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Jaceguay Lins - 10-04

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Paula Galama

Vitória, 2014
© FACULDADE DE MÚSICA DO ESPÍRITO SANTO

Governador do Estado do Espírito Santo


RENATO CASAGRANDE

Vice-Governador
GIVALDO VIEIRA

Secretário de Estado da Educação


KLINGER MARCOS BARBOSA ALVES

Faculdade de Música do Espírito Santo - Direção Geral


ERLON JOSÉ PASCHOAL

Revisão
A AUTORA

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica


SÉRGIO RODRIGO DA S. FERREIRA

Impressão e Acabamento
DIO - DEPARTAMENTO DE IMPRENSA OFICIAL - ES

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Biblioteca da Faculdade de Música do Espírito Santo

XXXX XXX, XXXX


XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX 2014.
108p. il.

ISBN 9XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

1. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

CDD. XXXXXXXXXXXXX

Faculdade de Música do Espírito Santo “Maurício de Oliveira” (FAMES)


Praça Américo Poli Monjardim - 60 - Centro - Vitória-ES - Cep: 29010-640 A um homem incomum, Jaceguay Lins, sem o auxílio de quem
Tel: 27 3636-3600 - www. fames.es.gov.br/ jamais seria possível a realização deste trabalho.
Agradecimentos

Não é possível agradecer aqui a todas as pessoas que


tiveram um papel na elaboração deste livro, e previamente na elaboração da
minha dissertação de mestrado. Alguns ainda permanecem entre nós, outros
já nos deixaram, mas ainda assim a gratidão é eterna. Primeiramente gostaria
de agradecer a Ana Cláudia Nahas. Ser humano único que além do estímulo,
das sugestões e das correções, me ofereceu uma amizade incondicional. A
José Benedito Viana Gomes, sempre com um humor insuperável, ajudou-me
a manter uma linha de pensamento coerente acerca do trabalho. Em especial
agradeço a Anna Saiter pela disponibilização de todo o acervo pessoal do
compositor, a Vítor Nogueira pelas fotos, a Glória Viegas Aquije pelo incentivo
e a Sérgio Moriconi, por, na época da dissertação, oferecer com extrema boa
vontade seu arquivo sonoro pessoal sobre Jaceguay Lins. Sou extremamente
grata a André e Artur Nobre Mendes pela tradução dos versos de Katemare e
pelo suporte nas pesquisas.

E não é possível agradecer o suficiente a outro admirador da


obra de Jaceguay Lins, Maestro Helder Trefzger, que carinhosamente elaborou
o Prefácio a esta edição. Também não posso deixar de agradecer o apoio da
Faculade de Música do Espírito Santo, na pessoa de seu Diretor, Erlon José
Paschoal, e mais ainda, ao Departamento de Marketing que pacientemente
suportou minhas incursões quase diárias.

O meu sincero obrigado a todos.


SUMÁRIO
Nota da autora

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 1999 tive a grande


oportunidade de compartilhar histórias, ideias, fatos e conhecimento com
o compositor Jaceguay Lins. Havia escolhido o trabalho do compositor
como tema da minha pesquisa de mestrado não só porque considerava
sua obra importante para o país e ainda mais para importante para o
Espírito Santo, como também o tinha como amigo e acreditava que seu
trabalho merecia uma justa divulgação. Ainda me lembro de sua reação,
nada ortodoxa, sobre o meu pedido de trabalhar sobre sua obra e sua
história: “você quer que um dia ergam uma estátua minha, onde serei
humilhado pelos pombos e ultrajado pelos bêbados?” Não obstante sua
reação, sua generosidade era infinita. Aceitou meu convite e ajudou-me
desprendidamente.

Era o meu planejamento realizar uma série de entrevistas


no começo da pesquisa e coletar o máximo de informações possíveis,
uma vez que quase nada há escrito sobre ele. Não que a pesquisa que
deu origem a este livro tenha terminado aí. Pelo contrário. Apenas
começava. Foram horas de entrevistas onde conversamos um pouco
de tudo sobre música e muito sobre sua vida, além de horas de conversas
informais. Discutimos sobre história, questões teóricas, parâmetros
sonoros, linhas de composição, compositores, e porque não, dramas.
Deste total de entrevistas foram selecionadas, em comum acordo com o
compositor, aquelas que melhor se adequavam à pesquisa e que melhor
reproduziam seu modo de ver a música, os fatos de sua vida e sua obra.
Algumas foram suprimidas da transcrição, no entanto.

O propósito primeiro destas entrevistas foi criar uma


fonte primária de pesquisa sobre o compositor e sua obra para dar

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prosseguimento à árdua tarefa de coletar dados e obras de sua autoria. As entrevistas revelaram um fascínio pela música mas também
Assim, quando esta etapa estivesse concluída, eu poderia então discorrer o lado cruel de uma sociedade que não soube lidar com o que não
sobre sua vida, seu pensamento e sua obra para enfim divulgar o seu entendia, com a vanguarda, com o experimento. Este era um lado que
trabalho. Ledo engano! As entrevistas me levaram a um mundo que eu não gostaria de ter visto. Mas nenhuma mente como a de Jaceguay
eu não percebia claramente, que eu vislumbrava somente de relance e Lins se abre pela metade. Ou era tudo, ou nada. Seu pensamento era
sob a égide da academia. Apesar de já conviver com o compositor, até intrincado e por vezes começávamos falando sobre um assunto e logo a
então não tínhamos conversado tão profundamente sobre as questões conversa seria desviada para outro ponto. Foi difícil manter uma linha
musicais que tratamos. Percebi logo na primeira entrevista que não de pensamento consistente para a organização das entrevistas. Não
estava conversando com um homem comum. Jaceguay Lins era, no obstante, as informações vinham aos borbulhões, partindo de alguém
mínimo complexo e intrigante. Muitas vezes, durante as entrevistas, que não havia aprendido música academicamente. O que Jaceguay Lins
não conseguia acompanhar seu raciocínio e me perdia em considerações me dizia partia da sua consciência como se fosse parte dele mesmo. Não
tão desconhecidas para mim. Nunca tinha pensando a música daquela um discurso pensado, analisado antes de se verbalizar. Seu saber era
forma e muito menos tudo que ela, a salvação, a música, representava na genuíno, era intrínseco ao seu pensar, ao seu ser. Poucas pessoas podem
vida daquele homem. entender o que é isto. É como tomar ciência de algo como um todo. E
eu tive este privilégio. O privilégio de por algum tempo compartilhar
Eu conheci Jaceguay Lins nas classes de Estruturação Musical desta mente. Quando terminaram as entrevistas e a pesquisa começou
na então Escola de Música do Espírito Santo, hoje Faculdade de Música então eu percebi que não lidava apenas com mais um trabalho biográfico
do Espírito Santo. Suas aulas eram desafiadoras e éramos convidados a e analítico. Envolvia mais. Envolvia entender a natureza daquele
repensar alguns conceitos e aplicá-los. Lins não queria o óbvio, o normal, pensamento, sua origem. A extrema escassez de material encontrado
o acadêmico. Queria novas ideias, novas concepções, mentes abertas! foi desestimulante. Fatos não registrados, obras perdidas, gravações
Depois que terminamos a fase das entrevistas me perguntei se ele não inexistentes ou desaparecidas. Percebi que este seria apenas o começo
estaria, de certa forma, tentando recriar o espírito inovativo que tinha a de um trabalho árduo que não terminaria neste livro. Muitos foram os
sua geração, e formar à sua maneira, sua própria classe de composição. obstáculos e por vezes esta pesquisa teve que descansar na prateleira por
Nenhum de nós seguiu profissionalmente o caminho da composição, algum tempo, mas de novo retomada para honrar a vida e a obra deste
senão esporádica, mas certamente nenhum de nós seguiu com o mesmo homem incomum, de uma generosidade ímpar, e de uma musicalidade
pensamento sobre música. Lins mudara de vez nossa forma de pensar genial.
sobre ela, a música. Havia quebrado qualquer preconceito que porventura
tivéssemos. Com ele conhecemos obras que nunca pensaríamos ouvir, Jaceguay Lins se doou ao Espírito Santo como poucas pessoas
conhecemos a música andina, fomos apresentados ao experimentalismo. o fazem. Fez o caminho inverso. Enquanto outros compositores partem
Quando mostrávamos alguma coisa ele dizia: “isso já foi feito! Faça algo para centros maiores, que ofereçam maiores possibilidades de trabalho,
novo”! Jaceguay deixou os grandes centros e fincou suas raízes no Espírito Santo,
como uma grande árvore que de alguma forma se tornou dona de seu

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crescimento. Viveu neste estado como poucas pessoas nativas viveram.
Conheceu tudo, conviveu com os índios, entregou-se apaixonadamente
Prefácio
ao congo e hoje é, sem nenhuma dúvida, o compositor que melhor
representa o Espírito Santo.
Tendo conhecido e convivido com esse que foi um
Espera-se que este livro seja de fácil leitura, isento da
dos grandes compositores da sua geração e sabendo da precariedade
rebuscada redação da academia, coisa que o compositor não apreciava.
de informações sobre ele, sua obra e sua vida, enalteço a iniciativa da
Também não temos a pretenção de cobrir todos os fatos significantes e
autora, também amiga e colega, Paula Galama, em nos presentear
falar sobre todas as obras do compositor. Isso não é possível. A ausência
com um histórico e importantíssimo trabalho, que elucida, esclarece,
de informações não permite tal pretensão. Mas, desta forma, outras
informa, explica, organiza, analisa, dá acessibilidade e divulga a vida
pesquisas virão e estaremos sempre em movimento, buscando mais,
e a obra dessa mente ímpar, desse homem incomum, à frente de seu
isentos da inércia, de certa forma em concordância com o pensamento
tempo, que foi Jaceguay Lins.
do compositor. Acredito eu que entregar-se à vida como o fez Jaceguay
Lins não é tarefa para qualquer ser humano. Entre as boas escolhas e Conheci Jaceguay em 1992, em Carapebus, na cidade
aquelas mais duvidosas, viveu todas intensamente. Não importava. de Serra, aqui mesmo no Espírito Santo, através de um amigo comum,
Viver era essencial. o percussionista e violinista Marco Antônio Reis Lima, que me levou
lá especialmente para conhecê-lo. Antes disso, eu já tinha ouvido falar
dele, desde a época em que eu era aluno do também compositor Cláudio
Santoro na Universidade de Brasília. Nossa amizade foi instantânea,
como se nos conhecêssemos há muitos anos. Lembro-me daquele dia
como se fosse hoje, por conta do impacto que ele me causou. Apesar
de ser um compositor importante, ele era uma pessoa muito simples,
mas com um carisma contagiante. Desse dia em diante foram muitas
histórias, infindáveis reuniões informais, trabalhos juntos, concertos,
gravações, sonhos. Helder, meu velho – assim ele me tratava –, vamos
tomar um chopp! Precisamos conversar! Eu ficava encantado com a
genialidade dele, mas, ao mesmo tempo, revoltado por não vê-lo em
uma situação minimamente estável, para que ele tivesse a tranquilidade
necessária para criar suas obras e ter uma vida melhor. Por outro lado
vivíamos tempos difíceis no nosso Estado, com graves crises financeiras,
institucionais e até mesmo morais. Havia um descrédito no ar, uma
sensação de impotência face à corrupção, ao desvio de dinheiro público,

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ao desmando e ao crime organizado que por aqui havia se instalado. elementos africanos e indígenas, que foram moldados do seu jeito.
Tempos difíceis compensados pela amizade de pessoas especiais, como Apesar de ser fiel à forma, o compositor preferiu abandonar as estruturas
Jaceguay. E foi assim, de maneira simples, que me despedi dele, em rígidas e experimentar novas concepções formais. Ela esclarece ainda
um humilde cemitério na mesma cidade de Serra, numa triste tarde de que muitas vezes a sociedade, por não entender, não soube lidar com a
2004. vanguarda e com o experimento.

Devemos muito à Paula Galama pela iniciativa de Discorrendo sobre a geração contemporânea de
travar contato com o compositor, no ano de 1999, e, a partir desse Jaceguay Lins e, especificamente, a relação entre a arte e o seu tempo,
contato, registrar relatos pessoais que deram o impulso inicial à Paula relata a interferência do momento histórico na formação do ser
tarefa de criar uma fonte de pesquisas sobre ele, complementada, humano e, consequentemente, na sua obra. Segundo ela, a obra de
posteriormente, pela coleta de dados, informações, partituras etc. Apesar Jaceguay Lins reflete o pensamento da sua geração, da geração dos anos
das dificuldades, como a falta de material, de fatos não registrados, de 1960 e 1970, em que liberdade era a palavra de ordem. Paula situa
obras perdidas e da inexistência de gravações, pouco a pouco Paula claramente o compositor, ainda jovem, registrando a participação de
Galama vai mostrando a complexidade do autor e a sua personalidade sua geração num momento histórico de grandes mudanças, de luta
intrigante. Ela demonstra como o seu saber era genuíno, intrínseco ao política contra a ditadura, de luta pela defesa da liberdade de expressão e
seu pensar. Com pleno êxito, a autora cumpre o objetivo de entender a pelo respeito aos direitos humanos. Era uma juventude que se mostrava
natureza e a origem desse pensamento. inconformada, rebelde e questionadora.

Ao contextualizar o compositor e a sua obra no tempo, Em busca de uma contextualização ainda mais ampla
a autora aborda o crescente interesse sobre a música contemporânea e que nos permita entender melhor a personalidade dessa figura
brasileira, surgido na segunda metade do século XX. Paula Galama lança tão instigante, ela volta um pouco mais no tempo e nos lembra da
uma luz sobre esse tema, buscando as origens desse interesse e as suas importância da chegada de Hans- Joachim Koellreutter ao Brasil,
consequências. Ela analisa ainda, criticamente, as poucas publicações em 1937, que representou um grito de libertação do exclusivismo
sobre o compositor, feitas por autores como Vasco Mariz e José Maria nacionalista. Paula destaca ainda a formação do Grupo Música Viva
Neves, e presentes também no Dicionário Grove, desconstruindo, de e, mesmo antes, a realização da Semana de Arte Moderna de 1922.
maneira inteligente e elegante, (pré) conceitos sobre o compositor e a Somando-se a isso tudo, a autora chama a atenção para o surgimento
sua obra. da música concreta, da música aleatória, da música eletroacústica,
das gravações, do trabalho do compositor suíço Ernst Widmer e do
Segundo Paula Galama, o próprio compositor, que era avesso Grupo de compositores da Bahia. Ela cita também o Manifesto
a rótulos, definia a si e aos compositores da sua geração como músicos Música Nova e o compromisso total com o mundo contemporâneo. E
marcados pelo experimentalismo, com feição atonal, o que, segundo Jaceguay ali, imerso nesse cenário. Por isso tudo, Paula Galama, com
ela, era uma tendência mundial àquela época. Paula nos mostra que a extrema lucidez, esclarece que o trabalho desse compositor é fruto do
música de Jaceguay Lins é heterodoxa, tendo ele buscado no folclore

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“pensamento social, político e artístico de um tempo em que muitos de acordo com a autora, passou ainda pela antiga EMES – Escola de
conceitos estavam sendo reformulados”. Música do Espírito Santo – e chamou-me a atenção o registro da ida
de um grupo da escola, regido por ele, para se apresentar no Rio de
No campo biográfico, a pesquisa da autora nos Janeiro, em outra edição da Bienal. Tocaram na Sala Cecília Meireles a
presenteia com fragmentos pitorescos da vida de Jaceguay nunca primeira versão da peça Guananira. A segunda, escrita para o “Prêmio
revelados, como a infância em Canhotinho, o episódio em que se Guananira”, em 1997, foi estreada pela Ofes (Orquestra Filarmônica
perdeu dos pais para acompanhar uma banda de música, em que ele do Espírito Santo), sob a minha regência, em 3 de dezembro de 1997.
relata que se sentou perto das clarinetas, achando assim a sua “salvação”. Outros trabalhos do compositor, mencionados com esclarecimentos
Saborosa leitura que nos mostra os caminhos percorridos pelo jovem importantes por Paula, são os seguintes: CD Melodiário (que tive a
Jaceguay: a passagem por BH; o contato com Widmer; a estada em honra de reger ao lado do compositor), o livro Bandas de Congo do ES
São Paulo; os estudos com Edoardo de Guarnieri; a ida para o Rio e a ópera O reino de duas cabeças, dentre outros.
de Janeiro e o contato com César Guerra-Peixe; o início do estudo
da percussão, por sugestão de Alceu Bocchino, quando então passou Mais uma vez o trabalho de pesquisa da autora Paula
a integrar a Orquestra Sinfônica Nacional; a relação com o Instituto Galama nos impressiona, não só pela quantidade de informações
Villa-Lobos, onde fez parte de um grupo de compositores que buscava valiosas recolhidas, mas por organizar e apresentar um catálogo de
novas linguagens, novas formas de comunicação com o público, que obras, uma discografia e ainda uma análise criteriosa de duas obras,
não as tradicionais. Katemare e Lacrimabilis. Paula aborda os processos composicionais,
ressaltando a utilização de uma linguagem própria pelo compositor,
Por fim, Paula Galama apresenta um esclarecedor de acordo com ela, sintetizadas em obras específicas, marcadas pela
relato de como o fim do Instituto Villa-Lobos ajudou a definir novos contemporaneidade da sua geração. Salienta ainda a história, o texto,
caminhos na vida de Jaceguay Lins, abordando inclusive a prisão do a relação intervalar, o elemento aleatório, a estrutura, a construção
“subversivo” compositor, em 1970, nos anos de chumbo da ditadura, tímbrica, enfim, realiza uma análise completa, destacando sempre a
o que o obrigou a mudar de vida, levando-o até mesmo à criação de inovação na construção.
abelhas e à vida em comunidades alternativas.
A autora conclui que a obra de Jaceguay Lins reflete
Um episódio muito interessante, desvendado pela o trabalho de toda uma geração de compositores que formularam seus
autora, descreve a vinda de Jaceguay para o Espírito Santo, após uma próprios conceitos, ressaltando que ele foi um compositor de forte
apresentação de uma obra sua, numa das edições da Bienal de Música personalidade composicional, formalista, de grande capacidade criativa
Contemporânea, no Rio de Janeiro. Insatisfeito com a performance da e extremamente dinâmico. Vivia no presente – não guardava partituras,
orquestra, Jaceguay tomou a decisão de sair do Rio e acabou vindo papéis, gravações e não falava de si.
parar em terras capixabas! Paula Galama aborda também o período
no qual ele foi regente da Orquestra do Espírito Santo, bem como as Enfim, um belo trabalho que nos oferece uma justa
suas contribuições para o desenvolvimento do grupo. Jaceguay Lins, biografia de um compositor brilhante, inovador, que rompeu barreiras,

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desenvolveu linguagens, novas estruturas e que se doou ao Espírito Introdução
Santo, conquistando respeito e admiração de colegas, de ouvintes e de
alunos – um verdadeiro alquimista dos sons. Parabéns Paula por esse
valioso presente, que já sai do forno como uma das ferramentas mais
importantes para a pesquisa e para a história da música no Brasil. A pesquisa sobre a vida e a obra de Jaceguay Lins
(1947-2004) revelou-se um intrigante quebra-cabeça. A quase total
ausência de fontes e informações detalhadas sobre sua vida e obra
foi, sem dúvida, um grande obstáculo. Embora houve, na segunda
Helder Trefzger metade do século XX, um novo interesse pela pesquisa em música
contemporânea brasileira, popular ou erudita, e esta se tornou objeto
Maestro Titular da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito
de pesquisas intermináveis que geraram estudos sobre outros estudos e
Santo
discussões acirradas sobre determinados temas, este interesse ainda não
é suficiente. O despertar para a música contemporânea que ocorreu
nesta época, em princípio partiu dos próprios compositores e chamou
a atenção de pesquisadores brasileiros. As origens deste interesse e suas
consequências são, em parte, o objetivo deste livro para que através das
relações de contemporaneidade seja possível entender melhor os ideais
que nortearam estes compositores, e entre eles, Jaceguay Lins.

