ciamento que lhes seja favorável. 55
Nas palavras de ALMEIDA CAUTELA, se as partes que-
rem que os fatos por si aventados sejam dados como existentes,
elas têm de provar os respectivos conteúdos, configurando-se a
prova “a primeira condição para que um direito possa ter eficácia
plena, visto que ter um direito e não ter as condições suficientes
para o provar, é ter um direito ao arbítrio da outra parte”.5614 Na
verdade, a questão do ônus da prova, e mais especificadamente, a
forma como ele é repartido entre as partes provoca, no processo,
implicações bem mais profundas do que aquelas que usualmente
se supõe.
Uma vez que detém em suas mãos um “poder-dever”, o
Estado não pode, em respeito ao princípio da indeclinabilidade
da jurisdição, omitir-se desta e deixar de pôr fim ao litígio a ale-
gação de insuficiência de provas ou de dúvida insanável a respeito
da controvérsia dos fatos, tal qual o juiz romano, a quem era pos-
sibilitado o julgamento a partir do juramento “sibi non liquere”, ou

55 Neste sentido, RENAULT GODINHO ensina que “a ideia básica sobre o ônus
da prova é, em síntese, o aproveitamento que a parte pode ter ao produzir a prova
que, em princípio, traga-lhe benefício, servindo ao juiz para o julgamento da
causa quando houver dúvidas sobre os fatos relevantes”. (GODINHO, Robson
Renault. A distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos funda-
mentais in CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras Complementares
de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Ed. 2. Salvador: JusPodium,
2007, p. 299
56 CAUTELA, Maria Helena de Almeida. Elementos para o Estudo do Ónus da
Prova: Trabalho apresentado ao Júri do 5º ano [Ciências Jurídicas], Coimbra: 1938,
p. 6/7.

199
em outras palavras, sob a alegação de que “não havia conseguido
formar uma opinião segura sobre a causa”.57
A fim de evitar a incidência das situações acima declinadas é
que foram criadas as chamadas regras do ônus da prova, cujo con-
teúdo determina a quem incumbe os encargos de provar e prevê
as consequências suportadas pelo onerado que não logrou, total
ou parcialmente, fazê-lo. Em que pese a importância da distribui-
ção do encargo probatório, as consequências da sua inobservância
somente serão aplicadas nos casos em que o juiz, não obstante
as tentativas de demonstração desenvolvidas por si e, principal-
mente, pelas partes, continua sem saber se os fatos relevantes para
a decisão da causa realmente aconteceram.
Neste sentido, uma vez que o ordenamento jurídico estabe-
leceu o princípio da proibição do non liquet, cumpre determinar
qual será o conteúdo da sentença caso o juiz, conforme mencio-
nado, permaneça em dúvida ao final da atividade instrutória, uma
vez que, na lição de ANTUNES VARELA, ainda que a dúvida
do magistrado seja “insuperável no plano psicológico (mercê da
inopia probationum), o juiz tem que condenar ou que absolver
(do pedido ou da instância)”, não podendo abster-se de julgar,
segundo o ditame da lei.5816
É nesse ponto crucial que incidem as regras do encargo pro-
batório. Diante da dúvida, o non liquet do julgador converte-se em
um liquet em desfavor da parte a quem incumbe o ônus da prova.
Em outras palavras, intervém aqui uma regra de julgamento, cujo
conteúdo dita ao magistrado o conteúdo da decisão que deve ser
proferida.

57 KARAM, Munir. Ônus da Prova: Noções Fundamentais. Revista de Processo,


São Paulo, n. 17, p. 50/60, jan/mar. 1980, p. 51.
58 VARELA, Antunes; BEZERRA, J. Miguel; NORA, Sampaio e. Manual…, ob.
cit., p. 447.

200
Na dicção de ALBERTO DOS REIS, “a regra pode enun-
ciar-se assim: na falta ou insuficiência de provas, o julgador rejeita
a pretensão deduzida pela parte à qual incumbia fazer a prova
ou sobre a qual deva entender-se que recaía, no caso concreto, o
onus probandi”.5917 Infere-se, desta forma, que a distribuição do
encargo probatório possui duas vertentes. Por um lado, funciona
como regra de conduta objetivando estabelecer sobre quem recai
o encargo da prova e por outro constitui uma regra de julgamento
(ou regola de giudízio) acima especificada.
Observado que o ônus da prova incumbia ao autor, a falta ou
insuficiência de provas ensejará na improcedência da pretensão
por ele declinada. Por outro lado, uma vez que o ônus da prova
recaia sobre o réu, o juiz, diante da incerteza dos fatos, terá de
rejeitar e pretensão deste último. Por essas razões é que se mos-
tra imprescindível o estudo do ônus da prova, já considerada, por
alguns doutrinadores como a espinha dorsal do processo.

4 Ônus subjetivo

O ônus subjetivo da prova configura-se como uma regra de


conduta para as partes que pretendem ver a demanda ser julgada
favoravelmente às suas respectivas pretensões. A ele cabe a distri-
buição dos fatos que devem ser provados por cada parte a fim de
que obtenham uma decisão favorável.
A indagação feita por este aspecto do ônus tem o condão
de verificar a quem, no litígio, compete produzir a prova para
não correr o risco de perder a demanda considerando a natureza
dispositiva do processo que, confiando-lhes o encargo probató-
rio, também lhe atribui a correspondente responsabilidade. Para
ROSENBERG, ao admitir essa classificação, o ônus da prova

59 REIS, José Alberto dos. Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3. ed., reimpr.,
Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 270. p. 271

201
configuraria um problema de aplicação do direito60, tendo em vista
que a aplicação de uma norma só é possível quando seu enunciado
hipotético, abstratamente previsto pela lei, se converteu em reali-
dade concreta, o que não ocorre quando o juiz, no curso da ação,
não formou sua plena convicção.
Os inconvenientes da incerteza gerada no espírito do julga-
dor devem ser suportados pela parte cujo êxito depende a aplicação
do preceito. Daí que cada litigante deva sofrer o encargo de pro-
duzir a prova da existência dos pressupostos (ainda que negativo)
das normas que lhe são favoráveis. Em outras palavras, se o autor
(ou réu) invocar a incidência de determinada norma, deve fazer a
prova da configuração de seus pressupostos, a fim de que aquela
norma possa ser aplicada em seu favor.
Por outro lado, uma vez analisado através do conceito de
ônus objetivo da prova, o resultado obtido pelo autor ou réu não
é consequência imediata da atividade probante que cada uma
desenvolveu tendo em vista que o magistrado deve tomar em
consideração todo o material probatório recolhido ao processo.
O que interessa é saber aquilo que foi demonstrado e não quem
o demonstrou.
Com efeito, o ônus da prova subjetivo se volta para os liti-
gantes a fim de indagar qual deles há de suportar o risco da
frustração da prova no processo. Conforme tivemos oportunidade
de mencionar, neste aspecto, ele estipula uma regra de conduta
a ser seguida pelas partes, apontando “quais os fatos que devem
ser provados por cada qual, com vistas a obter uma decisão
favorável”.61

60 ROSENBERG, Leo. La Carga De La Prueba. Trad. Ernesto Krotoschin,


Buenos Aires: EJEA, 1956, p. 129/130.
61 CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição dinâmica do ônus da prova. Rio de
Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 30.

202
Nas palavras de ROSENBERG o ônus subjetivo é aquele
“que incumbe a uma parte de subministrar a prova de um fato
controvertido, mediante sua própria atividade, se quiser evitar a
perda do processo”. Isso porque, apesar de serem livres para afir-
marem e provarem os fatos, uma vez que estes integrem o thema
probandum e sobre eles não seja feita a respectiva prova pela parte
onerada, ela pode vir a sofrer “as consequências desfavoráveis, eis
que diminui as suas chances de poder convencer o juiz de que tem
razão”.62
O ônus subjetivo da prova encontra-se intimamente rela-
cionado com o princípio dispositivo na medida em que a parte
onerada com o encargo probatório é quem deve ficar sujeita ao
risco de ver sua pretensão rejeitada pelo tribunal, “por não ter
sabido ou querido carrear para o processo o conjunto de provas
suficientes para formar a convicção do julgador sobre os factos
controvertidos”.63
Nas palavras de VAZ SERRA “uma vez que vigora no pro-
cesso civil o princípio dispositivo, tem a parte, que pretenda seja
dado valor a certo facto em juízo, de alegá-lo e fazer a prova dele:
é este o chamado ónus subjectivo ou formal ou ónus de pro-
dução da prova”.64 De fato, em um sistema processual pautado,
primordialmente, pelo princípio dispositivo, onde o juiz deva jul-
gar segundo aquilo que foi alegado pelas partes, o ônus da prova
sujeita o litigante não apenas a afirmar o respectivo fato, como
também prová-lo, sob pena de ser considerado como assente o
fato contrário.65

62 ROSENBERG, Leo. La Carga De La Prueba. Op. cit., p. 15.


63 RANGEL, Rui Manuel de Freitas. O Ónus da Prova no Processo Civil, 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 2006, p. 130.
64 SERRA, Adriano Paes da Silva Vaz. Provas – Direito Probatório Material.
Lisboa: 1962, p. 59
65 “este sistema, quando aceite na sua profundidade, impede o tribunal de, por
iniciativa própria, suprir a negligência ou a inépcia da parte, que no que se

203
Mutatis mutandis, nos ordenamentos jurídicos em que há
previsão de poderes instrutórios do magistrado, o ônus subjetivo
da prova fica sempre limitado. VAZ SERRA, utilizando o sistema
processual civil português que confere ao juiz um largo âmbito de
iniciativa probatória diz que nesses casos “o ónus probatório sub-
jectivo não é completo, estando temperado pelos poderes do juiz
no campo da produção da prova”.66
O ônus objetivo da prova, por sua vez, tem o condão de guiar
o magistrado a proferir uma decisão nos casos em que, mesmo
após o término da atividade instrutória, permanece com dúvidas
em relação aos fatos.

5 Ônus objetivo

Ao contrário daquilo que ocorre quando se analisa o ônus da


prova pelo aspecto subjetivo, aqui, na modalidade objetiva, o que
importa saber não é quem deverá provar os fatos alegados, mas
sim quais desses fatos deverão ser provados a fim de que a decisão
judicial seja proferida neste ou naquele sentido.
Além disso, em seu viés objetivo, o ônus da prova significa
exatamente uma regra de julgamento da qual o juiz se utilizará
quando, mesmo ao término da atividade probatória realizada
pelas partes, e por si, não possuir certeza quanto às alegações
daquelas e, consequentemente, não possuir subsídios para proferir

reporta as factos relevantes à fundamentação da sua pretensão, quer no que se


refere à prova dos factos alegados. O tribunal só pode julgar de acordo com os
factos alegados e provados pelas partes em litígio”. (RANGEL, Rui Manuel de
Freitas. ob, cit., p. 131/132).
66 Ibid, p. 59. Para FREITAS RANGEL “a existência deste princípio de investi-
gação impossibilita o estabelecimento de uma relação de dependência entre a
atividade da parte e a verificação de um determinado resultado” (Ibid, ibdem, p.
132).

204
sua decisão, respeitando sempre o princípio da inafastabilidade da
jurisdição.67
Apesar de todos os esforços empreendidos, pode acontecer
que os elementos probatórios indispensáveis à instrução do feito
não sejam trazidos ao processo e, consequentemente, o magis-
trado não tenha condições de modelar a realidade dos fatos, bem
como promover o acertamento daqueles que foram objeto do
litígio e, consequentemente, formar sua convicção em torno da
controvérsia, decidindo-a.
Em casos como esses, ao magistrado é defeso dar um pro-
nunciamento de non liquet se abstendo de analisar o mérito da
demanda sob a alegação de falta ou insuficiência de provas ou,
até mesmo, da inexistência de norma jurídica aplicável ao caso
concreto. Sobre este órgão recai o poder-dever de dizer a solução
que, dentro dos ditames da justiça, melhor se encaixe à questão
que lhe foi colocada.
Conforme mencionado por SANTI CREMASCO: “O juiz
deve julgar. O juiz tem que julgar”.68 Em outras palavras ao juiz é
vedado “pronunciar non liquet.” Dessa forma, mesmo que ele “não
se convença acerca da realidade fática discutida no processo, ele
deve pronunciar uma sentença pondo fim à lide”.69
Sendo assim, uma vez que não está convencido da veraci-
dade dos fatos em virtude da ausência de prova, deve o magistrado

67 EDUARDO CAMBI, reportando-se à importância do ônus objetivo da prova


no processo civil brasileiro diz que “o ônus da prova em sentido objetivo é uma
exigência prática, visto que, não sendo possível a pronúncia judicial non liquet,
se não existisse esse mecanismo de resolução das dúvidas, dar-se-ia ensejo à
denegação da justiça, contrariando a regra constitucional, contida no art. 5º, inc.
XXXV, CF, que prevê a garantia do acesso à justiça” CAMBI, Eduardo. A Prova
Civil – Admissibilidade e Relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.
329.
68 CREMASCO, Suzana Santi. ob. cit., p. 31.
69 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no direito processual
civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000 p. 135.

205
se valer das regras de distribuição do ônus da prova para julga-
mento final da lide pronunciando um julgamento desfavorável
àquele a quem tocava o ônus probatório. Em outras palavras, a lei
estabelece critérios no sentido de indicar ao juiz qual das partes
suportará as consequências de não restar provada a alegação que
lhe aproveitava.70
Certamente que as regras do ônus da prova não solucionam
as situações de non liquet, posto que o magistrado (ou tribunal)
permanece na dúvida acerca dos acontecimentos dos fatos con-
trovertidos. No entanto, apesar da dúvida insanável, aquelas regras
ajudam a dar sustentação à decisão judicial. “Trata-se de regras
de decisão. A verdadeira função do ónus objectivo ou material da
prova é fornecer um critério de decisão”7129
É importante frisar que o ônus objetivo da prova, e sua res-
pectiva regra de julgamento, só é relevante para o êxito do processo
nos casos em que a prova principal não foi produzida ou, uma
vez produzida, não logrou formar no juiz um espírito de certeza
acerca da veracidade das alegações. Nos casos em que o tribunal
formou sua convicção pela prova carreada por uma ou outra parte,

70 Em outro prisma GIOVANNI VERDE dispõe que a regra de julgamento não


advém da necessidade que o juiz tem de decidir mesmo quando os fatos per-
maneçam incertos, mas sim da convicção de que é necessário existir uma regra
apropriada que estabeleça o conteúdo da decisão nestes casos. Nas palavras
do autor: (VERDE, Giovanni. Considerazioni Sulla Regola di Giudizio Fondata
Sull’onere Della Prova in Rivista di Diritto Processuale, Milano, volume XXVII
[II série], 1972, p. 444)
71 RANGEL, Rui Manuel de Freitas. ob, cit., p. 136.

206
o ônus objetivo torna-se irrelevante.72 Por isso, diz-se também que
sua utilização é subsidiária.73
E isso ocorre porque o ônus objetivo da prova encontra-
se intimamente relacionado com dois princípios que norteiam
os sistemas processuais modernos, nomeadamente, o princípio
inquisitório e o princípio da aquisição processual. O primeiro tem
o condão de conferir poderes instrutórios ao magistrado a fim de
que ordene, ainda que oficiosamente, as diligências necessárias ao
apuramento da verdade.
O princípio da aquisição processual, por sua vez, estabelece
que o juiz deve levar em consideração todas as provas produzi-
das no processo, tenham ou não emanado da parte interessada. O
resultado das provas que foram oferecidas ou produzidas por uma
das partes aproveita, indistintamente, ao litigante que a produziu,

72 Neste sentido OTHMAR JAUERNIG. Para o autor “o ónus da prova objec-


tivo é irrelevante para o êxito do processo, se a prova parcial resulta (…) pois
o tribunal foi convencido de estar certa a alegação da parte onerada com a
prova. É indiferente se o tribunal adquiriu a sua convicção pela prova de uma
ou outra das partes. (…) O ónus da prova objectivo é relevante para o êxito do
processo se a prova principal não se produziu. Então o juiz não sabe se a alega-
ção da parte onerada com a prova, é verdadeira; há um ‘non liquet’. Contudo,
o juiz tem de decidir sobre o fundo. Por isso tem de determinar qual das par-
tes suporta o risco da falta de prova e que, portanto, perde o processo. Esta
determinação é feita segundo o ónus da prova objectivo que, assim, não regula
a prova, mas antes a falta de prova”. JAUERNIG, Othmar. Direito Processual
Civil. Tradução de F. Silveira Ramos. 25ª ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 273.
73 Neste sentido: FREITAS CÂMARA afirma que “quanto ao chamado ônus
objetivo da prova, há que se firmar, calcado nas lições da mais moderna doutrina,
que as regras sobre distribuição do ônus da prova são regras de julgamento, a
serem aplicadas, como já afirmado, no momento em que o órgão jurisdicio-
nal vai proferir seu juízo de valor acerca da pretensão do autor”. CÂMARA,
Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen
Jures, 2011, p. 404.

207
bem como ao seu adversário. Diz-se que a prova produzida passa
a pertencer ao processo.74
O ônus subjetivo da prova também assume especial relevân-
cia nos casos em que há distribuição legal especial, bem como
naqueles em que há inversão e convenção do ônus da prova.

6 A inversão do ônus da prova

A inversão do ônus da prova não é uma novidade no Direito


brasileiro, uma vez que já há algum tempo tanto a doutrina
quanto a jurisprudência pátria têm defendido sua aplicabilidade.
Hodiernamente o instituto passou a ser disciplinado pelo Código
de Processo Civil, na modalidade dinâmica de distribuição do
ônus da prova, o que ensejará – naturalmente – uma maior aplica-
bilidade em virtude do legalismo do nosso sistema jurídico.
Inicialmente convém esclarecer que o Código de Processo
Civil de 2015 adotou em seu artigo 373 – assim como já o fizera o
Código de Processo Civil de 1973 – a denominada regra (ou dis-
tribuição) estática do ônus da prova. Em outras palavras, atribuiu,
sob a dimensão subjetiva, “o encargo probatório a quem alega”.75
O CPC/73 não previa, contudo, a possibilidade legal de inversão
do ônus probatório (com exceção da chamada “convenção sobre o

74 FLÁVIO CORREIA DE ALMEIDA afirma que “a prova não ‘pertence’ à


parte. Uma vez produzida, passa a integrar o processo, podendo o juiz nela
se basear, seja favoravelmente à parte que a produziu, seja contrariamente a
seu interesse (…) Uma vez integrando o processo, todas as provas servem
para o convencimento do juiz. É por isso que a sentença de improcedência
pode se fundar em prova produzida pelo autor, e vice-versa”. ALMEIDA,
Flávio Renato Correia de. Do Ônus Da Prova in Revista de Processo, vol. 71,
Julho/1993, p.49/50.
75 PEREIRA, Mateus Costa; DUARTE, Ronnie Preuss. O Novo CPC e a dina-
mização das cargas probatórias: rumo a um tratamento isonômico em matéria
de ônus probatórios, in Novo CPC Doutrina Selecionada. (coord. Fredie
Didier Júnior). V.3. Ed. 2. Salvador: Editora Jus Podium, 2016, p. 611.

208
ônus da prova”). Há forte crítica em relação a artificialidade com
que o tema foi tratado pelo legislador de 1973, tem em vista que-
mele foi indiferente às normas de direito material. Nas palavras
de PEREIRA e DUARTE “o legislador conferiu tratamento uni-
forme a todas as situações, o que, de certa forma, pressupõe uma
paridade – perpétua – de armas dentre as partes”.76
O Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, atento
para a importância da distribuição do ônus da prova em face
da justiça da decisão eventualmente prolatada, bem assim para
a proteção do consumidor em juízo, adotou a possibilidade de
inversão do ônus probatório, em favor deste último, sempre que
ficasse demonstrada a hipossuficiência ou a verossimilhança de
suas alegações (art. 6º, VI, CDC). Assim, diferente do que fizera
o legislador de 1973, prezou o legislador consumerista pelo tra-
tamento isonômico das partes, em seu aspecto substancial, na
medida em que atentou para as complexidades estabelecidas pelo
cotidiano.
Neste diapasão, a inversão do encargo probatório pressupõe,
necessariamente, a ocorrência de uma das situações previstas em
lei. Há, nesse sentido, crítica da doutrina, uma vez que a refe-
rida inversão do ônus probandi não somente ficaria limitada às
ações consumeristas como também exteriorizaria uma visão redu-
cionista da complexidade das relações materiais, uma vez que o
tema teria sido abordado pelo CDC como uma verdadeira redis-
tribuição estática do ônus da prova, haja vista a necessidade de
enquadramento de uma situação de fato que reflita os requisitos
impostos pelo comando legal.

7 A distribuição dinâmica do ônus da prova e o princípio da


igualdade

76 PEREIRA, Mateus Costa; DUARTE, Ronnie Preuss. O Novo CPC e a dina-


mização das cargas probatórias, op. cit., p. 612.

209
A inversão do ônus da prova preconizada pelo legislador
consumerista não se equipara à distribuição dinâmica do encargo
probatório que fora adotada, ao lado da distribuição estática, pelo
Código de Processo Civil de 2015.
É importante frisar, inicialmente, que embora tenha o legis-
lador consumerista previsto a inversão do ônus probatório, em
determinadas situações, tal fato se limitou – como já se disse – às
postulações dos consumidores, de modo que o problema de acesso
à justiça em relação à dificuldade de produção de provas em
determinadas situações não melhorou com a aplicação daquele
instituto. Isso porque, ao não prever a inversão do ônus da prova
naqueles casos de extrema dificuldade de produção probatória
(ex: a chamada prova diabólica), a solução das demandas acabava
passando pela regra geral insculpida no artigo 333 do CPC/73,
dada a relutância dos Tribunais em aplicar a referida construção
doutrinária.
DALL’AGNOL JR., por exemplo, criticava aqueles que
relutavam em admitir que a distribuição dinâmica do ônus da
prova encontraria amparo no ordenamento jurídico brasileiro,
ainda quando não expressamente previsto. Isso porque para o
autor, os poderes instrutórios do juiz eram suficientes para justi-
ficar a possibilidade do órgão jurisdicional redistribuir, conforme
as peculiaridades do caso concreto, os encargos probatórios no
processo. O autor assevera que “na visão tradicional, a incidência
do art. 333, do CPC, ostentar-se-ia inexorável; e asséptica, por-
que de resolução em abstrato, sem consideração para com o caso
concreto”.77
Pois bem. Na esteira daquilo que delimitava o artigo 333 do
Código de Processo Civil de 1973, o legislador de 2015 também

77 DALL’AGNOL JÚNIRO, Antonio Janyr. Distribuição Dinâmica dos Ônus


Probatórios. Revista Jurídica, Porto Alegre: Notadez/Fonte do Direito, n. 280,
fev. 2001, p. 11.

210
passou a prever a distribuição estática do ônus da prova (art. 373,
CPC). Como é cediço, a distribuição do encargo probatório pode
ser realizada da forma fixa, quando o legislador atribui o ônus
da prova a partir das alegação as partes, ou da forma dinâmica,
quando o legislador possibilita que o juiz, a depender do caso con-
creto, redistribua aquele ônus entre aqueles que possuem melhores
condições de arcar com ele.
A distribuição estática leva em consideração, nas palavras
de YASHIKAWA, o efeito pretendido pela própria parte. Para
o autor, para ser aplicada “no processo determinada norma jurí-
dica, deve a parte demonstrar a ocorrência do fato que lhe serve
de base, seja ele constitutivo, extintivo, impeditivo ou modificati-
vo”7836 Por sua vez, ensina MITIDIERO que, ao contrário daquilo
que acontece na distribuição estática, o sistema delega ao juiz, na
distribuição dinâmica, “o dever de estabelecer o encargo probató-
rio à luz do caso concreto. Ao fazê-lo, o juiz exerce o seu dever de
auxílio para com a parte onerada pela parte de difícil produção”.79
Com efeito, a distribuição estática do ônus da prova tem
uma inexorável ligação com o princípio da segurança jurídica,
na medida em que este impõe que haja uma certa margem de
previsibilidade na aplicação das regras jurídicas, mormente no
processo judicial onde ao órgão jurisdicional é conferido o dever
de criar uma norma jurídica individualizada que passará a dis-
ciplinar a relação entre as partes.80 Não é outro o entendimento
de YARSHEL sobre o tema quando afirma que a distribuição

78 YASHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. A Distribuição do Ônus da


Porva no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. in Novo CPC Doutrina
Selecionada. (coord. Fredie Didier Júnior). V.3. Ed. 2. Salvador: Editora Jus
Podium, 2016, p. 563.
79 MITIDIERO, Daniel; ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Curso de
processo civil: São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 89.
80 Sobre a atividade criativa do juiz verificar: DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso
de Direito Processual Civil. Salvador: Editora Jus Podium, 2016, v. 1, p. 158.

211
estática se aperfeiçoa com “o denominado princípio de confiança
legítima, que pode ser tido como expressão do direito fundamental
à segurança – consagrado no art. 5º, caput, da CF brasileira”, mor-
mente em se tratando da atividade realizada pelos tribunais que,
por si só, pode ser causa de insegurança para os jurisdicionados.8139
Um dos fundamentos da distribuição dinâmica do ônus da
prova é a necessidade de flexibilização das regras rígidas quando
a parte que está onerada não tem condições de se desincumbir
do encargo, por motivos que não lhe são inerentes. Dessa forma,
ensina COUTO que “não interessa a posição da parte no processo
se autor ou demandado, devendo produzir a prova, especialmente
aquela parte que se encontra em melhores condições para tal”82.
Em outras palavras, ao prevê a distribuição dinâmica, o legislador
concretiza o princípio da igualdade substancial das partes, a fim
de que ambas possam demandar em paridade de armas quando
alguma delas está em manifesta posição de desvantagem e, por-
tanto, vulnerável na relação processual.
O referido princípio foi acolhido pelo Código de Processo
Civil de 2015 em seu artigo 7º, ao prever ser “assegurada às par-
tes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e
faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres
e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo
efetivo contraditório”. Paridade, na lição de Cruz e Tucci signi-
fica que “todas as partes que atuam no processo devem dispor de

81 YARSHEL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e


direito autônomo à prova. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 92.
82 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização do ônus da prova no processo
civil: Teoria e prática. Curitiba: Editora Juruá, 2014, p. 99. O doutrinador acres-
centa que “Da mesma forma em âmbitos gerais, não interessa a natureza do
fato alegado, ou seja, se constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo do
autor”.

212
oportunidades processuais preordenadas e simétricas”83. O supra-
citado princípio é corolário do princípio da igualdade previsto na
Constituição Federal e, pois, um direito fundamental e, além de
ser concebido como componente autônomo da garantia de um
processo justo, também está relacionado com outros princípios
processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório.
A concretização do princípio da igualdade, em sua perspectiva
substancial, encontra amparo no desenvolvimento humanístico do
Direito e, consequentemente, do processo. Isso porque no decor-
rer na história do Direito, os doutrinadores passaram a enxergar a
necessidade de o órgão jurisdicional adotar uma postura diferente
daquela totalmente imparcial em relação ao conteúdo da contro-
vérsia. Neste sentido, o juiz passou a ter uma responsabilidade
material na condução do processo em detrimento daquela outrora
adotada, onde ele era totalmente inerte aos erros, omissões e inca-
pacidades das partes. A referida postura do órgão jurisdicional
também encontra amparo nos deveres inerentes a si por força do
que dispõe o princípio da cooperação, expressamente previsto no
artigo 6º do Código de Processo Civil de 2015.84
Nessa esteira, o legislador de 2015 inovou em relação ao de
1973 ao prever expressamente a aplicação da distribuição da carga
dinâmica, no artigo 373, §1º, quando dispôs que “nos casos pre-
vistos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à
impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo
nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova

83 TUCCI, José Rogério Cruz e. “A garantia constitucional do contraditório no


projeto do CPC: análise e proposta. Disponível em: << http://www.iabnacional.
org.br/mais/mural-do presidente/download/76_a96e4b0ace901e78559a61c-
5ff5d3497>>. Acesso em: 01 de abril de 2018.
84 Sobre o princípio da cooperação e os deveres imputados às partes e ao
juiz, conferir: THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle;
BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC:
Fundamentos e Sistematização. Ed. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 87.

213
do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo
diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que
deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que
lhe foi atribuído”.
Como se pode perceber, os requisitos inerentes à aplicação
do supracitado instituto estão expressamente previstos no §1º,
do artigo 373, do novo CPC. De uma leitura do texto norma-
tivo, verifica-se que o legislador adequou a distribuição do ônus
da prova às premissas do processo no estado Constitucional. A
uma, porque, conforme anteriormente mencionado, o CPC traz
atualmente a previsão do princípio da cooperação. A duas, por-
que também consagra o contraditório e a igualdade processual
substancial, o que, na lição de MACÊDO e PEIXOTO “propi-
cia o acesso à justiça qualitativamente diferenciada. São medidas
salutares, hábeis à estruturação in concreto do processo pelo órgão
judicial”.85
Em que pese a dificuldade conceitual inicial daquilo que
seria a impossibilidade ou a excessiva dificuldade de cumprir o
encargo – o que certamente somente será elucidado por constru-
ção jurisprudencial em virtude a indeterminação dos conceitos
– para COUTO os mencionados requisitos materiais podem
derivar de algumas assertivas, tais como:
a) ausência de condições fáticas na obtenção da
prova, uma vez que prova não obtida não pode
ser produzida; b) da ausência de condições
econômicas da parte interessada, inserindo-
se perfeitamente neste contexto o conceito
de desigualdade econômica; c) da ausência
das condições técnicas da parte interessada,

85 MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi. O CPC/2015 e a dinamização


do ônus da prova: aspectos essenciais para a compreensão das mudanças. In
Novo CPC Doutrina Selecionada. (coord. Fredie Didier Júnior). V.3. Ed. 2.
Salvador: Editora Jus Podium, 2016, p. 600.

214
inserindo-se neste contexto conceito de desi-
gualdade técnica86

Percebe-se, nesta esteira de ideias, que um dos objetivos pri-


mordiais do legislador foi conferir tratamento paritário, de acordo
com as peculiaridades do caso concreto discutido em juízo, a fim
restabelecer às partes ao mesmo patamar de igualdade proces-
sual. Extrai-se, portanto, do conteúdo da supracitada norma que
o legislador, ao criar um texto aberto e indeterminado, manifestou
de forma expressa seu conteúdo substancial, a fim de que o juiz
possa, nas palavras de MELO “pensar em cada caso em litígio
de forma diferenciada e não com a perspectiva do antigo Estado
liberal legislativo que concebia a lei como sendo genérica, abstrata
e universal em uma sociedade homogênea”87 A autora conclui
dizendo que o texto em exame buscou uma “igualdade substancial
à obtenção de uma tutela jurisdicional justa”.
A distribuição dinâmica do ônus da prova oferece, pois,
uma proteção aos sujeitos processuais e que são desprovidos de
meios jurídicos em relação àqueles que gozam de uma situação
processual – e probante – privilegiada. A norma, ainda na lição
da supracitada autora, exprime “a ideia da igualdade substantiva
e exige, a partir dela, a proteção e imunização dos sujeitos vulne-
ráveis em qualquer circunstância material ou processual, inseridos
numa relação jurídica seja ela qual for”.88 Outro não é o entendi-
mento de COUTO quando afirma que a aplicação do instituto
equilibra “as forças e as armas em âmbito probatório”.89

86 COUTO, Camilo José D’Ávila. Dinamização...op. cit., p. 131.


87 MELO, Gabriela Fonseca de. A Flexibilização do Ônus Probatório. Revista
Magister de Direitos Humanos, nº 22, Jul/Set de 2017, p. 3.
88 MELO, Gabriela Fonseca. A Flexibilização...op. cit.,p. 3
89 O autor vai além e afirma que A dinamização do ônus da prova operaciona-
liza um paradoxo de extrema relevância para a ciência jurídica, expresso na
possibilidade do aumento de certeza versus possibilidade de diminuição das
desigualdades na ausência de certeza fática. Ao mesmo tempo em que sua

215
Percebe-se, pois, que as regras de distribuição do ônus
acolhidas pelo ordenamento brasileiro vêm sofrendo distintas
adequações em prol dos princípios da efetividade, instrumenta-
lidade e publicidade processual. É inegável, nessa esteira, que o
legislador de 2015 rompeu o paradigma de que ao autor incumbe
prioritariamente o ônus da prova dos fatos constitutivos, soando
sempre como uma verdade absoluta.
Isso não significa, por sua vez, o total abandono da distribui-
ção estática do ônus do ônus da prova, dado o caráter subsidiário
da distribuição dinâmica – nos casos em que aquela se mostre
insuficiente – ou em virtude do desequilíbrio anormal da rela-
ção jurídica, oportunidade em que diante da vulnerabilidade da
paridade de armas, o juiz está autorizado a aplicar a dinamização.
Neste sentido, NEVES explica que o sistema probatório brasi-
leiro passou a ser misto, “sendo possível aplicar ao caso concreto o
sistema flexível da distribuição dinâmica do ônus da prova como
o sistema rígido da distribuição legal”.90
A dinamização do ônus da prova é, em última análise, um
instrumento pela busca da verdade possível, maximizando a eficá-
cia do sistema processual, na medida em que a efetividade perfeita
do acesso à justiça em relação a determinado direito material pode
ser expressa, nas palavras de CAPPELLETTI “como a completa
‘igualdade de armas’”.91

estrutura teórica implementa, pelas mãos dos sujeitos do processo, um aumento


da certeza fática, provocada pela possibilidade do desonerado torna-se onerado,
o que leva a ambos produzirem todas as provas possíveis, distribui de forma
mais justa a eventual ausência dessa mesma certeza (COUTO, Camilo José
D’Ávila. Dinamização...op. cit., p. 125-126).
90 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil
Comentado – artigo por artigo. Ed. 2. Salvador: Editora JusPodium, 2017, p
.685.
91 CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Trad. Ellen
Gracie Northefleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

216
Em que pese a relutância de alguns Tribunais em adotar a
teoria estudada antes de sua positivação, conforme anteriormente
afirmado, o Superior Tribunal de Justiça já vinha defendendo
sua aplicação. Nas palavras de MARINONI isso não poderia
ser diferente na medida em que inexistiriam motivos para supor
que a inversão do ônus probatório somente seria viável nos casos
expressos em lei. Para o autor, “algumas situações específicas exi-
gem o seu tratamento diferenciado. Isso pela simples razão de que
as situações de direito material não são uniformes”. Em outras
palavras, a possibilidade de inversão do ônus probatório estaria
em consonância com o tratamento diferenciado de situações
(igualdade material), ainda quando não previstas na lei processual.
Nesta esteira, o STJ deu início, mesmo antes da vigência do
CPC/2015, à aplicação da forma dinâmica de distribuição do
ônus da prova em ações civis por danos ambientais (Informativo
418/STJ, 2ª turma, REsp 1.060.753/SP, rel. Min. Eliana Calmon,
j. 1.12.2009, DJ 14.12.2009), bem assim nas ações que envol-
viam idosos, mormente em virtude das normas que asseguram
aos litigantes maiores de 60 anos facilidade na produção de pro-
vas (STJ, 1ª Turma, RMS 38.025/BA, rel. Min. Sérgio Kukina, j.
23.09.2014, Dje 01.10.2014).
Ademais, encontra-se na jurisprudência mais recente da
Corte, decisões que aplicam a supracitada teoria de forma mais
ampla, seja para flexibilizar o sistema estático de distribuição do
ônus da prova em virtude da insuficiência da regra geral (ST, 4ª
Turma, AgRg no AREsp 216.315/RS, rel. Min. Mauro Campbell
Marques, j. 23.10.2013, DJe 06.11.2012), ou até mesmo para dar à
legislação processual uma interpretação sistemática, inclusive em
bases constitucionais (STJ, 3ª Turma, EDcl no REsp 1.286.704/
SP, rel. Nancy Andrighi, j. 26.11.2013, DJe 09.12.2013). Nesse
último aspecto, decidiu o STJ que “uma interpretação sistemática
da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais,
confere ampla legitimidade à aplicação da teoria da distribuição
dinâmica do ônus da prova”, de modo que o ônus probatório deve

217
recair sobre quem tem melhores condições “de produzir a prova,
conforme as circunstâncias fáticas de cada caso”.
Como se vê, o direito à igualdade material é, pois, a tônica da
inversão do ônus da prova, seja quando ela é prevista pelo ordena-
mento jurídico ou quando é aplicada (como outrora), na ausência
de previsão legal. Assim como acontece no plano das relações
materiais, é imprescindível que haja, no plano do processo, um
tratamento diferenciado para situações de desigualdade. É, em
síntese, aquilo que já falavam os doutrinadores quando tratavam
da igualdade material na clássica lição sobre “tratar os desiguais
na medida de suas desigualdades.
Dessa constatação deriva que as partes possam litigar em
paridade de armas, ou seja, “faz-se necessária, assim, a asseguração
do pleno emprego dos poderes defensivos substanciais em igual
medida a todas as partes”.92 Partindo dessa compreensão, verifica-
se que há igualdade – ou paridade de armas – quando os poderes
das partes encontram-se simétricos, ou seja, quando o poder
conferido a uma parte corresponde o equivalente à outra, como
acontece na distribuição dinâmica do ônus da prova. Tanto é
assim que o legislador atento a isso, determinou no §2º, do artigo
373, do CPC, que “a decisão prevista no §1º deste artigo não pode
gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte
seja impossível ou excessivamente difícil”, sob pena de ser ferido
o princípio que deu ensejo à aplicação legal da teoria estudada.

Conclusão

Como visto, em que pese o legislador processual ter ado-


tado a distribuição estática do ônus da prova, também previu, em

92 ABREU, Rafael Sirangelo de. O Direito à igualdade no Novo Código


de Processo Civil. In Coleção Grandes Temas do Novo CPC: Normas
Fundamentais (coord. Fredie Didier Júnior; Dierle Nunes; Alexandre Freire).
Salvador: Editora JusPodium, 2016, p. 148).

218
concretização ao princípio da isonomia material e como forma de
igualar as posições processuais das partes, a distribuição dinâmica
do ônus da prova, desde que preenchidos os pressupostos legais
para tanto.
A adoção da referida teoria encontra-se ligada, como se disse,
ao princípio da igualdade material das partes em juízo, na medida
em que ao juiz é conferido o dever de conduzir o processo e, com
base no princípio de cooperação, suprir determinadas incongru-
ências observadas em cada caso concreto, entendido o processo
como uma grande comunidade de trabalho, onde o juiz não mais
fica alheio aos erros, omissões e incapacidades das partes.
O legislador de 2015 rompeu o paradigma de que ao autor
incumbe prioritariamente o ônus da prova dos fatos constitutivos,
soando sempre como uma verdade absoluta e, ao prever de forma
expressa a adoção da distribuição dinâmica do ônus da prova, na
esteira daquilo que já vinha fazendo o STJ, concretizou – assim
como o fez em tantos outros artigos do CPC – o princípio da
igualdade das partes, conferindo paridade de armas para que
aquelas que estão – em matéria probatória – em situação de des-
vantagem possa litigar em juízo no mesmo patamar de igualdade
de seu adversário.

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223
A GARANTIA DO EFETIVO DIREITO À COMUNICAÇÃO

Ana Cristina Santos93

E
stá na compreensão do senso comum o fato de que comu-
nicar-se faz parte da vida dos seres humanos e é condição
inerente à sua organização em sociedade. A premissa de
que a comunicação está na base dos processos sociais também
é comum em diversas correntes da Filosofia, da Sociologia e de
estudos das Comunicações. Ela surge como fundamental para a
organização humana em comunidades a partir do compartilha-
mento recíproco de símbolos e de ideias.
Neste artigo buscaremos situar a Comunicação como um
direito humano fundamental numa perspectiva humanística, des-
crevendo brevemente uma abordagem jurídica da disputa pela
Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina e os
debates no resultantes deste processo. Situaremos a Comunicação
como um espaço estratégico e imprescindível para o exercício da
participação e para o exercício da cidadania, intentando obser-
var também as relações sociais, políticas e econômicas que fazem
parte da complexa cadeia que envolve os esforços para garantia
desse direito. Essa análise foi realizada a partir da perspectiva
teórico-metodológica da Hermenêutica de Profundidade, desen-
volvida por Jonh B. Thompson (2003).

93 Doutoranda em Comunicação (UnB). Jornalista graduada pela Universidade


Estadual da Paraíba (UEPB), especialista em Comunicação Pública (UGF) e
mestra em Comunicação (UnB).

225
A palavra comunicação deriva do latim communicare, que
significa “tornar comum”, “partilhar’, “repartir”, “associar”, “trocar
opiniões”, “conferenciar”. É um termo que implica participação,
interação, troca de mensagens, emissão ou recebimento de infor-
mações (BARBOSA, RABAÇA, 2001). A comunicação também
pode ser compreendida enquanto processo pelo qual a experiência
se torna patrimônio comum de uma sociedade, que “não só con-
tinua a existir pela transmissão, pela comunicação, como também
se pode dizer perfeitamente que ela é transmissão e comunicação”
(DEWEY, 1966, p. ).
Para Venício A. de Lima (2004), a origem desta palavra lhe
atribui ambiguidade entre os processos de transmitir e compar-
tilhar; estes são polos opostos de uma ação de comunicar uma
vez que o primeiro implica um processo unidirecional, enquanto
o segundo implica participação e, dessa forma, para “que se
transmita algo é preciso que se admita que esse algo possa ser
apropriado e em seguida ‘transmitido’ ao outro. Quando se com-
partilha, ao contrário, o que ocorre é uma coparticipação, uma
comunhão, um encontro” (LIMA, 2004, p. 27).
Em Dicionário de Comunicação, Carlos Alberto Rabaça
e Gustavo Guimarães Barbosa, realizam uma classificação de
alguns dos principais conceitos relacionados ao campo da comu-
nicação de acordo com esta abordagem, a saber, (a) conceito
etimológico, onde a ideia de comunhão e da participação em
comunidade através do intercâmbio de informações é enfatizada;
(b) conceito biológico, que identifica a comunicação como ativi-
dade sensorial e nervosa, situada como necessária à sobrevivência
e perpetuação da espécie humana; (c) conceito pedagógico, em
que se destaca o caráter educativo da comunicação; (d) conceito
histórico, que aborda a comunicação como instrumento de equi-
líbrio e entendimento entre os homens; (e) conceito sociológico,
em que se sobressai o papel decisivo da comunicação na inser-
ção e integração do indivíduo na organização social; (f ) conceito

226
antropológico, que se baseia na característica da comunicação
como veículo de transmissão de cultura ou como formadora da
bagagem cultural de cada indivíduo na sociedade; (g) conceito
psicológico, onde a comunicação figura objetivamente como fenô-
meno capaz de modificar o indivíduo; e (h) conceito estrutural, no
qual o objeto central da análise é a informação. Em todos esses
conceitos a comunicação adquire papel central no relacionamento
humano e na organização dos grupos sociais.
O termo comunicação tem sido utilizado para designar o
caráter específico das relações humanas e pode ser atribuído como
sinônimo de “coexistência”, ou de “vida com os outros”, e implica,
ainda, o conjunto dos modos que a coexistência especificamente
humana pode assumir no que diz respeito à possibilidade de par-
ticipação e compreensão (ABBAGNANO, 2007). Interessa-nos,
particularmente, a ênfase nesta compreensão do termo, que o vin-
cula diretamente à intencionalidade humana, sem desconhecer
as diversas correntes que encaram a comunicação como sistemas
mais amplos que abrangem, entre outras, as relações homem/ani-
mal, homem/máquina, máquina/máquina.
Assim, é possível compreender a comunicação como um
processo complexo, amplo, dinâmico e inerente à sobrevivên-
cia humana, indispensável a sua sobrevivência e organização em
comunidade, e por isso mesmo se constituindo como direito ina-
lienável, ou seja, que não pode ser vendido nem cedido; e que
sendo um direito fundamental não pode ser negado a uma pessoa.

