MOISÉS, Beatriz Perrone. Entrevista Claude Lévi-Strauss, Aos 90
MOISÉS, Beatriz Perrone. Entrevista Claude Lévi-Strauss, Aos 90
MOISÉS, Beatriz Perrone. Entrevista Claude Lévi-Strauss, Aos 90
ISSN 0034-7701 versão impressa
*
* *
Beatriz: No ano anterior a essas expedições, o senhor deu aulas na então recém-criada
Universidade de São Paulo, integrando a segunda leva de professores estrangeiros. O
que significam hoje para o senhor os laços com a Universidade de São Paulo?
Lévi-Strauss: "Sabe, é difícil dizer, porque sentimentos de tipos diferentes se
mesclam. Era o tempo de minha juventude e, naturalmente, as pessoas são muito
apegadas a seus anos de juventude. Para mim, o Brasil, São Paulo são completamente
indissociáveis de meus anos de juventude, e eu já não saberia separar as coisas.
Mas, enfim, eu diria que para jovens professores, que eram praticamente iniciantes na
carreira universitária, era antes de mais nada uma oportunidade extraordinária e uma
experiência única, porque além de sermos novos na carreira, tínhamos viajado
pouquíssimo, por causa dos exames, concursos e coisas desse tipo. De modo que,
através de São Paulo, através do Brasil, era um pouco o mundo inteiro que se revelava,
ou pelo menos uma face diferente do mundo. Assim, tudo isso representa um conjunto
tão rico, tão farto, que eu não saberia o que destacar..."
Beatriz: Apesar da famosa declaração de Tristes trópicos ["Odeio as viagens e os
exploradores."], o senhor gostava, então, de viajar?
Lévi-Strauss: "Ah, sim! Naquela época eu gostava de viajar. É preciso lembrar que
Tristes trópicos foi escrito quinze anos depois de minha volta do Brasil, e eu não
pensava nas viagens daquela época, mas nas viagens que poderia fazer no momento
em que escrevia".
Beatriz: O fato de o Brasil ser, desde o século XVI, uma destinação, digamos,
privilegiada pelos franceses, fazia alguma diferença?
Lévi-Strauss: "De certo modo, senti uma espécie de sensação de segurança,
sabendo... É claro que eu não sabia de nada disso muito antes de ir para o Brasil,
aprendi tudo isso nos meses que precederam minha partida, já que os nomes de
Thevet, Léry, evidentemente, não constavam do programa de licenciatura em Filosofia.
Assim, foi depois... Mas, eu dizia, uma sensação de segurança, por saber que meus
passos seguiam os passos de grandes ancestrais. E a sensação é duradoura, porque há
uns trinta anos, minha mulher e eu compramos uma casa no campo e depois de a
comprarmos, descobrimos que se encontra a uns poucos quilômetros da casa onde
nasceu Jean de Léry."
Beatriz: Thevet e Léry, o senhor dizia, não constavam do programa. Mas Montaigne
sim…
Lévi-Strauss: "Ah, sim! Mas não precisava estar no programa para ser lido [risos].
Ainda hoje é assim… continua no programa."
Beatriz: O Brasil era, então, de certo modo, mais próximo do que outras regiões…
Lévi-Strauss:"Sim, muito mais, certamente… além do mais, com a quantidade de
palavras de origem tupi que passaram para o francês…"
Beatriz: Nenhuma outra razão explicaria sua permanência nesse papel, até hoje?
Lévi-Strauss: "Parece-me que há dois casos no mundo, no século XX, em que modos
de vida tradicionais se mantiveram por mais tempo: a América do Sul e Nova Guiné, as
montanhas da Nova Guiné, que foram descobertas em 1930-35, ao passo que o contato
com a América se manteve constante desde o século XVI. O contato com os ameríndios
nunca foi interrompido, de modo que é natural que ocupem, no pensamento do
Ocidente, um lugar privilegiado."