Estes ideais comuns foram o ponto de partida para


uma geração inteira de compositores que começava a ser formada a partir
das experiências de Koellreuter, Widmer, Gamargo Guarnieri, Guerra-
Peixe, Claúdio Santoro e outros compositores. Alunos e ex-alunos de
Koellreuter formaram grupos de incentivo à música contemporânea
brasileira como o Grupo Música Nova e o Grupo Música Viva, entre
outros. Alguns centrados em São Paulo, outros no Rio de Janeiro, mas
em permanente contato entre si. Paralelamente, muitos compositores e
pesquisadores de outras nacionalidades trouxeram relevantes trabalhos e
uma bagagem enorme de informações para o cenário musical brasileiro,
aguçando ainda mais o interesse por novos processos composicionais.
Assim, novos adeptos surgiram na composição e também na pesquisa
sobre música contemporânea. Infelizmente, porém, este interesse está

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longe do ideal. Prova disto é a escassez não só de informações sobre Cerqueira, Jamary de Oliveira, Rufo Herrera, Sérgio Vasconcellos
os compositores brasileiros, especialmente compositores isolados dos Corrêa, Aylton Escobar, David Korenchendler, Jorge Antunes, Vânia
grandes centros, mas também o acesso a sua obra. Dantas Leite, e muitos outros. Muitos tomaram os caminhos da
música popular, outros enveredaram pelo caminho da pesquisa em
Na pesquisa histórica, trabalhos como as publicações campos mais inovadores como a música eletroacústica e eletrônica, mas
de José Maria Neves e Vasco Mariz incentivaram o interesse em todo todos tiveram em comum as características da contemporaneidade que
o Brasil e ainda são uma fonte essencial para o pesquisador em música os envolvia, os avanços de que foram testemunhas e as inovações que
brasileira. Entretanto, apesar de haverem novas discussões em torno colocaram em prática muitas vezes antecipando-se ao futuro. Estes
do que seria uma linguagem musical nacional e de aparecerem novas compositores geraram uma nova expressão dentro da música brasileira,
perspectivas sobre as biografias de personalidades musicais de maior dando a ela uma nova face sob perspectivas muitas vezes pouco
relevância, debates sobre temas mais atuais afastam, de certa forma, aceitas, mas ainda assim inovadoras. Estas inovações de importância
o interesse do pesquisador em fornecer novos dados e obras sobre inquestionável no panorama da música brasileira contemporânea são
compositores brasileiros ainda não revisitados. A maioria das pesquisas ainda desconhecidas em grande parte pela maioria dos intérpretes e do
têm como foco obras e compositores mais conhecidos e mais público em geral, em parte pela questionável qualidade da informação
influentes no cenário musical. Sobre Villa-Lobos, por exemplo, temos e da cultura de massa veiculada em fins do século XX, início do século
mais de 40 biografias em diversas línguas. No entanto, não se pode XXI.
dizer o mesmo de compositores como Camargo Guarnieri, Cláudio
Santoro, Guerra-Peixe e muitos outros. É vergonhoso que, de alguns Entretanto, com esta nova liberdade criadora
compositores da segunda metade do século XX e mesmo da primeira, proposta por essa geração, vieram os novos recursos utilizados pelos
somente são feitas referências a seus nomes. compositores contemporâneos e que tornaram a expressão desta face
ainda mais rica e elaborada e, portanto, mais interessante. Apesar de
Desta forma, a pesquisa séria e aprofundada tem existir uma certa curiosidade neste campo, ainda que tímida, novos
contemplado poucos compositores com uma avaliação mais consistente pesquisadores estão sendo instigados a conhecer a essência da música
de sua vida e sua obra. A geração à qual Jaceguay Lins pertenceu contemporânea brasileira, ou seja, estas inovações propostas por aquele
também sofre grandemente desta carência de informações. Perde grupo de compositores. Sejam estas inovações a grafia arrojada, o
reconhecimento com a pouca divulgação do seu trabalho e, no entanto, atonalismo, o pluritonalismo, o experimentalismo, qualquer nova
esta geração de compositores participou de forma extremamente intensa ferramenta de composição, sua observação e análise nos ajudam a
na solidificação da maioria dos conceitos estabelecidos na música entender o resultado de sua utilização como também sua origem no
e na cultura atual do país, de um modo geral. Estes desbravadores Brasil.
renegaram, absorveram, assimilaram e definiram muitos dos padrões
que conhecemos na música contemporânea brasileira e lutaram por sua Jaceguay Lins fez parte desta geração. Revelou-se
afirmação. Para citar somente alguns: Lindembergue Cardoso, Fernando compositor singular, com uma linguagem musical extremamente atual,

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própria, marcada por uma personalidade moldada por uma vontade aperfeiçoando-se com Guerra-Peixe, Widmer e Esther Scliar.
crescente de fazer música e também por uma época em que drásticas Escreveu um Concerto para percussão e orquestra. (GROVE,
1994)
mudanças aconteciam no país. Sua obra encerra características de um
homem voltado para suas raízes, sem perder de vista o trabalho de É importante ressaltar que Jaceguay Lins possuía
vanguarda. Era um homem estudioso, extremamente culto e com um uma personalidade ímpar. Esta sua reação de desinteresse sobre uma
humor perspicaz. Nos seus trabalhos era formalista, criterioso e, acima informação equivocada a respeito dele mesmo pode causar estranheza ou
de tudo, desprovido de qualquer preconceito. O conjunto de sua obra mesmo desconforto para alguns, mas para aqueles que tiveram contato
abrange desde trilhas sonoras para cinema, obras experimentais, peças com o compositor, nenhuma supresa. Jaceguay Lins ou J. Lins, como
solo, obras para conjuntos de câmera, ópera, dança, obras sinfônicas era conhecido por muitos, especialmente no meio cinematográfico, era
e trabalhos para multivisão. No entanto, um único verbete de um avesso a formalidades e vivia em seu mundo próprio, que considerava
parágrafo na edição concisa do Dicionário Grove em português resume livre de amarras. Durante uma conversa informal esclareceu que
a pesquisa feita sobre Jaceguay Lins, para esta edição da publicação. nunca escreveu um Concerto para percussão e orquestra, afirmou que
A autoria do verbete não é clara e, pela ausência de dados sobre o não sabia como surgiu esta informação e lembrava que não nasceu
compositor, fica evidente que as poucas informações são embasadas em em Recife. Percussionista que era, tinha uma vaga lembrança de,
relatos verbais não provindos de fonte segura. Durante uma entrevista na década de setenta, ter sido perguntado ironicamente sobre quando
concedida em janeiro de 1999 o verbete foi apresentado a Jaceguay comporia um Concerto para percussão.
Lins que negou conhecer quem teria fornecido as informações ao autor
do verbete e afirmou nunca ter sido procurado para esclarecer detalhes Segundo ele mesmo relatou, havia uma certa
sobre dados biográficos ou sobre sua obra. Era evidente que tinha animosidade entre ele e uns poucos colegas contemporâneos, por
prévio conhecimento do verbete e, perguntado sobre o motivo que o isso ironias sobre a que ponto chegaria seu experimentalismo eram
levou a não esclarecer alguns dados, riu, e disse que realmente não se frequentes. Confessou que chegou a pensar sobre o assunto mas
importava. Esta era sua postura. Um desapego que para muitos soava nunca levou à frente este projeto por estar envolvido em situações mais
como desinteresse ou profunda desorganização. Na verdade, nenhuma emergenciais1. Aos que perguntavam sobre a localização desta obra, que
das duas hipóteses. Jaceguay Lins vivia no presente e portanto, para todos os efeitos havia sido composta, divertia-se e respondia apenas
carregava consigo somente aquilo que precisava. Não carecia de muita que não sabia. “Tá por aí”, dizia. Entretanto, sob o ponto de vista
coisa ou de muitas posses. Era um homem, antes de tudo, simples, na da pesquisa história, esta nova informação com certeza era digna de
sua forma de viver. Na realidade, este seu desprendimento lhe dava esclarecimento (até para poupar os percussionistas de uma interminável
uma autonomia que era difícil de compreender. procura) mas quando se cogitou a possibilidade de fornecer mais
detalhes sobre o verbete, dizia veementemente que não queria fazê-lo e
Sobre o verbete, consta da edição de 1994:

Lins, Jaceguay (Recife, 1947) Compositor brasileiro. 1 Devemos ressaltar que este fato, ocorrido em algum momento na
Participou de bandas e corais no interior de seu estado, década de setenta, coincidia com o período de efervescência contra o regime
militar. Para muitos, Jaceguay Lins inclusive, este período foi conturbado. n.a.

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não autorizou o fornecimento das informações ao editor. Desta forma Este experimentalismo é evidente quando analisado o
sua vontade foi respeitada e esperamos que este equívoco seja agora conjunto da obra do compositor. Obras como Uma Refeição para Dois,
esclarecido. Esta sua postura revelava a impressionante capacidade que composta para 34 instrumentos culinários, Noturno, para dois rádios
Jaceguay Lins tinha de se desligar de convenções e fugir aos padrões de pilha e apitos, e Praxis, para instrumentos e público, são claramente
ditos “normais”. Assim, o verbete da edição em português do Dicionário obras experimentais. Não obstante, muitas de suas obras seguem um
Grove de Música ainda traz as mesmas informações. padrão de composição completamente diferente, como Ave, Palavra,
Lacrimabilis, Estrela Sustenida e Cantata Lírica, para citar somente
Em outra fonte de pesquisa, História da Música no algumas.
Brasil, de 1983, Vasco Mariz refere-se a Jaceguay Lins como hesitante
entre a “grafia de obras musicalmente avançadas, mesmo aleatórias e Uma pesquisa um pouco mais reveladora sobre o
o estudo das riquezas do folclore nacional”. (MARIZ, 1983, p.332) compositor foi feita por José Maria Neves (1981, p.167) em seu livro
Entretanto, na edição de 1994 do mesmo livro, o nome do compositor Música Contemporânea Brasileira. Em suas colocações o historiador cita
é apenas mencionado entre outros nomes dignos de nota. Talvez, Jaceguay Lins como ligado às atividades do Grupo Música Nova de
levado pela falta de divulgação do trabalho de Jaceguay Lins nos grandes São Paulo:
centros do país, Vasco Mariz tenha concluído que o compositor estivesse
Certamente que as atividades do “Grupo Música
inativo. Não obstante, sua produção anterior a este período é relevante Nova” de São Paulo não se restringiram àquela cidade; através das
e merece registro. Quanto à hesitação a que se refere Vasco Mariz, esta apresentações organizadas pelo grupo nas Bienais de Arte de São
afirmação era questionada pelo compositor que se considerava acima Paulo, através dos “Festivais de Música Nova” de Santos, através
das tournées de concertos do Madrigal Ars Viva (que, juntamente
de tudo um experimentalista, que obedecia somente a sua vontade de com a Orquestra de Câmara de São Paulo, foi sempre o grande
criar, pensamento característico de sua geração. Sobre isto, Jaceguay divulgador das obras do grupo) e através das atividades pedagógicas
Lins (1999) relatou suas impressões sobre sua geração contemporânea de membros do grupo ou de professores ligados àquele movimento,
a estética defendida pela vanguarda paulista conquistou logo mais
da seguinte forma: adeptos em diversas regiões do país. Mas estes compositores
que seguiram os caminhos abertos pelo “Grupo Música Nova”
[...] você tem, na mesma geração, infinitas caras, limitaram-se a certos aspectos das experiências dos compositores
infinitas facetas sendo que, o que predomina[...], se tivéssemos que paulistas: a aleatoriedade mais ou menos controlada e a assimilação
circunscrever todo esse universo a uma coisa mais representativa, de componentes cênicos, especialmente. Poucos, como J. Lins,
eu diria que é a influència da música atonal e um grande número desenvolvem ainda hoje atividades de tendência neo-dadaísta
de atividades que podemos afirmar que estão no campo do que se desgatou muito nos últimos anos e que parece não mais
experimentalismo. Eram proposições novas, novas formas de tocar, corresponder às necessidades do mundo e dos compositores atuais”.
o uso de instrumentos não convencionais, sem contar uma coisa
que marcou muito – a assimilação de muitos instrumentos da
música popular. Eu acho que essa foi a grande marca dessa geração. Embora Jaceguay Lins tenha tido estreito contato com
Sintetizando, talvez fosse o caso de redizer que esssa geração foi alguns dos compositores do Grupo Músca Nova de São Paulo (Damiano
marcada pelo lado experimental e ela tem uma feição atonal que
era na verdade uma escola mundial. Cozella, Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat e Gilberto Mendes),
não foram encontrados registros de sua participação como compositor

28 29
nas Bienais de Arte de São Paulo ou nos Festivais de Música Nova de de hoje e de fazer parte do Comitê Brasileiro de Música”.
Santos apesar de ter estudado composição com Edoardo de Guarnieri,
em São Paulo. Sua participação sempre foi mais restrita ao Rio de Estas informações são mais acuradas uma vez que
Janeiro2 e mais ligada à Escola de Compositores da Bahia, através de situam o compositor como pertencente ao Grupo de Compositores do
Ernst Widmer. Instituto Villa-Lobos, onde foi professor no início da década de setenta.
Cabe aqui a citação do trecho do livro do professor José Maria Neves
O livro do professor José Maria Neves foi publicado (1981, p. 182) que discorre sobre a obra de Jaceguay Lins:
somente em 1981. Nesta época, Jaceguay Lins estava se mudando para
Jaceguay Lins se distingue de Aylton Escobar por sua
o Espírito Santo e um número considerável de suas obras foi produzida visão francamente neo-dadaísta da atividade musical. Algumas de
no final da década de setenta. Desta forma, fatos e obras mais atuais não suas obras exploram a aleatoriedade de modo exaustivo, transferindo
constam desta publicação. É possível, então, perceber nesta obra uma quase toda a responsabilidade criativa aos intérpretes, usando na
notação gráfica o mínimo necessário para levar à improvisação:
lacuna no estudo da vida e da obra do compositor. Mais à frente, José “Cinergia”[sic] e “Policromia”, para orquestra, ou “Katemare”, para
Maria Neves (1981, p.178) mais corretamente posiciona o compositor soprano, viola e percussão. O compositor teve sorte por ocasião
junto ao Grupo de Compositores do Instituto Villa-Lobos: das apresentações destas obras, contando com intérpretes que bem
compreenderam a importância e a seriedade de sua participação
(destaque-se o trabalho do soprano Sonia Born na versão gravada
Rio de Janeiro fora o centro de atuação de Villa-Lobos de “Katemare”); Logo depois, Lins tenderá para a negação de
e de várias outras grandes personalidades do nacionalismo, como o tudo que possa lembrar o ritual da música tradicional: as salas de
fora de Koellreutter e do “Grupo Música Viva”. Mas não voltariam concertos, os músicos e os instrumentos, a escritura musical. Ele
a existir naquela cidade grupos musicais da importância dos [sic] importante quanto o resultado sonoro, sempre imprevisível.
precedentes, talvez mesmo porque os cariocas (de nascimento ou Pode-se citar como exemplo desta postura obras como o espetáculo
de adoção) são pouco levados ao trabalho grupal. Na verdade, em musical “Uma Refeição para Dois”, para 34 instrumentos culinários
diversas ocasiões viu-se compositores que se uniam em torno de (na primeira versão da obra), “Noturno”, para dois rádios de pilha
ideais comuns, dando origem a núcleos de criação e de difusão, e apitos, “Saxofonia”, para dois saxofones (que buscam todos os
mas nenhum destes núcleos teve vida realmente ativa. É o caso, sons inabituais no instrumento, numa espécie de destruição do
por exemplo, do “Grupo Música Nova” (Edino Krieger, Marlos saxofone), “Praxis”, para instrumentos e público (que é livre de
Nobre, Guerra-Peixe e outros), ou do “Grupo de Compositores participar como bem entenda, com palmas, vaias, apitos, uivos,
do Instituto Villa-Lobos” (Reginaldo Carvalho, Emilio Terraza, cantos, etc.) ou ainda a “Viagem” (na qual o público deve ler em
Marlene Fernandes, J. Lins, J. M. Neves e outros) ou de várias voz alta frases como “Só nos resta constatar que as estrelas estão um
células que precederam a atual “Sociedade Brasileira de Música pouco mais longe”).
Contemporânea”, que começa apenas a firmar-se, apesar de
representar o ponto-de-união natural entre os músicos brasileiros Como se vê, a postura musical de J. Lins tem muitas
relações com os “happenings” organizados pelos discípulos de
2 No arquivo pessoal do compositor foi encontrado um panfleto de Cage, com as experiências de Gilberto Mendes e do “Música Nova”
um concerto de música latino-americana no Museu de Arte Moderna, MAM, de São Paulo nos anos 60. E é interessante saber que a formação
mas infelizmente este panfleto não contém informações como ano e cidade. musical deste compositor deveria encaminhá-lo para direções bem
diferentes das que ele tomou pois que ele foi aluno de Camargo
Considerando que o prédio que abriga o Museu de Arte Moderna de São Pau- Guarnieri, de Widmer, de Esther Scliar e Marlene Fernandes (só
lo tenha sido reformado por Lina Bo Bardi para abrigar o museu somente em esta última tendo relação com a música experimental que seria
1982, assumimos que este concerto tenha sido realizado no MAM do Rio de praticada por J. Lins).
Janeiro. n.a.

30 31
Neste trecho encontramos as únicas referências é heterodoxa. Buscou no folclore elementos indígenas e africanos
literárias sobre obras do compositor colocadas em perspectiva de moldando-os à sua forma de compor, sem os descaracterizar. Foi
acordo com a visão que o escritor tinha do trabalho de Jaceguay Lins, sempre fiel à forma, desvencilhando-se das estruturas rígidas, criando
e considerando as obras citadas. Pela análise do conjunto da obra uma música inovadora e singular, oferecendo resultados sonoros
podemos afirmar que alguns trabalhos de Jaceguay Lins seguiram uma surpreendentes. Explorou novas concepções formais que incorporam
aleatoriedade controlada mas não uma desconstrução, característica do tradições arquetípicas e elementos da modernidade, bem como
neo-dadaísmo, como afirma José Maria Neves. Vera Terra (2000, p. 47) processos inusitados de composição. Visualizando a tendência geral
explica o neo-dadaísmo da seguinte forma: de sua geração, além de configurar suas inquietações de ordem ética,
refletiu essas características em contextos singulares. É importante
A noção de indeterminação pressupõe a superação da
oposição sujeito-objeto. Se a obra não é mais concebida como um que interpretem-se as considerações feitas pelo professor José Maria
objeto no tempo, se ela se torna processo, então não há por que Neves (1981) sob o prisma do contexto histórico, do pensamento de
supor o sujeito que a configura, que lhe dá forma. A criação torna-se sua época e do material analisado por ele. Muitas obras de Jaceguay
não intencional, ela deixa de ser a expressão de idéias, sentimentos,
gostos e hábitos de um sujeito (o artista) e se realiza em um plano Lins, compostas antes de 1980 como Cantata Lírica, Lacrimabilis
alheio a qualquer forma de subjetividade: o das operações de e Ave, Palavra não são mencionadas e fogem grandemente a este
acaso. Não há obra (objeto), não há criador (sujeito). Há mutação: suposto contexto da indeterminação. Para uma afirmação mais precisa
eventos permanentemente cambiantes em um espaço-tempo que
é silêncio. A desconstrução da obra, característica desta atitude, é necessário analisar sua obra como um todo, inclusive sua produção
valeu-lhe a denominação neo-dadaísmo. após 1981, ano que se mudou definitivamente para o Espírito Santo.
Desta forma, considerando a escassez de informações nas fontes citadas
Seguindo esta linha de raciocínio podemos afirmar acima e, a partir delas, a reconstrução da vida e da obra de Jaceguay
que algumas de suas obras como Praxis, para instrumentos e público, Lins seguiu, em sua maioria, seus relatos pessoais que se tornaram o
Viagem, onde existe a participação da audiência, e ainda Uma Refeição ponto de partida para divulgar, embora ainda que parcialmente, o seu
para Dois, seguem a linha do experimentalismo, mas não uma completa trabalho. Desta forma, a maior parte das informações relatadas neste
aleatoriedade ou as operações de acaso. A superação da oposição sujeito- livro foram fornecidas pelo próprio compositor e confirmadas, dentro
objeto não existe uma vez que os intérpretes são parte integrante da das possibilidades.
obra seguindo padrões pré-determinados. Vale ressaltar que Jaceguay
Lins não concordava com este rótulo de neo-dadaísta. Também não se Este livro foi organizado de forma a oferecer, não
considerava minimalista. Simplesmente era avesso a rotulações. Não somente uma visão isolada de um compositor, mas de uma geração.
se considerava desta ou daquela “escola” ou participante de outro Desta forma, no primeiro capítulo são analisadas as origens e as
movimento que não o de ampliar em todos os sentidos a música perspectivas de sua geração contemporânea, uma vez que assumimos
que praticava, embora tenha conhecido e desenvolvido as formas não seja possível dissociar o criador da sua obra. Veremos que a
tradicionais de composição e participado ativamente de discussões em convergência dos caminhos percorridos por seus contemporâneos e a
torno de questões culturais contemporâneas. Afirmava que sua música troca de informações que havia na época foi um fator determinante

32 33
para o panorama da música contemporânea brasileira atual. A seguir,
percorreremos a trajetória pessoal de Jaceguay Lins, traçando sua
biografia dentro das possibilidades oferecidas pelo pouco material
disponível. Discorreremos sobre sua música para cinema no capítulo
três e sua paixão pelo congo e pelo folclore no capítulo seguinte. Seus
processos composicionais vistos através de uma rápida abordagem
de suas obras mais significativas, serão analisados no capítulo cinco,
seguido de seu catálogo de obras em anexo, organizado a partir de
informações cedidas pelo próprio compositor e de seu arquivo pessoal.
Por fim, para que o leitor tenha uma perspectiva geral, anexamos a CAPÍTULO 1
transcrição das entrevistas realizadas para que a interpretação dos fatos
e a compreensão das ideias seja pertinente a cada um.