1. Um Direito Humano

O reconhecimento da comunicação como um direito


humano encontra entre suas referências o marco da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, publicada pela Organização das
Nações Unidas (ONU), em 1948. A liberdade de expressão e opi-
nião está assegurada como direito no artigo 19 da Carta. “Todo

227
ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este
direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de
procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer
meios e independentemente de fronteiras” (DUDH, 1948).
Entretanto, o artigo 19 ao tratar do direito à “liberdade de
expressão e opinião” conceitua o termo como sinônimo de direito
à comunicação, de modo a restringir e limitar este último. Jean
D’Arcy (1969), no contexto de incipientes inserções do termo
comunicação em meio aos documentos da UNESCO, aponta a
insuficiência do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, constatando que chegaria o tempo em que o homem
precisaria reconhecer um direito mais importante que a liberdade
de expressão, o direito de comunicar.
Em 1969, o francês Jean D´Arcy registrou, em
um trabalho intitulado Les Droits de L’homme
à Communiquer (Os Direitos do Homem a
Comunicar), a premência de um novo direito
humano na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948). Ele chamava atenção para
a necessidade da criação do direito à comuni-
cação, por entender que a fundamentação, até
então, nos documentos da Organização das
Nações Unidas (ONU), no tocante à comu-
nicação, não mais contemplava a amplitude
desse direito e do próprio conceito de comu-
nicar. Suas teorias foram transportadas para
um dos informes preliminares que serviram de
base para as discussões travadas no âmbito da
UNESCO, entre os anos 1970 e 1980, sobre
a Nova Ordem Mundial da Informação e
Comunicação (NOMIC), e que culminaram
com a produção do relatório “Um Mundo
Muitas Vozes”. (GOMES, 2007, p.89)

Embora não tenha chegado a fomentar um novo conceito, a


contribuição de D’Arcy ao debate sobre o direito à comunicação

228
chamou a atenção para a necessidade de ampliar o entendi-
mento acerca da comunicação de acordo com a realidade social
e histórica:
Atualmente, vemos que [o direito à comunica-
ção] engloba todas as liberdades, mas que traz,
além disso, tanto para os indivíduos quanto
para as sociedades, os conceitos de acesso, de
participação, de corrente bilateral de infor-
mação, que são todas elas necessárias, como
percebemos hoje, para o desenvolvimento
harmonioso do homem e da humanidade.
(UNESCO, 1983, p. 290)

As considerações de D’Arcy, no contexto do apoio da


UNESCO ao estabelecimento de uma nova ordem econômica
mundial942, ganharam espaço nos fóruns de discussão internacio-
nais. Nos marcos dos debates globais sobre as implicações das
desigualdades de condições de produção de bens simbólicos e seu
impacto no desenvolvimento dos países e na distribuição igualitá-
ria das riquezas, a Conferência Intergovernamental sobre políticas
de comunicação na América Latina e Caribe, realizada em San
José, Costa Rica, em 1976, manifesta que a pessoa humana tem
direito de se expressar, devendo ser garantida sua forma de livre
expressão, independente de classe ou organização social e aten-
dendo às mais diversas formas. Reconhece, também, que os meios
de comunicação são necessários ao relacionamento humano e
devem ser considerados “componentes fundamentais da cultura
universal” e que governos e sociedade devem ocupar-se conjunta-
mente do uso extensivo e positivo desses meios. No que se refere
ao debate sobre políticas públicas para o setor, a Declaração de
San José afirma:

94 UNESCO. Estabelecimento de uma nova ordem econômica mundial. 1974

229
Que as políticas de comunicação devem
contribuir para o conhecimento, compreen-
são, amizade, cooperação e integração dos
povos, em um processo de identificação dos
anseios e necessidades comuns, respeitando as
soberanias nacionais, o princípio jurídico inter-
nacional de não intervenção entre os Estados e
a pluralidade cultural e política das sociedades
e dos homens, na perspectiva da solidariedade
e da paz universais. (UNESCO, 1976, p. 116)

Conferência análoga, realizada em Kuala Lumpur, Malásia,


em 1977, ratifica a centralidade da comunicação para o desenvol-
vimento e para a relação entre as nações. Foi neste encontro que
se decidiu pela constituição de uma Comissão Internacional para
o Estudo dos Problemas da Comunicação (CIC), presidida por
Sean MacBride (Irlanda), para realizar um estudo global sobre os
problemas da comunicação na sociedade da época.
Além de afirmar claramente a comunicação como direito
humano, o relatório da CIC aponta a necessidade de se empre-
ender todos os meios tecnológicos necessários para assegurar esse
direito e afirma que a democratização da comunicação é o processo
pelo qual o ser humano deixa de ser um objeto da comunicação e
passa a um ser um elemento ativo, que influencia na qualidade da
representação e da participação social (UNESCO, 1976, p. 277).
Deste modo, a plataforma do direito à comunicação, com-
preendida como direito mais amplo do que a liberdade de
expressão e de imprensa, ganha novo tratamento nos anos 1970,
na discussão sobre uma Nova Ordem Mundial da Informação
e da Comunicação (NOMIC), no âmbito da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Unesco.
O documento Um mundo, muitas vozes, também conhecido
como Relatório MacBride, torna-se um marco conceitual sobre
direito à comunicação ao examinar as condições da comunicação
mundial e recomendar medidas para que se efetivasse o acesso à

230
comunicação em suas mais diferentes plataformas. Para efeito do
relatório,
Todo mundo tem o direito de comunicar. Os
elementos que integram esse direito funda-
mental do homem são os seguintes, sem que
sejam de modo algum limitativos: a) o direito
de reunião, de discussão, de participação e
outros direitos de associação; b) o direito de
fazer perguntas, de ser informado, de infor-
mar e os outros direitos de informação; c) o
direito à cultura, o direito de escolher, o direito
à proteção da vida privada e outros direitos
relativos ao desenvolvimento do indivíduo.
[...] (UNESCO, Um Mundo e Muitas Vozes,
1983, p: 288)

Os debates no âmbito da UNESCO, que analisam o pano-


rama das desigualdades no campo da comunicação em diversos
países, anteciparam o que viria a ser uma realidade agravada no
contexto de políticas neoliberais que marcaram fortemente as
décadas dos anos 1980 e 1990 na América do Sul, compreen-
dendo que a “industrialização tende a estimular a concentração da
comunicação, mediante a formação de monopólios ou oligopólios,
em matéria de coleta, armazenamento e difusão de informação”
(UNESCO, 1983, p. 168).
No final da década de 1980 e ao longo dos anos 1990 a rápida
evolução tecnológica, aliada ao processo de globalização, aprofun-
dou as desigualdades no campo da comunicação na América do
Sul (LIMA, 2011). A concentração de capital em ciências como
a engenharia, a computação, a física e a nanotecnologia, deter-
minantes para o desenvolvimento dos meios de comunicação,
acirraram as diferenças entre países desenvolvidos e subdesenvol-
vidos; e dentro das fronteiras nacionais entre os cidadãos comuns
e os detentores dos meios de comunicação, refletindo no campo
da comunicação o abismo social existente entre ricos e pobres.

231
Dito isto, é preciso relembrar que o discurso sobre o direito
à comunicação tem sido apropriado de forma progressiva por ato-
res sociais que atuam em diversos campos dos direitos humanos,
como a educação, a saúde, os direitos de igualdade de gênero e
racial, o direito à terra, entre outros. Embora alguns autores quali-
fiquem o direito humano à comunicação como “direito de acesso”
ao espaço público, julgamos que a melhor forma de definir o
direito humano à comunicação seja qualificá-lo como o direito
à participação, em condições de igualdade formal e material, na
esfera pública e mediada pelas comunicações sociais e eletrônicas.

2. Um direito negado

As medidas constantes do acordo conhecido como


Washington Consensus – um conjunto de medidas formulado em
novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras
como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro
dos Estados Unidos, fundamentadas nas ideias do economista
John Williamson, e que se tornou a política oficial do Fundo
Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser “receitado”
para promover o “ajustamento macroeconômico” dos países em
desenvolvimento que passavam por dificuldades – tiveram grande
impacto também no mercado da comunicação e consolidou nos
países da América do Sul um modelo fortemente marcado pela
concentração e pelo estabelecimento de monopólios e oligopólios.
Com a desregulamentação do setor – ou re-regulamenta-
ção como preferem alguns autores que defendem que não houve
ausência de regulamentação, mas uma adequação nas legislações
para favorecer os interesses empresariais (HORWITZ, 1989.
BOLAÑO, 2010), – lançaram-se as bases do sistema de mídia
global, dominado pelos grandes conglomerados com previsões de
lucro na ordem de trilhões. (MCCHESNEY, 2003).

232
O processo de exclusão desencadeado pela política econô-
mica e sua consequente negação aos direitos básicos impulsionou
uma luta por acesso e participação em todo o mundo, e com certa
ênfase na América Latina. Esses movimentos não possuem cará-
ter classista e se agrupam em torno de bandeiras específicas como
desenvolvimento sustentável, meio ambiente e o direito à comu-
nicação (BOLAÑO, 2010).
O acesso ao direito à comunicação tem sido historicamente
dificultado pelas condições impostas pelos sistemas econômicos.
As transformações tecnológicas também influenciaram as rela-
ções no campo da economia e das políticas na comunicação, que
se tornaram ainda mais pautadas pelas questões de mercado. De
acordo com Lima (2001):
o surgimento da nova mídia e a privatização dos
serviços de telecomunicações que vem aconte-
cendo em todo o mundo nas últimas décadas,
ocasionou a maior onda de compras, fusões
e parcerias de agentes econômicos já conhe-
cida na história da economia. Esse fato alterou
radicalmente a economia política do setor e
provocou uma concentração (horizontal, verti-
cal e cruzada) sem precedentes da propriedade
privada na mídia – velha e nova, dando origem
a um crescente e vigoroso processo de oligopo-
lização do setor com o aumento do poder dos
históricos atores brasileiros e a emergência
de novos e poderosos atores globais (global
players) privados. (LIMA, 2001, p. 29-30)

Parte significativa do processo mediático, em sua essência,


guarda características excludentes que impedem a entrada de
novos atores (BRITTOS, BOLAÑO, JAMBEIRO, 2009). A
produção, empacotamento, distribuição e acesso efetivo a produ-
tos da comunicação compõem uma cadeia produtiva permeada

233
de empecilhos, seja no campo das restrições sociais, políticas, cul-
turais, legais, econômicas ou técnicas. Características que podem
ser compreendidas como barreiras à entrada de novos atores no
fazer da comunicação e, consequentemente, um entrave ao direito
à comunicação.
Ponderando sobre as características de mercado com proprie-
dades oligopólicas, a exemplo do que se verifica, como já citamos,
no setor da comunicação na América do Sul a partir da década
de 1990 como relatam vários estudiosos do tema (LIMA, 2011;
MASTRINI; BECERRA, 2006) e sobre a forma como o mer-
cado dita as normas das tomadas de decisão individuais; Valério
Brittos (2009), ressalta o papel central da noção de barreira à
entrada, que reúne as determinações estruturais sobre as quais são
definidas grande parte das estratégias corporativas. Medida que
precisa ser analisada como uma das principais barreiras materiais
ao exercício do direito de comunicar (se).
Assim, conceitua-se barreiras à entrada como
um conjunto de injunções dominadas pelas
empresas líderes, que servem como impedi-
mentos para o acesso de novas corporações
num mercado ou para que, ingressando, as
demais companhias que compõem o setor não
alcancem a liderança. (BRITTOS, 2009, p. 19)

Ainda sobre a noção de barreira à entrada é importante res-


gatar a observação de Fagundes e Pondé, no artigo Barreiras à
Entrada e Defesa da Concorrência: Notas Introdutórias: “as barrei-
ras à entrada, dada a natureza dos seus determinantes (...) são
estruturais, estáveis e se modificam lentamente no tempo, além de
não poderem ser facilmente alteradas pelas entrantes potenciais”
(FAGUNDES, PONDÉ, 1998).
Brittos (2009) defende que no campo dos bens culturais
características singulares conduzem a manifestações de barreiras
à entrada próprias dos mercados comunicacionais e aponta duas

234
dimensões específicas a político-institucional: 1) a decorrente do
processo de regulamentação, e que nos interessa mais na aná-
lise da discussão em tela neste artigo; e 2) a estético-produtiva,
relacionada com padrões tecno-estéticos. Especificamente sobre
o setor dos meios de comunicação sem fins lucrativos — popu-
lares, comunitários, independentes, cooperativos, entre outros
— a ausência de regulamentação ou as regulamentações impe-
ditivas/restritivas que se tornaram regra em boa parte da região
sulamericana, se apresentam como exemplo da dimensão político
-institucional das barreiras de entrada.
Em parte significativa de países latino-americanos, o campo
da comunicação e da informação apresenta uma tendência de con-
centração, monopolização e oligopolização derivada da política
econômica adotada na maioria destes países nas últimas décadas.
No estudo Periodistas y Magnates, os autores sistematizam um
panorama sobre o perfil de estrutura e concentração da indústria
cultural na América Latina.
Os investigadores criaram um índice medindo
a cota de mercado monopolizada pelo pri-
meiro operador e pelos quatro primeiros,
utilizando um método chamado Four Firm
Concentration Radio. Resultou que o pri-
meiro operador monopoliza, em média, 30%
do mercado, enquanto que os quatro primei-
ros (somados) superam os 80%. O meio com
maior índice de concentração é a TV aberta,
com 85%, seguido pela TV a cabo (84%) e a
escrita (62%). A rádio é o meio menos con-
centrado, com 31% de conta de mercado para
os quatro primeiros operadores. (UCEDA in
BECERRA, MASTRINI, 2006, p. 10, tradu-
ção nossa)

Neste cenário as dificuldades para que meios alternativos,


comunitários e/ou populares consigam operar no campo da

235
comunicação são vultosas. Levando em consideração essas ques-
tões a interferência direta do Estado no processo é apresentada
como possibilidade de equilibrar a relação que tende à desigual-
dade e a criação de barreiras à entrada de novos participantes.
Estudando a realidade de mercados como o argentino ou o brasi-
leiro, pesquisadores como Guillermo Mastrini e Martin Becerra
(2006) apontavam possíveis caminhos para equilíbrio da relação
entre as imposições do mercado e as demandas pelo direito à
comunicação.
Entretanto, há um ponto que se pode assi-
nalar e é que a concentração de meios, com
seus efeitos e potencialidades oligopólicas e
monopólicas, só é evitável e combatível com
o estabelecimento de regras muito precisas,
estritas e equilibradas para a designação de
frequências e permissões de rádios e muito
em especial de canais de TV de qualquer tipo.
(BECERRA, MASTRINI, 2006, p. 23, tradu-
ção nossa).

Ao prever estes impactos no campo da Comunicação o


próprio Relatório MacBride lista princípios e orientações para a
superação das desigualdades impostas pela alta influência do mer-
cado no setor e se preocupa em alertar para que as sociedades não
sejam prejudicadas em sua interação e desenvolvimento por conta
dos interesses financeiros.
Dever-se-ia aplicar à tecnologia, no compasso
dos seus progressos e em cada etapa do seu
desenvolvimento, a seguinte regra essencial:
colocar o progresso técnico a serviço de uma
melhor compreensão entre os povos e da con-
tinuação da democratização em cada país, em
vez de utilizá-lo para fortalecer os interesses
criados pelo poder estabelecido. (UNESCO,
1983 p. 128)

236
Considerando, ainda, a discussão proposta no documento e
sua preocupação com a eliminação dos desequilíbrios e desigualda-
des que caracterizam a situação analisada, observa-se as seguintes
preocupações no que diz respeito à necessidade de proteção do
direito de comunicar (se): a) a eliminação dos efeitos negativos de
monopólios, públicos ou privados, e das concentrações excessivas;
b) a eliminação das barreiras externas e internas que se opõem a
uma livre circulação e a uma difusão mais ampla e melhor equi-
librada da informação e das ideias; c) a pluralidade das fontes e
canais da informação; d) a liberdade de imprensa e da informa-
ção; e) a liberdade dos jornalistas e de todos os profissionais dos
meios de comunicação, liberdade que não se pode desvincular da
responsabilidade; f ) a capacidade dos países em desenvolvimento
de lograrem melhorar sua própria situação, sobretudo equi-
pando-se, formando seu pessoal qualificado, melhorando suas
infraestruturas e fazendo com que seus meios de informação e de
comunicação sejam aptos a responder a suas necessidades e aspi-
rações; g) o respeito da identidade cultural e no direito de cada
nação de informar a opinião pública mundial de seus interesses,
aspirações e valores sociais e culturais; h) o respeito do direito de
todos os povos a participar dos intercâmbios internacionais de
informação sobre a base da igualdade, da justiça e do interesse
mútuo; i) o respeito do direito do público, dos grupos étnicos e
sociais, e dos indivíduos a ter acesso às fontes de informação e a
participar ativamente no processo da comunicação.
Todos esses pontos aparecem como aspectos legítimos
quando se discute o direito à comunicação que gradativamente
foram sendo subtraídos a partir da instituição da comunicação
como um setor lucrativo e se constituem numa plataforma de rei-
vindicação do direito à comunicação, materializada na exigência
da democratização da comunicação.
Para conceituar o termo “democratização da comunicação”
buscaremos analisar as elaborações da UNESCO em conjunto

237
com as sistematizações no campo teórico-conceitual, que o situa
no campo da democracia, da pluralidade e da igualdade com
participação. Chalinni Barros e Juliano Domingues Silva, da
Universidade Federal da Bahia e da Universidade Federal de
Pernambuco, respectivamente, se debruçaram sobre o assunto na
perspectiva de encontrar no campo da democracia uma aproxima-
ção conceitual.
Ao nos perguntarmos o que vem a ser ‘democra-
tização da comunicação’, as possíveis respostas
do ponto de vista teórico-conceitual tendem
a se situar no campo da democracia enquanto
substância, em maior ou menor medida pró-
ximas das formulações previstas em modelos
de democracia relacionadas aos aspectos carac-
terísticos da democracia participativa e da
democracia deliberativa. Percebe-se, ainda, a
presença recorrente das ideias de pluralidade
com igualdade e participação, nos moldes da
concepção desenvolvimentista de democracia.
(SILVA; BARROS, 2013, p. 65)

Os autores afirmam ainda que essa noção conceitual se ali-


nha com os debates teóricos do campo dos ideais democráticos.
Assim, as reivindicações pelo direito a comunicação assimilam
relação intrínseca com a organização em defesa da democratiza-
ção da comunicação, dada a correlação entre o exercício do direito
de comunicar (se) e a necessidade imposta pelo novo arranjo tec-
nológico nas arenas de debates da sociedade em rede.

3. Um direito mediado

É impensável, portanto, analisar a comunicação nos dias


de hoje sem relacionar com todo aparato técnico e tecnológico
que envolve o ato de comunicar. A comunicação mediada tem

238
centralidade como intermediária do debate público e da produ-
ção da agenda política (MIGUEL, 2002), assim também adquire
centralidade na organização social e no desenvolvimento da
sociedade. A teoria desenvolvida por John Thompson nos per-
mite olhar os processos sociais com ênfase na expansão das redes
de comunicação e informação e seu papel na conformação social,
o que nos parece adequado ao analisar os processos de comunica-
ção em linhas gerais. De acordo com Thompson “a teoria social
da mídia pode ajudar a situar o estudo da mídia lá onde, na minha
visão, ele deve estar: entre o conjunto de disciplinas que dizem
respeito à emergência, ao desenvolvimento e à estruturação das
modernas sociedades e ao seu futuro” (THOMPSON, 2013, p.
29).
Garantir a pluralidade nos meios de comunicação aumenta
a esfera política e democrática. Para Miguel (2002, p. 164), “a
democratização da esfera política implica tornar mais equânime o
acesso aos meios de difusão das representações do mundo social”.
Do mesmo modo ampliar a democracia exige possibilitar que
ideias circulem a partir de mais instrumentos comunicativos. É
uma via de mão dupla, na qual os veículos de comunicação ocu-
pam papel simbólico e estratégico.
A arena mediada da política moderna é aberta
e acessível de uma maneira que as assem-
bleias e cortes tradicionais não o eram e os
líderes políticos estão mais expostos do que
nunca ao risco de suas ações e pronunciamen-
tos serem transmitidos de uma maneira que
contradiga as imagens que desejam projetar.
(THOMPSON, 2013, p. 15).

Thompson defende, ainda, que os meios de comunicação


não podem ser vistos apenas como transmissores de informa-
ção, uma vez que quando são desenvolvidos e introduzidos eles

239
mudam as maneiras pelas quais os indivíduos se relacionam uns
com os outros e com eles próprios, no que chama de uma “teoria
interacional da mídia”. (THOMPSON, 2013, p. 9).
Observar os conflitos e o próprio desenvolvimento veícu-
los de comunicação implica em perceber seu lugar estratégico
na conformação social e nas mudanças sofridas pelas sociedades.
Para Thompson “o desenvolvimento da mídia vem entrelaçado de
modo fundamental com as principais transformações institucio-
nais que modelaram o mundo moderno” (THOMPSON, 2013,
p. 21).
A partir do momento em que a comunicação mediada pela
tecnologia adquire a possibilidade de chegar a um número cada
vez maior de pessoas ao mesmo tempo ela também se coloca
como uma importante estrutura de poder dentro da sociedade.
Como poder compreendemos a capacidade de produzir ou con-
tribuir para resultados que façam a diferença no mundo, que
afetem significativamente um outro ou outros (OUTWAITE;
BOTTOMORE, 1996) e, ainda, de alcançar seus próprios obje-
tivos e intervir no curso dos acontecimentos (THOMPSON,
2013).
A título de registro é importante situar que vários autores
buscam classificar as diversas formas de poder; Thompson clas-
sifica-os como poder econômico, poder político, poder coercitivo
e poder simbólico. Resumidamente o poder econômico se baseia
em recursos materiais e financeiros; o poder político se baseia no
princípio da autoridade; o poder coercitivo encontra suas bases
na força física e armada; enquanto o poder simbólico, também
chamado de poder cultural, está fundamentado nos meios de
informação e comunicação.
Pela sua relação intrínseca com os meios de comunicação
nos concentraremos no chamado poder simbólico ou cultural, que
segundo o autor “nasce na atividade de produção, transmissão e
recepção do significado das formas simbólicas” (THOMPSON,

240
2013, p. 43). A expressão poder simbólico foi tomada do trabalho
de Pierre Bourdieu, para quem o poder simbólico é um poder de
construção da realidade, estruturado a partir de sistemas simbó-
licos, que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que
estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem. De
acordo com Bourdieu, os símbolos são os principais instrumen-
tos de integração social, eles tornam possível um entendimento
comum acerca do sentido de mundo social e os sistemas sim-
bólicos “como instrumentos de conhecimento e de comunicação,
só podem exercer um poder estruturado porque são estruturados”
(BOURDIEU, 1989, p.9).
O autor defende, ainda, que as relações de comunicação são
relações de poder que dependem do poder material ou simbólico
acumulados pelos agentes envolvidos e que os sistemas simbólicos,
enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comuni-
cação, cumprem sua função política de imposição ou legitimação
da dominação que assegura a dominação de uma classe sobre a
outra.
As diferentes classes e fracções de classes estão
envolvidas numa luta propriamente simbólica
para imporem a definição do mundo social
mais conforme aos seus interesses, e imporem
o campo das tomadas de posições ideológi-
cas reproduzindo em forma transfigurada o
campo das posições sociais. (BOURDIEU,
1989, p. 15)

A evolução na tecnologia teve impacto significativo na


potencialização e ampliação do poder simbólico, uma vez que
transformaram a própria organização social. Num mundo mediado
pela tecnologia, essa forma de poder, ainda que segundo Bourdieu
(1989) seja subordinado a outras formas de poder, assume sem
sombra de dúvidas um papel cada vez mais central e estratégico.

241
Para Thompson, o poder simbólico não pressupõe — diferente
do que defende Bourdieu — desconhecimento por parte daqueles
que são submetidos a ele; e tem a capacidade de “intervir no curso
dos acontecimentos, influenciar as ações dos outros e produzir
eventos por meio da produção e da transmissão de formas simbó-
licas”. (THOMPSON, 2013, p. 42)
O poder simbólico é, portanto, reconhecido entre Thompson
e Bordieu como força estimada e reivindicada para manutenção
do status quo ou para quebra da ordem vigente. As reivindica-
ções dos movimentos populares buscam incidir sobre essa questão
quando exige que a atribuição expressa na prestação de serviços de
radiodifusão seja dividida entre três agentes: estatal, público e pri-
vado, e busca o equilíbrio de uma relação que se tornou desigual,
entre outros fatores, pelo peso do poder econômico de grupos que
ocupam diferentes campos de atuação.
Com a pluralidade de emissores aumenta o repertório do que
é transmitido pelos veículos de comunicação. O receptor poderia
contar com uma gama maior e mais diversa de informações de
modo que pudesse ter elementos para interpretar e formar seu
próprio vocabulário; criar novas formas de ação e de interação e
novos tipos de relacionamentos sociais.
A transformação das instituições da mídia em interesses
comerciais de grande escala; a globalização da comunicação e o
desenvolvimento das formas de comunicação eletronicamente
mediadas analisados por Thompson953 podem ser observados no
crescimento dos conglomerados de comunicação que alcançaram
patamares inauditos entre os séculos XIX e XX, assim como os
processos de globalização se aprofundaram, aproximando as par-
tes mais distantes do globo por meio de “teias de interdependência
mais tensas e mais complexas” (THOMPSON, 2013, p. 115)

95 Em Mídia e Modernidade: uma teoria social da mídia, John B Thompson


(1998) faz uma análise dessas três tendências da comunicação e seus impactos.

242
A comunicação em vários países da América do Sul, por
outro lado é responsável por gerar a crítica e a resistência a esse
modelo. Sociedade e comunicação tornam-se terrenos em disputa
na arena democrática, em uma complexa equação. Assim, com-
preendemos que a comunicação enquanto direito negado se torna
espaço fundamental para ampliar o acesso à cidadania e para o
livre exercício da democracia; no entanto as relações de acesso aos
meios de comunicação não são equânimes e boa parte da popu-
lação se viu alijada desse direito de comunicar (se) plenamente
emitindo e recebendo informações com diversidade e pluralidade.

4. Um direito exigido

Uma visão dialógica da comunicação enquanto direito


é compartilhada por Paulo Freire que enfatiza seu papel como
processo de coparticipação. Em uma das suas obras mais conhe-
cidas, Pedagogia do Oprimido, Freire ressignifica e confere ainda
mais centralidade à comunicação no processo de conformação do
ser humano como sujeito das relações e transformações sociais
quando diz que “somente através da comunicação é que a vida
humana pode adquirir significado” (FREIRE, 2005, p. 73).
A exigência pelo direito à comunicação e pela sua democra-
tização se desenvolve também no âmbito das lutas pela ampliação
dos processos democráticos na sociedade, por mais espaços de
participação e maior representação.
Naturalmente o debate acerca do conceito de democratização
da comunicação é amplo e complexo e está intrinsecamente ligado
a reflexões e práticas sobre democracia, direito de comunicação e
liberdade de expressão, havendo diferenças de compreensão no
âmbito da academia e dos movimentos sociais. Sem esgotar a
discussão sobre o tema é válido reafirmar que quando nos referi-
mos à democratização da comunicação, para efeito deste trabalho,
pensamos que o termo inclui o direito ao acesso aos meios de

243
produção e veiculação de informação, de o público ter condições
técnicas e materiais para ouvir e ser ouvido, e que garante à socie-
dade uma postura autônoma frente aos meios de comunicação.
A partir do cenário de exclusão propiciado pelo domínio
econômico dos meios de comunicação e pela ineficiência do
Estado em mediar esta relação, movimentos populares em defesa
da comunicação democrática ganharam força em muitos paí-
ses. Na América do Sul, especificamente, frentes pautadas pela
temática da democratização da comunicação ganharam força e
conquistaram êxitos em países como Argentina, com a sanção
da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, nº 26.522,
instituída em 2009; e Uruguai, com a Lei 19.307, de Serviços
de Comunicação Audiovisual, aprovada em dezembro de 2014;
apenas para citar exemplos. No Brasil esse movimento se con-
centra, sobretudo mas não exclusivamente, em torno do Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que
congrega várias entidades específicas do campo da comunicação,
mas também de espectro mais amplo como entidades sindicais e
estudantis. A preocupação destes movimentos, em linhas gerais,
busca aproximar-se das principais correntes internacionais do
debate sobre o direito à comunicação, expressas nos debates no
âmbito da UNESCO e da OEA, por exemplo.
No documento Indicadores de Desenvolvimento da Mídia:
Marco para a avaliação do desenvolvimento dos meios de comuni-
cação964, a UNESCO discute critérios e categorias buscando
facilitar a mensuração do impacto de intervenções no campo do
desenvolvimento da mídia pelos Governos, marcadores comuns
aos movimentos pela democratização da comunicação e que se
insere em indicadores-chave no que diz respeito a:

96 Cf Indicadores de Desenvolvimento da Mídia: Marco para a avaliação do


desenvolvimento dos meios de comunicação. Disponível em: http://unesdoc.
unesco.org/images/0016/001631/163102por.pdf

244
a) garantia de liberdade de expressão, b) garantia do direito
à informação, c) participação da população e organizações da
sociedade civil na formulação de políticas relativas à mídia, d) sis-
tema regulatório assegura o pluralismo da mídia, e) não sujeita a
mídia à censura prévia, f ) adota medidas positivas de promoção
da pluralidade da mídia e assegura seu cumprimento, g) promove
a diversidade na composição das mídias pública, privada e comu-
nitária, h) assegura a distribuição do espectro em prol do interesse
público, entre outros.
Neste cenário é visível um impasse entre as condições impos-
tas pelo mercado financeiro e as reivindicações do campo popular.
As dificuldades para que meios alternativos, comunitários e/ou
populares consigam operar no campo da comunicação são signi-
ficativas e levando em consideração essas questões, a interferência
do Estado no processo torna-se necessária no sentido de equili-
brar a relação que tende à desigualdade e costuma ser restritiva à
entrada de novos participantes, negando a uma significativa par-
cela da sociedade o direito pleno à comunicação.
David (2002) observa o papel do Estado na efetiva garantia
do direito à comunicação, uma vez que este se configura como
base ao acesso a outros direitos, pois o “conceito de direito à
comunicação identifica-se com uma concepção mais garantista
de Estado, no sentido de exigir a intervenção estatal para garantir
a efetivação desse direito”. (DAVID, 2002, apud LARA, 2013,
p .58). Essa intervenção precisa se dar no âmbito da instituição
de políticas públicas e essa se torna a principal reivindicação dos
movimentos sociais que atuam no campo da democratização e
acesso à comunicação.

5. Um direito a ser assegurado

De acordo com Enrique Saravia (2006), o conceito de polí-


tica pública pode ser definido como um “fluxo de decisões públicas,
orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios

245
destinados a modificar essa realidade. Decisões condicionadas pelo
próprio fluxo e pelas reações e modificações que elas provocam no
tecido social, bem como pelos valores, ideias e visões dos que ado-
tam ou influem na decisão”. (SARAVIA, 2006, p. 28)
Para Souza (2006), não existe uma única definição sobre o
que seja política pública. A autora sintetiza os diferentes concei-
tos da seguinte forma: Mead (1995) a define como um campo
dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de gran-
des questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações
do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986)
segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos
governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que
influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição
de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não
fazer”. A definição mais conhecida continua sendo a de Laswell,
ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam res-
ponder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que
diferença faz. (SOUZA, 2006, p. 25)
Da mesma forma que há múltiplos conceitos os estudos
sobre política pública foram feitos, através do tempo, sob as mais
diversas perspectivas e abordagens: a filosófica, a da ciência polí-
tica, a da sociologia, a jurídica, a das ciências administrativas, a
antropológica e a psicológica e sua evolução resulta dos acúmulos
e coexistência dessas perspectivas, nem sempre compatíveis entre
si (SARAVIA, 2006).
A formulação de políticas públicas, em linhas gerais, envolve
a predisposição dos governos em traduzir seus propósitos e plata-
formas eleitorais em ações que produzam mudanças e beneficiem
a população, ou segmentos dela, de modo a garantir direitos. Em
alguns casos há a participação de grupos de interesses e outros
membros movimentos sociais na concepção de normas e de polí-
ticas. De qualquer modo o papel dos governos continua sendo
preponderante e insubstituível no que diz respeito à criação de
políticas públicas, conforme pondera Souza:

246
Apesar do reconhecimento de que outros seg-
mentos que não os governos se envolvem na
formulação de políticas públicas, tais como os
grupos de interesse e os movimentos sociais,
cada qual com maior ou menor influência a
depender do tipo de política formulada e das
coalizões que integram o governo, e apesar de
uma certa literatura argumentar que o papel
dos governos tem sido encolhido por fenô-
menos como a globalização, a diminuição da
capacidade dos governos de intervir, formular
políticas públicas e de governar não está empi-
ricamente comprovada (SOUZA, 2006, p. 27).

Segundo Hogwood e Gunn (apud SARAVIA, 2006), o


estudo das políticas públicas oferece pelo menos sete perspectivas
de análise. Destacamos entre elas o estudo do processo das polí-
ticas, onde é possível considerar as etapas pelas quais passa um
assunto e se procura verificar a influência de diferentes setores
no desenvolvimento; e o estudo da avaliação das políticas, que se
localizam entre a crítica de política e para a política.
Neste sentido passaremos a observar a experiência da ins-
tituição da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da
Argentina que pode nos oferecer um bom panorama sobre cons-
tituição de política pública traduzida através da implementação
de leis que se propõem a proporcionar equilíbrio no âmbito das
comunicações.

5.2 O caso da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da


Argentina

Citada internacionalmente como um exemplo de bom texto


legal, e construída com participação popular, a Lei 26.522 de
Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA) da Argentina
busca atuar no cenário de concentração midiática, permitindo
que meios tradicionalmente excluídos do processo de transmissão

247
possam produzir e compartir conteúdos. Conhecida como Lei
de Meios, a LSCA foi aprovada em substituição ao Decreto-lei
22.285, que vigorou a partir de 1981 durante a ditadura militar,
e tem entre os seus objetivos, descrito no artigo 1º, o “desenvol-
vimento de mecanismos destinados à promoção, descentralização
e fomento da concorrência com o propósito de barateamento,
democratização e universalização do aproveitamento das novas
tecnologias de informação e comunicação”.
A norma surgiu como resposta à partidarização da mídia e foi
editada com a participação de organizações, associações e entida-
des representativas de vários segmentos da sociedade, que discutiu
as origens e as necessidades da legislação em grupos de debates
e fóruns, através de um rico processo de construção participativa
que contou com vários momentos de organização e acumulação
de forças, anteriores inclusive ao que passamos a relatar a seguir
e que omitiremos, a despeito do seu valor histórico e simbólico
para análise do processo de construção participativa, em razão da
necessidade de resumo da narrativa do processo em linhas gerais.
Em 2008, nos marcos de um conflito social e político, no qual
a mídia se posicionou frontalmente contra a posição do Governo,
o Poder Executivo argentino pôs em discussão o sistema de meios
de comunicação no país. O conflito com os veículos de comunica-
ção se acentuou quando a presidenta Cristina Fernandéz Kirchner
se indispôs com corporações agropecuárias ao editar a Resolução
125/08 que definia critérios para a retenção de divisas geradas no
país por exportações de cereais e oleoginosas, especialmente a soja.
A medida gerou forte reação no setor patronal em um movimento
que durou pouco mais de quatro meses, entre março e julho de
2008 e que contou com apoio dos veículos nacionais de mídia. A
cobertura midiática mostrou-se tendenciosa contra o governo e
recebeu críticas dos especialistas, comunidade acadêmica e agen-
tes dos órgãos de controle da publicidade.

248
A Universidade de Buenos Aires (UBA), por exemplo, emitiu
resolução onde repudiava as expressões discriminatórias constan-
tes na cobertura midiática, recomendava que o COMFER, órgão
regulador das comunicações na época, realizasse campanhas sobre
a existência de normas contra a discriminação na comunicação
e pesquisasse se durante a cobertura houve difusão de conteúdo
antidemocrático ou de questionamento a vigência do estado de
direito. O documento solicitava, ainda, que as entidades de jorna-
listas realizassem um chamado aos seus membros alertando para a
falta de ética e a responsabilidade no tratamento da informação975.
Neste cenário de discussão sobre o papel dos veículos de
comunicação na cobertura da política e das ações do governo,
a presidente Cristina Kirchner decidiu enviar ao Congresso
Nacional um projeto de lei redigido com base no documento 21
Pontos por uma Nova Lei de Radiodifusão para a Democracia,
apresentado por organizações populares como sindicatos de jor-
nalistas, universidades, organizações sociais, rádios comunitárias,
pequenas rádios comerciais e organismos de direitos humanos,
reunidos em uma iniciativa denominada Coalizão por uma
Radiodifusão Democrática.
Na condição de primeira entidade convidada pela presidenta
para discutir as bases da Reforma, a Coalizão recebeu o anúncio
governamental de que o novo projeto de lei para a área iria se
basear nos 21 pontos (Segura, 2011), o que gerou forte mobiliza-
ção junto à sociedade. Segundo Nestor Busso, um dos fundadores
da frente, “praticamente em todo o país, durante abril, maio e
junho (de 2008), se realizaram atividades de instalação pública e
debate dos 21 pontos e da necessidade de um projeto de lei que
substitua o da ditadura” (BUSSO, 2011, p. 29, tradução nossa).

97 Ver ata da reunião do Conselho Diretor da Universidade de Buenos Aires.


Disponível em: http://www.sociales.uba.ar/wp-content/uploads/acta-03.081.
pdf Último acesso em 12/12/2014

249
No processo de construção da LSCA, a Coalizão teve par-
ticipação ativa em duas frentes de ação: pressionar governo e
Parlamento para participar da redação do novo projeto de lei da
radiodifusão e, por outro lado, incidir diretamente sobre a opinião
pública buscando angariar apoio em torno dos pontos propostos.
Durante aproximadamente quatro meses o projeto de lei passou
por consulta à população, em diferentes cidades, através de 24
fóruns participativos. “Neles participam umas dez mil pessoas,
que realizam 1.200 contribuições à proposta, que logo se soma-
riam como anotações ao texto do Projeto de Lei” (BUSSO, 2011,
p. 31, tradução nossa).
Com o envio do Projeto de Lei ao Congresso Nacional os
debates passam a se dar também no âmbito das Casas Legislativas.
Na Câmara dos Deputados e no Senado, longas audiências públi-
cas − das quais participaram também os membros da Coalizão,
assim como especialistas em Direito e Comunicação e represen-
tantes dos empresários − marcaram a discussão do Projeto de
Lei. Posteriormente, o projeto foi aprovado na Câmara em 16 de
setembro de 2009 e no Senado em 10 de outubro de 2009; apro-
vado por maioria nas duas Casas.
Com a sanção da LSCA, implantar e garantir a entrada de
meios sem fins de lucros na atividade de radiodifusão, assim como
legalizar e garantir a permanência dos meios que operavam clan-
destinamente, torna-se uma atividade complexa e que envolve
pelo menos três espaços possíveis de análise: a gestão pública; a
gestão de entidades responsáveis pelos meios sem fins de lucro e a
percepção e atuação de veículos de comunicação alternativa.
O que se percebe, a partir da revisão bibliográfica e das
entrevistas realizadas para nosso trabalho de dissertação98 é que

98 SANTOS, Ana Cristina Gonçalves dos. Financiamento para mídia


alternativa: a sustentabilidade dos meios sem fins de lucro a partir da
Lei de Meios na Argentina. 2016. 119 f., il. Dissertação (Mestrado em

250
com a aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual
as organizações se viram diante de uma realidade na qual pre-
cisavam responder ao desafio de ocupar o espaço que lhes foi
destinado, um terço do espectro, na prestação de serviços de
radiodifusão e manter, num plano mais amplo, as pressões pela
democratização da comunicação, compreendida como a garantia
ao direito humano de procurar, receber e divulgar informações e
ideias oralmente ou através de qualquer meio de sua escolha; ou
como exposto no Relatório da Comissão MacBride, um processo
no qual o individual passa a ser um elemento ativo, com maior
consciência de seu papel de representação social. (MACBRIDE,
1987).

5.2 A disputa judicial

Com a aprovação da Lei de Serviços de Comunicação


Audiovisual, em 26 de outubro de 2009, o Grupo Clarín arguiu
judicialmente os artigos 41, 45, 48 e 161 da Lei. Os questiona-
mentos diziam respeito à restrição ao acúmulo de licenças de ar
e de cabo, ao desconhecimento dos direitos adquiridos e à obri-
gação de se desprender de suas licenças antes do vencimento do
prazo original com que haviam sido outorgadas. Ao longo de qua-
tro anos o debate sobre a constitucionalidade da lei aconteceu em
várias instâncias, como se pode ver resumidamente nos parágrafos
a seguir.
No dia 15/12/ 2009 o juiz Edmundo Carbone ditou uma
medida cautelar contra a aplicação dos artigos 41 e 161 da LSCA
ao Grupo Clarín e deixou suspensa a obrigação de desprender-se
de algumas licenças para adequar-se a lei que devia realizar-se
em um ano a partir de sua promulgação, em setembro de 2010.

