Visões Da China Antiga
Visões Da China Antiga
Visões Da China Antiga
2
Sumário
Introdução ........................................................................................... 5
SOBRE O HUMANISMO NA CHINA; OU, DE COMO A POESIA
ORIENTOU O CÉU por Alicia Relinque Eleta ............................... 22
O CULTO DA MULHER NO NEOLÍTICO CHINÊS por Ana Maria
Amaro ............................................................................................... 56
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO: A IMPORTÂNCIA DOS
ESTUDOS CONFUCIONISTAS PARA A COMPREENSÃO DA
CIVILIZAÇÃO CHINESA por André Bueno ................................. 78
LAO ZI E O TAOISMO por António Graça de Abreu .................. 105
O ‘RITO DE PASSAGEM DO ESCRITO AMARELO DA
CLARIDADE SUPERIOR’: RELIGIÃO E SEXUALIDADE NA
CHINA ANTIGA por Bony Schachter .......................................... 142
ZHUANGZI E ARISTÓTELES: SOBRE SER UMA COISA por
Chenyang Li ................................................................................... 168
A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E PENSAMENTO NA
ANTIGA EPISTEMOLOGIA CHINESA por Jana S. Rošker ....... 203
REFLEXÕES GENEALÓGICAS E CIRCULARES SOBRE A
FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CHINÊS ANTIGO por Jesualdo
Correia ............................................................................................ 223
O PENSAMENTO CHINÊS DURANTE A DINASTIA HAN por
André Bueno................................................................................... 256
O CAVALO NA ANTIGUIDADE CHINESA: ENTRE O
INSTITUCIONAL E O NATURAL por Márcia Schmaltz ............ 289
OS QUATRO ANIMAIS COSMOLÓGICOS EM TÚMULOS HAN
COM MURAIS por Nataša Vampelj Suhadolnik .......................... 315
3
A REDESCOBERTA DA UNIDADE CÉU-HOMEM por Wang
Keping ............................................................................................ 363
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO IMPERADOR por Yuri Pines
........................................................................................................ 403
BIOS ............................................................................................... 455
4
Introdução
1
Li Po: Com a taça na mão, interrogo a lua. In LI Po, TU Fu. Poemas
chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 37.
5
questionamento de equivalente impertinência: por que estudar
a Antiguidade? Tantas e tantas vezes tais indagações de asinina
natureza foram proferidas, que vem a calhar a resposta da mula
de Balaão: fustigado, o animal abriu a boca para seu dono e
perguntou-lhe “o que eu te fiz para que tu me batesse já 3
vezes?”2 Não obstante, sendo a paciência a virtude que é,
estimulemo-la.
2
Num, 22:27. Bíblia Hebraica. São Paulo: Sêfer, 2006.
6
ser presenciada em determinados centros de pesquisa, que se
exibe em todo seu beócio esplendor quando vincula a análise
da História Antiga a mero “desempoeirar múmias”, e estimula
os alunos da graduação a se ater a assuntos mais relevantes e
atuais.
Urra o sapo-boi:
3
BANDEIRA, Manuel. Os sapos. In Antologia Poética. Porto Alegre:
Editora do Autor, 1961, p. 29.
4
Apud CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Repensando a História Antiga:
Debates e Questionamentos. In BAKOS, Margaret M., SILVEIRA, Eliana
7
espaço de embates a Antiguidade se insere inteiramente,
elemento constituinte da “nossa identidade como pessoas e
como nação. Pensar sobre História Antiga é uma maneira de
pensarmos e repensarmos nosso lugar em um mundo em rápida
transformação”5. As questões prementes à nossa realidade – o
gênero, a sexualidade, a economia, as relações internacionais,
os direitos humanos, só pra citar alguns – encontram fértil
campo analítico nas fontes antigas, receptivas, que são, aos
questionamentos e às inquietações hodiernos.
8
E quanto à China? Por que (ou para quê) estudar uma
civilização espacial e temporalmente tão diversa da nossa? Em
1942, o célebre literato chinês Lin Yutang escrevia:
7
Político norte-americano, que concorreu à presidência pelo Partido
Republicano em 1940, contra Franklin Roosevelt, Democrata, que logrou a
vitória.
8
LIN Yutang. A sabedoria da Índia e da China: uma antologia dos tesouros
das duas grandes literaturas orientais, coligida, anotada e prefaciada por Lin
Yutang. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1945, p. 505.
9
além da própria China, que tão recentemente quanto 15 de
julho de 2014, e em local tão próximo quanto Fortaleza, capital
do Ceará, decidiram a criação do Novo Banco de
Desenvolvimento (新开发银行), uma instituição multilateral
que funcionará como alternativa ao Banco Mundial e ao FMI.
10
uma profunda compreensão de uma das maiores
civilizações da Antiguidade e da Idade Média, e que é
também uma das grandes potências internacionais dos
nossos dias9
9
BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri:
Del Prado, 1997, p. 12.
10
Como exemplo, temos o convênio firmado este ano com a Universidade
de Pernambuco: O Instituto Confúcio chega ao Recife como resultado de
um convênio entre a UPE e a Sede Central do Instituto Confúcio (Hanban),
em parceria com a Universidade Central de Finanças e Economia, em
Beijing. O Instituto Confúcio vai ensinar a língua chinesa, formar
professores de língua chinesa, oferecer livros e material de ensino, realizar o
exame HSK, bem como os exames para certificação de professores dessa
língua, oferecer serviço de consulta sobre a educação e cultura chinesas,
organizar atividades festivas e culturais chinesas e realizar o intercâmbio
linguístico e cultural entre a China e o Brasil.
http://www.upe.br/portal/institucional/orgaos-suplementares/instituto-
confucio/ Visualizado em 30 de outubro de 2014
11
(...) antigos textos chineses, perpetuamente
reinterpretados, tem sido compreendidos, com
demasiada facilidade, de acordo com os termos usuais
no presente. (...) Talvez seja aqui que o estudioso
ocidental tenha um papel útil a representar. Como não
está tão bem sintonizado com as sutilezas de
significados como seus colegas chineses, está muito
mais livre dos tabus, inibições e pressupostos dos atuais
chineses. De certo modo, é-lhe psicologicamente mais
fácil responder à estranheza do passado da China, pois
uma continuidade histórica não significa que –
cumulativamente – não se tenham verificado grandes
transformações.11
11
BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri:
Del Prado, 1997, p. 12.
12
não estudar a Antiguidade? Esse estudo, essa análise, não pode
estar limitado a determinados centros escolhidos; antes, precisa
ser disseminado pelo país, “entre moringas e cenouras/
emolduradas de vassouras”, parafraseando Otto Lara de
Resende e seu poema, “Vinícius, poeta do encontro”. É esta a
tarefa à qual a presente obra se lança alegremente.
13
recolhe no seu seio, renovando, em cada primavera, o ciclo da
vida”.
14
António Vieira, numa análise que cruza tempos, oceanos e
continentes.
12
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Ideias e
Letras, 2004, p. 22.
15
pensamento chinês antigo, de Jesualdo Correia, opção que faz
todo sentido vis-a-vis a proposta do autor: a situação de uma
“genealogia de alguns dos fundamentos e vertentes daquilo que
constitui os fundamentos do pensamento chinês”. Se, como
afirma o ensaísta, após o marco inicial de formação da visão de
mundo chinesa (por volta do século VI antes de nossa era), a
segunda grande mudança foi a inserção do Comunismo no
século XX, não há, de fato, outra maneira para estabelecer essa
genealogia que não a localização de suas mudanças e
permanências no decorrer dessa longa História.
16
relevância da unidade céu-humanidade traçando um retorno à
sua linha histórica do pensamento, com referência a
reinterpretações atualizadas”.
Verá, pois, o leitor que este livro cruza espaços largos. Seus
autores trabalham em locais tão diversos quanto as
Universidades Hebraica de Jerusalém, em Israel, Ljubljana, na
Eslovênia, a Estadual do Paraná, no Brasil, Granada, na
Espanha e do Aveiro, em Portugal; cabendo salientar,
igualmente, a reunião de estudiosos chineses, tanto da
mainland China (Beijing International Studies University,
Universidade de Macau, Fudan University de Shanghai),
quanto da diáspora (Universidade Tecnológica de Nanyang,
Singapura), muitos dos quais tem trabalhos seus publicados em
português pela primeira vez, um dado que certamente alegra
estes organizadores. Trabalhando em três continentes,
conseguimos construir um volume coerente.
17
Ao finalizar esta apresentação, gostaria de acrescentar dois
momentos em que a História da China e minha vida intelectual
cruzaram caminhos – optando, inclusive, pela primeira pessoa
para redigir esse pequeno trecho. Ingressei no ensino superior
em 1993, e era, então, um jovem acadêmico interessado na
cultura dessa civilização; não raro, tal interesse tornou-se
motivo de chacota, não apenas de colegas, mas também de
professores. Se tal ambiente, possivelmente, me desviou de um
possível caminho de pesquisa, jamais abalou minha paixão e
interesse pelo pensamento chinês.
18
deveres de súdito; o pai, os deveres de pai; o filho, os deveres
de filho’13.
Alguns anos antes, por volta de 1996, chegou até mim um dos
livros mais importantes à minha formação: Poemas chineses,
tradução de Cecília Meireles da poesia de Li Po e Tu Fu (sic).
Em que pese serem traduções de terceira mão – Cecília não
conhecia o chinês, como tampouco Manuel Bandeira lia o
persa, e para verter o Rubayat de Omar Khayyan, partiu da
versão francesa –, esta obra me jogou nos braços do magnífico
ébrio Li Bo, uma paixão que atravessa os anos sem demonstrar
arrefecimento. Encantou-me, particularmente, a singeleza
como a poetisa das Gerais descreveu os versos de seu colega
oriental:
13
CONFÚCIO. Os Analectos, XII:11. Tradução de Múcio Porphyrio
Ferreira. São Paulo: Pensamento, 1997, p. 92.
14
MEIRELES, Cecília. Homenagem a Li Po. In LI Po e TU Fu. Poemas
chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 21.
19
copas das árvores, e pela melancolia que agrega tudo isso.
Sobretudo, encantei-me com aquele pequeno pedaço de
existencialismo precocemente surgido no século VIII, Bebendo
sozinho ao luar (月下獨酌):
20
bêbados, agora cada um segue seu caminho
estranha festa
rio do céu”.
21
SOBRE O HUMANISMO NA CHINA;
OU, DE COMO A POESIA
ORIENTOU O CÉU por Alicia
Relinque Eleta
Diz um poema:
22
Eu, sereno, e nós nos divertimos juntos;
23
Céu e da Terra, e justificaram, assim, uma para a outra", e isso
é precisamente o que muitos historiadores consideram o ponto
fundamental do pensamento chinês, que pode ser resumido na
afirmação de W.T. Chan: "Se há uma palavra que pode
caracterizar toda a história da filosofia chinesa, essa palavra
seria Humanismo - não o humanismo que nega ou menospreza
um Poder Supremo, mas que professa a unidade do homem e
do céu. Neste sentido, o humanismo tem dominado o
pensamento chinês, desde o alvorecer da história".2
24
incidirá precisamente sobre a Figura do homem - um homem,
melhor dizendo - dotado de certas qualidades, mas que deve ser
transformado, educado, cultivado, para ser capaz, em última
instância, de governar os outros.
Glorioso e inefável.
e se me conceder recebê-la,
25
apenas na medida em que um governante ou uma dinastia siga
sendo digna de ostentá-lo, o Mandato do Céu a legitimará para
governar "tudo-debaixo-do-Céu"5:
Os descendentes de Shang
são inúmeros,
se submeteram a Zhou.
26
Cultiva a florescente virtude,
27
filosófico, ético e político da China, será o Mestre Kong (551-
479 AEC).
28
os mortos?" [O Mestre] disse: "Se você não sabe sobre os
vivos, o que pode saber sobre os mortos?" (11.11)
29
forma comprimida, e à direita pelo numeral "dois" (er).
Traduzido como "benevolência", "bondade" ou "humanidade",
representa precisamente a relação entre dois homens, e também
joga com a homofonia deste ideograma com a palavra
"homem" (também pronunciado ren, mas representado como
um indivíduo que caminha). Do significado original, que
parece ter possuído a noção do sentido de amor e de
condescendência do soberano para com seus súditos, a
interpretação que Confúcio lhe dará será matizada10. E,
embora nos vinte capítulos dos Analectos, quase dez por cento
das histórias ou diálogos referem-se a noção de "humanidade"
não encontramos em qualquer lugar uma definição clara e
delimitadora do que ela é. Em vez disso, o Mestre joga conosco
a deambular em torno da noção oferecendo diferentes aspectos
sobre como interpretar o conceito. As duas vezes que parece
definir mais claramente o conceito são:
30
Fan Chi perguntou o que é a humanidade. O Mestre
disse: "Amar os homens." "E a sabedoria?" O Mestre
disse: "Conhecer os homens."
31
outro, o objetivo final é o governo dos homens. A dor e o
ressentimento que poderiam levar ao caos no Estado (e em seu
referente, a família) são evitados; por outro, unindo a
humanidade/amor com a sabedoria, alude-se a dois modelos de
governos virtuosos, o lendário imperador Shun (2255-2207
AEC) e o fundador da dinastia Shang, Cheng Tang (século
XVII AEC), que escolheu como sucessores homens devotados,
apesar de sua origem plebéia. O amor referido no segundo
fragmento não significa um amor universal; a matização
imposta pela sabedoria ao amor universal, a inclui, de certa
forma, submissa dentro do mesmo conceito de humanidade, a
ponto da Humanidade determinar o que deve ser amado ou
odiado: "O Mestre disse:" Apenas aqueles que possuem a
humanidade podem amar aos homens, e podem odiar os
homens "(4.3). Apenas amar aqueles que são dignos de tal
Amor, e odiar aqueles que não são.
32
Yan Yuan perguntou o que era a humanidade. O Mestre
disse: "superar a si mesmo e voltar ao ritual, isso é a
humanidade. Quando se vence a si mesmo e retorna
para os ritos, tudo sob o céu vai virar a sua humanidade.
A humanidade nasce de si mesmo, acaso poderia ser
tomada a de outros?".
33
Nos Analectos, além de inúmeros rituais genéricos utilizados
em diferentes épocas e lugares referências, expande-se
claramente seu alcance para se referir a um conjunto de
atitudes que mostram modos de comportamento social.
Especialmente instrutivo a esse respeito é o livro 10 dos
Analectos, onde se enumeram as atitudes de Confúcio em
aspectos tanto públicos como privados de relacionamento com
os outros: como falar com um governante (10,2), o tipo de
saudação que se faz ao entrar no palácio (10,4), a forma de
levar objetos rituais (10,5), a vestimenta em situações
cotidianas ou períodos especiais, como no luto (10,6), o tipo de
alimento também para ocasiões especiais (10,8), etc.12. Na
verdade, há um vasto repertório que exemplifica em cada
situação o que deve ser a atitude e a compostura correta.
Assim, como assinala Du, os ritos "podem ser vistos como uma
externalização de ren [humanidade] em um contexto social
específico" ou, que é mesmo "um princípio de particularismo
que significa como o processo de auto-realização de ren tem
lugar"; o que para ele significa que "um confucionista sempre
exibe sua auto-formação moral no contexto social"13. E
parecem confirmar este ponto as palavras de Confúcio: "Se um
homem não tem a humanidade, de que servem os ritos?” (3.3).
No entanto, deve ser notado que esta atualização do que a
princípio se apresentava como uma atitude e um sentimento, ao
manifestar-se, mostra sempre uma posição determinante na
hierarquia. Cada indivíduo dentro da sociedade, não só se
relaciona com outros seres humanos, mas se relaciona em
função de sua posição dentro dela. Neste sentido, em
34
comparação com as duas definições opostas que em um
momento Merleau-Ponty nos oferece sobre o que é o
humanismo, primeiro definido como a "filosofia do homem
interior que não encontra nenhuma dificuldade, em princípio,
nas suas relações com os outros, nenhuma opacidade no
funcionamento da sociedade, e que substitui a cultura política
pela exortação moral"; e frente a essa como "uma filosofia que
enfrenta como problema a relação do homem com o homem, e
do estabelecimento entre eles de uma situação e uma história
que são lhes comuns"14, poderíamos identificar a primeira
posição com o conceito de ren "humanidade", em que parece
que a harmonia que rege as relações humanas. No entanto, o
conceito de "ritual" (li) confronta-nos com o problema da
posição desigual dos indivíduos na sociedade, que deve ser
resolvido em favor de um lado ou do outro na luta por posições
de privilégio.
A Transmissão da Virtude
36
si mesmo, faz os outros triunfarem. Tomar o exemplo
em si mesmo pode ser dito como a direção para a
humanidade. "(6,28)
37
vento; a dos homens menores, como a grama. Quando o
vento sopra, a grama se curva diante dele." (12.19)
38
Documentos (Shujing): “O shi [e, por extensão, a poesia] diz as
intenções" (shi yan zhi).
39
Com quem tecem suas intrigas?
Murmurando,
sussurrando,
tramais a traição.
Rumores, murmurando
Tramais a mentira
sofrerão as traições
Os soberbos desfrutam
e sofrer os esforçados.
Vigia ao soberbo,
40
Se compadece dos esforçados.
jogue-os no Setentrião.
Se o Setentrião os rejeitar,
O assistente Mengzi
41
A clara crítica que supõe este poema se opõe, como no outro
lado da mesma moeda, aos outros dois poemas que pertencem
as grandes odes. Nelas, os "poemas compostos" estão em um
claro tom de exaltação às virtudes dos grandes homens. O
primeiro, n.252, supostamente feito pelo Senhor de Shao para o
jovem governante Cheng (1115-1078 AEC), se encontra a
meio caminho entre a loa e aconselhamento:
Na curva da colina
soberano feliz
Soberano feliz,
42
Senhor de cem espíritos.
Soberano feliz,
43
Excelso, o cume
Sagrado erguido
atinge o céu.
44
Organiza os dez mil territórios
de melodia delicada
45
Você não é bom,
Mas eu compus esta canção sobre você (ji zuo er ge) (257)
46
comportamentos abusivos daqueles que possuem algum tipo de
poder19.
47
influenciar toda a concepção posterior da poesia encontra-se
em 17,9, onde Confúcio desenvolve aquela expressão concisa
que "a poesia diz as intenções" para assinalar com precisão o
papel do Shijing: observar, agrupar e ordenar –
hierarquicamente –as relações entre os seres humanos,
reclamar quando não funcionarem corretamente, e igualmente,
aprender a nomear o mundo: "Discípulos, por que vocês não
estudam o Shijing? Com ele vocês podem despertar (xing),
observar (guan), juntar os homens (qun) expressar a dor (yuan).
Ajuda a servir o pai em casa, e ao soberano, fora. E, além
disso, aprendem-se muitos nomes de pássaros e animais, de
árvores e ervas. "(17,9).
48
A interpretação alegórica do Shijing estabelecerá para sempre o
padrão para leitura de textos. De fato, diversas fontes mostram
que o uso extensivo de versos do Shijing se fazia tanto em
conversas privadas e públicas, e especialmente em reuniões
diplomáticas, em que a ambigüidade do verso poderia ser lida
como uma suave advertência, uma ameaça, uma súplica ou na
exposição do verdadeiro caráter de quem o declamava.
Exemplo paradigmático é recolhido no Zuozhuan (século IV
aC), no qual o Senhor de Zheng pede ao Duque de Lu que
interceda por seu território ante o Duque de Jin. Para comover
o Duque de Lu, um dos oficiais de Zheng, Wenzi, entoa o
poema "Gansos gigantes" (181) "gansos gigantes voam,
batendo suas asas; nossos filhos partiram para a guerra, sofrem
mil privações mil em terras inóspitas, quanta compaixão
despertam, pobres viúvos, pobres viúvas [...]). Um conselheiro
Lu, Zijia, desconsidera o seu pedido com o poema "Quarto
mês" (204), que narra as tristezas de um oficial solitário. Insiste
Wenzi com o poema "Caminho rápido" (54) sobre uma garota
que se lança sozinha pelas estradas, determinada a consolar seu
irmão pela morte de seus pais. Finalmente, ele obtém obter o
consentimento de Zijia confirmando seu apoio com
"Recolhendo brotos" (167, "O carro do meu Senhor, um carro
bem preparado, com quatro cavalos fortes [...]")23.
49
como uma doutrina fechada e coerente, e se instituir como
ideologia de poder, a poesia terá um lugar proeminente nela.
Notas
50
5. O termo "tudo-debaixo-do-céu" (Tianxia) é usado nos textos
clássicos para se referir ao mundo, pois o governante o será em
todo o mundo (conhecido).
51
9. A. H. Suarez, em Confúcio, Lunyu, p. 21. Para uma
apresentação completa sobre Confúcio e suas idéias, ver A.
Cheng, Historia del pensamiento chino, Barcelona, Bellaterra
de 2002, especialmente p. 55-82.
52
12. S. Van Zoeren resume a formação dos Analectos em quatro
momentos diferentes. O Livro 10 pertenceria ao penúltimo
período, ou seja, quando o conceito de "ritual" (li) já tinha
estendido o seu significado para todas as atitudes ali descritas.
Vid. S. Van Zoeren, Poetry and Personality. Reading, Exegesis,
and Hermeneutics in Traditional China, Stanford, Stanford
University Press, 1991, p. 26.
53
República de Platão são dois conflitos que também surgem na
China pré-Imperial: em primeiro lugar, a oposição entre poetas
e filósofos em seu papel de educadores; em segundo lugar, a
capacidade de linguagem (a escrita) para "representar"
corretamente o mundo das idéias e das realidades e, como pano
de fundo em ambos os casos, a interpretação alegórica dos
textos.
54
23. Zuozhuan, duque Wen, ano 13. Vid Yang Bojun, Chunqiu
Zuozhuan zhu, Pekín, Zhonghua, 1983, pp. 598-599.
55
O CULTO DA MULHER NO
NEOLÍTICO CHINÊS por Ana Maria
Amaro
56
O Imperador Amarelo (c. 3000 a. C.), cuja existência histórica
se perde no domínio da lenda, é o terceiro dos três Augustos ou
imperadores lendários, duma remota dinastia Xia da qual, até
aos anos 70-80 do século XX, não se tinham encontrado
quaisquer vestígios históricos. Admite-se que esta dinastia
corresponderia a uma fase avançada do Neolítico chinês, uma
vez que foram recentemente exumados no Norte da China, em
Liaunim, vestígios arqueológicos duma antiga cidade com
culto organizado e classes sociais bem demarcadas.2 O
Neolítico chinês é, porém, um período ainda mal conhecido,
por mal estudado, em resultado da escassez de dados
arqueológicos até hoje exumados em tão vasto território.
Estabelecendo comparações, no tempo, entre a pré-história
ocidental e a do Oriente, verifica-se que o período pós-glaciário
de Würm, na Europa, é equivalente, na China, ao período em
que, ali, viveu o Homem de Dali, Homo Sapiens arcaico chinês
(c. 50000 aproximadamente).
57
humana, tivessem sido ocupadas, outrora, por bandos de
homens capazes de se fixarem e desenvolverem uma cultura
neolítica cujos vestígios são ainda muito mal conhecidos.
Aliás, foi nos contrafortes dos montes Qinling, em Banpo
(Shaanxi), que foram exumados os mais antigos restos de
Hominóides e onde foi exumado, também, entre 1953 e 1957, o
mais vasto conjunto neolítico hoje conhecido na China. Esses
vestígios arqueológicos, datados de 5000-3000 a. C., oferecem-
nos uma imagem viva da primeira das grandes sociedades
agrárias que floresceram na China. A povoação era constituída
por abrigos semi-subterrâneos com coberturas feitas de
vegetais. Eram construções, circulares ou quadrangulares, com
cerca de 5 metros de diâmetro ou de lado. Admite-se que a vida
comunitária dessa aldeia se desenvolvia já nas chamadas "casas
dos homens", construções retangulares, maiores do que as
demais habitações, com cerca de 14 x 21 metros cujos vestígios
foram ali exumados. Esta aldeia era protegida por um fosso de
cerca de 100 x 200 metros, com uma profundidade de 5 a 6
metros, fosso onde corria água e que, para além da função de
defesa, tinha a vantagem de irrigar os campos vizinhos. Para
além deste fosso, encontraram-se túmulos retangulares,
repartidos por ditas zonas distintas, uma destinada a mulheres e
outra a homens, o que parece apontar para a existência de
algumas regras funerárias, a mais aparente das quais era a
separação dos sexos. As crianças, por seu turno, eram
enterradas em vasilhas de barro, no chão das próprias
residências ou nas suas imediações. Anteriormente a este
período hoje bem conhecido registrou-se, na China, um hiato
de cerca de 100000 anos, o que leva a muitas interrogações
58
sobre o que se teria passado nos finais do Paleolítico, naquele
tão vasto território até ao aparecimento das primeiras
populações neolíticas.3 Desde o Paleolítico Inferior que as
primeiras manifestações humanas apareceram extremamente
diversificadas na China. Contudo, as descobertas atuais atestam
a existência duma antiga rede humana, muito mais densa
naquele território do que a escassez de vestígios fazia até hoje
supor. Desde o final do Pleistoceno Médio e durante todo o
Paleolítico Inferior (c. 500000 a 200000 anos
aproximadamente), o Homo Erectus Pekinensis habitou nos
arredores da atual capital da China, na bacia do Rio Amarelo.
A sua utensilagem era semelhante à acheulense sendo as suas
armas simples, mas aperfeiçoadas ou endurecidas pelo fogo.
Considerado único na China durante muito tempo, este grupo
de Hominídeos, cujos primeiros restos fósseis foram exumados
nas grutas de Zougoudian nos anos 20, está hoje longe de ser
assim considerado, pois foram já exploradas numerosas outras
jazidas, quer no Norte, nomeadamente em Shaanxi, quer no Sul
da China. Os achados multiplicaram-se a partir dos anos 60 e,
atualmente, conhecem-se já vários testemunhos fósseis de
antepassados do Homo Erectus Pekinensis. Segundo alguns
antropólogos, a humanidade paleochinesa instalada na bacia
(senso latum) do Rio Amarelo evoluiu lentamente do
Paleolítico para o Neolítico, sob influência de povoações
situadas na China do Sul, região que se tornara então quente e
luminosa, e propícia à vida sob todas as formas, e muito em
especial à prática da agricultura dita "espontânea". Terá sido ali
que o cito "grupo mongolóide" terá adquirido as suas
características específicas que hoje lhe conhecemos. Para
59
outros, a neolitização da China ter-se-ia verificado no Norte,
em Gehe-Dingun, derivada da cultura Emaokon dos finais do
Paleolítico Superior.4
60
pedra polida, perdurou na tradição chinesa a história lendária
das suas primeiras Cidades-Estados bem como o próprio mito
da criação do mundo e da humanidade. Nos tempos da China
arcaica, alguns milhares de anos antes da nossa Era, foi o culto
da mãe-terra e da fecundidade que deram estabilidade à relação
mãe/filhos, relação que assegurava a continuidade ao grupo,
em detrimento das relações entre os parceiros, e também da
relação pai/filhos, tão cara à futura ética confucionista. A
mulher era a mãe. O pai era incerto, e desconhecido foi durante
muito tempo o seu papel na criação.5 Daí, a mulher não
receber, naqueles antigos tempos, o nome da sua própria
família. A Senhora Chang e a Senhora Deng eram, por
exemplo, as duas esposas do Senhor Liu que viveu antes do
século VI a. C.6 Nesses remotos tempos surgiram, na China,
numerosos contos nos quais a heroína é uma mulher. De fato
era ela a mãe, o símbolo da fertilidade e da continuidade da
família, aquela que representava o mais importante papel nas
correntes espirituais da China arcaica.
61
célebres, como Li Bai, que exaltavam a mulher, ao tempo
relegada a uma condição social de pura inferioridade.
62
confucionista manifestaram, sempre, pelas "descrições
fantásticas", fazendo, por isso, com que essas histórias em que
os homens se confundiam com deuses, opostas aos valores
ortodoxos tradicionais, acabassem por chegar aos nossos dias
desprovidas de um conteúdo coerente e, por vezes, mesmo
contraditório.