A geração contemporânea

Onde encontrar as origens deste grupo de compositores que,


no meio de um ambiente hostil a todo experimentalismo, define-se
rapidamente como o mais profundo e corajoso movimento de renovação
da música brasileira?

José Maria Neves,


Música Contemporânea Brasileira

34
Não há como negar que toda arte reflete seu tempo. Mesmo também a sua obra. Abaixo, Gilberto Mendes (1994, p. 221) exprime a
a obra concebida para existir por si só, como o pretenderam alguns com- sua opinião sobre a relação entre compositor e obra:
positores, entre eles John Cage, carrega em si a influência do pensamento
O que me parece relevante numa obra de arte, numa
contemporâneo que a originou. O comportamento, os acontecimentos música, neste caso, é a marca que ela traz, o selo da personalidade
e a previsão estética lhe são implícitos. As origens do pensamento estéti- de quem a compôs. Seu caráter de testemunho, de fala, de um
botar para fora, uma coisa que a pessoa oferece do fundo de si
co estão embasadas nas suas considerações históricas e o estudo da vida mesma, o melhor de si mesma, e isso interessa profundamente,
e da obra de um artista sem inseri-lo em seu panorama contemporâneo venha de quem for, esse recado individual, o homem impresso na
obra.
significa isolá-lo de toda e qualquer ligação com o seu ambiente e
sua época. A temporalidade é uma característica inerente à obra de arte. Portanto, admitir a interferência do momento histórico e na
Sobre este paralelismo entre tempo, sociedade e o processo da criação formação do ser humano, e desta forma, em sua obra torna-se um dos
artística, nos fala Norbert Elias: fatores primordiais para buscar suas origens e compreendê-la. Analisar a
Com freqüência nos deparamos com a idéia de que a obra de um compositor sem identificar as variáveis que o levaram a este
maturação do talento de um “gênio” é um processo autônomo, ou àquele pensamento musical acarretaria em um trabalho incompleto
“interior”, que acontece mais ou menos isolado do destino humano
do indivíduo em questão. Esta idéia está associada a outra noção com perspectivas errôneas ou contraditórias. Embora o trabalho de
comum, a de que a criação de grandes obras de arte é independente Jaceguay Lins seja livre de qualquer imposição escolástica – no que
da existência social de seu criador, de seu desenvolvimento e
experiência como ser humano no meio de outros seres humanos. se refere a uma escola tradicional de composição – a ligação do com-
(...) Esta separação é artificial, enganadora e desnecessária (ELIAS positor com a época de sua formação é extremamente marcante, não
apud GUÉRIOS, 2003, p. 45).
podendo deixar de ser percebida na sua linguagem musical. Suas obras
Este paralelismo existente entre tempo e obra de arte é ainda refletem diretamente o pensamento daquela geração dos anos 60 e 70
mais perceptível na música, considerada por muitos como a forma mais que rompia barreiras e tinha liberdade como sua palavra de ordem. A
pura de expressão artística. O universo dinâmico de um compositor é trajetória seguida por este compositor foi, sem dúvida, conseqüência
expresso de forma bastante clara em sua obra influenciando diretamente do pensamento social, político e artístico de um tempo em que muitos
a história da música, mesmo que isto não seja intencional. Tomando conceitos estavam sendo reformulados. Com base nessa afirmação, para
como exemplo John Cage, parece sensato afirmar que sua obra não teria se entender os processos composicionais utilizados pelo compositor, é
encontrado lugar em outro século, senão no século XX e, opostamen- importante situá-lo no momento histórico a que ele pertence, localizar
te, nenhuma outra época teria fornecido as possibilidades usadas pelo suas experiências e entender a linguagem do seu momento.
compositor para suas criações. Então, podemos também afirmar que
A geração contemporânea de Jaceguay Lins foi parte de
suas influências com certeza teriam sido outras. Assim, o cenário histó-
grandes mudanças ocorridas no Brasil a partir da década de 60.
rico que envolve o compositor o afeta diretamente e consequentemente,

36 37
Mudanças que eram resultantes da luta política contra a ditadura, Para mim, músico americano, o avanço mais notável
do século, no que se refere à música, foi a gravação do som. Até
do engajamento em defesa da liberdade de expressão e da busca pelo há relativamente pouco tempo, a voz de uma pessoa querida ou
respeito aos direitos humanos. Esta época foi cenário das mudanças o som do violino de um Paganini eram experiências que somente
podiam ser evocadas pela lembrança ou pela imaginação. Quando
mais significativas neste país, até então. A rebeldia, o inconformismo Thomas Edison fez o primeiro fonógrafo, pensou que havia criado
e o questionamento se tornaram ponto comum no comportamento de uma máquina de ditar mais eficiente, pelo que seria abençoado
tanto pelos patrões quanto pelas secretárias. Ele chegou a viver o
uma juventude que ansiava por mais liberdade de pensamento e criação suficiente para ver os ouvidos e olhos humanos se ajustarem e até
e pela construção de uma sociedade mais igual. comandarem a experiênciaa da reprodução sintética. O impacto do
fonógrafo sobre a música foi tão fundamental quanto a invenção
das notas escritas e da imprensa.
A música popular brasileira também começava a ganhar
nova cor. Escritores, revolucionários, atores, enfim, a intelectualidade Esse avanço permitiu tornar realidade as músicas concreta,
brasileira fomentava discussões e agia contra restrições de todos eletrônica, conceitual e aleatória. Sem a indústria fonográfica,
os tipos impostas pela ditadura. Não se tolerava mais a censura e o provavelmente não teríamos saído do universo musical tradicional. A
exílio tornou-se, para alguns, caminho sem volta. No entanto, apesar informação vinda de todas as partes do mundo, a curiosidade pelo
das restrições sofridas no Brasil, com a evolução cada vez maior dos novo e a ausência de preconceitos – admitindo-se tudo o que pudesse
meios de comunicação os fatos chegavam quase que simultaneamente ser considerado som, forma de construção e possibilidade de criação
proporcionando, então, a atualização do que acontecia no resto do – possibilitaram a essa geração de compositores a criação de conceitos
mundo. A Guerra do Vietnã era o drama da época e a informação que próprios. Gilberto Mendes (1994, p. 80) define bem o espírito que
começava a vir de todas as partes foi decisiva para o desfecho deste terrível animava a maioria dos seus colegas brasileiros de então:
capítulo da história da humanidade. O alto nível de deserção e a idéia
de não mais se submeter a um ideal que não o seu próprio, fizeram com Como grupo de compositores – ora um, ora outro se
destacando neste ou naquele campo de criação – quisemos mudar
que, de uma maneira rápida e eficaz, o conhecimento em todas as áreas tudo, a exemplo do que tinham feito os poetas concretos da década
fosse expandido através desta comunicação cada vez mais acelerada e anterior. E mudamos tudo. Foi uma revolução total, radicalíssima,
comparável só à incrível revolução solitária de Villa-Lobos no
da chegada de egressos fugindo da Guerra que traziam, entre outras começo do século, com a diferença que a dele era a de um instintivo
coisas, máquinas fotográficas, projetores, gravadores, equipamentos até genial, e a nossa, conseqüência de uma tomada de posição muito
intelectualizada, com base nas teorias da informação, semiótica,
então raros no país. O mundo passou, desta forma, a ser uma aldeia teoria dos afetos ( semântica musical ), das probabilidades, dos
global, não menor nem menos expressivo, mas mais rápido. A indústria quanta, nas relações com as telecomunicações, com o cinema,
desenho industrial, na idéia de metalinguagem, enfim, em tudo
fonográfica foi, por assim dizer, a verdadeira revolução que transformou aquilo de que tratava nosso ‘Manifesto Música Nova’, que se
o pensamento musical deste século. Yehudi Menuhin (1990, p. 219) inspirava no suprematismo, no construtivismo de um Klee,
Mondrian, Joyce, Cummings, Varèse, Webern, Boulez...
traduz esse pensamento em seu livro A Música do Homem.
Mudamos tudo, não tenho a menor dúvida. Alguém

38 39
tinha que fazer isso aí. Aconteceu que fomos nós, simplesmente. mallarmé, eisenstein, joyce, pound, cummings) – colateralmente,
Os escolhidos, porque estávamos ali, na hora certa. Nenhum mérito ubicação de elementos extra-morfológicos, sensíveis: concreção
especial. Cumprimos um desígnio da providência, para salvar a no informal.
música brasileira do atraso, do marasmo em que se encontrava,
depois da recaída violenta do mal nacionalista, em princípios reavaliação dos meios de informação: importância do
dos anos 50. Nossa música clamava por essa mudança, por essa cinema, do desenho industrial, das telecomunicações, da máquina
atualização. como instrumento e como objeto: cibernética (estudo global do
sistema por seu comportamento).
O Manifesto Música Nova a que Gilberto Mendes se refere
comunicação: mister da psico-fisiologia da percepção
acima, foi publicado em março de 1963 assinado por Damiano auxiliada pelas outras ciências, e mais recentemente, pela teoria
Cozella, Rogério Duprat, Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio da informação.

Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira e Alexandre exata colocação do realismo: real = homem global;
Pascoal. O documento assumia o “compromisso total com o mundo alienação está na contradição entre o estágio do homem total e seu
próprio conhecimento do mundo. música não pode abandonar
contemporâneo” (MENDES, 1994, p. 80) e expunha as orientações suas próprias conquistas para se colocar ao nível dessa alienação,
do grupo. Este manifesto impactou fortemente o cenário musical da que deve ser resolvida, mas é um problema psico-sócio-político-
cultural.
época e foi transcrito em revistas brasileiras e do exterior. As reações
a ele provocaram inclusive um grande debate público no Teatro Arena geometria não-euclidiana, mecânica não-newtoniana,
relatividade, teoria dos “quanta”, probabilidade (estocástica),
de São Paulo. (NEVES, 1981, p. 163) O manifesto foi publicado na lógica polivalente, cibernética: aspectos de uma nova realidade.
revista Invenção nº 3 em junho de 1963. Trancrevemos aqui o texto
original: levantamento do passado musical à base dos novos
conhecimentos do homem (topologia, estatística, computadores
e todas as ciências adequadas), e naquilo que êsse passado possa ter
música nova:
apresentado de contribuição aos atuais problemas.
compromisso total com o mundo contemporâneo:
como conseqüência do nôvo conceito de execução-
criação coletiva, resultado de uma programação (o projeto, ou
desenvolvimento interno da linguagem musical plano escrito): transformação das relações na prática musical pela
(impressionismo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, anulação dos resíduos românticos nas atribuições individuais e
serialismo, processos fono-mecânicos e eletroacústicos em geral), nas formas exteriores da criação, que se cristalizaram numa visão
com a contribuição de debussy, ravel, stravinsky, choenberg, idealista e superada do mundo e do homem (elementos extra-
webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhausen. musicais: “sedução” dos regentes, solistas e compositores, suas
carreiras e seus públicos – o mito da personalidade, enfim ). redução
atual etapa das artes: concretismo: 1) como posição a esquemas racionais – logo, técnicos – de tôda comunicação entre
generalizada frente ao idealismo; 2) como processo criativo músicos. música: arte coletiva por excelência, já na produção, já
partindo de dados concretos; 3) como superação da antiga oposição no consumo.
matéria-forma; 4) como resultado de, pelo menos, 60 anos de
trabalhos legados ao construtivismo, (klee, kandinsky, mondrian, educação musical: colocação do estudante no atual
van doesburg, suprematismo e construtivismo, max bill, estágio da linguagem musical; liquidação dos processos prelecionais

40 41
e levantamento dos métodos científicos da pedagogia e da didática. maiacóvski: sem forma revolucionária não há arte
educação não como transmissão de conhecimentos mas como revolucionária.
integração na pesquisa.
são paulo, março 1963
superação definitiva da freqüência (altura das notas)
como único elemento importante do som. som: fenômeno damiano cozzella
auditivo complexo em que estão comprometidos a natureza
e o homem. música nova: procura de uma linguagem direta, rogério duprat
utilizando os vários aspectos da realidade (física, fisiológica,
psicológica, social, política, cultural) em que a máquina está
régis duprat
incluída. extensão ao mundo objetivo do processo criativo
(indeterminação, inclusão de elementos “alea”, acaso controlado).
reformulação da questão estrutural: ao edifício lógico-dedutivo da sandino hohagen
organização tradicional (micro-estrutura: célula, motivos, frase,
semi-período, período, tema; macro-estrutura: danças diversas, júlio medaglia
rondó, variações, invenção, suite, sonata, sinfonia, divertimento
etc... os chamados “estilos” fugado, contrapontístico, harmônico, gilberto mendes
assim como os conceitos e as regras que envolvem: cadência,
modulação, encadeamento, elipses, acentuação, rima, métricas, willy correia de oliveira
simetrias diversas, fraseio, desenvolvimento, dinâmicas, durações,
timbre etc.) deve-se substituir uma posição analógico-sintética alexandre pascoal
refletindo a nova visão dialética do homem e do mundo: construção
concebida dinâmicamente integrando o processo criativo (vide Manifesto Música Nova (MENDES, 1994, p.73- 74)1.
conceito de isomorfismo, in “plano pilôto para poesia concreta”,
grupo noigandres).
É neste cenário, em meio a toda essa agitação, que
elaboração de uma “teoria dos afetos” (semântica encontramos Jaceguay Lins iniciando o desenvolvendo seu trabalho,
musical” em face das novas condições do binômio criação-
consumo (música no rádio, na televisão, no teatro literário, no engajado politicamente e participando das mudanças culturais que
cinema, no “jingle” de propaganda, no “stand” de feira, no estéreo aconteciam no país influenciado pelo sentimento de renovação da
doméstico, na vida cotidiana do homem), tendo em vista um
equilíbrio informação semântica – informação estética. ação época. Mas a preocupação com o novo, com novas posturas estéticas
sôbre o real como “bloco”: por uma arte participante. já começara com a chegada de um jovem compositor alemão ao Brasil,
cultura brasileira: tradição de atualização em 1937. Hans-Joachim Koellreutter radicou-se no Brasil trazendo
internacionalista (p. ex., atual estado das artes plásticas, da uma bagagem expressiva com relação à música contemporânea e
arquitetura, da poesia), apesar do subdesenvolvimento econômico,
estrutura agrária retrógrada e condição de subordinação semi- incluída nela, o dodecafonismo – descendência da Escola de Viena.
colonial. participar significa libertar a cultura dêsses entraves As inovações propostas por Koellreutter eram abertas, abrangentes e
(infra-estruturais) e das super-estruturas ideológico-culturais
que cristalizaram um passado cultural imediato alheio à realidade
global (logo, provinciano) e insensível ao domínio da natureza
atingido pelo homem. 1 O Manifesto Música Nova acima foi transcrito na íntegra sem alte-
rações de qualquer espécie em seu texto original. n..a.

42 43
acompanhavam a evolução do que ocorria nos centros culturais do No entanto, a movimentação cultural que teve espaço na
mundo inteiro e como resultado atraíram Santoro, Guerra-Peixe, Semana de Arte Moderna – que originou uma grande busca pelo
Esther Scliar, Edino Krieger e muitos outros, sendo o grupo Música material folclórico e que desenvolveu o desejo pela pesquisa científica
Viva o melhor reflexo deste movimento. Começava aí uma renovação – essa movimentação encontrará na geração dos anos 60/70, o terreno
do pensamento musical que antes só tivera paralelo em Villa-Lobos, propício para desenvolver-se até o último estímulo. Com a indústria
quem definiu o nacionalismo brasileiro de sua época usando a sua fonográfica a música ganhará novas fronteiras e a procura por novos
genialidade no emprego dos temas, no desenvolvimento da forma e na elementos será o ingrediente fundamental dessa geração que foi
linguagem harmônica. responsável pela ruptura de todos os vínculos possíveis conhecidos até
então.
Cabe aqui um parênteses para entender o começo destes
questionamentos. Todo esse processo de evolução da nossa música tem Esta geração tem origem principalmente em Koellreutter
um capítulo importante na Semana de Arte Moderna de 1922. Villa- que, embora firme na sua linguagem dodecafonista, estimulou os
Lobos, o compositor escolhido pelos organizadores para representar jovens compositores brasileiros a identificarem um caminho próprio de
a música brasileira, tem em Mário de Andrade ardoroso defensor, composição. José Maria Neves (1981, p. 85) descreve a atitude didática
embora suas obras apresentadas durante a Semana não tenham ainda a de Koellreutter da seguinte forma:
característica do pensamento modernista da época:
[...]em sua atividade pedagógica, Koellreutter deveria
dar-lhes os elementos técnicos indispensáveis ao pensamento de
A Semana não deve ser entendida como a amostra por
uma nova música, dentro de processo de ensino que não negava
excelência do modernismo de Villa-Lobos mas, coroando uma fase
as normas consagradas (seus alunos lembram-se bem do rigor com
de produções que inclui obras de 1914 a 21, apresenta as matrizes
que era estudado o contraponto tonal ), mas que se fazia de modo
de sua evolução imediatamente posterior, quando os traços mais
a não condicionar os alunos, deixando sempre abertas as portas
particulares efetivamente se aprofundam, e o compositor deixa em
da experiência criativa livre. E, ao lado do trabalho propriamente
definitivo a órbita debussysta para intensificar a liberação sonora
escolar, as discussões sobre os problemas estéticos davam nova
que suas obras faziam esperar. (WISNIK, 1977, p.163)
dimensão ao seu curso de composição, possibilitando a seus alunos
uma visão mais ampla do fenômeno musical”.
As discussões durante e após a Semana de 22 talvez tenham
obtido um resultado mais satisfatório que o próprio evento. Os debates Com Koellreutter a música ganharia fôlego novo, impulso,
em torno do que seria ou não brasileiro, nacional, genuíno (NEVES, libertação do exclusivismo nacionalista e, como já dissemos, entraria
1981) se acirraram e Mário de Andrade mais uma vez se destaca por em cena o “Grupo Música Viva” do qual também fizeram parte Geni
fomentar os estudos sobre a questão do uso de elementos nacionais, Marcondes e Eunice Katunda. Depois viriam Esther Scliar e Edino
atualização da intelectualidade brasileira, influenciando toda uma Krieger, mas quem primeiro aderiu ao grupo foi Cláudio Santoro,
geração e outras posteriores. seguido alguns anos depois por Guerra-Peixe. O “Grupo Música Viva”

44 45
fornecia a esses compositores o estímulo necessário ao pensamento em transvanguarda e assim vai, acabando num beco sem saída, por causa
do ortodoxismo. Eu sempre fui heterodoxo [...]. (NOGUEIRA,
todas as frentes que englobavam a cultura contemporânea, assim como 1997, p.35)
a possibilidade de verem o resultado de suas composições. No entanto,
Guerra-Peixe, que seria considerado a principal figura do grupo, Widmer formaria o Grupo de Compositores da Bahia,2 que
abandonará e negará o dodecafonismo e se voltará completamente para teria uma atividade ampliada no Brasil inteiro pela experiência adquirida
o nacionalismo que vigorava nos anos 50. por alguns de seus participantes que deixaram a Bahia e partiram para
outros centros, levando consigo a bagagem de uma tradição de liberdade
Esse nacionalismo, quase generalizado na época, não minaria composicional implantada por Koellreutter, assumida e ampliada por
o propósito de contínua busca e desenvolvimento do processo musical Widmer e decididamente aceita por cada um deles e refletida onde
contemporâneo. Esther Scliar também representará, a seu modo, um quer que estivessem. A experiência do trabalho em conjunto, com uma
papel fundamental na formação musical e no pensamento de toda postura determinada e claramente traduzida em seus manifestos, como
uma geração. A inovação estava sempre presente, correspondendo a estabelecida pelos grupos acima, não se tornou mais uma constante,
às expectativas dos jovens compositores rumo ao inusitado. O Brasil talvez em conseqüência do fator geracional que havia na época. Esse
aprendera com Koellreutter a voltar seus olhos para o mundo, a fator colaborou para que, apesar do contato estabelecido com Widmer,
ampliar seus horizontes e, mais uma vez, esse compositor teria um Jaceguay Lins tivesse seu maior centro de atuação, até o final da década
papel crucial trazendo da Suíça Ernst Widmer, em sintonia com o de 70, no Rio de Janeiro, embora sua ligação com alguns compositores
processo contínuo do pensamento musical no século XX. Widmer do Grupo Música Nova e com o Grupo de Compositores da Bahia não
viria para o Brasil – mais especificamente para Salvador – em 1956. tivesse sido desfeita. Em uma de suas entrevistas, Jaceguay Lins (1999)
Sua chegada, para reforçar o núcleo de ensino musical da Bahia, fala sobre sua ligação com Widmer:
partilhando o mesmo ideal de renovação do pensamento musical de
Koellreutter, acentuou ainda mais a transformação que viria com os A minha identificação maior com certeza, se deu com
o grupo de compositores da Bahia. Até porque, desde minha
alunos por ele estimulados. adolescência eu já tinha o Widmer como mestre. Sem conhecer
pessoalmente Ernst Widmer, eu não escrevia uma nota que não
mandasse pra ele, e ele, muito criteriosamente, mesmo diante
Ernst Widmer não classificava a si próprio como um
compositor preso a tendências e estilos:
2 Ernst Widmer, Lindenbergue (sic) Cardoso, Milton Gomes,
Eu não ando correndo atrás da originalidade, mas Jamary de Oliveira, Carlos Rodrigues Carvalho, Antonio José Santana
quando digo uma coisa, ela vem sempre como uma coisa nova. Martins (Tonzé), Fernando Cerqueira, Nicolau Kokron, Carmen Mettig
Minha música é uma música nova menos pretensiosa, menos Rocha e Rinaldo Rossi, vindo juntar-se a estes, como convidados, Walter
ortodoxa. A vanguarda tem que ser ortodoxa, porque tem que Smetack, Rufo Herrera, Alda Oliveira, Lucemar de Alcântara Ferreira,
ser nova; não pode usar maneiras que os antigos usavam, porque Ilza Costa, Marco Antonio Guimarães e Agnaldo Ribeiro dos Santos (NE-
deixaria de ser vanguarda. É por isso que tiveram que inventar a VES, 1981, p. 169).