Beatriz: O senhor já disse, em várias entrevistas, que optou pela etnologia como
reação contra a escola sociológica francesa, contra Durkheim, especificamente. Gostaria
de pedir-lhe que falasse, mais uma vez, dessa relação…
Lévi-Strauss: "Quando eu era estudante, no início de minha carreira, insurgi-me
contra a escola... enfim, contra Durkheim, porque na mesma época descobria a
etnologia anglo-americana e, é claro, eu era especialmente sensível à diferença entre o
teórico e pessoas que falavam de coisas que tinham ido ver em campo. Como eu
mesmo tinha um grande gosto pela aventura, sentia-me mais próximo deles. Mas creio
que, posteriormente, compreendi bem melhor e retornei, em grande parte, à tradição
durkheimiana.
Eu nunca fui aluno de Mauss, já que nunca tinha feito etnologia antes de partir para o
Brasil, mas de qualquer modo, antes de partir, fui ver Mauss e também fui ver Lévy-
Bruhl. Eles me deram conselhos, quando eu retornava à França, ia vê-los. Não houve,
portanto, uma ruptura... Foi mais, digamos, uma passagem inconstante e,
posteriormente, um retorno muito profundo ao pensamento durkheimiano e ao de
Mauss".
Beatriz: Ver de perto, para ver de longe…O olhar distanciado que, segundo o senhor,
caracteriza o antropólogo, é algo que se aprende, que se constrói? É vocação ou
treinamento?
Lévi-Strauss:"A expressão é de Hami, que era um grande autor dramático japonês. Ele
dizia que, para ser um bom ator, era preciso olhar para si mesmo, o tempo todo, com
os olhos afastados do espectador. Acho que o olhar distanciado pode ser aprendido,
mas acho também que é algo que se pode possuir desde o nascimento, uma espécie de
característica da personalidade de cada um. No meu caso, creio que se trata da
segunda hipótese".
Beatriz: Se esse olhar é indispensável para fazer antropologia, é melhor que seja uma
vocação?
Lévi-Strauss: "Acho que há muitos modos de ser antropólogo, e de tornar-se
antropólogo... e há muitas moradas na casa do Senhor... A vocação é um dos modos,
há provavelmente outros".
Beatriz: Falemos então sobre os seus modos de fazer antropologia ou, mais
precisamente, análises de mitos. O senhor mencionou algumas vezes que trabalhava
com fichas e, ao longo da elaboração das Mitológicas, as espalhava às vezes sobre a
mesa, onde elas de certo modo assumiam configurações que lhe revelavam relações.
Como são essas "fichas de mitos"? Posso ver algumas?
Lévi-Strauss: "Eu não trabalhava exatamente com fichas de mitos, esse é meu modo
de trabalhar em geral. Faço muitas fichas. Meus ficheiros estão em casa, não tenho
nenhuma ficha aqui… Mas não há nada de especial em minhas fichas. Algumas contêm
referências, outras uma ou várias frases que li num livro e que chamaram minha
atenção, ou uma idéia que tive e transcrevi numa ficha. Podem ser acerca de mitos, ou
de livros, podem ser acerca de um objeto que vi, ou de uma idéia que me ocorreu. Em
relação aos mitos, podem conter versões completas, às vezes há páginas dobradas no
formato de uma ficha, colocadas nos ficheiros, às vezes são resumos... Nada de
organizado.
Quando me falta inspiração, quando estou sem idéias, pego um monte de fichas — eu
deveria colocar isso no imperfeito, porque se refere ao tempo em que eu trabalhava —
e, só de espalhá-las, misturá-las, agrupá-las ao acaso, às vezes me vem uma idéia".
Beatriz: Não se pode então falar num método de fazer fichas, ou de utilizá-las…
Lévi-Strauss: "Não, nenhum. Ao contrário, eu diria que as fichas, para mim, são
exatamente o oposto de um método, são o meio de ter idéias imprevistas".