63
Universo.9 E contam: Era indescritível o regojizo que sentia
Nu Wa pela beleza da criação; do Céu maravilhoso onde
brilhavam o Sol, a Lua e numerosas estrelas e da Terra com as
suas montanhas, rios, flores e árvores pujantes, onde pássaros e
outros animais se multiplicavam. No entanto, parecia-lhe que
havia algo que faltava nesta obra monumental. Havia
necessidade de um novo ser à semelhança dos deuses, mais
inteligente do que os outros animais, e capaz de se autobastar e
governar "todas as criaturas que se encontravam debaixo do
Céu".10
64
numerosas. Para que se propagassem, Nu Wa "ensinou-lhes a
contrair matrimônio" e a "organizarem-se em famílias". Nu Wa
tornou-se, assim, na criadora e mãe bondosa dos seres
humanos, e foi ela quem interveio, mais tarde, quando o Deus
do Fogo e o Deus da Água lutaram, desavindos, e uma das
quatro colunas que serviam de suporte ao Céu foi derrubada.
Com o "impacto", a Terra sofreu um grande abalo e as águas
brotaram do seu centro, "invadindo os campos e as florestas"
que, entretanto, se incendiavam com as chispas resultantes do
atrito entre as pedras que rolavam.
65
humana, enrolada no corpo de Fu Xi, a quem os Chineses
atribuem a criação do primeiro Estado incipiente — que iniciou
a dinastia Xia.
66
de uma antiga cultura, que ficou conhecida por Cultura de
Hongshan (Montanha Vermelha), nome da cordilheira onde
foram exumados os primeiros testemunhos da mais recuada
comunidade chinesa organizada em Estado até hoje conhecida.
A datação pelo Carbono 14 atribuiu-lhes 5000-4500 anos. Ao
que parece, pois, o lendário Imperador Amarelo e a dinastia
Xia, de que apenas a tradição conservou a memória, não são,
apenas, um mito, pois a Montanha Vermelha em Liaunim é
extremamente rica em vestígios do que teria sido essa opulenta
cultura. Encontraram-se ali, a par de objetos de cerâmica
vermelha, com decoração a negro, numerosos instrumentos
agrícolas em pedra lascada e polida, de grandes dimensões, e
ainda ornamentos, também polidos, em pedras semipreciosas,
possivelmente usados pela classe dirigente. Das peças
recolhidas, são particularmente interessantes um arado e uma
enxada de pedra, de enormes dimensões, o que parece apontar
para a importância e para o elevado nível que havia atingido,
já, a agricultura naquela região.
67
De todos os achados, porém, os mais interessantes consistem
em figurinhas de barro cozido, com dimensões compreendidas
entre os 5 e os 8 cm, representando mulheres despidas, em
estado adiantado de gravidez. É flagrante o paralelismo entre
estas figuras e as Vênus aurignacenses, tanto européias como
do Próximo Oriente, até hoje conhecidas. Simplesmente, as
únicas figuras deste tipo encontradas na China, datam de há
5000 anos, ao passo que a mais antiga figura européia similar,
talhada em xisto esverdeado, data de cerca de 37-29 mil anos.
Para alguns autores, as Vênus européias eram usadas como
pendentes, desempenhando o papel de fetiches ou talismãs, em
virtude do poder de exorcismo e de proteção que, ao sexo
feminino, é atribuído por vários grupos do Mundo
Mediterrânico e Africano atuais. Alguns autores relacionam
estas Vênus européias com uma prática de magia protetora,
embora a sua relação com o culto da fecundidade seja
atualmente a opinião bastante mais vulgarmente aceite. É
natural que, na China, as estatuetas semelhantes às das Vênus
do Ocidente se destinassem ao culto da fecundidade, mas
também pode acontecer que a sua função se relacionasse com
práticas de magia protetora, com vista minorar os acidentes de
parto ou, eventualmente, contra a esterilidade, à semelhança do
que ainda hoje se verifica, por exemplo, entre os chineses
conservadores de Macau.
68
conservou em melhor estado. Apresenta olhos esféricos de jade
polido e uma fisionomia que a aparenta com as conhecidas
figuras de divindades das velhas civilizações ameríndias. Esta
deusa, cuja cabeça mede 22,5 cm de altura, é a peça mais
antiga, deste tipo, descoberta na China, pois atribuem-se-lhe,
aproximadamente, 5500 anos. O grande altar do templo que lhe
era dedicado, voltado para sul, era circular, com 2,5 m de
diâmetro, rodeado por lages de pedra muito finas, sendo a sua
superfície revestida por uma camada de pequenos seixos. Em
redor do altar, descobriram-se mais de vinte fragmentos de
corpos de diferentes figuras humanas de barro, dos quais
existem dois relativamente completos, que são seguramente de
mulheres — as ditas "Vênus chinesas" a que, atrás, nos
referimos. É de notar que as dimensões destas pequenas figuras
oscilam entre 6,8 cm e 5 cm (dimensões semelhantes à da
maioria das suas congêneres européias). Ambas estão
desnudadas e encontram-se em posição semierguida, com as
pernas levemente fletidas, o abdômen saliente em estado
adiantado de gravidez, as nádegas evidentes mas não
exageradas, e o braço esquerdo curvado, com a mão apoiada
sobre o ventre, em aparente trabalho de parto. É pena que não
se tenham encontrado as cabeças. Contudo, são de notar
particularidades somáticas, que ainda hoje são características
das mulheres orientais: esbelteza, ancas e nádegas pouco
volumosas e seios pequenos e cônicos.
69
de corpo nu, com as duas mãos cruzadas sobre o ventre,
apresentam as pernas cruzadas e os pés apoiados nos joelhos. A
cintura de uma delas está adornada com uma faixa. Estas peças
são muito preciosas, pois o seu estudo será um valioso
contributo para o conhecimento da antiga cultura da "Montanha
Vermelha", relativamente afastada da bacia do Rio Amarelo,
tradicionalmente considerada o berço da civilização chinesa.
Por não se terem achado artefatos metálicos em Liaunim,
alguns autores chineses admitiram que esta cultura se
encontrava, ainda, numa fase neolítica tardia. No entanto, se
esta cultura detinha já o dragão como símbolo, e possuía um
culto organizado, deveria ter, já, uma estrutura social bastante
desenvolvida. Reforçam esta hipótese os estudos feitos nos
cemitérios de pedras empilhadas, da mesma data, situados
próximo deste templo, em pontos elevados, dispersos pelas
cotas altas da "Montanha Vermelha" e dos seus contrafortes.
Observando as ruínas no seu conjunto, verifica-se que o templo
da deusa fica no centro, estando os cemitérios distribuídos por
mais de vinte elevações dos arredores. O templo e os
cemitérios apresentam, aliás, uma visível correlação, sendo a
sua distribuição relativamente complexa, o que parece refletir a
consciência social e religiosa dos então habitantes da área.
70
construções diversificadas e complexas. Não é difícil imaginar-
se que se tratava de um local de culto, um palácio alto e
esplendoroso, onde se alinhavam estátuas de divindades de
várias dimensões.
71
seios volumosos contrapõem-se à esbelteza das Vênus da
China, que lembram mais a de Galgenberg e a de Sireuil,
consideradas, aliás, figuras de adolescente. Se as ancas, a
esteatopigia e o volume dos seios eram realçados no Ocidente,
na China é dado, apenas, particular relevo ao ventre. Assim, a
inscrição no losango das figuras de Vênus ocidentais num dos
modelos, que Leroi-Gourhan propôs, parece não ser aplicável
às Vênus chinesas, afastando toda a relação simbólica desta
forma geométrica, com a mulher, no Oriente. A ausência dos
pés das Vênus em pedra no Ocidente também se verifica nas
Vênus da "Montanha Vermelha", mas talvez devido a fratura,
uma vez que foram achados fragmentos isolados de pés
pertencentes às figuras de maiores dimensões.
72
do seu altar. Surpreende, aliás, que todas as pequenas figuras
exumadas se apresentem sem cabeça e sem membros
completos. Resultado de algum antigo ritual? Simples acaso?
73
Aguardemos a descoberta de mais vestígios arqueológicos em
Liaunim e o estudo em curso dos que já foram exumados, para
que seja possível tirar conclusões mais consistentes.
Notas
74
3. ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique.
75
14. BULTÉ, Jeanne, Talismans Égyptíens d'Heureuse
Maternité.
Bibliografia
77
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO:
A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS
CONFUCIONISTAS PARA A
COMPREENSÃO DA CIVILIZAÇÃO
CHINESA por André Bueno
Introdução
79
breve apresentação acerca da necessidade de entender
Confúcio para compreender a China. Ambos são
indissociáveis. É praticamente impossível apreender a China de
hoje sem investigar seu passado. É o que proporei aqui.
O Modelo do Sábio
80
figuras que não deixaram praticamente nada escrito,
extrapolaram suas fronteiras e ganharam uma dimensão
religiosa. Suas doutrinas, porém, sobreviveram ao longo dos
séculos, transformando-se em movimentos de forte cunho
social. Nessa categoria, entre muitos outros, Jaspers incluía
Jeremias, Buda, alguns pensadores gregos e Confúcio.1
81
Fanchi perguntou o que é sabedoria.
[...]
82
o grande articulador de sua cultura. Daí, podemos entender o
ponto de vista de Jaspers: afinal, como Confúcio conseguiu ser
o modelo ético de sua sociedade sem apelar para o elemento
religioso? Confúcio não invocou o poder dos deuses para fazer
funcionar a sua doutrina. Na verdade, ele nada impôs: apenas
informou que a degeneração social criaria os seus próprios
tormentos, num cálculo absolutamente racional da questão.
83
transformou num movimento intelectual de profundas
implicações sociais.
Os Estudos Acadêmicos
84
sociais eram gerados pela ignorância. Não haviam deuses
envolvidos na questão: a degradação humana era causada pela
própria humanidade. Confúcio defendia que estávamos
integrados num sistema ecológico natural (que ele chamava de
Céu, Tian 天), em que as agressões e desregramentos geravam
os efeitos negativos que assolavam a sociedade. O primeiro
capítulo do livro A Justa Medida (Zhong Yong, 中庸) define
bem isso:
85
e terra estarão em seus lugares, e todos os seres
prosperarão.
86
• Yijing 易經, ou Tratado das Mutações, livro que guardava os
antigos conhecimentos sobre as teorias científicas chinesas, e
servia também como oráculo;
87
acreditava que na história (Shi, 史) estavam contidos os
grandes exemplos morais, as experiências de vida necessárias à
descoberta da sabedoria, os eventos elucidativos que
explicariam as razões pelas quais somos hoje o que somos. A
história ensinaria a origem e as funções dos mecanismos
sociais, permitindo-nos aceitá-los, praticá-los ou mesmo
modificá-los, segundo as conveniências da época.
Compreendendo as raízes da cultura, compreendemos, por
conseguinte, o desenvolvimento da moral e da justiça (Yi, 義).
Foi isso que ele nos legou as Recordações
Culturais (Liji, 禮記)2, uma extensa compilação dos hábitos,
costumes e crenças de sua época. No passado podia ser
encontrada a fonte da sabedoria. Eis porque ele afirmou,
nas Conversas 論語: ‘amo o passado, e o imito’, e também:
‘mestre é quem sabe o antigo, e descobre o novo’.
88
escola acadêmica, utilizado como base, até nossos dias, para o
aprendizado do Confucionismo e da Educação em geral.
O Projeto Social
89
Para o Educado, a única maneira de civilizar o povo e
instituir bons costumes sociais é pela educação. Por isso
os antigos soberanos consideravam a educação como o
elemento mais importante, em seus esforços por
implantar a ordem no país. [...] Só por meio da
educação, pois, tornar-se-á alguém insatisfeito com o
que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que a
gente dá-se conta da incômoda insuficiência dos
próprios conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe, a
pessoa então percebe que é seu o mal, e dando-se conta
da incômoda insuficiência de seus conhecimentos
sentir-se-á impelida a aprimorar-se. (Recordações
Culturais, 禮記)
90
Confúcio era materialista e racional, como aparece nas
Conversas 論語:
91
A doutrina confucionista não era, portanto, religiosa tal como
entendemos. Confúcio defendia a existência de um sistema
ecológico, denominado ‘Céu’ (Tian, 天), que governava a
natureza por meio de leis – tais como hoje entendemos como
‘leis da natureza’. Mesmo deuses e espíritos estavam inseridos
nesse sistema. Por isso, a função da política humana era
interpretar os sinais da natureza, e convertê-las em políticas
públicas adequadas. Uma importância fundamental era dada,
por exemplo, ao calendário anual - atributo do imperador - que
regulavas as estações do ano, a época de plantio e colheita, e as
demais atividades cotidianas. Definir o calendário era adequar-
se ao curso do Celeste; contrariá-lo era investir no erro e atrair
sobre o império a calamidade. Isso fica bem claro no Tratado
dos Livros 書經:
92
O Mestre estava doente. Zilu queria rezar por ele. O
Mestre disse: e como é isso? Zilu disse: invocamos os
espíritos de cima e de baixo. O Mestre disse: já faço
isso há muito tempo, não vai dar certo.
A Base Familiar
93
A partir delas, a sociedade poderia ser estruturada
dentro de uma cadeia de relações pré-determinadas, que
definiam obrigações, direitos e deveres dos indivíduos,
evitando a maior parte dos dilemas morais. Essas
obrigações eram compreendidas por meio da educação,
tanto na escola quanto no lar. Era o papel da
fraternidade familiar, aqui descrito no Tratado da
Fraternidade Familiar (Xiaojing, 孝經):
94
Tratado dos Livros diz: o Céu abençoa o soberano
fraterno, e todos são abençoados juntos.
O Governo
96
Nas Recordações Culturais (Liji, 禮記), Confúcio também
informa como deve proceder um bom soberano, reforçando o
sistema por ele proposto:
97
Confucionismo e Sinologia
98
profundo sistema educacional proposto por Confúcio. A
educação humanística criou uma China sempre preocupada em
preservar-se, em manter-se viva ao longo da história. E na
China de agora, é o movimento do ‘Novo Confucionismo’ (Xin
Rujia, 新儒家) que vêm crescendo como alternativa política e
social a um comunismo cada vez mais enfraquecido e distante.
No passado, os chineses buscam alternativas para ao futuro,
usando uma fórmula consagrada: educar-se, aprimorar-se e
tornar-se um bom cidadão. Há milênio é isso que torna alguém,
idealmente, ‘chinês’ – mas não será, também, um bom modelo
para a humanidade em geral?
99
China demonstra tacitamente que a Educação serve à
perpetuação de uma sociedade. Sem Educação, uma sociedade
está sujeita a crises violentas e destruidoras, como foram as
revoluções que ocorreram na China. Devemos dedicar nossa
atenção a experiência chinesa: esse país milenário passou por
percalços históricos aos quais podemos evitar, se deles
pudermos extrair lições históricas que evitem nossos possíveis
erros. O estudo da sinologia, pois, não é um mero exercício
diletante de investigar o outro; mas é, fundamentalmente,
buscar no outro uma via de re-significação de si mesmo. O
modelo da Educação, tão bem sucedido entre eles, mostra que
essa pode ser uma aposta correta: mas depende de uma vontade
social, ligada ao desejo de auto-aprimoramento, que alicerça o
desejo de continuidade – e ao mesmo tempo, de mudança –
dentro da sociedade.
100
aviso. Nelas vislumbraremos a longa cadeia de acontecimentos
que fizeram povos desaparecerem, sobreviverem e se
reinventarem. Termino, novamente, com uma recomendação
do velho mestre sobre o caminho dos acadêmicos:
Notas
101
3.A relação entre Educação e Família é tão forte na cultura
chinesa que o ideograma ‘Jia’家 pode ser usado tanto para
designar ‘casa’ como ‘escola’. A escola, pois, é a segunda casa
de todo o chinês.
Bibliografia
De minha autoria:
102
http://orientalismo.blogspot.com.br/2014/01/confucio-no-
brasil-um-problema.html
Outros autores:
103
Jullien, F. Um sábio não tem idéia. SP: Martins Fontes, 2000.
104
LAO ZI E O TAOISMO por António
Graça de Abreu
105
O Tao Te Ching 道德 经, a obra que lhe é atribuída, será
anónima, posterior à sua existência real, redigida
provavelmente no início da dinastia Han 汉 (206 a. C.-220 d.
C.), talvez até da autoria de diferentes letrados. Considera-se
que, fruto da utilização no governo dos ensinamentos de Lao Zi
e também de Confúcio, o grande imperador Han Wendi
governou a China (de 197 AEC e 157 AEC) com sabedoria e
simplicidade. E foi o filho Han Jingdi, que lhe sucedeu no
trono, quem deu finalmente ao livro o nome de Tao Te Ching.
Lao Zi disse:
106
‘Os homens de que falais não existem. O tempo
consumiu seus corpos e ossos. Deles restam apenas
umas tantas frases.
107
resignar do cargo que ocupava e viajar para o Ocidente.
Ao chegar à passagem de Hangu, foi muito bem
recebido pelo comandante militar Yin Xi que lhe pediu:
108
Sabemos que o letrado He Shanggong (179 AEC - 159 AEC)
compilou a obra única de Lao Zi, distribuindo o texto do Tao
Te Ching pelos oitenta e um capítulos que continuam hoje a
dar forma a quase todas as edições. Três séculos mais tarde, o
letrado Wang Bi (220-244) fixou, comentou e anotou todo o
texto, também com oitenta e um capítulos e algumas variações
relacionadas com a inserção de uns tantos caracteres que ainda
hoje são objecto de discussão. Esta divisão corresponde aos
cuidados simbolistas e numerológicos da dinastia Han (206 a.
C.-220). O número 81 é 9 elevado ao quadrado e 9 equivale a
três ao quadrado. O número 3 está associado ao Céu, à Terra e
ao Homem, o 9 organiza o disperso, o 81 tem tudo a ver com a
unidade da diversidade.7
109
significativa mas a escrita, os caracteres gravavam-se em
pedra, lamelas de bambu ou em seda.
110
Do Tao
O que é o Tao?
Misteriosamente formado,
no silêncio do vazio,
111
vou chamar-lhe Tao.
112
“A essência do senhor do Céu é um espírito puro, sem
forma nem imagem que não pode ser visto, nem ouvido.
Possui em si as dez mil virtudes e felicidades. Existe
para sempre, reina para sempre, não tem fim nem
princípio. É omnipotente, omnipresente e
omnisciente.”10
113
isso, a distância entre o grande e o pequeno, entre o que
vem antes e o que vem depois, numa cadeia que não
tem fim.”11
Do Te
115
Do Taoísmo Filosófico, do Taoísmo Religioso
116
vital, o que faz com que a pessoa se torne independente do
corpo material. Assim a morte é uma espécie de metamorfose,
o mortal torna-se imortal. Ao morrer abandona o seu corpo mas
agora viaja pelo mundo a seu bel-prazer, goza de uma saúde
perfeita e nada lhe falta para ser feliz. Onde é que Lao Zi nos
fala de tamanhos sortilégios e assombros?
117
(321-379) e o seu modo original de, depois de caligrafar os
cinco mil caracteres do Tao Te Ching, não se ocupar mais das
míseras formalidades do relacionamento entre os homens. Diz
Li Bai:
118
entender como um penetrante diluir dos ensinamentos de Buda
no pensamento taoista. O chan ou zen só chegará ao Japão no
século XII mas começou a ter mestres e vida própria na China
a partir do sec. VI.17
Do Nome
119
obra como Tao Te King. Ora este jing 经ou ching ou king que
significa “livro canónico” ou “obra clássica”, pronuncia-se
king nos dialectos das vastas regiões a sul do rio Yangtsé, que
englobam, por exemplo, Xangai e keng na zona de Cantão. Daí
o Tao Te King muito usado em traduções francesas que
seguem o sistema de transliteração dos caracteres segundo a
denominada “Escola Francesa do Extremo Oriente”.
120
em obras recentes editadas na China, (ver bibliografia) já usam
Tao Te Ching e taoism, abandonando Dao De Jing e daoism.
Limito-me a expor o entendimento que tenho sobre esta
questão e a tentar ser coorente e consequente com o que acabo
de enunciar. Por isso, escrevo Tao Te Ching e taoismo.
Lao Zi e Confúcio
Lao Zi seria uns bons anos mais velho que Confúcio que
nasceu em 551 AEC Ter-se-ão encontrado uma ou duas vezes,
como de resto narra o historiador Sima Qian no texto traduzido
no início deste prefácio.
121
os sintomas da doença, era um paliativo para enganar os
homens bem intencionados, mas não combatia a origem, a raiz
da doença.
De resto Lao Zi, tal como Confúcio, viveu numa China ainda
não unificada, dividida em feudos, em reinos governados por
príncipes e senhores de guerra que combatiam entre si, e onde
imperava o despotismo. O próprio Confúcio lamentava o facto
de os homens amarem mais a beleza feminina do que a virtude
e reconhecia que os príncipes não o ouviam.
Confúcio respondeu:
122
-Consiste na capacidade de se encontrar a alegria em
todas as coisas, no amor universal, sem egoísmos. São
estas as características da benevolência e do dever
moral para com o nosso semelhante.
Lao Zi exclamou:
123
quatro direcções tudo se alterará no teu espírito. Se um
mosquito ou uma vespa te picar, podes passar toda a
noite acordado. Quando forçadas, a benevolência e a
rectidão perturbam o coração e provocam a maior
confusão. Tu, senhor, se queres que os homens não
percam a sua simplicidade natural, se queres imitar o
movimento do vento, se queres permanecer com os
atributos naturais que são teus para quê usar tanta
energia? É como rufar num grande tambor quando se
busca uma criança perdida. O ganso da neve não
necessita de tomar banho todos os dias para permanecer
branco, nem o corvo precisa de se pintar para ficar
preto. O branco e o preto vêm com a simplicidade
natural, não se questionam. A fama e os louvores
procurados por muitos homens não os fazem maiores do
que eles realmente são. Quando secam as águas dos
charcos, os peixes procuram ainda uma poça para salvar
a vida, salpicando-se, humedecendo-se com lama. Não
teria sido muito melhor se, na altura própria, se
tivessem dispersado por lagos e rios ?
Confúcio respondeu:
124
-Acabei de ver um dragão. Um dragão enrosca-se e
mostra a sua forma, distende-se e evidencia o seu
poder, voa para as nuvens e respira, alimenta-se do yin
e do yang. Eu mantive-me de boca aberta, não fui
capaz de a fechar. Como podia argumentar, como
podia corrigir Lao Zi?19
125
O outro rapaz argumentou: “Quando o sol se levanta é
pálido e frio, mas ao meio dia é quente como água a
ferver. É frio o que está mais longe, é quente o que está
mais perto. Não será assim?”
Conclusão
126
andar, escreveu o grande poeta sevilhano António Machado
(1875-1939).
Como é possível?
127
Ao entardecer, o ar fresco da montanha,
128
regem a nossa vida natural, opostos mas não contraditórios,
entrando um por dentro do outro, as duas partes de um mesmo
todo.
Notas
129
Anne Cheng, Histoire de la Pensée Chinoise, Paris, Ed. du
Seuil, 1997, pag. 176 e segs.
130
Apenas uma curiosidade: o número 81 é tão importante para o
taoismo mágico-religioso que vários textos posteriores ao Tao
Te Ching consideram que uma boa relação sexual deve ter em
conta, o vai-e-vem do falo do homem no sexo da mulher
repetido oitenta e uma vezes. Assim se alcançará o êxtase, um
bem sucedido orgasmo.
131
12. Prática da Perfeição/Daow-tq Keq, Macau, Jesuítas
Portugueses, 1987, pags. 50 e 60.
132
2010, em Não tenho Inimigos, não conheço o Ódio, Alfragide,
Casa das Letras, 2011, pag. 371.
Bibliografia
Em chinês
133
Tao Te Ching, comentário e modernização do texto,
Changchun, Jilin Wenshe Chubanshe, (Editora de Cultura e
História de Jilin), 1999.
Em português
134
Ester Bianchi, Taoismo I e II, Lisboa, E. Mediapromo, 2011.
135
O Livro de Tao (bilingue) (trad. João C. Reis e Maria Helena
O. Reis), Macau, Mar-Oceano, 2ª. edição, 1998.
Em castelhano
136
Tao Te King, Barcelona, Ed. Indigo, 2002.
Em francês
137
Tao Te King (trad. Claude Larre), Paris, Desclée de Brouwer,
1994.
Em italiano
Em inglês
139
Tao Te Ching (trad. David Hinton), Berkeley, Counterpoint,
2002.
140
Yin Zhihua, Taoism, Pequim, Foreign Languages Press, 2002.
Netografia
141
O ‘RITO DE PASSAGEM DO
ESCRITO AMARELO DA
CLARIDADE SUPERIOR’:
RELIGIÃO E SEXUALIDADE NA
CHINA ANTIGA por Bony Schachter
Introdução
142
terapêutica são bem documentadas. Se alinham a esta categoria
as fontes primárias que discutem ou mencionam a medicina
chinesa em sua relação com as artes do quarto房中術, isto é, as
práticas de higiene sexual voltadas para o prolongamento da
vida.
143
questão do gênero não é tão bem delimitada. Estas duas noções
assumem contornos nítidos quando se referem ao matrimônio e
ao papel de subordinação da mulher em relação ao homem.
144
livre iniciativa são pressupostos pelo rito sexual daoísta. Do
mesmo modo, nem a modalidade médica, nem a terapêutica, a
relativa ao amor livre e ao entretenimento poderiam explicar o
fenômeno da prática sexual no contexto do rito daoísta. Este
estava imbuído de noções de natureza abstrata que precisam ser
exploradas de modo a que se possa entender as finalidades do
coito no âmbito de tal religião. Assim sendo, deve-se
considerar tal atividade pensando-se o espaço em que era
executada. O problema do espaço nos leva à questão do
estabelecimento da primeira instituição religiosa daoísta, em
fins da dinastia Han (202 a.E.C. a 220).
145
chinesa substituiriam os sofrimentos enfrentados pelo povo
chinês durante a dinastia Han.
146
Paz era chamado, nos documentos da religião, por Povo-
Semente 種民. Assim sendo, o Caminho do Mestre Celestial e
a Revolução dos Turbantes Amarelos se configuram como dois
importantes movimentos político-religiosos do fim da dinastia
Han. O primeiro, se afirmará como o início do daoismo
histórico, enquanto o segundo será suprimido pelas forças
imperiais no curso de violentas batalhas.
147
Libador 大祭酒. O termo libador indica a própria função de
tais membros durante os rituais, quando eram empregadas
quantidades moderadas de bebidas alcoólicas nos serviços
sagrados. A classe dos libadores irá evoluir para uma linhagem
de sacordotes cujo ofício é passado de pai para filho. Não
apenas chineses Han como, também, outras etnias vivendo na
China, estrangeiros e mulheres eram aceitos como membros da
nova religião, dotada de propósitos universalizantes. As
comunidades contavam, também, com Casas de Caridade 義舍,
onde os passantes e os indigentes poderiam se alimentar e se
hospedar de graça, constituindo um excelente atrativo para o
aumento de seguidores em tempos de instabilidade econômica
e política. Parte das provisões era mantida com a contribuição
anual de cinco sacas (斗, aproximadamente nove litros) de
arroz por ano para a instituição por parte dos seus membros. A
Ordem Ortodoxa Unitária 正一派 contemporânea clama uma
ligação direta com o movimento religioso do Mestre Celestial
Zhang Daoling, embora a legitimidade e a validade histórica de
tal ancestralidade seja questionada por historiadores da
religião, que muitas vezes, e felizmente, não possuem
compromisso com qualquer programa de ordem religiosa.
148
mostram que para os membros das comunidades do Caminho
do Mestre Celestial, cada atividade cotidiana e não apenas a
execução dos ritos, tinha conotação religiosa. Este fervor
religioso, no entanto, não pode ser considerado um elemento
normativo da sociedade chinesa antiga. Nem todos os chineses
do período Han viam o mundo como um lugar habitado por
deuses e demônios. Na verdade, certos eruditos confucionistas
consideravam as práticas daoístas e dos fangshi como
devaneios, quimeras. Confucionistas não necessariamente
negavam a existência dos deuses e espíritos cultuados pelas
massas. Mas eles mesmos possuíam o seu próprio programa de
ritos, cujo objeto de culto não envolvia os mesmos deuses.
149
Virtude parecem ter sido destinados à recitação ritual, e não à
leitura.
150
organização nos documentos daoístas irá se comportar como
uma imagem espelhada da burocracia estatal. Assim, os deuses
são representados como soberanos, generais, oficiais, soldados,
conselheiros. Registros, talismãs, espadas, selos, carimbos,
água consagrada, invocações e rituais eram as armas usadas
pelos daoístas na batalha diária contra os demônios que lhes
traziam doenças, sofrimentos e, em última instância,
sustentavam o governo Han.
151
etapas de um complexo programa que envolvia visualizações
思, estímulos sonoros, exercícios respiratórios, massagens,
toques.
152
não pertencem à privacidade do indivíduo, mas sim ao bem-
estar geral de toda a comunidade dos daoístas.