Comunicação)—Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2016. Disponível


em http://repositorio.unb.br/handle/10482/20964

251
O Estado Nacional apelou à medida perante a Sala 1 da Câmara
Nacional de Apelações no Civil e Comercial Federal, que poste-
riormente confirmou a medida somente com respeito ao artigo
161 da lei 26.522.
Em 5/10/2010 o Estado Nacional interpôs recurso extra-
ordinário federal perante a Suprema Corte de Justiça, o qual
foi rejeitado por falta de sentença definitiva. Em seguida, em
09/10/2010 o juiz de primeira instância rejeita a fixação de um
prazo, mas logo a Câmara de Apelações impõe um prazo de 36
meses para a vigência da cautelar apresentada pelo Clarín, con-
tados a partir da notificação da demanda. O Estado Nacional
novamente interpôs um recurso extraordinário, cuja negativa
motivou a apresentação de queixa perante a Suprema Corte de
Justiça da Nação solicitando a revogação da cautelar.
Em 22/05/2012, diante da extensão que toma a vigência da
medida cautelar, a Suprema Corte de Justiça decidiu definir a data
de 7 de dezembro do mesmo ano como limite para a cautelar
apresentada pelo Clarín. Em 29/11/2012 o Grupo Clarín voltou
a pedir una medida cautelar, mas a Corte declarou “inadmissível”
essa solicitação.
Em 6/12/2012, um dia antes da data fixada pela Suprema
Corte para vencimento da cautelar que beneficiava o Grupo
Clarín, os juízes Francisco de las Carreras e Susana Najurieta,
da Sala 1 da Câmara Civil e Comercial Federal, estenderam a
medida cautelar que mantinha suspenso o artigo 161 da LSCA
“até que se dite uma sentença definitiva na causa”.
Em 14/12/2012 o juiz federal do Juizado 1 no Civil e
Comercial, Horacio Alfonso, declarou constitucionais os artigos
da Lei que haviam sido questionados pelo Grupo Clarín, resol-
vendo assim sobre a chamada “questão de fundo” e deixando sem
efeito todas as medidas cautelares anteriores.
Em 17/04/2013 a Câmara no Civil e Comercial declarou a
inconstitucionalidade parcial da norma. Invalidou parte dos dois
artigos que concentram as medidas antimonopólicas da lei (o 45

252
fixa os limites à concentração de licenças e o 48 diz que na posse
de uma licença não há um direito adquirido) e confirmou a cons-
titucionalidade dos artigos 161, que fixa o prazo de desinversão
de um ano, e do 41, que impede a transferência de licenças. O
Governo apelou perante a Suprema Corte.
Em 02/07/2013 a Suprema Corte de Justiça enviou a
Procuradora Geral da Nação, Alejandra Gils Carbó, a causa
pela LSCA para que emitisse opinião sobre a declaração de uma
inconstitucionalidade parcial decretada pela Câmara Civil e
Comercial Federal. A Procuradora se pronunciou dez dias depois
a favor da constitucionalidade da lei e aconselhou a Suprema
Corte que revogasse a decisão da Câmara Civil e Comercial que
declarou inconstitucionais parte dos artigos 45 e 161 por “eviden-
ciar graves defeitos de fundamentação e raciocínio que impedem
considera-la como ato jurisdicional válido”.
Nos dias 28 e 29/08/2013 a Suprema Corte de Justiça rea-
lizou uma audiência pública na qual escutou os argumentos das
partes e de “amicus curiae” que se pronunciaram a favor e contrá-
rios a constitucionalidade da lei.
Finalmente, no dia 29/10/2013 a Suprema Corte de Justiça
declarou a constitucionalidade da Lei de Serviços de Comunicação
Audiovisual.99
A Suprema Corte da Argentina desconsiderou, portanto,
em sua decisão pela constitucionalidade, o argumento do Grupo
Clarín de que seu tamanho e rentabilidade eram imprescindíveis
ao exercício da liberdade de expressão. De acordo com Martín
Becerra (2013), em nota ao jornal La Nación, embora não ava-
liasse a qualidade da norma, a decisão judicial enfatizou que a
liberdade de expressão requer um debate público robusto e regu-
lação ativa para promover o acesso aos meios.

99 Dados checados a partir da narrativa do Jornal Página 128

253
A decisão sustenta que as pautas se ajustam a critérios de
razoabilidade, de proporcionalidade e de idoneidade. E que não
corresponde a Corte julgar se os limites a concentração são ade-
quados ou eficazes. A Corte também questionou o Governo em
vários parágrafos, apontando, por exemplo, que o Estado pode
afetar a liberdade de expressão quando atua discricionariamente
na distribuição de publicidade oficial.

6. Um direito fundamental

A disputa judicial acerca dos artigos da LSCA é apontada


como uma das principais razões para que a LSCA não fosse inte-
gralmente implementada. No entanto, outras razões se mostraram
como verdadeiros entraves à instituição da Lei que após cinco
anos de aprovada mantinha, ainda, vários pontos carentes de
regulamentação e órgãos e espaços previstos em seu texto em fase
incipiente de estruturação. Entre os fatores apontados estão, além
da ausência de regulamentação, o não cumprimento da garantia
de 33% do espectro radioelétrico para meios sem fins de lucro.
A dificuldade para elaboração do plano técnico de frequências,
a demora na concessão de licenças aos meios sem fins de lucro
e a demora em definir e conceder fundos de fomento previstos
na LSCA também surgem como problemas de ordem técnica e
política.
Este artigo não pretende se deter no caso da Argentina, tam-
pouco aprofundaremos os efeitos da Lei na garantia do Direito à
Comunicação. Nosso objetivo ao colocarmos o caso em tela é tão
somente observar, no plano mais concreto, como se dá as iniciati-
vas para tornar material um direito reclamado e essencial.
O caso analisado não é um episódio isolado. Outros países a
exemplo de Uruguai e Venezuela, para citar alguns, possuem leis
de comunicação que procuram observar os indicadores interna-
cionais dos Direitos Humanos em suas constituições. Do mesmo
modo essas leis tiveram artigos questionados judicialmente a

254
partir da perspectiva da lógica de mercado e igualmente recebe-
ram dos seus tribunais superiores pareceres de constitucionalidade,
primando pelo direito coletivo e pelo melhor interesse do ser
humano e seu desenvolvimento individual e social.
O direito à comunicação, embora não esteja elencado como
um direito prioritário é determinante na formação de um povo
e no seu crescimento enquanto sociedade. É papel do Estado
interferir na conjuntura política e econômica para garantir esse
direito que para além dos benefícios individuais são imprescindí-
veis para que um povo possa se expressar política e culturalmente,
se expandir e se transformar, e seguir de modo contínuo e coletivo
construindo a sua identidade.

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258
REFORMA NO DIREITO TRABALHISTA BRASILEIRO:
O CONTEXTO DOS TEXTOS

Nadine Gualberto Agra100

1. Introdução

P
ara o pesquisador pensar acerca da história viva é sempre
uma tarefa desafiadora, por aumentar o risco de incorrer
em erros e análises que, no decorrer dos acontecimentos,
poderão não mais condizer com a realidade dos fatos. No entanto,
cabe aos estudiosos demarcar seus objetos de estudo no tempo e
no espaço, com o fito de não permitir que esses fatos se percam ou
sejam inseridos na história envolto por nuvens que os impeçam de
ser enxergados de forma clara e límpida.
Devida o curto espaço de tempo de vigência da norma,
prudente se faz não pensar em seus impactos. Nesse sentido,
pretende-se pensar aspectos da Lei 13.429, de 31 de março de
2017, a Lei da Terceirização, e da Lei 13. 467, de 13 de julho de
2017, a chamada reforma trabalhista, na perspectiva de demarcar
o contexto sócioeconômico no qual foram inseridas, enfatizando
os aspectos que favoreceram o advento da lei de forma tão célere e
com o mínimo de resistência. Pretende-se, portanto, não exercer o
papel de “boca da lei”, mas adentrar no contexto e menos no texto

100 Bacharel em Direito e Ciências Econômicas. Doutora em Sociologia do


Trabalho. Professora de Direito do Trabalho da Unifacisa. Pesquisadora do
Observatório do Mercado de Trabalho (Ministério do Trabalho/UFCG).

259
em si, ampliando a perspectiva hermenêutica, de modo que as
mudanças da lei trabalhista sejam percebidas em confronto com a
realidade laboral na qual o país encontra-se inserido.
O presente artigo, desse modo, tem como objetivo analisar as
mudanças na legislação trabalhista brasileira no contexto de crise
e seus devidos reflexos no mundo do trabalho. Para tanto, parte-se
de um breve consideração acerca das crises no sistema capitalista,
para então, analisar os reflexos das crises no cotidiano da classe
trabalho, notadamente, os trabalhadores brasileiros e como esse
contexto veio refletido na lei. Por fim, as considerações finais
foram tecidas num confronto de aspectos da reforma trabalhista
com os Direitos Sociais previstos na Constituição Federal.

2. Dinâmica cíclica do sistema capitalista

De modo inicial, pode-se dizer que crises são interrupções no


curso da reprodução ampliada do capital. Interpretando os diver-
sos textos nos quais Marx se referiu à crise, pois, não há um texto
específico sobre o assunto, Gorender & Almeida (1961) citam
que, a partir do início do Século XIX, a reprodução do capital foi
interrompida por várias crises. Em carta, de 17 de dezembro de
1857, Engels escreve a Marx: A crise inquieta-me de maneira infer-
nal. Todos os dias os preços baixam. Manchester afunda-se cada vez
mais na crise (ENGELS apud BENSAID, 2009).
Instigado por tais inquietações, Marx se colocou a pensar
sobre as crises do modo de produção capitalista de maneira oposta
aquela dos economistas burgueses, principalmente, Jean Batiste
Say, para o qual havia uma identidade imediata entre oferta e
demanda, pelo fato do mercado ser um informador perfeito para
as intenções de produção do empresário. (BENSAID, 2009).
Em contraponto à economia política clássica, para Karl
Marx, as crises são algo inerente ao capitalismo e inevitáveis,
pois, são manifestações das suas contradições, notadamente, da

260
contradição fundamental do modo de produção capitalista, qual
seja: o caráter social da produção e sua forma privada da apro-
priação. As crises emanam, assim, da necessidade de lucro, que
engendram a reprodução capitalista de forma ampliada. Daí, ser
da reprodução ampliada as condições e possibilidades de crises no
capitalismo.
Detalhadamente, para uma melhor compreensão, ocorre da
seguinte maneira: o capitalista não consume com produtos supér-
fluos e luxos tudo que ganha, mas investe parte do seu lucro no
processo produtivo, criando as condições para aumento da produti-
vidade do trabalho e, consequentemente, da produção. D a n d o
continuidade ao processo, impulsionados pela concorrência, cada
capitalista tende a ampliar seu capital constante (inovando em
máquinas e equipamentos), reduzindo, assim, o capital variável
(a força-de-trabalho empregada no processo produtivo). Como
resultado: as mercadorias são produzidas em quantidades maiores
que aquelas que podem comprar os trabalhadores – a produção
continua a aumentar enquanto o mercado reduz. (BENSAID,
2009).
E, por que isso ocorre?
À medida que o capitalista altera a composição orgânica
do capital, ou seja, a relação entre o capital constante e o capital
variável, menos pessoas tendem a ser empregadas, logo, a massa
salarial da economia reduz e, com isso, reduz o poder de com-
pra dos trabalhadores. Gera-se, assim, um excesso de mercadoria.
Mesmo sem vender a mercadoria, o crédito permite que novos
ciclos de produção sejam iniciados. Produz-se mais mercadorias
sem o escoamento da produção anterior. (BENSAID, 2009).
Diferentemente, portanto, do período pré-capitalista, quando as
crises decorriam de carências, por conta de catástrofes naturais,
guerras ou calamidades, as crises capitalistas são, portanto, crises
de superprodução. Desse modo, há uma oposição entre a orga-
nização de cada empresa isoladamente e o caráter anárquico da

261
produção capitalista no seu todo. (GORENDER & ALMEIDA,
1961).
Ocorre, assim, o mecanismo denominado por Marx de ten-
dência decrescente a queda da taxa de lucro, o que não é percebido
pelo capitalista, que baseia sua taxa de lucro no capital total, ou
melhor, em relação ao que excedeu do capital total adiantado.
(HUNT, 1981). O capitalista procura compensar a tendência da
queda da taxa de lucro com o aumento da massa de lucro, aumen-
tando ainda mais a produção.
No Livro II, de O Capital, onde trata do processo de cir-
culação das mercadorias, Marx indica que durante as crises de
superprodução há uma descontinuidade entre produção e circu-
lação pela busca do lucro. Logo, rompe-se a conversibilidade do
capital da forma mercadoria para forma dinheiro, o que impede
a realização da mais-valia produzida pela força-de-trabalho ao
longo do processo produtivo. Em paralelo, o dinheiro assume uma
forma de existência autônoma do valor-de-troca, à medida que
o dinheiro cresce no circuito de crédito, sem que seja necessário
passar pelo processo produtivo, não percorrendo o ciclo completo
das suas metamorfoses. Assim, na economia capitalista, se não há
venda, há crise: primeiro, a crise da disjunção da compra e venda;
segundo, a crise da função do dinheiro como meio de pagamento
que assume forma autônoma101 (BENSAID, 2009).
Diferentemente do que acreditava os economistas clássicos,
embevecidos pelas promessas da modernidade, o modo de pro-
dução capitalista não tende ao progresso, mas sim, desenrola-se
intercalando fases de crescimento econômico com crises, ou seja,
possui um caráter cíclico. Ciclos esses que se sucedem a partir das
seguintes fases: 1) crise, 2) depressão, 3) reanimação e 4) ascenso.
De maneira prática, inicialmente, ocorre o estoque de mercadorias
e a redução da produção. Como efeito, os trabalhadores passam

101 Nesse caso, fala-se do capital financeiro.

262
a perder seus postos de trabalho – desemprego, do mesmo modo
que empresas de pequeno e médio porte não mais conseguem
suportar a concorrência – falência. Além disso, como as empresas
perdem suas condições de pagamento, há uma redução da oferta
de crédito. Enfim, queda do valor das ações e das bolsas de valores.
A depressão é a fase imediata à crise, quando a produção se
encontra estagnada, os estoques começam a ser destruídos pelos
preços baixos e há uma abundância de capital livre. Os capitalistas
buscam reduzir os custos de produção. Objetivo que é alcançado
pelas seguintes vias: aumento da exploração do trabalho, queda
dos salários (permitida pelo desemprego), avanço tecnológico e
aperfeiçoamento da técnica. Tal renovação do capital fixo impul-
siona a demanda nos ramos produtores de equipamentos, que
passam a demandar matéria-prima e força-de-trabalho. Dá-se o
início da passagem para reanimação.
Na fase da reanimação, por sua vez, os capitalistas retomam
a ampliação da produção, os preços voltam a subir e o lucro é
ampliado. O Ascenso ocorre quando a produção ultrapassa os
níveis de produção anteriores a crise. Nessa fase, ocorre a amplia-
ção dos níveis de investimento, como também, há uma ampliação
dos empréstimos bancários102.
Importante destacar, ainda, que as crises capitalistas, além de
cíclicas, se manifestam, ao longo da história do capitalismo, com
maior profundidade e maior força destruidora. Desse modo, crises
curtas, localizadas em atividades ou setores econômicos, como as
primeiras do Século XIX, estenderam-se para o todo da econo-
mia, como a primeira crise geral de 1825. Depois, as crises vão
alcançando outros países da Europa e Estados Unidos, a exemplo

102 Que nessa breve descrição do movimento cíclico do capitalismo, para fins
meramente didáticos, não fique a impressão de que esse processo ocorre do
modo linear e seguindo uma ordem “natural” do mercado. Pelo contrário, ao
longo da história, para saída efetiva das grandes crises, houve adoção de políti-
cas estatais anti-cíclicas.

263
das crises de 1847, 1848, 1857 e 1873. Essa último sendo o
marco da passagem para economia monopolista. (GORENDER
&ALMEIDA, 1961).
No Século XX, pode-se destacar a Grande Depressão103
(1929-1933), como a principal responsável pelo confronto do mito
do progresso, à medida que desnudou as imperfeiçoes do mercado
e sua incapacidade de retorno ao equilíbrio sem a interferência
do Estado. Uma mudança de paradigma teórico introduziu, defi-
nitivamente, as crises e o desemprego na análise da economia
capitalista, passando esse a ser percebido não como um eterno
por vir de dias melhores, mas como um ciclo de prosperidade
e depressão, intercalados por momentos de reestruturação para
retomado das taxas de lucro.
O pensamento da Escola da Regulamentação é fundamen-
tal para compreensão de tal dinâmica. Segundo Harvey (2011), o
capitalismo vem demonstrando fluidez e flexibilidade suficiente
para superar todos os limites. Isso ocorre porque, historicamente,
vem superando as barreiras que são postas a expansão da taxa de
lucro pelas próprias contradições internas. Na tentativa de supe-
ração, o capital acelera a velocidade de circulação, amplia-se no
tempo e no espaço (como exemplo, a dominação imperialista e a
criação constante de novos produtos e serviços), como também,
cria nexos entre o Estado e as finanças, de modo que subsídios e
gastos públicos sejam ampliados. Enfim, organiza normas, hábi-
tos, leis, formas de controle sobre o trabalho, necessidades de
consumo, tecnologias e redes de regulamentação que garantam
a unidade do processo de lucratividade ampliada. (HARVEY,
2006).

103 Outras grandes crises do Século XX: a Crise do Estado de Bem-estar Social,
nos anos 1970 e as Crises do México e dos Tigres Asiáticos, nos anos 1990. E,
já no presente Século, a última grande Crise financeira de 2008, iniciada nos
EUA, com desdobramentos globais.

264
Sob as lentes de David Harvey, pode-se afirmar que a ten-
dência à queda da taxa de lucro é combatida por meio de uma
reestruturações no setor privado e na forma de atuação do Estado,
que implica em mudança nas formas de regulamentação da ati-
vidade econômica. Processo claramente percebido a partir dos
anos 1970, com a Crise do Estado de Bem-estar Social, quando
o modelo fordista torna-se inadequado a produção capitalista e
passa a ser, paulatinamente, substituído pelas formas de acumula-
ção flexíveis, como denominado por Harvey (2006).
Acumulação flexível, basicamente, implica no desmem-
bramento dos processos produtivos de grandes empresas pelo
mundo, uso de tecnologia de ponto, adoção de novas formas de
gerência da força de trabalho e retomado dos ideais apregoados
pelo liberalismo clássico, conduzindo à expansão do mercado
nos diversos setores da vida social. As conquistas no período
Keynesiano-fordista, de Estado forte e direitos sociais, tornaram-
se um empecilho a retomada da produtividade, notadamente, os
direitos trabalhistas e os altos salários conquistados, interpretados,
a partir de então, como custos elevados para a classe empresarial.
Contudo, sendo cíclico, a fase neoliberal que se estende ao
longo dos anos 1980 e 2000 no capitalismo mundial104 esgota-se
com a Crise financeira de 2008105, que teve o mercado financeiro
norte-americano como ponto nevrálgico, mas que termina por
repercutir em todo mundo capitalista desenvolvido ou não. Crise
essa, ainda vigente e ainda promotora das devidas reestruturações.
No Brasil, os efeitos da referida crise passam a ser sentidos,
efetivamente, a partir de 2014, visto que o pais vinha viven-
ciando políticas neo desenvolvimentistas, com ampla condução
do Estado dos rumos da economia e na garantia de direitos

104 No Brasil, nos anos 1990, principalmente, após as reformas liberais do governo
Fernando Henrique Cardoso.
105 Ver Harvey (2011).

265
sociais, que reduziram os impactos da crise mundial na realidade
interna. No entanto, processo esgotada a partir da crise financeira
do Estado e da retomada inflacionária, efeitos bem aproveitados
como “pano de fundo” para articulação de um pacto promotor
de uma contra-reforma nacional que resultou com a retirada da
Presidente da República do poder. A crise econômica, agrega-se
a crise política, institucional e moral da realidade brasileira, com
seus devidos reflexos no mundo do trabalho, como será demons-
trado no próximo item.

3. O contexto da Reforma Trabalhista

A Constituição Federal de 1988 representou um grande


avanço na conquista das garantias e direitos dos trabalhadores bra-
sileiros. De acordo com Delgado (2017), o modelo justrabalhista
brasileiro foi apropriado das experiências autocráticas europeias,
basicamente, fundado no fascismo italiano. Sendo assim, na his-
tória brasileira, sempre preponderou as formas heterônomas do
conflito trabalhista, fundado no Estado.
A Constituição de 1988, portanto, impulsionou uma demo-
cratização da administração do conflito social no país. Segundo
Delgado,
A Constituição da República criou as con-
dições culturais, jurídicas e institucionais
necessárias para superar antigo e remitente
nódulo do sistema trabalhista brasileiro do
Brasil: a falta de efetividade do seu direito
individual do trabalho. Ao reforçar a Justiça do
Trabalho e o Ministério Público do Trabalho,
a par de garantir o manejo amplo de ações
coletivas pelos sindicatos, o Texto Máximo de
1988 acentuou a relevância da política pública
de contínua inserção econômica e social dos
indivíduos, por meio do Direito do Trabalho,

266
no contexto da redemocratização da sociedade
civil (DELGADO, 2017, P. 128).

Enfim, o direito do trabalho foi constitucionalizado, adqui-


rindo o status de direito fundamental. Foi retirado de seu local
delimitado, passando a lançar influência sobre a cultura jurí-
dica do país. Caminhou positivamente na garantia da dignidade
humana como princípio, na isonomia entre cidadãos e entre os
trabalhadores brasileiros. Negou a matriz individualista e primou
pelos princípios da igualdade material (DELGADO, 2017).
In verbis,
Art. 6º São direitos sociais a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição106.    

Já nos anos 1990, com a adoção dos preceitos do Consenso


de Washington107 como indutores das reformas neoliberais imple-
mentadas no país, que, segundo discurso oficial, conduziria o país
a modernização, a Constituição Federal começa a ser emendada,
mudando sutil e imperceptivelmente, seu viés cidadão. Como
resultado, ao final do Era FHC, o país vivenciava uma grave crise
social, com altos níveis de desemprego e concentração de renda,
que, de certa forma, facilitaram a eleição do Presidente oriundo da
classe trabalhadora, Luiz Inácio Lula da Silva, após três derrotas
na corrida presidencial.

106 Redação pela Emenda Constitucional 90/2015, que incluiu o transporte no rol
dos direitos fundamentais.
107 Conjunto de medidas neoliberais recomendadas como estratégias para comba-
ter as crises e a miséria dos países subdesenvolvidos. Elaborado pelo economista
John Willianson, em 1989. Tornou-se a política oficial do FMI para os países
da América Latina, nos anos 1990.

267
Nos anos 2000, os direitos sociais previstos na Constituição
Federal tiveram um momento propenso e efetividade, mediante
adoção de políticas de combate à fome, de habitação e de geração
de emprego e renda, o que não cabe esmiuçar no presente estudo.
No entanto, a partir de maio de 2016, o início do governo Temer,
representa o desmonte de garantias e direitos fundamentais con-
quistados, efetivamente, com a Constituição Federal de 1988,
após longo período de lutas e conquistas do período de redemo-
cratização da política brasileira.
No que diz respeito, especificamente, ao direitos sociais,
previstos no art 6º da Constituição Federal, o grande ataque
governamental aos direitos sociais foi com a aprovação da PEC
241 (na câmara federal) e PEC 55 (no senado), aprovada em 15
de dezembro de 2016, como a Emenda Constitucional 95, que
alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ins-
tituindo um novo regime fiscal. Basicamente, a EC 95 congela os
gastos sociais por 20 anos, à medida que, a partir de 2018, estipula
como piso os valores realizados no ano 2017, apenas reajustados
pela inflação.
Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias  passa a vigorar acrescido dos
seguintes arts. 106, 107, 108, 109, 110, 111,
112, 113 e 114:
Art. 106. Fica instituído o Novo Regime
Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e
da Seguridade Social da União, que vigorará
por vinte exercícios financeiros, nos termos
dos arts. 107 a 114 deste Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. (BRASIL, 2017,
art 106).
Art. 107. Ficam estabelecidos, para cada exer-
cício, limites individualizados para as despesas
primárias:

268
§ 1º Cada um dos limites a que se refere
o caput deste artigo equivalerá:
I - para o exercício de 2017, à despesa primária
paga no exercício de 2016, incluídos os restos
a pagar pagos e demais operações que afetam
o resultado primário, corrigida em 7,2% (sete
inteiros e dois décimos por cento); e
II - para os exercícios posteriores, ao valor do
limite referente ao exercício imediatamente
anterior, corrigido pela variação do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo -
IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, ou de outro índice
que vier a substituí-lo, para o período de
doze meses encerrado em junho do exercício
anterior a que se refere a lei orçamentária.
(BRASIL, 2017, art 107).

Quanto a seara justrabalhista, o direito do trabalho foi refor-


mado por intermédio da aprovação, inicialmente, da Lei 13.429,
de 31 de3 março de 2017, que alterou a Lei 6.019/1974, que dis-
põe sobre o trabalho temporário e da Lei 13.467, de 13 de julho
de 2017, alterando a Consolidação da Leis do Trabalho.
Os anseios de reforma do governo Temer encontraram solo
fértil, adubado pela fragilidade do mundo do trabalho, agravada
a partir da crise de 2015. Crise marcada, notadamente, pela alte-
ração da dinâmica do mercado de trabalho, com o aumento do
desemprego, queda de rendimentos, expansão do processo de
informalidade e das formas de trabalho autônomo. Bem como,
pelo enfraquecimento do poder de barganha dos sindicatos, des-
regulamentação, flexibilização e precarização das condições de
trabalho.
Analisando uma série histórica do desemprego brasileiro,
pode-se perceber um incremento da taxa de desemprego de 6,9%,
em 2012, para 9%, em 2015 e 12%, em 2016. Todos os dados

269
referentes ao último trimestre do ano. (IBGE, Pesquisa Nacional
de Amostra em Domicílio, 2018). Número que reflete a queda do
PIB, que a partir de 2014, passou a apresentar desempenho nega-
tivo em torno de -3,8% (IBGE, Contas Nacionais, 2010). Em
fevereiro de 2018, o número de desempregados no país alcançou
os 13,1 milhões, o que representa uma taxa de desemprego de
12,6% (IBGE, PNAD, 2018).
Ainda, segundo os último dados divulgados pela Pesquisa
Nacional de Amostra a Domicílio (PNAD), entre os anos de
2016 e 2017, houve um aumento de 5,2% do número de pessoas
trabalhando sem carteira assinada (total de 10,7 milhões de pes-
soas). Bem como, houve a ampliação do número de trabalhadores
que passaram a atuar por conta própria, ou seja, 1,07 milhão de
pessoas passaram a atuar como trabalhadores autônomos entre o
último trimestre de 2016 e 2017.
Somando-se aos dados de aumento do número de desem-
pregados, da ampliação do trabalho autônomo e da informalidade,
outro fenômeno que ascendeu no mundo do trabalho foi a tercei-
rização trabalhista. Em 2007, havia 8,5 milhões de vínculos ativos
nas atividades tipicamente terceirizadas. Número que alcança 12,5
milhões de pessoas em 2014 (TEM, RAIS, CAGED/ DIEESE,
2017).
É num cenário de perda de direitos sociais, desemprego e
desregulamentação que a da Lei da Terceirização e a Reforma
Trabalhista entram no ordenamento jurídico nacional. O cenário
de crise facilitou a ínfima resistência da massa de trabalhadores
que, mesmo tendo consciência da perda de direitos, preocupava-se
com a busca do sobrevivência diária, por não ter outra opção. Os
empregados, permaneceram calados temendo perder o emprego,
ao tempo em que os autônomos, já haviam encontrado forma de
sobrevivência fora do mercado de trabalho formal.
As respostas do capitalismo mundial à Crise de 2008,
finalmente, encontraram espaço para o pleno desenvolvimento

270
no Brasil. Ganhou força a retórica das condições necessárias a
modernização mediante redução de custos empresarias, principal-
mente, com uma folha de pagamento que aparece como o grande
entrave à retomada do crescimento nacional. Do mesmo modo, a
ideia de empreendedorismo assume força, o “fazer-se por si só” e
não mais esperar pelo emprego formal, muito menos pelo Estado,
é visto como prática positiva. Os valores de mercado, por mais
de uma década, tendo dividido espaço com o empoderamento
de minorias, passaram a imperar como balizadores dos rumos da
economia e da vida do povo brasileiro.
A partir desse contexto brevemente exposto, pois vários
outros fatores poderiam ser detalhados, o que sairia das delimita-
ções do presente estudo, passa-se, então, a destacar os principais
aspectos da Lei da Terceirização e da Reforma Trabalhista que,
acredita-se, mais impactarão nas condições de trabalho do país.

A terceirização Trabalhista e as alterações da CLT

Sobre o termo terceirização, Delgado (2017) destaca como


o resultado de neologismo oriundo da administração de empre-
sas, que remete a um terceiro (no sentido de intermediário). No
entanto, para o direito do trabalho, terceirização é o fenômeno
pelo qual se dissocia a relação de trabalho da relação justraba-
lhista. A relação trabalhista, tradicionalmente bilateral (BRASIL,
, CLT, 2017, arts. 2º e 3º), é consubstanciada numa relação trilate-
ral composta pelo trabalhador, pela empresa terceirizante (quem
contrata o prestador de serviços) e pela empresa tomadora de ser-
viços (que contrata a empresa terceirizante). Trata-se, portanto, de
uma relação de trabalho e não mais de uma relação empregatícia,
no que diz respeito à empresa tomadora de serviços e ao trabalha-
dor. Terceirização, em suma, é o processo pelo qual uma empresa
contrata outra para prestar um determinado serviço.

271
Sendo um fenômeno do final do Século XX, a CLT, da
década de 1940, fez menção a apenas duas formas de subcontrata-
ção: a empreitada e a subempreitada (art. 455, CLT), englobando
a pequena empreitada (art. 652, a, III, CLT). Em fins dos anos
1960, é que a ordem jurídica nacional destacou o fenômeno da
terceirização, especificamente, no setor público, caso de Decreto-
Lei n. 200/1967 e da Lei n. 5.645/1970, diplomas que propiciaram
a denominada descentralização administrativa.
A terceirização se estende ao campo privado com a permissão
para trabalho temporário – Lei n. 6.019/1974 e a terceirização dos
serviços de vigilância bancária, normatizada na Lei n. 7.102/1983.
Nos anos 1990, com o processo de privatização, novo ímpeto
foi dado ao fenômeno da terceirização trabalhista, desta vez, nas
concessionárias de serviços públicos. Logo, a Lei 9.527/1997 (que
trata da concessão na área de telefonia) dispõe sobre a permissão
de contratação de serviços de terceiros pelas concessionárias.
Contudo, as hipóteses de terceirização lícita eram consi-
deradas exceção. Delgado (2015) destaca que a jurisprudência
trabalhista incorporou uma forte orientação limitativa a expansão
da relação trilateral de trabalho, considerando-a em seu aspecto
excetivo, sendo regra os preceitos constitucionais e da CLT. Nos
termos da Súmula 331, do TST, de 2011, as situações de terceiri-
zação lícitas eram: trabalho temporário; atividades de vigilância;
atividades de conservação e limpeza e serviços especializados
ligados à atividade meio do tomador. Nenhuma das hipóteses
relativas à permissão de terceirização de atividades-fim – aquelas
nucleares e essenciais para dinâmica empresarial.
O debate em torno da licitude ou não de contratação de ativi-
dades-meio ou fim se esvai com o advento da Lei 13.429/2017, de
31 de março de 2017 – Lei de Terceirização, que alterou dispositi-
vos da Lei 6.019/1974, que dispunha sobre o trabalho temporário
e, como consequência, sobre a terceirização (haja vista, tal fenô-
meno ser permitido apenas no âmbito do trabalho temporário).

272
Nos termos do art. 2º da nova Lei, é trabalho temporário
aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa
de trabalho temporário e posto à disposição de uma empresa
tomadora de serviço, para atender a necessidade de substitui-
ção transitória de pessoal ou à demanda complementar (aquela
oriunda de fatores imprevisíveis ou sazonais).
O trabalhador temporário, com relação ao mesmo empre-
gador, não poderá exceder o prazo de 180 dias, podendo ser
prorrogado por até 90 dias. Passado esse prazo, não poderá ser
colocada à disposição da mesma tomadora antes de 90 dias. Caso
haja contratação, passa-se a caracterizar vínculo empregatício
com a tomadora de serviço (BRASIL, 2017, art. 10).
Empresa de trabalho temporário, por sua vez, é a pessoa jurí-
dica de direito privado destinada a prestar serviços determinados
e específicos. (BRASIL, 2017, art 4º- A). Essa empresa contrata,
remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores. A
empresa prestadora de serviço, de acordo com a nova lei, deve seguir
alguns requisitos para o funcionamento, quais sejam: inscrição do
CNPJ; registro na Junta Comercial e o capital social compatível
com o número de funcionários de acordo com os seguintes parâ-
metros: até 10 funcionários: capital mínimo de R$ 10.000,00; de
11 a 20 funcionários: capital mínimo de R$ 25.000,00; de 21 a 50
funcionários: capital mínimo de R$ 45.000,00; de 51 a 100 fun-
cionários: capital mínimo de R$ 100.000,00; Empresas com mais
de 100 funcionários: R$ 250.000,00 (BRASIL, 2017, art. 4º-B).
A empresa tomadora de serviços é a pessoa física ou jurí-
dica que contrato o serviço da empresa de trabalho temporário
(BRASIL, 2017,art 5º-A). Não podendo utilizar trabalhadores
em atividades distintas daquela que contratou.
A grande novidade da Lei 13. 467/2017 se deu em função
das atividades consideradas anteriormente ilícitas nos contratos
de terceirização, ou seja, não há mais impedimento para con-
tratação de atividade-fim, como dispunha a Súmula 331/TST.

273
Expressamente no art 9º, § 3º, o contrato de trabalho temporário
pode versar sobre atividade-meio e atividade-fim, em qualquer
ramo de atividade.
Art. 9º. § 3o  O contrato de trabalho tempo-
rário pode versar sobre o desenvolvimento
de atividades-meio e atividades-fim a serem
executadas na empresa tomadora de servi-
ços. (BRASIL, 2017,art.9º).

Deixando, também expresso, a inexistência de vínculo empre-


gatício entre o trabalhador temporário e a empresa contratante.
Art. 10.   Qualquer que seja o ramo da
empresa tomadora de serviços, não existe vín-
culo de emprego entre ela e os trabalhadores
contratados pelas empresas de trabalho tem-
porário. (BRASIL, 2017, art. 10)

Em termos de responsabilidade, segundo art. 5º-A, é res-


ponsabilidade da contratante garantir as condições de segurança,
higiene e salubridade do trabalho. No entanto, “poderá” estender
ao trabalhador temporário da empresa o mesmo atendimento
médico, ambulatorial e de refeição destinado aos seus emprega-
dos. No tocante às obrigações trabalhistas, a responsabilidade da
empresa contratante é subsidiária no período que ocorre a pres-
tação de serviços1089. As obrigações previdenciárias observará o
disposto na Lei 8.212/1991, que dispõe sobre a organização da
seguridade social.
Dando continuidade as alterações na regulamentação do tra-
balho, a Lei 13.467/2017, veio coroar a reformar iniciada com a
lei supracitada. Aqui, não havendo condições, num único artigo,

108 Na Lei de trabalho temporário, Lei 6.018/1974, a responsabilidade era solidá-


ria, já alterado pela Súmula 331.

274
para esmiuçar todo mudança, optou-se por enfatizar os pontos
que acredita-se representar os maiores impactos nas condições de
trabalho no Brasil, a saber, o contrato de trabalho intermitente, a
normatização do teletrabalho e a jornada 12X36.
A regulamentação do trabalho intermitente foi inserida no
Título IV, nas disposições acerca do contrato de trabalho indi-
vidual de trabalho, especificamente, nos arts 443 e 452-A, da
CLT. Sendo assim, o contrato de trabalho passa a ser permitido
por prazo determinado, indeterminado ou de prestação de tra-
balho intermitente (BRASIL, 2017, art 443, CLT). A definição
do então trabalho intermitente ficou a cargo no parágrafo 3º do
mesmo dispositivo supracitado, a saber,
§ 3o  Considera-se como intermitente o con-
trato de trabalho no qual a prestação de serviços,
com subordinação, não é contínua, ocorrendo
com alternância de períodos de prestação de
serviços e de inatividade, determinados em
horas, dias ou meses, independentemente do
tipo de atividade do empregado e do empre-
gador, exceto para os aeronautas, regidos
por legislação própria.  (BRASIL, 2017, art.
452-A).

O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por


escrito. No mesmo contrato, o valor da hora de trabalho deve ser
especificado, esse, não pode ser inferior ao valor horário do salário
mínimo ou àquele devido aos demais funcionários do estabeleci-
mento, que exerçam a mesma função (BRASIL, 2017,art 452-A)
A convocação pode ocorrer por qualquer meio de comu-
nicação, pelo menos com três dias de antecedência, quando se
deve informar, qual será a duração da jornada. O empregado, por
sua vez, tem o prazo de um dia útil para responder. O silêncio
presume recusa (BRASIL, 2017, art 452-A, § 1º e §2º). O paga-
mento ocorre de acordo com o disposto no §6º:

275
§ 6o    Ao final de cada período de prestação
de serviço, o empregado receberá o pagamento
imediato das seguintes parcelas: 
I - remuneração; 
II - férias proporcionais com acréscimo de um
terço;  
III - décimo terceiro salário proporcional; 
IV - repouso semanal remunerado; e 
V - adicionais legais.  (BRASIL, 2017, art.
452-A).

A contribuição previdenciária e o FGTS ocorrerá com


base nos valores pagos no mês (BRASIL, 2017, art 452-A, §8º).
Quanto às férias, o cada doze meses, o empregado adquire o
direito de usufruir , nos doze meses subsequentes, um mês de
férias, período no qual não poderá ser convocado (BRASIL, 2017,
art 452-A, §9º).
De acordo com comentário de Franco Filho (2018), no tra-
balho intermitente, a ausência de habitualidade não permite que
o trabalhador desenvolva um sentimento de pertença para com a
empresa, de modo que sinta-se estimulado ao trabalho. Além do
mais, a ausência de uma remuneração fixa gera forte sentimento
de instabilidade, o que repercute na saúde mental do trabalhador,
propiciando maior desgaste mental.
Acrescenta-se ainda, o fato de trabalhador tender a assumir
contratos de trabalho intermitentes com mais de um emprega-
dor, como um forma de complementar a renda. As incertezas que
geram desgaste psíquico associa-se a desgaste física e a redução
de sua tempo para lazer e convívio familiar. Em nada, portanto,
contribuindo para melhoria da qualidade de vida do trabalhador
e da sua família.
Na mesma esteira, o teletrabalho gera repercussões imediatas
no estilo de vida do trabalhador, visto que esse passa a ter o lar
invadido pelo trabalho, perdendo, com isso, as referências de hora

276
de descanso, de trabalho, de convívio familiar, além de, no longo
prazo, promover o isolamento social do trabalhador. A reforma
trabalhista incluiu o regime de teletrabalho entre as modalidades
de trabalho sem fiscalização de jornada (art 62, inciso III, CLT).
Teletrabalho, então, é definido da seguinte forma:
Art 75-B Considera-se teletrabalho a presta-
ção de serviços preponderantemente fora das
dependências do empregador, com a utilização
de tecnologias de informação e de comunica-
ção que, por sua natureza, não se constituam
como trabalho externo.   (BRASIL, 2017, art
75-B).

A modalidade deve aparecer expressamente no contrato de


trabalho, onde também deve constar todas as atividades a serem
desenvolvidas pela empregado. O regime de trabalho pode ser
alterado mediante mútuo acordo (BRASIL, 2017, art 75-C).
Quanto a compra e manutenção de equipamentos e infra-
estrutura necessária, devem ser previstas no contrato escrito.
Qualquer utilidade fornecida ao trabalhador pela empresa, não
integram a remuneração do empregado, segundo art 75-C.
No que diz respeito à saúde do trabalhador e prevenção de
acidento do trabalho, o empregador deverá instruir os emprega-
dos quanto às precauções a serem tomadas. O empregado deve
assinar termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir
as instruções fornecidas pelo empregador. Claramente, há uma
transferência de responsabilidade do empregador para o empre-
gado, como também, a uma transferência de custos, pois, mesmo
fornecendo os equipamentos de tecnologia da informação, o tra-
balhador terminar por arcar com gastos de energia, internet banda
larga, caso utilize seus próprios equipamentos, com a depreciação,
etc.

277
A jornada 12X36 é outra novidade marcante na vida do tra-
balhador. A reforma trabalhista não alterou os marcos diários da
hora extra, permanecendo duas horas por dia (BRASIL, 2017, art
59, caput, CLT). Porém, esse marco pode ser ultrapassado no caso
do regime de compensação de jornada 12X36.
Art 59-A Em exceção ao disposto no art.
59 desta Consolidação, é facultado às partes,
mediante acordo individual escrito, conven-
ção coletiva ou acordo coletivo de trabalho,
estabelecer horário de trabalho de doze horas
seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de
descanso, observados ou indenizados os inter-
valos para repouso e alimentação. (BRASIL,
2017, art 59-A).

Nesses termos, o pacto compensatório poderá ocorrer


mediante escrito ou tácito, seguindo as regras dos regimes deno-
minados como Semana Inglesa e Semana Espanhola. Na Semana
Inglesa, a compensação ocorre dentro da própria semana da rea-
lização das horas extras. A Semana Espanhola, por sua vez, uma
semana compensa a outra.
A remuneração mensal para jornada de trabalho de 12 horas
ininterruptas abrangerá os pagamentos pelo descanso semanal
remunerado, pelo descanso em feriado e pelas prorrogações da
jornada noturna.
Parágrafo único.  A remuneração mensal pac-
tuada pelo horário previsto no  caput  deste
artigo abrange os pagamentos devidos pelo
descanso semanal remunerado e pelo descanso
em feriados, e serão considerados compensa-
dos os feriados e as prorrogações de trabalho
noturno, quando houver, de que tratam o art.
70 e o § 5º do art. 73 desta Consolidação.
(BRASIL, 2017, art 59-A, parágrafo único)

278
Desse modo, com a reforma trabalhista, todos os feriados
trabalhados em regime de 12X36 serão compensados, não mais
havendo o pagamento em dobro. O art 59-A considera com-
pensada as horas trabalhadas para além das 5h da manhã, sendo
assim, o trabalhador que cumprir uma jornada de 12X36 não mais
terá direito ao adicional noturno. (BRASIL, 2017, art 59-A)
Quanto aos intervalor, a reforma permite que os intervalos
de descanso sejam remunerados, podendo ser reduzindo para, no
mínimo 30 minutos, o que abre espaço para que o trabalhador
trabalhe, literalmente, doze horas ininterruptas, sem trégua para
alimentação, por exemplo.
Abertas as possibilidades para realização de jornada de tra-
balho em doze horas ininterruptas, o reforma ainda permite a
realização do trabalho em ambientes insalubres, mediante licença
prévia das autoridades competentes ((BRASIL, 2017, art 59-A).
Bem como, fica permitido ainda, a expansão da jornada de traba-
lho para além das doze horas, caso ocorra necessidade imperiosa,
seja por motivo de força maior, seja para realização ou conclusão
de serviço inadiável ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo
manifesto ((BRASIL, 2017, art. 61). Excesso, inclusive, que per-
mitido independente de convenção ou acordo coletivo.
A institucionalização da jornada de trabalho 12X36 fere,
integralmente, as conquistas advindas das primeiras lutas da classe
trabalhado por redução da jornada de trabalho. A tendência clara
é de ampliação de acidentes de trabalho em função da fadiga por
excesso de trabalho. Enfim, por intermédio dos institutos aqui
escolhidos como demonstrativos, percebe-se a face dura e desme-
dida da reforma trabalhista, representando uma total inversão de
valores do direito do trabalho brasileiro, que em muito perde seu
caráter protetivo, assumindo, em contra partida, ares de garantias
empresariais, fundamentadas em cálculo de custo benefício e não
mais no princípio da equidade material.

