LEWIS, Maybury. Maybury-Lewis Por Maybury-Lewis
LEWIS, Maybury. Maybury-Lewis Por Maybury-Lewis
LEWIS, Maybury. Maybury-Lewis Por Maybury-Lewis
ISSN 0034-7701 versão impressa
Os selvagens da infância
Não tenho certeza, pois não sou psiquiatra, mas a impressão que eu tenho é que
meus primeiros encontros com a alteridade aconteceram durante a minha infância
passada na Índia. Meus pais eram britânicos e, na época, ainda vivíamos em uma
colônia britânica. Morávamos em uma região que pertence, hoje em dia, ao
Paquistão. Lá eu nasci, fui criado e vivi até os meus sete anos. Partimos, então, à
Inglaterra, onde passei a morar em um internato tipicamente britânico. Foi um
choque tremendo, do ponto de vista ao mesmo tempo físico e moral, sobretudo
para alguém que estava acostumado a passear por aqueles jardins brilhantes que
os ingleses mantinham na Índia.
Essa é uma experiência que guardei na memória, uma experiência que passou a
fazer parte do meu passado. Nunca mais voltei à Índia, nunca mais tive contato
com pessoas como os cameleiros. Foi somente quando comecei a trabalhar como
antropólogo e a pensar nas questões da alteridade que pude me lembrar das
experiências que tive na infância e nas suas possíveis conexões com a minha
formação e com o meu desejo de ser Antropólogo.
Com tudo isso, eu não tinha a menor idéia do que ia fazer depois de me graduar.
Assisti a uma série de aulas sobre o descobrimento das Américas e os indígenas
que lá habitavam, assunto pelo qual comecei a me interessar. Em 1952, durante o
encontro de americanistas que aconteceu em Cambridge, uma coincidência mudou
a minha vida. Fui assistir à apresentação dos trabalhos e conversar com alguns
professores para saber se havia qualquer possibilidade, para mim que não falava
língua indígena alguma e que não possuía qualificação prévia, de viajar às Américas
para estudar os índios.
A maioria dos professores fez exatamente o que eu faria hoje em dia se alguém se
dirigisse a mim com o mesmo pedido. Diziam não saber quais as minhas
verdadeiras chances, no entanto me desejavam boa sorte. O único que expressou
uma postura diferente foi o professor Herbert Baldus, que me encorajou a partir
para o Brasil, onde poderia passar a vida inteira fazendo pesquisa e produzindo
ciência. Vendo logo que eu era inglês, propôs que, em vez de partir diretamente ao
Brasil, cujo governo impunha muitas dificuldades à pesquisa, eu principiasse as
minhas investigações na Guiana Inglesa, de onde poderia chegar mais facilmente,
apenas atravessando a fronteira, à Amazônia brasileira. Disse também que estava
disposto a me orientar e me ajudar a desenvolver os meus conhecimentos em
Etnologia. Saí da sala e pensei que encontrara ali uma pessoa com a qual eu
gostaria de estudar. Acabara de me convidar para atravessar uma fronteira que eu
mal sabia onde se localizava e para encontrar tribos desconhecidas. Era esse o
orientador que eu esperava.
Em São Paulo
Então foi o que foi. Não exatamente do modo que Baldus propôs, mas de maneira
mais prosaica. Eu e Pia nos mudamos para São Paulo e logo consegui um emprego
na Cultura Inglesa. Baldus teve uma grande surpresa: aquele rapaz com quem
havia conversado por não muito mais que cinco minutos estava ali em seu
escritório, disposto a aprender etnografia. Foi na Escola Livre de Sociologia e
Política, junto a Baldus, que descobri a etnografia brasileira. Lá tive a oportunidade
de estudar com professores conhecidos como Oracy Nogueira, Juarez Brandão
Lopes, Otávio da Costa Eduardo, Donald Pierson e outros mais. Sempre tive muita
admiração pelo estilo de Baldus, um homem que ia até as margens da civilização e
só voltava quando o dinheiro acabava.
Uma pessoa com a qual fui ter contato apenas anos depois foi Florestan Fernandes.
Na época de minha chegada a São Paulo, eu não sabia o que era a USP e tampouco
quem eram os seus professores. Morava em um apartamento pequeno e, quando
muito, ia de lá até a Cultura Inglesa e a Escola Livre de Sociologia e Política.
Quando tomei conhecimento desse outro ambiente, momento também em que
passei a entender realmente os padrões da Etnologia brasileira, fui procurar o
professor Florestan, que me dizia estar muito magoado por eu ter demorado tanto
a procurá-lo. Desculpei-me, mas, àquela altura, já havia sido Baldus o meu grande
formador.
Curt Nimuendaju
A chegada
A vida na aldeia
Imediatamente, Pia se deu bem com eles, participava daquelas andanças longas
com as mulheres para colher frutas e raízes. O menino brincava totalmente à
vontade com as crianças da aldeia. A única pessoa que não possuía um papel
definido era eu, que não sabia fazer as coisas mais elementares que os homens
deviam fazer. Por exemplo, quando um Xavante sai para caçar, jamais sai sozinho;
ele, no entanto, não chama todos os seus colegas, sai simplesmente e, dez minutos
depois, é seguido por companheiros. Mas eu era incapaz de fazer isso, e eles
descobriam que eu era ali como uma criança, me perdia com facilidade, trazia
coisas idiotas, fazia perguntas imbecis. Eles começaram a me tratar, então, como
um sobrinho, como um bobo. À noite, me convidavam para sentar no círculo dos
homens maduros no centro da aldeia e logo começavam a rir, caindo no chão de
tanto gargalhar - e eu bem sabia que o alvo era eu. Percebi que eu havia adquirido,
entre os Xavante, o papel de uma espécie de programa cômico de televisão.