Etapas do rito
153
aos doze ramos terrestres. Se ajoelham e recitam um texto
pedindo a participação no rito de passagem. O Mestre
concorda, afirmando que o dia é propício para a realização do
mesmo:
入靖陽立寅上陰立申上求過者長跪言某以肉人千載有幸得
染道化求法經時未蒙過度稽首歸依乞丐生活便再拜師答言
今日吉合當為橋梁求者重言願蒙成就答曰當為啟白弟子伏
惟受恩復再拜師便執手引之東向
154
respectivos registros, isto é, o documento que comprova sua
iniciação e adesão à comunidade do Caminho do Mestre
Celestial. O objetivo desta etapa é convocar as deidades
marciais do daoismo para que eliminem os desastres:
[...]各嗚鼓十二通各思所佩籙上功曹使者將軍吏兵冠顯衣服
羅列行伍衛臣妾前後左右當為臣妾致四方生氣消災散禍
各思丹田白氣大如六寸面鏡出在兩眉中問漸大光明照耀之
頭上下灌身雨體徹見五藏六府九宮十二室四支五體關節筋
脈孔竅營衛表裹一切莫不朗然如此一過止
155
Cada um visualiza o pneuma branco do campo do elixir do
tamanho de um espelho de seis cun saindo do espaço entre as
duas sombrancelhas, a sua luz aumenta gradualmente,
iluminando o topo da cabeça. Abaixo ela banha o corpo,
vendo-se completamente os cinco órgãos, as seis vísceras, os
nove palácios, as doze câmaras, os quatro membros, os cinco
corpos, as juntas, os tendões, os meridianos, os orifícios, as
funções dos pneumas Ying e Wei. Dentro e fora, não haverá
nada que não esteja claro e iluminado. Assim se faz uma vez.
各思王氣春思東方青氣潤澤我身赤氣相之夏思南方赤氣黃
氣相之秋思西方白氣黑氣相之冬思北方黑氣青氣相之四季
思中央黃氣白氣相之仰頭以鼻納氣低頭咽之下至丹田中上
昇崑崙
156
visualiza o pneuma branco da direção oeste, sendo
complementado pelo pneuma negro. Durante o inverno se
visualiza o pneuma negro da direção norte, sendo
complementado pelo pneuma verde. Durante as quatro estações
se visualiza o pneuma amarelo do centro, sendo
complementado pelo pneuma branco. Erguendo a cabeça, o
pneuma é recebido pelo nariz. Descendo a cabeça ele é
absorvido até o campo do elixir, subindo pelo centro até o
Kunlun.
各思三元生氣正白來下周帀覆身因仰頭以鼻納生氣言天一
宮生氣當來生我低頭咽之令滿腹下丹田中上昇泥丸地水如
天法咒咽訖仰頭以鼻納生氣天地水三宮生氣當共來生我身
低頭咽之令滿腹下丹田中上昇泥丸三宮生氣浩然正白覆身
體貫達五藏六府十二支干間如此一過止
157
Cada um visualiza o pneuma da vida plenamente branco dos
três princípios descendo, circulando e cobrindo todo o corpo,
quando se ergue a cabeça para captar o pneuma de vida com o
nariz, dizendo: “Pneuma de vida do primeiro palácio celeste,
venha me vivificar”. Desce-se a cabeça, absorvendo-o, fazendo
com que preencha o campo do elixir abaixo e com que suba
pelo centro até a pílula de lama. As invocações da terra e da
água são tal qual o método do céu. Depois de absorver-se [tais
pneumas], levanta-se a cabeça para captar o pneuma da vida
com o nariz. O pneuma da vida dos três palácios do céu, da
terra e da água deverá vir vivificar o nosso corpo. Descendo a
cabeça, absorve-se [tais pneumas], fazendo com que
preencham o campo do elixir abaixo e com que subam pelo
centro até a pílula de lama. O pneuma da vida dos três palácios
é vasto e completamente branco. Ele cobre o corpo, alcançando
o espaço entre os cinco órgãos, as seis vísceras e os doze ramos
e troncos. Assim se faz uma vez.
158
Rito da Grande Passagem das Oito Gerações八生大度之法) e
o seu desfecho por meio do anúncio do mérito.
159
J. Dez Deuses 十神, combinar os nomes dos Vinte Veneráveis
配十二尊名, visualizar os Cinco Deuses 思五神. Esta etapa
repete procedimentos já executados em etapas anteriores
(implorar para participar do rito, pedir pela exclusão do nome
nos livros da morte, eliminação dos desastres e participação no
Povo-Semente), só que desta vez invocando a presença dos
Dez Deuses já mencionados acima.
160
“com os quatro olhos e as duas línguas de frente um pro outro,
praticavam o Dao no campo do elixir”
四目兩舌正对行道在於丹田. Esta sentença sugere uma crítica
à proximidade física entre o homem e a mulher bem como ao
coito, uma vez que o campo do elixir se encontra no baixo-
ventre, na região próxima aos genitais. As etapas seguintes
continuam executando coreografias e técnicas correlatas
àquelas descritas até agora.
161
Além do Rito de Passagem ele mesmo, outros documentos
citam o rito acima descrito. A maioria das fontes que citam o
Rito de Passagem – sejam elas budistas ou não – apresentam
fortes críticas ao mesmo, pois o fato de seus participantes
empregarem o ato sexual como um recurso litúrgico é
considerado uma violação do mores chinês. Escandalizados, os
budistas deixaram diversos registros de sua consternação diante
do rito sexual. Mesmo fontes daoístas o reprovam, num
processo que se tornará cada vez mais grave a partir do século
V. Nas Declarações dos Autênticos 真誥 – uma coletânea de
revelações feitas pelos deuses daoístas a Yang Xi 楊曦,
coletânea esta fortemente ligada ao estabelecimento da
linhagem da Claridade Superior – há comentários relativos os
ritos de natureza sexual praticados no âmbito do movimento do
Mestre Celestial. Para o Homem Perfeito do Puro Vazio
清虛真人, o “caminho do amarelo e do vermelho” 黃赤之道,
isto é, a prática do rito sexual – amarelo e vermelho são cores
representativas dos pneumas do homem e da mulher – “não é
ocupação dos Seres Perfeitos”非真人之事也. Já a Senhora
Ziwei 紫微夫人 entende que embora o rito sexual seja um
“segredo essencial do prolongamento da vida” 長生之秘要, ao
mesmo tempo, “não é o caminho superior” 非上道也. Os Seres
Perfeitos 真人, “são chamados por marido e mulher, mas não
praticam as obras dos mesmos” 名之為夫婦不行夫婦之跡也.
Tais registros são característicos do processo de internalização
das práticas sexuais do Caminho do Mestre Celestial, que na
linhagem da Claridade Superior assumirão cada vez mais uma
dimensão metafórica, ao invés de literal. Isto é, os trechos
162
acima demonstram que quando da formação da linhagem da
Claridade Superior, o rito daoísta começava a passar por
reformas, entre elas a crescente exclusão do rito sexual.
163
Considerações finais
164
antigos, seriam capazes de expulsar demônios e suas
influências nocivas. Por fim, cabe reforçar que o rito sexual era
realizado no contexto de expectativas escatológicas, de modo
que a junção dos pneumas realizada de modo correto seria
capaz de garantir aos membros da comunidade religiosa um
lugar entre os componentes do povo escolhido daoísta.
Bibliografia
165
KIRKLAND, Russel. Taoism: the endure tradition, Routledge,
New York, 2004.
166
SCHIPPER, Kristopher. Le Corps Taoïste: corps social e corps
physique, Paris: Fayard, 1982.
167
ZHUANGZI E ARISTÓTELES:
SOBRE SER UMA COISA por
Chenyang Li
A mesa que estou usando para escrever este artigo pode ser
vista de duas maneiras. Primeiro, é uma mesa do senso-comum
que tem extensão, ocupa um pedaço de espaço, e é substancial.
Em segundo lugar, é realmente uma massa de elétrons com um
amplo espaço vazio neles. Presumivelmente, há apenas uma
mesa aqui. Agora, qual delas é a coisa? Algumas pessoas
dizem que só há uma coisa que é auto-idêntica, e tem atributos
ou propriedades. Então a questão é, o que é isso? No caso
acima, é a mesa uma propriedade da massa de elétrons, ou é a
massa de elétrons uma propriedade da mesa? Outros podem
168
insistir que há realmente duas coisas que coincidem no espaço.
Então, há apenas dois delas, ou há mais? Qual é a relação entre
elas, além de sua coincidência espacial? Geralmente estas
perguntas são investigadas através dos conceitos de ser e
identidade.
169
Grosso modo, a visão dominante no Ocidente tende a ver o
mundo como um conjunto de elementos básicos ou "tijolos"
(por exemplo, átomos) que são estendidos no espaço e formam
o mundo em grande parte através da organização espacial. A
partir desta perspectiva, a mudança é apenas nas aparências, e o
mundo é estático em um nível fundamental. O foco filosófico,
dentro deste pressuposto, é geralmente o de identificar os
elementos básicos ou tijolos fundamentais e, em seguida,
explicar como a mudança é possível em um mundo no qual a
maioria dos elementos são estáticos (i.e., Descartes). Em
contraste, muitos filósofos orientais acreditam que o elemento
fundamental, ou elementos, do mundo são mais sutis e sem
forma. Para esses filósofos, a natureza fundamental do mundo
é a mudança. A estática é encontrado apenas no aparecimento
de um mundo que é essencialmente dinâmico. Um de seus
desafios aqui é explicar a constância aparente na mudança.
170
“Wuxing xiangsheng”). Portanto, “wu xing" pode ser melhor
traduzido como "cinco agentes " ou " cinco processos".
171
Ocidente, e derivada de Aristóteles. Eu vou mostrar que eles
não são apenas diferentes, mas também, como a ontologia de
Zhuangzi é uma alternativa viável para a ontologia aristotélica.
O Ser do boi
173
portanto uma entidade só pode ter uma essência. Uma entidade
pode ter um ser secundário, mas apenas um ser primário.
174
A metafísica da Zhuangzi, um quase contemporâneo de
Aristóteles, pode ser vista em dois níveis. No nível
fundamental, cada coisa pertence ao Dao, ou o Caminho. O
Dao é a verdade última do universo. Cada coisa no mundo tem
sua raiz no Dao. Neste sentido, todos são um, e as diferenças
entre as coisas são insignificantes do ponto de vista do Dao. No
nível da entidade, cada pessoa física pode ser tanto um "isto" e
um "aquilo". Ser "isto" não exclui a sua também ser um
"aquilo". Os dois níveis estão ligados entre si, e um indivíduo
ser “isto” e ser “aquilo” são formas de o Dao de se apresentar .
A seguir vou me concentrar no segundo nível, sobre a questão
da identidade de uma entidade.
175
do tendão e muito menos tento cortar os grandes ossos.
Um bom cozinheiro substitui o facão uma vez por ano -
porque sabe cortar. Um cozinheiro ordinário, uma vez
por mês - porque só sabe picar. Mas tenho usado esse
facão durante dezenove anos e embora tenha retalhado
milhares de bois, o fio se mantém tão aguçado como se
tivesse sido amolado agora mesmo.
176
mostra é que um boi pode ser reconhecido não só como um boi
individual, mas também como um pacote de carne e ossos.
Assim, ao contar a história Zhuangzi sugere que, como um ser,
a entidade é tanto um boi e um pacote de carne e ossos. Isso é
diferente de Aristóteles, que escreve:
Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não
seja "aquilo". O que não pode ser visto por "aquilo", (a
outra pessoa) pode ser compreendido por mim. Daí eu
digo, "isto" emana "daquilo"; "aquilo" também deriva
"disto". [...] Assim , o sábio não se preocupa com estas
178
distinções , mas vê todas as coisas da maneira que são.
“Isto” é também “aquilo”, e “aquilo” também é “isto”.
[...] Quando não há mais separação entre "isto" e
"aquilo", isso é chamado de pivô do Tao. No pivô no
centro do círculo pode-se ver o infinito em todas as
coisas (Zhuangzi – “Qiwulun”).
179
fazer a entidade mais que um boi. Para ele, medidas
quantitativas são sempre relativas. Pode-se dizer que a ponta de
um cabelo macio é pesado, o Monte Tai é pequeno, uma
criança que morre na infância tem uma vida longa, e (longevo)
Progenitor Peng morre jovem (Zhuangzi–“Qiwulun”). Tudo
depende do contexto. Mesmo que o pacote de carne e ossos não
dure tanto quanto o boi, dura o tempo suficiente para torná-lo
uma entidade. Se chamarmos o boi um "isto", então o pacote de
carne e ossos é um "aquilo" A entidade pode ser tanto um
"isto" e um "aquilo".
180
Ele rejeita explícitamente a sugestão de que um indivíduo pode
ser dois. Ele acredita que a matéria e a forma são a mesma
unidade, mas não é o caso em que há uma estátua e um pedaço
de bronze:
181
estátua, o bronze (como bronze) não existe mais. Depois de
tornar-se uma casa ou uma estátua, eles só existem como as
propriedades de outra coisa. Assim, quando alguém aponta
para a estátua e pergunta "quantas entidades existem?" A
resposta para Aristóteles é definitivamente “uma”.
182
Porque Aristóteles acreditava que uma entidade só tem uma
essência e um ser primário, segue-se que, para Aristóteles, não
há uma única resposta objetiva direita para a questão do que
uma entidade é primriamente. Ele sustenta que a questão do
que uma coisa é refere-se essencialmente ao ser primário
(Metafísica, 1030a 23-24). Em outras palavras , o "o que é" de
uma entidade pertence ao ser primário, e para outras categorias
meramente potenciais e derivadas, é meramente como uma
qualidade ou quantidade. Por exemplo, uma entidade ‘o’ é um
membro da espécie boi, e que ‘um boi’ é a resposta certa para a
pergunta "o que é?". Zhuangzi nega que haja ser primário e que
não há uma única resposta objetiva direito de a questão do que
uma entidade é. Ele acredita que dizer que a entidade é um boi
não é a única maneira correta de responder à pergunta sobre o
que a entidade é, e que a entidade é um pacote de carne e ossos
também é uma forma adequada de responder a pergunta.
183
A palavra chinesa para "Céu", "Tian", também pode ser
traduzida como "natureza" neste contexto. Não é difícil
descobrir aqui a intenção de Zhuangzi. Para ele, conhecer não é
como o espelhamento de uma realidade objetiva (ou seja, o que
o Céu ou natureza faz) . É sempre inevitável situar-se sob
algumas circunstâncias. Estas circunstâncias não são fixas e
não podem ser separadas da entidade ("o que é devido para o
Céu") e do conhecedor ("o que é devido ao homem"). O
caminho do Dao, por Zhuangzi , não é colocar os dois em
oposição, mas para vê-los em unidade.
184
subjetivista. Mas não deve ser tomado no sentido de que
podemos ver uma entidade de forma arbitrária. Zhuangzi
continua o comentário dizendo: "Por que isso? Por ser assim.
Por que não? Por não ser assim”. É inerente a uma coisa que
ela seja de algum lugar que é dela, de algum lugar que é
permitido a ela. Não é arbitrário para alguém reconhecer uma
entidade como “alguma coisa”, pois a entidade tem a sua
própria natureza e sua própria função. A partir disso, pode-se
dizer que uma coisa ser em si não é uma pura invenção nossa.
O Dao tem seus meios. Temos a visão de que um boi é mais
um boi do que um pacote de carne e ossos, ou vice-versa,
porque chegamos a reconhecê-lo dessa forma. Podemos fazer
isso por causa de seu "ser assim". No entanto, não é verdade
que só existe uma maneira certa de reconhecer as coisas.
185
com nenhum ser mais primário do que o outro sem um
contexto. Neste ponto, um aristotélico pode querer recuar e
afirmar que apenas entidades naturais são substâncias. Se assim
for, pelo menos, a ontologia de Zhuangzi teria a vantagem de
cobrir ambas as entidades naturais e entidades artificiais.
Zhuangzi se opõe ao pensamento dogmático. Ele afirma:
187
a entidade é apenas um boi ou um pacote de carne e ossos é
totalmente unilateral. Zhuangzi observa:
189
Em Zhuangzi, encontramos uma conversa entre Nie Que e seu
mestre Wang Ni:
"..."
190
são confusos: como eu poderia escolher entre eles?
(Zhuangzi–“Qiwulun”)
191
pacote de carne e ossos não é uma forma meramente potencial
como Aristóteles sustentava. É um ser real para se lidar. Desta
forma, a metafísica relativista de Zhuangzi e sua ênfase na
prática estão ligadas.
192
vivo. Nós diríamos que depois o boi está morto, é o mesmo
pacote de carne e ossos que resta. Para Cozinheiro Ding, o
conjunto de peças é um ser real, que não depende de qualquer
outra coisa. O relato de Zhuangzi, por isso, funciona melhor
aqui. Em segundo lugar, e mais importante, tratando o pacote
de carne e ossos apenas como potencialidade, nas contas
aristotélicas, só podemos abordar o conjunto de partes através
do boi. É uma abordagem indireta. Em contrapartida, o caso de
Zhuangzi nos permite abordar diretamente a entidade como o
agregado das peças. Dado que a entidade é realmente um
pacote de carne e ossos, em vez de tomar a entidade como um
pacote de carne e ossos por conveniência, tomamos a entidade
como a entidade em seu ser real. Em outras palavras, nós o
tratamos como um pacote de carne e ossos, porque ele próprio
é um agregado de partes. Assim, a metafísica de Zhuangzi
fornece uma base adequada para a sua filosofia prática, e este
último reforça a plausibilidade de sua metafísica.
Transformação da Borboleta
193
substância. A questão aqui é saber se uma entidade pode
manter a sua identidade através de uma tal mudança.
194
é essencialmente um boi, e é, necessariamente, um boi. Como
uma substância primária, a entidade não pode ser a mesma
entidade, sem ser um boi.
Aqui Zhuangzi sugere que ele pode ser Zhuangzi (Zhou), que
sonha que é uma borboleta, ou que ele é uma borboleta que
sonha que é Zhuangzi. Ele nunca poderia saber, mas, em
qualquer caso, ele seria o mesmo indivíduo. Perder o seu status
como um espécime humano não significa destruição, mas uma
forma diferente de ser do mesmo indivíduo. Isto é, não é
necessário que ele seja um homem, mas não uma borboleta. Ele
195
pode ser uma borboleta e ainda manter sua identidade como o
mesmo indivíduo.
196
"aquilo"; pode continuar a ser a mesma entidade ao
transformar-se de uma categoria para outra.
197
Suponha que no tempo t1 uma entidade é um membro de uma
espécie S, e no tempo t2 ele deixa de ser um S e torna-se um A.
Após t2, podemos apontar para a entidade e dizer "que
costumava ser (ou era) um S em t1, mas agora ele não é mais
um S, mas uma A". Esta frase faz todo o sentido. Para que a
sentença faça sentido para os dois "é isso", ela deve referir-se a
mesma coisa. O que é "isso?”. Zhuangzi diria que não pode ser
um/outro, e tem que ser os dois. Por exemplo, no caso do boi,
que é tanto um boi e um pacote de carne e ossos. Esta intuição
apoiaria Zhuangzi quando ele contou a sua história do sonho,
embora ele não tenha ido mais longe para dar um argumento
para isso.
198
A partir da discussão acima, podemos ver que, apesar de
Zhuangzi não fornecer uma teoria metafísica sistemática como
Aristóteles fez, no entanto, indicou uma metafísica alternativa.
Talvez a maior diferença entre Zhuangzi e Aristóteles sobre o
ser é que, enquanto Aristóteles vê as coisas como ser primário
ou substâncias, Zhuangzi não aceita a noção. Para Zhuangzi, as
coisas têm suas maneiras de ser. Uma coisa pode ser um "isto"
e um "aquilo". Apesar de "isto" ser uma maneira para que se
seja, ser um "aquilo" é uma outra maneira de ser. No entanto,
eles são maneiras diferentes para uma mesma entidade ser.
Assim, a partir desse ponto de vista, não é só o mundo um
mundo de diversidade, mas também o ser de uma entidade é a
diversidade. Uma coisa que podemos aprender com Zhuangzi é
abrir nossa mente para a diversidade do ser das entidades, e
permitir que uma entidade tenha tanto "isto" e "aquilo", e,
possivelmente, de várias maneiras, como seu ser real.
199
Mesmo os confucionistas, principalmente preocupados com
uma filosofia ético-política, manifestaram pouco interesse em
discutir a metafísica de entidades de médio porte, e
concordaram com Zhuangzi. Confúcio foi citado no Livro das
Mutações (Yijing) para dizer que "diferentes caminhos levam
ao mesmo destino" (Yijing–“Xici” B). Wing-tsit Chan
comentou:
200
Notas
201
5.Wiggins, David (1980). Sameness and Substance,
Cambridge, MA: Harvard University Press, 146.
202
A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM
E PENSAMENTO NA ANTIGA
EPISTEMOLOGIA CHINESA por
Jana S. Rošker
Na pesquisa atual, o debate sobre as dimensões
epistemológicas dos textos chineses e seu papel no contexto do
pensamento chinês tem se desenvolvido com sucesso cada vez
maior, sob a égide da redescoberta e aplicação das abordagens
metodológicas e categoriais específicas da tradição chinesa.
Este artigo irá fornecer uma visão sistemática das
características especiais que definem os discursos
epistemológicos clássicos chineses, os quais presumiam que a
percepção humana e compreensão da realidade estaria
enraizada em uma estreita ligação entre as estruturas
linguísticas e cognitivas.
Introdução
203
chinesa era intimamente ligados à questões relativas a
regulação da relação entre linguagem, pensamento e realidade.
204
物 之 所以然 与 所以 知 之 与 所以 使人 知 之 不必
同.
205
apesar destes pontos de vista, mesmo assim ele bruscamente
condenou o reformismo moísta, argumentando que o sistema
confucionista de padronização ainda era a melhor maneira
possível para garantir uma sociedade bem regulada e
harmoniosa. Ao contrário de Confúcio, ele não acreditava na
missão primária de uma linguagem ideal que incorporasse a
essência das realidades existentes, mas considerou nomes e
conceitos lingüísticos como meios meramente arbitrários para
expressar concretamente (objetivamente) realidades sociais.
206
凡 同类 同情者,其 天 官 之 意 物 也 同;故 比方 凝 似
而 通,是 所以 共 其 约 名 以 相 期 也.
207
representava um sistema unificado fundado na idéia do
absolutismo político. (Ver Han Fei 2014, Gui Shi: 1)
208
O Dao 道 de Laozi não foi restristo a qualquer tipo de estrutura
lingüística, e ainda representa o princípio cósmico básico e
também moral de tudo o que existe : 天之道...不 言 而 善 应.
‘O cósmico (Celestial) Dao não tem palavras e ainda assim nos
responde com bondade’. (Laozi , 2014,/73/, p.62)
209
lingüísticas (Hansen, 1989: 110). Mengzi argumentou que a
linguagem não representava um sistema inato, e que continha a
essência das normas sociais adequadas que permitram as
pessoas viverem em uma sociedade harmônica (Mengzi, 2014
Gongsun chou shang: 2), pois ele acreditava que todas as
convenções tradicionais do confucionismo estão “inseridas” no
coração-mente humana. (ibid.: 111)
Análises lingüísticas
210
serviram de base para categorizar a realidade (ibid.: 51) , uma
posição que o colocou em oposição direta às teorias moístas.
211
é diferente, então como é que um cavalo amarelo ou
preto às vezes é aceitável e, por vezes, inaceitável? É
claro que aceitável e inaceitável são mutuamente
contrários. Assim, cavalos amarelos e pretos são o
mesmo (na medida em que, se existem cavalos
amarelos ou pretos), podemos responder que existem
cavalos, mas não se pode responder que existem
cavalos brancos. Assim, é evidente que um cavalo
branco não é um cavalo. (Gongsun Longzi 2014:6)
213
complexa da existência, como se refletia na realidade. A
linguagem nunca poderia alcançar, e muito menos ir além da
existência real; conseqüentemente, as características objetivas
da realidade automaticamente determinavam e limitavam as
estruturas da linguagem, e, portanto, a nossa aplicação de
construções e expressões lingüísticas: 夫辭以故生, 以理長,
以類行 ‘Expressões surgem devido a algumas razões. Elas se
desenvolvem (crescem), de acordo com as regras (leis) e são
aplicadas de acordo com as categorias (tipos)’. (ibid., Daqu:
25)
214
foram totalmente perdidos, e hoje ele é conhecido apenas por
seus "Dez Postulados", que são citados na famosa obra taoísta
de Zhuangzi. Estes postulados, que foram complementadas por
uma série de paradoxos, têm atraído muito interesse nos
tempos modernos por causa de sua semelhança com
acontecimentos simultâneos na filosofia ocidental,
especialmente os famosos paradoxos do filósofo grego Zenão
de Eléia (cerca de 495-425 AEC). Por meio dessas suposições
aparentemente paradoxais, Hui Shi tentou situar o problema da
identidade e da diferença no contexto da relatividade holística.
Através de sua exposição de contradições, pelas quais ele
mostrou os limites das extensões semânticas de certos
atributos, ele quis demonstrar a relatividade do tempo e do
espaço, expresso nos nomes (ming), aplicados em diferentes
contextos.
215
língua). O relativismo ‘constante’ de Hui Shi foi, naturalmente,
uma resposta ao realismo Neo-moísta, que foi fundado em
cima de distinções formais como uma pré-condição necessária
para a compreensão. Como seu 11º paradoxo indica, a obsessão
Neo-moísta com definições também era redundante (ibid). Sua
categorização de identidade e de diferença, ou da relatividade
absoluta de objetos, portanto, baseava-se na impossibilidade de
definições conceituais da realidade, uma vez que cada
compreensão linguística foi necessariamente limitada a um
sentido contextualmente determinado que era incapaz de
abarcar todas as dimensões do objeto de compreensão.
A relatividade da Compreensão
217
nossos próprios sistemas de valores (ibid, Yu Yan: 1). Assim,
em última análise, é a subjetividade humana que determina o
que deve ser considerado como o verdadeiro conhecimento. A
aparente objetividade e independência da mente humana tem
sido repetidamente provada como sendo falsa, uma quimera
ilusória, que só leva ao auto-engano. A qualidade, as
características e a extensão de nossa percepção são sempre
determinadas pelas condições reais de nossa existência. Por
isso, nossas percepções - e as ações delas decorrentes - são
sempre dependentes de fatores externos, mesmo que, em última
análise, toda forma de dependência é, na verdade, uma forma
de auto-dependência. Tal dependência e determinação estão
ligadas a nossa incapacidade de reconhecer a essência do ser
(ibid., Jiwu lun, 13).
218
como inseparavelmente ligada à compreensão; em essência, as
suas qualidades são as mesmas (Zhuangzi, 2014 Jiwu lun: 2).
Assim como o Dao em sua função de fundamento original, a
abrangente essência de todos os seres, assim como o nosso
reconhecimento a este caminho original, a própria linguagem
também é absoluta no sentido de unidade de todas as
contradições de que a compõem (ibid: 12).
219
Conclusão
Bibliografia
220
Gongsun Longzi 公孫籠子 2014. Acessível em: Chinese Text
Project. Pre-Qin and Han. http://ctext.org/gongsunlongzi
(15.02.2014).
221
Zhuangzi 莊子, 2014. Acessível em: Chinese Text Project. Pre-
Qin and Han. http://ctext.org/zhuangzi (15.02.2014).
222
REFLEXÕES GENEALÓGICAS E
CIRCULARES SOBRE A
FORMAÇÃO DO PENSAMENTO
CHINÊS ANTIGO por Jesualdo
Correia
天地不仁,以萬物為芻狗
Céu e Terra não são bondosos, as dez mil coisas lhes são como
cães de palha!