279
A reforma fere não apenas os direitos individuais dos tra-
balhadores, mas também, os direitos coletivos, visto que as
possibilidades de associações e reconhecimento como uma única
categoria se esvaem na solidão das suas rotinas de teletrabalho
ou no pouco convívio no ambiental laboral, à medida que apenas
permanece nesse quando efetivamente está trabalhando. O traba-
lhador tende a não mais se reconhecer no outro, a ideia de coletivo
torna-se cada vez mais distante. Consequentemente, enfraqueci-
mento dos sindicatos e de formas associativas ou cooperativas de
trabalho.

Considerações Finais

Crises no capitalismo consistem em queda de lucratividade,


fator que foge completamente da finalidade desse sistema de
produção. Por isso, que crises conduzem a fases de reestrutura-
ção, principalmente, reestruturações empresariais e institucionais
que reconduzam a ampliação do lucro e a novos períodos de
fortalecimento.
O modo de regulamentação criado após a Crise do Estado
de Bem-estar Social foi na direção aposta do modelo utilizado
após a Grande Depressão e o Pós-Guerra. Nesses foi necessá-
rio o Estado para garantir as condições de rentabilidade do setor
privado, inclusive, promovendo distribuição de renda para que o
trabalhador se tornasse um consumidor e assegurasse mercado
para a produção em série. No entanto, após as Crises do anos
1970 e de 2008, a economia não mais necessitava da intervenção
direta do Estado, a intervenção, a partir de então, deve ser sele-
tiva, ou seja, deve existir um Estado forte para o setor privado e
mínimo para a promoção dos direitos sociais.
Antigas conquistas transfiguram-se em custos excessivos,
que devem ser combatidos. Constituição cidadã, no mesmo sen-
tido, transfigura-se em empecilho à modernização. Foi curto o

280
período de tolerância da elite brasileira ao texto constitucional
progressista, como resultado, direitos sociais converteram-se em
mercadorias, a exemplo da saúde, educação, segurança, transporte.
Com isso, reduziu-se gastos públicos, deslocou-se os recursos para
gastos financeiros e abriu-se novos ramos de atuação para o capi-
tal, novas perspectivas de maiores lucros. Sem a ameaça da Guerra
Fria, o capitalismo não mais precisa garantir bem-estar social.
A força de trabalho, uma vez já mercantilizada, como pre-
missa básica para surgimento do capitalismo, precisou, então, ser
barateada. E assim o foi através do processo de substituição do
homem pela máquina e perda de direitos. O mundo do traba-
lho passou a ser caracterizado pelo desemprego, precarização e
flexibilização.
As mudanças no direito do trabalho brasileiro representa,
nesse sentido, um invasão dos valores do mercado nessa seara.
À medida que o direito do trabalho passa a servir aos interesses
“modernizantes” da classe empresarial e menos aos interesses da
classe trabalhadora e da sua organização coletiva.
A terceirização trabalhista facilita a flexibilização e a reestru-
turação produtiva de grandes empresas que passam a subcontratar
empresas menores, dividindo sua produção pelo mundo e redu-
zindo custos de produção. Garante burlar a relação empregatícia
ao criar a relação de prestação de serviços entre pessoas jurídicas.
Além do mais, enfraquece, consideravelmente, o poder de articu-
lação das categorias de trabalhadores, pois, essas passam a sofrer
subdivisões no próprio ambiente de trabalho.
O Trabalho intermitente e a jornada de trabalho 12X36,
por exemplo, são similares ao trabalho just in time toyotista, que
busca moldar as jornadas de trabalho as necessidades da demanda.
Atendendo aos interesses econômicos-financeiros de grandes
empresas e não dos trabalhadores, que perdem condições de pla-
nejar sua rotina, sua remuneração mensal, gerando, assim, um véu
de incertezas e instabilidade. Além da sobrecarga de trabalho, do

281
desgaste mental e físico, de problemas matrimonias e familiares
em decorrência de toda desestimulo e adoecimento da trabalhador.
O controle da jornada de trabalho é bruscamente atacado. As
formas de extração de mais trabalho retornam aos moldes mais
remotos da Revolução Industrial, onde as jornadas de trabalho
eram ampliadas segundo as necessidades do empregador. Para
economia melhorar a proteção ao trabalho regride, essa é a essên-
cia da reforma das leis trabalhistas, uma resposta conservadora à
crise, consequentemente, concentradora e marginalizante.
Como resultado, toda instabilidade e incerteza geradas
assumem a função de conter qualquer ímpeto de resistência da
classe trabalhadora. Do mesmo modo, o desemprego atinge fron-
talmente a faculdade de agir dessa classe, seu direito subjetivo.
Qualquer vontade ou interesse de agir são contidos pelo medo
de perder o emprego. Não se acredita mais na política nem no
coletivo, fazendo com que as pessoas busquem sua sobrevivên-
cia de forma isolada, as vezes, literalmente isoladas, como no
teletrabalho.
Logo, percebe-se a tendência de fortalecimento do mercado
ao término de cada crise, pois, a superação de uma crise implica
na sobrevivência daqueles que concentraram e centralizaram seu
capital pelo globo. Por outro lado, a classe trabalhadora perde capa-
cidade de luta e organização. Em outras palavras, em momentos
de crise, o desemprego e a precarização da condições de traba-
lho representam instrumentos eficazes de resignação, estado de
ânimo dos trabalhadores brasileiros diante da reforma trabalhista.

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285
A INSEGURANÇA JURÍDICA DO CONSUMIDOR
NAS RELAÇÔES CONSUMERISTAS NO
ÂMBITO DOS PAÍSES DO MERCOSUL

Fernando Antônio Vasconcelos109


Fernanda Holanda V. Brandão110
Ilany Caroline da Silva Leandro111

1. Introdução

C
om a adesão ao Tratado de Assunção, em 1991 os paí-
ses da região denominada Cone Sul do Continente
Americano, compreendendo o Brasil, Paraguai, Uruguai,
Argentina e por último a Venezuela, membro desde 31 de julho
de 2012, estreitaram os laços econômicos a partir da criação do
bloco Mercado Comum do Sul - Mercosul, integrando os paí-
ses-partes. Sendo o consumo uma realidade cotidiana, onde os
indivíduos se revelam cada vez mais próximos dos atrativos do
mercado, há a necessidade de se garantir aos sujeitos fragilizados
da relação, respaldo protetivo nas relações de cunho consumeris-
tas no âmbito do Mercosul.

109 Mestre e Doutor em Direito Civil pela UFPE. Professor da UFPB e do


UNIPÊ (graduação e pós-graduação). E-mail: fer.mengo@uol.com.br.
110 Mestra e Doutora em Ciências Jurídicas pela UFPB. Professora da UFPB e do
UNIPÊ. E-mail: fernandahvbpb@hotmail.com
111 Mestra em Direito Econômico pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba-PPGCJ/UFPB. Membro do
Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do
Direito Civil-Constitucional-IDCC. E-mail: ynaica@yahoo.com.br.

287
A união estratégica dos países-membros visa, precipuamente,
a construção de um mercado comum, para o fortalecimento de
integração da região, especialmente nos aspectos ligados ao mer-
cado de consumo que, ao que parece, não significa prioridade do
bloco integrado, pois mesmo após duas décadas de criação do
bloco, os consumidores mercosulino ainda não foram contempla-
dos com normativa harmônica, como norte mínimo a ser seguido
pelos Estados-partes, na tentativa de superar possíveis diferenças
nas legislações.
Com vistas a garantir maior segurança jurídica, sobretudo aos
consumidores brasileiros que já possuem legislação protetiva com
caráter Constitucional prevista na Lei nº 8.078 de 11 de setembro
de 1990, que materializa o Código de Defesa do Consumidor,
há a necessidade de harmonização legislativa mínima de normas
consumeristas dos países integrados, cumprindo com os objetivos
econômicos do bloco mercosulino.
A ausência de harmonização protetiva de cunho consumerista
reflete tamanha insegurança jurídica, traduzida em instabilidade
protetiva, uma vez que os consumidores, ao cruzarem as fronteiras
nacionais rumo a qualquer país-parte, deixam de estar sob a égide
do manto protetivo interno, passando a ficar na condição de des-
guarnecidos de proteção legal mínima a ser seguida pelos países
pertencentes ao bloco.
Nesta esteia, com o intuito de equilibrar tal relação, que per
se já nasce desequilibrada, há a necessidade de harmonização
das normas de Direito do Consumidor dos países integrantes
do bloco Mercosul, objetivando tanto a proteção do consumi-
dor mercosulino, quanto o favorecimento da segurança jurídica
nas contratações, gerando sensação de tranquilidade aos consu-
midores mesmo fora de seus respectivos territórios nacionais. A
ausência de harmonização das normas consumeristas é um dos
entraves ao crescimento socioeconômico do bloco Mercosul.

288
2. A defesa do consumidor como princípio da ordem
constitucional brasileira

A Constituição Federal brasileira de 1988, Lei maior do


Estado, é a origem da codificação tutelar dos direitos dos con-
sumidores no Brasil, garantindo sua existência e efetividade,
preocupando-se com os vulneráveis1124 de nossa sociedade, anun-
ciando o surgimento do então Código de Defesa do Consumidor
brasileiro no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, prevendo que “o Congresso Nacional, dentro de
cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará
código de defesa do consumidor”.
A defesa do consumidor, missão do Estado brasileiro, está
presente no capítulo relativo aos “direitos e deveres individuais e
coletivos” do texto Constitucional, consistindo em direito funda-
mental positivado na atual Constituição Federal no Inciso XXXII,
do art. 5º, notando-se claramente a preocupação do legislador em
promover a proteção ao consumidor.

112 Para os autores Vasconcelos e Brandão (2008, p. 5), “por vulnerabilidade do


consumidor, entende-se o estado da pessoa, o estado de risco ou um sinal de
confrontação necessária com os interesses do mercado. É uma situação per-
manente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza ou enfraquece o
sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo”. Já no entendimento
de Filomeno (2007, p. 12), “por vulnerabilidade, há de se entender a fragili-
dade dos consumidores, em face dos fornecedores, quer no que diz respeito ao
aspecto econômico e de poder aquisitivo, quer no que diz respeito às chama-
das informações disponibilizadas pelo próprio fornecedor ou ainda técnica”.
Ocorre que, de posse do produto ou serviço e tendo grande poderio financeiro,
o fornecedor abre grande vantagem na relação, onde o consumidor, ora sub-
misso as suas imposições, resta vulnerável e carente de proteção legal. Ainda
sobre as assimetrias existentes entre fornecedor e consumidor, contribuem os
autores Brito e Torres (2013, p. 88), afirmando que “além de resguardar direi-
tos, o Código do Consumidor disciplina as relações entre consumidores e
fornecedores, estabelecendo as diretrizes sobre as quais essas relações estarão
assentadas, a fim de restabelecer o equilíbrio entre esses dois polos”.

289
Por estar incluso no rol dos direitos fundamentais, a defesa
do indivíduo na condição de consumidor consiste em cláusula
pétrea, assim disposto no art. 60, § 4º, IV, CF/88, que segundo o
entendimento de Novelino (2009, p. 384), “trata-se de restrições
impostas pelo poder constituinte originário ao poder reforma-
dor”, não sendo então, objeto de deliberação.
Na concepção de Nunes (2011, p. 111), “não se pode olvidar
que é também cláusula pétrea como dever absoluto para o Estado
a defesa do consumidor”. Portanto, há impossibilidade jurídica de
proposta de emenda Constitucional tendente a abolir ou diminuir
a eficácia da referida norma constitucional, “impedindo a supres-
são e erosão dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela
ação do poder Constituinte derivado” (SARLET, 2004, p. 77).
Sendo ainda, enfatizada pela Carta Magna como princípio
da ordem econômica e financeira, previsto no artigo 170, V, que
enfatiza a importância da defesa do consumidor nas relações de
cunho econômicas. Consiste em Direito abraçado pela Lei Maior,
que garantiu a existência e efetividade do direito do consumidor
no Brasil, possuindo eficácia seja contra o próprio Estado ou nas
relações privadas.
Além do manto Constitucional, os consumidores brasilei-
ros foram contemplados com a Lei nº 8.078 de 11 de setembro
de 1990, que rege especificamente as relações de consumo, onde
traz o consumidor como parte vulnerável da relação. Levando em
consideração que o consumo assume características peculiares no
Direito Econômico, assim como a situação de vulnerabilidade do
indivíduo na condição de consumidor diante das atrativas ofertas
e astúcia do mercado, há a necessidade da garantia do equilíbrio
das relações, a fim de inibir atos em desconformidade com os
padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumi-
dor, que ferem a boa-fé1135 e os bons costumes.

113 Quando expresso na Lei nº 8.078/1990, o princípio da boa-fé é garantidor


daqueles outros princípios previstos no art. 170 da Constituição Federal, a fim

290
A Constituição Federal brasileira de 1988 é o respaldo legal
fundamental e o Código de Defesa do Consumidor, instrumento
específico adequado para resguardar o indivíduo-consumidor,
como também, coibir os abusos do mercado de consumo, devendo
ser observado pelos agentes econômicos nas contratações, a fim
de harmonizar a relação que per se já nasce desequilibrada.
Com a inclusão da atividade econômica na Carta Magna
brasileira, o Estado assume o compromisso de disciplinar a relação
entre mercado e indivíduos, conferindo-a valor jurídico-Constitu-
cional, assumindo tarefas de limitação e organização econômicas,
garantindo que os interesses privados não afetem direitos funda-
mentais dos indivíduos, sobretudo, princípios já consolidados na
lex mater, dentre eles, a defesa do consumidor.
Isto posto, na ordem jurídica brasileira, a proteção do con-
sumidor está presente na Carta Magna de 1988 como princípio
e garantia, sendo disposto em lei tutelar específica, protetiva dos
vulneráveis da relação. Diante de tamanha garantia, o consumidor
brasileiro não pode ficar desguarnecido de proteção legal mínima
quando estiver nos países integrados que defendem interesses
econômicos comuns, conforme objetivo da integração do bloco
mercosulino, pois não se pode dissociar os princípios e regras dis-
postas no ordenamento jurídico brasileiro do sujeito consumidor,
sendo então situações imanentes.

de viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, visando à pro-


teção do consumidor e ao desenvolvimento econômico e tecnológico. Afirma
Nunes (2011, p. 657) que “a boa-fé não serve somente para a defesa do débil,
mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem
econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais
do art. 170 sua razão de ser”. Para Vasconcelos e Brandão (2008, p. 10) “segundo
a doutrina que orienta o Direito do Consumidor, o fornecedor de qualquer pro-
duto ou serviço, deve agir sob o princípio da boa fé objetiva, mantendo conduta
contratual compatível nas relações com o consumidor vulnerável”.

291
3. O bloco MERCOSUL como integração econômica: campo
favorável para o consumo

Unidos com o fito de interagir economicamente, os Estados-


membros compostos pelo Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina e
recentemente a Venezuela, a partir do Tratado de Assunção, deram
início ao processo de integração econômica do MERCOSUL.
Movidos pelo espírito de cooperação a partir de objetivos bási-
cos decorrentes de acordos multilaterais entre Estados soberanos,
o processo de integração econômica visa eliminar as barreiras
comerciais, a partir da minoração das restrições de seus respec-
tivos mercados, para a livre circulação intra bloco de pessoas,
mercadorias e serviços1146.
O bloco Mercosul objetiva a criação de um mercado comum
com livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, jun-
tamente com a proposta de abertura do comércio dos países
integrantes, proporcionando a circulação dos consumidores per-
tencentes aos Estados-partes. Para a criação de fronteira comercial
mercosulina, a partir da garantia de barreira protetiva comum, há
a necessidade conjunta de figurar harmonização das legislações
nacionais consumeristas, com vistas a uma maior integração.

114 Outros tratados e instrumentos jurídicos surgiram para complementar as regras


e princípios previstos no Tratado de Assunção, destacando-se o Protocolo de
Ouro Preto – assinado em 17 de dezembro de 1994, através do qual conferiu
personalidade jurídica de direito internacional ao MERCOSUL e definiu a
estrutura institucional do bloco. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/D1901.htm>. Acesso em: 10 out. 2016. Ainda, o Protocolo de
Olivos – firmado em 18 de fevereiro de 2002, alterou o mecanismo de solução
de controvérsias, revogou o Protocolo de Brasília, com o objetivo de estabele-
cer normas para a solução de controvérsias no Mercosul, ou seja, constituindo
um Tribunal Permanente de Revisão para consolidar a segurança jurídica na
região, com sede em Assunção. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d4982.htm>. Acesso em: 10 out. 2016.

292
Norteado pelos princípios de gradualidade, flexibilidade e
equilíbrio, além da reciprocidade de direitos e obrigações entre
os países, consiste ainda em objetivo do bloco “o compromisso
dos Estados-partes de harmonizar suas legislações, nas áreas per-
tinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração”
(CAPARROZ, 2012, p. 163). Mas os objetivos do bloco mer-
cosulino ainda estão longe da realidade mencionada no tratado
inaugural, sobretudo no que tange à harmonização de norma con-
sumerista comum.
Com vistas a tratar a questão consumerista como condição
sine qua non ao devido favorecimento da integração pleiteada, foi
instituído no âmbito da Câmara de Comércio do MERCOSUL
o Comitê Técnico nº 7/ 19951157, a fim de tratar da harmonização
das legislações consumeristas no bloco para resguardar a defesa
do consumidor.
Nesse sentido, o referido comitê técnico passou a focalizar
a regulamentação e harmonização dos interesses consumeristas
no âmbito do Mercosul, apontando a necessidade de se estabele-
cer tratados entre os países-membros com previsões mínimas da
legislação consumerista, a fim de resguardar o consumidor. Em
paralelo, assevera o art. 2º da Resolução nº 126/94 que “até que
seja aprovado um regulamento comum para a defesa do consumi-
dor no MERCOSUL cada Estado Parte aplicará sua legislação
de defesa do consumidor e regulamentos técnicos pertinentes aos
produtos e serviços comercializados em seu território”1168.

115 A fim de harmonizar as legislações nacionais dos Estados-Membros do


Mercosul e estabelecer tratados com standards mínimos de legislação consume-
rista, o Comitê Técnico n° 7 trata da proposta de proporcionar maior proteção
ao consumidor no âmbito do bloco, a partir da adoção de normas de defesa
do consumidor compatíveis com padrões internacionais, contribuindo para tal
propósito.
116
Disponível em: <http://www.mercosur.int/msweb/Normas/normas_web/
Resoluciones/PT/94126.pdf>. Acesso em: 24 out. 2016.

293
Sendo editada como primeira Norma-Mercosul Geral sobre
direito do consumidor, a resolução nº 126/94, menciona já na
exposição de motivos a proposta de harmonização legislativa
mercosulina, para contemplar o sujeito econômico fragilizado
da relação: o consumidor mercosulino. Todavia, como explica o
artigo em comento, a aplicação da referida resolução está con-
dicionada à aprovação do Regulamento Comum sobre Defesa
do Consumidor no Mercosul. Ante essa situação, trata a refe-
rida resolução de norma geral sobre o direito do consumidor,
determinando que cada Estado parte deva aplicar sua própria
legislação para produtos e serviços comercializados em seu terri-
tório, enquanto não aprovado regulamento comum no bloco.
A fim de uma maior garantia das atividades que envolvam
relação de consumo, há a necessidade de um esforço legislativo
recíproco entre os Estados-membros para harmonização de norma
consumerista contendo piso mínimo protetivo a ser observado
nas contrações. Naturalmente, ao falar de integração espera-se
consonância entre as normas dos países pertencentes ao bloco,
sobretudo sobre preceitos básicos a serem seguidos nas relações
de cunho consumeristas. 

4. A dissonância das normas consumeristas entre os países-


membros

Cada Estado membro do bloco mercosulino possui sua


Legislação específica consumerista1179 que rege as relações de
consumo em seus respectivos territórios nacionais. Contudo, já

117 A legislação consumerista no Brasil é disposta na Lei nº 8.078/1990, sendo na


Argentina tratada pela Lei 24.240/1993. A legislação consumerista paraguaia é
disposta na Lei 1.334/1998, no Uruguai é a Lei 17.189/1999 que trata sobre o
assunto. Já na Venezuela, último país a aderir ao bloco, a Legislação específica
consumerista é tratada na Ley para la Defensa de las Personas en el Acceso a los
Bienes y Servicios.

294
nos conceitos básicos presentes no ordenamento jurídico prote-
tivo, a saber, consumidor, fornecedor, serviços, produtos e relação de
consumo, percebe-se certa dissonância entre as legislações dos
Estados-partes.
Dentre os estados-membros do Mercosul, apenas as
Legislações do Paraguai e Uruguai conceituam relação de con-
sumo, ora caracterizadas pela onerosidade. Todavia, a Legislação
paraguaia118 caracteriza a relação de consumo apenas como vín-
culo oneroso entre as partes, sendo necessária a transferência de
valor econômico entre elas. Já a lei uruguaia prevê a possibilidade
da relação de consumo ser estabelecida também à título gratuito.
Apesar dos conceitos de relação de consumo haver caráter
oneroso nas legislações paraguaia e uruguaia, o conceito de con-
sumidor nessas legislações justifica, portanto, a desnecessidade
da presença da onerosidade no conceito de relação de consumo.
Por outro lado, as legislações brasileira, argentina e venezuelana
ainda que não tratem da definição formal de relação de con-
sumo, no entanto, o raciocínio desenvolvido nas outras definições,
entende-se como sendo relação de consumo a noção jurídica de
consumidor e sua amplitude em confronto com a definição legal
de fornecedor.
Quando se vincula a onerosidade às contratações, os indiví-
duos que recebem amostras grátis, por exemplo, ficam à margem
da Lei consumerista. Já na Legislação brasileira, a distribuição de
amostras grátis de produto ou serviço estabelece entre a parte que
distribui e a que aceita uma relação de consumo, ainda que não
se faça nenhuma contraprestação pecuniária pelo produto. Se do

118 O conceito de relação de consumo na Ley de defensa del consumidor y usuá-


rio está vinculado às contratações onerosas, conforme definição do artigo 5º
Lei paraguaia nº 1.334/1998, quando diz que a “relación de consumo es la
relación jurídica que se estabelece entre quien, a título oneroso, provee un pro-
ducto o presta un servicio y quien lo adquiere o utiliza como destinatario final”
(PARAGUAI, 1998).

295
consumo da amostra grátis resultar algum dano para o consumi-
dor, surgirá o dever de indenizar do distribuidor.
Portanto, equiparam-se à amostra grátis os serviços presta-
dos ou produtos enviados para o consumidor sem sua solicitação
prévia11911, caso em que não há obrigação de pagamento pelo con-
sumidor. Sabemos que não restam dúvidas quanto à proteção do
consumidor diante das relações de consumo não onerosas.
Quanto à definição de produto - objeto imediato da relação,
as legislações brasileira e uruguaia possuem conceitos amplos e
harmônicos entre si, tratando de qualquer objeto de interesse em
dada relação de consumo, destinado a satisfazer uma necessidade
do adquirente como destinatário final. Já a legislação para-
guaia12012 refere-se às coisas que, quando utilizadas, esgotam-se
no seu próprio uso não esclarecendo, expressamente, acerca de

119 No ordenamento jurídico brasileiro é lícito o fornecimento não solicitado pelo


consumidor de bens ou serviços, porém a consequência do envio equipara-se
à amostra grátis, eximindo o consumidor de qualquer pagamento. Conforme
trata o artigo 39, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, “é
vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...];
III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou
fornecer qualquer serviço; [...]; Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos
remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-
se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento” (BRASIL, 1990).
120 A Ley de defensa del consumidor y usuario conceitua produto como sendo “todas
las cosas que se consumen con su empleo o uso y las cosas o artefactos de uso
personal o familiar que no se extinguen por su uso” (PARAGUAI, 1998). Já a
legislação brasileira, como também a lei uruguaia, tratam da materialidade ou
imaterialidade do produto, objeto da relação de consumo em seus conceitos. A
amplitude conceitual visa proteger o consumidor nas mais diversas situações,
garantindo que a relação jurídica de consumo esteja assegurada para toda e
qualquer compra e venda realizada, mesmo nas situações inimagináveis, como
observa Nunes (2000, p. 95), quando diz que “mas, por conta do fato de o CDC
ter definido produto como imaterial, é de perguntar que tipo de bem é esse que
poderia ser oferecido no mercado de consumo. Afinal, o que seria um produto
imaterial que o fornecedor poderia vender e o consumidor adquirir?”.

296
bens materiais ou imateriais, resultando em eventuais dúvidas à
nível interpretativo.
Ainda em análise a tais pressupostos, ressalta-se que a
legislação argentina é omissa quanto à definição de produto, ora
suprida pelo art. 2.311 do Código Civil, que cuida em definir
“coisa” ligada a valor financeiro, complementada pelo art. 1º da
Lei Consumerista quando aplicado pelos tribunais argentinos.
Há a necessidade de se conceder proteção especial ao consumi-
dor argentino nas situações não previstas pela Lei. Já a legislação
venezuelana menciona o conteúdo relativo a serviços em seu art.
4º, juntamente com o conceito de fornecedor de bens ou produ-
tos. Aponta ainda sobre o tema no art. 5º da mesma Lei.
Ressalta-se ainda, que as legislações consumeristas brasi-
leira, argentina e uruguaia tratam da condição de “consumidores
equiparados”, os chamados bystanders12113, quer dizer, aqueles
cidadãos que podem ser alcançados por eventos relativos a uma
relação de consumo sem, entretanto, serem considerados consu-
midores em sentido estrito, alcançando os que não participaram
direta e efetivamente da aquisição do bem ou serviço.
Já em relação ao conceito de fornecedor, a legislação para-
guaia exige, para sua caracterização, a presença de remuneração,
em contrapartida à circulação de bens ou serviços. Na prática, um
veículo estacionado em supermercado com estacionamento não
remunerado ou as denominadas amostras grátis, estas que, por

121 Os bystanders são aqueles que até determinado momento eram apenas conside-
rados espectadores e passam à condição de consumidores equiparados quando
são vítimas de um acidente de consumo. Trata-se da denominação aplicada
ao consumidor por equiparação de que cuida o art. 17, do Código de Defesa
do Consumidor, quando diz que: “para os efeitos desta Seção, equiparam-se
aos consumidores todas as vítimas do evento” (BRASIL, 1990). O chamado
‘consumidor por equiparação’, ou bystanders é aquele que, embora não esteja
diretamente ligado relação de consumo, por ter sido atingido pelo evento
danoso, enquadra-se na situação de consumidor no que tange ao ressarcimento
dos danos que experimentar, ficando à égide da legislação consumerista.

297
não serem fornecidas sob quaisquer remunerações, não seriam
alcançados pela lei protetiva do consumidor no Paraguai.
Apesar de alguns pontos controvertidos nos conceitos básicos
debatidos nas Legislações consumeristas dos Estados-membros
do Mercosul, para Gaio Júnior (2013), há a possibilidade de
harmonização legislativa, sem qualquer prejuízo ao conteúdo pro-
tetivo do consumidor no âmbito dos Estados-partes por meio do
estabelecimento de um piso mínimo protetivo a ser observado nas
relações consumeristas no âmbito do bloco, a fim de amparar o
consumidor nas relações consumeristas.

5. A segurança jurídica em foco nas relações consumeristas


entre os países-partes

Tutelada pela Constituição Federal brasileira de 198812214,


a segurança jurídica, assim como a proteção dos consumidores-
tutelados12315, apresenta-se como princípio e garantia consagrados
no ordenamento jurídico brasileiro no rol dos direitos e garantias
fundamentais. Ao prever a defesa do consumidor como direito

122 Segundo trata o art. 5º, inciso XXXVI do texto Constitucional: [...] “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; [...]”.
(BRASIL, 1988). Em sede de Direito Econômico, seu art. 173, caput, expressa
imperativo à segurança nacional como disciplinador da exploração direta da
atividade econômica pelo Estado, sendo sinônimo de defesa nacional, consti-
tuindo-se em dever e não mera faculdade Estatal.
123 Para Almeida (2010, p. 74), não foi por acaso que a Lei Maior abraçou de tal
forma a tutela aos consumidores, garantindo, contudo, caráter constitucional, a
saber: “[...], houve deliberada intenção do legislador constituinte de dar ao tema
um caráter de permanência, em virtude do tratamento constitucional, [...],
sendo certo que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a
abolir os direitos e garantias individuais”. Já na concepção de Lorenzetti (2004,
p. 384), o consumidor possui uma posição central no sistema constitucional,
quando diz que “a incorporação da figura do consumidor no âmbito constitu-
cional lhe confere uma posição central no sistema, permitindo a derivação direta
de direitos por meio de normas constitucionais consideradas autoaplicáveis”.

298
fundamental na Constituição Federal significa conferir ao sujeito
fragilizado da relação “parâmetro hermenêutico e valores superio-
res de toda a ordem constitucional e jurídica” (SARLET, 2004, p.
77).
Nesse ínterim, a segurança consiste em direito fundamental,
possuindo quanto à esfera político-econômica, expressão protetiva
dos efeitos e dos atos jurídicos contra leis e entendimentos super-
venientes. Camargo (2007) trata a segurança jurídica no âmbito
internacional como sinônimo de garantia para que o indivíduo
consiga satisfazer suas necessidades com o mínimo de respaldo
legal protetivo.
A garantia Constitucional da segurança jurídica representa
para os consumidores brasileiros perenidade da proteção Estatal
para com seus tutelados, carentes de proteção legal por estarem
na condição de vulnerabilidade, devendo ser resguardados pela
normativa protetiva além das fronteiras nacionais, a partir da har-
monização das normas consumeristas no plano mercosulino, por
meio da proposta da criação de nova fronteira protetiva compre-
endendo os países-membros.
Dessa forma, percebe-se que, na relação do consumidor bra-
sileiro com as legislações consumeristas no âmbito do Mercosul,
mesmo estando diante de uma proposta de integração econô-
mica entre os países-membros, há a relativização do princípio
Constitucional da segurança jurídica assegurado na legislação
brasileira, pois tal garantia não acompanha seus tutelados nas
relações consumeristas além da fronteira do Estado brasileiro, nas
relações de consumo no campo do Mercosul.
Compreende-se a importância da sustentação dos princípios
assegurados pela lex mater nas relações de cunho consumeristas,
acompanhando o consumidor brasileiro com compromisso pre-
cípuo de integração econômica, como sendo imprescindível à
garantia de um equilíbrio mínimo nas relações de consumo a ser
pleiteada pelos consumidores brasileiros nos países mercosulino.

299
6. A dificuldade na harmonização de legislação
consumerista: sistema intergovernamentalista como
obstáculo?

Cabe esclarecer, preliminarmente, a diferença entre unifor-


mização e harmonização. Enquanto a primeira busca consolidar
horizontalmente em uma só diretiva, concordâncias para regu-
lar numa mesma legislação protetiva os consumidores, a segunda
proposta consiste em aproximar as legislações jurídicas consume-
ristas dos países membros para harmonização legislativa mínima
de normas consumeristas, estabelecendo padrões básicos a serem
observados na grande fronteira econômica, objetivando minorar
as assimetrias entre as normas internas, resultando em maior pro-
teção ao consumidor.
Proteger o consumidor no âmbito da integração do
Mercosul, significa favorecer a competitividade dos mercados
envolvidos, assegurando a concorrência leal e efetivação de polí-
ticas governamentais. É por isso que há a necessidade de conferir
tratamento protetivo ao consumidor mesmo fora de seu limite
nacional, estabelecendo grande barreira protetiva englobando os
países-membros do bloco. Para Vasconcelos (2002), essa é a ten-
dência dos processos comunitários de integração econômica, que
buscam a garantia efetiva de proteção ao consumidor por meio de
compreensões legais.
A harmonização permite que sejam minoradas as incoerên-
cias, a partir do estabelecimento de noções e conceitos jurídicos
que alcancem harmonia entre as legislações dos Estados par-
ticipantes do bloco, com vistas a preencher eventuais lacunas
existentes, proporcionando ao consumidor brasileiro, mesmo fora
do território nacional, o mínimo de proteção legal. Ainda em aná-
lise a tais pressupostos, afirma Vasconcelos (2002, p. 85) que “na
harmonização, as legislações dos países permanecem autônomas,
favorecendo a convergência de princípios e organização estrutural
e eliminando ao máximo as divergências de soluções adotadas”.

300
Na concepção de Gaio Júnior (2013), a harmonização legis-
lativa objetiva a proteção do consumidor mercosulino, elevando
a qualidade de vida dos consumidores do bloco, numa relação
harmônica de seus mercados, bem como corrobora para o cres-
cimento econômico e desenvolvimento da região, já que havendo
base mínima nas contrações, consequentemente haverá maior
segurança entre os consumidores.
No tocante à necessidade de harmonização de legislação
consumerista comum aos países do Mercosul, trata-se de desa-
fio para os países integrados do Cone Sul da América Latina,
pois segundo Souza (2005, p. 205), há certo receio por parte dos
Estados, assim traduzidas pelo autor:
Alguns elementos fundamentais se impõem a
essa tarefa, tais sejam os de tratar corretamente
a consonância do Direito de cada Estado com
a sua própria realidade, para aquilatar até que
ponto essa harmonização não se traduz em
comprometimento e desvirtuamento de cada
Ordem Jurídica Nacional.

Um dos empecilhos para a concretização da harmonização


trata-se de receio de perda de garantias de proteção ao consumi-
dor já consolidadas em legislação interna. Unidos pelo sistema
intergovernamentalista, inexistindo um órgão autônomo, explica
Rodas (2002, p. 326) que “o sistema jurídico do Mercosul parece
propício para adaptar o procedimento de interpretação prejudicial
aos seus contornos”.
A integração econômica dos Estados-membros, unidos
com escopo de constituir um Mercado Comum que reconheça
o consumidor como um de seus elementos essenciais, cumpre
com a essência do bloco, sob pena de configurar grave retrocesso.
O processo de harmonização de legislação comum no âmbito
do Mercosul deve ter em conta o interesse e esforço de todos os
agentes econômicos envolvidos.

301
Como o bloco optou pelo sistema intergovernamental,
embora almeje um mercado comum, afirma Rodas (2002, p. 324)
que o progresso da integração depende “principalmente da nego-
ciação mais do que da dedução jurídica”, é que nesse sistema de
integração adotado pelo bloco Mercosul cada Estado mantém
seu poder de decisão com sua normativa interna. Para Casella
e Liquidato (2006, p. 76) “a estrutura intergovernamental pode
prestar-se, num determinado momento inicial, à consecução de
objetivos integracionistas”.
O Mercosul possui uma estrutura orgânica intergo-
vernamental, o que significa dizer que o bloco não possui
auto-executoriedade para suas normas, uma vez inexiste órgãos
supranacionais. Apesar desse sistema adotado pelo bloco esbarrar
em obstáculos, como a ausência de complexo de normas do tipo
comunitário para tratar de direitos do consumidor, para Casella
e Liquidato (2006, p. 78) a organização intergovernamental “não
necessariamente exige a incorporação de sua normativa ao orde-
namento interno dos Estados-membros, para a sua entrada em
vigor”.
Logo, o sistema intergovernamental não impede a
construção da integração entre os países-partes a partir da coo-
peração desenvolvida com a flexibilização de entendimentos
intergovernamentais para alcançar interesses comuns, sobretudo
a harmonização de normas consumeristas a serem seguidas nas
relações intra bloco, mantendo a essência jurídica com a preser-
vação do princípio essencial da soberania nacional dos Estados.

7. Harmonização das legislações consumeristas como medida


favorável à segurança jurídica

O direito à segurança é indispensável ao desenvolvimento


de atividades de cunho consumeristas no campo mercosulino,
uma vez que havendo uma garantia maior, o consumidor terá

302
mais confiança nas contratações fora de seu território nacional,
favorecendo a estabilidade do sistema econômico do bloco. As
atividades econômicas per se giram em torno da insegurança do
consumidor, em virtude das assimetrias existentes entre as partes
envolvidas na relação de consumo.
Uma das causas de aumento da insegurança jurídica é o
consumismo no sistema capitalista12416, que de fato não se compro-
meteu com a liberdade e a igualdade jurídica de seus seguidores,
senão em exacerbar suas atividades lucrativas. Juntamente com o
avanço tecnológico, cresce a sensação de desamparo legal prote-
tivo, sobretudo fora do território nacional do consumidor.
Nesse sentido, a harmonização proporciona que a legislação
protetiva de origem acompanhe o consumidor em suas nuan-
ces básicas, ficando este protegido mesmo fora de seu Estado,
gerando uma sensação de tranquilidade e segurança jurídica nas
relações de consumo nos países-membros do bloco. Sendo assim,
a segurança é garantida além das fronteiras nacionais, sendo tra-
duzida em maior amparo para o consumidor.
Para Gaio Júnior (2013, p. 25), a harmonização do enten-
dimento das normas consumeristas pelos países do bloco visa
“garantir a efetiva proteção dos consumidores da sub-região, que
se encontrem transitoriamente em outro país do bloco, benefi-
ciando, principalmente, os turistas”. Trata-se então de medida

124 Refletindo sobre o tema, Feitosa (2007, p. 142) ressalta que “o capitalismo não
é um mero sistema econômico, mas uma forma global de vida em sociedade”.
Ademais, diante da ordem capitalista - que trouxe consigo o individualismo e o
monopólio e já perdeu sua função social - a atividade estatal tende a ser redu-
zida, no que tange à ação protetiva dos indivíduos tutelados. Já para Boltanski
e Chiapello (2009, p. 38) “o capitalismo, sob muitos aspectos, é um sistema
absurdo: os assalariados perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e
a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinação. Quanto aos capi-
talistas, estão presos a um processo infindável e insaciável, totalmente abstrato
e dissociado da satisfação de necessidades de consumo, mesmo que supérfluas”.

303
protetiva de direitos, garantidora da segurança nas relações de
consumo.
Desse modo, uma vez garantida a harmonização das legis-
lações consumeristas no campo do Mercosul, no sentido de
implementar uma grande fronteira protetiva, favorecendo o
consumidor mercosulino quando na garantia de circular pelos
países-membros do bloco com a preservação da proteção de uma
legislação mínima consumerista, resta cumprido o compromisso
da integração econômica do bloco.
Na atual realidade social voltada para o consumismo, há um
vasto campo de atuação para as práticas econômicas abusivas, ine-
vitável para o abalo da segurança coletiva. Para Camargo (2007),
a postura ativa do Poder Público, deve servir como estímulo para
o desenvolvimento de atividades econômicas voltadas a materia-
lizar o comando Constitucional concernente à eliminação das
desigualdades regionais e sociais.
A harmonização tanto estimula o desenvolvimento econô-
mico regional, quanto favorece maior proteção ao consumidor
mercosulino, oferecendo condições para o consumo. Para Cretella
Júnior (1993) a segurança é associada à garantia do proces-
samento da sistemática econômica, sendo uma vez ligada ao
Estado, traduz-se em paz, ou ainda em estabilidade da estrutura
das instituições.

8. Considerações

Após mais de duas décadas de integração econômica entre


os países-partes, apesar da crescente globalização, o Mercosul
ainda não possui uma legislação consumerista comum ao bloco,
que estabeleça o mínimo a ser observado nas contratações.
A ausência de harmonização das normas consumeristas tem
demonstrando a dificuldade na construção de um piso mínimo
a ser observado. Apesar de haver algumas assimetrias existentes

304
entre conceitos básicos de consumo nas legislações consumeris-
tas dos países-membros, não correspondem, portanto, obstáculo
para harmonização de tutela jurídica comum aos consumidores
mercosulino.
A harmonização não significa retrocesso da normativa
consumerista brasileira consolidada pelo CDC, antes se traduz
no estabelecimento de um mínimo a ser seguido por todos os
Estados-partes nas relações consumeristas, a fim de resguardar os
consumidores mesmo fora de seus territórios, no âmbito do bloco
mercosulino.
Se a estabilidade do sistema econômico através da garan-
tia de um piso mínimo a ser seguido nas contratações corrobora
para a segurança jurídica, a ausência de uma postura ativa dos
países-membros para adoção das medidas necessárias para a con-
cretização da harmonização legislativa acentua tão somente a
insegurança jurídica do consumidor, gerando sensação de medo,
abalando também a relação político-econômica entre os países.
Ademais, o sistema intergovernamental adotado pelo bloco
não significa obstáculo para a harmonização, pois a partir da coo-
peração entre os países é possível o estabelecimento de linhas
de coerência entre eles para o desenvolvimento do mínimo de
proteção legal nas relações consumeristas no âmbito do bloco,
proporcionando aos consumidores mercosulino, sobretudo ao
consumidor brasileiro, a preservação de direitos fundamentais no
âmbito do Mercosul.
Uma vez que a união dos países-membros objetiva a cons-
trução de um mercado comum, visando o fortalecimento de
integração da região, sobretudo nos aspectos ligados ao livre
comércio, percebe-se que a garantia de proteção nas contrações
voltadas ao mercado de consumo entre os países não consiste
em prioridade do bloco, pois não é possível vislumbrar nenhum
avanço neste sentido, ficando o consumidor brasileiro, sujeito
vulnerável nas relações, embora protegido pela lex mater e Lei

305
específica consumerista interna, atualmente queda desguarne-
cido de proteção legal nas relações consumeristas no campo do
Mercosul.

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Acesso em: 24 out. 2016.

309
OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA: UM ESTUDO
À LUZ DO DIREITO DO CONSUMIDOR E DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.

Antonio Pedro de Mélo Netto125


Mariana Loureiro Gama126

1 Introdução

O
mundo contemporâneo é guiado pelo consumo de pro-
dutos em massa. Todas as pessoas estão consumindo o
tempo todo e são estimuladas a consumir em decorrência
dos avanços tecnológicos, do desgaste dos materiais ou para estar
na moda, como forma de afirmação social do poder econômico e
de referência social, já que o novo é associado ao bom enquanto o
velho ao retrogrado, ao superado ou ruim.