Beatriz: Mas a redação das Mitológicas terá exigido muita disciplina, sem dúvida.
Lévi-Strauss: "Durante uns dez anos, não pensei noutra coisa, das seis da manhã às
seis da tarde... Sempre tive em mente o exemplo de Saussure, que dedicou parte de
sua vida a mitos, os Nibelungen, e que nunca os publicou, nunca conseguiu pô-los em
ordem, e dizia a mim mesmo que, se continuasse assim, repetiria essa desventura, e
precisava decidir que teria um fim. Na verdade, o quarto volume, O homem nu, contém
a matéria de três livros... Mas eu me proibi de escrevê-los. Disse a mim mesmo: é esse,
e será o último. Finalmente, não foi o último, já que depois vieram A via das máscaras,
A oleira ciumenta e História de Lince... Mas, de qualquer modo, eu queria fazer algo que
formasse um todo".
Beatriz: História de Lince, o último, pode ser considerado como uma espécie de
balanço de todo o trajeto das Mitológicas?
Lévi-Strauss: "Para mim, pessoalmente, há o que eu chamo de ‘grandes mitológicas’,
os quatro volumes, e os três outros, que constituem as ‘pequenas mitológicas’... estas
não são, de modo algum, um balanço em relação às outras. São simplesmente questões
que me pareceram interessantes e que não tinham lugar... eu tinha feito alusão a elas
diversas vezes... mas elas não se encaixavam exatamente no desenrolar da
argumentação. Assim, eu dizia a mim mesmo: um dia, talvez, eu retome tudo isso."
Beatriz: Pena!
Lévi-Strauss: "Não, não é nenhuma pena, porque eles já não seriam bons... supondo
que algum dia o tenham sido… Não…escrevo coisas pequenas, artigos, prefácios..."
Beatriz: O senhor contou, certa vez, que lia regularmente revistas científicas,
acompanhando o que se faz nas ciências exatas e biológicas — que, aliás, forneceram
imagens muito poderosas à sua obra. O senhor continua lendo essas revistas?
Lévi-Strauss: "Bem, nunca li tanto assim… sempre me inteirei dessas questões através
de revistas de vulgarização científica, para grande público… Enfim, continuo lendo
regularmente a Scientific American, a Recherche... tento ter uma idéia muito vaga e
muito ingênua do que está acontecendo".
* *
Depois de encerrada a entrevista, notei ao meu lado algo que me parecia uma árvore
em miniatura, cujas folhas eram pedacinhos de papel com anotações, colados em
"galhos" revirados e perfeitamente simétricos. Olhei mais de perto, e percebi que o
objeto, protegido por uma redoma de vidro (foto), é a estrutura, em três dimensões, de
um grupo de mitos, cuja representação gráfica se encontra à página 81 de L’origine des
manières de table (Mitológicas III). A própria página, unida à página 80 do livro,
constitui um "fundo" para a "árvore" de mitos, dentro da redoma (reproduzidas a seguir
a partir da 1ª edição, de L'origine des manières de table, Paris, Plon, 1968).
Evidentemente fascinada pelo objeto, perguntei a Lévi-Strauss se costumava construir
assim estruturas míticas. Respondeu-me que sim, que as construia conforme as
percebia nos mitos, com os pedaços de papel, barbante, tesoura e cola que sempre
tinha à mão. Alguns desses objetos, continuou, "eram como móbiles à la Calder", e
ficavam pendurados pelo laboratório de antropologia. Mas eram muito frágeis, e logo se
destruíram. Finalmente, tinha sobrado apenas aquela. "Mas então o senhor é um
bricoleur também no sentido primeiro do termo [que remete, como se sabe, a trabalhos
manuais]?" Sorrindo, respondeu-me que sim, gostava de usar as mãos para construir
coisas desde a infância…
Fotografia: Éric Brochu
Paris, 1998