大道廢,有仁義
223
conhecido como Primavera/Outono (春秋時代, 771-476 AEC)
que se edificará, com a emergência de um logos em expansão,
a codificação da visão de mundo da China clássica e o
essencial daquilo que conhecemos hoje de seu pensamento. Tal
período representa também, no plano político, o início do
multisecular processo de desmantelamento, gradual e
inexorável, daquela ordem dinástica. Quando esse período
atinge os primórdios de seu futuro apogeu epistêmico, na era
de Lao Zi (老子) e Confúcio (Kung Zi, 孔子), a época que se
segue, a dos Estados Combatentes (Zhangguo), testemunhará a
proliferação de inúmeras escolas de pensamento (“As Cem
Escolas” – 諸子百家, zhuzi baijia) consolidando e codificando
assim uma ampla representação de mundo, um
Weltanschauung sínico, com uma sedimentada visão filosófica,
ontológica, jurídica e de statemanship, provida de rico
repertório de matizes. Tal arcabouço epistêmico resistirá ao
sobe e desce das dinastias e só será de fato transmutado, como
uma completa nouvelle ordre pelo renversement ocasionado
pela Revolução Comunista liderada por Mao Ze Dong, quando
ocorre então uma mutação de paradigma nunca vista antes na
história chinesa. A época que se prolonga a partir do período
Primavera/Outono até a emergência da China unificada, com o
colapso total dos Zhou, presencia, por conseguinte, a irradiação
de um vasto espectro de idéias, num perímetro de excepcional
magnitude, e cujos pressupostos - é importante que se enfatize
-, provinham da visão matricial de mundo, arcaica e antiga, em
curso desde pelo menos os Shang. Os mitos inaugurais da
China, que são poucos, a saber aqueles que constituirão o
alicerce de seu Weltanschauung, emergem a partir da
224
convergência de alguns poucos aspectos fundamentais das
propensões inatas ao ethos daquelas comunidades que por fim
haviam se unido sob a égide de uma ordem dinástica cuja
historigrafia mítica situa à altura do começo do terceiro milênio
anterior à Era Cristã, na dinastia denominada Xia. Contudo, de
credibilidade histórica, há de ser nos bronze datados o mais
recuadamente dos séculos XVI e ou XV AEC, e nas inscrições
em cascos de tartaruga (甲骨文), que haveremos de extrair um
bom número de informações sobre as práticas sociais. Trata-se
de um legado puramente oral que há de se presupor, sem que
contudo se possa asseverar. Asseverados são, portanto, os
monumentos literários do período Primavera/Outono em
diante, quando terá sido consolidada a feitura de uma série de
textos-fontes - em particular o Shi Ji (詩 經), Anais Poéticos, o
Shu Ji (書經), Anais Históricos, o Zuo Zhuang (左傳),
Crônicas da Margem Esquerda, e, não menos, as várias
descrições de códigos dos Cerimoniais e Etiquetas, o Li Jing
(禮經) entre elas -, do arcabouço dos quais muito da
construção filosófico-moral confuciana e, de resto, da China
como um todo, será erigida. Confucio, em prol de sua
campanha filosófica pelo soerguimento moral de uma dinastia
que lentamente se esfacela, portanto num período de
decadência dinástica e de guerras contínuas, usará os
fundamentos desses textos para edificar sua visão ética dos
assuntos do mundo, idealizando míticos períodos pretéritos da
história antiga chinesa como modelos ideais de conduta. De
certo que o grande historiador da China, Sima Qian, cerca de
700 anos depois, haveria de se referir e compilar muito de
quase todos esses registros em sua monumental Memórias
225
Históricas, Shiji (史 記). Lao Zi, tornar-se-á o protagonista
emblemático de um logos filosófico a ser designado como
Daoismo, tendo em Zhuang Zi seu coadjuvante maior, seguido
de Li Zi, com menor grau de originalidade, e um considerável
número de outros pensadores. Confúcio, o outro expoente
filosófico maior daquela época, o pensador por excelência do
Estado e da família, o restaurador de uma sabedoria antiga
vista por ele como exemplar e em decadência, representa com
sua obra e seus discípulos a outra vertente, o outro pé vetorial
do tripé-fundamento do pensamento chinês, a terceira sendo
aquela que lhes antecede e em parte norteia: o Yi Jing.
226
político, nos cerimoniais , datas de ritos e rituais, nos
simbolismos, nas cores imperiais... O logos chinês, essa
rationale emergente, irá paulatinamente sendo ordenado ao
longo dos próximos séculos, tipicamente em concomitância
com a proverbial paciência chinesa, tanto estigmatizada no
Ocidente sob o moto da letargia do “Império Imutável”. Mas
será sobretudo no século VIII AEC, como vimos, quando das
primeiras rachaduras da hegemonia dinástica, em meio a bélica
hybris de vários Estados que buscam soberania, que se
consolidariam os feitios dos vários registros que se tornam
canônicos. Terá início então o Período conhecido como
Primavera/Outono e a capital da dinastia se vê compelida a
mudar para parte ocidental, cada vez mais ameaçada a leste. A
rigor, embora em termos formais só venha a colapsar em 221, a
dinastia Zhou já se encontra seccionada a altura de 722 a.C, e
deixará praticamente de existir em 249. Passada a época e Lao
Zi e Confúcio, a profileração das escolas filosóficas – paralela
à exacerbação da realidade política do lento declínio da
dinastia Zhou -, provocará o surgimento igualmente de um
pensamento normatizador, de uma escola de tendência
legisferante, que embora venha a hostilizar o caráter
conservador do Confucionismo, preserverá muito do Daoismo:
a escola legalista, cujo expoente é maior Han Fei e que se
tornará doutrina de Estado quando da grande unificação que
ocorre em 221 AEC
A visão inaugural
227
O propósito desta reflexão é o de situar a genealogia e alguns
dos fundamentos e vertentes daquilo que constitui os
fundamentos do pensamento chinês, determinar seus
pressupostos e evolução até a altura do colapso da dinastia
Zhou e emergência da China Imperial, num primeiro momento
com os Qin e logo a seguir, plenamente dinástica, com os Han.
Este pensamento, cujos elementos genéricos e particulares
dizem respeito a um conjunto de traços-procedimentais
cognitivos, axiais, de vários modi deductandi com recorrência
aos paradigmas ancestrais (o conceito Dao, 道, a visão
cosmogônica inaugural da criação transposta para a polaridade
geométrica das linhas yi e yang, inteiras e partidas, relação do
não-ser com o ser e as “dez mil coisas” (wang wu) daí
decorrentes, a visão tripartite – céu, homem, terra – entre
outros, o recurso ao modelo de trânsito mão-dupla dos
universais aos particulares (visão micro e macro que se
intercorrespondem ) e certa tendência prudente ao
nominalismo. Assim, se no caso da Índia a forte pegada
metafísica, absolutista ou nihilista, impregna tal postura
existencial de maneira radical, no Império do Centro ela tendeu
a estabelecer um compromisso entre a bonheur ôntica com os
imperativos cívicos que a visão cosmológico-filosófico-social
das injunções de suas duas correntes tidas como maiores –
Daoismo e Confucianismo -, proporcionam, outorgando
idealmente ao Rei-sábio, sob a outorga do Mandato Celeste, ou
Junzi (o “homem superior“, no período clássico tardio ) o
duplo papel de sábio na esfera dos negócios do mundo (tianxia)
e harmônico em relação a si e a natureza, respeitador da ordem
cósmica, tanto por parte do Confucionismo como, por outro
228
lado, no Daoismo o telos esotérico do xian (“imortal”) ou do
zhen ren (“homem verdadeiro”), a partir das prescrições do
inventário de práticas psicosomáticas da alquimia interna (nei
dan). Esta ordem institucional que mais tarde emergirá, dotada
cada vez mais de uma “burocracia celestial” (Étienne Balazs),
do lado exotérico, confucionista ou legalista, se proporá a
servir de modelo referencial para a história subsequente do
país, tendo como pano de fundo o arcabouço emblemático de
uma sabedoria contida naquele tripé ao qual me referi mais
acima. Esta sabedoria será lembrada e citada a partir de um
repertório de máximas, exemplos históricos ou míticos, receitas
do agir e farta ritualidade nos cerimoniais e procedimentos.
Através do refinamento que o domínio dos clássicos é suposto
de propiciar – verificado pelos exames imperiais – haveriam de
ser aperfeiçoados os “funcionários e magistrados”, ou seja, essa
dupla situação de gestores exemplares das coisas do reino e de
sábios praticantes de diversos misteres, o ru shi que o ideal
confucionismo haveria de sedimentar. A visão inaugural,
própria do gênio da civilização chinesa, endógena e sui generis
até que a história ou a antropologia cultural possam provar o
contrário, é alegoricamente ilustrada pelo mito do proto-sábio
Fuxi, segunda o qual ele, num momento de inspiração e
insight, olhou para o céu (ou seja, considerou os fatores de
anterioridade e perenidade das leis cósmicas atuantes sobre a
condição humana e a natureza), olhou a seguir para a própria
natureza em suas transformações e apreciou então a condição
humana. Dessa visão, ternária, haveria ele de conceber uma
representação geométrica de linhas inteiras e partidas; o
revezamento criativo entre dois princípios antagônicos e
229
complementares, yin/yang. Para a mente pragmática do gênio
chinês, a anterioridade é situada num momento zero, no Não-
Ser, a partir do yin evolui o yang e que, acoplando ao seu
oposto yin (mas não inteiramente oposto) faz surgir o fruto, o
terceiro elemento e a partir daí as dez mil coisas (wang wu).
Sobretudo o Daoismo beberá proficuamente desse esquema e o
Daodejing o explora abundantemente em várias direções.
Havendo sido forjado, por conseguinte, desde os primórdios,
esse Weltanschauung de tamanha simplicidade, coerência e
eficácia, pouco espaço seria ensejado para a eventual
multiplicação de fabulações cosmogônicas, de politeismos ou
dogmáticos monoteísmos, ganhando com isso o processo de
sedimentação de sua rationale precocemente. É bem verdade
que o Daoismo popular geraria um bom número de variantes
mitológicas e a penetração posteriormente do budismo,
igualmente em sua variante popular, um pequeno panteão de
divindades, embora nada de nuclearmente tão significativo em
termos de permanência como substrato histórico hegemônico.
Tout court: tal disposição cognitiva original, e a eficácia com
que tais princípios opera sobre a mente do homo sinicus,
contribuirá significativamente para consolidar a visão de
mundo e os fundamentos de seu pensamento.
230
dinastia Sung, afirmava, nas pegadas do Confucionismo, que
em tudo existe uma razão e que se a mente se projetar
continuamente sobre as razões das coisas ela poderá ampliar a
consciência cognitiva infinitamente. Séculos mais tarde, o
importante pensador Wang Yangming (1472-1529) irá se
rebelar contra esse dispostivo lógico. Para Wang esse acúmulo
cognitivo progressivo é prolixamente pernicioso e dispersivo, o
importante sendo retormar o esvaziamente que retorne a uma
espécie de mente original, a um conhecimento intuitivo inato
ao ser, e não à mente como construção das representações.
Trata-se de despertar esse potencial. Quando Zhi Xi e Wang
Yang Ming decidem, a uma distância de mais de 300 anos, que
discordam quanto a modalidade do tipo de razão
neoconfucionista que advogam, eles estão concordando com
algo que é, uma vez mais, bastante peculiar à mente chinesa, a
saber, o caráter psicológico, e por assim dizer humanistico, de
suas posturas e objetivos filosóficos. Wu (coisa) que é o termo
do Neoconfucionismo e shi (objeto, pragma, na acepção latina
) constituem a centralidade de suas preocupações, e não os
procedimentos lógico-epistemológicos a rigor, ou a observação
da natureza na mesma modalidade científica em que nós a
conhecemos. Uma vez mais atuou ali o caráter pragmático da
mente chinesa. Essa digressão foi feita aqui de modo a ilustrar
certa tendência recorrente no pensamento chinês, o que enseja
não menos a que recoloquemos a famosa pergunta de Jacob
Needherland, o sinólogo e editor da monumental History of
Science and Technology in China: por quê a China não
continuou avançando em seu pensamento científico de modo a
seguir ultrapassando o Ocidente, ela que, em em tantas áreas,
231
fora precursora? O que fez com que em certos períodos de sua
história epistemológica ou tecnologica uma restauração
filosofal ou paradigmática freasse um avanço que certamente
teria ultrapassado o Ocidente mesmo na Renascença, se apenas
plenamente estimulado e açulado, tal como ocorre na China
atual? Portanto, esse comprometimento, com um escopo bem
definido e que buscava como eterno ideal uma sabedoria
operativa ao nível ôntico e institucional, profundamente
conservador em certos aspectos, fez da China um país
recorrentemente daoista e Confucianista à la fois, “mesmo que
nunca houvesse existido um Lao Zi ou Confúcio”, parodiando
aqui a máxima de Nietzsche em relação a Hegel. Tal índole,
inclinada à manutenção piramidal de poder de sua classe
dirigente, não poderia propiciar àquela inquisitiva mente um
deslocamento contínuo em direção à ciência - apesar de seu
imenso potencial cognitivo, ainda que paradigmaticamente
coibido para tal -, avanço tecnologicamente inovador, mas
perturbador em suas consequências, o que responde aqui talvez
à pergunta clássica do Needham. De certo que os paradigmas
cognitivos, tais como uma obstinada tendência a criar uma
hermética, embora ampla, correspondência entre o micro e o
macro a partir de um esquema rígido de conjuntos mais
numerológicos do que factuais: os cinco elementos, os cinco
sons, os aromas etc., etc. E então, esse extraordinário potencial
que não precisou tolher ou sacrificar pensadores por força de
dogmas ou nas fogueiras da Inquisição, teve em si mesmo o
freio que o conteve rumo a ciência tecnológica. Embora bem
mais solidamente provido de registros históricos,
razoavelmente bem confirmados, e herdeiro de uma herança de
232
anais, a China partilha com a Índia o penoso dilema filológico
da atribuição de autoria e, de resto, eo ipso, de toda a
problemática dos estemas, para sequer falar de edições
princeps, pois seria aqui um fantasia. De tal forma temos pouca
certeza quanto à integralidade e veracidade das autorias dos
textos, desde a mais alta antiguidade, passando por aqueles
atribuídos a Confúcio, ou quanto aos capítulos seja de um Lao
Zi, de um Zhuang Zi ou Han Fei, que os chineses, à exemplo
das cópias em arte, passaram a fazer espírito de bon gré mal
gré ao seu legado. Em parte tal postura se dá em função da
própria precariedade filológica a ser encontrada nessa área, de
certo, mas também trata-se de algo próprio ao pensamento e
metalidade chinesas, a saber, a individualidade não possui a
mesma conotação de absoluta exclusividade, importante sendo
sobretudo o conteúdo que tende sempre a ser visto como um
acúmulo de conhecimentos e interpolações que são
emblematicamente referidos a este ou aquele autor. Assim
sendo, sempre subsitiram as problemáticas filológicas de
autoria, seja em relação ao Yi Jing ou Shu Jing e correlatos,
seja ainda aos “clássicos” atribuídos a Confúcio e até mesmo
ao textos mais recentes, já na dinastia Ming. Por outro lado,
quando aqueles registros se asseveram como legados, de
maneira a se tornarem posteriormente incontestes, a saber, a
partir dos séculos IX-VIII AEC, tornar-se-á possivel observar
(histórica, e mesmo filologicamente), que os mesmos
procedimentos de avaliação das questões de Estado, dos
assuntos da guerra e das funções inter-classes giram em torno
da mesma mindset que haveria de predominar até a grande
passagem da queda do regime feudal e a unificação da China
233
em 221 AEC E tal eixo-modus de percepção de mundo
permanecerá vigente por cerca de 30 séculos, incluindo os dois
grandes períodos de dominação externa, seja a dos mongóis, na
dinastia Yuan, seja dos manchus, na Qin, até por fim desabar
sob o impacto de uma nova ordem, a saber a da Revolução
Comunista, que se estende ainda mais em sua radicalidade no
período atual da história chinesa guiada pelo choque profundo
das formas do saber científico-recnológico ocidentais do
capitalismo com suas tecnologias de ponta. Mas se as relações
sociais e a estrutura do Estado, sofreram transformações
mutacionais, seguidas da absorção de novos paradigmas
cognitivos nos modi da pesquisa científica, onde métodos
cognitivos ocidentais passaram a substituir quase (eu disse
quase) que por completo, o imperativo das correspondências
holisticas do macro com o micro da visão tradicional, em áreas
que vão da física à astronomia, da química às taxonomias das
ciências naturais, entre outras – o esquema mais profundo
chinês de visão holístico-intuitiva de mundo não abriu mão de
seu legado ancestral, conseguindo preservar enfoques
bifurcados em várias áreas, da geopolítica e da medicina. A
passagem do século VIII ao VII na China antiga corresponde,
grosso modo, à passagem da Grécia heróica e mítica para a
Grécia pré-clássica, na virada do século VI para o V, quando
começa a emergir um logos ordenado por crescente
despojamento das impregnações míticas, em favor de uma
rationale filosófica e político-estatal. De certo que a derrocada
dos Zhou orientais em (725 AEC) acarretou um primeiro
choque geopolítico de vatícinicas proporções, o qual se
manifestou já na própria mudança da capital tradicional dos
234
Zhou, até o reordenamento das funções públicas, recomposição
de alianças e urgentes adaptações à nova realidade política e
econômica que emergia. A partir desse momento as sementes
de uma espécie de proto-iluminismo à la chinoise já poderiam
ser cada vez mais visíveis. Trata-se do início de um longo
período de amplíssima reflexão sobre o Ser, o indivíduo e o
Estado que se extenderá por séculos, radicalizando-se
sobremaneira com os tumultuosos confrontos do período dos
Estados Combatentes, que tem início por volta da morte de
Confúcio. Neste período formativo de um pensamento chinês
propriamente dito, que situo aqui a partir do início do período
Primavera/ Outono, é sobretudo do Yi Jing, com seu farto
material de condensação de saber, com seu enfoque mágico-
pragmático e lógico-metafórico - mais do que dos exemplos e
receitas contidas nos vários cânones da época-, que os grandes
princípios filosóficos – provindos desde lá de trás pela tradição
oral milienar - de aplicabilidade seja à vida pessoal, seja ao
comportamento nos negócios do Estado, serão doravante
extraídos. As próprias imagens dos trigramas superpostos,
evocando imagens da natureza e seus atributos, deverão servir
de fios condutores para a práxis por metáforas de princípios, as
regras e receitas para práxis ôntica e social. Ora, se uma
rationale dessa natureza tornar-se-á canonizada por um
expoente-pilar do pensamento chinês, Confúcio, em sua
expressão mais apolínea e rational do status quo, retificando
nomes (zhen ming) de modo a edificar um padrão de civismo
cujas relações interfamiliares sejam axiais, então estará sendo
consolidada uma recorrência epistemológica fundamental com
implicações por toda a história da China, até que tal modelo
235
entre em crise, mais de mil anos depois, vítima de suas
contradições e em relação à realidade circundante. Tal será o
caso, em particular, com o colapso da dinastia Sung face aos
mongóis e depois de novo, com a Ming, face aos manchus,
quando não apenas o enfraquecimento da virtude dinástica é
progressivo e sua força bélica diante do inimigo externo
reduzida. No caso da queda da dinastia Ming, não se haveria de
negligenciar a crise epistêmica que se instala face a
superioridade tecnológica que a empresa mercantil colonialista
gera através dos conhecimentos científicos levados pelos
missionários jesuítas. A consciência da inevitabilidade de
adaptação aos novos saberes tornar-se-á uma urgência, mas
haverá a princípio uma multisecular morosidade para se
adaptar a ela, problema cuja solução seria resolvida pelo Japão
da Era Meiji, em meados do século XIX, antecipando-se assim
à China do vindouro movimento social de Sun Yat Sen e da
revolução Mao Zedong no século subsequente.
236
procedimenti cognoscenti. A metáfora que é trazida à tona,
curta e direta, arcaica, seja nas imagens abstratas toscas, seja
naquelas provinda dos fenômenos da natureza e extraídas das
profundezas da experiência da vida no campo, constitue o
arcabouço epistêmico desse livro inaugural. A imagem da água
reprezada em algum lugar, sem se escoar ou evaporar, propicia
uma cesta de informações sobre aquilo que é contrário ao fluir
da vida e representa um momento de estagnação nos assuntos
do império ou na vida pessoal do consulente. O pássaro que
voa, instiga a que se considere a possibilidade de criar um
dispositivo semelhante ao de suas asas, a folha que flutua, uma
embarcação, a pedra que adquire velocidade cada vez maior ao
rolar montanha abaixo enseja uma compreensão das leis da
física, mas também a criação de um caracter que evoca a idéia
de empuxo crescente, momentum, e preponderância – shi,
título do quinto capítulo do Sun Zi Bingfa. Esses
procedimentos de apreensão e representação da realidade serão
pouco a pouco fundamentados em variantes cognitivas
aprofundadas e explicitadas nos moldes do gênio e
idiossincrasia da lingua. A altura de Mozi (Mo Tzu ou Modi),
contemporâneo e contestador de Confucio, já existe em curso a
construção de um sistema lógico, do qual procedimentos de
inferência serão desenvolvidos pelo Mohismo posterior.
Banidos em parte pelos Qin, mas retomados a partir dos Han e
mais plenamente resgatado quando da penetração da do
Budismo, essa corrente ainda é tida por emblemática das
origens do pensamento lógico chinês na primeira fase do
período plenamente clássico. De certo que o impacto causado
mais tarde pela epistemologia budista, através seja da radical
237
dialética negativa do Madhyamika, seja sobretudo pela lógica-
epistemológico do Yogacara (cuja vertente mais psicológica foi
adaptada ao espírito chinês pelas bravas e idiosincráticas
traduções feitas por Xiang Zang), haveria de produzir uma
marcante influência sobre aquilo que poderíamos chamar de
um sistema epistemologico chinês mais amplo. Mas tal
influência budista só haveria de ocorrer a partir do século III da
Era Cristã (e sobretudo nos séculos VI e VII), não
sobrevivendo muito além da dinastia Tang, ainda que residual e
subrepticiamente presente nas dinastias posteriores e algo
ecoante até hoje. O peso sui generis das idiosincrasias e das
limitações sintáticas da lingua desempenhou sempre um
intergiversável e insofismável papel na construção das idéias e
das tendências aos modi cognoscendi, mas também certa
barreira à absorção de idéias exógenas, sendo a famosa querelle
filológica dos Ge Yi (“equiparação dos sentidos”) em torno dos
problemas de tradução dos textos budistas, provenientes do
sânscrito, testemunha eloquente dessa dificuldade nos
primódios do período medieval. Mas tal assertiva de
intransponibilidade de sentidos não pode ser de modo algum
mantida como absoluta, visto que na era atual ocorreu uma
transposição desobstruída das idéias ocidentais em chinês
moderno, agora já plenamente provido do recurso de dois ou
mais caracteres para traduzir conceitos e uma expandida
sintaxe, se aqui e ali artificial ao gênio da lingua. Muitos
conceitos científicos adquirem mesmo maior expressividade
quando de suas traduções em chinês moderno. A tradução do
Finnegans Wake, de James Joyce, constituiu uma temerária
mas respeitável prova disso. Assim sendo, a crítica que Marcel
238
Granet faz, de maneira a meu juizo excessivamente radical,
quanto a inadaptabilidade conceitual da lingua, foi de fato
precipitada para um sinólogo da sua envergadura (La Pensé
Chinoise, 1934). A propensão à exegese, à ortodoxia e, por
conseguinte, à escolástica à la chinoise, passou a cristalizar-se
como outro traço marcante do pensamento chinês, latente no
auge do período clássico e adquirindo plena eclosão a partir da
dinastia Han em diante. Para tal haveria sobremaneira de
contribuir aquela ïmutável e conservadora classe de “buracratas
celestiais”, os mandarins. Cronicar, repertoriar, classificar,
dispor, organizar hieraquicamente a partir de taxonomias
heterodoxas... tudo isso constitui formas de exegese, maneiras
de ordenar o mundo, a partir sobretudo de suas próprias
realidades, de suas “coisas em si, de seus vários dao(s). A
mente chinesa e o pensamento decorrente de seus vários topoi
cognitivos estiveram sempre inclinados, por outro lado, a certo
pragmatismo, o que implicava uma tendência a um
reducionismo, ao circunscrever os conhecimentos do universo
das representações à sua pragmaticidade, ôntica ou
institucional, a um dexterous modus operandi, optando-se essa
ou aquela fórmula que o hegemon do Zeitgeist ou da corrente
de pensamento predominante considerasse como a que melhor
impacto teria, a se tornar emblemática da eficácia operacional
visada. O universo das representações, em seu vasto espectro,
tenderá portanto à minimização, às máximas de saber –
prescrições, adágios dos cânones ou da sabedoria popular,
conceitualização, enfim, imagens operacionais de sentidos, de
tudo que genericamente seja representável pela imagem –
xiang ou pelo conceito nomeado, ming Da ampla visão de
239
mundo proporcionada pelo Yi Jing, um dado modus
cognoscendi haverá de exercer radical influência sobre a
formação do pensamento chinês, conferindo-lhe certo senso de
medida (metron), de harmonia entre as partes constitutivas,
sintonia da dinâmica das sutis passagens, dos eternos fluxos e
mutações. Esse pragmatismo sábio advém em parte do
imperativo da decisão a ser tomada, postura a ser assumida de
acordo com as indicações metafórico-guias, assim como do
julgamento por extensão dos mesmos, do aconselhamento
hieraquizado quanto a qual decisão deve ser tomada – ainda
que nenhuma -. e é interessante aqui não menos notar, que o
caracter que mormente é traduzido como Julgamento/juízo,
duan (斷) evoca em seu étimo á idéia de cortar, romper e, como
bem nos lembra Hu Shi, decidir vem do latim de-cidere (cidere,
cortar). Um ato de decisão, de resolução quanto ao um
direcionamento implica em cortar entre as opções de um
recorte da “realidade “oferecido pela imagem (xiang, 彖) do
trigrama/hexagrama (gua), uma de-cisão. Tão profundamente
haveria esta noção de princípios-guias (li) de se alojar nos
arquétipos dos modi cognoscendi e da visão de mundo do
chinês, que tal ensejou no ethos uma incômoda contradição:
por um lado, a mente chinesa tenderia à não-ação por força
inerente de sua postura de ascendência daoista do wei-wu-wei
(deixar que se faça algo sem que se faça algo, laisser-faire) o
que evoca e constrói a imagem de um chinês irresoluto, que se
encaixaria na perspectiva temporal da China Milenar e
Imutável; por outro, a mente chinesa estará sempre tendente à
opção que se afirma em função do Dao da situação. Portanto, e
cabe aqui enfatizar que essa opção maior, oferecida
240
hierarquicamente pelo hexagrama e por sua imagem, o é por
força da emergência preponderante de uma linha em ascensão
no interior da situação, uma linha que prepondera, que está em
status crescendi – shi! Este é o Dao da situação e o consulente
deverá se adaptar a ele, ao Dao que o hexagrama e a sabedoria
de seu julgamento descreve e presceve, e não aos ditames de
suas propensões de ego. Assim sendo, a matriz cognitiva
provinda e pervinda desse cânone inaugural, incorpora e
encapsula, convergentemente, vários outros elementos do
pensamento chinês: imagem original/arquetipal, força
emergente preponderante, a opção pela decisão maior,
hierarquizada, e a sintonia com o dao das coisas na situação em
particular. Tudo isto está girando em torno, e gravitando sobre,
um mundo de situações em curso, em movimento (dong).
Como um todo, toda essa operação oracular-cognitiva envolve
um tipo de percepção, de natureza intuitiva e paulatina a um só
tempo. Interessante notar que o percurso semântico do caracter
zhi - saber e sabedoria, composto (hui yi) construído com o yue
de “dizer” subposto a zhi “conhecer”, “saber”: o saber superior
que advém de um insight, que passa semanticamente a ter esse
sentido em Lao Zi e Confúcio, deslocando-se assim de sua
acepção antiga e arcaica que implicava a idéia de habilidade.
Uma vez mais aqui, numa sutil passagem semântica, a
indicação de que o “saber-fazer“, a habilidade do
conhecimento, sempre foi de crucial importância para a mente
pragmática chinesa. Não caberia aqui, por restrições de espaço
adentrar os labirintos do universo de correspondências entre os
planos do macro e do micro, das interrelações complementares
entre os elementos e os astros, entre as cores e os numeros,
241
entre os sons e os odores, tal como tão fartamente ocorre com o
modus complementarista dessa visão de mundo,
prescritivamente pré-dispostas, típicas das peculiaridades
cognitivas do pensamento chinês. Essa visão estrutural – e não
menos aqui e ali estrturalista - de mundo receberá, sobretudo
em sua paideia, um choque de oitava, um renversement de la
base, um aggiornamento de paradigma exatamente à altura do
colapso da era dos Estados Combatentes, quando da
implantação de uma nova ordem imperial com a dinastia Qin,
num curto primeiro momento, e a seguir, consolidadamente,
com os Han. Os resíduos adjacentes da antiga religião agrária,
com sua plêiade de deuses e divindades da natureza, de
oferendas e invocações a serem buscadas de modo a atingir um
summum bonum harmônico, visando à manutenção da ordem
própria aquela visão de mundo, o Dao maior, será agora
gradativamente substituída por um novo paradigma de práticas
religioso-populares, por um novo panteão de divindades
preponderantemente daoistas. Trata-se de uma passagem
semelhante em importância política e institucional àquela dos
Shang para os Zhou. O hegemon Qin uma vez consolidado
permite emergir um novo hegemon em termos de filosofia
política e política de estado.