125 Professor do curso de Direito da Faculdade Reinaldo Ramos (CesRei) e da


Faculdade Maurício de Nassau (FMN), unidade Campina Grande. Mestre em
Direito e Desenvolvimento de Mercado Sustentável pela UNIPÊ, pesquisador
CNPQ Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual, linha
Filosofia do Direito, Ética e Estética da Propriedade Intelectual, a partir 2015.
Especialização em Direito Público pela Faculdade Estácio do Recife (2014),
advogado militante desde 2010 e graduado pela Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB) em 2009. Tem experiência na área de direito, com ênfase em
Direito Civil, Econômico, Consumidor e Processo do Trabalho.
126 Professora das Faculdades Integradas e Patos (FIP). Mestre em Direito e
Desenvolvimento de Mercado Sustentável pela UNIPÊ. Especialização em
Direito Administrativo e Gestão Pública, pelo Centro Universitário de João
Pessoa (UNIPE). Especialização em Direito Material e Processual do Trabalho
pela ESMAT-13. Graduada pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

311
Diante deste cenário, percebeu-se que o comportamento de
consumo da população não era necessariamente natural, o des-
carte de produtos não se dava pelo desgaste normal dos objetos,
pela sua utilização ou pela sua superação tecnológica, mas em
razão dos fabricantes, propositadamente, reduzirem a qualidade
dos componentes com o objetivo de reduzir o tempo de uso/vida
dos objetos, de lançarem novas tecnologias com o objetivo de dei-
xar os produtos vendidos obsoletos e inadequados aos sistemas
mais modernos e através de manipulação psicológica por meio de
propagandas que ligam o novo produto ao melhor e o velho passa
a ser referência de produto ruim.
Desta maneira, a obsolescência passa a ser planejada, utilizada
como uma estratégia de marketing com o objetivo de estimular o
consumo contínuo e de massa, sacrificando os recursos naturais e
o meio ambiente para a promoção do crescimento econômico e
do lucro. Destarte, busca-se com esse estudo entender como sur-
giu a prática da obsolescência programada e a que se destina, além
de analisar se este comportamento comercial é compatível com o
desenvolvimento sustentável e os preceitos do Código de Defesa
do Consumidor. Para tanto, em termos metodológicos, utilizou-se
quanto ao objetivo, a explicativa; já em relação a opção metodo-
lógica, optou-se pelo método indutivo, dando-se a pesquisa pelo
método bibliográfico e documental, quanto à ferramenta.

2 Evolução do direito do consumidor

Conforme preceituam alguns doutrinadores, notadamente


Machado Segundo (2008), é intrínseco ao ser humano a convi-
vência entre semelhantes, bem como o anseio por liberdade para
conduzir suas escolhas das mais diversas maneiras. Desse con-
vívio e dessa liberdade aparecem, de modo natural às relações,
os mais variados conflitos que, de alguma maneira, precisam ser
solucionados. Quando se fala em relações de consumo, leva-se em

312
consideração o fato de que se trata de uma relação que envolve
pessoas e, por essa razão, para sua composição, se fez necessá-
rio ainda que indireta e primitivamente, a edição de normas que
pudessem regular essa forma peculiar de relação.
Segundo Sergio Cavalieri Filho (2008, p. 02) para se conse-
guir entender a origem do direito do consumidor, é indispensável
empregar especial atenção à Revolução Industrial. Nesse sentido,
observa-se que tal fato foi marcado pela mudança dos meios de
produção. Antes da revolução, a produção era limitada, haja vista
que sua forma era artesanal e balizada ao núcleo familiar ou a um
pequeno número de pessoas.
A revolução veio mudar esse meio de produção, aumentando,
de forma considerável, a capacidade produtiva do ser humano. Por
meio de utilização de maquinário, o fabricante, que antes domi-
nava todos os meios de produção, desde o início da confecção
até a sua venda, passa a não mais possuir o total controle sob sua
cadeia, em decorrência da demasiada produção e distribuição dos
produtos.
O produtor, que antes fabricava todo o produto comerciado,
deixa de ser o detentor de toda a cadeia produtiva e passa a ser
comerciante. O consumidor perde a individualidade do produto
comprado e passa a recebê-los em embalagens. Outro ponto rele-
vante é que, com o advento da produção em massa, os defeitos nos
produtos ficaram mais recorrentes, fato que gera dano àqueles que
o adquirirem (CAVALIERI FILHO, 2008, p.03).
Sergio Cavalieri Filho afirma que a ausência de regulamen-
tação jurídica eficaz deu origem às atitudes abusivas amplamente
praticadas “[...como as cláusulas de não indenizar ou limitati-
vas da responsabilidade, o controle do mercado, a eliminação da
concorrência [...]” (2008, p. 03) ao dar azo às desigualdades eco-
nômicas e jurídicas entre o consumidor e o fornecedor.
De acordo com Fernando Costa de Azevedo (2009, p. 34) a
inquietação com a consignação de uma tutela legal das indigências

313
dos consumidores tem como marco histórico de sua consolidação
nos Estados Unidos país que primeiro dominou o capitalismo e
sofreu a consequência do marketing agressivo da produção, da
comercialização e do consumo em massa. Pode-se dizer que os
primeiros movimentos consumeristas de que se tem notícia ocor-
reram no final do séc. XIX.
Contudo, há contornos de aplicação da proteção do consumi-
dor desde o código de Hamurabi, bem como nas jurisprudências e
nos costumes de vários países. Havia no Hamurabi uma disposi-
ção que dizia que o construtor de barcos era obrigado a refazê-lo
no caso de defeito estrutural, já se observa que havia certa preocu-
pação em proteger as relações de compra e venda da época.
Na Índia, no século XII a.C., o sagrado Código de Massú
previa multa e punição, além de ressarcimento dos danos, àque-
les que adulterassem gêneros – “lei” 697 – ou entregassem coisa
de espécie inferior àquela acertada, ou vendessem bens de igual
natureza por preços diferentes – “lei” 698.A França de Luiz XI,
ano de 1481, punia com banho escaldante aquele que vendesse
manteiga com pedra para aumentar o peso ou misturasse água no
leite. Percebe-se que as punições eram severas quando o direito
do consumidor, ainda não reconhecido como tal, fosse desrespei-
tado. No ano de 1773 aconteceu o episódio contra o imposto do
chá, reação dos consumidores contra os produtores do chá inglês
(VIEGAS, 2011).
Porém, somente em 1914 criou-se nos EUA Federal Trade
Comission, que tinha o objetivo de aplicar a lei antitruste e prote-
ger os interesses do consumidor. Assim, apesar de ter encontrado
aparições de proteção ao consumidor em legislações muito anti-
gas, pode-se afirmar que o sujeito do direito, consumidor, foi
reconhecido pelo direito não faz muito tempo. Importa esclarecer
que a proteção do consumidor fora mencionada nos estudos de
sociologia do fim do século XIX de Max Weber e Karl Marx, mas
surgiu fortemente na década de 1960.

314
As duas grandes guerras contribuíram para o surgimento da
sociedade de consumo, haja vista que o desenvolvimento industrial
fluía a todo vapor, necessitando de consumidores para despejar
seus mais diversos produtos. Era o capitalismo que chegava para
ficar, liderada pela mais nova grande potência, que se firmavam os
Estados Unidos.
Essa nova conjuntura influenciou sensivelmente as caracte-
rísticas contratuais. Os contratos paritários, frutos de acordos de
vontade, discutidos cláusula a cláusula, tornaram-se menos fre-
quentes, e chegavam com toda força na sociedade massificada, os
contratos de adesão, formulados pelas empresas e impostos aos
consumidores, continham conteúdo padrão, não dando alternati-
vas, se não em comungar com o que lhe foi imposto.
Ainda nessa linha, leciona Sergio Cavalieri Filho (2008, p.
05) que um marco histórico importante para o reconhecimento
do consumidor como sujeito de direitos ocorreu em 1962, quando
o presidente norte-americano John Kennedy, em um discurso,
enumerou os direitos do consumidor e os considerou como um
desafio necessário para o mercado. O Presidente mencionou que
em algum momento de nossas vidas “todos somos consumidores”.
Kennedy localizou os aspectos mais importantes na questão da
proteção ao consumidor, afirmando que os bens e serviços deviam
ser seguros para uso e vendidos a preços justos. Pode-se afirmar
que a partir daí iniciou-se uma reflexão profunda sobre o tema.
No Brasil, somente em 1916, surge o primeiro Código Civil
Brasileiro e as Ordenações do Reino deixaram de ser aplicadas na
doutrina civilista. De autoria Clóvis Bevilácqua, o Código Civil
foi fundado dentro de uma filosofia marcada pelo liberalismo
político e econômico, apresentando característica nitidamente
patrimonialista.
Todavia, a preocupação com as relações de consumo acom-
panhou a realidade internacional e a partir das décadas de 1940 e
1960 surgem as primeiras leis que regularam aspectos de consumo.

315
Dentre essas leis pode-se citar a Lei n.º 1221/51, lei de economia
popular, a Lei Delegada n.º 4/62, a Constituição de 1967, com a
emenda n.º 1 de 1969 que citam a defesa do consumidor.
Foi introduzido na Constituição de 1988 que reconheceu
o consumidor como sujeito de direitos individuais e coletivos,
assegurando a sua proteção tanto quanto direito fundamental
(art.5o, XXXII), como princípio da ordem econômica nacional
(art. 170, V). Finalmente, em 1990, o Congresso Nacional, con-
forme orientação de nossa Carta Magna, elaborou a Lei 8.078, de
11/09/1990, o Código de Defesa do Consumidor. Por tratar-se
de verdadeiro “microssistema jurídico”, já que, nele, encontram-se
normas de direito penal, civil, constitucional, processuais penais,
civis e administrativas, com caráter de ordem pública, e por cons-
tituir legislação extremamente avançada, o Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor influenciou legislações de vários outros
países do Mercosul.

3 Princípios que norteiam as relações de consumo

Na busca de soluções mais rápidas para casos concretos,


segundo Silva (2003, p. 63), “as técnicas legislativas passaram a
fundamentar-se em princípios, meio julgado mais célere e ade-
quado para a solução de lides modernas, dada a complexidade
de sua natureza”. No que se refere ao Código de Defesa do
Consumidor (CDC), a fim de estabelecer a justiça e o equilíbrio
contratual, foram consagrados alguns princípios aplicáveis às rela-
ções de consumo.

3.1 Princípio da Transparência

Inserido no caput do art. 4o do CDC está o princípio da


transparência que segundo Marques (2003, p. 139):

316
[...] significa informação clara e correta sobre
o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser
firmado, significa lealdade e respeito nas rela-
ções entre fornecedor e consumidor, mesmo na
fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos
contratos de consumo [...].

Nos termos do art. 4o, o CDC tem como fim, justamente,


reequilibrar as relações de consumo, harmonizando e dando maior
transparência às relações contratuais. Segundo Silva (2003, p. 68):
[...] o princípio da “transparência, essencial-
mente democrático ao reconhecer que na
sociedade o poder não é exercido só no plano
da política mas também no da economia,
adquiriu importância especial no Código de
Defesa do Consumidor, para controlar o abuso
do poder econômico, de quem passou a exigir
visibilidade e lisura nas relações jurídicas de
consumo.

Baseando-se nesse princípio o consumidor tornou-se deten-


tor do direito subjetivo de informação e o fornecedor sujeito de
um dever de informação. Dizer que o silêncio do consumidor se
traduz em aceitação não pode prevalecer, gerando a nulidade de
tal cláusula (art. 51, V, CDC). Nas palavras de Josimar Santos
Rosa (1995, p. 39):
Não se pode conceber um ato negocial que
demonstre falta de clareza em seu caráter
expressivo, pois a capacidade de persuasão do
fornecedor para com o consumidor, tendo por
referencial o produto ou o serviço, só contem-
plará o êxito desejado na relação de consumo
se aspectos inerentes a sua constituição forem
bem explicitados.

317
A informação clara, sem possibilidade de interpretação dúbia
pelo fornecedor, assegurará ao consumidor o direito de vincular-
se ou não, de forma consciente, ao contrato. As manifestações
anteriores, como propaganda veiculada ou informação prestada
devidamente comprovada, tornam-se fontes contratuais, e a sua
interpretação deve ser sempre a mais favorável ao consumidor, já
que não é ele quem redige as normas as quais irá aderir.
Contudo, a transparência que se espera do for-
necedor não deverá estar presente somente no
momento da conclusão do negócio jurídico.
Deverá existir durante a oferta e publicidade,
ao longo da execução do contrato e até mesmo
depois desta, como, por exemplo, no instante
em que o consumidor, munido do termo de
garantia, procura o reparo do produto junto a
assistência técnica autorizada. (Silva, 2003, p.
69)

Dessa forma, o princípio da transparência gera para o forne-


cedor o dever de esclarecer ao consumidor as características e o
conteúdo do contrato (art. 6o, III, CDC). De acordo com Claudia
Lima Marques (2002, p. 594-595):
[...] A ideia central é possibilitar uma aproxi-
mação e uma relação contratual mais sincera
e menos danosa entre consumidor e fornece-
dor. Transparência significa informação clara
e correta sobre o produto a ser vendido, sobre
o contrato a ser firmado, significa lealdade e
respeito nas relações entre fornecedor e consu-
midor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na
fase negocial dos contratos de consumo.

Portanto, o princípio da transparência apresenta como refle-


xos o dever de informar ao consumidor, seja através da oferta
clara e correta (art. 30, CDC) sobre as qualidades do produto e

318
as condições do contrato, sob pena do fornecedor responder pela
falha de informação (art. 20, caput, CDC), ou ser forçado a cum-
prir a oferta nos termos que a tenha feito (art. 35, I, CDC), e
também no caso do art. 40, caput, do CDC, quando da elaboração
do contrato que deve ser redigido de forma clara, em especial os
contratos pré-elaborados unilateralmente.
No Código de Defesa do Consumidor, o princípio da
transparência fundamenta o direito à informação e assegura ao
consumidor a plena ciência da exata extensão das obrigações assu-
midas perante o fornecedor.

2.2 Princípio da Confiança

Intimamente ligado ao princípio da transparência tem-se


o princípio da confiança, que consiste na credibilidade deposi-
tada pelo consumidor no produto ou contrato a fim de que sejam
alcançados os fins esperados. Prestigia, dessa forma, as legítimas
expectativas do consumidor:
A conclusão de qualquer ato negocial não deve
ser vista como mera obrigação, mas antes de
tudo como uma ocorrência de satisfação para
as partes, pois, não sendo assim, a afinidade
negocial se perde e com ela os objetivos moti-
vadores da operação (Rosa, 1995, p. 58).

Um dos principais efeitos do princípio da confiança trazido


pelo art. 30 do CDC é a vinculação do fornecedor à oferta, crian-
do-se uma obrigação pré-contratual, objetivando-se impedir que
se frustrem as expectativas dos consumidores em tais contratações
É o princípio da confiança, instituído pelo
CDC, para garantir ao consumidor a adequa-
ção do produto e do serviço, para evitar riscos
e prejuízos oriundos dos produtos e serviços,

319
para assegurar o ressarcimento do consumidor,
em caso de insolvência, de abuso, desvio da
pessoa jurídica-fornecedora, para regular tam-
bém alguns aspectos da inexecução contratual
do próprio consumidor [...] (Marques, 2002,
p. 981/982).

A estratégia utilizada pelos fornecedores em não alertar


ou advertir quanto aos serviços não incluídos frustram não só a
confiança do consumidor como também o seu direito em obter
legítimas informações acerca do contrato, que deverá possuir
cláusulas claras e corretas, com redação precisa e compreensível.

3.3 Princípio da Boa-fé Objetiva

O Código de Defesa do Consumidor consagrou a boa-fé


como princípio no art. 4o, III, ao dispor que a Política Nacional de
Relações de Consumo deve atender, entre outros princípios ao da
boa-fé. Segundo José Alberto Quadros de Carvalho Silva (2003,
p. 71), o CDC exige a boa-fé dos contratantes porque pressupõe
o contrato não como síntese de interesses contrapostos ou preten-
sões antagônicas, mas como instrumento de cooperação entre as
partes, que devem comportar-se com lealdade e honestidade, de
maneira que não frustrem mutuamente as legítimas expectativas
criadas ao redor do negócio jurídico.
Assim, a boa-fé significa a transparência obrigatória em rela-
ção aos contratantes, um respeito obrigatório aos interesses do
outro contratante, uma ação positiva do parceiro contratual mais
forte com relação ao parceiro contratual mais fraco, permitindo as
condições necessárias para a formação de uma vontade liberta e
racional.
As partes devem agir com sinceridade, veracidade, sem
objetivar somente o lucro fácil com a consequente imposição de
prejuízos ao outro. Dessa forma, esse princípio não alcança apenas

320
o fornecedor, abrangendo também o consumidor, vedando-lhe
vantagem desmedida através de benefícios reservados pelo CDC.
A consecução do contrato deve ser presidida pela boa-fé. Não bas-
tam cláusulas com prestações equivalentes se, durante a execução
do contrato, uma das partes adotar procedimentos aparentemente
lícitos, mas que causam lesão.
Segundo Claudia Lima Marques (2002, p. 671), pode-se
afirmar que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC.
A cláusula geral da boa-fé é o princípio basilar que orienta a ativi-
dade interpretativa do CDC e dos contratos por ele regulados, já
que nos contratos de longa duração a abusividade mostra-se após
o ajuste inicial, no decorrer da prestação do serviço.
A recepção do princípio da boa-fé objetiva e a previsão legis-
lativa de tantos deveres incluídos no âmbito da boa-fé constitui
grande avanço do sistema de Direito Civil legislado e vai influir de
modo decisivo em todos os setores do nosso direito obrigacional.

3.4 Princípio da Equidade ou Princípio do Equilíbrio Contratual

O princípio da equidade tem por função básica a promoção


do equilíbrio na relação contratual, dispondo não só das atribui-
ções, mas também das funções de partes envolvidas no processo
de fornecimento e no processo de consumo, assegurando o desen-
volvimento do negócio, promovendo o combate a prática abusiva.
A equidade permite ao juiz decidir o litígio de acordo com
as peculiaridades do caso e exerce papel de fonte integradora do
ordenamento jurídico e de critério permanente para a interpre-
tação do direito. Não se confunde com a boa-fé e tem atuação
independente, pois a equidade pode impor a uma das partes, ainda
que de comportamento honesto e leal, apropriado à realidade do
contrato, uma perda de direito.

321
3.5 Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor foi elaborado na supo-


sição de que nas relações de consumo há a preponderância da
situação jurídica do fornecedor com relação ao consumidor, o que
se deve ao fato de que, na maioria das vezes, o fornecedor detém
e exercita o poder econômico, e, assim, por ser profissional no
mercado de consumo, a prática acaba proporcionando-lhe conhe-
cimento profundo das técnicas de negociação, conhecendo todas
as possíveis consequências do negócio jurídico, sendo que com
o objetivo de resguardar seus interesses cria cláusulas que dimi-
nuem para si os riscos do negócio, o que, geralmente, vem em
prejuízo do consumidor.
Por conta disso, de acordo com os ensinamentos de Jorge
Alberto Quadro de Carvalho Silva (2003, p. 67), o CDC reconhe-
ceu as situações de vulnerabilidade econômica, técnica e jurídica
do consumidor, sabendo tratar-se de pessoa que, na prática, para
obter produto ou serviço, deve aceitar, com pouca margem para
negociação, as condições impostas pelo fornecedor.
Ressaltando a importância do consumidor na pós-moder-
nidade, Marques (2016) afirma que a própria construção da
cidadania está interligada a capacidade de consumir, sendo esta
a responsável por garantir o sentimento de inclusão e pertenci-
mento social. Diante do reconhecimento da importância e da
fragilidade da situação do consumidor, a Constituição Federal,
no art. 5º, XXXII, determinou que ao Estado ficasse o dever de
defesa do consumidor, independente dela ser física ou jurídica.
No intuito de restabelecer a liberdade do consumidor e a
igualdade entre o ele o fornecedor, é que se reconhece a vulnerabi-
lidade para a partir daí estabelecer direitos. Para Marques (2016,
p. 325-326), “a vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um
estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de

322
interesses identificado no mercado, é uma situação permanente
ou provisória, individual ou coletiva”.
A teoria clássica subdivide a vulnerabilidade
em 4 categorias: a técnica, jurídica, fática e a
informacional. Na vulnerabilidade técnica, o
comprador não possui conhecimentos espe-
cíficos sobre o objeto que está adquirindo e,
portanto, “é mais facilmente enganado quanto
às características do bem ou quanto à sua uti-
lidade, o mesmo ocorrendo em matéria de
serviços” (NETTO, 2011, p. 88)

Já a vulnerabilidade jurídica é presumida ao consumidor não


profissional e para o consumidor pessoa física, pois pressupõe a
falta de conhecimento jurídico específico, de contabilidade e de
economia. Porém, para os profissionais e para as pessoas jurídicas
tal vulnerabilidade deve ser comprovada (MARQUES, 2016).
Já na vulnerabilidade fática ou socioeconômica, a análise
é feita a partir do “outro parceiro contratual, o fornecedor que,
por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande
poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe
sua superioridade a todos que com ele contratam” (MARQUES,
2016, p. 333).
Por fim, encontra-se a vulnerabilidade informacional, que
segundo Reis (2015), é diferente da vulnerabilidade técnica, típica
do consumidor. Na era da internet, do mundo livre e global, a
informação não é escassa, ao contrário, é farta, manipulada e con-
trolada, constituindo uma nova espécie de vulnerabilidade, pois
o consumidor não consegue entender ao certo se a informação é
verdadeira, sua única opção é acreditar nos detentores da infor-
mação, isto é, os próprios fornecedores.
Percebe-se, deste modo, que a vulnerabilidade informacio-
nal é superior às deficiências de conhecimento técnico, jurídico
ou fático, haja vista que atinge a dignidade do consumidor,

323
principalmente o consumidor pessoa física. Isto posto, surge no
contexto global a figura do consumidor hipervulnerável, isto é,
aquele que além da vulnerabilidade natural das relações de con-
sumo, ainda apresenta uma maior fragilidade por sua condição
pessoal, como é o caso dos idosos, crianças e analfabetos.
Assim, percebe-se que este sujeito econômico, o consumidor,
está mais vulnerável, pois é “um sujeito mais ciente de seus direi-
tos e de seu papel na sociedade global e local, mas cada vez menos
consciente e racional frente às pressões e tentações do mercado:
cada vez mais vulnerável frente aos fornecedores” (MARQUES,
2016, p. 305).

4 Da Obsolescência Planejada

A obsolescência programada ou planejada é fruto do capi-


talismo de massa, foi criada por Alfred P. Sloan, presidente da
General Motors, em 1920, através do estímulo na mudança dos
modelos, mas se espalhou como um fenômeno de toda a eco-
nomia apenas nas décadas de 1930 e 1940, como uma forma de
superar a crise de 1929, criando a noção da descartalização ou dos
produtos “de plástico”, o que coincide com os primeiros impactos
mais profundos ao meio ambiente.
A obsolescência programada, desta maneira, nasce de um
intuito das empresas em incentivar o consumo tornando os pro-
dutos já vendidos obsoletos ou não-funcionais para o consumidor,
forçando-os a adquirir as novas gerações do produto, num curto
espaço de tempo. Segundo Miragem (2013) é a “redução artificial
da durabilidade de produtos ou do ciclo de vida de seus compo-
nentes, para que seja forçada a recompra prematura”.
Desta maneira, a obsolescência planejada é a própria base
da sociedade de consumo que sente uma necessidade cada vez
mais premente de novos produtos, consumir mais seja para acom-
panhar os avanços tecnológicos, seja para acompanhar os novos

324
designers para garantir o status. Esse processo é garantido atra-
vés de publicidade intensa, pois o capitalismo não deseja um bem
durável e reutilizável, o que Bauman (2008) conceitua como “eco-
nomia do engano”.
Neste sentido, Latouche (2009, p. 18) afirma que “a publi-
cidade nos faz desejar o que não temos e desprezar aquilo que já
desfrutamos. Ela cria e recria a insatisfação e a tensão do desejo
frustrado”, como forma de manter a sociedade consumindo e
gerando lucros sem se importar com o impacto ambiental ou os
direitos do consumidor. O autor afirma que este consumo em
massa e contínuo é alimentado por uma tríade: publicidade, cré-
dito e obsolescência.
Na obsolescência planejada são os próprios fabricantes que
reduzem propositadamente o tempo de vida dos produtos para
estimular o consumo. A ideia central era que com um tempo de
vida planejado, as fábricas continuariam a produzir, pois as pes-
soas voltariam a consumir com um certo prazo, previsível pelos
fabricantes, fazendo o ciclo de acumulação do capital se manter.
Na década de 1950, os fabricantes, apoiados pela publicidade, tro-
caram a ideia de suficiente pela ideia de abundância, the american
way of life127.
Naturalmente, todos os produtos têm um tempo de vida
esperado, mas não é disso que trata a obsolescência programada,
tampouco se pode confundir este instituto com as evoluções
naturais dos produtos causada pelos avanços da ciência e da tec-
nologia. Ao contrário, estas são promotoras do desenvolvimento
e do avanço na qualidade de vida das pessoas e das sociedades. O
que se critica na obsolescência planejada é justamente a determi-
nação de forma proposital pelo fabricante do momento em que o
produto deixa de ser útil, com o único fim de incentivar a venda,
a economia e o lucro.

127 Em tradução livre: o jeito americano de viver.

325
A doutrina classifica os tipos de obsolescência em obsolescên-
cia de função, de qualidade e de desejabilidade. Na obsolescência
de função, o produto torna-se antiquado quando outro é introdu-
zido no mercado com execução melhor da função (Slade, 2006).
Na obsolescência de qualidade, o produto quebra-se ou desgasta-
se em determinado tempo programado pelo fabricante, quando
ele pode oferecer ao consumidor um produto mais durável.
Já na obsolescência de desejabilidade ou psicológica, o pro-
duto ainda está apto para executar seu fim tanto em relação à
qualidade quanto à função, mas o consumidor passa a encará-lo
como obsoleto e imprestável em decorrência de uma inovação no
estilo e design que o torna menos desejável (Packard, 1965). Em
outras palavras, ocorre o desgaste do produto na mente do con-
sumidor através de manipulação psicológica, associando o melhor
com o novo e o pior com velho, como é o caso dos celulares.
Estas estratégias foram criadas para favorecer a acumulação
do capital que ocorre tanto pela mais-valia quando pelo lucro
obtido na venda dos produtos. Isto é uma tendência do capita-
lismo, pois há uma taxa de uso decrescente no capitalismo que é
usada como um mecanismo para destruição do capital, para man-
ter o capitalismo de consumo em massa e produção em massa.
Um exemplo claro desse sistema são os automóveis que, muitas
vezes, são descartados antes do final da sua vida útil.
A criação da obsolescência planejada é fruto da manipulação
do próprio capitalismo sobre o sistema, pois o estímulo à com-
pra constante é mais uma necessidade do mercado do que uma
necessidade humana. Desta maneira, a prática da obsolescência
programada é abusiva a medida que fere o Princípio da Boa-fé
Objetiva nas relações de consumo e o direito básico à informação
clara e precisa (Vulnerabilidade informacional).
Desta maneira, percebe-se que o CDC configura como vio-
lação do dever do fornecedor a ausência de informação quando
à provável obsolescência do produto. De forma indireta, o CDC

326
determina no art. 32, parágrafo único, que a reposição de peças
deve perdurar por tempo compatível com a vida útil do produto,
mesmo quando ele já deixou de ser produzido.
Sobre este tema o Superior Tribunal de Justiça julgou o
Recurso Especial 984.106, realizado em 04/10/2012, o acórdão
relatado por Felipe Salomão:
DIREITO DO CONSUMIDOR. VÍCIO
OCULTO. DEFEITO MANIFESTADO
APÓS O TÉRMINO DA GARANTIA
CONTRATUAL. OBSERVÂNCIA DA
VIDA ÚTIL DO PRODUTO. O forne-
cedor responde por vício oculto de produto
durável decorrente da própria fabricação e
não do desgaste natural gerado pela fruição
ordinária, desde que haja reclamação dentro
do prazo decadencial de noventa dias após
evidenciado o defeito, ainda que o vício se
manifeste somente após o término do prazo
de garantia contratual, devendo ser observado
como limite temporal para o surgimento do
defeito o critério de vida útil do bem. O for-
necedor não é, ad aeternum, responsável pelos
produtos colocados em circulação, mas sua
responsabilidade não se limita, pura e simples-
mente, ao prazo contratual de garantia, o qual
é estipulado unilateralmente por ele próprio.
Cumpre ressaltar que, mesmo na hipótese de
existência de prazo legal de garantia, causaria
estranheza afirmar que o fornecedor estaria
sempre isento de responsabilidade em relação
aos vícios que se tornaram evidentes depois
desse interregno. Basta dizer, por exemplo, que,
embora o construtor responda pela solidez e
segurança da obra pelo prazo legal de cinco
anos nos termos do art. 618 do CC, não seria
admissível que o empreendimento pudesse
desabar no sexto ano e por nada respondesse

327
o construtor. Com mais razão, o mesmo racio-
cínio pode ser utilizado para a hipótese de
garantia contratual. Deve ser considerada, para
a aferição da responsabilidade do fornecedor,
a natureza do vício que inquinou o produto,
mesmo que tenha ele se manifestado somente
ao término da garantia. Os prazos de garantia,
sejam eles legais ou contratuais, visam a acau-
telar o adquirente de produtos contra defeitos
relacionados ao desgaste natural da coisa, são
um intervalo mínimo de tempo no qual não se
espera que haja deterioração do objeto. Depois
desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso
ordinário do produto, algum desgaste possa
mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrín-
seco do produto, existente desde sempre, mas
que somente vem a se manifestar depois de
expirada a garantia. Nessa categoria de vício
intrínseco, certamente se inserem os defeitos
de fabricação relativos a projeto, cálculo estru-
tural, resistência de materiais, entre outros, os
quais, em não raras vezes, somente se tornam
conhecidos depois de algum tempo de uso,
todavia não decorrem diretamente da fruição
do bem, e sim de uma característica oculta que
esteve latente até então. Cuidando-se de vício
aparente, é certo que o consumidor deve exi-
gir a reparação no prazo de noventa dias, em
se tratando de produtos duráveis, iniciando a
contagem a partir da entrega efetiva do bem
e não fluindo o citado prazo durante a garan-
tia contratual. Porém, em se tratando de vício
oculto não decorrente do desgaste natural
gerado pela fruição ordinária do produto, mas
da própria fabricação, o prazo para reclamar a
reparação se inicia no momento em que ficar
evidenciado o defeito, mesmo depois de expi-
rado o prazo contratual de garantia, devendo
ter-se sempre em vista o critério da vida útil

328
do bem, que se pretende “durável”. A doutrina
consumerista – sem desconsiderar a existência
de entendimento contrário – tem entendido
que o CDC, no § 3º do art. 26, no que con-
cerne à disciplina do vício oculto, adotou o
critério da vida útil do bem, e não o critério
da garantia, podendo o fornecedor se respon-
sabilizar pelo vício em um espaço largo de
tempo, mesmo depois de expirada a garantia
contratual. Assim, independentemente do
prazo contratual de garantia, a venda de um
bem tido por durável com vida útil inferior
àquela que legitimamente se esperava, além de
configurar um defeito de adequação (art. 18 do
CDC), evidencia uma quebra da boa-fé obje-
tiva, que deve nortear as relações contratuais,
sejam elas de consumo, sejam elas regidas pelo
direito comum. Constitui, em outras palavras,
descumprimento do dever de informação e a
não realização do próprio objeto do contrato,
que era a compra de um bem cujo ciclo vital
se esperava, de forma legítima e razoável, fosse
mais longo. Os deveres anexos, como o de
informação, revelam-se como uma das faces
de atuação ou ‘operatividade’ do princípio da
boa-fé objetiva, sendo quebrados com o pere-
cimento ou a danificação de bem durável de
forma prematura e causada por vício de fabri-
cação. Precedente citado: REsp 1.123.004-DF,
DJe 9/12/2011. REsp 984.106-SC, Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, julgado em 4/10/2012.

Deste modo, percebe-se que duas são as garantias disponibi-


lizadas ao consumir e que podem e devem ser usadas para evitar
a prática nociva da obsolescência programada: a garantia legal e
a contratual. A garantia legal é obrigatória e inderrogável e tem
sua base no CDC/90, já a garantia contratual é complementar à

329
legal, derivando do próprio contrato e do poder de vinculação da
proposta contratual.
Assim, o julgador entendeu que, a obsolescência forçada pelo
fabricante deve ser interpretada como vício oculto, tendo o consu-
midor a garantia legal e contratual para o proteger, bem como, no
âmbito civil, pode-se afirmar que contra esta prática há a garantia
contra os vícios redibitório, podendo ocasionar, inclusive, a extin-
ção do negócio jurídico ou a indenização do contratante.

4.1 Obsolescência Planejada e o Desenvolvimento Sustentável

A obsolescência planejada parte do pressuposto que qual-


quer tipo de crescimento econômico é vantajoso à humanidade já
que através dele se gera riqueza. Porém, com as crises ambientais
que se agravaram a partir da década de 1970, começou-se a se
discutir os limites do meio ambiente e da terra para sustentar o
modelo de produção em massa humano.
A partir de então iniciou-se uma discussão acerca profunda
sobre quais as reais vantagens do crescimento. Assim, iniciou-se
a elaboração do conceito de desenvolvimento sustentável. O seu
conceito surgiu por obra da União Internacional da Conservação
da Natureza e dos Recursos Naturais, em 1980, mas sua consa-
gração deu-se em 1987, a partir do Relatório de Bruntland, o qual
defendia a necessidade de compatibilizar o crescimento econô-
mico com a proteção ambiental. Naquele momento, o conceito
de desenvolvimento sustentável enfocava as necessidades do pre-
sente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de
satisfazer suas próprias necessidades (ONU, 1987), postura que
foi reiterada e ampliada na ECO-92, quando foi incluído em
diversos artigos da Carta do Rio.
Em 2002, por ocasião da Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável, o conceito foi estendido, incorpo-
rando os aspectos sociais e políticos à proteção do meio ambiente

330
e ao desenvolvimento econômico. Tal mudança justifica o enten-
dimento de que o desenvolvimento sustentável é considerado
como um conceito de natureza multidimensional, que inclui em
seus objetivos, também, a redução da pobreza e das violações aos
direitos humanos (KINOSHITA, 2008).
Nessa perspectiva, Sachs (2008) argumenta que a concepção
de desenvolvimento implica na inserção de princípios e valores
como igualdade, equidade e solidariedade. Neste sentido,
ressalta-se que seu conceito está em constante
mudança e evolução, sendo alvo de intensa
discussão acadêmica, haja vista que os avanços
obtidos a partir das decisões judiciais nacio-
nais e internacionais estão prioritariamente
voltados para atender questões relativas ao
desenvolvimento econômico e ao modelo
neoliberal implantado mundialmente, a partir
da década de 80 do século XX”. (MELO &
FIGUEREDO, 2016)

Em outra análise, existem ações estatais na busca da sua pro-


moção, muitas vezes consideradas insuficientes, pois tais políticas
costumam colidir com o interesse dos grandes empresários, como
é no caso da obsolescência programada, que adotam uma visão
reducionista sobre o desenvolvimento sustentável na medida em
que as questões relativas à proteção dos direitos do cidadão-con-
sumidor e do meio ambiente estão submetidas aos interesses que
priorizam o lucro em detrimento às questões sociais ou ecoló-
gicas do sistema (SOUSA, 2006; SACHS, 2008; THOMAZ
JUNIOR, 2009; PIMENTEL FIHO, 2012).
Fundado nestes aspectos, assevera Antunes que
a conservação e sustentabilidade dos recursos
ambientais (recursos econômicos) é um  ins-
trumento para garantir um bom padrão de
qualidade de vida para os indivíduos. O fator

331
econômico deve ser compreendido como
desenvolvimento, evolução, melhora contínua
e não como simples crescimento ou acúmulo.
O desenvolvimento se distingue do cresci-
mento na medida em que pressupõe uma
harmonia entre os diferentes elementos cons-
titutivos. (ANTUNES, 2013, p.17-18)

No ordenamento jurídico brasileiro, tais diretrizes estão


inseridas na Constituição Federal (1988). O artigo 225 garante
a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
e impõe ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo
para as presentes e futuras gerações. O artigo 170 inclui a defesa
do meio ambiente como princípio da ordem econômica nacional,
bem como o artigo 5º, XXXII, prevê que o Estado deve promover
a proteção do Consumidor que culminou com a promulgação do
Código de Defesa do Consumidor em 1990, mas, principalmente,
ao estabelecer no art. 1o, III, a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República, determina que todas as ações estatais
devem buscar o desenvolvimento. Perceba-se:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, for-
mada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem dis-
tinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei,
a defesa do consumidor;

332
Art. 170. A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos exis-
tência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme
o impacto ambiental dos produtos e serviços
e de seus processos de elaboração e prestação; 
VII - redução das desigualdades regionais e
sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte constituídas sob as leis bra-
sileiras e que tenham sua sede e administração
no País.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à cole-
tividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.

Assim, os preceitos acima citados de desenvolvimento sus-


tentável colidem com as características da liberdade econômica
sem limites, vinculada ao lessair-faire clássico, liberal, resultado
da necessidade de garantir o patrimônio individual e da execução
dos negócios sem a interferência do Estado. Deste modo, exige-se
que a atuação da liberdade econômica ocorra por meio dos seus
agentes para que promovam uma melhoria nas condições de vida

333
da nação, nos seus mais diversos aspectos, e não apenas
para garantir a geração do lucro às partes que intervêm na relação
econômica, como é o caso da utilização da obsolescência plane-
jada com o intuito de incentivar o consumo como forma de gerar
crescimento econômico e lucro.
Na busca por esse novo conceito de desenvolvimento econô-
mico, não se pode deixar de considerar “a importância intrínseca
da liberdade humana em geral, como o objetivo supremo do
desenvolvimento, é acentuadamente suplementada pela eficácia
instrumental de liberdades específicas na promoção de liberdades
de outros tipos” (SEN, 2013, p. 10), como é o caso do direito à
moradia digna que protege, inclusive, o direito à vida (SARLET,
2015). Desta maneira, deve-se “orientar o crescimento na direção
do desenvolvimento, portanto na direção da sociedade urbana,
isso quer dizer antes de mais nada: prospectar as novas necessida-
des” (LEFEBVRE, 2016, p. 135).
Deste modo, a liberdade, como aspecto do desenvolvimento,
deve ser considerada elemento essencial na análise do nível de
vida de um povo, pois relaciona-se com a criação e o aumento de
capacidades, diretamente vinculada com o nível de pobreza, pois
afeta o direito do ser humano em escolher os preceitos da sua
vida. Neste sentido, Sen afirma que
há bons motivos para julgar a vantagem indi-
vidual em função das capacidades que uma
pessoa possui, ou seja, das liberdades substan-
tivas para levar o tipo de vida que ela tem razão
para valorizar. Nessa perspectiva, a pobreza
deve ser vista como privação de capacidades
básicas em vez de meramente como baixo
nível de renda, que é o critério tradicional de
identificação da pobreza. A perspectiva da
pobreza como privação de capacidades não
envolve nenhuma negação da ideia sensata de
que a renda baixa é claramente uma das causas

334
principais da pobreza, pois a falta de renda
pode ser uma razão primordial da privação
de capacidades de uma pessoa. (SEN, 2013,
p.120)

Para que se atinja o objetivo do desenvolvimento econômico


sustentável, vários preceitos devem ser utilizados, dentre eles o
direito à sadia qualidade de vida, onde se reconhece que o direito
à vida não é completo se não for auxiliado por outros mecanismos
que garantam a vida digna. Entende-se que não se pode medir
qualidade de vida apenas com índices econômicos, é preciso
conter dados sociais (SEN, 2010), evitando-se picos de cresci-
mento intenso econômico seguidos por períodos de recessão, pois
estas grandes oscilações causam grandes impactos no seio social,
aumentando o desequilíbrio e as tensões.

5 Considerações finais

A partir da Revolução Industrial, os ciclos do capitalismo


só se intensificaram, gerando riqueza, trabalho e renda para mui-
tas pessoas, porém também foi responsável pelo surgimento de
alguns problemas sociais como a superexploração da mão-de-o-
bra humana e o desgaste ambiental.
Durante a década de 1920 surgiu nos EUA a prática da obso-
lescência programada pensada pelos fabricantes para estimular
o consumo e, assim, aumentar os lucros e incrementar o cresci-
mento econômico. Esta prática passou anos esquecida, até que, na
década de 1950 a 1960, resurge como ferramenta de estímulo ao
consumo e a produção em massa nos países de capitalismo avan-
çado e, atualmente, em todo o globo.
Esta prática parte do pressuposto que o fabricante deve
reduzir propositadamente o tempo de vida dos produtos para
que as pessoas voltem a consumir. Esta tática utiliza-se da prá-
tica de substituição dos produtos pela melhor eficiência de outros,

335
redução da qualidade dos materiais utilizados para que o produto
se desgaste mais rapidamente e da manipulação mental através de
estratégias de propaganda associando os novos produtos a estilos
de vida cobiçados em função de novo design, sem nenhuma rela-
ção direta com a funcionalidade do bem.
Tal comportamento criou a sociedade do descartável, onde se
destrói a natureza sem compromisso com o futuro com o objetivo
de aumentar os lucros, mesmo que tudo seja transformado em lixo
em pouco tempo. Assim, os produtos são pensados para serem
passageiros e a publicidade é o combustível desse comportamento.
Este comportamento comercial da sociedade está sendo o
principal responsável pela crise do meio ambiente e dos recursos
naturais e, portanto, caminha em dissociação ao desenvolvimento
sustentável. Além desta clara infringência às tentativas de buscar
o equilíbrio ecológico e garantir um nível de vida digna para as
pessoas através do consumo, pode-se ressaltar ainda seus maléfi-
cos efeitos às relações de consumo, ao consumidor.
A partir dessa estratégia o consumidor é lesado ao ter sua
expectativa de utilização do produto reduzida sem sua aquiescên-
cia, o que fere o Princípio da Boa-fé Objetiva e do Equilíbrio
Contratual ao passo que se impõe unilateralmente ao produto um
vício na sua qualidade para que a sua durabilidade seja reduzida,
o que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor. A esta
prática ele nomeou vício oculto e contra ela determinou prazos
mínimos de garantia do produto que devem ser respeitados.
Vale ainda salientar que a obsolescência programada não é
matéria de estudo apenas da academia. Em 2012, o STJ se posi-
cionou acerca dela, conforme demonstrado no texto, criando
jurisprudência que busca proteger o consumidor em todo o país
ao determinar que é um direito do consumidor utilizar o produto
segundo a sua vida útil e que a sua redução proposital gera dano
reparável.

336
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339
O BIODIESEL NO CONTEXTO JURÍDICO BRASILEIRO

Talden Farias128
Arícia Fernandes Correia129

1 Introdução

É
no contexto da crise ambiental, a qual é definida por José
Rubens Morato Leite130 como o quadro de escassez dos
recursos naturais e de desastres ecológicos de repercussão
planetária causado pelas atividades humanas, que a discussão a
respeito das matrizes energéticas sustentáveis assume especial
importância. Os combustíveis derivados de matéria fóssil, como
o petróleo, o gás natural e o carvão mineral, que ainda corres-
pondem à maior parte da oferta energética mundial131, além de
serem não renováveis, são altamente poluidores e contribuem de
forma significativa para o aquecimento global. Como a econo-
mia internacional cresceu muito nos últimos anos, aumentando

128 Doutorando em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.
Advogado e professor da Universidade Federal da Paraíba.
129 Doutora em Direito do Estado e mestre em Direito da Cidade pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Procuradora do Município do Rio de Janeiro e
professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
130 LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extra-
patrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 21-22.
131 LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: a situação, o modelo e a política atual. Rio de
Janeiro: Synergia, 2008, p. 20.