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de uma obra de estudante, portanto insipiente ainda, analisava, no Brasil, podemos desenhar um panomara do Brasil dos anos 60/70,
abordava por escrito isso ou aquilo.
embora que parcial. Discorrer acerca de todos estes movimentos que
foram significativos na história da música contemporânea brasileira
Havia agora, uma interação somada a uma busca individual
não é possível e não é o objetivo deste livro. A trajetória analisada,
envolvida por questões maiores e um só conceito: conseguir determinar
no entanto, seguiu os caminhos necessários para a contextualização do
a sua própria linguagem musical conquistada através de experiências
compositor, tomando como base sua geração e os pilares que levaram à
mútuas, influências sociais e uma noção muito clara de atuação no
sua formação. A localização de seus mestres, a identificação do momento
momento contemporâneo. A centralização dos centros de pesquisa se
contemporâneo de sua formação como compositor, bem como a
desfazia e essa despolarização era favorecida por diversos fatores, que
identificação de alguns de seus companheiros ou figuras responsáveis
incluíam a realização dos Festivais de Música da Guanabara, as Bienais
de algum modo para sua definição como compositor foram, de uma
de Música Contemporânea e a troca de informações entre São Paulo,
maneira geral, abordadas.
Rio de Janeiro – com o Instituto Villa-Lobos – e Salvador. As
décadas de 60/70 foram , sem dúvida, o momento da formação e da
atuação da geração desses compositores: uma geração especial dentro
do contexto da música brasileira. Uma geração aberta ao mundo,
colhendo e oferecendo informação. O Brasil nunca mais seria o mesmo
em todos os sentidos e esses compositores souberam assimilar as
transformações que ocorreram, buscando e moldando as informações
a cada estilo próprio, refletindo o pensamento da época mais fértil
por que passamos. Essa geração, pela primeira vez caracteriza, talvez,
a formação de uma só escola brasileira de composição, voltada para
os mesmos ideais de contemporaneidade, sem, contudo, tolher a
individualidade de cada compositor.

Foram muitos os movimentos significativos e geradores de


novas idéias na história da música contemporânea brasileira ocorridos
desde a Semana de 22. A partir da iniciativa de Camargo Guarnieri,
com sua “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil” defendendo
uma escola de cunho altamente nacionalista, passando por suas
discussões com Koellreutter, e terminando com o trabalho de Widmer

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CAPÍTULO 2

Ensaio biográfico

Para um artista só há uma coisa: o sacrifício de tudo à


arte. Precisa encarar a vida como um meio, nada mais do que isso, e a
primeira pessoa que deve esquecer é ele mesmo. ... A terra tem limites,
mas a estupidez do povo é ilimitada.

Flaubert,
A necessidade da Arte
Jaceguay Monteiro Lins nasceu no dia 21 de abril de 1947, de manhã era pra pegar a informação sonora. Ele dava isso de graça
pra cidade. Isso foi muito importante, acho que do ponto de visto
exatamente às seis horas da manhã. Filho de um padeiro, nasceu e do meu despertar para a música.
viveu na Rua do Comércio nº 30, em Canhotinho, Pernambuco,
cidade limítrofe entre o agreste e a zona da mata, na região do Este altruísmo do Sr. Monteiro em presentear a cidade
semiárido brasileiro, distante aproximadamente 200 km de Recife. oferecendo seu próprio acervo e ainda promover a divulgação da música
Seu sobrenome deveria ser Lins Monteiro mas por um erro, o qual ele gravada na época espontâneamente, certamente influenciou o menino
atribuía ao escrivão, foi registrado Monteiro Lins. Jaceguay e, embora estes relatos sejam de sua primeira infância, uma vez
que aos onze anos Jaceguay Lins deixou Pernambuco, esta experiência
Segundo se lembrava, a informação musical que recebia ficou vividamente marcada em sua memória, quase fotográfica. Se
durante sua infância em Canhotinho vinha de um único alto-falante lembrava também da Festa de São Sebastião, que acontece até hoje
da cidade, além das belas vozes da família de sua mãe. Este auto-falante em Canhotinho entre 24 de janeiro e 2 de fevereiro. A Festa de São
pertencia ao Sr. Monteiro, proprietário de uma das duas farmácias Sebastião trazia para a cidade, já naquela época, muitas bandas da
existentes em Canhotinho. Sr. Monteiro prestava um serviço região. A população reunia-se na praça para assistir às apresentações
voluntário à cidade disponibilizando seu acervo e seu equipamento, que aconteciam pelo menos uma vez por noite. Numa dessas noites,
proporcionando à comunidade acesso à música e abrindo seu serviço aos seis anos, se perdeu do pai tentando encontrar o som dos clarinetes
para qualquer um que porventura desejasse ofecerer uma música a que ouvia. Neste dia, segundo o compositor, se entregou à música:
alguém. Todas as manhãs, segundo Jaceguay Lins (1999), Sr. Monteiro
ia à estação de trem da cidade receber os discos que comprava do Um belo dia eu me perco e tem uma banda maravilhosa
tocando ... aí, eu subi no palanque e fiquei sentado, escutando os
Recife: clarinetes. Ali ficou decidido para sempre! Amém! Louvado seja
Deus! Achei minha salvação! A música! A minha salvação! (LINS,
Havia duas farmácias. Era a do Monteiro “preto” e a 1999)
do Monteiro “branco”. [...] Monteiro “preto” tinha um alto-
falante que ele botava na única rua comercial, tanto que eu nasci
na Rua do Comércio n.º 30, num sobrado em cima da padaria do Além destas primeiras impressões musicais, havia na época,
meu pai, de modo que ele botava a comunicação da época. Era o canto orfeônico, então instituído por Villa-Lobos nas escolas, que
um alto-falante, lá da sua farmácia, e ele dividia em duas sessões:
aos domingos, ele escolhia a música que ele queria colocar. Não também foi parte de seu estímulo, apesar de não considerar interessante.
interessava pra ninguém! A partir das seis horas ele abria o serviço Aos onze anos, mesmo tocando uma só posição no violão, decidiu ser
dele pra quem quisesse oferecer uma música pras pessoas! Imagine
você o que não deve ter sido esses discos! Eu não cheguei a ver seresteiro, juntando-se aos boêmios para fazer serenatas pela cidade.
nenhum! Eu era criança! Mas eu ouvia tudo e me encantava no Por influência direta de sua mãe, que o presenteou com um clarinete
domingo de manhã porque havia uma riqueza enorme! Tudo
quanto era música gravada da época, ele tinha! Numa cidadezinha Selmer, começou a estudar este instrumento, que se tornou uma de
pequena, um homem que se acostumou a ir todo dia receber o trem suas grandes paixões, participando inclusive de algumas bandas do
– a nossa cidade tinha um trem de ferro vindo do Recife – todo dia

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interior. É difícil imaginar toda esta atividade para uma criança de estudante mesmo. E submeti por carta ao Widmer. Ele, muito
gentil, fez dois comentários: “muito interessante a mudança
onze anos mas Jaceguay Lins era um menino precoce e teve sua do sustenido tal para o bequadro tal. Você precisa estudar mais
inteligência aguçada com o tempo. Nesta época, com somente onze contraponto. Um abraço, estou à sua disposição. Ernst Widmer”.
A essa altura, eu já conhecia, nossa, o que havia de música gravada
anos, mudou-se para a casa de seus avós, em Belo Horizonte, onde no nosso século, eu já conhecia através do Camel. Esse cara pra
residiu até os quatorze. Chegando lá procurou nos classificados uma mim, foi um pilar na minha construção pessoal, melhor dizendo,
na construção do meu aprendizado. (LINS, 1999)
escola de música. Perguntaram a ele que instrumento ele gostaria de
estudar: piano ou violino? Respondeu que queria estudar piano para
Segundo o compositor, sua amizade com Camel Abras
tocar de mãos juntas e aprender a fazer música. Não é claro em seus
perdurou durante muito tempo e foi também por sugestão de
depoimentos se isto realmente se concretizou no estudo sistemático
Camel Abras que Jaceguay Lins seguiu para São Paulo, onde estudou
do instrumento mas é um fato que Jaceguay Lins conhecia bem
contraponto com Edoardo de Guarnieri. Este, conseguiu-lhe um
o piano, apesar de não dominá-lo como instrumentista. Segundo
emprego em uma sapataria, permitindo que seu novo aluno de
Jaceguay Lins, durante os três anos que viveu em Belo Horizonte,
contraponto permanecesse em São Paulo por um ano.1 Com Edoardo
conheceu o trabalho de Carlos Alberto Pinto Fonseca, então regente
de Guarnieri, Jaceguay Lins estudou tão obssessivamente que chegou a
do Madrigal Ars Nova, Berenice Meneghalli, Rufo Herrera, e a figura
desenvolver uma memória fotográfica. Aos quinze anos, tendo residido
que considerava mais importante no início de sua formação musical:
um ano em São Paulo, decidiu partir para o Rio de Janeiro e estudar
Camel Abras, ex-aluno de Koellreutter. Jaceguay Lins, até então um
com Guerra-Peixe. Apesar dos esforços de Edoardo de Guarnieri para
estudante de música aos moldes “tradicionais”, começou a abrir
que fosse estudar com Cláudio Santoro, sua decisão já havia sido
a mente para outras formas de manifestação musical apresentadas
tomada. “Você tem que estudar é com Santoro’, dizia Edoardo. Eu
por seu amigo. Em Belo Horizonte estudou harmonia e contraponto
dizia: ‘Não! Eu gosto é do Guerra’. Ele ainda brincou e disse: ‘Você
com Geraldo Figueiredo, que neste período era regente da Camerata
é burro! Vai estudar, depois você me fala!” (LINS apud GALAMA,
Belorizontina, tornando-se inclusive, regente assistente.
1999)

Camel Abras foi o intermediador do primeiro contato


Jaceguay Lins lembrava-se de ter chegado ao Rio com
entre Jaceguay Lins e Ernst Widmer e propiciou-lhe o contato com
dezessete anos, entretanto, não é um fato claro quando esta mudança
as gravações mais importantes da época e, durante o tempo que
se deu efetivamente. Não foram encontrados registros das suas viagens
permaneceu em Belo Horizonte, conheceu através dele o que havia de
de forma que podemos apenas confiar nos seus relatos verbais quanto
melhor em gravações:

E esse tal rapaz, Camel Abras, é a pessoa que me fez a 1 Infelizmente nenhuma destas informações relacionadas a Camel
ligação com o Widmer. Eu escrevi uma peça, uma peça para coro Abras pode ser confirmada, uma vez que não foi possível encontrar a sua loca-
a três vozes. Não considero nenhuma obra. É um trabalho de lização. n.a.

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a esta questão. No entanto, é mais provável que tenha permanecido de posição idêntica à sua. Em razão mesmo desta orientação, não
se deu no curso de Guerra-Peixe a formação de uma “escola”,
em São Paulo até os dezessete anos até mudar-se definitivamente para o como no caso de Camargo Guarnieri (o que, para nós, é um dado
Rio. Outra hipótese é que, aos 14 anos tenha experimentado uma vida positivo). Ao contrário, diversos de seus alunos orientaram-se para
a experimentação musical e especialmente para a música eletro-
itinerante entre São Paulo e Rio de Janeiro. Apesar de ter estudado com acústica.
Ernst Widmer, que residia em Salvador, o contato entre os dois era feito
por correspondência. Entretanto, nenhuma destas correspondências Neste comentário do professor José Maria Neves a referência
sobreviveu. é claramente voltada para as turmas de composição nos Seminários
de Música Pró Arte Rio de Janeiro. Não existem, todavia, registros
No Rio foi muito bem recebido por Guerra-Peixe, também da participação de Jaceguay Lins nestas turmas de composição.
ex-aluno de Koellreutter, quem Jaceguay Lins escolheu para orientá- Entretanto, era evidente nas entrevistas com o compositor, a sua ligação
lo. Estabeleceu-se uma amizade entre os dois e as aulas passaram da com Guerra-Peixe como aluno e professor e mais tarde integrantes da
formalidade das salas de aulas para discussões durante um chopp, após mesma orquestra. Guerra-Peixe era violinista da Orquestra Sinfônica
os concertos da Orquestra Sinfônica Nacional. A escolha de Guerra- Nacional e, por sua intermediação, Jaceguay Lins conheceu Alceo
Peixe se deu em parte por uma admiração por sua obra e também Bocchino, então regente daquela orquestra, que sugeriu ao novo aluno
por este ser, naquela época, reconhecidamente um dos professores de composição de Guerra-Peixe o estudo da percussão. Essa sugestão
de composição que mais se destacavam. Sua abordagem livre de culminaria com o trabalho na orquestra, possibilitando ao jovem
formalidades certamente levou Jaceguay Lins a se desvencilhar ainda estudante, então com 22 anos, viver no Rio de Janeiro:
mais das amarrras escolásticas. Segundo José Maria Neves (1981, p.
140), Guerra- Peixe não determinava nenhum caminho a ser seguido Então o maestro Alceo Bocchino, regente na época da
Orquestra Sinfônica Nacional, sugeriu que eu começasse a estudar
por seus alunos, deixando-os livres às suas escolhas: percussão. Porque era uma coisa carente. Enfim, isso me possibilitou
poder ficar no Rio. Porque, isso tudo, eu era muito jovem! Acabei
Ao lado da atividade composicional de Guerra-Peixe, ficando amigo do Guerra e a gente, com essa coincidência, passou a
não se pode esquecer seu enorme trabalho na orientação de tocar na mesma orquestra. Ele era violinista e eu tocava percussão.
jovens compositores, graças sobretudo à classe de composição Depois da orquestra a gente saía pra tomar um chopp e comentar
que manteve nos Seminários de Música Pró Arte Rio de Janeiro, aquela obra que a gente havia tocado. Isso foi de um aprendizado
onde diversos jovens compositores receberam os ensinamentos muito grande para mim, muito grande! Nada de teoria! Nada de
do Mestre. A organização de seu curso de composição certamente referência bibliográfica! (LINS, 1999)
muito influenciou sobre o desenvolvimento de seus discípulos:
o clima informal, a possibilidade de discutir abertamente sobre
todos os assuntos relacionados com a música e com a composição Além de tocar percussão na Orquestra Sinfônica Nacional
e, sobretudo, a possibilidade de ouvir periodicamente as obras por dois anos (1969-1970), Jaceguay Lins participava eventualmente
compostas pelos alunos, nos concertos realizados pelo professor.
Evidentemente Guerra-Peixe orientava seus alunos para os da Orquestra de Câmera da Rádio MEC, que sempre trazia regentes
caminhos do nacionalismo, sem entretanto, forçá-los a uma tomada convidados, e também participou da Orquestra Juvenil do Teatro

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Municipal do Rio de Janeiro, onde aprendeu a tocar tímpanos. de professores trazidas pelo Reginaldo. Iberê Gomes Grosso foi o
mais acessível. José Vieira Brandão, razoavelmente, também o foi.
Jaceguay Lins considerava sua vivência no meio orquestral de extrema Maria Sylvia Pinto olhou-me de cara feia durante um ano. Em 1968,
importância em sua formação como compositor. “Uma coisa era quando ela veio a conhecer minhas antigas canções para Soprano e
Piano, as incluiu em seu repertório e nos tornamos ótimos amigos.
a escola, outra coisa era a prática de orquestra, né?” (LINS apud Mas a amizade não mudou seu conceito sobre “aqueles barulhos
GALAMA, 1999). horríveis que eu fazia lá em cima com os gravadores”... Em 1968 foi
criado o Grupo Música Nova do Rio de Janeiro, deste grupo faziam
parte: eu, Edino Krieger, Esther Scliar, Reginaldo Carvalho,
Durante sua vida no Rio de Janeiro, Jaceguay Lins começou Guerra Peixe, Ayrton Barbosa e Marlos Nobre... Em novembro
a estabelecer contato com os professores do Instituto Villa-Lobos, nesta de 1968 foi decretado o AI-5... Um dia Reginaldo me chamou
em sua sala e disse que tinha recebido uma carta, segundo ele
época dirigido por Reginaldo de Carvalho que, através de sua proposta de um “remetente secreto”, dizendo que quatro dos professores do
para o Instituto, atraiu para lá todos os compositores interessados na IVL não poderiam continuar ali trabalhando. O Reginaldo abriu
a tal carta... para que eu pudesse ler... Lá estavam os nomes do
pesquisa em música. Com a mudança do Conservatório Nacional de Gouveia, da Esther Scliar, do Guerra Peixe e o meu. Na semana
Canto Orfeônico para Instituto Villa-Lobos, havia uma proposta de seguinte recebi carta do maestro Alberto Ginastera, de Buenos
Aires, comunicando ter eu ganho a bolsa-de-estudos, por dois anos,
reformulação de sua estrutura, enfatizando a pesquisa e estimulando a para o Instituto Torcuato Di Tella... viajei para Buenos Aires. Só
música experimental. Sob a direção de Reginaldo de Carvalho o Instituto voltei ao Brasil cinco anos depois. Antes de partir, apresentei a
Marlene Migliari Fernandes ao Reginaldo Carvalho, dizendo que
Villa-Lobos adquiriu ares de modernidade e evidenciou-se como o ela era a pessoa indicada para fazer crescer a pequena semente que
mais importante centro para a pesquisa em música experimental. Jorge eu havia plantado. Marlene acabava de chegar de Buenos Aires,
após a bolsa de estudos no Instituto Torcuato Di Tella. Trocávamos,
Antunes, professor do Instituto de 1967 a 1969, deu seu depoimento eu e ela, de lugar. (ANTUNES apud VENTURA, 2005)
à revista ENSAIO sobre sua experiência no Instituto Villa-Lobos:
Nesta época, não havia a figura do professor de educação
No final de 1966... Reginaldo acabava de ser indicado
para dirigir o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. musical, uma abordagem relativamente nova na pesquisa musical, no
Começaria sua gestão revolucionando tudo: o Conservatório iria Brasil. O Instituto Villa-Lobos buscava uma nova pedagogia. Durante
ser transformado em Instituto Villa-Lobos, com um Centro de
Pesquisas do Som e da Imagem... Convidou-me para ministrar a direção de Reginaldo de Carvalho, foram abertas análises de novas
um curso de Música Eletroacústica no novo Instituto. Assim, no propostas de pesquisa e de ensino onde Jaceguay Lins foi então aceito
final de 1966 transferi meu laboratório para uma saleta do IVL,
e em março de 1967 comecei a ministrar o Curso de Introdução como professor. Em sua proposta, pretendia que o ensino musical
à Música Eletrônica, Concreta e Magnetofônica ... Com o partisse da prática e não da escrita, uma vertente em sintonia com a
convite do Reginaldo, transferi todo o meu laboratório amador
de música eletrônica para o IVL. Instalei o Centro de Pesquisas nova estrutura do Instituto Villa-Lobos. É também no Instituto que a
Cromo-Musicais numa saleta .... O acesso a esta saleta era feito pesquisa eletro-acústica se expandirá. Sobre a influência de Reginaldo
por uma escada íngreme. Mas eu só podia trabalhar no laboratório
quando não havia aula na sala de baixo, pois não havia tratamento de Carvalho no Instituto Villa-Lobos, José Maria Neves (1981, p. 190)
acústico. O choque de gerações aconteceu. Antigos professores do diz:
Conservatório tiveram que começar a conviver com as novas gerações