242
pensamento jurídico e institucional fazendo com que a
realidade social seja definida e prescrita, a ontologia daoista se
aprofundará cada vez mais no conhecimento do corpo como a
realidade do microcosmo, dotado de uma imensa topografia,
campos de força, reservas energéticas, canais, palácios, centros
de gravidade. E este amplo universo interior será agora
povoado por um novo conjunto mitológico de entidades e
divindades, a serem nutridas, cultivadas e reverenciadas. As
novas práticas, num plano mais elevado, visam ao retorno do
status embrionarius da respiração, à implementação de dietas
alimentares regeneradoras e à imortalidade do yogin daoista,
um daoshi que almeja se tornar não apenas um zhenren (um ser
inteiro e verdadeiro) mas também um xian (o imortal),
"ideograma" composto de montanha e homem, para esse
deverá seguir, tal como o sanyasin hindu na última fase de vida
(puruSArtha) – de modo a se abrigar da banalidade do mundo.
Essa emergência do daoismo será agora irreversível, mesmo se
o confucionismo também retornará a cena política e
institucional de maneira não menos profunda e irreversível. A
escola dos legistas (fajia, 法家) emergirá no século IV AEC e
já se amplia como ideologia dos Qin ao longo da segunda
metade do século III AEC. Han Fei, que originariamente
representava uma corrente depurada do confucionismo, contra
o qual ele se rebelará, for a não menos profundamente
influenciado pelo daoismo e constitui a figura emblemática
dessa corrente. Do estoicismo de Mo Zi, ele retirará também
seus elementos de lógica e mesmo de sofística e passa a
incarnar, às vesperas da unificação sob os Qin, o profundo
desideratum do inconsciente coletivo político chinês no sentido
243
de resgatar uma ordem jurídica nos nos negócios de uma China
que se autoflagelava cada vez mais turbulenta e
esquizofronicamente. Han Zi, apenas mais tarde conhecido
como Han Fei Zi, cairia contudo em desgraça, por intrigas de
Li Si, o futuro poderoso ministro do imperador Qin, Shi Huang
Di ( 始皇帝秦) e viria a se suicidar na prisão em cerca de 233,
sem haver por conseguinte ter visto sua visão de mundo tornar-
se a ideologia dominante da nova China. O pensamento de Han
Fei (韓非) era bem mais profundo e rico do que aquilo que dele
foi feito como ideologia de estado, um legalismo seco e
despótico, caracterização que em parte correspondente a visão
cristalizada por um confucionismo ressentido. De certo que se
poderia genericamente falar de um tripé axial, a saber o
ordenamento jurídico Fa (法), portanto leis e princípios, um
método de articulação dos assuntos de estado, ou uma filosofia
administrativa shu (術) e a legitimidade terrena e celestial, shi
勢) do imperador. O Confucianismo, com sua visão
conservadora representará um obstáculo, retrógrado e
nostálgico de um passado idealizado, para a nova raison d´état
do futuro novo regime. Urgia depurar o Estado dessas forças
que preservariam o espírito da ordem feudal, desfechar um
golpe sobre elas, o que seria feito com decretos de banimento e
perseguição, assim como com a apreensão e queima de seus
escritos. Desde cima, o Imperador/governante precisa “ser
visto” como aquele que rege de acordo com os princípios mais
elevados e sublimes da sabedoria e em concordância com um
conjunto de leis “imparciais”, investido que é pelo Mandato
Celestial e provido de sua virtude (De, 德), que ele emana de si
244
como soberano, atributos que devem servir ao Estado e para
todos os súditos. Tais princípios legais deveriam portanto
passar a disciplinar a vida do estado e dos súditos. Não haveria
mais o sistema feudal, constituído de leis extremamente
severas para os crimes do povo, e um código de regras e de
ritos particulares para as classes superiores. Mantinha-se
contudo à concepção de um Imperador absoluto, quase
divinizado e para tal Qin Shi adoptaria o título duplo de
Augusto (huang) Imperador (di). Esse novo ordenamento
jurídico baseia-se em sua necessidade e fundamentação no
conceito legalista de eficácia (kong-yong). As leis passam a ser
o parâmetro regulador, do mesmo modo que os ritos o eram
antes para Confúcio. O momento de unificação político-
territorial da China, em 221 AEC, representa a consolidação de
uma passagem, uma revolução plena na qual os alicerces da
antiga ordem feudal dos Zhou haveria de ter seu mandato
celeste extirpado (gen) e uma nova ordem imposta. Mas se a
antiga civilização chinesa havia acumulado, já à altura dos
Estados Combatentes, um imenso saber em várias áreas, em
algumas outras esse pensamento permanecia ainda muito
incipiente, fosse em geografia, astronomia ou em matemática
avançada. A penetração de novos conhecimentos vindos do
exterior através das rotas comerciais, da civilização iraniana, da
hindu, grega ou mediterrânea, haveria de dar um pouco mais de
concretude a alguns desses saberes, embora muito
cursoriamente ao que se saiba. Da influência indiana teve lugar
uma ampliação das noções de matemática e de astronomia, a
qual se encontra hoje razoavelmente bem atestada pelas
pesquisas que o orientalismo produziu e, mais especificamente,
245
pela monumental obra de Jacob Needham. O pensamento
chinês que se estrutura multiplamente a partir do período
Primavera/Outono, e que se estenderá por todo o período
clássico, esvazia e reduz muito da original visão de conjunto,
holística, monadica e asincronicamente hieraquizada, das
estruturas mais antigas transmitidas pela tradição oral.
Certamente que tal ocorre por força do logos normatizador que
se afirma. De certo que a formulação do conceito de Dao, que
ocorre em Lao Zi, já é uma perda do verdadeiro sentido
estrutural original, e nisso concordam vários sinólogos
contemporâneos. As taxonomias típicas da China antiga,
bizarríssimas em termos dos arranjos das categorias– se
pensarmos em Aristóteles ou Lineu como paradigma- e
propensas a esquemas hierárquicos de correspondências
micro/macro, têm por referencial um universo de mônadas
percebidas em função dos elementos internos de suas eficácias
e devem ser aqui referidas emblematicamente como um dos
traços marcantes do modo chinês de pensar.
246
cosmogônica, um aggiornamiento filosófico, perdendo em
plenitude.,como já aludimos mais acima. O mesmo se dá com a
noção do Qi, que de sua plena expressão de pneuma cósmico,
passará a ser explorada pelas várias abordagens
psicosomáticas, e não menos pela medicina. Haverá agora uma
segmentação cada vez maior dos qi(s), um orgânico, próprio ao
ato sexual da concepção, do acoplamento do esperma com o
óvulo, ligada a alma bo; um do momento do nascimento, um qi
astral ligado a alma superior, huan. A alma bo é pressuposta de
retornar à terra quando da morte, ao passo que a huan, astral,
perdurará por mais tempo, dependendo de seu teor de
cristalização, sob a forma de gui (poltergeist, por vezes ) até
que se dissolva de novo no espaço cósmico. Mas em tudo isso,
daquela visão original, advinda dos tempos arcaicos e depois
cada vez mais adaptada e investida de novos nomes e às novas
formas das representações (ming, xiang/xing) ocorria uma
subsequência, respeitando a noção polivalente e multipolar de
vários planos hierarquizados. É deste arcabouço mais profundo
que advém a visão chinesa de multipolaridade, hoje vigente na
geopolítica chinesa. É fácil para o chinês ter essa visão,
fortemente arquetipal, porquanto seu pensamento nunca tendeu
a estratificar-se em monoteismos rígidos e tampouco em
politeísmos. E existe, em tal visão de mundo, um
extraordinário senso de liberdade de consciência, no qual as
restrições episódicas que sistemas como o legalista possa ter
pontualmente constrangido. Na visão do céu anterior que vai
sendo modificada pela emergência do logos no período dito
clássico, o mundo e o seu gerador precípuo, o cosmo, possui
uma gramática própria e cabe aos homens seguir,
247
hierarquicamente, seus protocolos de correspondências, através
de procedimentos ritualísticos, cerimoniais e outros tantos, da
vida campestre à social. Esse substrato de ritos/rituais e
convenções apropriadas permanece ainda hoje, ainda que
transubstanciados e sublimados, De novo, em suas
modalidades anteriores ou atuais, tais procedimentos e práticas
visam à eficácia. Como o pensamento chinês, em suas linhas
mais intrínsecas, não previlegiava a supremacia dos planos da
epistemologia, ainda que precaria e secundariamente tenha
imanentemente formulado variantes (com a dialética daoista e
em Mo Zi, particularmente), ocorreu algo como um certo senso
instintivo em relação às discontinuiades epistêmicas, uma
desconfiança inata de que epístemes vigentes no Zeitgeist eram
apenas aquelas que tornaram-se hegemônicas, não sendo
definitivas, tendo lugar portanto um contínuo processo de
descontinuidades. Os chineses antecipavam-se a Foucault em
mais de dois milênios, ainda que apenas pregnantemente.
Portanto, a visão de conjunto, holística do céu anterior,
transforma-se, adapta-se, transubstancia-se pela afirmação
múltipla do logos, quase da mesma forma em que tal passagem
ocorrera na Grécia dos pré-clássicos para os clássicos. De fato,
o “Meio Constante” (zhong yong), um dos textos atribuídos a
Confúcio, constitui uma eloquente expressão desta
característica maior entre os chineses, e encontramos
expressões desta consciência em praticamente todas as escolas
e em todos os pensadores. Para o chinês, o ideal como telos não
deve ser buscado, ultima ratio, nos planos metafísicos, como se
inclinam os hindus, nem tampouco na glorificação da condição
central do anthropos, como o faziam os gregos. É na integração
248
com o mundo e as leis da natureza que este equilíbrio mental,
físico e mesmo mágico, deve ser alcançado.
249
Quando um filósofo moderno diz que toda palavra é já um pré-
conceito e toda definição uma limitação, ele está fazendo eco a
uma passagem emblemática inicial do Daodejing: (“aquele”)
Dao que for definido como Dao não é o verdadeiro Dao. Tão
ampla e lúcida é a consciência filosófica chinesa antiga quanto
as limitações das palavras, das definições... tão plena sua
consciência dos vários universos cognitivos (e dos princípios
de incerteza) que se adjacenciam como mônadas em
descontinuidades de hegemonia epistêmica (talvez Foucault
tenha bebido aqui) que o eixo de se pensamento estará desde
sempre irremediavelmente liberado dessa aflição. O Dao, são
muitos dao(s), pois infinitas são várias “coisas em si” que estão
para além e para aquém das imposições do problemático,
ilimitado e limitante pensar humano, de suas projeções e
intencionalidades subjetivas e não menos de suas
circunstanciais assertivas científicas. Nomear para o chinês, ou
seja outorgar com um caracter pleno de carga semântica e
semiótica alguma coisa é ato de temerária importância e por
isso o pensamento chinês se abstém tanto quanto possível de
fazê-lo. Aqui prevalesce a máxima do oráculo de Delphos: oute
legei, oute criptei, 'alla semanei... “não diz, não oculta, mas
(apenas) significa...” Quanto mais se nomeia tanto mais será
prescrito, formatado, outorgado e mesmo vaticinado. As
camadas subterrâneas, os labirintos interligados dos processos
cognitivos do pensamento chinês escapam ao domínio do
visível e podem apenas ser “captados” nos interstícios dessas
démarches de apreensão de si mesmo e do real, quase que por
osmose. A visão inaugural tríplice, mítica e emblematicamente
descrita em torno do personagem Fuxi, estabeleceu um
250
paradigma que tudo abrange, o mundo sendo visto como o
resultado da interpenetração de três planos: o céu (leia-se : a
procedência cósmica, assim como as leis que influenciam a
vida orgânica, estações do ano, cristalizações dos tipos
psicológicos, etc), a terra e sua vida orgânica, seus ciclos, suas
leis de contínuas recorrências e transformações, e o homem,
cingido entre essas duas influências maiores e por aquelas que
sua prática social vai nele incorporando através de idéias e
ideologias. O Dao que será explicitado, aludido e metaforizado
pelo logos do pensamento filosófico, muito particularmente
pelo empuxo do Daoismo como escola de pensamento, estará
em verdade restringindo aquela visão inaugural, amplíssima,
recolhendo dela pelo pensar e a pela linguagem que o permite,
um quantum explanável ou alusível, que é de resto o que o
étimo de logos, procedendo de legei, evoca. Ming, substantivo
e verbo, denota aquilo que tornou-se nomeado, restringido por
um significado, em meio a vários outros significados possíveis
ou mesmo contrários. As palavras chinesas articulam seus
significados dentro de contextos semânticos, mônadas de
adjacências semióticas. Tal fato propicia e exige que se as
compreenda por modulações e recorrer ao dicionário e pinçar
essa ou aquela definição da primeira entrada do verbete é, em
chinês clássico sobretudo, extremamente falacioso. Contexto,
instância e circunstância constituem a condição prévia para a
compreensão do que quer que esteja sendo dito ou descrito.
Portanto, para o pensameno chinês antigo, o território do não-
nomeado, o daquelas áreas da percepção intuída e visualizada,
mas não ainda formulada, é de importância primordial e não
era e não deveria ser suplantada pela limitação das
251
formulações. Assim era a visão primordial do Dao e quando as
escolas filosóficas que o descrevem, analisam e esmiuçam sua
natureza surgem e se multiplicam, muito de sua imanência já
está se esvaindo. Enfaticamente emblemática é portanto a
primeiríssima passagem do Dao Dejing, tal como
canonicamente passou a posteridade: Dao ke dao fei chang dao,
“o Dao que puder (ser descrito, definido, analisado, etc ) como
Dao não é o Dao constante!. É como se Laozi estivesse
alertando que, a partir daquele momento de formatação da
comprensão desse conceito antigo - daquela visão ampla e
simples das coisas do universo e do mundo -, haveria agora
uma impossibilidade em definí-lo, tema principal de seu livro.
Paradoxo extraordinário, axial e típico do pensamento chinês.
Bibliografia seleta
252
Hu Shi: The Development of the Logical Method in Ancient
China. Shanghai: 1922.
253
chapters only). Reprinted as a separate volume by Elanders in
1950.
254
Study of Early China, and the Institute of East Asian Studies,
University of California, Berkeley, 1989.
255
O PENSAMENTO CHINÊS
DURANTE A DINASTIA HAN por
André Bueno
Pois
256
efetivamente, o confucionismo ortodoxo dos Han já não
era o mesmo dos tempos dos Qin: tinha sido
contaminado pela teoria do Yin e Yang e dos Cinco
Elementos e mais ainda pelas teorias de Zouyan” (idem,
p.53).
257
preservam (ou ao menos, assim parece) as diretivas
fundamentais das escolas antigas. Ora, sabemos que estas
classificações foram criadas pelo historiador Sima Qian, no
século -1, com fins de preservar determinadas linhagens
sucessórias de mestres e idéias, mas em absoluto tais categorias
eram totalmente fechadas. Prova disso é o fato de dois dos
maiores autores legistas, Hanfeizi 韓非 e Lisi 李斯, terem sido
discípulos do confucionista Xunzi 荀子, antes de migrarem
para a corrente de Shang Yang 商鞅 e Shen Buhai 申不害.
Esta possibilidade de diálogo e transição quebra,
automaticamente, um segundo ponto nas análises usuais sobre
o pensamento na época Han: a questão da sua evolução.
258
nasceu a partir de uma série de discussões relativas ao mesmo
corpo de conceitos (o que seria o Dao 道, ou Via, método? e
Sheng 聖, sabedoria? , etc.), e a atitude dos pensadores Han em
manter as linhas de debate principais não escapava a isso.
Como bem afirmou W. Morton, “Os chineses jamais pensaram
que, para manter uma crença, é necessário excluir outras, e o
período Han foi marcado por grande ecletismo” (Morton,
1986). Em segundo lugar, negar estas transformações ocorridas
na filosofia chinesa seria negar, igualmente, a capacidade de
evoluir e adaptar-se as novas exigências intelectuais e sociais
da época, contrariando a própria atitude crítica da interpretação
histórica.
O Panorama Geral
259
científico, exemplificados na difusão do papel, da bússola, na
invenção do sismógrafo e da esfera armilar (estas duas últimas,
criações de Zhang Heng 張衡, morto em +132, que ainda
adaptou sua esfera com representações do cosmo a um
mecanismo hidráulico, que lhe proporcionava movimento
contínuo, regulado por uma clepsidra). Tais criações não se
devem apenas ao gênio inventivo ou a curiosidade dos
pesquisadores, mas a uma bem estruturada teoria científica que,
desde a época dos Zhou, articulava a produção e a pesquisa dos
intelectuais chineses. Esta teoria articulava as concepções do
sistema Yin-Yang com a regra dos Cinco Agentes (Wuxing
五行, que na cosmologia chinesa seriam terra, fogo, água,
metal e madeira) cujo conjunto de relações determinava o
processo investigativo da natureza.
260
incorrer no erro dos maniqueísmos históricos. Quando os
autores Han estavam falando de política, tinham uma clara
consciência do que estavam fazendo.
As iniciativas intelectuais
261
[Quando] Qin Shi Huangdi estabeleceu punições e pôs
em prática todo o tipo de penalidade para os mais
diversos tipos de crimes [...] também construiu a grande
muralha ao longo da fronteira com os bárbaros com a
ordem de preparar-se contra o povo Hu. Ele enviou
expedições punitivas contra grandes Estados, e anexou
os pequenos Estados. Sua autoridade sobre o povo
alcançava todo o mundo, e seus generais despachavam
tropas em todas as direções para trazer os Estados
estrangeiros a sua submissão. Meng Tian atacava os
desordeiros, Lisi administrava as leis. E assim mesmo,
mais ações atingiram o império, mais problemas
surgiram, mais leis foram feitas, um numero maior de
maldades foram produzidas [...] A Dinastia Qin falhou
porque não atingiu o meio apropriado de governar,
baseando-se exclusivamente em leis e punições duras.
No entanto, o Ser superior põe ênfase na prática da
generosidade sob sua proteção, e age de acordo com o
Caminho do Meio para angariar o apoio do povo.
Assim, o povo o respeitará por sua autoridade, e será
influenciado pelo seu exemplo. Eles aceitarão a virtude
como o guia por toda a terra, ajudarão a administrá-la e
nunca se oporão ao governo (cap. 4).
262
(pela necessidade de manter uma hierarquia e uma estrutura
administrativa, bem como de dar o exemplo moral), mas as
condições para sua execução deveriam aceitar o preceito
daoísta de uma “não ação” (wu wei 無為) consciente, sem
forçar os limites do povo (o que constituiria o erro fundamental
dos legistas de Qin).
263
A retomada confucionista
264
Jingdi 景帝 (entre -156 -140), encontraram-se cópias antigas
de alguns textos na parede de uma casa velha que teria
pertencido a Confúcio. Estes textos seriam versões do Shujing
書經 (Tratado dos Livros), Liji 禮記 (Recordações Culturais),
Lunyu 論語 (Conversas) e Xiaojing 孝經 (Tratado da
Fraternidade Familiar), escritos em caracteres de estilo antigo
(Zhou), anteriores a síntese gramatical ordenada por Qinshi
Huangdi, e se constituiriam, pois, numa fonte original de
consulta, doravante denominados de “Guwen” 古文(‘Textos
Antigos’).
265
Jinwen. Os comentadores mais famosos dos textos
confucionistas desta época (ou, melhor dito, aqueles que foram
salvos pelo tempo) são justamente da linha Guwen: Kong
Anguo 孔安國, Liu Xin 劉歆, Ma Rong 馬融 e Zheng Xuan
鄭玄, cujas contribuições foram inequívocas para o debate
confucionista. Cai Yong 蔡邕 (+133 +192) estabeleceu, por
fim, o que seria uma “versão final” dos textos confucionistas,
açambarcando contribuições de ambas as correntes, mas hoje é
grande a dificuldade em estabelecer os limites de cada uma nos
escritos. O que se vê, pois, é como tal polêmica extrapolou por
completo o período de existência dos Han, tornando-se um dos
centros de atenção da filosofia chinesa.
266
春秋繁露 (Orvalho Precioso das Primaveras e Outonos), ele
afirma que:
267
recebe o Decreto (Ming) do céu, e por isso é mais
sublime (do que as outras) criaturas. (As outras)
criaturas sofrem vexames e miséria, e são incapazes de
praticar o amor (ren) e a retidão (yi): só o homem é
capaz de as praticar. (As outras) criaturas sofrem
vexames e miséria e são incapazes de se equiparar com
o céu e a terra; só o homem é capaz disso” (cap. 56).
269
nunca receber cargos; por isso se retiravam para
escrever livros a fim de expor seus pensamentos e sua
indignação, e transmitir seus escritos teóricos à
posteridade, para que esta soubesse quem eles eram. Eu
também me atrevi a não ser modesto, mas dediquei-me
a meus escritos inúteis. Reuni e compilei as velhas
tradições do mundo, que estavam dispersas e perdidas.
Examinei os feitos e os acontecimentos do passado e
investiguei as razões que havia por trás do sucesso e do
fracasso, da ascensão e do declínio, em 130 capítulos.
Desejei examinar tudo o que diz respeito ao céu e ao
homem, penetrar nas mudanças do passado e do
presente, completando tudo como o trabalho de uma
família [...]. Quando houver acabado realmente este
trabalho, irei depositá-lo na Montanha Famosa. Se ele
puder chegar às mãos de homens que o apreciem e
penetrar em vilas e grandes cidades, então, mesmo que
eu sofra mil mutilações, que arrependimento teria? Tais
assuntos podem ser discutidos com um sábio, mas é
difícil explicá-los ao vulgo”.
O Huainanzi
270
teria sido feita por um príncipe, Liuan 劉安(? -139), que teria
caído em desgraça após colocar-se contra o poder imperial. As
atas de suas discussões com um grupo de mestres daoístas
preservou-se, porém, e nos trouxe a luz um conjunto de escritos
variados que abordam desde estratégia, cosmologia até política
e reflexão sobre a vida. O Huainanzi parecia se tratar, antes de
tudo, de uma reação à preeminência política dos confucionistas
neste período, elaborando uma proposta que buscava unir as
perspectivas dos antigos daoístas ao ambiente social do império
Han.
271
sentidos, a estrutura posterior do conjunto do pensamento
chinês.
272
espírito, qualquer coisa que se busca pode ser
encontrada, e tudo que é feito pode ser realizado”.
273
eles caíssem, não poderiam machucar ninguém. - Mas
que seria se a terra fosse destruída? E o outro
respondeu: - A terra é somente formada de sólidos
acumulados, que enchem todo o espaço. Não há lugar
onde não haja sólidos. Quando andas e pisas no chão, tu
te moves o dia inteiro nesta terra. Por que, pois precisas
temer que ela seja destruída? Então aquele homem
pareceu compreender e ficou muito contente, e o que
lhe explicara tudo sentiu que ele entendera e também
ficou muito satisfeito. Quando Zhangluzi soube disso,
riu e disse: - O arco-íris, as nuvens e os nevoeiros, os
ventos e as chuvas e as quatro estações... Não são todos
eles formados de ar acumulado no céu? As montanhas e
os picos, os rios e os mares, o metal e a pedra, a água e
o fogo... Não são todos formados de sólidos
acumulados na terra? Uma vez que sabemos que são
formados de ar acumulado e de sólidos acumulados,
como podemos dizer que são indestrutíveis? O
infinitamente grande o infinitesimalmente pequeno não
se podem saber, explorar ou conjeturar
exaustivamente.... É matéria que se deve admitir sem
prova. Os que se inquietam com a destruição do
universo, pensam naturalmente com excessiva
antecipação, mas os que afirmam que ele não pode ser
destruído também estão enganados. Uma vez que o céu
e a terra devem ser destruídos, eles acabarão finalmente
pela destruição. E quando forem destruídos, por que nos
haveríamos de afligir com isso? Liezi soube do que
Zhangluzi falara, e riu dizendo: - Os que afirmam que o
274
céu e a terra podem ser destruídos não têm razão, e os
que asseguram que são indestrutíveis também estão em
erro. A destruição e a indestrubilidade são coisas de que
nada podemos saber. Contudo, são ambas o mesmo.
Portanto, um homem vive e nada sabe da morte; morre
e nada conhece da vida; chega e não sabe da partida; e
parte sem saber da chegada. Por que a questão de haver
ou não haver destruição deve importunar os nossos
espíritos?”
275
matrizes da inteligência espiritual e determina o curso
natural dos eventos”. (cap. 9)
Os Han posteriores
276
procurava animais para comer e apanhou uma raposa. E
a raposa disse: “Como ousas comer-me? O Deus do
Céu me fez chefe do reino animal. Se me comeres,
estarás pecando contra Deus. Se não crês no que digo,
acompanha-me. Marcharei na frente e tu me seguirás”.
O tigre foi, pois, com a raposa, e os animais fugiram ao
se aproximarem os dois. O tigre não percebeu que os
animais não tinham medo da raposa, mas dele. Ora,
Vossa Alteza Real tem um território de cinco mil li
quadrados e um exército de um milhão de soldados, e
deu todo o poder a Zhao Xisi. Portanto o povo do norte
teme o seu poder, mas na realidade o que receia é o
exército do Rei, como os animais tinham medo do
tigre”.
277
“Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o
tronco do qual nasce todo ensinamento moral. [...]
Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada fragmento de
pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos
atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo
da piedade filial. Quando formamos nosso caráter
mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso
nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso
nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com
o serviço de nossos pais, continua com o serviço do
governante, e se completa pela formação do caráter”.
Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o
tronco do qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te
de novo e te explicarei a questão. Nossos corpos – cada
fio de cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos
de nossos pais e não devemos atrever-nos a danificá-los
ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando
formamos nosso caráter mediante a prática da conduta
filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras
e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da
piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais,
continua com o serviço do governante, e se completa
pela formação do caráter”. (cap. 1)
278
白虎通(Discussões do Palácio do Tigre Branco); o primeiro
trata-se de uma história dinástica nos mesmos moldes do Shiji;
o segundo constitui-se num tratado de orientação política e
histórica cujo alicerce é, novamente, a teoria cosmológica de
universo. Uma profunda diferença na análise de Bangu e Dong
Zhongshu deve ser notada, porém: as relações realizadas por
Ban diferem bastante da tradicional teoria dos cinco agentes,
mostrando que a ciência chinesa não passou por evolução única
e linear, como insistem os tradicionalistas e esotéricos. O
período Han é justamente o momento em que estas teorias
estão sendo discutidas, avaliadas e postas à prova. Não
devemos esperar, pois, a continuidade plena e absoluta do
pensar chinês sem um processo de crítica e contraposição fértil.
279
educação: conforme o Liji (Livro dos Rituais), a regra é
começar a ensinar uma criança a ler aos oito anos, e
perto dos quinze elas estão aptas ao estudo da cultura.
Apenas porque isso se refere aos meninos, não pode e
deve ser igualmente outorgado às meninas? Esta é a
base do equilíbrio”.
280
homem é um animal, e um animal é também um animal.
Se um animal não se torna fantasma quando morre,
como iria tornar-se fantasma um homem?... A vida do
homem depende de seu espírito e esse espírito se
extingue quando ele morre. O espírito do homem (qi, ou
energia) vem de seu sangue e quando o sangue do
homem, após sua morte, lhe sai do corpo, o espírito, ou
energia, se exaure. A seguir, o corpo se decompõe e
torna-se pó. A que se apegaria o espírito para tornar-se
fantasma? Às vezes, comparamos um cego, ou um
surdo, à vegetação comum, que não pode ver nem
ouvir. Ora, quando o espírito deixa um homem, isso é
algo mais sério do que a mera perda da visão ou da
audição... Desde que teve começo o universo, milhões
de pessoas têm morrido, em tempos diferentes. O
número dos que hoje vivem é muito menor que o dos
que morreram no passado. Se, portanto, os mortos se
tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um
fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas junto a
seu leito de morte, deveria vê-los aos milhões,
enchendo todas as ruas, os becos, os vestíbulos e os
pátios, e não apenas ver um ou dois fantasmas... Diz o
povo que o fantasma de um morto tem consciência:
pode causar dano às pessoas. Pela analogia geral com os
animais, um homem morto não se torna fantasma e é
incapaz de causar dano aos vivos. O homem é um
animal, e um animal é também um animal. Se um
animal não se torna fantasma quando morre, como iria
tornar-se fantasma um homem?...”