341
consideravelmente a demanda por energia, fenômeno que tende
a ocorrer de forma mais intensa nos países em desenvolvimento,
a exemplo da China e da Índia132, urge procurar uma alternativa
que seja viável do ponto de vista ecológico, econômico e social.
No Brasil, o biodiesel é apontado como uma das grandes
alternativas para a substituição dos combustíveis de origem fóssil,
tendo em vista a disposição de vastas áreas propícias ao cultivo
dessas biomassas e a existência de mão de obra e de tecnologia
adequada. Trata-se, efetivamente, de uma oportunidade singular
para a promoção da redução das desigualdades regionais e sociais
e para a afirmação geopolítica do país, que é considerado uma
liderança emergente internacional no que diz respeito às ener-
gias sustentáveis e, em especial, aos biocombustíveis133. A procura
pela diversificação da matriz energética começa a ocupar um lugar
de considerável destaque na pauta política nacional, tanto que o
Programa de Aceleração do Crescimento previu a aplicação de
dezessete bilhões e quatrocentos milhões de reais no desenvolvi-
mento e na produção de combustíveis renováveis até dezembro
de 20101347.
No entanto, é importante que essas políticas públicas
sejam executadas à luz de uma legislação adequada, tendo em
vista a relevância estratégica do assunto, visto que mesmo as
matrizes energéticas consideradas limpas não estão isentas de

132 International Energy Agency. World energy outlook 2007: China and India insi-
ghts. Organisation for Economic Co-operation and Development/International
Energy Agency: Paris, 2007, p. 6-8.
133 SALEME, Edson Ricardo; GIRÃO, Mardônio da Silva. In: BENJAMIN,
Antônio Herman; LECEY, Eládio; CAPPELLI, Silvia (orgs). Direito ambien-
tal, mudanças climáticas e desastres: impactos nas cidades e no patrimônio cultural.
São Paulo: Imprensa Oficial, 2009, v. 1, p. 506-507.
134 SILVA, Henry Iure de Paiva. A temática ambiental como promotora de
mudanças no sistema de relações econômicas internacionais: a hora e a vez dos
biocombustíveis. Datavênia, Campina Grande, v. I, n° 1, 2009, p. 12

342
questionamentos. O biodiesel possui um arcabouço normativo
relativamente bem elaborado, que deve procurar levar em consi-
deração os aspectos de ordem ambiental, econômica e social. O
problema é que essa legislação ainda é recente, tanto que nem a
Lei n. 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) nem a
Lei n. 9.478/97 (Política Energética Nacional) em suas versões
originais dispuseram sobre o tema, de forma que carece de ama-
durecimento e de efetividade.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise da
regulação jurídica do biodiesel no Brasil, com o intuito de saber
se a legislação vigente é adequada e se existe uma integração das
políticas públicas do setor. Nesse diapasão, estudar-se-á o enqua-
dramento ambiental dessa modalidade de combustível a Política
Energética Nacional, tomando como base a doutrina especiali-
zada e a legislação ambiental e energética brasileira.

2 Biodiesel

Segundo Wendell Ficher Teixeira Assis e Marcos Cristiano


Zucarelli, biodiesel é um “combustível liquido derivado de bio-
massa renovável, produzido a partir de diferentes matérias primas,
tais como: óleos vegetais extraídos das sementes e grãos de soja,
girassol, mamona, pinhão manso, palma, algodão, babaçu, dentre
outras; gorduras animais; e óleos residuais”1358. O inciso XXV do
art. 6º da Lei n. 9.478/97 classifica o biodiesel como o “biocom-
bustível derivado de biomassa renovável para uso em motores a
combustão interna com ignição por compressão ou, conforme
regulamento, para geração de outro tipo de energia, que possa
substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil”.

135 ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Despoluindo


incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustíveis e perspectivas para
uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador, 2007, p. 44.

343
Trata-se de uma espécie de biocombustel, o qual é conceituado no
inciso XXIV do dispositivo citado como “substância derivada de
biomassa renovável, tal como biodiesel, etanol e outras substâncias
estabelecidas em regulamento da ANP, que pode ser empregada
diretamente ou mediante alterações em motores a combustão
interna ou para outro tipo de geração de energia, podendo substi-
tuir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil”.
Em 1900 Rudolph Diesel apresentou na Exposição Universal
de Paris, na França, um motor desenvolvido por ele que funcio-
nava à base de óleo de amendoim. Embora o projeto à época não
tenha demonstrado viabilidade econômica, tendo sido essa a razão
do seu abandono, essa foi a primeira experiência com o biodiesel
de que se tem conhecimento.
Em 1937 Charles George Chavanne obtém em Bruxelas, na
Bélgica, o registro da primeira patente, tendo ele no ano seguinte
feito o registro da primeira patente comercial do biodiesel1369. A
técnica utilizada foi juntar o óleo vegetal de palma e o etanol de
forma a obter o biodiesel a partir da transesterificação, que ainda
hoje é o método mais comum para a conversão de triglicerídeos
em biodiesel. De acordo com Assis e Zucarelli, tal técnica “con-
siste em uma reação química em meio alcalino, onde se fazem
reagir óleos vegetais ou gorduras animais e um álcool (etanol ou
metanol)”1379. Mesmo constando que em 1938 o biodiesel foi
usado pela primeira vez em uma linha de ônibus comercial entre
Bruxelas e Louvain, tratou-se de uma experiência isolada que não
teve maiores desdobramentos.

136 MAIA, Lis Pereira. A regulação social de biocombustíveis na matriz energética bra-
sileira. Monografia de conclusão de curso de graduação em Direito apresentada
à Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012, p. 19.
137 ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Despoluindo
incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustíveis e perspectivas para
uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador, 2007, p. 45.

344
Foi o contexto de provável escassez prévio e concomitante
à II Guerra Mundial (1939-1945) que fez com que os países
envolvidos procurassem alternativas aos combustíveis derivados
do petróleo, e os óleos vegetais despontaram como uma possibi-
lidade. Prova disso é que nesse período chegou a ser proibida no
Brasil a exportação de sementes de algodão, então mais impor-
tante vegetal usado para conseguir o óleo in natura13810. Todavia,
com o término da contenda, aliado aos entraves financeiros e tec-
nológicos, as pesquisas foram novamente deixadas de lado.
No Brasil as primeiras experiências com o biodiesel ocorre-
ram a partir dos testes feitos pelo Instituto Nacional de Tecnologia
(INT) ainda na década de 1920, que fazia experiências com
combustíveis renováveis com o intuito de desenvolver fontes
energéticas alternativas13911. Na década de 1960 o conde Francisco
Matarazzo obteve biodiesel em suas indústrias ao tentar extrair
óleo a partir do grão de café14012. Contudo, foram iniciativas inci-
pientes e isoladas, que também não geraram resultados.
Por conta das crises do petróleo de 1973 e 1979, fenômeno
causado pela regulação do escoamento da produção por parte dos
países produtores que resultou no aumento do preço do barril,
o tema dos combustíveis derivados de óleos vegetais e gordura
animal voltou à pauta. Embora a maior ênfase tenha sido o álcool,
tanto no plano nacional quanto internacional, houve também

138 MAIA, Lis Pereira. A regulação social de biocombustíveis na matriz energética bra-
sileira. Monografia de conclusão de curso de graduação em Direito apresentada
à Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012, p. 19.
139 SILVA, Daiane Tessaro da; TRENTINI, Flávia. Biodiesel x sustentabilidade:
um binômio possível? In: BENJAMIN, Antônio Herman; LECEY, Eládio;
CAPPELLI, Silvia (orgs). Direito ambiental, mudanças climáticas e desastres:
impactos nas cidades e no patrimônio cultural. São Paulo: Imprensa Oficial,
2009, V. 2, p. 28.
140 LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: a situação, o modelo e a política atual. Rio de
Janeiro: Synergia, 2008, p. 108.

345
reflexos nas discussões e pesquisas sobre o biodiesel. Nessa época
o INT, O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e a Comissão
Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) passaram
a desenvolver pesquisas sobre o uso de óleos vegetais como com-
bustível, cabendo destacar o DENDIESEL, programa que visava
a criar biodiesel a partir do óleo de dendê14113.
Nessa ordem de ideias, o Regime Militar Brasileiro lançou o
Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool) por meio do Decreto
n. 76.593/75 no intuito de procurar criar alternativas reais para a
substituição em larga escala da gasolina. O decreto citado previu
a possibilidade de utilização da mandioca ou de qualquer outro
insumo para a obtenção de combustível automotivo, de maneira
que, ao menos em tese, o biodiesel também estaria contemplado
com os mesmos incentivos governamentais do álcool. No entanto,
em razão do fato de o retorno da cana-de-açúcar por hectare
plantado ser consideravelmente maior, somente a produção do
álcool estaria destinada a ter espaço junto ao Poder Público e ao
mercado, daí o próprio nome adotado para o programa14214. É
claro que contribuiu para isso também a força da já então secular
economia sucroalcooleira, que queria ganhar espaço no segmento
energético, de forma que esse componente político não pode ser
ignorado.
Foi nesse contexto de crise que a Universidade Federal
do Ceará (UFC) criou em 1978 o Núcleo de Fontes Não-
Convencionais de Energia, cujo objetivo era desenvolver

141 MEIRELLES, Fábio de Salles. Biodiesel. Disponível em: http://www.forumde-


energia.com.br/nukleo/pub/biodiesel.pdf. Acesso em: 20.ago. 2013, p. 13.
142 FARIAS, Talden. Regulação dos biocombustíveis no âmbito estadual. In:
FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato. Biocombustíveis:
fonte de energia sustentável? Considerações jurídicas, técnicas e éticas. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 125.

346
fontes energéticas alternativas, o que incluía a pesquisa com a
biomassa14315. Em 1980 o professor Expedito Parente, da UFC,
requereu ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI)
o registro de duas patentes relacionadas ao biodiesel, tendo sido
concedida em 1983 a patente PI n. 8007957 referente ao “Processo
de produção de combustíveis a partir de frutos ou sementes ole-
aginosas”. Ocorre que a falta de apoio do Poder Público fez com
que a primeira patente mundial para produção de biodiesel em
escala industrial não fosse utilizada e caísse em domínio publico,
ficando limitada aos círculos acadêmicos e experimentais14416.
Afora a ausência de estratégia de diversificação energética, as
razões econômicas para essa falta de interesse eram evidentes,
uma vez que o país já começava a aumentar a produção de petró-
leo e o custo de produção do diesel comum era bem mais alto do
que o do biodiesel, que na época era mais produzido a partir do
marmeleiro.
Em 1983 o Governo Federal lançou, por meio da Secretaria
de Tecnologia Industrial, o Programa Nacional de Óleos Vegetais
(OVEG), que realizou testes com óleos vegetais transesterificados,
puros ou misturados ao diesel na proporção de 30%, em veículos
que chegaram a percorrer mais de um milhão de quilômetros14517.
Os caminhões, ônibus e tratores apresentaram resultados satis-
fatórios, mormente porque os motores não sofreram adaptações

143 FERREIRA, Ana Mônica Medeiros. Os instrumentos de incentivo à produção


e uso de biodiesel no Brasil: uma análise constitucional sob o princípio do desenvol-
vimento sustentável. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2010, p.
92-93.
144 LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: a situação, o modelo e a política atual. Rio de
Janeiro: Synergia, 2008, p. 109.
145 COSTA NETO, Pedro R.; ROSSI, Luciano F. S.; ZAGONEL, Giuliano F.;
RAMOS, Luiz P. Produção de biocombustível alternativo ao óleo diesel atra-
vés da transesterificação de óleo de soja usado em frituras. Química Nova, São
Paulo, v. 23, n. 4, 2000, p. 534.

347
para receber o biodiesel, o que comprovou a viabilidade técnica
do combustível alternativo14618. A despeito disso, os altos custos
de produção em relação ao óleo diesel não permitiram que o bio-
diesel entrasse no mercado naquele instante14719.
Em virtude do aumento dos preços do óleo diesel na década
de 1990 o Governo Federal passou a demonstrar interesse em
desenvolver o biodiesel como alternativa energética real, tendo o
Ministério da Ciência e Tecnologia lançado em 2002 o Programa
Brasileiro de Desenvolvimento Tecnológico de Biodiesel
(Probiodiesel), por meio da Portaria n. 702, com o objetivo de
promover o desenvolvimento científico e tecnológico de biodiesel
a partir de ésteres etílicos de óleos vegetais puros e/ou residuais.
Em 2003 o Ministério das Minas e Energia lança o Programa
Combustível Verde, estabelecendo a meta de produção de um
milhão e quinhentos mil toneladas de biodiesel, enfocando desde
então a promoção de emprego e renda na zona rural14820.
Em 2004 o Governo Federal lançou o Programa Nacional
de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), articulando a ação do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério
do Meio Ambiente (MMA), do Ministério das Minas e Energia
(MME) e de outros órgãos federais, na tentativa de criar um pro-
grama mais completo do que o Probiodiesel. Embora se tratasse

146 COSTA NETO, Pedro R.; ROSSI, Luciano F. S.; ZAGONEL, Giuliano F.;
RAMOS, Luiz P. Produção de biocombustível alternativo ao óleo diesel atra-
vés da transesterificação de óleo de soja usado em frituras. Química Nova, São
Paulo, v. 23, n. 4, 2000, p. 534-535.
147 MEIRELLES, Fábio de Salles. Biodiesel. Disponível em: http://www.forumde-
energia.com.br/nukleo/pub/biodiesel.pdf. Acesso em: 20.ago. 2013, p. 13.
148 SILVA, Daiane Tessaro da; TRENTINI, Flávia. Biodiesel x sustentabilidade:
um binômio possível? In: BENJAMIN, Antônio Herman; LECEY, Eládio;
CAPPELLI, Silvia (orgs). Direito ambiental, mudanças climáticas e desastres:
impactos nas cidades e no patrimônio cultural. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009,
V. 2, p. 28/29.

348
de uma política essencialmente energética, o Governo Federal
procurou estabelecer por meio dela uma série de metas de ordem
ambiental, econômica e social, cujas principais diretrizes seriam
a implementação de um programa capaz de promover inclusão
social, garantia de estoque, de preços competitivos e de qualidade
e variedade de fontes oleaginosas e de regiões produtoras14921.
Entretanto, a Lei n. 11.097/05 foi realmente o grande marco
jurídico o biodiesel, ao consolidar o PNPB dispondo sobre a intro-
dução do mesmo na matriz energética brasileira e alterando a Lei
n. 9.478/97. O caput do art. 2º da Lei n. 11.097/05 fixou uma
percentagem obrigatória de adição mínima de 5% de biodiesel ao
óleo diesel disponibilizado ao consumidor final em qualquer parte
do território nacional. Esse fato representou um marco na Política
Energética Nacional, porque foi a primeira medida jurídica efetiva
de grande impacto na inclusão econômica de um biocombustível
diferente do álcool. Entre as vantagens desse combustível, Rubens
Onofre Nodari destaca as seguintes:
>> é energia renovável, constituído de car-
bono que é capturado por meio da fotossíntese
realizada pelas plantas, que, por sua vez, pro-
duzem e armazenam óleos vegetais, ou, ainda,
pelo anabolismo em animais, que produzem
gorduras;
>> é uma alternativa econômica ao combustí-
vel de origem fóssil, que é finito;
>> gera na sua combustão somente agua e gás
carbônico, contribuindo para evitar a emissão
de gases do efeito estufa;

149 NODARI, Rubens Onofre. Sobre os biocombustíveis: impactos, benefícios


e alternativas. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato.
Biocombustíveis: fonte de energia sustentável? Considerações jurídicas, técnicas e éti-
cas. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57.

349
>> é menos poluente que o óleo diesel, uma
vez que não possui em sua estrutura molecu-
lar enxofre (S), não gerando assim compostos
secundários indesejáveis sulfurados, que são
contaminantes da atmosfera terrestre;
>> poderá contribuir para a geração de empre-
gos no setor primário;
>> oferece uma alternativa de autossuficiência
para a agricultura familiar, pois o agricultor que
produzir o óleo vegetal ou álcool poderá utilizá
-lo como tal ou transformá-lo em combustível;
>> é uma estratégia de redução de custos da
produção agrícola, se for utilizado localmente,
já que o óleo vegetal ou álcool não necessita
viajar milhares de quilômetros, nem recolher
impostos, como os derivados de petróleo/
>> é um ótimo lubrificante, aumentando a vida
útil do motor e, com base em suas condições
físico-químicas, pode ser misturado em qual-
quer proporção com o diesel;
>> possui maior Índice de Cetano que o óleo
diesel, oferecendo maior torque ao motor que
o utiliza;
>> poderá, dependendo da politica agrícola
governamental, gerar trabalho e renda, evi-
tando ou minimizando a migração do meio
rural para o meio urbano15022.

Impende ressaltar ainda a versatilidade do biodiesel, que


tanto pode ser adicionado aos derivados do petróleo, já que é

150 NODARI, Rubens Onofre. Sobre os biocombustíveis: impactos, benefícios


e alternativas. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato.
Biocombustíveis: fonte de energia sustentável? Considerações jurídicas, técnicas e éti-
cas. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57-58.

350
passível de utilização em motor a diesel sem necessidade de adap-
tação151, quanto poderá substituí-los. Isso significa que, enquanto
se credencia como uma opção futura, o biodiesel é também uma
forma de prolongar a sobrevivência da própria cadeia do petróleo.
Com efeito, o PNPB foi pensado também como uma forma
de garantir a autonomia no atendimento ao consumo de óleo
diesel no país15224, de maneira que o biodiesel pode ser tanto um
combustível autônomo como um combustível acessório dentro da
cadeia produtiva do petróleo. Isso significa que a euforia em torno
da exploração do pré-sal não representa um obstáculo, embora
seja lógico que o seu êxito ou malogro possa atribuir uma impor-
tância maior ou menor à indústria do biodiesel em um futuro não
tão distante.
Por fim, se é verdade que os custos do biodiesel ainda são
altos quando comparados ao diesel comum, importa dizer que
essa diferença tende a diminuir com o aumento da escala de
produção daquele. De mais a mais, o contínuo agravamento da
problemática ambiental tende a fortalecer os combustíveis reno-
váveis, que, inclusive, têm mais condições de também serem
socialmente corretos.

3 Regulação jurídica do Biodiesel

A mais importante norma jurídica brasileira na área de ener-


gia é a Lei n. 9.478/97, que dispõe sobre a Política Energética

151 CUNHA, João Vidal da. Biodiesel e Lei 11.097/05 – impactos ambientais des-
conhecidos, impactos sociais relevantes. In: BENJAMIN, Antônio Herman;
LECEY, Eládio; CAPPELLI, Silvia (orgs). Mudanças climáticas, biodiversidade
e uso sustentável de energia. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, v. 2, p. 449.
152
ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano.
Despoluindo incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustí-
veis e perspectivas para uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador,
2007, p. 47.

351
Nacional e as atividades relativas ao monopólio do petróleo, além
de instituir o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)
e a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Essa lei foi criada com
o objetivo de estabelecer a regulação jurídica do aproveitamento
das fontes e recursos energéticos do país, constituindo-se o seu
principal marco legal.
Contudo, desde a sua redação original a regulação do setor
de petróleo e gás natural despontou como o principal enfoque da
lei, em detrimento dos outros segmentos que compõem a nossa
matriz energética153. Tanto que a maioria dos estudos sobre essa
norma enfatizam apenas aqueles dois tipos de combustível154. A
explicação para isso é que a mencionada lei surgiu no contexto
da Emenda Constitucional n. 09/95, que quebrou o monopólio
da União em relação às atividades decorrentes da indústria do
petróleo e delegou à lei ordinária a regulamentação da matéria,
alterando os § § 1º e 2º art. 177 da Constituição da República:
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo
e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;

153 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012, p. 1003-1004.
154 COSTA, Maria D’Assunção. Marco regulatório do gás natural no Brasil. In:
GONÇALVES, Alcindo; RODRIGUES, Gilberto Marcos Antônio (orgs).
Direito do petróleo e gás: aspectos ambientais e internacionais. Santos: Editora
Universitária Leopoldianum, 2007, p. 23-29, GARCIA, Flávio Amaral;
ROCHA, Henrique Bastos. Aspectos ambientais da lei do petróleo (Lei n.
9.478, de 6 de agosto de 1997). In: MORAES, Rodrigo Jorge; AZEVÊDO,
Mariângela Garcia de Lacerda; DELMANTO, Fábio Machado de Almeida
(coords). As leis federais mais importantes de proteção ao meio ambiente comenta-
das. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 257-287 e LEITE, Getúlio da Silveira;
GUTMAN, José. O novo marco regulatório para as atividades de exploração
e produção de petróleo e gás natural no Brasil. In: GONÇALVES, Alcindo;
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antônio (orgs). Direito do petróleo e gás: aspec-
tos ambientais e internacionais. Santos: Editora Universitária Leopoldianum,
2007, p. 31-39.

352
II – a refinação do petróleo nacional ou
estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos
e derivados básicos resultantes das atividades
previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto
de origem nacional ou de derivados básicos
de petróleo produzidos no País, bem assim o
transporte, por meio de conduto, de petróleo
bruto, seus derivados e gás natural de qualquer
origem;
(...)
§ 1º A União poderá contratar com empresas
estatais ou privadas a realização das atividades
previstas nos incisos I a IV deste artigo obser-
vadas as condições estabelecidas em lei.
§ 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre:
I – a garantia do fornecimento dos derivados
de petróleo em todo o território nacional;
II – as condições de contratação;
III – a estrutura e atribuições do órgão regula-
dor do monopólio da União;

A despeito disso, essa lei não deixou de fazer referência aos


combustíveis alternativos em sua redação original, ao determinar,
no art. 1°, IV e VIII, respectivamente, que a Política Energética
Nacional visará à proteção do meio ambiente e à utilização de fon-
tes alternativas de energia com o aproveitamento econômico dos
materiais disponíveis. Por sua vez, o art. 2º, III, estabelece como
uma das atribuições do CNPE a revisão periódica das matri-
zes energéticas utilizadas nas diversas regiões do país, devendo
as fontes alternativas também ser levadas em consideração. Já o
Decreto n. 3.520/00, que foi editado com o objetivo de regula-
mentar o funcionamento do referido conselho, também dispôs
sobre o assunto em sua redação original, no art. 1°, I, d e h e III.

353
Trata-se de uma referência indireta ao biodiesel, bem como
aos biocombustíveis de uma forma geral, uma vez que todos os
combustíveis alternativos estariam contemplados. No entanto,
é preciso deixar claro que isso não surtiu maior efeito prático,
até porque o tratamento legislativo do assunto era esparso e
superficial.
Somente com a Medida Provisória n. 214/04, convertida
na Lei n. 11.097/05, que dispôs sobre a introdução do biodie-
sel na matriz energética brasileira, é que se legislou de forma
mais detalhada a respeito do assunto. A partir dessa lei o bio-
diesel começou a ocupar um espaço mais relevante na Política
Energética Nacional, pois ela modificou diversos pontos da Lei
n. 9.478/97, alterando inclusive o nome da ANP para Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mesmo se
tratando de uma questão terminológica, a importância dessa alte-
ração não pode ser menosprezada, visto que simboliza a intenção
do Poder Público de priorizar também essa matriz energética.
Com isso, evidenciou-se que a agência reguladora respon-
sável pela indústria do petróleo passou a regular também as
atividades econômicas relacionadas ao biodiesel e aos biocombus-
tíveis de forma geral. A Lei n. 11.097/05 também mudou a Lei n.
9.847/99, que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas
ao abastecimento nacional de combustíveis e estabelece sanções
administrativas no caso de descumprimento das determinações
legais, fazendo com que a produção, a importação, a exportação, a
armazenagem, a estocagem, a distribuição, a revenda e a comer-
cialização de biodiesel também passassem a ser objeto do controle
público.
As infrações administrativas relacionadas ao biodiesel, e aos
biocombustíveis de forma geral, passaram a ser punidas com as
sanções administrativas previstas na Lei n. 9.847/97, as quais
só podem ser aplicadas pelo setor de fiscalização da ANP. Em
vista disso, as ínfimas penalidades impostas pelo Ministério da

354
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) deixaram de ser
aplicadas à indústria dos biocombustíveis, que é classificada pelo
inciso XVIII do art. 6º da Lei n. 9.478/97 como o “conjunto de
atividades econômicas relacionadas com produção, importação,
exportação, transferência, transporte, armazenagem, comerciali-
zação, distribuição, avaliação de conformidade e certificação de
qualidade de biocombustíveis“, prevalecendo as daquela lei:
Art. 2º. Os infratores das disposições desta
Lei e demais normas pertinentes ao exercício
de atividades relativas à indústria do petróleo,
à indústria de biocombustíveis, ao abasteci-
mento nacional de combustíveis, ao Sistema
Nacional de Estoques de Combustíveis e ao
Plano Anual de Estoques Estratégicos de
Combustíveis ficarão sujeitos às seguintes
sanções administrativas, sem prejuízo das de
natureza civil e penal cabíveis:
I - multa;
II - apreensão de bens e produtos;
III - perdimento de produtos apreendidos;
IV - cancelamento do registro do produto
junto à ANP;
V - suspensão de fornecimento de produtos;
VI - suspensão temporária, total ou parcial,
de funcionamento de estabelecimento ou
instalação;
VII - cancelamento de registro de estabeleci-
mento ou instalação;
VIII - revogação de autorização para o exercí-
cio de atividade.
Parágrafo único. As sanções previstas nesta Lei
poderão ser aplicadas cumulativamente.
Art. 3º. A pena de multa será aplicada na ocor-
rência das infrações e nos limites seguintes:

355
I - exercer atividade relativa à indústria do
petróleo, à indústria de biocombustíveis, ao
abastecimento nacional de combustíveis, ao
Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis
e ao Plano Anual de Estoques Estratégicos de
Combustíveis, sem prévio registro ou autoriza-
ção exigidos na legislação aplicável:
Multa - de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais)
a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais);
II - importar, exportar ou comercializar
petróleo, gás natural, seus derivados e bio-
combustíveis em quantidade ou especificação
diversa da autorizada, bem como dar ao pro-
duto destinação não permitida ou diversa da
autorizada, na forma prevista na legislação
aplicável:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
5.000.000,00 (cinco milhões de reais);
III - inobservar preços fixados na legisla-
ção aplicável para a venda de petróleo, seus
derivados básicos e produtos, gás natural e
condensado, e álcool etílico combustível:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
1.000.000,00 (um milhão de reais);
IV - deixar de registrar ou escriturar livros e
outros documentos de acordo com a legisla-
ção aplicável ou não apresentá-los quando
solicitados:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
10.000,00 (dez mil reais);
V - prestar declarações ou informações inve-
rídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular
ou alterar registros e escrituração de livros e
outros documentos exigidos na legislação
aplicável:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
1.000.000,00 (um milhão de reais);

356
VI - não apresentar, na forma e no prazo
estabelecidos na legislação aplicável ou, na
sua ausência, no prazo de 48 (quarenta e
oito) horas, os documentos comprobatórios
de produção, importação, exportação, refino,
beneficiamento, tratamento, processamento,
transporte, transferência, armazenagem, esto-
cagem, distribuição, revenda, destinação e
comercialização de petróleo, gás natural, seus
derivados e biocombustíveis:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
1.000.000,00 (um milhão de reais);
VII - prestar declarações ou informações inve-
rídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular
ou alterar registros e escrituração de livros e
outros documentos exigidos na legislação apli-
cável, para o fim de receber indevidamente
valores a título de benefício fiscal ou tributá-
rio, subsídio, ressarcimento de frete, despesas
de transferência, estocagem e comercialização:
Multa - de R$ 500.000,00 (quinhentos mil
reais) a R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de
reais);
VIII - deixar de atender às normas de segu-
rança previstas para o comércio ou estocagem
de combustíveis, colocando em perigo direto e
iminente a vida, a integridade física ou a saúde,
o patrimônio público ou privado, a ordem
pública ou o regular abastecimento nacional
de combustíveis:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
1.000.000,00 (um milhão de reais);
IX - construir ou operar instalações e equipa-
mentos necessários ao exercício das atividades
abrangidas por esta Lei em desacordo com a
legislação aplicável:

357
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
2.000.000,00 (dois milhões de reais);
X - sonegar produtos:
Multa - de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais)
a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais);
XI - importar, exportar e comercializar
petróleo, gás natural, seus derivados e biocom-
bustíveis fora de especificações técnicas, com
vícios de qualidade ou quantidade, inclusive
aqueles decorrentes da disparidade com as
indicações constantes do recipiente, da emba-
lagem ou rotulagem, que os tornem impróprios
ou inadequados ao consumo a que se destinam
ou lhes diminuam o valor:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
5.000.000,00 (cinco milhões de reais);
XII - deixar de comunicar informações para
cadastro ou alterações de informações já
cadastradas no órgão, alteração de razão social
ou nome de fantasia, e endereço, nas condições
estabelecidas:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
10.000,00 (dez mil reais);
XIII - ocultar, violar ou inutilizar lacre, selo
ou sinal, empregado por ordem da fiscalização,
para identificar ou cerrar estabelecimento, ins-
talação, equipamento ou obra:
Multa - de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais)
a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais);
XIV - extraviar, remover, alterar ou vender
produto depositado em estabelecimento ou
instalação suspensa ou interditada nos termos
desta Lei:
Multa - de R$ 500.000,00 (quinhentos mil
reais) a R$ 2.000.000,00 (dois milhões de
reais);

358
XV - deixar de fornecer aos consumidores as
informações previstas na legislação aplicável
ou fornecê-las em desacordo com a referida
legislação:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
50.000,00 (cinqüenta mil reais);
XVI - deixar de cumprir Notificação para
apresentação de documentos ou atendimento
de determinações exigíveis na legislação
vigente, quando tal obrigação não se constituir,
por si só, em fato já definido como infração na
presente Lei:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
100.000,00 (cem mil reais);
XVII - deixar de comprovar orientação ou
entrega de manuais, documentos, formulários
e equipamentos necessários na forma da legis-
lação vigente:
Multa - de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$
500.000,00 (quinhentos mil reais);
XVIII - não dispor de equipamentos neces-
sários à verificação da qualidade, quantidade
estocada e comercializada dos produtos deri-
vados de petróleo, do gás natural e seus
derivados, e dos biocombustíveis:
Multa - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$
50.000,00 (cinqüenta mil reais).
XIX - não enviar, na forma e no prazo estabe-
lecidos na legislação aplicável, as informações
mensais sobre suas atividades:
Multa - de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$
1.000.000,00 (um milhão de reais).

É importante destacar que a Lei n. 9.478/97, mesmo após as


alterações da Lei. 11.097/05, não fazia alusão direta a nenhuma
outra modalidade de biocombustível que não fosse o biodiesel. A

359
ênfase dada pela referida lei ao biodiesel pode ser justificada pela
falta de pesquisa e de planejamento em relação aos demais tipos
de biocombustíveis, mas não em relação ao álcool, que é muito
mais antigo na matriz energética brasileira do que o biodiesel ou
do que qualquer outra espécie de biocombustível.
Com as referidas mudanças, o biodiesel passou a ser mais
citado naquela lei do que o próprio biocombustível, o que é no
mínimo contraditório, posto que este é o gênero do qual aquele
é espécie. Na verdade, esse quadro só foi modificado com a
Lei n. 12.490/2011, que introduziu inúmeras referências aos
biocombustíveis.
Provavelmente o maior destaque da Lei n. 11.097/05, ao
alterar a Lei n. 9.478/97, foi o estabelecimento no caput do seu
art. 2º de um percentual obrigatório de adição mínima de 5%
de biodiesel ao óleo diesel disponibilizado ao consumidor final
em qualquer parte do território nacional. O prazo para aplica-
ção desse percentual foi de oito anos após a publicação dessa lei,
embora a partir de três anos já se devesse utilizar um percentual
mínimo de 2%, conforme determinou o § 1º do mencionado dis-
positivo. É claro que essa obrigação foi certamente a medida mais
concreta para a disseminação do biodiesel na matriz energética
brasileira.
Ocorre que desde o dia 1º de janeiro de 2010 o óleo diesel
nacional já contém 5% de biodiesel, em obediência à Resolução
n. 6/2009 do CNPE, de forma que a meta foi atingida bem antes
do prazo legal, o que corrobora o sucesso da PNPB. O Brasil é
realmente um dos líderes mundiais no fabrico e no consumo de
biodiesel, tendo em 2010 alcançado a produção de 2,4 bilhões de
litros e a capacidade instalada de 5,8 bilhões de litros155. Prova

155 Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP. Biodiesel


– introdução. Disponível em: http://www.anp.gov.br/?pg=60468&m=&-
t1=&t2=&t3=&t4=&ar=&ps=&cachebust=1380352819981. Acesso em:
28.jul.2013.

360
disso é que o percentual está para ser aumentado a qualquer
momento para 6 ou 7%, com expectativa de chegar a 20% em
2020. A estimativa do MAPA é que até 2035 o país produza um
volume de cerca de 50 bilhões de litros de biodiesel por ano apenas
para o mercado interno156, o que implica dizer que as expectativas
do Governo Federal em relação são deveras alvissareiras.
Alguns meses após a edição da Medida Provisória n. 214/04,
foi editada a Medida Provisória n. 227/04, que foi convertida na
Lei n. 11.116/2005, a qual dispôs sobre o registro especial do pro-
dutor ou importador do biodiesel na Secretaria da Receita Federal
do Ministério da Fazenda e sobre a incidência da contribuição
para o PIS/PASEP e da COFINS sobre as receitas decorrentes
da venda desse produto. O objetivo disso foi fazer com que o bio-
diesel pudesse competir no mercado, já que sobre os combustíveis
brasileiros incidem pelo menos seis tipos de tributos diferentes, a
exemplo da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico
(CIDE), do Programa de Integração Social (PIS), da Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços
de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação
(ICMS).
Destarte, a intenção é diminuir a carga tributária da pro-
dução de biodiesel, que pode chegar à redução integral no caso
dos agricultores familiares das regiões Norte, Nordeste e semi-
árido enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf ) e detentores da concessão de
uso do “Selo combustível social”, que é o conjunto de medidas
específicas que visam incentivar a inclusão social da agricultura
nessa cadeia produtiva. Para regulamentar a matéria foi editado o

156 ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Despoluindo


incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustíveis e perspectivas para
uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador, 2007, p. 49.

361
Decreto n. 5.297/04, que dispõe sobre os coeficientes de redução
das alíquotas das contribuições mencionadas e sobre os termos e
as condições para a utilização das alíquotas diferenciadas:
Art. 2º Fica instituído o selo “Combustível
Social”, que será concedido ao produtor de
biodiesel que:
I - promover a inclusão social dos agricultores
familiares enquadrados no Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar -
PRONAF, que lhe forneçam matéria-prima; e
II - comprovar regularidade perante o Sistema
de Cadastramento Unificado de Fornecedores
- SICAF.
§ 1º Para promover a inclusão social dos agri-
cultores familiares, o produtor de biodiesel
deve:
I - adquirir de agricultor familiar, em parcela
não inferior a percentual a ser definido pelo
Ministério do Desenvolvimento Agrário,
matéria-prima para a produção de biodiesel;
II - celebrar contratos com os agriculto-
res familiares, especificando as condições
comerciais que garantam renda e prazos
compatíveis com a atividade, conforme requi-
sitos a serem estabelecidos pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário; e
III - assegurar assistência e capacitação técnica
aos agricultores familiares.
§ 2º O percentual de que trata o inciso I do
§ 1º:
I - poderá ser diferenciado por região; e
II - deverá ser estipulado em relação às aqui-
sições anuais de matéria-prima efetuadas pelo
produtor de biodiesel.

362
§ 3º O selo “Combustível Social” poderá, com
relação ao produtor de biodiesel:
I - conferir direito a benefícios de políticas
públicas específicas voltadas para promover
a produção de combustíveis renováveis com
inclusão social e desenvolvimento regional; e
II - ser utilizado para fins de promoção comer-
cial de sua produção.
Art. 4º Os coeficientes de redução diferencia-
dos da Contribuição para o PIS/PASEP e da
COFINS, previstos no § 1º do art. 5º da Lei n.
11.116, de 2005, ficam fixados em:
I - 0,8129, para o biodiesel fabricado a partir
de mamona ou fruto, caroço ou amêndoa de
palma produzidos nas regiões norte e nordeste
e no semiárido; e II - 0,9135, para o biodiesel
fabricado a partir de matérias-primas adqui-
ridas de agricultor familiar enquadrado no
PRONAF;
III - um, para o biodiesel fabricado a partir de
matérias-primas produzidas nas regiões norte,
nordeste e no semi-árido, adquiridas de agri-
cultor familiar enquadrado no PRONAF.
§ 1º Com a utilização dos coeficientes deter-
minados nos incisos I, II e III do caput deste
artigo, as alíquotas da Contribuição para o
PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre a
receita bruta auferida pelo produtor, na venda
de biodiesel, ficam reduzidas para:
I - R$ 22,48 (vinte e dois reais e quarenta e
oito centavos) e R$ 103,51 (cento e três reais
e cinquenta e um centavos), respectivamente,
por metro cúbico de biodiesel fabricado a par-
tir de mamona ou fruto, caroço ou amêndoa de
palma produzidos nas regiões norte e nordeste
e no semiárido; II - R$ 10,39 (dez reais e trinta
e nove centavos) e R$ 47,85 (quarenta e sete

363
reais e oitenta e cinco centavos), respectiva-
mente, por metro cúbico de biodiesel fabricado
a partir de matérias-primas adquiridas de agri-
cultor familiar enquadrado no PRONAF; e
III - R$ 0,00 (zero), por metro cúbico de
biodiesel fabricado a partir de matérias-pri-
mas produzidas nas regiões norte, nordeste e
semi-árido, adquiridas de agricultor familiar
enquadrado no PRONAF.
§ 2º O produtor de biodiesel, para utilização
do coeficiente de redução diferenciado de que
tratam os incisos II e III do § 1o deste artigo,
deve ser detentor, em situação regular, da con-
cessão de uso do selo “Combustível Social” de
que trata o art. 2º deste Decreto.
§ 3º No caso de aquisição de matérias-primas
que ensejem a aplicação de alíquotas diferen-
tes para a receita bruta decorrente da venda de
biodiesel, as alíquotas de que trata o § 1º deste
artigo devem ser aplicadas proporcionalmente
ao custo de aquisição das matérias-primas uti-
lizadas no período.
§ 4º Para os efeitos do § 3º deste artigo, no
caso de produção própria de matéria-prima,
esta deve ser valorada ao preço médio de aqui-
sição de matéria-prima de terceiros no período
de apuração.
§ 5º As alíquotas deste artigo não se aplicam
às receitas decorrentes da venda de biodiesel
importado.

Além da desoneração tributária, o “Selo combustível social” é


pré-requisito para a concorrência em leilões de compra de biodie-
sel da ANP e para a obtenção de melhores linhas de financiamento
junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e a
outras instituições financeiras por parte de empresas ou projetos

364
de produção de biodiesel157. No entanto, para obter tais benesses
é preciso adquirir percentuais mínimos de matéria prima oriunda
da agricultura familiar, assumir compromisso de adquirir produ-
ção com preços previamente determinados e cumprir obrigações
de prestações de serviço a exemplo da assistência técnica aos
agricultores158.
Isso implica dizer que se deve seguir o percentual mínimo
de aquisição de matéria-prima de agricultores familiares de
acordo com a região em questão, de forma que a PNPB procura
viabilizar a redução das desigualdades regionais e sociais, prin-
cípio da ordem econômica previsto no inciso VII do art. 170 da
Constituição da República. A matéria também é regulamentada
por meio de Instruções Normativas do MDA, a exemplo das de
n. 1/2005, n. 2/2005, n. 1/2009 e n.1/2011, que estabelecem a
possibilidade de os agricultores familiares participarem da cadeia
produtiva como sócios das empresas ou por meio de associações
ou cooperativas.
Nada impede que “Selo combustível social” seja utilizado
com finalidades ambientais, diminuindo ou proibindo a destina-
ção de benefícios às regiões que se pretende proteger, a exemplo
de determinadas áreas do bioma amazônico ou de partes da caa-
tinga e do cerrado, pois o mesmo instrumento pode servir para
estimular ou desestimular essa indústria. É claro que isso não
constituiria uma proibição, a qual só poderia ser tomada por meio
do adequado zoneamento agroambiental, que consiste na medida
administrativa destinada a organizar o uso e a ocupação do solo

157 NODARI, Rubens Onofre. Sobre os biocombustíveis: impactos, benefícios


e alternativas. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato.
Biocombustíveis: fonte de energia sustentável? Considerações jurídicas, técnicas e éti-
cas. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57.
158 ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Despoluindo
incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustíveis e perspectivas para
uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador, 2007, p. 46.

365
levando em consideração a vocação natural do lugar159. O Decreto
n. 4.297/2002 regulamenta o inciso II do art. 9º da Lei n. 6.938/81
e estabelece critérios para o Zoneamento Ecológico-Econômico,
cujo objetivo é ”organizar, de forma vinculada, as decisões dos
agentes públicos e privados quanto a planos, programas, projetos
e atividades que, direta ou indiretamente, utilizem recursos natu-
rais, assegurando a plena manutenção do capital e dos serviços
ambientais dos ecossistemas”.
De fato, essa lei é avançada no que pertine às questões eco-
nômica e social, mormente se comparada ao arcabouço jurídico do
álcool – biocombustível de rendimento energético melhor160, mas
cujo sistema monocultural não permite a inserção dos pequenos
produtores. A despeito disso, a problemática ambiental deveria
ter sido melhor observada, pois deveria haver um número maior
de dispositivos legais mais efetivos. Cuida-se de uma contradição
inaceitável, uma vez que a comunidade internacional tem alertado
sobre os impactos ambientais negativos do biodiesel e dos bio-
combustíveis de maneira geral161. É preciso um cuidado especial
com a monocultura, com o avanço sobre os biomas amazônico e
cerrado e com os efeitos sobre a agricultura familiar e o plantio de
alimentos162, o que deve ser objeto de atenção do licenciamento
ambiental163.

159 MORAES, Rodrigo Jorge. Setor sucroalcooleiro: regime jurídico ambiental das usi-
nas de açúcar e álcool. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 85-86.
160 SANTOS, Marisa Medeiros. A tutela jurídica da cana-de-açúcar como biocom-
bustível no direito ambiental brasileiro. São Paulo: Fiúza, 2013, p. 141.
161 SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual de direito ambiental. 7. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 320.
162 ASSIS, Wendell Ficher Teixeira; ZUCARELLI, Marcos Cristiano. Despoluindo
incertezas: impactos territoriais da expansão de agrocombustíveis e perspectivas para
uma produção sustentável. Belo Horizonte: O Lutador, 2007, p. 55.
163 FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 4. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2013, p. 41-45.