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O movimento eletro-acústico brasileiro começará a criado pela figura sonhadora de Reginaldo Carvalho. Foi ali onde
se desenvolver depois que Reginaldo [de] Carvalho foi nomeado o Jorge Antunes fez o primeiro curso de música eletrônica do país,
diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico do Rio do qual inclusive eu me orgulho de ter sido aluno. Foi ali que
de Janeiro (escola fundada por Villa-Lobos, especialmente para a gente conheceu as experiências de um Conrado Silva. A gente
preparar professores para o ensino da educação musical) e que, tinha um lado também de uma visão acadêmica, representado no
transformando toda a sua estrutura e mudando-lhe o nome para caso por Emílio Terraza, um compositor muito cioso da forma, da
Instituto Villa-Lobos, fez daquela escola um centro de estudos e estrutura, etc. Pra você ter ideia, havia uma matéria comum que
de divulgação da música experimental. Durante o período em era obrigatória a todos os alunos do Instituto, que era a prática
que Reginaldo [de] Carvalho esteve à frente do Instituto Villa- coral. Por acaso eu era o regente do coral do Instituto e a gente às
Lobos, lá se reuniram todos os jovens compositores interessados vezes estava ensaiando com mil e duzentas pessoas, fazendo música
pela pesquisa musical, não amadurecendo o trabalho por falta de avançada com essa quantidade de gente. E é claro, isso nos obrigou
recursos financeiros para a montagem de verdadeiros estúdios de a criar novas formas de escrita que pudessem ser inteligíveis à
pesquisa. O espírito que pairava sobre aquele Instituto era, massa humana e não atributo de meia dúzia de intelectuais. Tudo
entretanto, o espírito da pesquisa, estando todos convencidos, isso evidentemente vai gerando uma nova linguagem. E nisso o
alunos e professores, da importância de viver intensamente a papel do Instituto Villa-Lobos foi importantíssimo. Eu acho que
música contemporânea. Um dos “slogans” mais repetidos – e que o Instituto Villa-Lobos representou para o Rio de Janeiro o que
dá um bom retrato do pensamento de Reginaldo [de] Carvalho a Escola de Música da Bahia representou para Salvador. (LINS,
– era: “Conheça hoje a linguagem musical de seu tempo, para 1999)
não ter que reconhecê-la em futuro próximo, como linguagem do
passado”.
Definitivamente estes anos passados no Instituto Villa-Lobos
(1968 a 1970) causaram uma marca indelével em Jaceguay Lins. Seu
Essa geração de compositores do Instituto Villa-Lobos, da
contato com o grupo de compositores do Instituto com suas propostas
qual Jaceguay Lins fazia parte, não era alheia às mudanças necessárias à
abertas, com bagagens as mais diversas, e uma quantidade enorme de
adaptação de seus recursos ao crescente interesse, na época, pela música
material para pesquisa foram fundamentais para o estabelecimento de
contemporânea. O movimento exigia outras linguagens, outras formas
sua postura frente à composição. Em uma de suas entrevistas relatou
de comunicação com o público, que não as convencionais. Este era o
que o Instituto, nesta época, possuía quarenta mil horas de fitas gravadas
público dos Festivais que assistia a uma ruptura da antiga relação do
oriundas da ORTF - Office de Radiodiffusion-Télévision Française. Foi
criador com o ouvinte. O compositor se considerava um parceiro
também nesta época que Pierre Schaeffer visitou o Instituto Villa-
do intérprete. O público que atendia aos Festivais de São Paulo, aos
Lobos como conferencista. Toda esta pesquisa e abertura culminaram
Festivais de Música da Guanabara, não era mais um público passivo.
com a vinda de Rinaldo Rossi para a direção da Orquestra Sinfônica
Havia uma grande interação e mesmo discussão das obras apresentadas.
Nacional, por curto período de tempo, mas o suficiente para abrir as
Para a formação deste público no Rio de Janeiro, o Instituto Villa-
portas e permitir a execução das obras destes compositores pertencentes
Lobos teve papel fundamental:
ao Instituto Villa-Lobos. É pertinente aqui, um pequeno parênteses
É bom citar também, que um elemento importantíssimo para falar sobre a história do Instituto Villa-Lobos e como sua extinção
na criação desse público foi o surgimento do Instituto Villa-Lobos.
O primeiro Instituto Villa-Lobos, na praia do Flamengo, 132, definirá o caminho de Jaceguay Lins.

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Pertencente à Sociedade Germânia, fundada em 1821, o O detalhe importante é que o delegado que comandou
a operação, Nelson Duarte, participava semanalmente de um
prédio sofreu várias invasões durante sua história, sendo a primeira em quadro no programa do Flávio Cavalcanti, na TV Tupi, onde
1942 quando estudantes protestavam por ocasião do torpedeamento sempre aparecia como bom moço. Católico fervoroso e defensor
da família e dos bons costumes, no Domingo seguinte à operação,
de dois navios brasileiros por navios alemães. Instalou-se lá a UNE o programa apresentou o policial como herói por ter prendido os
(União Nacional dos Estudantes). A segunda invasão ocorreu em marginais daquele antro de subversivos. Como conseqüência, o
professor, compositor e maestro Jaceguay Lins foi obrigado a se
1948 quando o prédio foi invadido por forças policiais. Mais uma afastar do cargo, indo criar abelhas no interior.
invasão aconteceu em 1956 em função dos protestos dos estudantes
contra o aumento das passagens dos bondes. A UNE viria a perder Para não fugir à regra, nada foi esclarecido e tudo aparentava
sua sede definitivamente na quarta invasão em 1964, quando o prédio ser uma grande manobra para forçar uma mudança de rumos na proposta
sofreu um incêndio criminoso. O prédio foi então designado para de vanguarda do Instituto Villa-Lobos. Reginaldo de Carvalho então
abrigar o Departamento de Administração do Ministério da Educação se afastou da direção do Instituto, que já tinha novo diretor: General
e da Saúde. Bárbara Heliodora Carneiro de Mendoça, que era então de Exército Jayme Ribeiro da Graça. A Escola de Teatro continuou a
Diretora do Serviço Nacional de Teatro, conseguiu em uma manobra funcionar normalmente mas seus professores eram proibidos de tocar
política, instalar no prédio o CNT (Conservatório Nacional de Teatro) no assunto. O Instituto Villa-Lobos continuou sua evolução na direção
em 1966. Reginaldo Carvalho, que na época era Diretor do CNCO do que é hoje a UNIRIO mas, para Jaceguay Lins, terminava ali sua
(Conservatório Nacional de Canto Orfeônico) e membro da Divisão história no Instituto Villa-Lobos.
Extra Escolar do MEC, também buscava no prédio uma nova sede para
o Conservatório. Juntaram-se assim o CNT, hoje Escola de Teatro, Os “anos de chumbo” do governo Medici (1969-1974)
e o CNCO, atual Instituto Villa-Lobos, que agrupados atualmente caíram sobre a produção cultural no Brasil. Jornais, revistas, peças
formam o Centro de Letras e Artes da UNIRIO. de teatro, filmes, música, qualquer forma de manifestação artística
sofria com a censura. A década de setenta é uma grande incógnita
Então veio o AI-5. A herança da UNE, que deixou um na localização de fatos pessoais na biografia deste compositor.
vestígio de rebeldia com o qual o governo não soubera lidar, se repetiu Podemos traçar sua produção musical através das Bienais de Música
quando as ações do Instituto passaram a ser consideradas subversivas. Brasileira Contemporânea mas, ao contrário de muitos outros artistas
Alunos e um professor, Jaceguay Lins, foram presos numa operação e intelectuais brasileiros, Jaceguay Lins não gostava de falar sobre o
no mínimo suspeita, da Polícia Civil. Ricardo Ventura (2005), em seu que aconteceu após sua prisão em 1970. Em conversa informal, disse
artigo sobre o Instituto Villa-Lobos relata: somente que ficou preso por algum tempo em um porão, que não
saberia localizar, passando por algumas torturas psicológicas. Enfatizou
categoricamente que, independente das torturas aplicadas, “só o fato

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de estar preso sem ter cometido crime algum, já é, por isso mesmo, uma abelhas, participou de experimentos das mais variadas naturezas, mas
tortura psicológica”! Não entrou em mais detalhes sobre este assunto e ainda revelava na sua realidade cotidiana sua inquietude em tudo que
sua decisão foi respeitada. Durante a pesquisa não foram encontrados considerava uma mudança. Tudo era questionado. Sua personalidade
registros de sua prisão, entretando é um fato inegável pela repercussão ímpar via em tudo um experimento, uma possibilidade, novos rumos.
que causou no Instituto Villa-Lobos. Sobre uma de suas experiências em uma destas comunidades, disse já
na sua primeira entrevista, em 07/01/1999:
É preciso esclarecer que, apesar de muitos artistas, músicos
A gente estava lá de cobaia pra ver como é que era viver
e escritores estarem sendo exilados a partir da implantação do AI- comunitariamente. Foi quando surgiram as comunidades rurais, as
5, a verdade é que Jaceguay Lins nunca foi um exilado político. Na únicas que deram certo e só deram certo em áreas grandes, onde
as pessoas tivessem suas individualidades mantidas. (LINS, 1999)
realidade, segundo ele mesmo, nunca saiu do Brasil, apesar de alguns
depoimentos em contrário, fornecidos por conhecidos seus. Talvez
Não obstante o impacto psicológico que sua prisão acarretou,
este seja mais um episódio de criações imaginárias na vida de um
Jaceguay Lins continuou sua produção musical compondo algumas de
compositor. Não seria o primeiro e nem será o último. Segundo o
suas obras mais importantes nesta década, como Katemare (1970), para
jornalista Caê Guimarães, em seu artigo de 17 de agosto de 2005, no
soprano, viola e percussão, Concertante (1974) para piano e orquestra
Jornal A Gazeta, alguém havia reconhecido Jaceguay Lins dos palcos
de cordas, Lacrimabilis (1977), para orquestra, e Ave, Palavra (1979)
de Nova York e Amsterdam, na década de setenta. Outra informação,
para soprano e 4 percussionistas. Também na década de setenta
possivelmente fruto do imaginário popular, seria a de que ele se exilou
começou uma parceria frutífera com vários cineastas, entre eles Geraldo
em Paris, França, após sua prisão. Seja como for, estes equívocos
Sarno e Luis Carlos Lacerda. Segundo o release divulgado no programa
podem ser relacionados com as premiações internacionais de suas
do 6º Encontro Sinfônico da Primavera, em setembro de 1979, havia
obras, o que não significa dizer que o compositor estivesse presente
produzido até então mais de trinta trilhas sonoras (este número chegaria
a elas. Até porque, subsídios ou ajuda financeira para despesas deste
mais tarde a cinquenta). Entretanto, para a composição de seu catálogo
tipo não eram coisa fácil de se conseguir. Cabe aqui uma pesquisa mais
de obras não se lembrava de todas as produções em que trabalhara.
aprofundada para investigar sua trajetória nesta década e corroborar ou
Muitos registros de suas participações em trilhas sonoras não foram
não a afirmativa de que Jaceguay Lins chegou alguma vez a pisar em
encontrados, portanto seu catálogo de trilhas sonoras encontra-se
palcos internacionais. ´´E necessáiro dizer, entretanto, que o próprio
ainda incompleto.
compositor nunca mencionou tal façanha em suas entrevistas ou em
suas conversas informais. O único fato confirmado é que, a partir de De suas experiências no Instituto Villa-Lobos e seu trabalho
sua prisão passou a se interessar muito mais por questões políticas, com trilhas sonoras, extraiu uma de suas teorias mais defendidas: a de
entretanto. Começou a fazer parte de comunidades alternativas, criou que a indústria fonográfica fora a única revolução na história da música.

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Segundo entendia, todo o resto seria uma evolução. Considerava que a sem ela. Em desenvolvendo o pensamento crítico ou manipulando
indústria fonográfica representava naquela época o que hoje representa a cultura de massa, desde o surgimento da indústria fonográfica não
a internet para a sociedade contemporânea. Defendia que, com o ficamos mais limitados a uma produção musical local ou necessitamos
advento do registro sonoro, seja qual for, a informação musical pôde nos empenhar em longas jornadas para ter acesso à música.
ser levada de um canto a outro do mundo, causando uma revolução
sem precedentes. Entusiasmado, clamava ser esta a única revolução Jaceguay Lins também afirmava que a Guerra do Vietnã
musical. impactou a sua geração. Sobre esta afirmação discorreu em uma das
entrevistas:
A única revolução! A única revolução!
Então, nessa época a gente foi influenciado primeiro,
Muita gente diz assim: Wagner foi um revolucionário! por uma série de pessoas que de uma forma ou de outra fugiram da
Que revolucionário coisíssima nenhuma! Vê os compositores Guerra mas traziam cultura, traziam máquinas novas, máquinas
da geração dele o que já estavam fazendo, encaminhando para a fotográficas, máquinas de cinema, possibilidades de gravação. [...]
dissolução tonal! Ele é um evolucionista! [...] A grande revolução é Eu acho que a Guerra do Vietnã foi um momento muito significativo
a indústria fonográfica! E porque ela tem esse caráter de revolução? na história da humanidade. As comunicações trouxeram pra nós a
Porque pela primeira vez na história da humanidade você tem idéia de que o mundo era uma aldeia global. Uma geração que teve
um veículo, estamos falando do disco, capaz de fazer com que a (o que eu acho que é a coisa mais bonita... mais bonita dessa geração)
informação processada em Darmsdadt seja conhecida em Manaus! teve a compreensão de que, o que é verdadeiro na academia, não é
A indústria fonográfica representa o que para a década atual necessariamente a única coisa verdadeira no Universo. Foi quando
representa a internet. É uma mudança muito grande no padrão a gente começou a ouvir melhor as manifestações folclóricas, não
de comportamento humano. Já não se trata da colaboração de só do Brasil mas do mundo. [...] Eu acho que uma das grandes
um autor que, pelo uso disto ou daquilo, fez com que a música contribuições dessa geração foi a criação de novos signos de
caminhasse para aquele lado ou para aquele outro lado. Ela se interpretação. (LINS, 1999)
coloca como um processo comportamental. (LINS,1999)
A Guerra do Vietnã sem dúvida trouxe uma tensão ao
Em uma visão antropológica, não podemos discordar mundo inteiro, e o Brasil não foi poupado deste impasse. O governo
do compositor. A indústria fonográfica com certeza mudou o americano solicitou ao Brasil o envio de tropas para o Vietnã, ao que
comportamento mundial e colocou em xeque os processos culturais se contrapôs o próprio Ministro da Guerra, General Artur da Costa e
exigindo novos estudos sobre o real conceito de cultura pós indústria Silva. Havia então uma comoção nacional com os fatos relatados nos
fonográfica. Também precisamos considerar que esta indústria, ela jornais da época. Movimentos se formaram, reações à guerra surgiram
mesma sofre hoje uma revolução, sendo em muito diferente da em todos os lugares, e é claro havia o movimento hippie. Jaceguay
indústria fonográfica dos anos setenta. Muitos chegam a considerar a Lins também parece ter sido afetado pelo sentimento mundial contra
sua inexistência nos moldes conhecidos naquela época. (MORETTI, a Guerra do Vietnã. Mas, por outro lado, agradecia pela oportunidade
2009) Revolução musical ou não, fato é que não se pode mais imaginar de partilhar informações. Embora seja difícil imaginar, afirmava que
o universo musical sem ela. Não se pode mais imaginar a sociedade chegou a hospedar alguns fugitivos da guerra e conhecer a fundo a

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realidade que não chegava aos jornais daquela época: Cecília Meireles, foi vaiado e não perdeu a esportiva. Ele granjeou
as simpatias de alguns músicos por ter financiado a Bienal que a
Eu conheci vários egressos da Guerra do Vietnã Funterj – Fundação dos Teatros do Rio de Janeiro – deveria ter
morando, provisoriamente que fosse, em casa de muitos amigos subsidiado integralmente, e foi colher os frutos de seu ato. Saiu-se
meus, por exemplo no bairro de Santa Teresa, que na época mal.
concentrava parte da intelectualidade do Rio. Conheci, e alguns
frequentaram a minha casa. Havia uma troca de informação que a Mas não parece ter-se ressentido com o fato. Tanto ele
gente não tinha. (LINS, 1999) como boa parte dos que o vaiaram acabaram não assistindo ao final
da Bienal de Música. Foi, pois, quase uma questão particular. Mas
o concerto prosseguiu num clima de disputa política ou antes num
A vida de Jaceguay Lins durante os anos setenta foi marcada ambiente de contestação. Mal o ministro se retirou, um dos músicos
pela troca de informação e por um certo engajamento político, mesmo da orquestra – o flautim se não me foge a memória – tocou em
fortíssimo a conhecida marchinha “O cordão dos puxa-sacos”. O
que isto só pudesse ser representado em música. Várias obras suas foram concerto ainda não tinha começado, evidentemente. Os musicistas
apresentadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e fora do país, estavam afinando seus instrumentos e, apesar da referência óbvia,
tudo ficou por isso mesmo. Os problemas iriam prosseguir, porém.
como na Alemanha e na França. Foi também nesta época que integrou Soube na véspera que a orquestra do Teatro Municipal do Rio de
o grupo “Atonalis” como percussionista, juntamente com Sônia Born, Janeiro não estava muito disposta para o concerto. Constavam
do programa peças de Ernst Mahle, Jaceguay Lins, Jorge Antunes,
Georg Sheuermann, Peter Dauelsberg e José Botelho. Com este grupo, Mário Ficarelli, Maria Helena Costa e Willy Correa de Oliveira. E
viajou pelo Brasil realizando concertos de música contemporânea. uma das musicistas teria dito ao maestro Eleazar de Carvalho que o
que estavam ensaiando não era música. O maestro teria revidado
Apesar do sucesso que suas obras conquistaram nos Festivais mundo e, pode-se imaginar que tanto a Sinfônica quanto o regente não
afora onde foram apresentadas, no Brasil, principalmente no Rio de estivesses em seus melhores dias para o concerto final. Ou seja,
pagamos nós ouvintes por problemas que, no fundo, podem ser
Janeiro, ainda havia uma certa resistência à música experimentalista. considerados eminentemente políticos.
Em um artigo de Enio Squeff, na Folha de São Paulo, datado de terça-
Pois as relações entre política e música não são tão
feira, 23 de outubro de 1979, esta insatisfação de ambas as partes, difíceis de acontecer. Foi visível, por exemplo, que a orquestra do
músicos e compositores, se manifesta. O título Quando a música fica Teatro Municipal não estava bem. Mas, não fosse a manifestação
significativa do flautim contra o ministro (rigososamente foi isso,
devendo à política já reflete o contexto do concerto realizado na última o flautim não gosta do ministro Eduardo Portela e não dever ser o
apresentação da 3ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea do Rio único da orquestra a não gostar de ministros, aliás) – certamente
a indisposição geral ficaria despercebida. O crítico notaria apenas
de Janeiro. No artigo lemos: que a sinfonia de um movimento do sr. Ernst Mahle foi muito
mal executada. A peça tem muito das lições de Brahms e exigiria
Rio – Um leitor reclama que misturo música com no mínimo uma afinação que parece não ter havido, o que, aliás,
política. Retifico: não sou eu o autor da mistura – ela existe não a salvaria de estar mais próxima do século passado do que
efetivamente para quem quer ver ou ouvir. Por exemplo: há da nossa époça. Além disso nem todos os compositores parecem
pouco quem fez essa junção que muitos julgam indébita (nem ter ficado realmente satisfeitos. Con exceção, talvez, do sr.
sempre o é), foi o ministro Eduardo Portela da Educação e Mario Ficarelli, cuja peça “Zyklus 2” foi tocada a contento ou do
Cultura, que compareceu à última apresentação da 3ª Bienal de sr. Jorge Antunes que mostrou um dos seus melhores trabalhos
Música Brasileira Contemporânea realizada no Rio. O ministro da noite, tanto o sr. Jaceguay Lins, quanto a sra. Maria Helena
cumprimentou aproximadamente umas 40 pessoas no palco da sala