281
Mas a paulatina desagregação da dinastia Han permeou uma
mudança de foco em relação às questões políticas e sociais da
época. Pensadores como Cuishi 崔寔(+135+170) voltam a
pregar uma radicalização política, como a que surge no
Zhenglun 政論 – um tratado de política calcado em teorias
legistas, do qual só sobraram fragmentos, mas cujo conteúdo
foi amplamente discutido naquele momento. Xunyue 荀悅
(morto em 209) foi um destes autores que, preocupados com a
crise premente, defendiam um fortalecimento da instituição
política Han. No Shenjian 申鑒 (Espelho das Apelações),
Xunyue propunha uma combinação das teorias confucionistas e
legistas num novo sistema que pudesse recuperar a estrutura
administrativa, moral e econômica da Dinastia, como
transparece nesta breve seleção:
282
Mas o clima final da Dinastia Han pode ser compreendido
precisamente nos escritos pessimistas de Wang Fu 王符(90
+175), escritor cuja carreira começou tarde e cujo livro Qianfu
Lun 潛夫論 (Diálogos de um Eremita) deixa transparecer a
desilusão com a situação moral de seu contexto. Embora
confucionista, Wang não acreditava mais no sistema vigente, e
percebia a iminência de uma crise destruidora para a dinastia
Han.
Conclusões
283
contexto apresentam são fundamentais para a compreensão do
posterior desenvolvimento do pensamento chinês, e não devem
ser tidas como menores diante do período de alvorece do
pensar chinês durante a época Zhou. Como vimos, a projeção
de um passado ilustrado para a China de Confúcio é muito
mais um anseio da sinologia ocidental do que, propriamente,
uma realidade para a história dos pensadores chineses.
284
Bibliografia
Fontes:
Ch'En, Chi-Yun. Hsun Yueh and the mind of late Han China: a
translation of the Shen-chien. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1980.
285
Cullen, Christopher. Astronomy and Mathematics in Ancient
China: The Zhou Bi Suan Jing. Vol. 1. New York: Cambridge
University Press, 1996.
286
Loewe, Michael. A Biographical Dictionary of the Qin, Han
and Xin Dynasties. Leiden: E.J.Brill, 2000.
287
Vervoorn, Aat. Men of the Cliffs and Caves: The Development
of the Chinese Eremitic Tradition to the End of the Han
Dynasty. Hong Kong: Chinese University Press, 1990.
288
O CAVALO NA ANTIGUIDADE
CHINESA: ENTRE O
INSTITUCIONAL E O NATURAL por
Márcia Schmaltz
Introdução
289
levadas a cabo em Zhuangzi 庄子. Ao final, a partir da revisão
bibliográfica conclui-se a importância do cavalo dentro do
sistema cultural chinês sob uma abordagem filosófica até ao
período dos Reinos Combatentes (475-221 AEC).
290
mostrará nas seções seguintes, antes, porém, vide algumas
representações do cavalo na mitologia chinesa.
O cavalo na mitologia
291
minimizar as cheias do rio Amarelo. A unificação do dragão
com o cavalo, confere força e velocidade inigualável ao mítico
animal; por isso, o provérbio longma jingshen 龙马精神 é
empregado como desejo que reine a Grande Virtude 大德
sobre a Terra (2003, p. 42-43).
292
dinastia Zhou (1.100-770 AEC). Na dinastia Zhou houve
grandes avanços na arte de criação equestre. Inclusive um dos
grandes tratadores de cavalos real Zaofu 造父 foi reconhecido
pelo imperador Xiao 孝 (891-886 AEC), que lhe concedeu o
sobrenome Yin 嬴 e mais um condado a noroeste de Xi’an, que
se tornaria séculos depois a primeira dinastia a unificar a
China, isto é, a dinastia Qin 秦 (221-206 AEC).
293
saques constantes da confederação tribal dos hunos, que
possuíam superioridade equestre (SONG, 2008 e YANG et. al.,
2008). De acordo com a “História de Fergana” no Registros
Históricos [史记·大宛列传], a guerra entre os hunos e os
chineses era constante e, na batalha de 119 AEC, ambos
tiveram grandes baixas, sendo que a parte chinesa perdeu mais
de 80% de sua cavalaria. Nesta conjuntura, o porte e o número
de cavalos tornaram-se estratégicos para a manutenção e
expansão militar dos chineses. Desta forma, o imperador
Marcial Han Wudi 汉武帝 (157 - 83 AEC), por um lado,
delimitou áreas abertas para a criação de cavalos, por outro
lado, a fim de aprimorar a raça chinesa, enviou emissários para
a compra dos célebres cavalos de Fergana 大宛, região da Ásia
Central, em 113 AEC. Porém, a oferta dos Han foi recusada e o
seu embaixador, executado. Em retribuição à afronta, em 104
AEC, o imperador Marcial arregimentou uma campanha com
40.000 homens, que foi derrotada graças à união dos reinos
bárbaros, aliados do reino de Fergana. Entretanto, o imperador
chinês estava determinado em levar a cabo o seu plano. Assim,
no ano seguinte, outro exército com 60.000 homens foi enviado
para o Oeste. Desta vez o império tratou de subornar os reinos
vizinhos de Fergana, estabeleceu uma boa logística para o
envio de suprimentos e sitiou a capital de Fergana. Dessa
forma, em 101 AEC, conseguiu a rendição do reino rebelde e
obteve 3.000 cavalos da raça (embora apenas algumas dezenas
de qualidade superior e somente 1.000 chegaram à capital) e
sementes de alfafa. Segundo Yang (2008, p. 8) foi à custa de
dez vidas humanas por um cavalo. Com a introdução da raça
Fergana, a atividade de criação de cavalos passou a prosperar
294
na China por certo período, mas a exígua disponibilidade de
campos para a pastagem e o costume de alimentar animais com
cereais, fez com que a raça perdesse as vantagens originais
(XIE, 1991).
295
equídeo, fornecendo evidências do domínio equestre pelos
chineses.8
采采卷耳、不盈顷筐。嗟我怀人、置彼周行。陟彼崔嵬、
我马虺隤。我姑酌彼金罍、维以不永怀。陟彼高冈、我马
玄黄。我姑酌彼兕觥、维以不永伤。陟彼砠矣、我马瘏矣
、我仆痡矣、云何吁矣。
296
Eu subia a um platô, mas os meus cavalos ficaram sem forças,
297
O mais célebre conhecedor de cavalos na Antiguidade foi Sun
Yang 孙阳 (?680 - ?610 AEC), conhecido como Bole 伯乐,
nome da constelação do Tratador de cavalo celestial. O perito
em cavalos foi vassalo do estado de Qin 秦e escreveu Xiang
Ma Jing 相马经 [Tratado sobre cavalos], obra que se perdeu. É
no provérbio “Bole avalia cavalos” [伯乐相马 Bole xiangma]
que talvez se encontre a primeira analogia do cavalo com o
homem, pois, o dito é uma alusão a descoberta de pessoas
talentosas por um experto. Yang et. al. (2008, p. 114) observam
que Bole seria uma alusão ao rei e do desejo de
reconhecimento de um súdito pelo rei. Esses súditos talentosos
seriam cavalheiros eruditos, que atuavam como o que
conhecemos hoje por “consultores”, aconselhando os
soberanos dos Reinos Combatentes num período de disputa
pela hegemonia do Império do Meio.
298
bom preço, depois de convidar Bole a visitar o seu estábulo.
Sugerindo que é melhor ter uma recomendação do que fazer a
autopromoção. Assim como para se comprar um cavalo não se
pode furtar da assessoria de entendedores de cavalos (Bole)
como sugerido em “A Visita ao Rei Zhao” [客见赵王].
Todavia, a consolidação da metáfora de tomar o corcel como o
homem virtuoso e o Bole como o bom governante ocorre em
“A Visita de Hanming ao Chunshenjun” [汗明见春申君] no
mesmo livro. Depois de três meses de espera, o virtuoso, mas
pobre Hanming consegue finalmente uma audiência com o
ministro Chunshenjun. Durante a reunião, os dois descobrem
ter afinidades e compreensão tácita, de forma que o ministro
decide conceder-lhe uma audiência a cada cinco dias. Hanming
emocionado, conta-lhe a história de um corcel que puxava
carro de sal numa montanha, que foi reconhecido e socorrido
por Bole. O relinchar estridente do corcel estreme os céus,
emocionado por ser reconhecido e liberto pelo avaliador. A
referência a essa parábola é encontrada inúmeras vezes na
literatura chinesa, como uma alegoria da busca ou da falta de
reconhecimento dos talentosos no mundo.
299
cavalos por três vezes, perdeu a corrida para o Wang. O rei
irritado acusou treinador de não lhe ensinar tudo o que sabia.
Wang refuta a acusação, alegando que o rei não usou
corretamente as habilidades aprendidas e complementa:
凡御之所贵,马体安于车,人心调于马,而后可以
进速致远。今君后则欲逮臣,先则恐逮于臣。夫诱
道争远,非先则后也。而先后心皆在于臣,上何以
调于马,此君之所以后也。
300
convencional das ocupações e dos recursos, o filósofo inclusive
adverte que “um pulo do corcel é inferior a dez passos e se esse
leva um dia para percorrer 600 quilômetros, um cavalo
ordinário, se tiver determinação, pode muito bem cumpri-lo em
dez dias”.13
301
Quando na seleção das traduções que deram origem a 50
fábulas da China Fabulosa (Capparelli e Schmaltz, 2007) e
Contos sobrenaturais chineses (Schmaltz e Capparelli, 2010) já
se havia observado certa recorrência do termo “cavalo” ma 马
em Zhuangzi: “cavalo selvagem 野马”, “todas as coisas são um
cavalo 万物一马也”, “a natureza primordial do cavalo
马之真性” e “do cavalo surge o homem马生人” e ainda a
distinção entre “o cavalo institucional国马” e do “cavalo
natural 天下马”, apenas para citar algumas referências.
野马也,尘埃也,生物之以息相吹也。
302
Durante a viagem ao mar do sul, a roca viu uma tropa
de cavalos selvagens a galopar pelos prados, à poeira
levantada juntava-se a energia emanada pelos seres na
primavera, evidenciando a vitalidade de todas as coisas.
(ZHUANG, 2008, p.1).
马,蹄可以践霜雪,毛可以御风寒,齕草饮水,翘
足而陆,此马之真性也。虽有义台路寝,无所用之
。
303
夫马,陆居则食草饮水,喜则交颈相靡,怒则分背
相踶。马知已此矣。马所知止此矣。
以指喻指之非指,不若以非指喻指之非指也;以马
喻马之非马,不若以非马喻马之非马也。天地一指
也,万物一马也。
304
conceitos e as coisas são apenas símbolos (ZHUANG,
2008, p. 20).
及至伯乐,曰:“我善治马。”烧之剔之,刻之雒之
,连之以羁馽,编之以皂栈,马之死者十二三矣;
饥之渴之,驰之骤之,整之齐之,前有橛饰之患,
而后有鞭厕之威,而马之死者已过半矣。陶者曰:“
我善治埴,圆者中规,方者中矩。”匠人曰:“我善
治木,曲者中钩,直者应绳。”夫埴、木之性,岂欲
305
中规矩钩绳哉?然且世世称之曰:“伯乐善治马,而
陶、匠善治埴木。”此亦治天下者之过也。
306
O excerto acima sugere que Zhuangzi condena o altruísmo, a
benevolência 仁16 e a equidade, retidão 义, considerados pelo
filósofo daoísta como comportamentos artificiais adquiridos:
tudo aquilo mediante o que a civilização deturpa e falseia a
natureza. Toda invenção, todo pretenso aperfeiçoamento
(personificado em Bole, oleiro e carpinteiro) não vale mais do
que uma excrescência incômoda: os cavalos domesticados
morrem prematuramente e o mesmo acontece com os homens,
a quem as convenções sociais proíbem de obedecer
espontaneamente ao ritmo da vida universal (cf. LU, 1994, p.
381-385 e 397-399; GRANET, 1997, p. 310; ZHANG, 2003, p.
39). No excerto abaixo, Zhuangzi demonstra o efeito maléfico
da civilidade e encerra a sua arguição condenando o Sábio:
夫加之以衡扼,齐之以月题,而马知介倪、闉扼、
鸷曼、诡衔、窃辔。故马之知而态至盗者,伯乐之
罪也。夫赫胥氏之时,民居不知所为,行不知所之
,含哺而熙,鼓腹而游,民能以此矣。及至圣人,
屈折礼乐以匡天下之形,县跂仁义以慰天下之心,
而民乃始踶跂好知,争归于利,不可止也。此亦圣
人之过也。
307
se tornou pérfida como a de um bandido. Este foi o erro
de Bole.
308
entendermos que o cavalo é uma analogia ao homem e à
liberdade primordial, os males que atinge a humanidade seriam
os instrumentos de controle dos governantes, como sugere
Zhang (2003, p. 39-40)
Conclusão
309
Notas
6.
[秦马之良,戎兵之众,探前趹后蹄閒三寻腾者,不可胜数
。]
310
8. Já no Dicionário Kangxi 康熙字典 organizado na dinastia
Qing (1644-1911), ultrapassa 500 ideogramas com o radical de
cavalo. Nos dias de hoje, apesar das estimas dos três a quatro
mil empregados na comunicação cotidiana, o Grande
dicionário da língua chinesa汉语大字典 Hanyu Da Zidian com
56.000 ideogramas, registra 620 ideogramas relacionados ao
cavalo.
11. [人之性恶,其善者伪也。]
12.
[古之良马也;然而必前有衔辔之制,后有鞭策之威,加之
以造父之驶,然后一日而致千里也。]
13. [骐骥一跃,不能十步;驽马十驾,功在不舍。]
311
15.
[种有几,得水则为继,得水土之际则为蛙 之衣,生于陵
屯则为陵舄,陵舄得郁栖则为乌足,乌足之根为蛴螬,其
叶为胡蝶。胡蝶胥也化而为虫……其名为鸲掇。鸲掇千日
为鸟,其名为乾余骨。乾余骨之沫为斯弥,斯弥为食醯。
颐辂生乎食醯,黄軦生乎九猷,瞀芮生乎腐蠸,羊奚比乎
不 ,久竹生青宁,青宁生程,程生马,马生人,人又反
入于机。万物皆出于机,皆入于机。]
17.
[夫为天下者,亦奚以异乎牧马者哉?亦去其害马者而已矣
。]
312
Referências bibliográficas
313
Shijing [O livro dos cantares]. Disponível em:
http://ctext.org/book-of-poetry/odes-of-zhou-and-the-south/zhs,
acesso em 25 de abril de 2014.
314
OS QUATRO ANIMAIS
COSMOLÓGICOS EM TÚMULOS
HAN COM MURAIS por Nataša
Vampelj Suhadolnik
Introdução
315
enfeites, que começaram a aparecer com a nova forma
de construção nos meados dos Han ocidentais, conseguiu sua
difusão máxima durante a dinastia Han Oriental (25 -
220EC). O presente artigo focará sobre as representações dos
quatro animais cosmológicos no chamado mushi
bihua 墓室壁画, ou túmulos com murais e imagens pintadas
diretamente sobre as paredes.3 Enquanto estudos anteriores
sobre os murais das tumbas Han discutiram brevemente a duas
forças cósmicas e cinco fases,4 até o momento não houve
nenhum tratamento prolongado do conteúdo do mural e dos
Quatro animais com respeito a teoria yin yang
wuxing 陰陽五行, que fornece uma linha temática básica para
esses murais. Com base no layout arquitetônico completo e no
conteúdo pictórico de túmulos com murais, o presente artigo,
assim, irá reinterpretar a representação dos quatro animais
cosmológicos, tanto em geral quanto sobre o seu papel
específico na teoria yin yang wuxing, como é elaborada no
túmulos.
316
três em Hebei 河北, um em Jiangsu 江苏, dois em
Anhui 安徽e dois na província de Sichuan 四川), enquanto que
concentrações também foram encontradas em certas regiões
fronteiriças: Liaoyang 遼陽, no Nordeste (13), Gansu 甘肅 (6)
e Mongólia Interior 内蒙 (6). A maioria destes túmulos
estavam situados nos principais centros políticos, guarnições
militares estratégicas ou nas cidades economicamente e
culturalmente florescentes da época. Devido à falta de provas
materiais, o estado exato e a posição dos ocupantes dos
túmulos são muito difíceis de determinar. No entanto, com
base nos achados arqueológicos e outras pesquisas analíticas, a
maioria das tumbas foram para os funcionários importantes,
intelectuais e ricos proprietários de terras (Huang 2008, 140-
156).
317
Embora os túmulos não tenham um esquema iconográfico
padrão, e revelam uma variação considerável em termos de
temas específicos e na organização de motivos em uma
representação conceitual uniforme, dependendo da sua
localização e datação específica dentro do período da dinastia
Han, todos esses motivos parecem estar imbuídos do conceito
de yin yang wuxing 陰陽五行. De fato, como Cheng Te-kun já
observara (Cheng 1957, 180), a união das forças yin e yang,
conforme expresso na circulação constante dos
cinco xings (cinco fases), constitui um fio condutor básico nas
pinturas murais Han.
318
Para representar essa dinâmica cósmica dentro de um túmulo e
alcançar um equilíbrio cósmico que poderia superar a natureza
transitória da vida humana, as duas forças foram retratadas ou
incorporadas em diferentes formas. As imagens simbólicas
mais comuns usadas para representar essas duas forças
cósmicas, com base na tradição literária e da posição das
próprias imagens, eram o sol ea lua, as duas divindades
lendárias Nüwa 女媧 e Fuxi 伏羲 (que foram muitas vezes
associados estreitamente com o Sol e a Lua), a Mãe do Reino
Ocidental (Xiwangmu 西王母) e seu parceiro complementar, o
Pai do Reino do Leste (Dongwanggong 東王公), e o motivo
de duas criaturas entrelaçadas, geralmente de sexos opostos. As
cinco fases 五行foram geralmente descritas como os Cinco
Palácios em que o Céu foi dividido, juntamente com os seus
habitantes, na forma de divindades, assistentes e espíritos
planetários, bem como uma série de animais divinos que
tinham a função de guardar os palácios. A construção de
tumbas também foi usada para transformar um objeto religioso
em um microcosmo do universo. Na verdade, câmaras-
sepulturas eram geralmente construídas com tetos redondos e
muros de suporte baseado em quadrados, de acordo com
a teoria Gaitian 蓋天說, e o conceito amplamente difundido de
um céu redondo e de uma terra quadrada. No entanto, a fim de
confirmar esse aspecto do design do túmulo, temos de
contextualizar as cenas individuais no âmbito de toda a
composição, e estabelecer as relações entre os conteúdos
pictóricos e os elementos arquitetônicos. Em outras palavras,
319
devemos interpretar as cenas pintadas dentro do contexto de
seu arranjo arquitetônico original.
320
culminar das atividades de Verão e do yang. O Tigre branco
continua esse papel no quadrante ocidental, que está ligado a
decadência gradual do ano, as atividades do outono e o início
da ascensão do yin . No norte, no zênite de yin e o ponto
culminante da temporada de inverno, as divindades do norte
são ajudados e protegidos pelo Guerreiro Negro.
321
Palácio do Palácio Palácio do Palácio Palácio
Norte Oriental Sul Ocidental Central
Quatro
Temporada Inverno Primavera Verão Outono direções
(quatro
estações)
Chen xing Sui xing Ying Huo Tai bai Zhen xing
Espíritos 辰星 岁星 荧惑 太白 镇星
planetários (Estrela (Estrela do (Vagar (Grande (Estrela
Cronográfica- Ano- brilhante - branca- Calma -
Mercúrio) Júpiter) Marte) Vênus) Saturno)
322
而右白虎« ‘Na marcha, o pássaro vermelho na frente,
guerreiro negro atrás, o dragão verde-azul para a esquerda e
para a direita o tigre branco’. (Liji, 'Quli shang', 74)
323
madeira no leste... o fogo no sul... o metal no oeste"
(Baihutong, capítulo 'Wuxing' 五行, 167-168).
324
palácios, que foram atribuídos aos quatro animais. Os sete
xiu’s do Leste foram associados com o dragão verde-azul, os
sete constelações do oeste com o tigre branco, as constelações
do sul com o pássaro vermelho e o grupo norte de estrelas com
o guerreiro negro. Sima Qian (145-90AEC). 司馬遷, no
capítulo 'O Livro das Casas Celestiais' ('Tianguan shu'
天官書) de sua famosa história, Shiji 史記, dá uma descrição
detalhada de como o povo Han via o céu. Assim, aprendemos
que os quatro palácios foram dispostos ao longo do equador
celeste nas quatro direções cardeais, enquanto o quinto e
central palácio estava situado no pólo celeste. A tendência para
associar os seres humanos com o Céu, ou a chamada
"ressonância cósmica" entre o Céu eo homem
( Tianren ganying 天人感應), levou o reino celestial a se tornar
um reflexo do sistema social imperial na terra. O palácio
Central com o Pólo Norte se tornou a corte imperial celestial,
que, com o auxílio da Concha do Norte, beidou 北斗,
supervisionava os outros quatro palácios. Beidou tornou-se
assim um símbolo da carruagem do imperador, e sua circulação
em torno do Pólo Norte governava todo o reino celestial, assim
como o imperador supervisionava todas as províncias. Sima
Qian fornece o seguinte comentário:
325
»Beidou serve como carruagem do imperador.
Circulando em torno do centro celestial, ele controla as
quatro direções, separa o yin e yang, indica as quatro
estações e equilibra a harmonia dos cinco xings. Ele
organiza os graus dos setores solares e define todas as
unidades do ano civil. Tudo isso se refere a ‘dou’.
« (Shiji, 'Tianguan shu', 1291)
326
As casas Liu, Xing, Zhang e Yi formam, assim, a imagem de
um grande pássaro com as asas estendidas, enquanto os nomes
de algumas das casas indicam as partes de um pássaro.
327
dragão, e, portanto, com o próprio dragão, nos períodos Shang
(1600-1050 AEC) e Zhou (1050-256 AEC). Uma evidência
mais explícita de que a imagem do dragão foi associada a todas
as sete casas do palácio do Leste pode ser encontrada através
da comparação do antigo personagem long 龍(dragão) com as
figuras das sete casas (Fig. 2).
328
do palácio do leste. (Feng, 2011, 306-307). As configurações
das estrelas nas casas individuais, bem como a ligação de casas
individuais por meio da estrela determinante (距星 juxing) da
casa do Quarto (fang), revelam uma imagem fascinante que é
idêntica aos antigos pictogramas do drgaão encontrados nos
ossos oraculares e inscrições de bronze. Esta semelhança indica
que o pictograma do dragão nas inscrições antigas deriva das
estrelas e da observação astronômica. Também pode indicar
que a imagem do dragão tem sua base nas estrelas ou, o que é
mais provável, que a imagem do dragão, que desempenhou um
papel tão importante na vida dos povos Shang e Zhou, foi
projetada no céu.9
329
cabeça 見群龍无首, indicam o seu mergulho e
desaparecimento de vista.
330
uma cobra, que está contido ou encerrado dentro de um grupo
de estrelas interligadas. De acordo com Tseng (2011, 317), os
artesãos do túmulo inseriram uma cobra dentro da casa
norte Xu (虚), enquanto Feng (2001, 315-320) por sua vez
argumenta que essas estrelas representavam duas casas do
norte, Xu e Wei (危), que a imagem do guerreiro negro deriva
destas duas casas do norte, e que as estrelas podem ser
configuradas como uma tartaruga. Ele explica ainda que a
ligação entre a tartaruga e cobra deriva da constelação de 22
estrelas (chamado Tengshe 螣蛇, cobra voadora) ao norte das
casas Xu e Wei, que se assemelha a uma serpente voadora.
331
Fig. 3: Cena no teto de um túmulo da Universidade
Jiaotong, Xi`an, Shaanxi (Chen 2003, col. Fig. 3)
332
Fig. 4: Câmara Central de Yintun Xinmang
bihuamu (Luoyangshi di er wenwu gongzuodui de 2005,
ilustração (圖版) 7.2)
333
Fig. 5: Guerreiro negro na encosta norte em Yintun Xinmang
bihuamu (Luoyang shi di er wenwu gongzuodui 2005:
ilustração (圖版) 19)
334
serpente representam o guerreiro negro (na imagem
esquemática da tartaruga com a cobra torcida em torno dela), e
referem-se a duas casas do norte, que para este povo antigo
evocavam a imagem de uma tartaruga. Sima Qian também
observa que o "o palácio do norte é o guerreiro negro, Xu Wei"
(Shiji, 'Tianguan shu', 1308), embora sem oferecer qualquer
explicação para esta ligação. O fato dele não fornecer uma
descrição detalhada de outro animal do norte, ou do guerreiro
negro, indica que a associação do guerreiro negro com o
palácio do norte ainda não havia sido universalmente adotada e
padronizada no momento da sua escrita. Em um túmulo
pintado de Yongcheng 永城, em Henan 河南, datado do
período de Han Wudi 漢武帝, cerca de 136 AEC (Yan
2001 , 236-238), e, portanto, quando Sima Qian ainda era um
jovem, o animal do norte não é retratado como uma tartaruga,
mas tem uma escama, como um corpo de peixe. A pintura no
teto da câmara principal mostra um dragão grande e ondulado,
com chifres em um fundo vermelho, um pássaro de pescoço
longo, um tigre branco e uma estranha criatura com uma
cabeça de pato e o corpo de um peixe (Fig. 6).
335
Fig. 6: Pintura no teto da tumba Henan Yongcheng com murais
(Yan 2001, 363)
336
um cervo, que aparece ao lado das casas Wei e Xu do norte,
igualmente no lado norte da caixa (Fig. 8).
337
Fig. 8: O esquema de uma caixa laqueada do túmulo de Zeng
Hou Yi 曾侯乙 (Feng 2001: 277)
338
lebre e uma raposa com nove caudas, o tigre branco, o pássaro
vermelho, duas criaturas como unicórnios, o dragão verde-azul,
uma figura humana alada, a lua com um sapo, Nüwa e nuvens
auspiciosas.
339
uma espécie de divindade do vento ou um animal divino,
feilian 蜚廉 (飛廉) (He 2002, 32-33). Embora essas
interpretações sejam geralmente confirmadas por fontes
literárias18, não devemos ignorar a composição integral da
pintura do teto, que além de entrada da alma para o céu,
também mostra claramente os quatro animais
cosmológicos. Entre o sol e a lua, há quatro animais, com o
tigre branco, o pássaro vermelho e dragão verde-azul
claramente distinguíveis. A criatura estranha no teto, portanto,
só pode se referir ao animal do norte, a fim de completar o
esquema dos quatro animais. No entanto, neste túmulo o
agrupamento dos Quatro Animais segue exemplos anteriores,
com o animal do norte na forma de um unicórnio, que derivou
originalmente a partir da imagem de um veado.19 Estes
exemplos confirmam que, antes de ser padronizado como uma
tartaruga preta, o animal do Norte foi muitas vezes
representado em uma forma um tanto vaga, ou como um
unicórnio, cobra ou peixe.
340
período Han Ocidental seguem, mais ou menos, a tradição
anterior de um animal parecido com um veado, ou retratam
apenas dois dos quatro animais. Como observamos, o túmulo
de Xi’an com 28 casas lunares em dois círculos concêntricos
no teto, mostra uma imagem esquemática de uma tartaruga nas
duas casas do norte, sendo mais consistente com a descrição de
Sima Qian do palácio do norte. Mas dois outros túmulos do
mesmo local e período ignoram o estilo contemporâneo e mais
elegante da composição, e retratam apenas dois dos animais -
ou um pássaro e dragão ou um dragão e tigre - evitando assim a
questão intrigante do animal do norte.20
341
Fig. 10: Pintura na parede divisória em Shaogou, túmulo
n. 61, de Luoyang (Detalhe da parede divisória) (Huang 1996,
96)
342
simbolizar o sol e a lua. He Xilin (2001, 21-22) desenvolveu
essa interpretação, e identificou as duas figuras
como Fuxi e Nüwa, que detêm o sol e a lua em suas mãos. As
duas imagens com o sol e a lua refletem, assim, o
entrelaçamento de duas forças cósmicas, enquanto os outros
animais encarnam o espaço cósmico e o tempo. Enquanto He
Xilin reconhece a presença do dragão, do pássaro e do tigre, ele
não faz nenhuma menção do animal do norte, e identifica o
animal misterioso no canto superior direito, como o híbrido
coruja-ovelha, xiaoyang (He 2001, 21). No entanto, dada a
presença dos outros três animais e o significado cosmológico
de toda a cena, o animal no canto superior direito só pode
representar o animal norte na forma de um unicórnio. Esta
criatura se assemelha ao encontrado nas proximidades do
túmulo Bu Qianqiu, completando assim o esquema dos quatro
animais e as conotações de espaço/tempo da composição
completa.