366
Se os benefícios ecológicos trazidos pelo biodiesel são evi-
dentes, isso não significa que os seus impactos ambientais devam
ser ignorados pelo Poder Público. Com efeito, é sintomático que
nem a ANP nem o CONAMA tenha editado uma norma mais
específica estabelecendo os padrões de qualidade ambiental ou o
regime de licenciamento ambiental do biodiesel. O problema é
que, diante de um caso concreto, os órgãos ambientais poderão se
basear em normas ou em padrões de qualidade ambiental relacio-
nados às outras matrizes energéticas existentes no país ou mesmo
à agricultura, o que pode causar prejuízos ao meio ambiente e à
qualidade de vida da coletividade. Em outras palavras, apesar de o
biodiesel só ter ganho evidência por conta de sua dimensão eco-
lógica, o seu arcabouço jurídico priorizou os aspectos econômico
e social em detrimento do ambiental.

4 O biodiesel na legislação estadual

Em diversas unidades federativas brasileiras, instituiu-se


por lei ou por decreto uma política ou programa com o intuito
de estimular a pesquisa e a produção de biodiesel. Dessa forma,
são estabelecidos genericamente os objetivos nas áreas de ciên-
cia e tecnologia, desenvolvimento econômico, agricultura, meio
ambiente, energia, receita tributária e transportes, bem como o
comitê ou conselho gestor responsável pelo acompanhamento
dessas ações.
Em regra, também são previstos os convênios com insti-
tuições oficiais de crédito, a exemplo do Banco do Brasil, e com
instituições de pesquisa, como a Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária – EMBRAPA. Trata-se, em essência, de tentati-
vas de estadualização do PNPB, até porque possuem as mesmas
diretrizes de desenvolvimento econômico, inclusão social e pro-
teção do meio ambiente. Entretanto, como na maioria dos casos
não existem instrumentos efetivos para incentivar o biodiesel, a

367
exemplo de linhas de crédito realmente atrativas ou de vinculação
orçamentária significativa, é possível dizer que em vários casos
essas normas são meras declarações de vontade.
Os demais tipos de biocombustíveis foram também prati-
camente ignorados pelas legislações estaduais, com exceção de
uma ou outra norma ou dispositivo legal normalmente genérico.
Mesmo o álcool combustível acaba sendo tratado apenas sob o
aspecto tributário, por meio de incentivos fiscais.
É o caso do Estado de Alagoas, que criou o Programa do
Biodiesel por meio do Decreto n. 3.261/06 com o objetivo de
fomentar a pesquisa e a produção de biodiesel. Segundo o art. 9°
do decreto citado, as despesas ficarão a cargo da disponibilidade
orçamentária das instituições públicas ou privadas envolvidas.
Na Bahia o Decreto n. 10.650/07 criou o Programa Estadual
de Produção de Bioenergia e criou uma comissão executiva
responsável pela sua gestão. Não existe previsão de linhas de
financiamento ou de fontes orçamentárias.
Em Goiás o Decreto n. 6.085/05 instituiu o Programa
Goiano de Biodiesel e a Lei n. 15.435/05 criou o Fundo de
Incentivo ao Biodiesel – FUNBIODIESEL, com o intuito de
incentivar a pesquisa, a inovação e o desenvolvimento tecnoló-
gico em todas as etapas da cadeia produtiva do biodiesel. O fundo
recebe contribuições do percentual de até 3% sobre o valor do
financiamento do crédito especial para investimento concedido
para empreendimentos relacionados à produção do biodiesel, do
percentual de até 20% a incidir sobre o montante da diferença
entre o valor do ICMS calculado com a aplicação da tributação
integral e o calculado com a utilização de benefício ou incentivo
fiscal relativo ao biodiesel, de financiamentos nacionais ou inter-
nacionais de projetos específicos de pesquisas e desenvolvimento
e de recursos orçamentários, entre outras fontes. É uma medida
interessante, porque nenhuma política pública pode ser pautada
apenas em declarações de vontade.

368
No Mato Grosso o Decreto n. 8.794/08 regulamentou a Lei
n. 8.794/08, que institui a Política Estadual de Apoio à Produção
e à Utilização do Biodiesel, de óleos vegetais e de gordura animal.
São destinados recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Mato Grosso, afora as linhas de crédito já existentes,
procurando também inserir a agricultura familiar. Nas operações
feitas com biodiesel-100 foi estabelecida a carga tributária de 7%,
ao passo que nas operações realizadas a carga tributária final será
de 3%, limitadas a 30% da produção do estabelecimento indus-
trial. Contudo, a soja, o caroço de algodão, o sebo e a gordura
animal estão excluídos desse benefício.
O Mato Grosso do Sul passou a ter um programa oficial de
produção de biodiesel com a Lei n. 3.419/07, que procura articu-
lar a atuação do Estado, dos Municípios e da iniciativa privada. O
Poder Executivo Estadual ficou encarregado de delimitar as áreas
propícias ao plantio de oleaginosas, e de inserir os assentamentos
rurais nessa política. No § 3º do art. 7°, existe a determinação de
que os veículos movidos a diesel da frota das entidades públicas
estadual e municipais sejam abastecidas com biodiesel, na propor-
ção de 50% da produção auferida para cada ente. A lei também
prevê o apoio à reciclagem de matérias graxas de origens animal e
vegetal na produção de biocombustíveis e seus derivados.
Em Minas Gerais a Lei n. 15.976/06 instituiu a Política
Estadual de Apoio à Produção e à Utilização do Biodiesel e
de óleos vegetais, tendo sido regulamentada pelo Decreto n.
44.345/06, que criou o Conselho Gestor da Política Estadual do
Biodiesel e o Comitê Executivo da Política Estadual do Biodiesel.
Cabe ao Poder Executivo fazer um zoneamento ecológico-eco-
nômico nas diversas regiões do Estado para especificar a aptidão
para o cultivo de oleaginosas, o potencial para produção de cul-
turas de oleaginosas pela agricultura familiar e as zonas mais
adequadas à instalação de unidades industriais para produção
de biodiesel. O Poder Executivo também ficou encarregado de

369
destinar recursos ao financiamento de projetos de pesquisa e de
promover assistência técnica e extensão. Ficou determinado que o
Estado promoverá gradualmente a substituição do diesel mineral
pelo biodiesel na frota automotiva e nos motores estacionários a
diesel de sua propriedade, só que o prazo e a forma disso ainda
precisam ser regulamentados.
Na Paraíba a Lei n. 7.761/05 instituiu um programa de
biodiesel voltado especificamente para a cultura da mamona. O
art. 6° prevê que as unidades familiares enquadradas no critério
de agricultura familiar que cultivem a mamona com capacidade
de produção acima de 30 toneladas por ano deverão se unir por
meio de cooperativas, sob a orientação da Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Econômico. Nesse aspecto, a legislação parai-
bana chega a ser até mais avançada do que a federal, visto que dá
mais ênfase à organização coletiva dos pequenos produtores. É
pena que essa e outras medidas relevantes previstas, como a insta-
lação de usinas de beneficiamento de mamona, simplesmente não
foram implementadas.
No Paraná o Decreto n. 2.101/03 criou o Programa
Paranaense de Bioenergia – PR/BIOENERGIA, cujas ações
ficaram a cargo da Secretaria de Estado da Agricultura e do
Abastecimento e da Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior. Tal programa poderia ser mais avançado, prova
disso é que o Comitê Gestor de Bioenergia instituído no art. 3 º
é meramente consultivo.
Por meio do Decreto n. 37.927/05 o Rio de Janeiro criou
o RioBiodiesel, estabelecendo um programa de metas relativa-
mente detalhado e um comitê gestor sem poder deliberativo. Não
há também previsão de orçamento próprio.
Em São Paulo o Decreto n. 51.736/07 instituiu a Comissão
Especial de Bioenergia, ligada ao gabinete do Governador. O
objetivo principal da comissão é elaborar o Plano de Bioenergia,
uma espécie de plano estadual de metas voltado primordialmente

370
para o álcool combustível e o biodiesel, embora teoricamente con-
temple as demais formas de biocombustíveis.
Quanto à questão tributária, é sabido que aos Estados cabe
estimular a produção e uso de biocombustíveis por meio de alí-
quotas de incidência do Imposto sobre Operações Relativas à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal de Comunicações
(ICMS) mais favoráveis. Isso significa que na prática o mais
importante incentivo fiscal a esse tipo de combustível pode ser
dado pelos Estados, já que esse é o tributo com maior arrecadação
no país.
Nesse diapasão, o Conselho Nacional de Política Fazendária
(CONFAZ) expediu o Convênio ICMS n. 105/03 autorizando os
Estados de Alagoas, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba,
Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Sergipe e
Tocantins a conceder isenção do tributo em tela nas operações
internas com produtos vegetais destinados à produção de biodie-
sel. O álcool combustível não goza dos mesmos privilégios por já
representar uma fonte relevante de arrecadação, ao contrário do
que ocorre com o biodiesel e os demais biocombustíveis. É pos-
sível que o biodiesel seja estimulado apenas por não se constituir
ainda uma base econômica de incidência relevante.
De uma maneira geral, as legislações estaduais praticamente
não dispõem sobre os demais tipos de biocombustíveis, a não ser
o álcool e o biodiesel. Por fim, importa dizer que os Estados pre-
cisam criar mais mecanismos de incentivo ao biodiesel, bem como
fazer com que os mecanismos existentes tenham mais efetividade.

5 Considerações finais

Ao alterar a Lei n. 9.478/97, a Lei n. 11.116/05 estabele-


ceu um marco jurídico específico para a produção e importação
de biodiesel, ainda que em determinados pontos faça referência

371
aos biocombustíveis de uma forma geral. Essa lei fez com que a
cadeia de produção do biodiesel, e dos biocombustíveis de forma
geral, passasse a ser regulada, e, consequentemente, fiscalizada e
autuada, pela ANP, cujas sanções administrativas são muito mais
efetivas do que as anteriormente aplicadas pelo MAPA.
Provavelmente o maior avanço foi o estabelecimento de um
percentual obrigatório de adição mínima de 5% de biodiesel ao
óleo diesel no prazo de oito anos. Prova disso é que desde o dia
1º de janeiro de 2010 o óleo diesel nacional já contém 5% de
biodiesel, sendo o Brasil um dos líderes mundiais no fabrico e
no consumo de biodiesel, de maneira que o êxito do PNPB é
evidente.
Se os benefícios ecológicos trazidos pelo biodiesel são evi-
dentes, isso não significa que os seus impactos ambientais devam
ser ignorados pelo Poder Público. Com efeito, é sintomático que
nem a ANP nem o CONAMA tenha editado uma norma mais
específica estabelecendo os padrões de qualidade ambiental ou o
regime de licenciamento ambiental do biodiesel. Em outras pala-
vras, apesar de o biodiesel só ter ganho evidência por conta de sua
dimensão ecológica, o seu arcabouço jurídico priorizou os aspec-
tos econômico e social em detrimento do ambiental.
Adotou-se um regime tributário específico para o biodiesel,
ao adotar um modelo de apuração e recolhimento da contribui-
ção do PIS/PASEP e da COFINS sobre a receita bruta auferida
pelo produtor ou importador. Para isso, a inclusão dos agriculto-
res familiares e a priorização das regiões mais pobres do país, a
exemplo do semiárido nordestino, é fundamental. Para isso foi
instituído o “Selo combustível social”, que é pré-requisito para
concorrer em leilões de biodiesel da ANP e para a obtenção de
melhores linhas de financiamento junto ao BNDES e a outras
instituições financeiras.
A falta de organização sindical dos agricultores é um pro-
blema grave, porque as políticas públicas são elaboradas e

372
executadas sem a presença da representação coletiva obreira, de
forma que a participação social deixa a desejar. O Poder Público
deveria incentivar mais efetivamente a criação de cooperativas
de agricultores da cadeia de biodiesel. Por outro lado, a ques-
tão ambiental também deveria ser incorporada à questão social,
mormente porque os pequenos agricultores dispõem de poucos
meios para combater a degradação. Seria interessante a criação de
um marco legal para os biocombustíveis em geral, que incluísse
também o álcool, que abordasse a temática de forma mais apro-
fundada e holística.
Embora já esteja incorporado à matriz energética brasileira,
o fato é que a produção e o uso do biodiesel ainda estão em fase
inicial se comparados às expectativas existentes em torno do
assunto. Os incentivos fiscais em âmbito estadual são tímidos, e
muitas vezes tais políticas se limitam a criar um programa ou uma
política e a instituir um comitê ou conselho gestor. É importante
destacar que os grandes incentivos do Poder Público à produ-
ção de biodiesel são mesmo de ordem econômica e social, não
tendo sido a proteção ecológica definida como prioridade, pois
não foram criados dispositivos concretos para isso.

6 Referências

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SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 7. Ed. São


Paulo: Saraiva, 2009.

377
O SEMIÁRIDO SUSTENTÁVEL - UMA CONSTRUÇÃO
DISCURSIVA? REFLETINDO CONCEITOS E
NARRATIVAS SOBRE E PARA O SEMIÁRIDO
BRASILEIRO

Cristian josé simões costa


Glauce Suely Jácome da Silva
Rozeane Albuquerque Lima

“...E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina”
(MELO NETO, 2000, p. 80).

Introdução

I
niciamos este texto refletindo sobre a força da resiliência nas
últimas páginas do texto do poema de João Cabral de Melo
Neto: Morte e Vida Severina. Aos que conhecem e sabem e

379
intensidade do texto, fica o convite para lermos melhor a men-
sagem das últimas estrofes, sobre a capacidade que temos de nos
reconstruirmos, sobre a resiliência, que neste caso se refere ao ser
humano, mas também se refere ao ambiente semiárido, objeto
de estudo do autor (e também nosso nesse texto). Aos que não
conhecem, sintam-se provocados a uma leitura impactante que
pode mudar o seu olhar e o seu pensar sobre o ser humano e o
ambiente semiárido no Brasil.
Caro leitor, ao longo destas próximas páginas iremos dialo-
gar um pouco sobre a relação do ser humano para com a natureza
e também sobre o discurso da sustentabilidade, sobre como ele
é recepcionado pelo Brasil e notadamente pelo Nordeste brasi-
leiro, como as palavras e conceitos se deslocam adquirindo novos
sentidos e significados e sobre como este discurso e estes desloca-
mentos de sentidos podem nos afetar no cotidiano. Convidamos
você a embarcar conosco neste passeio que se anuncia interdisci-
plinar e pretende contribuir para o debate que pensa alternativas
para o que hoje se nomeia Semiárido Brasileiro.
Vamos iniciar então? Que tal uma viagem para um passado
bem remoto da humanidade? Vamos ao Neolítico...
Pensar a história do ser humano no planeta nos remete a tam-
bém pensar a história da exploração dos recursos naturais em prol
do bem estar da espécie, afinal, desde a sua sedentarização, ainda
no período Neolítico, o ser humano intensificou as atividades
de agricultura e pecuária e começou a acumular resíduos sólidos
modificando a paisagem em sua volta. Como afirmou Schama: “A
agricultura intensiva possibilitou todo tipo de males modernos.
Rasgou a terra para alimentar populações cujas demandas (por
necessidade ou por luxo) provocaram mais inovações tecnológicas
que, por sua vez, ao exaurir os recursos naturais, impulsionaram
mais e mais o ciclo exasperado de exploração ao longo de toda a
história do Ocidente” (1996, p. 23-24).

380
Agora, vamos reduzir a escala e nos aproximar um pouco
mais da nossa realidade... Em um recorte mais próximo, pode-
mos pensar a primeira atitude do europeu ao chegar às terras que
hoje concebemos como Brasil. A derrubada de uma árvore para
com ela se fabricar a cruz que serviria de apoio para a celebração
da primeira missa tem um duplo aspecto simbólico: tanto há um
simbolismo religioso que remete à imposição de uma crença sobre
as demais aqui já existentes (que não é o foco do texto aqui pro-
posto), quanto remete ao simbolismo de exploração dos recursos
naturais da terra “descoberta”.

O Nordeste e o Semiárido- a construção de um espaço

Meu Deus, meu Deus


Setembro passou
Outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós
(Meu Deus, meu Deus)
Assim fala o pobre
Do seco nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
(ASSARÉ, 1978, p. 89)

O Brasil, agora recortando um pouco mais, o que hoje


concebemos como Nordeste brasileiro foi palco, dentre outras
degradações ambientais, da derrubada da Mata Atlântica para a
introdução da monocultura da cana-de-açúcar (DEAN, 1996).
Enfatizando o aspecto econômico o que hoje se conhece como
Nordeste brasileiro (hoje porque, de acordo com Albuquerque
Júnior (2011), o Nordeste enquanto região foi concebido depois
da década de 1910, antes tudo isso era conhecido como o Norte
do Brasil) foi e ainda é descrito por livros de várias áreas do saber
como uma região próspera até o século XIX, quando há uma crise

381
mundial que afeta o comércio da cana de açúcar, principal produto
que Portugal explorava na colônia que implantou neste espaço.
Ao longo do século XIX, o Nordeste brasileiro foi palco da
falência de muitos engenhos, da interiorização (pois a massa da
população se encontrava na faixa litorânea, que oferecia as con-
dições propícias para o cultivo da cana de açúcar, expulsando os
indígenas e “forasteiros” para os sertões) e da mudança na cons-
trução da sua imagem em um cenário nacional.
Abrimos aqui um parêntese para pensar na proposta de
Saussure (1995) que decompôs o signo em significante e signifi-
cado, sendo o primeiro, a palavra, algo mais estável e o segundo, o
significado algo móvel, mutável. Também Koselleck (2006) alerta
para a possibilidade de historicizar os conceitos e para os des-
locamentos que os significados das palavras sofrem ao longo do
tempo-espaço.
Dito isto, pensemos os sertões e os deslocamentos do seu
significado:
O sertão já era um conceito trabalhado no
Brasil colonial. Nesta época ele indicava o
lugar do nada, do medo, do desconhecido; o
lugar em que o português tinha que sair da sua
zona de conforto e conhecimento, localizada
no litoral brasileiro de então; o lugar para onde
as comunidades indígenas foram expelidas
quando tiveram que desocupar a faixa litorâ-
nea, hoje conhecida como Mata Atlântica ou
Zona da Mata, para dar lugar à monocultura
da cana de açúcar; estas comunidades foram,
de uma forma geral, invisibilizadas por histo-
riadores até a década de 1980.
Ao longo dos séculos XIX e XX houve um
deslocamento no significado do sertão. A lite-
ratura, a pintura e várias outras manifestações
culturais e também políticas, o constroem
como o lugar do “ser tão” especial, de um ser

382
humano que tinha características específicas,
uma identidade que perpassava não apenas o
fenótipo desenhado para lidar com as adver-
sidades climáticas de uma região com um
índice pluviométrico irregular, mas também
uma construção psicológica que o dizia um
ser forte, bravo, de poucas palavras (até por-
que não tinha um vocabulário muito extenso),
bronco, um ser que já não era mais o indígena
expulso do litoral, mas o mulato, fruto de uma
miscigenação que contemplava não apenas o
português, mas também os negros, no caso
do sertão, principalmente os que fugiam das
senzalas dos engenhos litorâneos, alguém que
“combinava” e se “integrava” de forma “har-
mônica” com o meio (um exemplo, dentre os
vários, desta construção é o livro de Graciliano
Ramos: Vidas secas. No romance o personagem
principal, Fabiano, é construído baseado no
vaqueiro nordestino alguém que tem um fenó-
tipo miscigenado entre os portugueses que no
Brasil chegaram e os grupos indígenas que
habitavam o interior do Nordeste, rude, forte
e corajoso (características importantes para se
adaptar à vida na Caatinga), mas ao mesmo
tempo, de poucas palavras, inseguro, que se
sente inferior a todos em sua volta (RAMOS,
Graciliano. Vidas secas. 23ª ed. São Paulo:
Martins, 1969). Meio que também era cons-
truído a partir das imagens do sertão em seu
período de estiagem e que unificava a região.
(LIMA, 2016, s/p).

Mas, caro leitor, porque, falando de Nordeste, começamos


falando de Mata Atlântica e depois de sertões? É perceptível a
mudança de paisagem do Nordeste brasileiro nos livros de his-
tória, de geografia, de geopolítica e em tantos outros ao longo
do tempo-espaço. Falar deste espaço até o século XIX era falar

383
de uma região próspera, rica, próxima da elite ocidental que a
construiu. Falar de Nordeste a partir do século XX significa falar
das secas que castigam os sertões (que também recebem várias
nomenclaturas ao longo do tempo-espaço e das intenções: sertões,
Caatinga, Semiárido, Polígono das Secas, entre outras). E porque
este Nordeste foi inventado? Sim, leitor, inventado. Mas inven-
tado aqui não tem o sentido do senso comum. Usando as palavras
de Albuquerque Júnior, o Nordeste foi inventado, tomando-se por
invenção o conceito do próprio autor:
Invenção não quer dizer que algo se originou do
nada, a invenção se dá a partir de alguma coisa,
não há nada inventado que não tenha pressu-
postos, que não tenha algo que o anteceda. A
palavra invenção tem esse sentido de ressaltar,
de remarcar que aquilo foi construído em um
dado momento, pelos homens, pelas relações
sociais, que foi construído no campo da cul-
tura, no campo do pensamento, que emergiu a
partir de ações humanas. (ALBUQUERQUE
JUNIOR, 2011).

É do próprio Albuquerque Júnior a afirmação de que o


Nordeste foi inventado a partir do momento em que as elites
deste espaço, falidas ou em decadência devido à crise mundial
no comércio da cana de açúcar, perceberam nas secas, fenô-
meno natural que sempre ocorreu na região, uma alternativa para
angariar recursos financeiros para a região, afinal, a seca ‘castiga,
provoca fome, sede, migração, miséria’, todos esses ‘motivos’ são
plausíveis de comoção popular e porque não destinar recursos
nacionais para mitigar este grave problema?
As imagens do Nordeste canavieiro, próspero, vivo, verde,
foram trocadas pelas imagens do chão esturricado, das carcaças
de gado morto, dos vários cactos da região, de uma população
estereotipada através do uso de chapéu de couro, de sandália de

384
sola, da magreza, da roupa surrada, da migração, do pouco grau de
instrução. Imagens reproduzidas pela mídia principalmente, mas
também pela literatura, pela pintura, pelo cinema, pela música e
por tantas outras manifestações artísticas e culturais.
Foi neste contexto que surgiram o DNOCS (Departamentos
Nacional de Obras Contra a Seca) e a SUDENE (Superintendência
de Desenvolvimento do Nordeste). As políticas públicas para a
região eram definidas tendo por norte o combate à seca e a toda a
miséria social, econômica e ambiental dela decorrentes.
Amigo leitor, este discurso hegemônico que criou este
Nordeste emergiu no começo do século XX e foi preponderante
até a década de 1980, quando, inicialmente, algumas Organizações
Não Governamentais (OnGs), que mais adiante comporiam a
Articulação do Semiárido e a Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (EMBRAPA), começaram a apresentar alternativas
outras que não a migração e o sofrimento: era possível conviver
com o Semiárido. Mais tarde surgem outras instituições que abra-
çam esta ideia, a exemplo da própria Articulação do Semiárido,
do Instituto Nacional do Semiárido e da Universidade Federal
Rural do Semiárido.
Aqui temos outro discurso se instalando. Se tivemos, durante
muito tempo, as obras contra a seca e a ênfase ao sertão, à Caatinga
e ao polígono das secas como norteadores de uma construção do
Nordeste, agora com a convivência com o semiárido, a evidência
maior é dada ao espaço enquanto uma região semiárida. O que
muda? Bem, leitor, você deve saber que a Caatinga é um bioma
exclusivo, único bioma inteiramente brasileiro. Ao pensarmos em
regiões áridas e semiáridas, o discurso se internacionaliza, per-
mite outras articulações, afinal a semiaridez não é exclusividade
do Brasil, ela existe em várias regiões do mundo. O Semiárido
insere a discussão sobre alternativas para a região em um cenário
internacional maior.

385
O discurso da convivência com o semiárido também inaugu-
rou políticas públicas bem diferentes das anteriores: O programa
um milhão de cisternas e tantos outros aqui se localizam. Mas
vale lembrar que o discurso da convivência não excluiu o discurso
das obras contra a seca. Eles existem paralelamente, se alternando,
se articulando quando necessário. E vale lembrar também, que o
Semiárido abrange uma região muito grande e diversa em vários
aspectos: culturais, econômicos, políticos, ambientais entre outros,
cujas alternativas também devem compreender e respeitar essa
diversidade. É muito pouco provável que alternativas para o semi-
árido brasileiro pautem grandes obras, ou soluções que possam
facilmente ser replicadas em muitos lugares.
Amigo leitor, falamos até então sobre um contexto histórico-
social, econômico político mais geral e, em seguida, afunilamos
para o Nordeste brasileiro, tratando um pouco da construção
imagético-discursiva desta região. Mas você deve estar pensando,
e o discurso da sustentabilidade, onde se localiza? Vejamos...
No momento vamos interromper um pouco a nossa narrativa
sobre a região semiárida para compreender melhor a emergência
do discurso da sustentabilidade e a sua influência na legislação
ambiental.

A emergência do discurso da sustentabilidade


“... embora a história do ambiente seja uma das
mais originais e instigantes que estão sendo
escritas hoje, ela, inevitavelmente, expõe o
mesmo quadro desanimador: terras tomadas,
exploradas, exauridas, culturas tradicionais
que sempre viveram numa sagrada relação de
reverencia com o solo e foram desalojadas pelo
individualista displicente, pelo agressor capita-
lista...” (SCHAMA, 1996, p. 23)

386
Inicialmente cabe lembrar que, apesar de ser possível refle-
tirmos e analisarmos os contextos ambientais anteriores a 1960,
o debate da sustentabilidade não havia se instaurado até então. A
preocupação com a finitude de recursos naturais e consequente
capacidade de carga do planeta, se inicia a partir do momento
em que a substituição da produção manufatureira pela industrial
avança principalmente no mundo Ocidental, consumindo cada
vez mais recursos naturais e estimulando o consumo de produtos
industrializados.
Em nível internacional, o maio de 1968 na Europa estimulou
o crescimento do movimento ambientalista, também fomentado
pelo apelo a não poluição e ao não consumo feito pelo movi-
mento hippie estadunidense. A consolidação deste movimento
e a criação de grandes organizações não governamentais, dentre
elas o Greenpeace, e dos Partidos Verdes, são exemplos de como
esta sensibilidade e preocupação com a preservação da natureza
emergiu nas décadas seguintes. Conferências, tratados internacio-
nais e uma ampla legislação começou a ser tecida sobre o tema.
Estas, ao serem recepcionadas pelos países, inspiraram legislações
mais específicas para atender à realidade local e geraram políticas
e ações públicas e privadas. Também vindo desse recorte tem-
poral, mas em outro espaço, que influenciou o que temos posto
na seara ambiental é o discurso proposto pelo movimento hippie
nos Estados Unidos. O faça você mesmo proposto pelo movi-
mento era um claro recado contra o consumo em massa que
ocorria no país, estimulado pelo capitalismo vigente. Junto com
o movimento do anticonsumo a proposta de vida era também de
proximidade com a natureza, de uma relação outra com esta que
não a de apenas explorar seus recursos. Os Hippies também fize-
ram denúncias sobre poluição do meio ambiente.
Mas, leitor, chamamos você novamente para um mergulho
no cenário interno: O crescimento vivido pelo Brasil à época do
que Thomas Skidmore (1988) chamou de milagre econômico
permitiu a emergência de problemas ambientais os mais diversos:

387
o aumento na frota de veículos demandou a abertura de mais vias,
o que acentuou o desmatamento, a canalização de rios e córre-
gos e a liberação de diversos poluentes na atmosfera, dentre os
quais o monóxido de carbono; o inchaço nas cidades, provocado
pelo êxodo rural, com o aumento da oferta de empregos na zona
urbana, alavancou um crescimento desordenado, sem infraes-
trutura adequada e a produção de resíduos; a demanda por mais
alimentos na cidade e o esvaziamento do campo impulsionou
o uso de agrotóxicos e de sementes geneticamente modificadas
nas lavouras com o argumento de aumento da produtividade; a
expansão da fronteira agropecuária no Centro-Oeste e no Norte
também foi fomentada em nome de uma maior produção, impul-
sionando o desmatamento da Floresta Amazônica. Este foi o
cenário ambiental vivenciado no país na década de 1970.
Foi neste cenário que, em 1972, a Organização das Nações
Unidas- ONU realizou a Primeira Conferência Mundial sobre
o Homem e o Meio Ambiente, conhecida como Conferência de
Estolcomo (Suécia), com a presença de 113 países, da qual o Brasil
é signatário. Ao final, foi produzido um documento: Os limites do
crescimento (1972) que, dentre outros temas, tratou do aumento
da população global, da exploração dos recursos naturais e do
aumento da poluição atmosférica. Após a Conferência, o Brasil
foi pressionado internacionalmente a fazer gestão ambiental inte-
grada. Foi como resposta a estas pressões que a Secretaria Especial
de Meio Ambiente – SEMA foi criada pelo Decreto nº 73.030,
de 30 de outubro de 1973. Vinculada ao Ministério do Interior,
ela estruturou o marco regulatório da área ambiental no país, com
destaque para a elaboração da Lei 6.938/81, que dispôs sobre a
Política Nacional de Meio Ambiente.
Antes da criação da SEMA já haviam algumas intituições que
se aproximavam do debate ambiental no Brasil. A Lei Delegada
nº 10, de 11 de outubro de 1962 criou a Superintendência de
Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, vinculada ao Ministério

388
da Agricultura, a quem competia gerir a pesca no Brasil através de
um Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (PNDP), por
ela elaborado, e da aplicação do Código de Pesca.
Outra instituição importante na seara ambiental nas décadas
de 1970 e 1980 foi o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal – IBDF, criado em 1967 pelo Decreto-Lei nº 289, de 28
de fevereiro de 1967 e vinculado ao Ministério da Agricultura. O
Instituto era encarregado, principalmente, de formular a política
florestal.
Por fim, o último órgão que dialogava com o tema ora
proposto era a Superintendência da Borracha – SUDHEVEA,
criada pela Lei nº 5.227, de 18 de janeiro de 1967, que dis-
pôs sobre a política econômica da borracha, juntamente com o
Conselho Nacional da Borracha, este com funções normativas e
a SUDHEVEA com atribuições executivas, para tratar da gestão
da exploração comercial da borracha no país.
A única destas instituições que não foi criada durante a
ditadura militar (1964-1985) foi a SUDEPE, no entanto, sua
atuação (1962-1989) foi maior durante este período. Os militares
fundamentavam seus projetos de governo na ideia de um desen-
volvimento que apoiasse o crescimento econômico pautado no
aumento do Produto Interno Bruto - PIB. Para eles os recur-
sos naturais eram fonte infinita e deveriam ser explorados no
sentido de enriquecer a nação. Até a participação do Brasil na
Conferência de Estolcomo, não era clara a preocupação com a
gestão destes recursos.
SUDEPE, IBDF, SUDHEVEA e SEMA se fundiram para
formar o IBAMA, criado pela Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de
1989, inicialmente vinculado ao Ministério do Interior, e que em
2014 completou 25 anos de existência. Na sua página na internet
o IBAMA atribuiu a sua criação às pressões sofridas pelo poder
público federal devido a vários acontecimentos das décadas de
1970 e 1980: as grandes obras de impactos ambientais, dentre

389
as quais a Transamazônica e a hidrelétrica de Itaipu (com o fim
da cachoeira Salto de Sete Quedas), a autorização para o uso do
agente laranja como desfolhante em Tucuruí, o acidente radioa-
tivo com o Césio 137 em Goiana, além de um alarmante índice de
desmatamento, caça e pesca predatória sem controle e crescentes
conflitos entre comunidades tradicionais e seringueiros que cul-
minaram com a morte de Chico Mendes1644.
Amigo leitor, foi o contexto da crise ambiental gerada por
um modelo econômico firmado na exploração descontrolada dos
recursos, assim como na apropriação dos bens naturais, que causa
desastres ambientais que exigiu que o Estado e a sociedade se vol-
tassem para a proteção do meio ambiente, considerando as atuais
e futuras gerações. Sem dúvidas, a Conferência de Estocolmo,
ocorrida em 1972, faz com que os estados nacionais de modo
geral, dentre eles o Brasil, passem a ter como pauta fundamen-
tal, a manutenção e preservação do meio ambiente, de modo que,
toda a perspectiva de desenvolvimento deve estar atrelada a esta
orientação.
Neste contexto, emerge o discurso da sustentabilidade, como
a (LEFF, 2006, p. 133) “expressão de uma lei-limite da natureza
diante da automatização da lei estrutural do valor”. O discurso da
sustentabilidade surgiu atrelado aos questionamentos feitos sobre
o conceito de desenvolvimento, geralmente medido pela renda per
capita e pelo PIB de cada país, sem considerar outros fatores tal
qual a distribuição de renda e a qualidade de vida da população.
A Organização das Nações Unidas estipulou então o Índice
de Desenvolvimento Humano (como uma alternativa diferente
do Produto Interno Bruto), baseados em fatores qualitativos de
um determinado país para melhor definir o que seria um desen-
volvimento sustentável (VEIGA, 2008).

164 Disponível em http://www.ibama.gov.br/supes-ma/historia acesso em


05/03/2014.

390
A sustentabilidade ecológica aparece assim
como um critério normativo para a reconstru-
ção da ordem econômica, como uma condição
para a sobrevivência humana e para um desen-
volvimento durável; problematiza as formas de
conhecimento, os valores sociais e as próprias
bases da produção, abrindo uma nova visão do
processo civilizatório da humanidade (LEFF,
2006, p. 133 e 134).

A partir desta orientação, são difundidas algumas estra-


tégias para o desenvolvimento sustentável, com indicativos de
novos estilos de vida para relação homem-natureza, assim como
novas formas de produção. Porém, essa estratégia foi se perdendo
(LEFF, 2006, p. 136) diante da “dificuldade de se flexibilizar as
instituições e os instrumentos de planificação para romper com
a lógica economista e internalizar uma ‘dimensão ambiental’ ao
processo de desenvolvimento”.
Em análise sobre o desenvolvimento sustentável, conside-
rando os estudos realizados por Sachs, Leff e Furtado, Chacon
(2007) entenderá que o processo de desenvolvimento para ser
considerado sustentável, deve pressupor ações que visem não ape-
nas o aspecto econômico, mas também uma distribuição social
justa dos resultados do progresso científico e tecnológico.
Para finalizar nosso debate sobre sustentabilidade, faz-se
indispensável sabermos que há uma tentativa de substituição
do termo. Lima, em 2014, faz referência a uma crítica feita por
Caporal na qual o mesmo aponta a tentativa de ‘esvaziamento’
do termo sustentabilidade em prol do termo economia verde.
Vejamos:
Sobre o conceito de desenvolvimento sus-
tentável Caporal (2013), referência nacional
em agroecologia, em artigo publicado no site
do Instituto Carbono Brasil, afirma que ele
não existe, que foi inventado por tecnocratas,

391
que desenvolvimento e sustentabilidade são
coisas relativas, não estáticas nem absolutas.
“Quando eu falo de sustentável, estou tomando
como referência algo que não é sustentável.
Quando eu evoco a palavra desenvolvimento
tomo como referência o subdesenvolvimento”
(CAPORAL, 2013).
Caporal faz uma crítica ao desenvolvimento
sustentável tal qual proposto pela Organização
das Nações Unidas, que tem por estratégia o
contínuo crescimento econômico como condi-
ção para resolver problemas socioambientais.
Ele lembra que o crescimento econômico não
é necessário em todas as sociedades. Seguindo
a sua crítica, Caporal afirma que o conceito de
desenvolvimento sustentável foi esvaziado “por
ter sido abandonada a ênfase original para a
solução das desigualdades sociais, chegando
à Rio+20 com uma noção absolutamente
mercantil. Lançou-se a noção de “economia
verde”, como se fosse possível um capitalismo
verde comandado pelo mercado (CAPORAL,
2013)1655. (LIMA, 2014, p.36-37).

Embora este debate não possa ser analisado a fundo neste


breve texto, o trouxemos, caro leitor, primeiro para registrar os
questionamentos ao termo sustentabilidade (para que não trans-
mitamos a ideia de que o desenvolvimento sustentável é um termo
consensual) e também para anunciar que este texto deverá ter um
desdobramento futuro, tentando pensar a aplicação do conceito e
do discurso da Economia Verde para o Semiárido Brasileiro. Por
hora, sigamos tentando compreender como o discurso da susten-
tabilidade pautou e fundamentou o debate jurídico ambiental no
Brasil.

165 Disponível em: http://www.institutocarbonobrasil.org.br/artigos/noti-


cia=735346. Acesso 22-05-2018

392
O pensamento jurídico ambiental e o papel do Estado
...Das nossas verdes florestas
Consumimos a madeira
Pra criar pasto ou fazer
Estante, mesa e cadeira,
Consumindo, consumindo
O homem vai destruindo
A floresta brasileira.
( MONTEIRO, 2012, p.17)

Neste sentido, o papel do Estado e, portanto, do direito será


imprescindível para a indução, criação e execução de políticas
públicas de desenvolvimento. Estas políticas devem ser pautadas
nas necessidades e possibilidades de cada região, com a partici-
pação da comunidade local desde o processo de discussão até a
avaliação, para que sejam efetivadas e consolidadas a partir da
ideia de pertencimento.
(…) qualquer política ou medida de
regulamentação que vise fortalecer o desenvol-
vimento sustentável só será efetiva se contar
com a legitimação da sociedade e esta só virá
por meio de um processo amplo e profundo de
conscientização e comprometimento do indi-
víduo com a coletividade. (CHACON, 2007,
p. 132)

Também na década de 1960, o pensamento mundial com


relação ao meio ambiente muda drasticamente, até então, ou a
regulação sobre os recursos naturais era inexistente ou possuía
caráter meramente desenvolvimentista. Herman Benjamim
(1999) aponta três fases na evolução história do pensamento
jurídico-ambiental: a fase desregrada, que seguirá até aproxima-
damente o início da segunda metade do século XX em que pouca
atenção foi dada à proteção ambiental; a fase fragmentária, em

393
que o legislador, agora preocupado com a crise ambiental que
ganhou espaço nos debates e nas ações a partir da década de
1960, imporá controle legal às atividades exploratórias; e a fase
holística, onde o meio ambiente passa a ser protegido de maneira
integral, como um sistema.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um marco por
estabelecer em seu artigo 225, o direito ao meio ambiente como
valor fundamental. Seguindo orientação internacional, em con-
texto de crise ecológica, restou a proteção integral e permanente
do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Como direito fundamental, tem-se a defesa do meio
ambiente não apenas como princípio da ordem econômica, mas
também com repercussão no princípio da dignidade humana,
como condição elementar para a melhoria na qualidade de vida1666
das pessoas.
Ocorre que a Lei Fundamental de 1988 atribuiu
ao meio ambiente uma configuração jurídica
diferenciada, ao classificá-lo como direito de
todos e bem de uso comum do povo e essen-
cial à sadia qualidade de vida, atribuindo a esse
bem um dimensionamento muito mais sig-
nificativo. Enquanto a mencionada definição
legal se atinha a um ponto de vista biológico,
físico ou químico, a nova ordem constitucional
trouxe o ser humano para o centro da ques-
tão ambiental, ao apontá-lo simultaneamente
como destinatário e implementador dessas

166 A Organização Mundial da Saúde-OMS (1996) define Qualidade de Vida


como as percepções individuais sobre sua posição de vida no contexto dos
sistemas de cultura e de valores em que vivem, e em relação às suas metas,
expectativas, padrões e preocupações. A Constituição Federal de 1988 em seu
artigo 225, assegura: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e pre-
servá- lo para as presentes e futuras gerações”.

394
determinações. Prova disso é que o capítulo
que trata do assunto na Constituição de 1988
está inserido no Título VIII, que dispõe sobre
a ordem social. Por se tratar de um direito fun-
damental da pessoa humana, é evidente que o
desiderato constitucional é que essa proteção
seja a mais ampla e efetiva possível, devendo
a conceituação desse bem ser também a mais
ampla. (FARIAS, 2017, s/p)

Neste sentido, é possível considerar que a Constituição


Federal sugere um novo modelo que, embora pautado pela livre
concorrência e livre iniciativa, portanto ainda com base na apro-
priação privada de bens, é preocupado com o meio ambiente
equilibrado como um valor, um objetivo, uma garantia para as
presentes e futuras gerações.
É também nesta lógica que as políticas públicas devem ser
coordenadas e compatíveis com estes fins, portanto, a Política
Nacional do Meio Ambiente devem pautar ações que valorizem o
respeito à vida, ao ambiente e que projetem um novo pensamento
a respeito das relações homem-natureza.
A partir da constatação de que o Direito é instrumento do
Estado para induzir ou promover o desenvolvimento e que o
Estado, segundo Gramsci (2002) será sempre o produto da cor-
relação de forças que atenda às conveniências de classes, na busca
do equilíbrio para manutenção do poder1677, as políticas públicas
se constituirão como resultado da convergência destes interesses.
Numa leitura pautada na perspectiva da ecologia polí-
tica que se configura como o espaço de estudo dos conflitos

167 Com a ideia de “Estado ampliado”, Gramsci compreende que o Estado é a


junção de duas esferas: a sociedade política ou o Estado coerção, formada por
mecanismos através dos quais a classe dominante controla a burocracia, por
meio de aparelhos repressivos ou coercitivos e a sociedade civil, formada por
organizações responsáveis pela elaboração e difusão de ideologias, onde se arti-
cula a correlação de forças para o exercício da hegemonia.

395
socioambientais gerados a partir da disputa pelo acesso aos bens
e serviços ambientais, isto é, em torno dos conflitos relacionados
ao uso e à apropriação dos recursos, deveremos considerar que
a crise ambiental, assumida criticamente a partir da década de
1960 seria o ponto de partida para o necessário debate sobre as
relações ser humano-natureza e para a exigência de novos padrões
de produção e consumo, com vistas à manutenção e preservação
dos recursos naturais, segurança ambiental, mas também para a
sustentação do sistema, vez que depende da natureza para sub-
sistência. Para Leff (2006, p. 217) “a questão ambiental emerge
de uma problemática econômica, social, política, ecológica, como
uma nova visão do mundo que transforma paradigmas do conhe-
cimento teórico e os saberes práticos”.
É com essa exigência, portanto, que os estados nacionais se
voltam para o meio ambiente, estabelecendo políticas que exigi-
rão a integração dos vários segmentos organizados da sociedade
para uma nova postura diante dos recursos naturais. Resta, como
bem constata Gramsci (2002), a necessidade de uma articulação
forte no sentido de reforçar a sociedade civil para a democratiza-
ção da sociedade e governança da questão ambiental, portanto, de
justiça ambiental.
A noção de “justiça ambiental” exprime um
movimento de ressignificação da questão
ambiental. Ela resulta de uma apropriação
singular da temática do meio ambiente por
dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente
envolvidas com a construção da justiça social.
Esse processo de ressignificação está associado
a uma reconstituição das arenas onde se dão
os embates sociais pela construção dos futuros
possíveis. E nessas arenas, a questão ambien-
tal se mostra cada vez mais central e vista
crescentemente como entrelaçada às tradicio-
nais questões sociais do emprego e da renda
(ACSELRAD, 2010, p. 108).