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Costa, e o sr. Willy Correa de Oliveira reclamaram da execução. pela descrição do concerto feita por Enio Squeff, a insatisfação do
Dois pelo menos isentaram o maestro Eleazar de Carvalho – os
srs. Jaceguay Lins e Willy Correa de Oliveira. Mas quase todos compositor. Mas o efeito desta apresentação foi ainda maior. De
acharam que a orquestra não colaborou. Estamos, pois, na política acordo com suas entrevistas, foi o resultado catastrófico deste concerto
novamente. Não tenho informações precisas, mas soube que a
orquestra do Teatro Municipal nao permite que se façam gravações que o levou à decisão de não viver mais no Rio de Janeiro e mudar-se
de suas atuações. A pendência é antiga: os membros da orquestra para o Espírito Santo.
alegam, justificadamente, que tais registros poodem ser usados
comercialmente, com o que os músicos não receberiam por seus
direitos de execução. Ocorre que a orquestra é do governo e o Uma vez que o autor do artigo não cita o título do trabalho,
governo, ao que sei, poderia se comprometer a não usar as gravações podemos somente pressupor que a obra apresentada tenha sido
para fins comerciais. Mas os músicos não concordam. Como não
tenho maiores informações sobre o assunto, calculo que tal disputa Lacrimabilis, peça composta como uma clara crítica à ditadura militar.
estaria indispondo os músicos com as bienais e assim por diante. Esta conclusão é possível por ter sido a mesma obra apresentada um
Quem saiu prejuducado, porém, foram de qualquer mês antes pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, também
modo os compositores e o público. E se a política pode se iniciar na sob a regência de Eleazar de Carvalho. O concerto foi realizado como
presença de um ministro e concluir na atuação de uma orquestra,
impedindo inclusive uma avaliação crítica tudo fica muito confuso. o 6º encontro da série 12 Encontros Sinfônicos da Primavera, que
Pois se não tenho dúvidas em colocar a bienal com todos seus aconteceu em 17 de setembro de 1979. Esta apresentação transcorreu
equívocos, (que registrei por sinal) entre o que de melhor se fez
neste fim de década para a música contemporânea, é fundamental sem problemas, talvez por ter sido incluída em um programa bastante
apontar os limites da promoção. Não há muito sentido em que as eclético, como foram os programas dos concertos desta série e contar
primeiras audições das bienais não recebam o registro desejável.
Elas permitiriam à crítica o aprofundamento de suas opiniões ou, com uma orquestra acostumada ao repertório contemporâneo.
fato que em absoluto me amedronta, a reformulação de alguns
conceitos. Assim também em relação às partituras. Seria desejável No programa lê-se: “Ênfase especial nos Encontros com
que os críticos interessados recebessem com antecedência algumas
partituras a serem executadas. Mas se concedo em que nem a briga a música brasileira inovativa e experimental”. A postura de Eleazar
política convencional foi superada – essa questão também política de Carvalho em divulgar a música brasileira contemporânea é clara
que se refere à organização, obviamente sequer começou a ser
enfrentanda. Mas nesse caso o leitor que tire suas conclusões: e se evidencia quando observamos a programação da temporada de
acabo de justificar o porquê da minha impossibilidade de fazer uma 1979. Todos os concertos contavam com uma primeira parte onde era
crítica do que aconteceu na última apresentação da bienal. Isto é,
fico também a dever à política. (SQUEFF, 1979) apresentada uma obra contemporânea brasileira ou de compositores
contemporâneos. Este concerto também foi contemplado com um
Teria sido um grande avanço se o conselho de Enio Squeff artigo na Folha de São Paulo, datado de 17 de setembro de 1979,
fosse seguido. Muitas das obras apresentadas nas bienais nunca foram mas novamente Enio Squeff não se refere ao título da obra ou faz
devidamente gravadas ou tiveram sua primeira audição registradas. comentários críticos à sua apresentação. (SQUEFF, 1979)
Algumas partituras, inclusive as de Jaceguay Lins, nem mesmo
sobreviveram até os dias de hoje. É possível perceber neste artigo, Para termos uma ideia da produção musical de Jaceguay Lins

70 71
nesta década, podemos recorrer ao release publicado no programa deste proficiente em nenhum instrumento de orquestra?” (MAGALHÃES,
2011)
mesmo concerto:

Detentor de algumas distinções, entre as quais: I Tribuna Fato é que Jaceguay Lins não era um homem muito dado
Nacional de Compositores (1970, com a cantata “Katemare”, para a falar de seus feitos. Vivia no presente incondicionalmente. Não
soprano, viola e percussão); Tribuna Internacional de Compositores
da UNESCO, à qual participou como representante do Brasil guardava ou matinha acesso à maioria de suas partituras, motivo
(Paris, 1971); I Concurso Nacional de Composição da Funarte, pelo qual o paradeiro da maior parte do seu trabalho é desconhecido,
por ocasião da II Bienal de Música Contemporãnea Brasileira,
1977, com a peça LACRIMABILIS, para orquestra, obtendo o assim como a documentação de sua vida e suas conquistas. Tivesse
Segundo Lugar na categoria “música sinfônica”; “Melhor trilha ele elaborado meticulosamente seu currículo, veria-se que nenhuma
sonora” no Festival de Cinema Brasileiro, 1978, Brasília; (filme
“Coronel Delmiro Gouveia” de Geraldo Sarno); Menção Honrosa destas alegações se justificaria. De onde vinha, no Rio de Janeiro, sua
no I Prêmio Esso de Música Erudita, 1979, com a peça para piano competência como regente não era questionada e muito menos sua
e cordas: “Concertante”. Ocupa-se, no momento, da composição
de um ciclo sinfônico: “Os quatro Elementos”. (MEC-FUNARTE, capacidade nos instrumentos que escolhera. A desinformação falou
1999) mais alto nesta questão.

Os anos oitenta trouxeram novos ares para a vida de Jaceguay Na regência da Orquestra do Espírito Santo, implantou
Lins. Dois anos depois deste concerto assumiu a posição de regente à algumas inovações como a série Concertos de Verão e trabalhou para
frente da então Orquestra do Espírito Santo, atual Orquestra Sinfônica a transformação da orquestra em filarmônica. Afirmava que esta
do Espírito Santo, convidado por Orlando Bonfim Netto, cineasta mudança abriria portas para patrocínios, uma vez que as contribuições
e fundador da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta- seriam passíveis de deduções, fortaleceriam a receita da orquestra e
Metragistas do Espírito Santo. Orlando Bonfim foi Diretor do DEC consequentemente dos músicos. No entanto, a personalidade do
(Departamento de Estado de Cultura) de 1981 a 1983, órgão do estado compositor já não combinava mais com uma posição que exigia
ao qual pertencia a orquestra. A Orquestra do Espírito Santo, porém, rigores de ensaio, comando, e uma postura política. Sua mente não
passava por um momento de muitas transições. Os ânimos estavam conseguia mais se prender às questões rotineiras da maioria. Desta
acirrados e discutia-se a competência do novo maestro. Em seu livro forma, em 1983 Jaceguay Lins deixou o posto de regente da então
Da Capo – De volta às origens da Orquestra Filarmônica do Espírito Orquestra Filarmônica do Espírito Santo, voltando a reger a orquestra
Santo Juca Magalhães revisita este momento e cita um fato peculiar da como convidado eventualmente. Após sua saída, passou a se dedicar
primeira entrevista de Jaceguay Lins: integralmente à composição.
Quando da chegada de Jaceguay Lins, Diniz [ex-
maestro da orquestra] já achou bastante estranha a frase que marcou Um parênteses interessante, entretanto, neste tempo à frente
a primeira entrevista do novo regente “Meu instrumento é lápis e da orquestra: em julho de 1982, antes de sua saída da Orquestra
papel” e pensava com seus botões “como pode um regente não ser

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Filarmônica do Espírito Santo, foi convidado a ser Regente da Orquestra- Lobo, piano. Fizeram a primeira audição mundial da obra Guananira,
Laboratório e professor da Oficina de Técnicas de Estruturação e peça homônina da obra que mais tarde seria um dos reflexos mais
Análise no 15º Festival de Inverno de Diamantina, promovido pela expressivos da inserção do congo na música do compositor. A obra
Universidade Federal de Minas Gerais. Esta sua experiência, assim apresentada na VII Bienal, no entanto, foi destruída pelo compositor
como sua experiência como professor de Estruturação no Instituto que não gostou do resultado obtido. Achava que a obra merecia uma
Villa-Lobos, provavelmente foram responsáveis pela sua contratação versão mais elaborada.
como professor da classe de Estruturação Musical na então Escola de
Música do Espírito Santo, hoje Faculdade de Música do Espírito Santo. Coincidência ou não, criou-se em 1995 pelo hoje extinto
DEC (Departamento Estadual de Cultura), durante o seminário
Em entrevista ao jornalista Graciano Dantas, Jaceguay Lins “Música capixaba em busca de seu espaço”, o Prêmio Guananira2 como
falou sobre sua experiência com a orquestra, em um artigo intitulado A um incentivo à produção discográfica no Espírito Santo. Jaceguay
cultura é o maior suporte de uma Nação, publicado no jornal A Gazeta, Lins compôs, então, sua nova versão da obra Guananira que havia sido
em 11 de outubro de 1997: apresentada na VII Bienal de Música Contemporânea Brasileira. Em
um primeiro momento esta nova versão foi intitulada Suíte Sinfônica
Na época era a Orquestra de Câmara do DEC e a
minha passagem por lá foi de dois anos. Foi o momento em que Guananira. Na segunda edição do prêmio, no concerto da noite
a gente transformou em Orquestra Filamônica do Espírito Santo. de premiação, 3 de dezembro de 1997, a Orquestra Filarmônica do
Foi um gesto de ousadia na época, porque a orquestra era muito
deficitária, incompleta e por conseguinte desequilibrada. Quando Espírito Santo apresentou Imagens do Agreste e Suíte Intervalos, duas
a gente veio para o Espírito Santo percebeu que havia músicos aqui obras do compositor Carlos Cruz, capixaba de nascimento, Concertino
que podiam ser integrados. Enfim, acho que foi um trabalho de
transição entre o que é hoje a orquestra de câmara da época e o que para saxofone tenor e piano, do maestro Duda, de Recife, e a Suíte
é hoje a sinfônica, que, embora incompleta, já tem condições de Sinfônica Guananira, de Jaceguay Lins. Esta passa a ser uma de suas
tocar algumas obras. (LINS apud DANTAS, 1987)
obras mais singulares onde o compositor atinge uma fusão ímpar
Este artigo marcou a participação do compositor e mais inserindo em seu contexto uma banda de congo, criando um efeito
nove jovens músicos capixabas na VII Bienal de Música Brasileira singular e de rara beleza.
Contemporânea, realizada entre 5 e 14 de novembro de 1987, na Sala
Em entrevista ao jornalista José Roberto Santos Neves,
Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. Integravam o recém nomeado
Jaceguay Lins expressou sua opinião sobre o Prêmio Guananira:
Conjunto da Escola de Música do Espírito Santo além de Jaceguay Lins
como regente, Elaine Rowena, soprano, Márcia Gáudio, atriz, Marco Para o maestro Jaceguay Lins, o prêmio Guananira
Antônio Silva, flauta, Ingrid Alves, violino, Ivan Zandonade, viola,
2 A palavra Guananira, que significa “ilha do mel”, é uma referência
Fernando Rueda, contrabaixo, Jovaldo Gonçalves, saxofone e Florence à forma pela qual os índios tupiniquins se referiam à ilha de Vitória, antes da
chegada dos portugueses, no século XVI.

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representa “a consagração do nascimento da indústria fonográfica não parece de todo impossível, uma vez que Jaceguay Lins é o autor do
do ES”. Lins enfatiza que há três décadas atrás gravar um disco era
um privilégio dos artistas do eixo Rio-São Paulo, e que agora os vídeo Aldeia Feliz, que representou o comitê intertribal brasileiro na
músicos capixabas já podem fazê-lo com mais recursos, graças aos ECO 92. Parece-me que uma produção desta magnitude somente é
estúdios de qualidade instalados na Grande Vitória. “Aos poucos, o
músico capixaba abandona o amadorismo para alcançar um perfil viável caso haja uma estreita proximidade entre os lados.
profissional”, percebe o maestro, ressaltando que a manutenção do
prêmio é essencial para a valorização da criatividade e da produção Posteriormente Jaceguay Lins continuou envolvido em vários
do músico capixaba. (SANTOS NEVES, 1997)
projetos. Talvez um dos mais ambiciosos tenha sido a sua pesquisa
Jaceguay Lins desejava ardentemente que o cenário da cultura musicológica sobre o congo do Espírito Santo que resultou no livro
capixaba atingisse patamares mais altos, não somente na qualidade As Bandas de Congo do Espírito Santo: uma panorama musicológica das
da produção realizada mas também na remuneração dos artistas. bandas de congo lançado somente em 2009. Outro grande projeto foi a
Tinha uma preocupação genuína com a questão dos direitos autorais, ópera O Reino de Duas Cabeças, ópera-recreio com um formato singular
especialmente quanto às bandas de congo. Infelizmente seu desejo de que, em seu projeto original, previa levar a ópera ao recreio das escolas
que o Prêmio Guananira continuasse não se concretizou. Apesar das da rede pública. Neste livro dedicaremos um capítulo à parte para
mudanças prometidas e dos discursos inflamados do então Secretário falar do envolvimento do compositor com o congo mas ressaltamos a
da Cultura, Maciel de Aguiar, a edição 2000 do Prêmio Guananira importância que esta manifestação folclórica única no estado teve sobre
parece ter sido a última3. Nela, Jaceguay Lins recebeu o prêmio de Jaceguay Lins desde sua chegada ao Espírito Santo.
“Melhor Disco Erudito” pelo CD Melodiário.
No mês de janeiro de 2004 Jaceguay Lins teve um câncer
Uma das faixas deste CD é Tekoá-Porã, resultado de mais diagnosticado na garganta. Extremamente ativo, dividia um
uma das experiências vividas por Jaceguay Lins. Segundo o compositor, apartamento com sua ex-namorada, Rita Vasquez. Queixava-se de
esta obra é o resultado de sua ligação com os índios Guarani, da Aldeia dores na garganta e por um ano foi levado, por um médico conhecido,
Boa Esperança, onde chegou a viver por um curto espaço de tempo. a acreditar que estava sofrendo de crises rotineiras de alguma infecção,
Tekoá-Porã, de acordo com seu relato, é o nome indígena da aldeia. até que finalmente seus amigos mais chegados o convenceram a
A obra homônima narra a saga do povo Guarani em busca da “terra procurar um especialista. Jaceguay Lins foi internado no Hospital
sem males”. Foi dedicada à memória de Tatantin Roá Retée, a líder da Polícia Militar (HPM), em Vitória, e submetido a uma cirurgia
espiritual da aldeia, que conduziu o seu povo do Rio Grande do Sul no início do mês de agosto e estava confiante de que ficaria curado.
até o Espírito Santo. Este fato, apesar de não poder ser comprovado, Estava sempre cercado de seus amigos, de sua ex-esposa, Ana Saiter,
e de seus filhos, Tomás e Luísa. Infelizmente, durante um esforço a
mais, sofreu uma hemorragia interna que, apesar de todos os esforços,
3 Não foram encontrados registros de nenhuma outra edição do
prêmio. n. a. não pôde ser controlada. Jaceguay Lins faleceu no dia 17 de agosto de

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2004. Foi sepultado no Cemitério de São Domingos, no município da pretensão de discorrer sobre todos os fatos da vida de Jaceguay Lins.
Serra, ao som dos tambores das bandas de congo, que tanto adorava. As lacunas a preencher ainda são imensas. Traçar sua biografia com
Escolheram a toada Jongueiro Velho para enterrar seu amigo, defensor precisão será, para as futuras pesquisas, um trabalho minucioso de
e divulgador. garimpar informações, obras, filmes e documentos sobre sua vida e seu
trabalho. Desta forma, este capítulo pretende simplesmente ser um
Muitos afirmaram que Jaceguay Lins morreu abandonado, ensaio de sua biografia, um ensaio biográfico.
recluso, e que sua situação era o retrato da cultura capixaba. É um fato
que Jaceguay Lins não tinha um emprego formal, não tinha uma fonte
de renda regular e vivia do seu trabalho de composição, que muitas
vezes não passava de um cachê aqui e outro lá. Quando precisava, na
maioria das vezes recorria a seus amigos mas logo outra ideia brilhante
lhe vinha, outro projeto, outro trabalho, e tudo ficava melhor. No
entanto, sua postura de vida o levou a viver assim. Esta era sua escolha.
Não gostava de se prender à formalidade do sistema público e menos
ainda às amarras da academia. Não era um homem de acumular posses
e seu sonho era terminar uma pequena casa no balneário de Carapebus,
na Serra, onde pretendia viver, por opção, e onde tinha muitos
conhecidos e amigos. Viveu, por decisão própria, fora dos padrões
considerados adequados pela sociedade e por isso foi mal interpretado
por muitos. Era, como se costuma dizer, um espírito livre, que não se
prendia a nada e por consequência, nada o podia prender ou moldar.
Não usava relógios, pois considerava o tempo inerente a cada um. Às
quatro da manhã tomava seu desjejum que consistia de uma refeição
farta, o que pra muitos seria um almoço, e deixava que o resto do dia
pertencesse à sua criatividade. A notícia de seu falecimento repercutiu
no estado do Espírito Santo e no Brasil inteiro.

Muito ainda há que se pesquisar sobre a trajetória deste


compositor genial que deixa uma herança incomum, de rara beleza e
que necessita ser descoberta. Assim sendo, este capítulo não têm a

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CAPÍTULO 3

Música para cinema

A música composta para o filme eu vim descobrir com


outros dos documentários, Casa Grande e Senzala e Segunda Feira.
Ambas as trilhas foram feitas pelo J. Lins. Nesses primeiros trabalhos
com música composta, eu já tinha o material filmado na moviola, e
o Lins acompanhou a montagem com o Walter Goulart. Assim, íamos
discutindo qual a música mais adequada para determinadas cenas.
Eu não entendo de música do ponto de vista técnico, mas discutimos
muito. Tanto que, quando ele compôs a música, já estava enfronhado
com nossas intenções de que ela não fosse apenas ilustração, mas parte
dramática do filme.

Geraldo Sarno
Revista Filme Cultura
Em 1970, Jaceguay Lins, então professor do Instituto Villa- previamente à sua mudança para o Espírito Santo. Possivelmente esta
Lobos, foi convidado por Luiz Carlos Lacerda para a composição da entrevista tenha sido resultado de seu trabalho na comédia Bububú
trilha sonora de Mãos Vazias, um filme de caráter experimental com no Bobobó, de Marcos Farias, que estreou em 30 de agosto de 1980
uma proposta perfeitamente aliada à linguagem também experimental e do documentário O Homem de Areia, 1981. Para a composição da
do compositor. Desde então a composição de trilhas sonoras foi trilha sonora de Bububú no Bobobó Jaceguay Lins buscou referências
parte constante do trabalho de Jaceguay Lins e desta trilha sonora, no teatro mambembe brasileiro e no teatro de revista, e para tal,
especificamente, foi extraída uma pequena suíte para trio de cordas considerou a experiência do aprendizado com Gugu Olimecha1
e clarinete, partitura que não chegou aos nossos dias. Segundo o essencial para desenvolver este trabalho. Homem de Areia, no entanto,
compositor é uma obra que explora exaustivamente os recursos gráficos é um documentário que retrata a trajetória pessoal de José Américo
na partitura e onde o elemento aleatório é uma constante. Começou de Almeida, revolucionário e escritor, autor de A Bagaceira, romance
aí seu enorme interesse por cinema. Em sua última contagem, havia escrito em 1928. A comédia Ladrões de Cinema, um longa-metragem
composto em torno de cinquenta trilhas sonoras mas não se lembrava de 1977 de direção de Fernando Campos, é um trabalho de maior
de todas e não mantinha registro desta informação. Acreditava que o envergadura. Este filme permitiu ao compositor ser responsável por
cinema era um grande veículo sonoro. Quando perguntado sobre a toda a direção musical. Consta também, na ficha técnica do filme, uma
diferença entre a música conceitual e música para cinema respondeu à obra executada no filme de autoria de Jaceguay Lins desconhecida em
jornalista Hilda Machado: seu catálogo de obras: Toque celeste. Não há registro desta composição
em partitura. Este trabalho começou a dar ao compositor maiores
Não existe o cinema e a música no cinema. O que existe
é uma arte complexa que engloba imagem e som, tendo, portanto, perspectivas sobre o futuro do compositor de cinema.
a música como um dos seus elementos. Para falar a verdade, não
gosto muito deste papo de música X imagem. A verdade é que Em cada filme você tem de transar um tipo de música...
o cinema ainda está no primeiro estágio no que diz respeito à Foi em Ladrões de Cinema, 1977, que pela primeira vez fiz um
utilização do elemento sonoro, ainda na sua fase naturalista. Dizer trabalho mais abrangente, fui mesmo diretor musical. Não fiquei
que a informação sonora raramente ocorre sem estar associada a uma só no âmbito da música, pude trabalhar com todos os elementos
imagem é uma pobreza. Desde quando os ouvidos precisam pedir sonoros, dos ruídos à dublagem, o que será sem dúvida o papel do
permissão aos olhos? Dentro em breve se fará um cinema que usará compositor de cinema no futuro. (LINS apud MACHADO, 1981)
recursos semelhantes aos da narrativa visual, que pode reportar um
elemento desvinculado da ação. (LINS apud MACHADO, 1981)
Fruto de uma outra abordagem é o longa-metragem O
Princípio do Prazer, 1979, de Luiz Carlos Lacerda. Jaceguay Lins
Esta entrevista, datada de 1981 na revista Filme Cultura nº
responde pela engenharia de som e faz referências à música popular
37, reflete o pensamento do compositor sobre a composição de trilhas
brasileira. Apenas uma frase foi disfarçada harmonicamente, trabalhada
sonoras naquela época. Como esta é uma publicação trimestral do
início do ano, podemos assumir que tenha concedido esta entrevista 1 Redator, ator e tetrólogo brasileiro identificado com o Teatro de
Revista. N.A.