343
11). A tartaruga preta também aparece no túmulo Pinglu 平陸,
em Shanxi 山西, que data da primeira metade do século I23, e
entre as estrelas no teto do túmulo Yintun acima
mencionado. Em túmulos posteriores do período Han Oriental,
ela é encontrada frequentemente em conjunto com os outros
três animais24, indicando que o guerreiro negro já havia se
tornado um padrão representação do animal do norte durante
este período.
344
seu arranjo arquitetônico original, e tendo em conta todo o
programa pictórico. Com base nesta abordagem, o conteúdo
das pinturas pode ser reduzido a dois grupos básicos de cenas:
as do céu e do mundo celestial, retratados no teto ou nas partes
superior das paredes, e cenas do mundo terrestre, que cobrem
as grandes superfícies das paredes. Os Quatro animais
pertencem ao primeiro grupo, geralmente aparecendo na parte
superior das paredes ou no teto, e de acordo com as suas
indicações absolutas ou relativas. Eles muitas vezes aparecem
com estrelas, em deferência às suas origens astronômicas e a
associação com o Céu e suas 28 casas lunares. Essa conotação
celestial significava que eles encontravam-se frequentemente
na companhia do sol com um corvo, a lua com um sapo, com
outras grandes estrelas, pessoas aladas, divindades e várias
criaturas celestiais estranhas, que forneciam os componentes-
padrão de cenas celestiais. Com base nessas características, os
Quatro animais foram assim incorporados às vezes no motivo
da Entrada no Céu, onde tinham um papel importante na
condução da alma para o seu paraíso celestial. Como
descrevemos acima, as imagens de um homem e uma mulher
que montam uma serpente, e um pássaro de três cabeças
caminhando para o reino imortal de Xiwangmu, com
Fuxi e Nüwa no final da seqüência pictórica, é encontrada no
teto da tumba Bu Qianqiu (Fig. 9). O casal falecido é precedido
por um tigre, um pássaro, um animal do norte na forma de um
unicórnio e um dragão, que estão levando o casal para a lua
com Nüwa. Como Tseng indicou (2011, 293-294), embora
Xiwangmu apareça por trás das nuvens, parece que o seu
domínio imortal não é o destino final, pois a procissão continua
345
a se mover em diante. A cena pintada provavelmente tenta
recriar toda a dinâmica cósmica, encarnando as
forças yin e yang nas imagens de Fuxi com o sol e Nüwa com a
lua, e no qual o paraíso Xiwangmu é apenas uma parte do
todo. As pinturas do teto às vezes misturam os dois reinos do
Céu, ou seja, o próprio céu, com o sol, a lua e outros corpos
celestes observáveis, e o reino de um paraíso eterno, sem
qualquer distinção clara ou demarcação entre eles. As pinturas
poderiam, assim, concentrar-se em um aspecto específico
qualquer, ou combiná-los em uma representação dinâmica do
cosmos, onde a alma iria encontrar sua eterna morada ou lugar
de descanso. Os quatro animais tinham, assim, o papel de
conduzir a alma para o cosmos perpétuo, dando-lhe uma
orientação precisa sobre a sua viagem para a eternidade. Um
papel similar de orientação também é descrito no poema
'Xishi' 惜誓 (‘Dor da traição’), no Chuci 楚辞 (Elegias de
Chuci) ( Hong Xingzu 洪興祖, ed. Chu ci buzhu 楚辭補注,
228; Hawkes, 1985, 115):
...
346
Eu olhei pra baixo, e vi os meandros de todos os rios,
...
...
347
Os Quatro animais aparecem, assim, em três contextos
diferentes e com papéis multifuncionais: no seu papel de uma
das quatro direções, como símbolos das estrelas e do próprio
Céu, como escoltas da alma que partiu, e, finalmente, como
protetores da tumba e de seus ocupantes. No entanto, como a
sobreposição constante de diversas noções, sem demarcações
distintas ou relações claramente definidas, é uma característica
comum na arte funerária chinesa, seus papéis eram
intimamente relacionados e determinados pelo arranjo real do
túmulo, a fim de criar um espaço cosmológico em que a alma
poderia encontrar o seu lugar de descanso eterno. Os murais e
os quatro animais devem, portanto, ser compreendidos nos
termos da cosmologia yin yang wuxing, que aparece como o
principal segmento na arte funerária Han.
348
papel dos quatro animais. Finalmente, com os representantes
individuais dos cinco palácios celestiais, que encarnavam o
conceito dos cinco xings, todo o cosmos foi recriado, e o
túmulo fornecia uma imagem completa do universo externo.
349
descoberto pela Universidade Jiaotong, em Xi’an. Aqui, os
segmentos zoomórficos e antropomórficos estão representados
dentro de dois círculos concêntricos, cujo centro coincide com
o centro do teto redondo (fig. 3). Nesta configuração, os Quatro
animais são especialmente proeminentes, e seu arranjo
específico define a orientação espacial. Como Wu Hung
mostrou (2010, 154-155), seus movimentos geram progressões
lineares que, por meio de movimentos yin e yang no ciclo
dinâmico das cinco fases, reforçam uma sensação de
movimento contínuo, circular. Toda a composição pictórica
reflete muito claramente a cosmologia desse período. O
posicionamento do sol com o pássaro no sul (yang), a lua com
o sapo e lebre no norte (yin) e os animais que representam as
28 casas (e, portanto, os palácios celestiais), distribuídos entre
os quatro pontos cardeais, refletem a integralidade da
percepção do componente espaço-tempo do universo e do
entrelaçamento de yin e yang. Os Quatro animais não
simbolizam apenas o conceito espacial, mas por meio da
progressão temporal, também simbolizam as quatro estações do
ano e uma concepção cíclica do tempo. O movimento temporal
também é corroborado pela representação gráfica de dois
círculos concêntricos, os quais, de acordo com a teoria Gai
tian, aludem a um céu circular.
350
5. Conclusão
351
Notas
352
ele foi datado entre o sexto e oitavo séculos EC, e,
provavelmente, incorpora passagens compostas em diferentes
períodos (ver Hsing 2010, 190, nota 19; 211, nota 90). Embora
fora do contexto histórico visto neste artigo, o conceito dos
Quatro Animais como reguladores das quatro direções foi
transmitido aos séculos posteriores, como pode ser visto nas
representações das Quatro animais em túmulos mais recentes.
353
15. Para um relatório, consulte Hubei sheng bowuguan 1989.
17. Acredita-se que, no geral, essas figuras eram das almas das
pessoas enterradas dentro do túmulo. Eles estão caminhando
para a eternidade e o reino imortal, o que é claramente
simbolizado por Xiwangmu, que aparece por trás das nuvens
em ondas.
19. Para uma discussão detalhada, ver também Feng 2001, 317
e Vampelj Suhadolnik 2009.
354
23. Ver também Shanxi sheng wenwu guanli weiyuanhui 1959.
Bibliografia
355
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shu 漢書, Ban Gu 班固, Yan Shigu (com) 顔師古. Beijing,
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360
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361
jianbao' 西安曲江翠竹园西汉壁画墓發掘簡報. Wenwu 文物,
no. 1, pp. 26–39.
362
A REDESCOBERTA DA UNIDADE
CÉU-HOMEM por Wang Keping
O Significado Tríplice
365
No Clássico taoísta Chuang-tzu (Zhuang zi), por exemplo,
lemos o seguinte: "O céu e a Terra vieram a existir juntos, e as
inúmeras coisas comigo são um".1 "O céu e a Terra têm grande
beleza, mas permanecem em silêncio... A miríade de coisas
têm princípios perfeitos, mas não dizem nada deles. O sábio é
uma pessoa que está em busca da grande beleza e dos
princípios perfeitos."2 Céu e Terra (tiandi) são os produtores
das inúmeras coisas (wanwu). A miríade de coisas se abriga no
Céu e na Terra. Todos eles se reúnem para formar a totalidade
da Natureza, que depois é sintetizada com a humanidade na
unidade. Por tal unidade, Chuang-tzu tenta equalizar todas as
coisas e justificar seu princípio de não fazer distinção. Ele
acreditava que a ordem cósmica ou harmonia não poderia ser
atingida de outra maneira que não essa. Em muitos casos, ele
aconselhava aqueles que tentavam seguir o Dao sobre a
absoluta liberdade e a personalidade independente para seguir o
curso da natureza. Isto não é simplesmente porque a natureza
opera caracteristicamente em espontaneidade ou naturalidade
(zi ran er ran), mas porque a natureza também tem grande
beleza e um silêncio virtuoso. Sob tais circunstâncias, a
natureza não é só o lugar para se viver e agir, mas também um
objeto de apreciação estética. Assim, a personalidade
idealizada do sábio no taoísmo não é apenas parte da natureza,
mas também, descobridora da beleza natural. Como é
discernido em A excursão feliz e em outros capítulos, Chuang-
tzu dava muito crédito ao valor estético de beleza natural, pois
ela nutriria a liberdade espiritual. Ele estava, de fato, pronto
para abraçar o natural, mas rejeitava o artificial. Assim, em
muitas ocasiões, ele dava um alegre charme ao natural,
366
enquanto via o artificial como uma malévola distorção, como
por exemplo, o touro domesticado pelo homem para lavrar a
terra. Tudo isso leva o seu filosofar a um naturalismo estético.
367
esperançosamente propício para um necessário respeito e
cuidado emocional para com a Natureza.
368
natureza, esse é o caminho para servir o Céu".6 Este argumento
mostra como homem e céu interagem uns com os outros. Por
parte do homem em particular, exige um sentido de missão e de
mais iniciativa não só para desenvolver seu poder cognitivo e
cultivar o caráter da pessoa, mas também, para fazer unificar-se
com o céu. Como é detectado neste contexto, Céu (tian)
implica abstratamente um destino inato (Tianming), e
substancialmente na miríade das coisas (wanwu). O que se
entende por "servir ao Céu" está relacionado com o
cumprimento de um destino inato e observar a miríade das
coisas. Então, a partir de um ponto de vista pragmático,
Mêncio propõe o ideal de "amar as pessoas e valorizar as
coisas" (ren min er ai wu).7 "Amar as pessoas" (Ren Min) é o
resultado de estender carinho de seus pais para os outros em
geral. "Valorizar as coisas" (ai wu) significa o cuidado de
tomar todas as coisas ou seres de acordo com a lei da
reciprocidade. Por exemplo: "Se as estações de cultivo não
forem interferidas, o grão será mais do que pode ser
comido. Se redes estreitas não forem autorizadas a entrar nos
tanques e lagoas, os peixes e as tartarugas serão mais do que
podemos consumir. Se os machados e serras entrarem nas
colinas e florestas apenas no momento adequado, a madeira e
madeira serão mais do que podemos
usar".8 Consequentemente, as coisas ficarão protegidas e
multiplicar-se-ão; ao mesmo tempo, as pessoas estarão, por sua
vez, prontas para desfrutar de meios suficientes e viver uma
vida razoavelmente boa. Caso contrário, isso traria um
resultado negativo, com o abuso dos recursos naturais e a
privação da capacidade geradora da Natureza. Isso é muitas
369
vezes metaforicamente descrito, em chinês, como um
agricultor ganancioso, que mata a galinha poedeira de seus
ovos.
370
sustentável, não é baseado apenas na economia, mas baseada
em moralidade, porque ele também é destinado ao bem-estar
das gerações posteriores de raça humana em sua totalidade.
371
todos os seres com sua generosa virtude".11 A observável ação
dinâmica do Céu é demonstrada através do ciclo incessante das
quatro estações, e o poder de sustentação da Terra através da
capacidade de carregar as montanhas, águas e todos os outros
seres. Tais atos sugerem tiandi Zhide como respectivas virtudes
do Céu e da Terra. Estas virtudes então se juntam para
formar tiandi Zhidao como o Caminho do Céu e da Terra, que
é reduzido em Tiandao como o Caminho Celestial. O homem
nobre, como uma personalidade idealizada, torna-se o que ele
está aprendendo com o Caminho Celestial. Ele se esforça para
desenvolver-se persistentemente como o céu, e da mesma
forma como a Terra, ele tenta alcançar a generosa virtude para
ajudar a todos os outros seres a crescerem adequadamente.
Suas ações trabalham para estabelecer Rendao como o
Caminho Humano para realização moral.
372
do Meio (Zhong Yong). O homem nobre é assumido como
sendo uma pessoa com a sinceridade mais completa que existe
debaixo do céu. Quando ele alcança o pleno desenvolvimento
de sua própria natureza, ele pode fazer o mesmo com a
natureza dos outros homens. Quando ele alcança o seu pleno
desenvolvimento com a natureza dos outros homens, ele pode
desenvolver por completo a natureza dos animais e
coisas. Quando ele pode fazer este trabalho, ele pode ajudar a
transformar e nutrir os poderes do Céu e da Terra. Quando ele
pode ajudar desta maneira, ele pode com o Céu e a Terra
formar uma trindade [ternion].13 O processo demonstra uma
seqüência hipotética sobre como o Caminho Humano se
mistura com o Caminho Celestial. Ele começa com a virtude da
sinceridade, que é capaz de transformar a si mesmo e aos
outros para melhor; ele passa por uma série de etapas, em
virtude da aplicação do altruísmo para outros homens, animais
e coisas, etc. Finalmente chega ao estado mais elevado possível
de formar um ternion. O ternion neste contexto envolve a união
entre os três componentes, incluindo Céu, Terra e
Humanidade. Na verdade, indica mais uma vez a união céu-
humano, e um sentido de missão por parte do humano como
humano. Para cumprir esta unidade e missão, ele chama para
uma transcendência gradual e o auto-desenvolvimento de baixo
para cima.
373
acordo geral sobre anular a distinção entre o Caminho
Celestial e a Caminho Humano. Isto quer dizer, que eles
tendem a identificar a primeira com a segunda e verificar a
unidade entre os dois. Por exemplo, Zhang Zai (1020-1077
EC), argumenta que o Caminho Celestial e o Caminho Humano
parecem ser diferentes em tamanho, mas permanecem os
mesmos na sua essência, pois é através do humano que se pode
conhecer e experimentar o céu.14 Cheng Hao (1032-1085 EC),
simplesmente se recusou a distinguir um do outro. Por que ele
achava que o céu e a humanidade não eram originalmente dois,
mas um, seria, portanto, desnecessário ponderar sobre a sua
síntese de todo.15 Cheng Yi (1033-1107 EC) foi ainda mais
longe para definir a relação em termos tão concisos como se
segue: O Caminho (dao) é livre de qualquer distinção entre o
Céu e a humanidade. No entanto, ele é chamado de Caminho
Celestial quando é com o Céu, e Caminho da Terra quando é
com a Terra, e o Caminho Humano quando é com humano. O
caminho é um só. Ele é compartilhado pelo Céu, a Terra e a
humanidade por completo.16
374
dentro da sabedoria. Para cumprir este telos, deve-se seguir o
Caminho Celestial, e o modelo de sua própria natureza acima
dele. Como isso é possível, então? A ilustração de Mou dá
origem a um círculo de desenvolvimento. O círculo é composto
de quatro componentes. Lá embaixo é o devir da vida
individual cheio de possibilidades. Bem acima é o trabalho do
Caminho Celestial que é tanto religiosamente "transcendente"
(Chaoyue) como moralmente "imanente" (neizai). No lado
direito está o processo das práxis morais relativas às virtudes
do ser humano de coração (ren) e verdade (dao). No lado
esquerdo encontra-se o mandato do Céu, em constante
movimento. Calcula-se que o processo de práxis moral e o
movimento do mandato viabilizam a interação transformadora
entre a vida individual e o Caminho Celestial. Neste momento,
a vontade de vida individual sobe para combinar-se com o
Caminho Celestial como resultado da práxis das virtudes do ser
humano do coração e da verdade. Ele alimentou uma mente
moral e transformou-se em uma "vida real" (zhenshi de
shengming), "sujeito real" (zhenshi de zhuti) ou "verdadeiro
eu" (zhen wo). Enquanto isso, o Caminho Celestial
transformou-se em uma "substância metafísica" (xingershang
de shiti) e penetrou na natureza humana, quebrando assim o
estranhamento e causando a conciliação entre a vida individual
e o Caminho Celestial.17 Em linguagem simples, a vida
individual da humanidade abaixo subirá para atender o
Caminho Celestial através da práxis moral, ao passo que
o Caminho Celestial descerá para atender a vida individual do
ser humano através do movimento constante. Eles criam a
conciliação ou a unidade céu-humano em que o Caminho
375
Celestial vai se transformar em uma "realidade metafísica",
enquanto a vida individual se transformará em um ser moral ou
"verdadeiro eu". A chave para este resultado idealizado
encontra-se na práxis sincera e persistente de virtudes como a
do bondade e da verdade. Caso contrário, não há nenhuma
chance para o Caminho Celestial se tornar uma "realidade
metafísica", mas manter-se-á como uma visão abstrata pairando
no ar, e da mesma forma, a vida individual não será capaz de
tornar-se uma pessoa moral, mas se manterá como um ser
físico para a terra.
376
embaixo" são os assuntos humanos ou compromissos sociais, e
"o que está acima" significa as virtudes da bondade e retidão
(Renyi). De acordo com Confúcio, a aprendizagem é tanto um
processo cognitivo quanto prático. Ela começa com o
conhecimento dos assuntos humanos e ações sociais, mas sua
penetração deve subir alto; assim, ela continua a facilitar a
realização e prática do "que está acima" nos termos das
virtudes acima mencionadas. Eventualmente, o processo de
aprendizagem surge com uma transformação do que é
aprendido nas virtudes esperadas (zhuan zhi wei de). Tais
virtudes, como a bondade e a retidão são todas simbolizadas no
Caminho Celestial, e exercidas na prática pelos seres
humanos. A síntese a ser feita a este respeito exemplifica a
mais alta forma de realização das quais o humano como
humano é capaz em um sentido, e no outro, ela aconselha as
pessoas a serem realistas na aprendizagem pragmática, mas
idealistas no cultivo moral. Isso, é claro, exige uma busca por
transcendência moral como uma parte fundamental da
formação do caráter.
377
totalidade. A concepção de Tianxia entre os literatos chineses é
mais do que necessária, pois ela está profundamente enraizada
na mentalidade como a meta cosmopolita ideal e definitiva de
uma missão de vida. A missão em si é composta por quatro
segmentos, abreviados como xiu qi zhi ping , o que significa
quatro tarefas importantes, como o cultivo da personalidade,
regrar a família, bem governar o Estado, e manter o mundo em
paz. A idéia é elaborada em um clássico confucionista de O
Grande Aprendizado (Da Xue):
378
organizado. Quando o governo está organizado, todo o
reino está feliz e tranqüilo. Do Filho-do-Céu
(imperador) até o povo, o cultivo pessoal é a raiz de
tudo.19
379
regulada, o Estado não pode ser bem governado, e,
consequentemente, o mundo não pode ser posto em paz. Na
prática, todo o processo de grande aprendizado também
demonstra o esquema confucionista de sabedoria interna e
realeza externa (neisheng waiwang zhi dao).
Comparativamente, as cinco primeiras etapas contribuir para a
criação da sabedoria interna (neisheng) que encarna a
personalidade caracterizada como tendo a maior excelência da
bondade humana e da justiça; e os três últimos passos
contribuem para o desenvolvimento de realeza externa
(waiwang) que é verificada por meio de um tratamento
adequado da família, do Estado e de todos os assuntos do
mundo.
380
Estado, da força de vontade nacional e do patriotismo cego que
alguma destruição irracional e até mesmo crimes de guerra são
cometidos, juntamente com o custo desnecessário de vidas
humanas e de outros recursos. Em contrapartida, o ideal
de Tianxia é, por princípio, voltado para o mundo e, portanto,
apresenta um horizonte cosmopolita. Por ser idealista, parece
mais construtivo e recíproco por excelência no campo das
relações internacionais. Afinal de contas, pode ser utilizado
para incentivar uma visão de mundo e uma alta consciência de
cosmopolitismo.
A Orientação Bidimensional
381
Vale ressaltar que após a fundação em 1949 da Nova China,
como foi chamada, a lógica da unidade céu-humano foi atacada
pela ideologia oficial. O Maoísmo foi longe, a ponto de
declarar uma espécie de "guerra civil" contra o Céu ou a
Natureza. Isso normalmente é evidenciado em um dos decretos
de Mao, como segue: Inspira-se um tremendo prazer na batalha
contra o Céu, e assim o faz a partir da luta de classes entre a
humanidade ( yu tian dou, qi le wuqiong; yu ren dou, qi le
wuqiong ). Como conseqüência, a separação do céu e dos
homens foi politicamente imposta e reforçada
desenfreadamente. Esta situação perdurou por uma década ou
mais, quando a China pagou um alto preço durante o período
de erupção do Grande Salto Adiante no final dos anos 1950, e
sofreu uma grande fome em todo o país, resultado de "desastres
naturais provocados pelo homem", no início dos anos
1960. Não antes dos anos 1980 que os acadêmicos na China
reconsideraram retomar a unidade céu-humano. Mas desta vez
a metodologia manifesta uma orientação bidimensional, por
meio da "razão pragmática" (Shiyong Lixing), e neste sentido a
observação de Li Zehou se destaca por suas idéias
filosóficas. A orientação bidimensional envolve ziran
renhua como a humanização da Natureza, e ren ziranhua como
a naturalização da humanidade.
382
Ziran Renhua como a humanização da natureza
383
algo meramente conceitual ou subjetivo, mas essencialmente
antropo-ontológico. Diga-se, a relação objetiva entre a natureza
e a humanidade foi mudada historicamente, tornando assim a
natureza como parte da existência humana. Eventualmente, a
Natureza foi transformada de um objeto temerário em si para
um objeto em si mesmo acessível com a afinidade
humana. Tudo isso é a base fundamental e objetiva da
humanização da Natureza na consciência subjetiva da
Humanidade.20 Como se lê em As Quatro Palestras sobre
Estética (Meixue sijiang), Li Zehou utiliza uma visão ampla e
estreita para formular a sua observação, como segue:
384
desenvolvimento social vai mais à frente, os seres
humanos tornam-se cada vez mais interessados em
contemplar essas paisagens, como tempestades e
desertos selvagens, que permanecem intocadas pelas
mãos humanas... Para essas coisas já libertas de
qualquer conteúdo prejudicial ou hostil, suas formas
sensuais transformam-se, por serem mais atraentes para
a atenção humana. Durante a contemplação dessas
formas naturais, que parecem se revoltar contra a
humanidade na aparência, é que provavelmente
experimentaremos um prazer estético de um tipo
sublime.21
385
simplesmente porque eles viviam sob o temor de Natureza que
não fora humanizada, quer no seu sentido amplo ou restrito.
386
individualidade (sensibilidade e animalidade). Entre muitos
outros, um exemplo improvisado poderia ser a virtude do amor
humano se originar do puro sexo. Isto mostra o fato de que a
humanização do Natura interna fez o humano como humano a
partir de uma perspectiva moral.
387
Ren Ziranhua como a naturalização da Humanidade
388
o racional se funde com o emocional, o sujeito identifica-se
com o objeto, e a consciência social acompanha a liberdade
individual. Em uma palavra, em virtude de naturalização da
humanidade, se poderia voltar à Natureza para "habitar
poeticamente" no mundo, em que ele pode libertar-se do
controle da racionalidade instrumental, da alienação pelo
fetichismo material, e da escravidão pela sistema de poder,
conhecimento e linguagem, etc.
389
variedade de fatores psíquicos (por exemplo, percepção,
imaginação, desejo, emoção e inconsciente) estão penetrando e
se entrelaçando uns com os outros. Esta criatividade é
importante tanto para o cognitivo quanto para o ético, porque
serve para "iluminar a verdade com o belo" (Yimei Qizhen) e
"melhorar o bem através do belo" (Yimei Chusan).27 Neste
contexto, os verdadeiros guias para a descoberta do
conhecimento real e da sabedoria, e do Bom para o cultivo da
personalidade moral.
390
Eu, pessoalmente, acho que mais implicações podem ser
propostas de acordo com o que é necessário. Como sabemos, a
expressão humana de idéias e sentimentos na arte pode ser
classificada em três gêneros básicos no curso da história. No
início não havia imagens e palavras. As pessoas, portanto,
expressavam-se através de sons e gestos. Surgiu então a
expressão de áudio, no gênero de música de dança. Mais tarde,
as pessoas começaram a aprender a desenhar imagens e
símbolos, a fim de manter registros ou se expressarem. Surgiu
então a expressão visual, no gênero do desenho ou pintura em
particular. Eventualmente, palavras foram inventadas e
entraram em uso. Surgiu então a expressão verbal no gênero de
literatura e poesia, por exemplo. Nos últimos séculos, a
humanidade tende a estar verbalmente presa ou subjugada por
qualquer tipo concebível de linguagem. A situação é agravada
na medida em que uma pessoa não fala palavras, mas as
palavras falam a pessoa. Este é, freqüentemente, o caso
daqueles que são relutantes em pensar por conta própria, mas
estão prontas para papagaiar de volta o que é dito por
outros. Além disso, a situação, como tal, é propício para o
retrocesso das capacidades audiovisuais. Algumas pessoas
atribuem isso à sobre-humanização das faculdades e sentidos,
como no caso dos moradores das cidades modernas, que estão
presos nos arranha-céus, e cujo contato com a Natureza é um
mero espiar da lua ou do sol no céu através das janelas, por
exemplo. Sob tais circunstâncias, a "naturalização da
humanidade" torna-se indispensável, na medida em que ela
estará apta a reavivar a sensibilidade humana em um sentido
estético. Ou seja, a sensibilidade audiovisual será reforçada
391
tanto quanto alguém for exposto a sons e cenas naturais, em
seu retorno à Natureza. Tudo isto pode ser visto como um
efeito favorável da unidade céu-humano, em certa medida.
393
princípios de todas as coisas através de investigação, enquanto
o segundo requer bondade humana e a adesão à virtude da
sinceridade. Ambos envolvem um sentido de missão e uma
consciência da relação recíproca. Isto porque nós, os seres
humanos, somos parte da natureza. Somos suscetíveis ao
impacto de outras espécies e coisas do mundo, e em troca
temos impacto sobre elas, pelo bem que fazemos em geral.
394
Zai aconselhou: "da qi xin, yi ti tianxia zhi wu ". Isto implica
uma atitude básica. De acordo com o meu entendimento, "da"
significa "largo ou grande", em frente ao seu homólogo binário
"xiao", que significa "pequeno"; "xin" se refere a "ren xin"
como a mente humana. Aqui, "da qi xin" sugere que os seres
humanos fazem o máximo para "fazer a mente
abrir". Hipoteticamente, a mente pode ser tão ampla que pode
acomodar todo o universo (renxin zhida, keyi nangkuo
yuzhou). Esta relação mente-universo é naturalmente mais
criativa e espiritual do que física ou espacial. Sua busca
transcendente pode tornar a mente muito mais ampla ou maior
do que qualquer outra coisa. Então, porque ela faz isso? É para
permitir à raça humana a "experiência e compreender a real
condição de todas as coisas sob o céu ou em todo o universo"
(yi ti tianxia zhi wu). "A condição real", como tal, incorpora a
vida e condição ambiental que afeta a condição humana, direta
ou indiretamente. "Experimentar e compreender a condição
real" não é possível a menos que tenhamos um relevante
conhecimento e empatia, pelo menos. Neste caso, o
conhecimento vem de investigar as conexões entre todas as
coisas, e a empatia, de projetar sentimentos para o
ambiente. Com este estado de mente, os seres humanos estarão
prontos para transposição deles mesmos em "todas as coisas
em todo o universo" e, naturalmente, desenvolver uma
consciência de valorização em tudo. Vale ressaltar que a noção
de Zhang Zai também implica algo negativo. Ele convida as
pessoas a ampliar a mente simplesmente porque geralmente
permanece pequenas, limitando-se somente ao domínio estreito
de ganhos e perdas pessoais. Tal mesquinhez é propícia tanto
395
para o egoísmo ou antropocentrismo; por exemplo, o privilégio
de auto-afirmar que o homem é a medida de todas as
coisas. Por isso, o cultivo de mente aberta é indispensável a
este respeito.