396
Assim, a justiça ambiental tanto pode ser um discurso gené-
rico constado em documentos legais, por exemplo, como pode
significar a efetiva adesão a um novo paradigma que legitime prá-
ticas institucionais, políticas governamentais, pesquisas científicas
e ações concretas articuladas entre as necessidades e possibilida-
des culturais de segmentos, regiões e espaços.

Voltando ao Semiárido
Cai a máscara, do antigo Semiárido
Foi, a farsa, desfeita. O show termina
Com a mesma plateia e nova luz
Outro show vai surgir. Abra a cortina
Vamos, nós, escrever a muitas mãos
Outra página da história Nordestina.
( PANELAS, SOUZA SILVA, s/d)

Amigo leitor, já aproximando-nos do fim desta breve análise


do cenário histórico, social, econômico e ambiental do Brasil com
destaque para a região semiárida do país, agradecemos a sua paci-
ência e seu interesse por chegar até aqui conosco. Vejamos nosso
percurso: primeiro tentamos compreender como se estabelece, ao
longo do tempo-espaço, a relação do ser humano com a natureza.
Logo em seguida nos debruçamos no cenário brasileiro, nota-
damente na região atualmente concebida como semiárido, para
saber como ela foi construída e a sua trajetória até então. Demos
um intervalo no debate sobre o semiárido para pensarmos as con-
dições de possibilidade que permitiram a emergência do discurso
da sustentabilidade, as críticas feitas a este e a forma como este
discurso pautou e fundamentou o pensamento jurídico ambiental.
Neste último item, vamos tentar compreender as aproximações
entre a sustentabilidade e o semiárido brasileiro guiando a nossa
narrativa com um foco interdisciplinar como, aliás, o próprio
termo sustentabilidade sugere, conforme visto anteriormente.

397
Pois bem, pautar a questão da sustentabilidade no semiárido
nos remete a pensar em algumas peculiaridades ambientais deste
espaço: o índice de aridez do solo, a possibilidade de estiagem
prolongada, o solo raso e rochoso, a salinização, o índice pluvio-
métrico abaixo de 800 mm ao ano, a presença de rebanho bovino
e caprino, a insegurança hídrica e alimentar dos espaços que com-
põem o semiárido, as áreas susceptíveis de desertificação, o uso e
acesso à água e à terra e, por fim, a diversidade de paisagem, de
povos, de culturas, de organizações sociais e de estruturas econô-
micas e políticas presentes no semiárido.
Encontramos no site do Ministério da Integração a seguinte
definição de semiárido:
O Semiárido Brasileiro é uma região caracte-
rizada pelo clima seco, com poucas chuvas e
elevada evapotranspiração. Estende-se por 1,03
milhão de km² (12% da área do País) e atual-
mente congrega uma população de 27 milhões
de pessoas (12% da população brasileira)
vivendo em 1.262 municípios de nove estados
da Federação. Em novembro de 2017, mais 73
municípios foram incluídos em decorrência da
seca prolongada.( http://www.integracao.gov.
br/semiarido-brasileiro________. Acesso em
24-05-2018).

Caro leitor, falamos, portanto, de doze por cento do terri-


tório nacional. Falamos também do semiárido mais populoso e
mais chuvoso do mundo. Falamos em 1262 cidades, já incluindo
as 73 inseridas recentemente por medida aprovada em 23 de
novembro de 2017 pelo Conselho Deliberativo (CONDEL) da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE),
presidido pelo ministro Helder Barbalho, quando houve uma
nova delimitação do semiárido brasileiro.

398
Falar, portanto, em sustentabilidade para uma área tão
extensa e com tantas peculiaridades nos remete ao fato de que
é preciso observar o histórico desta região, aprender com popu-
lações que aqui habitam há séculos, repeitando os limites de
carga do espaço: aprender com os ribeirinhos, as comunidades
indígenas, as quilombolas, as de agricultura familiar. Para além
de discussões pontuais ou de posicionamentos romantizados, é
necessário saber que para o Semiárido brasileiro foi criada uma
identidade muito forte. O nordestino é forjado junto com o nor-
deste brasileiro. Vejamos:
Junto com o Nordeste moldou-se o nordes-
tino, que em muito se assemelha ao sertanejo:
o cabra macho, rude em seu jeito de vestir, de
andar, de falar, sem acesso à educação formal,
rural, tradicional, arcaico, “adaptado” ao meio
em que vivia. Esta identidade regional foi ana-
lisada por Albuquerque Júnior e muitos outros
autores, dentre eles Maura Penna (1992) em
seu livro O que faz ser nordestino: identida-
des sociais, interesses e o “escândalo” Erundina.
Tanto quanto na construção da identidade
sertaneja, a fabricação da identidade nordes-
tina priorizou o discurso da miscigenação
como algo que homogeneizaria o “povo nor-
destino” como uma forma de se distanciar da
fragmentação que o respeito às várias comu-
nidades étnicas que habitam o espaço poderia
causar________. Nesta construção, fabricada
principalmente para angariar recursos e pro-
mover políticas públicas que beneficiassem a
elite regional, não se levou em consideração os
múltiplos espaços que compõem o Nordeste,
tais como a faixa litorânea e o Cerrado. Uma
das consequências da identidade que ao nor-
destino foi atribuída foi o preconceito contra
a origem geográfica e de lugar, também objeto

399
de análise de Albuquerque Júnior (2007), que
acompanha o nordestino até os dias atuais.
(LIMA, 2016, s/p).

Estudos sobre e para o semiárido precisam ter em mente que


temos atualmente uma população mais de 70% localizada na zona
urbana, com cidades inchadas e esvaziamento do campo. E que
esta construção genérica do nordestino não cabe em todos nós.
Na verdade talvez caiba a uma pequena minoria. Somos diversos,
temos necessidades, sonhos e expectativas diversas.
Alternativas como as associações de agricultura familiar, as
propostas agroecológicas, o P1MC ( Programa Um Milhão de
Cisternas), o P1+2 ( Programa Uma Terra e Duas Águas), ambos
propostas da ASA , os bancos de sementes crioulas, os quintais
produtivos, entre outras alternativas se mostram de uma eficácia
muito grande para a preservação do meio ambiente e para aten-
der às demandas das populações rurais e parte das demandas da
população urbana da região. No entanto, é necessário pensar tam-
bém em sustentabilidade nas regiões urbanas. Usamos o mesmo
modelo de plantas hídricas de cidades litorâneas, onde os índices
pluviométricos são mais altos, canalizamos e poluímos os rios em
seus perímetros urbanos, fonte indispensável de água no semiá-
rido, derrubamos árvores para abrir vias asfaltadas, muitas vezes
não respeitamos as nascentes que se localizam em áreas mais
urbanizadas, impermeabilizamos o solo, entre outras ações que
remetem à ideia de progresso e desenvolvimento urbano.
A pergunta é, até quando esse desenvolvimento se sustenta?
Quais as consequências dessas ações para as gerações futuras?
Outra pergunta bastante perturbadora para nós, da vivência aca-
dêmica, se dá no norte das pesquisas: Até que ponto estamos
contribuindo para mitigar ou solucionar as questões que nos são
postas pelo espaço que habitamos? E quando o fazemos levamos
em consideração o tripé proposto pela sustentabilidade, conforme
Sachs (2002) o propõe, ou seja, atendendo não apenas os aspectos

400
ambientais, mas também os sociais e econômicos, buscando um
equilíbrio e uma harmonia entre eles. As perguntas inquietam. E
a proposta desta análise não é respondê-las, ao contrário, é provo-
car uma autorreflexão das pesquisas e alternativas apontadas para
o semiárido brasileiro.

Por ora...
...Como todas as histórias, esta é menos uma
receita para ação que um convite à reflexão e
pretende mais contribuir para o autoconheci-
mento que sugerir uma estratégia de redenção
ecológica. No entanto, se demonstrar que, ao
longo dos séculos, se formaram hábitos cul-
turais que nos levaram a estabelecer com a
natureza uma relação outra que não a de sim-
plesmente esgotá-la até a morte, que o remédio
para nossos males pode vir de dentro de nosso
universo mental comum, então esse livro tal-
vez não tenha sido um completo desperdício
de boa polpa de madeira... (SCHAMA, 1996,
p.29)

Amigo leitor, te convidamos a um passeio pelo cenário bra-


sileiro e afunilamos o debate para o Semiárido. Tentamos pensar
a sustentabilidade e o semiárido concomitantemente. Como eles
foram construídos imagético e discursivamente? Quais as con-
sequências destas construções para nós, habitantes da região
semiárida? Como os vários campos do saber, inclusive o Direito
e as Políticas Públicas, se apropriaram destes discursos e o uti-
lizam na sua prática cotidiana? Até que ponto é possível pensar
um semiárido sustentável ante a diversidade e as peculiaridades
do espaço? Tentamos responder a estas perguntas ao longo deste
ensaio. Também deixamos alguns questionamentos em aberto,
como provocações para próximas discussões.

401
É possível sim, pensarmos em um semiárido mais sus-
tentável, em um Brasil mais sustentável, em um planeta mais
sustentável. Para tal é preciso pensar no estilo de vida que temos
levado. Regina Horta Duarte já nos alertava para o fato de que
nunca se falou tanto em preservação ambiental, mas também
nunca se consumiu tanto. Não há como discutir sustentabilidade
sem pensar nas relações do ser humano para com a natureza. Não
há como discutir sustentabilidade sem pensar no sistema capi-
talista e na forma como os discursos são invertidos em prol de
um maior consumo para alimentar o sistema. Veja, leitor, o que
aconteceu com o ecologicamente correto, o socialmente justo e
o economicamente viável: viraram discursos- ‘compre porque é
ecologicamente correto, mas compre’. Na verdade o consumo
consciente deve pautar todo este debate. É impossível pensarmos
em mitigar os impactos que estamos causando no planeta sem
pensar na nossa relação com o consumo. E nunca a obsolescência
foi tão programada. Quanto tempo dura um novo eletrodomés-
tico? Com quanto tempo um aparelho celular fica ultrapassado?
Mas é realmente necessário termos o modelo de última gera-
ção? Até que ponto estamos cedendo às seduções do mercado?
Pesando em outros problemas pertinentes ao debate do consumo,
pensemos nele como elemento de inclusão ou exclusão social. Até
que ponto serei excluído de um grupo por me recusar a ter um
celular compatível com os demais, por me recusar a usar roupas
de uma determinada marca, por não compartilhar dos sonhos e
desejos de consumo? Como vê, caro leitor, o debate da sustenta-
bilidade é bem complexo e demanda uma análise mais ampla pois
influencia diretamente em vários aspectos da vida humana. Ao
impactar o ambiente, o ser humano também modifica as relações
sociais e econômicas. Tudo está cadenciado.
Voltando ao semiárido, temos que considerar a fragilidade
do espaço: temos áreas bastante degradadas, áreas susceptíveis de
desertificação, rios intermitentes, solos rasos, susceptibilidade a

402
estiagens prolongadas, entre outros fatores que tornam o meio
mais vulnerável se não respeitarmos a capacidade de carga ou
não conhecermos ( e isso demanda pesquisa, observação, prática,
dialogo com saberes locais) o local onde estamos inseridos e o
qual estamos interferindo de forma direta e indireta. As políticas
públicas podem ser uma ferramenta de grande valia nessa jornada,
no entanto é preciso que elas se abram para o debate interdiscipli-
nar e principalmente se abram para ouvir os anseios de um povo
diverso, com demandas diversas.
Por fim, pensar a sustentabilidade no semiárido nos remete a
pensar o ser humano em suas conexões com a natureza refletindo
que não há o homem e a natureza: este é parte da natureza, e o
que a afeta tem consequências para si mesmo. Ou existe harmonia
nesta relação, ou não há como pensar em resiliência, em recarga
ambiental, em uma qualidade de vida melhor para nossas gerações
e para as futuras.
Caro leitor, agradecemos a sua companhia ao longo das nos-
sas reflexões. Não tínhamos como meta estabelecer pesquisas para
políticas públicas ou filosofar sobre as relações ser humano-natu-
reza. Se ao finalizar este texto tivermos conseguido dar visibilidade
ao semiárido e à sustentabilidade enquanto construções imagético
discursivas que podem ser utilizadas de várias formas (para o bem
e para o mal) se tivermos conseguido articular ambos os discur-
sos (semiárido e sustentabilidade) e também conectar eles a um
debate mais global sobre preservação ambiental e ao debate sobre
consumo, se tivermos conseguido refletir que sustentabilidade é
algo que se almeja e só se alcança através das práticas cotidianas
do próprio ser humano em suas inter-relações com a natureza,
então teremos atingido o nosso objetivo.
A você, leitor, fica a pergunta: onde me insiro neste debate?
Qual o meu papel na sociedade em que ocupo. Como posso
contribuir para um mundo mais harmônico, mais ecologica-
mente correto, economicamente viável e socialmente justo? Estas

403
palavras, para além de um discurso que o capitalismo inverteu em
causa própria, podem ter um significado muito maior no nosso
cotidiano. Podem impactar a forma como vivemos e modificamos
o mundo em nossa volta. Vale a pena tentar colocá-las em prá-
tica? Essa é uma pergunta que temos que nos responder enquanto
indivíduos e enquanto comunidades.

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extinção de órgão e de entidade autárquica, cria o Instituto Brasileiro
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Leis/L7735.htm.

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http://www.institutocarbonobrasil.org.br/artigos/noticia=735346

http://www.integracao.gov.br/semiarido-brasileiro

407
POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO AMBIENTAL:
REFLEXÕES SOBRE A AMPLIAÇÃO DO
ACESSO À ÁGUA NO SEMIÁRIDO,
O CASO DO MUNICÍPIO DE SUMÉ-PB

Allan Gustavo Freire da Silva168


José Irivaldo Alves de Oliveira Silva169
Carina Seixas Maia Dornelas170
Alecksandra Vieira de Lacerda171

1. Introdução

O
município de Sumé, localizado no estado da Paraíba,
precisamente na microrregião do cariri ocidental, apre-
senta características inerentes ao seu bioma Caatinga,
sendo a baixa incidência de chuvas na região, um forte obstáculo
ao desenvolvimento regional.

168 Tecnólogo Superior em Gestão Pública (UFCG). Especialista em Gestão


Pública. Mestre em Desenvolvimento Regional (MDR). Universidade
Estadual da Paraíba - UEPB. allangfs@hotmail.com
169 Doutor em Ciências Sociais (UFCG). Doutorando em Ciências Jurídicas
(UFPB). Pós-doutor em Desenvolvimento Regional (UEPB) e Pós-doutorando
em Direito Ambiental (UFSC). Professor adjunto III na Universidade Federal
de Campina Grande – UFCG. prof.irivaldo@ufcg.edu.br
170 Doutora em Agronomia (UFPB). Professora adjunta na Universidade Federal
de Campina Grande – UFCG. cacasmd@yahoo.com.br
171 Doutora em Recursos Naturais. Professora adjunta na Universidade Federal de
Campina Grande – UFCG. alecvieira@ufcg.edu.br

409
Dispondo de uma área de 838,071 km², o município pos-
sui cerca de 16.060 habitantes, de acordo com dados do (IBGE,
2010). A renda da população fundamenta-se essencialmente da
agricultura com economia voltada ao setor agropecuário, a partir
da produção de hortaliças – tomate, alface, coentro, entre outros
- e da empregabilidade gerada pelo poder público municipal, esta-
dual e federal.
A ausência de eficazes políticas públicas para o convívio har-
monioso entre o homem e as naturais adversidades inerentes a esta
região, tem levado governos a implementarem ações emergenciais
de combate à seca. Em todo o cariri paraibano, tais medidas ver-
sam sobre o fornecimento de água à comunidade urbana e rural,
a partir de caminhões Pipa, de medidas socioeducativas de racio-
nalização e da exploração de mananciais subterrâneos, mediante
a perfuração de poços, associados à utilização de instrumentos
dessalinizadores.
Desse modo, buscam-se identificar quais são as políticas
públicas e os entraves que permeiam o acesso à água no município
de Sumé-PB. A partir de dados contábeis disponibilizados pelo
governo municipal à Secretaria do Tesouro Nacional, das políti-
cas públicas aprovadas pelo Poder Legislativo Local, no período
de 2009 a 2012, e dos dados financeiros coletados no sítio do
portal da transparência do Governo Federal, referentes aos inves-
timentos voltados ao acesso à água no município. Dessa forma, foi
possível correlacionar dados primários e secundários e traçar uma
linha elucidativa acerca do tema em questão.
Destarte, com base na análise dos dados, buscou-se reunir
indicadores que salientam o atraso de investimentos e os obstácu-
los que pairam sob as questões que envolvem a gestão das águas e
os recursos hídricos no município.
O desinteresse do governo municipal na resolução desta
temática evidencia-se na elaboração de políticas e na ausência
investimentos nas variadas rubricas que envolvem a questão. As

410
transferências federais de recursos exercem basicamente um papel
paliativo, ante os parcos recursos destinados à ampliação do acesso
à água, onde, por sua vez, são incapazes de solucionar terminante-
mente os problemas sociais crônicos.

2. Políticas públicas e investimentos voltados à ampliação do


acesso à água

cavalcanti (1995, p. 89) descreve que “Nenhuma atividade


humana que se pretenda ser duradoura pode ser levada a efeito
desconhecendo-se o impacto que tem sobre o meio ambiente”.
Decerto, é fundamental que o ser humano que almeja resultados
duradouros em termos de desenvolvimento social, econômico e
ambiental leve em consideração em seu planejamento, os impac-
tos negativos de suas políticas e intervenções, onde, tal análise, se
realizada de forma errônea, pode comprometer os bons resultados
de políticas, condenar e destruir biossistemas, reduzindo, por con-
seguinte, o acesso à água de qualidade.
Castro (2013) destaca que a noção de que a água é apenas um
recurso a ser utilizado em prol do crescimento econômico, baseia-
se no entendimento arraigado em diversas regiões do mundo, de
que trata-se de um recurso infinito, gratuito e com capacidade de
autopurificação. Esta visão simplista e dominante sobre a gestão
e uso das águas, provocou transformações quantitativas e qualita-
tivas sem precedentes na relação do Homem com a água e com a
natureza, acentuando-se nas últimas décadas, os diversos proble-
mas fruto da negligência humana sobre as questões hídricas.
A necessidade de manutenção e preservação ambiental, pau-
tada em um desenvolvimento sustentável, e a utilização racional
dos recursos, coloca a questão ambiental, como um assunto o qual
se deve ter atenção especial. A Constituição Federal Brasileira de
1988 assevera, em seu artigo 225, que o meio ambiente está entre
as matérias às quais devem ser tratados de forma comum entre

411
a União, Estados, Municípios e Distrito Federal, onde diversos
setores do governo tem a incumbência comum de proteger o meio
ambiente.
A convivência social requer ferramentas que venham a pro-
teger direitos e promover a harmoniosa convivência entre os
indivíduos em uma coletividade, além do reconhecimento terri-
torial nacional diante de outros povos. Nesse prisma, o Estado se
estrutura sob o fundamento de manter a coesão social, garantir
a propriedade privada e outros direitos coletivos – onde com o
amadurecimento do Estado, surge a ideia e prática de um Estado
voltado ao bem-estar social, o qual busca satisfazer a população
em diversas áreas, através de políticas públicas focalizadas. Nesse
sentido, Britto (2015, p. 222) salienta que “na perspectiva jurídica,
os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário são
serviços públicos; e é função do Estado garantir seu fornecimento
aos cidadãos”.
Assim, o Estado se apresenta como uma unidade básica
social com território definido e com uma nação constituída pela
coletividade que habita determinada localidade, genericamente
entendida como um povo. Atualmente, a principal forma de
organização política dá-se por meio do Estado; e a sociedade,
legitimadora e financiadora do Estado, o credencia a administrar
as questões mais importantes da sociedade e em nome da ordem,
concede a esta, o direito de agir em prol do bem-comum.

2.1 Problemas ambientais que afetam a região do Cariri


Paraibano

Neste ponto, busca-se relacionar os problemas ambientais


que afetam diretamente a região do cariri paraibano e que obs-
taculizam o acesso à água na região. Propõe-se relacionar essas
questões ambientais com o posicionamento adotado pela admi-
nistração da Prefeitura Municipal de Sumé - PB, nos períodos de
2010 a 2012, para sanar tais situações.

412
Em toda a região do cariri paraibano, existem problemas
ambientais intensos, e que precisam ser consideradas pelos gesto-
res públicos como essenciais nas suas administrações.
Dos quais vale citar: áreas degradadas; assoreamento dos
rios; desertificação; tratamento do lixo de forma e em ambiente
inadequado, “os lixões”.
Na cidade de Sumé, áreas degradadas (figura A) estão espa-
lhadas dentro de todo o território, como a exploração ilegal de
madeira, produção de carvão e queimadas, tal ação prejudica o
ciclo das chuvas na região.
Já a (figura B) relata o assoreamento do Rio Sucuru no
município, onde há interrupção do fluxo do rio devido a grande
concentração de areia, causando redução e obstrução da corren-
teza e, consequentemente, fazendo com que cursos de água não
consigam chegar ao destino final.
A desertificação é outro fator que afeta o município e toda
a região do cariri paraibano, o que aumenta a dificuldade para
famílias se manterem na região. Essa transformação caracteriza-
se pela mudança no cenário ambiental, que pouco a pouco vai se
transformando em deserto, como exposto na (figura C).
O lixão no município também é um forte entrave para o
desenvolvimento ambiental, poluindo o solo, os lençóis freáticos e
fomentando a proliferação de doenças (figura D).
Figura 1. Problemas ambientais que afetam o município de Sumé - PB. Da
esquerda para direita, de cima para baixo. Área degradada, Rio Assoreado,
Desertificação, Lixão.

413
Para Silva (2011) no Brasil, existe um substancial número
de municípios que sequer possuem alguma estrutura no seu orga-
nograma que contemple a discussão de questões ambientais, e
muito menos sobre setores específicos para tratar deste tema e de
seus desdobramentos, como a questão da reciclagem, preservação
ambiental e a educação ambiental.
Todavia, vale ressaltar que todas essas questões se consti-
tuem como um desafio à administração pública municipal e à
sua equipe de gestão, afetando diretamente o acesso à água às
comunidades urbanas e rurais, diminuindo a absorção de água ou
contaminando o lençol freático, assoreando e poluindo rios.

2.2 Políticas públicas aprovadas no município de Sumé - PB


entre 2009 a 2012

Sobre as políticas públicas aprovadas no período de 2009


a 2012, tem-se uma análise das ações estatais classificadas por
áreas. No Quadro 1, há a correspondente divisão das leis por áreas
de produção, referentes à aprovação de projetos de iniciativa do
poder Executivo e do poder Legislativo do município paraibano
de Sumé.
Devido em alguns pontos, estas áreas serem vistas como cor-
relatas, merece destaque a explicação sobre a classificação e divisão
dos projetos de leis aprovados na área social, de meio ambiente/
agrárias, e outros. Estas se deram da seguinte maneira:
• Foram alocados como projetos ligados à área Social,
aqueles que reconhecem associações como sendo insti-
tuições de utilidade pública, disposições sobre conselhos
municipais do idoso e outras questões que envolvem
políticas sociais.
• Para o Meio Ambiente/Agrárias foram direcionados os
projetos de lei que buscavam proteger e preservar o meio
ambiente, bem como os relacionados com a criação de
conselhos rurais em prol da sustentabilidade.

414
• Na seção Outros, foram classificados os projetos refe-
rentes à permuta de imóveis do poder público com
particulares a ações legislativas com objetivos de difícil
entendimento.
Quadro 1 – Sumé - Aprovação de políticas públicas municipais por áreas

Áreas Total 2009 Total 2010 Total 2011 Total 2012


Saúde 1 4 2
Educação 3 1 2
Social 5 3 2 1
Meio Ambiente/Agrárias 1 3
Administrativo-Financeiro 12 12 10 17
Política Econômica 3 4
Instituição de datas comemorativas 1
Nomenclatura de espaços públicos 5 22 6 4
Cultura
Outros 1 1 1
TOTAL DE LEIS 29 40 24 34

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados brutos coletados da Câmara


Legislativa do Município de Sumé, 2015.

De acordo com os dados apresentados para o período de


2009 a 2012, a viabilização de políticas públicas a partir da apro-
vação de projetos aprovados na câmara municipal do município
de Sumé - PB não compreende as questões ambientais e sociais
como prioridade governamental. Essa atitude não se justifica pela
ausência de demandas, mas sim, pelo perfil dos poderes Legislativo
e Executivo do município, os quais, não buscam implementar
políticas públicas que venham sanar problemas ambientais, sobre-
tudo, os impasses que obstaculizam o acesso à água por parte da
população localizada na zona urbana e especialmente, àqueles
moradores residentes na zona rural do município.

415
Face à morosidade das políticas públicas locais voltadas às
questões ambientais, as quais envolvem preservação de áreas, con-
servação de mananciais, recuperação de áreas degradadas e controle
ambiental, o município não dispõe de parlamentares imbuídos na
defesa dessas questões. Através do perfil legislador, infere-se que as
pastas sociais e de meio ambiente não são vistas como prioritárias
medidas de transformação social, local e regional.
Albuquerque (2015) esclarece que os direitos à água e ao
saneamento apenas adquirem o potencial para se tornarem reali-
dade, quando se passa à fase de utilização do marco normativo do
direito, para assim, examinar minuciosamente as políticas públi-
cas e as realidades locais e possuírem a capacidade de desenhar e
aprovar novas políticas setoriais.
No entanto, a aprovação para o período de 2009 a 2014
na câmara municipal de Sumé, concentrou-se, basicamente, em
questões administrativo-financeiras, àquelas ligadas diretamente
ao cumprimento de normas, aos projetos de lei ligados a reformas
gerenciais do Estado, referentes ao crescimento ou redução de
gastos públicos, à criação, redução ou aumento de cargos públicos,
elaboração e aprovação de Lei Orçamentária Anual - LOA, da
Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO, do Plano Plurianual -
PPA, obrigações impostas por Lei e outras questões inerentes ao
funcionamento da máquina pública. Além, dos projetos de leis
voltados à nomenclatura de espaços públicos, que conferiram
nomes a ambientes públicos tais como ruas, instituições, prédios
públicos, entre outros.

2.3 Investimentos da administração pública da cidade de


Sumé, sobre as questões ambientais

Buscando avaliar a participação do município ante a res-


ponsabilidade coletiva de preservação do meio ambiente e gestão
ambiental, foram coletadas informações da Secretaria do Tesouro

416
Nacional – STN, referentes ao período de 2009 a 2012. Conforme
registrado na Tabela 1 e Tabela 2, sobre a área denominada
Gestão Ambiental, observa-se que no município de Sumé - PB,
de acordo com os balanços orçamentários anuais da prefeitura
municipal, não foram realizados investimentos significativos no
que compreende à área de Gestão Ambiental, sendo essa ausên-
cia de investimento, um forte entrave para o desenvolvimento da
região.
Sobre as despesas por função, verifica-se que na Tabela 1,
apenas R$432,00 foram investidos para controle ambiental no
município. Importantes áreas da gestão ambiental, tais como, a
recuperação de áreas degradadas – a qual tem impacto direto na
qualidade e disponibilidade de águas – questões meteorológicas, e
outros fatores inerentes aos recursos hídricos, não foram áreas que
tiveram investimentos priorizados pelo município.
Tamanho desinteresse público municipal para investimento
em questões ambientais incorre na extensão de problemas sociais
crônicos, os quais, sem aplicação de recursos nessas áreas, o muni-
cípio dificilmente apresentará capacidade técnica e financeira
suficiente para sua resolução. Neste ponto, os problemas ambien-
tais tornam-se ainda mais complexos, e considerando a faixa
temporal avaliada, tratando-se de políticas ambientais e de acesso
aos recursos hídricos, observa-se que o município não tem inves-
tido em rubricas específicas da gestão ambiental.
As informações constantes nas Tabelas 1 e 2 salientam que
no município de Sumé - PB, no semiárido paraibano, os recursos
públicos municipais – não são diretamente voltados às questões
que viabilizem o acesso à água e à preservação de mananciais.

417
Tabela 1. Dados contábeis consolidados municipais - balanço orçamentário -
despesas por função. Município: Sumé-PB em (2009)

CAMPO CÓDIGO DISCRIMINAÇÃO VALOR


98 00018 Gestão Ambiental = (99+...+104) 432,00
99 18541 Preservação e Conservação Ambiental 0,00
100 18542 Controle Ambiental 432,00
101 18543 Recuperação de Áreas Degradadas 0,00
102 18544 Recursos Hídricos 0,00
103 18545 Meteorologia 0,00
104 18999 Demais Subfunções - Gestão Ambiental 0,00

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional – STN, 2015.

Tabela 2. Dados contábeis consolidados municipais - balanço orçamentário -


despesas por função. Município: Sumé-PB em (2010, 2011 e 2012)

CAMPO CÓDIGO DISCRIMINAÇÃO VALOR


98 00018 Gestão Ambiental = (99+...+104) 0,00
99 18541 Preservação e Conservação Ambiental 0,00
100 18542 Controle Ambiental 0,00
101 18543 Recuperação de Áreas Degradadas 0,00
102 18544 Recursos Hídricos 0,00
103 18545 Meteorologia 0,00
104 18999 Demais Subfunções - Gestão Ambiental 0,00

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional – STN, 2015.

Diante da escassez de chuvas na região, estiagem típica do


bioma Caatinga, a ausência de políticas públicas eficazes para a
convivência com esse fenômeno, tem produzido intensos perío-
dos de seca em toda a área do cariri paraibano. O desmatamento
da vegetação nativa, a salinidade da água encontrada nos lençóis
freáticos e a ausência de água encanada em partes da zona urbana
e em toda a zona rural, são fatores que agravam os problemas
sociais e dificultam a permanência do homem na região.
Desse modo, no município de Sumé - PB, ações emergenciais
focadas na minimização dos efeitos da seca, dá-se principalmente
através da participação de Caminhões Pipa no fornecimento de

418
água na zona urbana e rural. Devido a grande necessidade des-
tes serviços às diversas comunidades da região, esta ação pública
incorre a revestir-se de caráter político-assistencialista, na qual é
retirado do consciente social, o legítimo dever do Estado para
viabilizar eficazes políticas públicas de acesso à água, estabele-
cendo-se, por sua vez, relações de barganha e conluios entre o
poder público e a população.
Por sua vez, medidas atenuantes de acesso à água protelam a
execução de uma possível solução definitiva, para que esse recurso
natural chegue de forma contínua às residências das diversas
comunidades.
Observa-se, portanto, que a ausência de medidas voltadas
ao controle ambiental e demais funções envolvendo a gestão
ambiental, fazem parte do perfil legiferante da câmara municipal.
A luta de interesses individuais e o perfil do poder Executivo e
Legislativo, não têm viabilizado positivas transformações ambien-
tais. Neste ponto, a câmara legislativa, através da aprovação de
políticas públicas – instrumento pelo qual o Estado age – tem
a capacidade de fazer com que direitos saiam do papel e contri-
buam efetivamente para a melhoria da vida das pessoas.
Contudo, a desatenção sobre as questões ambientais, não
tem sido um comportamento exclusivo dos municípios peque-
nos, interioranos do Brasil. Tratam-se, de ações recorrentes e de
falhas na gestão pública de diversos municípios do país. O enten-
dimento predominante é de que existem questões mais sérias a
serem investidas e que devido os recursos públicos serem escassos,
aspectos que envolvem as pastas da educação, saúde e segurança,
consomem a maior e considerada parte dos recursos públicos
capitaneados pelos municípios. Eventualmente, até existem dis-
cussões e debates sobre problemas ambientais e crises hídricas,
porém, na elaboração do planejamento dos municípios, atra-
vés da Lei Orçamentária Anual, ou ainda da Lei de Diretrizes
Orçamentárias, ou do Plano Plurianual, estas questões, na ordem
de prioridades, ocupam um plano distante.

419
Muitas vezes, as transferências de recursos federais ou esta-
duais que envolvem a gestão ambiental nos municípios, esbarram
em aspectos legais, técnicos ou burocráticos, o que obstaculizam
assim, a aplicação de recursos e consequentemente, na execução
de diversas políticas públicas. O retardo dos municípios na ade-
quação às leis e normas ambientais do país, reflete-se diretamente
na forma como administração pública local, interpreta os diversos
indicadores de desenvolvimento e como os governos satisfazem os
variados interesses individuais presentes na formulação de políti-
cas governamentais cujas influências advêm do cenário político.
O descompasso entre as exigências ambientais, legalmente
instituídas, estabelecidas pelas esferas federais e estaduais - que
passam a condicionar o repasse de recursos aos municípios - e
o descumprimento de determinações legais por parte da esfera
municipal, ampliam as discrepâncias técnicas e as diferenças
que permeiam as características do desenvolvimento regional
pelo país, uma vez que, tais medidas não tem conseguido ins-
truir e redirecionar a condução de parte das políticas. Sendo o
bloqueio do repasse dos recursos federais ou estaduais, a mais sen-
tida punição, para os municípios, já que constitucionalmente, são
autônomos, o que pressupõe a capacidade de autogoverno e de
autoadministração.
No que concerne às transferências de recursos federais desti-
nados às questões hídricas no município de Sumé, para o período
de 2009 a 2014, constata-se, unicamente, a existência de ações
ligadas ao programa intitulado, Serviços Urbanos de Água e
Esgoto. De acordo com informações presentes no sítio da Caixa
Econômica Federal - banco público, encarregado pela trans-
ferência dos recursos aos contratados - após cumprimento das
exigências presentes na Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF, tal
política pública recebe o suporte da equipe técnica da Caixa, com
o ateste da execução física de cada etapa solicitada e/ou aquisição
prevista, mediante cronograma físico-financeiro aprovado.

420
De acordo com informações presentes no sítio da (CAIXA
ECONÔMICA FEDERAL, 2015), o programa, Serviços
Urbanos de Água e Esgoto, destina-se às famílias de baixa renda,
com demanda de recursos federais pelos estados, municípios e
Distrito Federal. Para acesso aos recursos, essa política tem gestão
do Ministério das Cidades (MCidades), e é operado com recur-
sos do Orçamento Geral da União (OGU). Esta política pública,
volta-se às intervenções para o aumento da cobertura dos ser-
viços de abastecimento de água nas áreas mais carentes do país
compreendendo ações ligadas à criação ou melhorias do sistema
de captação de água, inclusive estação elevatória; adução de água
bruta ou água tratada; reservação; Estação de tratamento (ETA);
Rede de distribuição; ligação domiciliar, incluindo instalação de
hidrômetro; Sistema simplificado de abastecimento, incluindo
conjunto constituído de poços, reservatórios e chafarizes.
Desse modo, pode-se observar no Quadro 2, o total de recur-
sos destinados às questões hídricas e transferidos diretamente do
governo federal ao município de Sumé. Verifica-se, portanto, que
o município recebeu maior soma de recursos nos anos de 2010 e
2011, sendo estes, voltados às ações referentes ao Esgotamento
Sanitário do município, e compreenderam o montante de R$
1.200.000,00 e R$ 2.800.000,00, respectivamente.
A grande quantidade de recursos financeiros transferidos pelo
governo federal aos municípios brasileiros demonstra a amplitude
das demandas, ante as fragilidades da gestão hídrica no país. Os
investimentos referentes às questões hídricas no município de
Sumé, advêm basicamente da transferência de recursos federais.
As políticas públicas municipais, aquelas aprovadas e executadas
no município, não têm priorizado a gestão de águas. Tampouco,
fatores ambientais diretos e indiretos como a degradação ambien-
tal, o assoreamento de rios, a crescente desertificação e a gestão
dos resíduos sólidos, tem feito parte da agenda política municipal.

421
Devido os intensos relapsos humanos, refletidos no processo
de elaboração de políticas públicas municipais e considerando o
entendimento do processo de gestão dos recursos naturais, Castro
(2013) afirma que a crença no processo de autorrecuperação da
natureza e do ciclo de purificação das águas surgem como parte
da explicação do porquê grandes proporções de água de esgoto no
planeta ainda são descarregadas sem tratamento, ou sem o trata-
mento adequado, no meio ambiente. Esta ainda não se trata de
uma fragilidade exclusiva dos países pobres, devido não disporem
de caras e avançadas tecnologias de tratamento; refere-se, por-
tanto, a uma prática adotada também por países ricos.

422
Quadro 2 - Total de recursos transferidos diretamente do Governo Federal ao município de Sumé - PB, referentes às ques-
tões hídricas entre 2009 a 2014

TOTAL DE RECURSOS
PROGRAMA RECURSO TOTAL VALOR RECEBIDO
DESTINADOS AOS ANO DE
DO GOVERNO DISPONIBILIZADO EM PELO MUNICÍPIO DE
AÇÃO FAVORECIDOS NA TRANSFERÊNCIA
FEDERAL ÂMBITO NACIONAL SUMÉ - PB
PARAÍBA
R$1.187.459.159,48 R$3.002.602,41 2009 R$110.000,00
Melhorias Sanitárias
Domiciliares para R$1.261.134.236,58 R$5.635.897,00 2010 R$275.000,00
Prevenção e Controle R$25.107.163,05 R$690.456,17 2010 R$28.000,00
de Agravos
R$25.974.065,81 R$720.572,67 2010 R$28.000,00

R$132.017.102,93 R$4.045.000,00 2010 R$440.000,00


Serviços Urbanos Sistemas Públicos de R$8.112.618,86 R$4.874.980,99 2011 R$492.980,99
de Água e Esgoto Abastecimento de
Água em Municípios R$184.458.937,82 R$6.162.987,54 2011 R$660.000,00
de até 50.000
Habitantes R$89.058.433,56 R$615.5168,6 2013 R$369.735,74

R$47.210.017,96 R$1.676.592,49 2014 R$12.716,73


Esgotamento Sanitário R$123.697.225,59 R$5.352.227,07 2010 R$1.200.000,00
em Municípios de até
50.000 Habitantes R$314.395.095,74 R$38.276.728,42 2011 R$ 2.800.000,00

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados coletados por meio do Portal da Transparência do Governo Federal, 2015.

423
Diante da constante aplicação de recursos públicos federais no
período de 2009 a 2014 no município de Sumé, sobre a ampliação
e melhoria na qualidade de esgotamentos sanitários e abasteci-
mento de água no âmbito municipal, Britto (2015) destaca que
apesar da ampliação importante dos sistemas de abastecimento
de água, decorrente de investimentos e programas, a realidade do
acesso aos serviços é complexa. Muitas vezes, as tarifas cobradas
pelo acesso à água, devido às desigualdades sociais, impossibili-
tam que moradores paguem por esse serviço. Sendo assim, estes,
optam por abastecimentos irregulares, através de ligações clan-
destinas, ou mediante captação de água a partir de outras fontes,
(poços artesianos, lagos, entre outros). Como consequência dessas
ações, reside o risco de consumir água contaminada e o compro-
metimento da prestação do serviço de abastecimento.
Britto (2015) esclarece que ter redes de saneamento básico
e de abastecimento de água nos bairros, não é garantia que o
morador de baixa renda terá acesso a esses serviços. Se nestas
localidades, os serviços não são contratados, como consequência,
as redes instaladas deixam de ter manutenção adequada, o que em
médio prazo, compromete a qualidade geral dos sistemas.
Destarte, o problema da gestão das águas em muitos muni-
cípios brasileiros, passa não apenas pela escassez de recursos
públicos destinados às questões hídricas, mas, também, envolvem
planejamento e políticas públicas de acesso aos serviços de abas-
tecimento de água e esgotamento sanitário, as quais, em muitos
casos, apresentam serviços com tarifas incompatíveis ante as ele-
vadas desigualdades sociais e econômicas da população.

3. Considerações finais

Observa-se que no município de Sumé - PB, a redução


dos problemas ambientais não tem sido uma das prioridades do
governo municipal. A formulação de políticas públicas locais, não

424
tem contemplado com eficácia e eficiência, os problemas ambien-
tais – tais como degradação de áreas, desertificação, assoreamento
de rios e tratamento de resíduos sólidos - os quais envolvem direta
e indiretamente a disponibilidade e qualidade do acesso à água
para a população.
Para o período de 2009 a 2014 constata-se que o poder
público municipal optou mais por legislar em áreas que envolvem
questões administrativo-financeiras e nomenclatura de espaços
públicos. Por iniciativa do município, os repasses destinados à
área ambiental para este mesmo período, versaram em apenas
R$432,00 reais, onde voltaram-se ao controle ambiental no ano
de 2009. O desinteresse do poder público local sobre questões
ambientais diminui a capacidade municipal para a resolução des-
tes problemas.
Diante da crise hídrica enfrentada na região do cariri parai-
bano, as políticas paliativas de acesso à água mediante a utilização
de caminhões Pipa na zona urbana, sobretudo, nas zonas rurais
do município, demonstram as fragilidades burocráticas, técnicas
e fiscais da administração municipal, para a melhoria do acesso à
água e minimização dos problemas ambientais.
Desse modo, diante da ausência de eficaz planejamento
urbano e de clara identificação dos problemas ambientais por
parte da gestão pública municipal, as transferências de recursos
públicos que compõem as políticas públicas do governo federal
e que foram destinadas ao município de Sumé, não conseguem
surtir os efeitos projetados na esfera federal. Estruturando-se
assim, mais uma relação de dependência de repasses federais para
as diversas áreas do que um processo contínuo de superação de
deficiências dos indicadores sociais, ambientais e econômicos do
município.

425
Referências

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Esteban; HELLER, Léo; MORAIS, Maria da Piedade. O direito
à água como política pública na América Latina: uma exploração
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do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do
texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168p. (Série
Legislação Brasileira).

BRASIL. Tesouro Nacional. Balanço Orçamentário. Disponível em:


<https://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/index.
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BRITTO, Ana Lucia. Tarifas sociais e justiça social no acesso aos


serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil.
In. CASTRO, José Esteban; HELLER, Léo; MORAIS, Maria
da Piedade. O direito à água como política pública na América
Latina: uma exploração teórica e empírica. Brasília: IPEA, 2015.
cap. 9, p. 209 - 225.

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www.caixa.gov.br/poder-publico/programas-uniao/meio-ambiente-
saneamento/servicos-urbanos-agua-esgoto/Paginas/default.aspx>
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CASTRO, José Esteban. A água (ainda) não é uma mercadoria:


aportes para o debate sobre a mercantilização da água. Rev. UFMG,
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CAVALCANTI, C. Algumas reflexões sobre desafios da economia
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Portal da Transparência nos Recursos Públicos Federais. Disponível


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PesquisaAcao.asp?Exercicio=2009&textoPesquisaPrograma=a-
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Urbanos%20de%20%C1gua%20e%20Esgoto> Acesso em: 02 abr.
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C. A. V.; SOARES, K. C. C. Instituições, gestão pública e desen-
volvimento sustentável. Recife: Editora Nossa Livraria, 2011. Cap.
Meio Ambiente, p. 247-288.

427
Sobre Livro
Projeto Gráfico e Editoração Jefferson Ricardo Lima Araujo Nunes
Tipologias Utilizadas Adobe Carslon Pro

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