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em forma de clusters e intervalos de 2ª menores, mas ainda assim comentou:
permaneceu clara o suficiente para lembrar um sucesso da MPB.
Coronel Delmiro Gouveia coroa essa parceria [...] porque
Como não podia deixar de ser, o lado visionário de Jaceguay Lins, em é um filme com uma estrutura mais complexa, tem toda uma
1981, já ansiava por uma cadeira de música para cinema nas escolas. narrativa histórica. Um dos temas do filme, por exemplo, é uma
alusão a Sinfonia n.º 5 de Cláudio Santoro. Tem um caráter bem
Hoje, é fato que muitas universidades oferecem cursos de composição nordestino como o filme impunha, e afora essa identificação com
voltados para trilhas sonoras de filmes e até mesmo jogos. Quanto à as imagens, eu não considero a obra de valor intrínseco. Não! Ela é
uma boa música para cinema.
importância da música no cinema, afirmava veementemente que não se
podia desvincular qualquer perspectiva da realidade brasileira abordada Também de sua parceira com Geraldo Sarno é Casa Grande
no cinema, da sua característica sonora, apesar do apelo comercial da & Senzala, baseado no livro de Gilberto Freyre. Foi estreado em 1974
indústria discográfica. e também é Jaceguay Lins que responde pela música. Na lista de seus
O Cinema Novo foi também um elemento renovador documentários é importante citar Viagem pelo Interior Paulista, de
na utilização da música no cinema brasileiro. [...] Através da Sérgio Santeiro, sobre o monumental livro Morada Paulista, de Luis
história do nosso cinema, vemos duas tendências muito claras de
encarar a música no cinema. De um lado, a música como elemento Saia, que configura o experimentalismo interativo entre a música e o
de divulgação do filme, o puro e simples domínio do mercado. Do cinema.
outro lado, os realizadores que não sacrificam o conteúdo sonoro
dos seus filmes em função de uma estrela de gravadora nos letreiros.
É bom não esquecer que a indústria discográfica no Brasil é a Anteriormente, falamos que a ligação de Jaceguay Lins
terceira do mundo, muito maior, portanto, que a cinematográfica. com Orlando Bonfim Netto já vinha desde antes da mudança do
(LINS apud MACHADO, 1981)
compositor para terras capixabas. O documentário sobre a vida do
Esta sua determinação de vincular o elemento sonoro à naturalista Augusto Ruschi intitulado Guaianumbi– beija-flor, em tupi
abordagem cinematográfica é evidente em Coronel Delmiro Gouveia, – é outro importante filme cuja trilha sonora é supostamente assinada
um de seus melhores trabalhos em cinema. Jaceguay Lins sublinhou, por Jaceguay Lins e retrata a vida do cientista radicado em Santa Teresa
com a música, características psicológicas do personagem principal de – ES. Apesar de não haver nenhuma informação sobre a trilha sonora
tal forma que o diretor não necessitasse recorrer à imagens ou palavras. na ficha técnica do filme, Jaceguay Lins conhecia profundamente os
Coronel Delmiro Gouveia é um longa-metragem datado de 1977, com processos usados para a composição da trilha, o que parece indicar
direção de Geraldo Sarno. O filme recebeu inúmeras premiações como que tenha sido o autor da mesma, como afirmava. Segundo Jaceguay
Melhor Roteiro e Melhor Trilha Sonora no Festival de Brasília em Lins foram usados instrumentos não convencionais de sopros, como
1978; Grande Prêmio Coral no Festival de Havana, Cuba; Prêmio São garrafas, canos de pvc, bambus, etc., o que resultou numa elaborada
Saruê, da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, em 1979, entre onomatopéia que tem por base cantos de aves. É um curta-metragem
outros. Sobre sua parceria com Geraldo Sarno, Jaceguay Lins (1999) datado de 1979 e “é o único filme sobre o trabalho do naturalista e

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enfoca seu estudo dos beija-flores e orquídeas no Espírito Santo”. radicado no Espírtio Santo são: A Lenda de Proitnier, produzido em
(RIO-CINE/2)(MINC) Vitória, ES, um curta-metragem dirigido por Luisa Lubiana e estreado
em 1995. Recebeu o Prêmio Revelação no Festival de Cuiabá em 1996
Das trilhas sonoras que escreveu após sua vinda para o Espírito com Montagem de Carlos Cox e Jaceguay Lins. A música original é
Santo, destaca-se Sacramento, curta-metragem produzido em 1993, assinada por Jaceguay Lins. Mais interessante é A Morte da Mulata,
dirgido por Luisa Lubiana. Esta trilha ganhou prêmios de destaque dirigido por Marcel Cordeiro, um longa-metragem estreado em 2002
como Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora no Fenavi – Festival que recebeu premiações como Melhor filme e Melhor diretor, Melhor
Nacional de Vídeo de Vitória, em 1992. Jaceguay Lins foi responsável ator para Marcelo Picchi e Melhor atriz para Miwá Yanagizawa. Neste
pela Mixagem, Montagem (juntamente com Marcos Athayde), filme foram usadas várias obras do compositor, entre elas Guananira e
Montagem de som e Música original, onde o próprio compositor Tekoá-Porã. De sua produção mais atual é Mangue Negro, de Rodrigo
participa como intérprete. Mais tarde, em 2002 participou do curta- Aragão. Produzida em 2005 quase artesanalmente, ganhou vários
metragem Vampsida que ganhou o prêmio de Melhor Filme no Vitória prêmios internacionais na América Latina. Sua trilha sonora é uma
Cine-Vídeo, em 2002. A trilha sonora é assinada por Jaceguay Lins e remixagem de obras do maestro Jaceguay Lins.
Leo Caetano, com Música original de Jaceguay Lins.
O trabalho com trilhas sonoras é um capítulo à parte
Apesar de seu envolvimento profundo com o cinema, na trajetória deste compositor. No entanto, por iniciativa da ABD
Jaceguay Lins não mesclava seu trabalho como compositor erudito com Capixaba (Associação Brasileira de Documentaristas e Curtas
seu trabalho no cinema. Seu experimentalismo como compositor era Metragistas do Espírito Santo) foi criado, a partir de 2011, de acordo
resguardado para suas composições. O trabalho com trilhas sonoras como os registros encontrados, o Troféu Jaceguay Lins, para a Mostra
consistia em um meio de subsistência. Produção Independente – Janela. O Troféu premia Melhor Ficção,
Novas formas de composição eu faço na minha música, Melhor Documentário e Melhor Videoclipe. São tantas as obras que
não no cinema. O cinema para mim representa a subsistência, descrever neste livro as possibilidades exploradas por ele em suas trilhas
porque compositor no Brasil e nada é a mesma coisa. Talvez eu
seja o único compositor de música erudita que viva de composição. sonoras se torna tarefa impossível, mas não podemos deixar de citar
As escolas não ensinam e a maioria dos meus nobres colegas têm suas trilhas sonoras para multivisão, entre elas, Cantares, de Frederico
uma visão elitista da música. Sentem-se agredidos se uma frase se
sobrepõe à sua melodia. Meus colegas ou são instrumentistas ou Moraes e Manguezais, de Humberto Capai, outra parceria da qual se
funcionários públicos. (LINS apud MACHADO, 1981) originaram o CD Room Manguezais e Vitória do Futuro.

Muitos outros trabalhos se destacam nesta trajetória em


cinema. Céu de Anil (1978), Deus é Fogo (1987), Receita artesanal (
1988) e O Ciclo da Paixão (2000). Também de sua produção quando

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CAPÍTULO 4

A Paixão pelo Congo

Mudam-se os tempos, mas, nessas mudanças, prevalece a


tautologia que une um ser humano a outro ser humano; um povo a
outro povo; o diferente ao diferente de si. Nesta dança da cultura
universal, pouco importam as línguas e as formas.

Jaceguay Lins,
O Congo do Espírito Santo
Se havia, nesta geração a que nos referimos, a preocupação com Hermógenes Lima Fonseca e Renato Pacheco, então professor
com o uso do novo, da assimilação de novas tendências e processos, do Instituto Histórico e Geográfico do ES. Reuniu uma grande
havia também, de uma forma muito significativa, a discussão sobre quantidade de material mas pouco sobreviveu à sua indisciplinada
o uso do elemento popular, folclórico. As pesquisas não se limitavam maneira de manter seu arquivo pessoal. Não obstante, sua pesquisa
somente a estruturas ainda incompreendidas, formas não totalmente sobre as bandas de congo resultou no livro O Congo do Espírito Santo:
absorvidas mas também à questão da adequação do popular, do uma panorama musicológica das bandas de congo publicado somente em
elemento social e do folclórico. Este interesse se intensificou quando 2009, após sua morte. Este livro foi resultado de mais de dez anos
Jaceguay Lins chegou ao Espírito Santo em 1981 para reger, como de pesquisa que se revelou única sobre o tema até o momento. No
convidado, dois concertos com a Orquestra Filarmônica do Espírito livro, Jaceguay Lins buscou as origens históricas das bandas de congo,
Santo. No seu segundo dia em terras capixabas foi levado ao sítio detalhou sua instrumentação, registrou sua música e traçou um retrato
Pixingolê, em Conceição da Barra, de propriedade de Hermógenes musicológico que mostra como o congo é tocado, cantado e dançado.
Lima Fonseca, folclorista estudioso da cultura popular do estado. Foi No quinto capítulo de seu livro, há ainda uma importante discussão
então que, pela primeira vez assistiu a uma apresentação de ticumbi1. onde o compositor expõem o problema enfrentado pelas bandas de
Sua paixão pela música folclórica do Espírito Santo começara aí. congo quanto a questão dos direitos autorais.
Passou a estudá-las sistematicamente voltando-se com grande paixão
para o congo. Considerava a música das bandas de congo e ticumbi Nas suas obras o congo está presente de forma sistemática após
uma particularidade do Espírito Santo, na forma como evoluíram até sua chegada ao Espírito Santo. Após criar a Banda II, formada por um
as manifestações atuais. Em entrevista ao jornalista Alvarito Mendes grupo de estudantes da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo)
Filho (1997), fica claro que suas convicções não eram fruto de interesse e também por pessoas interessadas no folclore capixada, começou a
momentâneo ou incoerente. trabalhar de forma prática com o congo, inclusive apresentando esta
manifestação cultural a outros centros brasileiros. A partir das pesquisas
Não pense você que esta afirmação é um desvario de
minha cabeça ou uma paixão alucinada pelo Espírito Santo. Faço
e do trabalho com a Banda II começou a inserir o congo em suas obras.
esta afirmação baseado em pesquisas. Pretendo inclusive lançar um A primeira foi Guananira. A segunda versão da obra foi composta em
livro no qual defendo a seguinte tese: universal não é o rock, e sim
o congo, porque ele é que é a base de toda a música que recebeu
1995 para a abertura oficial do Prêmio Guananira e se firmou em sua
influência da cultura africana e da cultura do indígena local. concepção como uma abertura e não mais uma suíte sinfônica. Mais
uma vez o compositor faz uso do experimentalismo, com desenhos de
Jaceguay Lins se apaixonou de tal forma pelo congo e pelas efeito em glissandos e trêmulos nas cordas, criando melodias usando
manifestações culturais do Espírito Santo que chegou a estudar folclore sua percepção da relação intervalar. A obra passaria a ser executada nas
duas edições seguintes do Prêmio.
1 Manifestação folclórica típica do Espírito Santo.

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Guananira é uma obra que concilia a linguagem avançada,
o aleatório controlado e a identificação com o folclore. Nela, Jaceguay
Lins obtém, com a fusão de dois veículos sonoros distintos, porém
unidos pela mesma linguagem, um resultado sonoro surpreendente.
Pela fusão com a banda de congo, foi inclusive chamada de “congo
sinfônico” pelo jornalista Luiz Tadeu Teixeira. Os efeitos desejados pelo
compositor ficam claros ao analisarmos a partitura dos contrabaixos,
por exemplo. Percebem-se os quase glissandos a partir do compasso 9,
os desenhos com duração de um compasso usando alturas aleatórias em
uma tessitura pré-determinada no compasso 12, e a preparação rítmica
para a entrada da banda de congo no compasso 41.

Infelizmente a partitura desta obra foi recolhida pelo


compositor dos arquivos da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo
e desapareceu. Somente alguns manuscritos de partes cavadas ainda
podem ser encontrados em seu arquivo pessoal. Ficamos hoje, com o
registro desta obra feito no Cd Melodiário e com a esperança de que um
dia ela possa ser novamente executada.

O Cd Melodiário, é aliás, um mapeamento de parte do


folclore do Espírito Santo. Além do congo, está presente o ticumbi,
o canto dos vaqueiros, o maracatu e o folclore indígena (GALAMA,
1999). A obra Melodiário, que dá nome ao Cd vencedor do Prêmio
Guananira 2000, é uma obra composta em três partes, como se fossem
três suítes, cada uma respectivamente com um, três e dois movimentos,
como se vê no encarte abaixo:

Guananira - parte manuscrita dos contrabaixos

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prestar uma sincera homenagem à Hermógenes Lima Fonseca, por isso
deu à obra o título Hermogeanas, em princípio.

Manuscrito da parte de oboé de Hermogeanas nº 1 – “Norte”

Jaceguay Lins pretendia, nesta obra, superar as diferenças


entre música erudita e popular. Sobre o processo que o levou a compor
Encarte do CD Melodiário, contra-capa Hermogeanas, falou na mesma entrevista de 27 de julho de 1997,
citada anteriormente:
Em princípio, esta peça foi intitulada Hermogeanas e é
desconhecido o motivo que levou o compositor a dar à obra o título de Nessa obra, pretendo superar a dicotomia erudito/
popular. A inspiração básica é o folclore do Espírito Santo, mas
Melodiário na gravação. Em seus arquivos, entretanto, na edição final trabalho com elementos da música contemporânea experimental.
usada para a gravação e nos seus manuscritos, a obra está intitulada Como exemplo, citaria o fato de ser uma obra atonal, ou seja, não
segue uma tonalidade básica. E com isso ela entra no terreno da
como Hermogeanas nº 1, 2 e 3, cada uma com subtítulos. “Norte” modernidade, da contemporaneidade. Uma das Hermogeanas,
para a primeira, com um movimento: Marcha de Chegada, Aboio e que intitulei Itaúnas, começa com o efeito de uma ventania,
produzida por um coral e por instrumentos eletrônicos. Ou seja,
Furdúncio, “Ecos” para a segunda, que compreende três movimentos: nem as pessoas estão cantando nem os instrumentos tocando
Luzgrafia, Manguezais e Itaúnas, e “Jogos” para a terceira, com dois música tradicional. É uma outra coisa, trago o elemento básico
do folclore para uma linguagem universal. Porque o folclore de um
movimentos: Ronda e Capoeira. Como se percebe no manuscrito determinado povo, como o capixaba, é algo particular. O que
abaixo, encontrado no arquivo pessoal do compositor, sua intenção era estou propondo – e fazendo – é incluir esses elementos no contexto
mais amplo. (LINS apud MENDES FILHO, 1997)
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O ticumbi, utilizado na obra, é também chamado baile da Universidade Federal do Espírito Santo, e artistas convidados.
de congo e sua instrumentação é basicamente composta por uma Destaca-se neste Cd também, a obra Tekoá-Porã, mencionada no
orquestra de pandeiros e viola caipira. A escolha desta manifestação capítulo dois deste livro.
folclórica para a sua homenagem a Hermógenes Lima Fonseca se deu
por ser ser uma manifestação típica da região de Conceição da Barra, Jaceguay Lins voltou ao congo uma vez mais em 2000,
Espírito Santo, onde Jaceguay Lins ouviu o ticumbi pela primeira vez, quando compôs uma de suas obras mais geniais: O Reino de Duas
no sítio do seu amigo. Sua admiração pelo folclorista é expressa em Cabeças, uma Ópera-recreio. Inventivo, no projeto inicial da ópera
entrevista datada de 27 de julho de 1997, a Alvarito Mendes Filho. o compositor concebeu a obra para ser apresentada no intervalo do
recreio escolar, nas escolas públicas de ensino. Desta forma, deu-lhe
O termo “hermogeanas” é uma corruptela de
“hermogenianas”, ou seja, à maneira de Hermógenes, que era
a denominação de “ópera-recreio”. Jaceguay Lins escreveu o libreto
chamado pelo pessoal do nosso meio popular de vários nomes: e a música da ópera, gravada a partir de um sintetizador e executada
Armojo, Seu Armóge, Hermoge, entre outros. Ele foi o mais
importante estudioso da cultura popular capixaba de nossa época.
em playback. O cenário simples, quase mambembe, um figurino
Possivelmente nenhum outro contemporâneo conheceu tão bem desprovido do glamour operístico convencional e a praticidade da
as raízes de nossa cultura popular quanto ele. Como amigo dele
e também como seu aluno – estudei folclore com ele e com o
execução em playback tornaram a produção da ópera muito mais
professor Renato Pacheco, no Instituto Histórico e Geográfico do viável. Os personagens que criou são antagônicos e divertidos e o
ES –, destaco nele a virtude da simplicidade. Hermógenes tinha
uma grandiosidade tremenda, mas, ao mesmo tempo, era uma
texto, como não poderia deixar de ser, revelava situações políticas que
pessoa simples, do povo. Tanto que morreu sem deixar qualquer aconteciam naquele momento de uma forma bastante descontraída.
riqueza que não fosse o conhecimento que possuía e transmitia a
várias pessoas. Como a obra que estamos gravando agora inspira-
Como o próprio compositor explicou no programa da apresentação
se nos elementos da cultura que ele tanto pesquisou e ensinou, realizada da ópera, em setembro de 2001, pretendia que cada um lhe
resolvemos homenageá-lo, dando a ela o título de Hermogeanas.
desse “a roupagem da forma”.

Hermogeanas tem, em seus movimentos, características Para não incorrer na impropriedade de “explicar” a
minha própria obra, permito-me alinhavar apenas alguns dos
peculiares. Por exemplo: em Luzgrafia, primeira peça da segunda suíte,
tópicos que nortearam a composição, para que possam outros (que
“Ecos”, o compositor intencionalmente tenta trabalhar um tema como não eu), à sua maneira, costura-los na roupagem da forma (que
cada cabeça sentencia):
se fora um caleidoscópio. Embora a obra tenha caráter experimental
e explore os elementos da cultura espiritossantense, mesmo que no uma ópera-recreio infanto-juvenil (e para todas as
campo da atonalidade, o último movimento, Capoeira, é praticamente idades) contemplando o bufo, a comédia de costumes, o folclore,
a citação, o pastiche, a sátira, o riso e a reflexão;
construído sobre a improvisação. A gravação das Hermogeanas, ou
Melodiário, como aparece no encarte do Cd, foi realizada pela Orquestra os multimeios: texto, teatro, dança e vozes em meio a
instrumentos acústicos, elétricos e eletrônicos pré-gravados num
Filarmônica do Espírito Santo, com participação da Banda II, Coral simples CD;

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personanges duplas (e o seu oposto), a ausência de
cenário, tudo convergindo a baixo custo ao terreno do factível
tanto em teatros como em escolas e espaços abertos;

12 quadros absurdos em ato único, na busca pluralista


do minimalismo e da fusão.

Ah! A esperança de cativar o público também faz parte!

O compositor,

Vitória, setembro de 2001.