396
é a de "completar a mente", recuperando a mente original
(benxin) ou a boa mente (liangxin), enquanto a outra é a de
"fazer o máximo através da mente" (jinxin), tomando ações
corretas. O Confucionismo acredita que a mente é
originalmente boa, mas poderia ser coberta pelos desejos
humanos; sua bondade original pode ser recuperada, se os
desejos são reduzidos e eliminados. Isso pede um processo de
cultivo pela sinceridade moral. O que deve ser enfatizado neste
ponto é um olhar bilateral sobre o serviço da mente. O serviço,
como tal, deve ser bem-humorado e melhor implantado para
"planejar e conduzir todos os assuntos mundiais" (yi mou
tianxia zhi shi). Para cumprir esta missão, é necessário não
apenas aproveitar ao máximo a mente, mas seguir uma ordem
lógica, tornando a mente aberta para experimentar e
compreender todas as coisas no universo, fazendo a mente
vazia para receber e apreciar todo o bem do mundo, e acima de
tudo, fazendo a mente humana amar as pessoas e valorizar
todas as coisas.
397
Notas
3. Cf. Dong Zhongshu, Xun tian zhi dao 循天之道 (act upon
the dao of heaven), in Chunqiu fanlu 春秋繁露 (The book of
Dong Zhongshu or “Rich dews in spring and
autumn”, Shanghai: Shanghai Classics Press, 1989), pp. 91-93.
7. Ibid., 13.45.
8. Ibid., 1.4.
398
9. Cf. The Book of Changes (trans. James Legge), Hexagram 1:
Qian 乾(34.). Ver também The Classic of Changes (Trans.
Richard John Lynn, New York: Columbia University Press,
1994), p. 138.
13. Cf. The Doctrine of the Mean (trans. James Legge), 22.
15. Cf. Cheng Hao & Cheng Yi, Yulu 語錄 (collected sayings),
vol.s 2, 11. Ver também Chinese Philosophy Section under
Chinese Academy of Social Sciences, ed., Zhongguo zhexueshi
ziliao xuanji 中國哲學史資料選輯 (Fontes selecionadas para a
história da Filosofia chinesa, Beijing: Zhonghua shuju, 1982),
parte 1 das dinastias Song, Yuan e Ming, p. 220.
399
17. Cf. Mou Zongsan, Zhongguo zhexuede tezhi
中國哲學的特質 (Shanghai: Shanghai guji chubanshe,
1997), pp. 20-32, 74-81, 114-117.
400
24. Cf. Li Zehou, Meixue sijiang (Four Lectures on
Aesthetics), pp. 110-125.
401
402
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO
IMPERADOR por Yuri Pines
403
ideológica – que eu chamo aqui de "postura messiânica", que
fundamentalmente o distingue de seu período (453-221)
antecessor dos Reinos Combatentes (-453-221) e de seus
sucessores Han (-206 +220). Para ilustrar este ponto, vou me
concentrar na noção Qin de Imperialismo que se reflete na
auto-imagem do Primeiro Imperador 秦始皇帝 (Qinshi
Huangdi, 246 a -221/210). A minha escolha não é incidental. A
instituição e conceito de Imperialismo foi a única inovação
mais importante de Qin, e sua contribuição mais significativa
para dinastias posteriores; como tal, serve como um prisma
ideal através do qual o lugar de Qin, na história chinesa, pode
ser analisado. Além disso, como nós possuímos fontes
primárias para a auto-imagem do imperador Qin, ou seja,
inscrições da estela do Primeiro Imperador, nós podemos
discutir esta tema, sem sermos demasiado dependentes das
potencialmentes tendenciosas apresentações em fontes
históricas posteriores.2
404
imperial da China e nas relações dialéticas entre a Dinastia Qin
e seus sucessores Han.
406
como o único tomador de decisão final, e não deveria haver
limitações institucionais – distintas da Moral - para seu poder.
407
Várias características principais distinguiam crucialmente o
Verdadeiro Monarca de soberanos medíocres contemporâneos.
Primeiro, ele foi identificado como um sábio - Uma
personalidade excepcional, cuja moralidade e sabedoria
elevou-o acima do resto da humanidade e, aos olhos de muitos
pensadores, transformou-o em uma personagem semidivina (ou
totalmente divina) (veja mais em Puett, 2002). Como tal, o
Verdadeiro Monarca deveria estar, moral e intelectualmente – e
não apenas sócio-politicamente – no ápice da pirâmide. Em
segundo lugar, o Verdadeiro Monarca tinha que presidir um
reino unificado, e não mais de um único estado regional. Em
terceiro lugar, o seu governo deveria ser marcado por uma
ordem sociopolítica perfeita, e por uma submissão universal.
Estes foram, aos olhos da maioria dos pensadores, as
realizações dos exemplos do passado, como os lendários Cinco
Soberanos (wudi 五帝) ou os Três Reis (san wang 三王), isto
é, os fundadores das dinastias Xia, Shang e Zhou. No entanto, a
maioria das discussões sobre o Verdadeiro Monarca não eram
dirigidas para o passado, mas para o futuro: ele era visto como
uma figura salvadora - aquele que surge “uma vez em
quinhentos anos", e cuja chegada está muito atrasada.3
408
me concentrarei, aqui, em Xunzi 荀子(-310-230), sem dúvida o
único pensador mais profundo, e influente, de sua época.4
409
[cavalheiros] e os nobres não se comportam
irresponsavelmente, os cem oficiais não são insolentes
em seus assuntos; as multidões e os cem clãs ficam sem
hábitos estranhos e licenciosos, não há crimes de furto e
roubo, e ninguém ousa se opor a seus superiores.6
410
A noção de obediência unânime, e absoluta conformidade com
a vontade do monarca verdadeiro, permeia os escritos de Xunzi
e de muitos de seus contemporâneos. Às vezes, estes
panegíricos ao Verdadeiro Monarca são erroneamente
interpretados como exemplos da inclinação "autoritária" de
Xunzi - mas este não é necessariamente o caso (Pines 2009:
82-97). Xunzi, como a maioria dos pensadores
contemporâneos, distingue claramente entre o Verdadeiro
Monarca e um soberano mediano. Este último deve gozar de
absoluta autoridade política e ritual, mas em termos de
moralidade e inteligência, ele é tacitamente entendido como
sendo inferior a seus assessores. É a tarefa dos assessores,
especialmente um ‘Ru’ [letrado] meritório como Xunzi, para
instruir o governante e ajudá-lo na realização de tarefas
cotidianas. Em contrapartida, o Verdadeiro Monarca é
percebido como moral e intelectualmente superior a seus
súditos, e consequentemente não precisa de consultas, mas sim,
ele simplesmente “distribui deveres de obediência" e, assim, dá
as ordens para todas as camadas da sociedade. Notavelmente,
mesmo os intelectuais, o shi, cujas habilidades Xunzi elogia
freqüentemente como sendo semelhantes ou mesmo superiores
aos dos governantes, espera-se que sucumbam à vontade do
monarca sábio. Na medida em que a opinião do monarca é o
único critério de bondade e maldade, a autonomia moral dos
intelectuais aparece significativamente prejudicada.
411
um objetivo diferente. Muitos pensadores, incluso Xunzi,
empregaram de forma consistente a imagem do Verdadeiro
Monarca em oposição aos governantes contemporâneos.
Inflando as características positivas do Verdadeiro Monarca, os
pensadores enfatizaram sua excepcionalidade.
412
O primeiro imperador como o Verdadeiro Monarca
413
feito por seu séquito, e inscrito na estela erigida no Monte Yi
峄山, logo após a unificação ser alcançada (Figura 8.1):
414
追念亂世,分土建邦,以開爭理.攻戰日作,流血於野,自泰古始.
世無萬數,阤及五帝,莫能禁止.迺今皇帝,壹家天下,兵不復起.
災害滅除,黔首康定,利澤長久.
415
Os Benefícios e bênçãos foram duradouras e permanentes.8
416
humanas. Agora, eu examinarei brevemente estes topoi que são
onipresentes em cada uma das sete inscrições.
六合之內,皇帝之土.西涉流沙,南盡北戶.東有東海,北過大夏.
人跡所至,無不臣者.功蓋五帝,澤及牛馬.
Não há nada, nem niguém, que não seja assunto seu [do
Soberano].
417
Seu favor se estende a bois e cavalos.9
418
acontecerá de novo", que ele "trouxe Paz a Tudo-abaixo-do-
Céu ", e que o "povo de cabeça preta está em paz, sem a
necessidade de pegar em armas". “Ele dizimou o poderoso e o
indisciplinado, resgatando o povo de cabeça preta, trazendo
estabilidade ao quatro cantos do império "; por "unir Tudo-
abaixo-do-Céu”, ele colocou um ponto final nas perdas e nos
desastres, e, em seguida, deixou seus braços de lado para
sempre", resultando no que seria a "Grande Paz" (Tai Ping
太平, um termo que eu discutirei separadamente a seguir).11
419
devidamente enfatizada: “não há ninguém que não seja
respeitoso e submisso”, "O coração de todas as multidões
tornou-se submisso " e "toda a gente está de acordo com as
ordens".14 A paz universal e a estabilidade trazem a
prosperidade universal. Esta última não chega
automaticamente, mas devido aos esforços incansáveis do
Augusto Soberano, que emula o soberano-sábio, Yu 禹,
ordenando o reino terrestre: ele "derrubou e destruiu muros
internos e externos das cidades; rompeu e abriu diques fluviais,
nivelou e removeu obstáculos perigosos, de modo que a
topografia foi corrigida".15
420
um sábio. Foi Xunzi, novamente, que explicou a ligação
intrínseca entre a sagacidade do monarca e o alcance do seu
sucesso:
422
uma série de medidas para reforçar seu status de super-
humano: de remodelar a terra de "Tudo-abaixo-do- Céu", como
fez o sábio demiúrgo Yu, para algo radical – e aparentemente
sem precedentes - a reformulação do panteão imperial, e ainda
a construção de projetos megalomaníacos, alguns dos quais são
discutidos por Shelach(2014, cap.3). Tudo isso distinguia
drasticamente o monarca de outros mortais. Mesmo as afrontas
feitas pelo imperador contra divindades locais, como no caso
do Monte Xiang 湘, mencionada nos Registros Históricos,
pode ser um indicativo de sua auto-percepção como um
personagem semidivino.23
424
Um Monarca Messiânico
425
sofrimento atual para a redenção futura), e uma visível e
coletiva natureza de redenção, e seus objetivos universais.26
426
Que a violência dos Reinos Combatentes foi considerada
intolerável, é um ponto comum; o que distingue as declarações
de Qin, no entanto, é que essa visão negativa do passado foi
radicalmente ampliada para trás, inclusive para a época dos
exemplares Cinco Soberanos. Este desprezo persistente com os
ex-governantes sábio é intrigante: afinal, seria muito mais fácil
legitimar o Império Qin, dizendo que seus líderes haviam
simplesmente restaurado o estado ideal de coisas da idade dos
Cinco Soberanos e de outros modelos antigos; mas os líderes
Qin optaram por não fazê-lo. Eu acredito que esta rejeição de
um antigo dispositivo de legitimação mostrasse uma aposta
bem calculada: isso permitiria ao Primeiro Imperador e sua
corte apresentar o império como uma entidade inteiramente
nova, a redenção final da humanidade e "o fim da história".
427
vez’, quatro vezes ) e shi (始, ‘a princípio’, quatro vezes),
enfatiza a determinação do regime de traçar uma linha clara
entre o que foi e o que será.
428
Alguns colegas podem contradizer minha afirmação sobre a
auto-imagem histórica de Qin, apontando para a adesão do Qin
à noção cíclica do desenvolvimento histórico, como
exemplificado pela adoção da água como seu elemento
cósmico, de acordo com as chamados Cinco fases (wu xing
五行), teoria associada com Zou Yan 鄒衍(-305-240 ) e seus
seguidores (ver mais em Van Ess, 2014, cap. 7). Esta opção, no
entanto, não significa que Qin deverá ser substituído por um
futuro ("terra") regime.
429
sua auto-imagem, apresentando-se como o regime que
permitiria a cada indivíduo "a viver a sua vida plena, e alcançar
suas ambições", que estende a sua generosidade para "Bois e
cavalos", e que conquista a submissão universal e absoluta. Qin
foi o primeiro regime na história da China que transformou a
tão esperada utopia (literalmente: “não-lugar") de pensadores
pré-imperiais naquilo que Alexander Martynov
apropriadamente chamou de “entopia” dos imperadores
(literalmente: "neste-lugar").31
430
sucesso verdadeiramente sem precedentes. Eu acredito, ainda,
que havia também sérias considerações políticas por trás da
peculiar auto-representação de Qin. Politicamente, apresentar o
regime Qin como algo completamente novo, poderia ser
propício para a integração, bem sucedida, da população recém-
conquistada. Lembremos que os ocupantes mudaram
radicalmente a vida de seus novos súditos, impondo-lhes as leis
e os regulamentos administrativos de Qin, seus pesos e
medidas, escrita e moedas, ritos e leis, e até mesmo seu
vocabulário administrativo específico. Qin alterou o sistema
social dos estados ocupados pela decapitação das elites locais,
e impondo o sistema de Qin de vinte níveis de mérito.33
Poderia ter sido mais conveniente apresentar estas medidas não
como subjugação a regra de Qin, mas como uma renovação
radical, em nova medida, da vida, uma renovação que traria
paz, tranqüilidade e regime ordenado sob o Sábio Augusto
Soberano.
431
Como discutido acima, inflando a imagem do Verdadeiro
Monarca, os pensadores do período dos Reinos Combatentes
não tinham a intenção de ceder a sua autonomia intelectual, ou
de prejudicar de alguma forma a sua liberdade de ação política,
que gozavam na época de divisão política. Pelo contrário, com
a promessa de concordar com o futuro governante sábio, eles
ganhariam um poder adicional contra o reinando de soberanos
de capacidade mediana, que haviam sido fortemente
encorajados a não se intrometerem em tarefas administrativas
de rotina, delegando suas tarefas cotidianas para assessores
meritórios, e se satisfazendo com o seu inigualável prestígio
ritual e posição de árbitros supremos em questões
intraburocráticas. Este acordo permitiria que os pensadores
concentrassem mais tarefas de governo nas mãos dos membros
qualificados do seu estrato, preservando a aparência de
onipotência do governante. Esta situação deveria mudar apenas
em um futuro indeterminado, sob o sábio Verdadeiro Monarca
que governaria ativamente, enquanto os oficiais só "se
submeteriam, e o seguiriam". Agora, o Primeiro Imperador
havia proclamado, com toda clareza, que a nova Era do Sábio
Monarca tinha finalmente chegado.
432
não aceitou a posição de uma figura ritual, a que muitos
pensadores pré imperiais teriam ansiosamente relegado os seus
soberanos. Assim, suas inscrições proclamavam que o Augusto
Soberano "Não é omisso na regência, levantando no início da
manhã, e descansando tarde da noite", que ele “regula e ordena
de tudo no universo, não é ocioso em fiscalizar e ouvir, e que
ele “uniformemente ouve a miríade de assuntos internos".34
433
política do imperador. Esta oposição pode ter provocado o mais
notório dos atos do Primeiro Imperador: o "biblioclasmo" de
213 (para a discussão do que ver Kern, 2000: 188-191; cf
Pines, 2009: 172-184), e que não foi debelado depois. Em
particular , a decisão de alguns eminentes ‘Ru’ - incluindo
Kong Jia 孔甲, um descendente de Confúcio da oitava geração,
de juntar-se ao camponês rebelde Chen She 陳涉(-208) ,
tornando Chen um erudito (Shiji 121: 3116), é digno de nota.
Os membros da elite educada estavam claramente insatisfeitos
com o regime do "Sábio de Qin".36
434
O colapso de Qin ameaçou por um curto período a empresa
imperial em si. Na esteira da desintegração da autoridade
central, a maioria dos extintos Estados Guerreiros foram
restaurados , e muitas outras organizações políticas apareceram
no mapa. O mais poderoso dos potentados rivais, Xiang Yu
項羽(-202) , mesmo que brevemente, aboliu a instituição
imperial, preferindo governar sob o nome de "senhor-rei" (ba
wang 霸王). No entanto, se ele pretendia, assim, descartar o
modelo de Qin, o resultado foi exatamente o oposto de suas
expectativas. O aumento de uma lamentável turbulência,
devido ao vazio de autoridade legítima, pode ter convencido os
principais atores políticos das vantagens do sistema imperial
para garantir a estabilidade política. Assim, quando Xiang Yu
foi derrotado em -202, seu conquistador Liu Bang 劉邦 (morto
em 195) retomou o título de Augusto Soberano, que se
manteve como a designação dos governantes da China para os
próximos 2114 anos.
435
governar todo o reino "dentro dos mares", e também
afirmavam sua posição de líderes morais da humanidade (ver,
por exemplo, Kern 2000: 175-182). Há também continuidades
óbvias em termos de santidade e sagacidade do imperador,
embora estas sejam menos simples, como eu explico a seguir.
Em geral, a dívida de Han para com Qin é inegável.
436
e ao [supremo] soberano (帝) por apoiar o esforço Han (Kern,
1996); e, eventualmente, essa idéia se tornou a pedra angular
da legitimidade dinástica ao longo dos milênios imperiais. Em
sua capacidade renovada como "Filhos do Céu", os
imperadores agiam como mediadores únicos entre a divindade
suprema e o reino mundano, presidindo questões humanas e
divinas, remodelando repetidamente o panteão, e gerenciando
as múltiplas atividades sacrificiais.
437
atrocidades dos monarcas. Não por acaso, os imperadores Han,
desde o imperador Wen 漢文帝 (r. 180-157), emitiam
repetidamente "Éditos de Mea Culpa" (罪己詔),
responsabilizando-se por desastres naturais ou presságios
desfavoráveis, e prometendo melhorar suas condutas,
especialmente promovendo a ascensão de funcionários (Liu
Zehua, 1996: 239-247). Parece , então, que a redefinição do
status divino do imperador sob o Han reforçou o prestígio do
imperialismo em geral, mas de certa forma reduziu o poder dos
monarcas individuais. A mesma bifurcação entre os aspectos
institucionais e individuais do imperialismo fica evidente no
conceito de sagacidade imperial sob Han. Aparentemente, os
imperadores Han rejeitaram a arrogância do Primeiro
Imperador, e repetidamente, afirmaram sua fraqueza e
inadequação. Esta mudança é mais evidente em sua postura
vis-à -vis os governantes sábios do passado , especialmente os
Cinco Soberanos. Nos Han , esses modelos foram descritos em
termos sobre-humanos, como geradores de uma ordem
cósmica, e não apenas de uma harmonia social e política,
enquanto os monarcas reinantes modestamente reconheciam
sua incapacidade de corresponder a esse ideal. Esta modéstia
está viva , por exemplo, em um edital de jovem imperador Wu
漢武帝 (r. 141-87 ), no qual ele chamou "os notáveis" para
irem até a corte e ajudá-lo na condução dos assuntos do
governo:
438
pessoas não transgrediam; onde sol e lua brilhava, todo
mundo se comportava com humildade. Nos tempos dos
Reis Cheng 成e Kang 康 de Zhou, castigos mutilantes
não foram empregados, a virtude atingia pássaros e
bestas, as instruções penetraram [tudo dentro] dos
quatro mares. Além do mar, eles se expandiram para
Sujuan 肅眷; ao norte, desenvolveram Jusou 渠搜; Di
氐 e Qiang 羌 [tribos] se submeteram. Não havia nem
deslocamento de estrelas e constelações, nem eclipses
do sol e da lua; cadeias de montanhas não entravam em
colapso, rios e vales não foram bloqueados; unicórnios
e fênix viviam em pântanos próximos, o Rio Amarelo e
Rio Luo propiciaram mapas e documentos. Wuhu, o
que devo fazer para me aproximar disso [desse estado
de coisas]? Agora, como se tornou o meu dever
proteger os templos ancestrais, eu buscarei isso quando
me levantar ao nascer do sol, e contemplarei isso na
minha cama à noite. [Estou temeroso], como se
passasse por cima do abismo e não soubesse como
atravessar. Como é magnífico! Como é grande! O que
devo fazer para manifestar a esplêndida empresa e a
virtude generosa dos antigos imperadores, sobretudo
para ficar em trindade com Yao e Shun, e assim me
equiparar com as três dinastias? Me falta perspicácia, e
não posso sustentar a virtude por muito tempo. (Hanshu
6: 160-161 )
439
O Édito do imperador Wu contrasta com as declarações do
Primeiro Imperador (e mais possivelmente, foi
conscientemente projetado para ser assim). O passado é
excelente, o atual governante não pode igualar suas conquistas,
que só é com a ajuda de assessores dignos que ele pode se
aproximar do esplendor do passado. No entanto, não devemos
ser enganados pela retórica humilde do imperador Han: as
regras do jogo na era Han eram diferentes, e foi a tarefa dos
ministros embelezar seu governante, e exaltar sua suposta
sagacidade . Assim, enquanto o Imperador Wu não pretendia
ser um sábio, e usou esse epíteto exclusivamente para seus
ancestrais, seus ministros, por outro lado, rotineiramente
identificaram-no como um sábio. Um novo bon ton da corte era
o imperador proclamar humildemente sua inadequação, e até
mesmo culpar a si mesmo por vários defeitos, enquanto cabia
aos ministros saudar o soberano. Eventualmente, a voz
ministerial prevaleceia, e o termo "sábio" (sheng 聖) tornou-se
firmemente incorporado a imagem dos imperadores , tornando-
se um sinônimo do adjetivo "imperial" (Hsing, 1988; Liu
Zehua, 1998).
440
decisões, entre outras, sobre questões puramente ideológicas,
por exemplo, aprovar ou rejeitar uma certa tradição exegética
ou trabalho canônico como digno de incorporação ao sistema
educacional da corte. Desde que os seus juízos seriam finais e
supostamente infalíveis, assumiu-se, para preservar o perfil da
dinastia, que o monarca era intelectualmente superior a seus
súditos. Simultaneamente, no entanto, era bem conhecido que o
trono não era ocupado, com frequência, por pessoas medíocres,
e até mesmo os imperadores-criança foram manipulados por
seus parentes ou, mais notoriamente, por eunucos da corte.
Acreditar na sagacidade desses indivíduos exigira um grande
salto de fé para a maioria dos literatos.
441
política com o "único estimado" no topo. Simultaneamente, a
reafirmação sutil da possibilidade de que um monarca
individualmente poderia ser medíocre e inepto incentivou a
formação de sistema burocrático de "controles e equilíbrios",
que permitiu a preservação do império intacto, mesmo sob
governantes inadequados, incluindo, mais notavelmente , em
uma seqüência de criança monarcas no período Han tardio.
Embora poucos imperadores Han, e alguns imperadores
posteriores, tenham tomado sua sagacidade literalmente, e
tentado impor sua vontade sobre todas as esferas da atividade
humana que se possa imaginar (Wang Mang 王莽 [45-23
AEC] imediatamente vem à mente), a maioria foi treinada para
entender suas limitações pessoais e consultar seus assessores,
adotando uma forma muito mais colegiada de governo do que a
idéia de Qin de sagacidade imperial permitiria (ver Pines
2012a: 63-69, para mais detalhes). Finalmente, permitam-me
duas observações finais. Em primeiro lugar, eu acredito que a
adição do ângulo "messiânica" para uma análise do Qin fornece
uma possível solução para o enigma de seu lugar histórico. A
posição excepcional de Qin na história chinesa deriva não de
sua cultura nem de suas instituições, mas a partir da
mentalidade muito peculiar de seus líderes, com destaque para
o Primeiro Imperador, que reivindicou o fim da história e
exigiu a realização literal de sua onipotência teórica. Essa
mentalidade, que não é atestada tanto no período pré imperial,
ou no período imperial tardio, distingue significativamente o
Qin dos seus antecessores e sucessores. A excepcionalidade de
Qin foi, afinal de contas, uma questão de sua auto-
apresentação, e esta auto-apresentação, ao invés da
442
manipulação pós-factum dos inimigos de Qin, é em grande
parte responsável pela visão depois de Qin como uma
"aberração" histórica.
443
substancialmente essa possibilidade. Foi somente após a utopia
ter sido abandonada, o que Shelach apropriadamente chama de
império "indistinto", que, modelado após Han, adquiriu-se a
verdadeira imortalidade ou, pelo menos, a mais notável
longevidade na história política da humanidade.
Notas
444
Yi, que não foi reproduzida por Sima Qian, não difere
ideologicamente das outras seis estelas.
445
12. Veja a inscrição do Mt. Yi (Kern 2000: 13), para “a
estabilidade na unidade” ver Mengzi, ”Lang Hui Wang” 1.6:
17-18; cf Pines 2000.
446
(sobre incompletude desta, veja a discussão em Kern, 2000:
41n117).
24. Ver Kern 2000: 12-13 para a primeira; Shiji 6: 236 para a
segunda. Enquanto o imperador realizava devidamente
sacrifícios múltiplos, ele poderia ter focado na busca de ganhos
pessoais das divindades (por exemplo, a imortalidade, ver Poo,
capítulo 5 deste volume), em vez de apoio a seu esforço
político.
447
28. Ver, por exemplo, a inscrição do Mt. Yi citada no texto, ou
a inscrição da vista leste Zhifu, que resume: ”visto contra o
velho, [nossos tempos] são definitivamente superiores" (Shiji
6:250; Kern, 2000:39). Veja também memorial de Li Si, que
iniciou a queima dos livros de 213, em que Li Si acusou seus
adversários de ”falar sobre o passado para prejudicar o
presente” (Shiji 6: 255).
450
Bibliografia
Vas Ess, Hans, 2014. Emperor Wu of the Han and the First
August Emperor of Qin in Sima Qian’s Shiji. 239-257
Outras referências
451
Goldin, Paul R. 1999. Rituals of the Way: The Philosophy of
Xunzi. Chicago:Open Court.
452
天津社会科学 5: 66–74. (The Monarch and the Sage: Between
Bifurcation and Unification of the Two” em breve no livro
Contemporary Chinese Thought.)
280–324.
453
———. 2012b. “Alienating Rhetoric in the Book of Lord
Shang and Its Moderation.” Extreme-Orient, Extreme-Occident
34: 79–110.
454
BIOS
455
internacionais de Sinologia em Portugal, um dos mais
destacados eventos da área no mundo lusófono. O artigo aqui
presente foi retirado da Revista de Cultura de Macau, 1997.
457
Jana S. Rošker, Phd. é professora de História e Pensamento
Chinês no Departamento de estudos asiáticos da Universidade
de Ljubljana, Eslovênia. Possuindo uma sólida formação em
Sinologia, tendo passagens em diversas universidades chinesas
e européias, a Prof. Rošker é especializada em Filosofia,
Lógica e Epistemologia do pensamento Chinês, e possui uma
vasta publicação de livros e artigos em inglês e chinês. Entre
seus muitos trabalhos, destacam-se Searching for the Way:
Theory of Knowledge in Pre-modern and Modern China
[2008], The Yields of Transition: Literature, Art and
Philosophy in Early Medieval China [2011], Traditional
Chinese Philosophy and the Paradigm of Structure (Li) [2012]
e Modernisation of Chinese Culture: Continuity and Change
[2013]. É ainda uma ativa promotora da Associação Européia
de Estudos Chineses, divulgando a Sinologia no âmbito
europeu.
459
Wang Keping, Phd. é professor de Filosofia da Beijing
International Studies University [BISU], e diretor da Academia
de Ciências Sociais da Chinesa [CASS], sendo reconhecido
como uma dos maiores especialistas chineses atuais em
diálogos interculturais, filosofia comparada e estética. Possui
formação em universidades da Europa e no Canadá. Tendo já
viajado por diversos países, o prof. Wang tem uma obra ampla,
várias vezes premiada tanto em chinês quanto em inglês, cujo
valor inestimável tem sido reconhecido internacionalmente.
Entre seus trabalhos, podemos destacar, em inglês, The Classic
of the Dao: A New Investigation. [1998], Chinese Philosophy
on Life. [2005], Ethos of Chinese Culture. [2007], Spirit of
Chinese Poetics. [2008], Chinese Way of Thinking. [2009, no
qual está presente o ensaio de nossa coletânea] e Reading the
Dao: A Thematic Inquiry. [2011].
460
presente nessa coletânea. Uma visão completa do trabalho do
Prof. Pines pode ser vista em: http://www.eacenter.huji.ac.il/?id=1182
461
462
Antigas Leituras: Visões da China Antiga é uma
coletânea de artigos sobre história, pensamento e
literatura da China Antiga, coligida junto a autores
dos mais diversos países, e organizada em conjunto
pelos Profs. André Bueno [UERJ] e José Maria Neto
[UPE]. O presente volume é uma reedição revista e
corrigida.
463