Eu raramente dormi na casa dos wapté [solteiros]. Só o fazia quando os
acompanhava em andanças. Pouco depois de nossa chegada, dormíamos em uma
casa que construíram para nós no círculo da aldeia. Era uma casinha ao lado da
casa do chefe, que me tratou como um filho. E eu tinha de chamar os outros filhos
dele de irmãos, e os solteiros me chamavam de cunhado. O único incidente que
ocorreu por ali foi quando resolveram fazer uma reforma na casa do chefe e, de
repente, estava lá toda a sua família em nossa casa, e mais ou menos dezesseis ou
dezessete pessoas tiveram de dormir juntas.
De volta à academia
Depois de realizada a pesquisa entre os Xavante, retornei mais uma vez à minha
terra, a Inglaterra, para redigir a minha tese. Na defesa de meu doutoramento, tive
o prazer e a honra de ser examinado por dois antropólogos célebres. Era necessário
um professor de Oxford e um professor de fora. O primeiro foi Evans-Pritchard, o
segundo, Edmund Leach. É de se imaginar o meu medo quando cheguei à sala de
defesa e vi que Leach havia preenchido o quadro com símbolos de parentesco, tudo
aquilo extraído de minha tese. Naquele momento, eu, completamente sem jeito,
mal me lembrava do que se tratava, não queria falar. Começada a defesa, Leach
perguntou se havia homossexualidade entre os Xavante. Eu, inocentemente, disse
não ter percebido algo parecido, pois não era esse o tema de minha pesquisa. Nas
noites que passei na casa dos solteiros, nada havia notado, o que não me permitia
lançar afirmações. De repente, ambos levaram adiante a discussão, argumentando
um contra o outro, como se eu não estivesse lá. No início do exame eu não me
importava em ser marginalizado dessa maneira, mas depois de um tempo, comecei
a sentir uma certa frustração. Afinal de contas, quem era o examinado? Não seria
ele quem deveria ter o papel principal no rito? A resposta não demorou. Os dois
examinadores famosos voltaram sua plena atenção para mim e depois de mais uma
meia hora eu fiquei feliz de poder sair de lá ileso, e com o título de doutor. Pouco
depois, fui convidado para ocupar o cargo de instrutor na Universidade de Harvard.
Instrutor era o menor grau de toda a hierarquia americana do departamento de
Antropologia. Em 1960, parti para Harvard, pensando em permanecer ali por cerca
de dois anos. Mas acabei por encontrar nos Estados Unidos boas condições de
pesquisa e, sobretudo, financiamento para minhas pesquisas no Brasil Central, o
que me fez adiar minha volta para a Inglaterra até que descobrimos que estávamos
radicados nos Estados Unidos.
Claude Lévi-Strauss
A Cultural Survival
Ficamos muito preocupados com o destino dos povos do Brasil Central. E não
apenas com eles. Atualmente, nossa pesquisa ampliou-se para incluir os problemas
dos povos indígenas de toda parte e, naquela época, já estávamos bastante
conscientes de nos confrontarmos com um problema mundial.Eu e minha esposa
fomos conversar com os nossos colegas nos Estados Unidos, pensando que
tínhamos alguma responsabilidade para com esses povos e que devíamos atuar em
função disso. As respostas que recebemos eram muito decepcionantes. Nossos
colegas concordavam que a situação dos povos indígenas era, de modo geral,
crítica, no entanto, a maioria deles sentiu que não havia muita coisa que os
antropólogos pudessem fazer. Felizmente, nem todo mundo pensava assim. Era um
período em que muitas ONGs eram fundadas com uma intenção expressa de
fornecer assistência aos povos indígenas. No Brasil, esse era o momento em que
acadêmicos fundaram a Comissão Pró-Índio, e em que várias associações auto-
denominadas Amigos dos Índios emergiram na sociedade civil. Assim, em 1972,
partindo da iniciativa de Pia, fundamos a Cultural Survival, em Cambridge,
Massachusets, nos Estados Unidos.
Nunca imaginamos que a Cultural Survival fosse salvar o mundo, mas fazíamos
questão de mostrar que os mesmos problemas se encontram espalhados no mundo
inteiro. Por meio da Cultural Survival, passamos a publicar e apurar dados a
respeito desses problemas, e depois apresentar as análises para o Banco Mundial,
para os governos de diversos países de modo a mostrar o que de fato está
acontecendo e insistir que fossem tomadas providências para aliviar de alguma
maneira a situação. Essa foi a proposta da Cultural Survival, e continua operando
até os dias de hoje. A Cultural Survival, sediada em Cambridge, Massachusets, é
hoje um centro de pesquisa, mas é, sobretudo, um centro de pesquisa para os
próprios índios, pois são eles que devem se defender. As ONGs devem ajudá-los a
fazer isso, mas não responder por eles.
Ao meu ver, o Brasil tem sorte, pois ambas as tendências se encontram igualmente
distribuídas. Isso dá à Antropologia brasileira o destaque que ela merece, destaque
que cresceu sobre as raízes que Roberto Cardoso de Oliveira, eu e outros
brasileiros daquela geração cultivamos.