(LINS, 2001)

Seu libreto recria um reino onde predomina a dicotomia. Jaceguay Lins foi o responsável pela popularização do congo.
Nesta corte mandava o Rei Bicéfalo Primeiro e Segundo, um rei de duas Por sua influência direta criou-se no Espírito Santo uma fusão entre
cabeças, cada uma com sua própria personalidade e as suas opostas. o congo e a música popular, o rockongo, que têm na banda Manimal
Ambas dividiam sua atenção com duas belas damas, Enxaqueca e seu primeiro idealizador.
Aspirina. Enxaqueca, de personalidade forte, têm características Como já foi dito, Lins desenvolveu um trabalho de
bastante nordestinas e Aspirina, caracterizada como uma bailarina, redescoberta e valorização da música popular e folclórica do
Espírito Santo, sobretudo o Congo, sendo – através de sua “Banda
representa o lúdico. Como não podia deixar de ser, o reino tinha um Dois” formada na Universidade Federal do Espírito Santo – um
Primeiro Ministro que queria sempre ampliar os limites do reino. Um dos fomentadores do movimento musical que culminou com
a popularização do gênero e de sua identificação com a cultura
Arauto que anuncia as grandes decisões do reino também faz parte do popular capixaba. É possível fazer uma ligação direta da influência
enredo. No entanto, quem percebe de fato os movimentos e o que há do mestro no surgimento do Rockongo da banda Manimal, que
trouxe a reboque outros grupos que se tormariam muito populares
por trás deles, é o Bôbo da Côrte, muito esperto. E como todo reino, como a Casaca, da Barra do Jucu, nomeada a partir de um dos
tinha soldados que executavam as ordens do rei e do primeiro-ministro instrumentos caracaterísticos das tradicionais bandas do folclore
capixaba. (MAGALHÃES, 2011, p. 103)
sem questionar. Seu enredo e seu texto fazem da Ópera-recreio O
Reino de Duas Cabeças o veículo perfeito para a divulgação da música e
O ritmo das bandas de congo tem em sua base um padrão
a formação de platéia. Um dos momentos mais belos da ópera acontece
ideal para representar a música brasileira. Sua instrumentação mais
quando começa uma das melodias mais bonitas do congo capixaba, que
comum é um conjunto de tambores, aos quais se somam reco-recos
transcrita em seu livro sobre as bandas de congo, ficou assim:
(casacas), chocalhos, cuícas, pandeiro, triângulo, caixa-clara, bombo e
às vezes apitos. Esta instrumentação forma uma estrutura de base

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ideal para esta fusão entre o rock e o congo. O trabalho de pesquisa e
divulgação feito com a Banda II, da Universidade Federal do Espírito
Santo, foi fundamental para esta redescoberta e consequente criação.

O congo representou para Jaceguay Lins uma nova porta


para a criação musical. Apesar de ter feito uso de elementos folclóricos
em sua obra antes de sua chegada ao Espírito Santo, de certo foi o
congo a manifestação folclórica que mais influenciou o seu trabalho e
porque não, sua vida. CAPÍTULO 5

Processos composicionais

Os compositores, contávamos todos com os nossos colegas


intérpretes. Não é à toa que uma das marcas da minha geração é o
uso de elementos aleatórios, onde necessariamente o intérprete tem de
ser criativo.

Jaceguay Lins

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Dentro do discurso da música brasileira contemporânea, 1969, mostra a preocupação com o uso das harmonias da música
processos composicionais os mais variados foram utilizados. Da popular e da bossa-nova. Foi apresentada na Escola Nacional de Música
atonalidade, passando pelo aleatório e pela indeterminação, direções por ocasião do I Panorama de Música Contemporânea Brasileira.
evidentes na segunda metade do século XX, a diversidade de fórmulas
particulares encontradas pelos compositores expressa-se pelo ecletismo Também pertencente a esse período, a Fábrica do Absoluto,
resultante deste contexto. Os meios adotados por Jaceguay Lins não 1968, para grande orquestra, tem uma elaboração mais brilhante, uma
fogem a essa regra. Suas composições expressam uma linguagem própria, construção mais ousada e foi estreada nos Concertos para a Juventude
construída sem ignorar as influências pessoais e culturais, sintetizada – TV Globo – sob a regência de Rinaldo Rossi. Fábrica do Absoluto,
em obras especificadas pela forma e marcadas pela contemporaneidade de acordo com o compositor, é uma peça fortemente influenciada por
de sua geração. Edgar Varèse, através do uso de blocos sonoros, e por Karel Čapek1
(1890-1938), que naquela época era a referência à literatura de ficção
O próprio compositor dividiu seu trabalho em vários científica. A obra configura uma preocupação do compositor com
períodos. Até 1969 suas obras têm um caráter ainda estudantil, fruto a diferença entre frase e mensagem sonora – a informação sonora
das informações adquiridas com Ernst Widmer, Guerra-Peixe, Edoardo resultante da construção. Em alguns momentos o compositor faz
de Guarnieri sem, no entanto, aderir completamente a nenhuma forma uso de uma frase inteira dentro de um único compasso. Esta obra é
de composição adotada por eles. Absorvia tudo, mas usava só o que resultante de uma arquitetura sonora e configura o término de um ciclo
lhe era pertinente e necessário. Das suas obras deste período, no qual de aprendizagem. A sua construção talvez seja inconscientemente uma
ainda não havia a caracterização de uma forma própria de compor, antecipação do que viria a ser posteriormente, Lacrimabilis.
merece destaque o Trio para flautas-doce (1964), que recebeu Menção
Honrosa da então Escola Nacional de Música no mesmo ano, quando o Uma segunda fase viria com a afirmação de um caráter
compositor contava apenas dezessete anos. Esta é uma obra importante individual de composição em Katemare, 1970, obra que foi fruto do
pelo incentivo, embora uma obra de estudante, e marca o início de uma estudo com Esther Scliar e Marlene Fernandes, esta, quem o colocou
produção extremamente voltada para a busca de uma forma pessoal a par da questão do uso da relação intervalar, um dos processos
de compor. Igualmente deste período é o Ciclo da cana-de-açúcar, composicionais mais utilizados pelo compositor. Há aí a definição de
primeira peça para orquestra de cordas provavelmente composta em uma linguagem própria, um encontro com sua personalidade musical.
1969, estreada pela Orquestra de São Caetano do Sul, São Paulo, em Também deste período de maior amadurecimento, e do início de sua
Concerto Comemorativo da Fundação da Escola de Música de São
Caetano do Sul, regida por Moacir del Picchia. Ainda com um caráter 1 Escritor Tcheco do início do século XX, que ficou conhecido pela
sua literatura de ficção científica, e que, pela primeira vez usou a palavra robot,
acadêmico, a Cantata Lírica sobre poemas de Leida Miguel, datada de em sua peça de teatro intitulada R.U.R (Rosumovi Umělí Roboti – Os Robots Arti-
ficiais de Rossum). n.a.

102 103
trajetória marcadamente pessoal como compositor, Policromia (1970) Dois, para instrumentos culinários, apresentada por Vânia Dantas Leite
também é representativa por já revelar uma grande preocupação com e o próprio compositor, no Teatro Opinião. À época, o Teatro realizava
os timbres. Uma particularidade desta obra é sua formação. Embora os “Concertos à Meia-noite” organizados pelo compositor e mais tarde
tenha sido composta para uma orquestra sinfônica completa, o por Vânia Dantas Leite. Concertos estes, onde só havia espaço para a
compositor adotou o recurso de escrever uma parte para somente um música contemporânea e para novas audições. Estes eventos tinham
dos instrumentos de cada naipe de sopros. Entretanto, escreveu para o como objetivo oferecer a toda uma geração de ouvintes formada pelo
naipe completo de cordas. Segundo Jaceguay Lins, esta peça marcou Instituto Villa-Lobos, a oportunidade de se manter em contato com
o fim da sua relação professor/aluno com Ernst Widmer. A partir de a produção musical da época. Na mesma linha de uma aleatoriedade
então ganhou a autonomia. A partir de Policromia, às preocupações circunscrita somente pela macro-estrutura, Praxis, um “mano-solfejo”
de compositor somaram-se as de “professor de composição” – termo para grupo indeterminado de instrumentos e regente, foi estreada
com o qual Jaceguay Lins nunca concordou por considerar que a arte no MAM do Rio de Janeiro. Os sinais delimitados pelo compositor
da composição não pode ser ensinada, mas sim a estrutura musical, por e indicados pelo regente é que determinam o resultado sonoro. No
onde fluirá a linguagem do compositor. terreno da arte conceitual, temos Ciclo para 5 instrumentos. Sobre
esta obra em particular, Jaceguay Lins (1999) expressa sua opinião da
No Instituto Villa-Lobos, onde lecionava na época, havia seguinte forma:
uma intensa atividade produtiva, não só por parte dos professores mas
Ao invés de se pensar numa partitura inteira, acabada,
também dos alunos. As inúmeras composições desta época voltavam-se ela é uma partitura gráfica, que reflete uma época da arte brasileira
para o aprendizado, para a participação dos alunos, e por isso mesmo que tem no poema processo toda a sua fundamentação. Ou seja, já
ninguém naquele momento estava preocupado em fazer um poema
não era possível reter tudo. As peças eram compostas, entregue aos que tivesse um verso ou que tivesse uma estrofe, mas que tivesse um
grupos para estudo e performance e não eram mais recolhidas. A processo de construção.[...] Um movimento muito mais radical do
que a poesia concreta. Enquanto que a poesia concreta talvez esteja
maioria das obras composta neste período foi perdida. No entanto, mais, muito mais para o lado do serialismo, o poema processo tá
desta preocupação de professor, destaca-se Retrato de Carmen Parra, mais para o lado do aleatório, onde a própria forma de editar, a
própria paginação do livro encerra o propósito do poema.
para 4 trompas, onde se nota uma preocupação altamente instrumental,
pedagógica, com relação à trompa, onde o composior tenta explorar
Atmos, composta em 1977 para sopros e piano, foi apresentada
ao máximo algumas de suas possibilidades técnicas e sonoras.
na II Bienal de Música Contemporânea, estreada pela Camerata
de Santa Tereza, uma orquestra de câmera formada por alunos de
Com a influência das pesquisas e das informações obtidas
composição do Instituto Villa-Lobos. De uma fase mais madura, são
pelo trabalho no Instituto Villa-Lobos aliadas à vertente contemporânea
Ave, Palavra, 1979, sobre poemas de Guimarães Rosa, para soprano
mundial e o envolvimento com o social, sua linguagem musical tendeu
(apesar da indicação de voz aguda na partitura) e quatro percussionistas,
para uma aleatoriedade mais ampla, como é o caso de Uma Refeição para
peça onde o compositor mais trabalhou recursos da linguagem serial. Seguindo a definição dada acima, podemos considerar a
Apresentada na IV Bienal de Música Contemporânea, representou o aleatoriedade de duas formas: em um primeiro ponto de vista, como
Brasil na Semana Brasileira em Colônia. Também desta maturidade, um fator determinado pelo compositor mas totalmente independente
resultou a composição de Lacrimabilis, em 1977. Em ambas, Ave, de sua vontade quanto à execução e, em um segundo ponto de vista,
Palavra e Lacrimabilis, timbre e intensidade são abordados com muita deliberado por ele em todos os aspectos, mas dando ao intérprete
preocupação e cuidado, construídos arquitetonicamente. liberdade de escolha dentro de limites preestabelecidos. No primeiro
caso, somente a macro-estrutura é definida por ele, cabendo ao intérprete
as decisões que formarão o campo sonoro. A interpretação dada às suas
indicações é que resultarão em um conjunto que se transforma de
O aleatório
intérprete para intérprete. Outras vezes, como no segundo caso, não.
A aleatoriedade entra no Brasil como força resultante Suas indicações oferecem limites precisos de escolha ao executante, que
do movimento de liberação dominante na época. A intenção dos terá uma liberdade cerceada por esta delimitação. Em qualquer um
compositores neste caso era dividir resultado final com o intérprete dos casos podemos considerar que não existe uma aleatoriedade total,
vendo nele um parceiro na criação da obra e não um mero executante. mesmo randômica.
É característica dessa geração compartilhar suas descobertas com outros
Para ilustrar estes dois pontos de vista, tomemos por exemplo
criadores, músicos ou não. As interferências eram aceitas de bom grado
a obra 4’33”, de John Cage. Para o compositor o resultado será sempre
e em alguns casos tornavam ainda mais rico esse processo criativo.
aleatório, em certo grau, mas a macro-estrutura foi determinada. O
Esta questão era abordada com muito critério por Jaceguay Lins e
tempo de duração da obra e sua macro-estrutura (três movimentos)
consequentemente é um elemento a ser analisado com cuidado já que a
foi previamente delimitado e são os únicos elementos sobre os quais
palavra aleatório pode sugerir diferentes interpretações.
o compositor tem controle, mas ainda assim, tem algum controle. O
Partindo de uma definição mais abrangente, encontramos no resultado da performance, no entanto, lhe será sempre desconhecido.
Dicionário Grove de Música (1994, p. 19) que: Neste primeiro ponto de vista, também podemos considerar o
elemento aleatório como sendo casual, exposto à sorte – uma vez que
aleatória, música Gênero de música em que certas o próprio termo aleatório deriva-se da palavra grega alea – “dados”.
escolhas na composição ou na realização são, em maior ou menor
grau, deixadas ao acaso ou à vontade de cada intérprete. Recursos Seguindo este raciocínio não podemos inserir as obras de Jaceguay Lins
aleatórios típicos incluem dar ao intérprete uma escolha na ordem neste contexto que abrange a aleatoriedade total ou indeterminação.
das seções; utilizar elementos randômicos ou casuais; ou utilizar
notações simbólicas, gráficas, textuais ou outras, indeterminadas, As suas obras compostas sob o prisma da aleatoriedade são estruturadas
que o executante pode interpretar como quiser. [o grifo é meu] com elementos pré-determinados. Desta forma o intérprete dividirá
a responsabilidade criativa com o compositor mas sempre terá limites Corroborando o pensamento do compositor, Yehudi
definidos. Não foi possível localizar suas obras mais controversas neste Menuhin (1990, p.271) considera que: “A música casual é, em grande
sentido, como Policromia, Uma Refeição para Dois, Noturno, Saxofonia, parte, uma abdicação de responsabilidade artística, embora seja um jogo
Praxis ou mesmo Viagem, mas analisando o conjunto de sua obra e suas fascinante e, além do mais, pode ser interessante descobrir exatamente
considerações sobre como percebia a questão da aleatoriedade podemos o quanto dela é realmente ‘casual’.” Podemos pensar assim com relação
chegar à esta conclusão. a algumas obras de Cage, por exemplo. Daniel Charles, refere-se ao
trabalho de Cage da seguinte forma:
Uma coisa é o som musical. Outra coisa é a descrição
literária desse som[...] que faz com que você leia duração, timbre,
Música experimental, no fim das contas; mas não na
intensidade e altura – é a escrita mais genial que o ser humano já
acepção científica do termo: nela nada há que provar nem
concebeu. Nenhuma outra se lhe compara. [...] Mesmo com toda
descobrir, e Cage não é um obstetra do som. Longe de visar a um
essa genialidade, existem algumas questões agógicas que a escrita
resultado, a experiência consiste em obtê-lo diretamente, sem desvios
nunca, jamais em tempo algum vai conseguir realizar. [...] Por
para chegar até ele. E os procedimentos usados podem parecer um
outro lado, você tem no nascimento da escrita musical, sugestões.
desafio à inteligência: eles levam ao teatro instrumental, à mímica
Os melismas do cantochão, por exemplo, são mantidos através da
e à pantomima. Cage é o inventor do happening... Seu objetivo,
tradição. Não está tudo escrito ali. Os neumas gregos são apenas
em todos os níveis, é passar por cima dos aspectos intelectuais da
alguns sinais. [...] De modo que desde os primórdios parece que
escolha. (CHARLES apud MASSIN, 1997, p. 1205)
estava embutido o elemento aleatório. É verdade que na nossa
geração o elemento aleatório passou a ser a prima dona mas ele esta
presente em toda a história da música. Mesmo se você considerar Como se pode perceber, Jaceguay Lins não compartilhava
uma partitura com escrita definitiva, nunca haverá dois intérpretes
tocando-a da mesma maneira. Por conseguinte está implícito este pensamento. Para ele, o intérprete era sempre um co-autor.
o elemento aleatório, pelo modus de fazer música. Eu tenho a Para exemplificar o segundo caso, mais próximo dos seus processos
impressão de que o aleatório na nossa geração, tem um papel de
tamanha importância devido à complexidade da geração anterior. composicionais, podemos tomar como exemplo sua obra Katemare,
(LINS apud GALAMA, 1999) onde apesar da liberdade na execução dos desenhos, os intérpretes
encontram durações definidas até um certo ponto, alturas determinadas
Na visão de Jaceguay Lins, o elemento aleatório deveria
e ritmos definidos. No exemplo a seguir podemos perceber como o
simplificar a vida do intérprete, uma vez que o livrara das amarras
compositor indica a duração dos compassos no primeiro movimento
tradicionais de interpretação. “Se você tem uma progressão, digamos,
(mais ou menos um segundo e meio), assim como a definição dos
do grave pro agudo com inúmeras notas, a tendência do ser humano é
valores das notas usando uma linha contínua, as alturas determinadas e
conservar na memória a primeira e a última. As intermediárias passam
o ritmo preciso da percussão.
a ter o papel de desenho”. (LINS apud GALAMA, 1999) Podemos
perceber que a visão da aleatoriedade, do ponto de vista de Jaceguay
Lins, não era radical, consequentemente sua aplicação.
composicionais utilizados por ele, dentro da aleatoriedade, oferecem
elementos que sugerem liberdade do ponto de vista dos intérpretes,
embora tenham limites mais ou menos determinados mas sem
desvincular o compositor de sua responsabilidade criativa. Mesmo
quando essa liberdade é expandida em algum elemento, por um lado
outros elementos mantém a organização. O processo aleatório, no
caso, torna o intérprete um parceiro do compositor que esquematiza
a estrutura, deixando que o executante participe da criação da obra
Katemare – primeiro sistema, primeiro movimento.
dentro de elementos preestabelecidos. Este fato tem uma dimensão
Quanto ao uso da linha contínua para determinar a duração ainda maior se considerarmos que nessa época havia uma união
da nota, Jorge Antunes (1989, p. 76) explana esta questão da seguinte por parte dos compositores e intérpretes que possibilitava uma total
forma: confiança no resultado final. O objetivo é facilitar ao intérprete poder
demostrar toda a sua habilidade e conhecimento.
A linha sucede a nota e indica a sua duração
(razoavelmente longa) dada em segundos, ou dada pelo compasso e
andamento metronômico tradicionais [...]. Concertante de 1974, é dedicada a Jocy de Oliveira. Recebeu
menção honrosa no Primeiro Prêmio Esso de Música Erudita.
Esta notação é altamente eficaz e prática sob todos os Foi composta para piano e orquestra de cordas, também dentro do
pontos de vista. Ao regente e ao intérprete em geral ela permite
ver e antever de imediato o processo estático do fenômeno sonoro. terreno da aleatoriedade controlada. É uma peça que requer do
Ao compositor ela facilita o trabalho gráfico para o qual a notação pianista uma grande capacidade imaginativa e, por esta razão, várias
tradicional requer o uso de dezenas de semibreves, mínimas,
semínimas e ligaduras. Observe-se que a unidade de compasso vezes o compositor manifestou o desejo de reescrevê-la e torná-la mais
nos compassos de cinco e sete tempos necessitam, na notação acessível. O compositor faz uso da notação musical contemporânea
tradicional, de no mínimo duas figuras ligadas entre si.
convencional, começando a parte do piano na nota mais grave, sem no
Desta forma, a aleatoriedade é percebida como sendo a entanto indicar qual.
liberdade dada ao intérprete, uma vez que a execução dos elementos
aleatórios dependerá de sua escolha, seja quanto à duração, timbre,
intensidade, altura, virtuosismo ou qualquer outro meio sonoro
inerente à sua participação, dentro de fatores deliberados pelo
compositor. Haverá a escolha. É neste campo da aleatoriedade que
parece-me razoável incluir as obras de Jaceguay Lins. Os processos Concertante, entrada do piano - compasso 9. Manuscrito.
As notações utilizadas são descritas por Jorge Antunes graves em determinados momentos, e de um prato grande que é
respectivamente como: “uma improvisação com trajetória dada” nos deixado cair sobre as cordas, a peça tem uma configuração intimista.
três primeiros compassos e “uma nuvem de pontos”, utilizada a partir Toda esta estrutura, cordas pinçadas e uma economia sonora para não
do quarto compasso da entrada do piano. Esta “nuvem de pontos” cair num virtuosismo tímbrico, oferece ao intérprete e ao ouvinte um
implica em uma improvisação livre com sons pontuais utilizando universo sonoro impossível de ser obtido somente no teclado. Como
densidade vertical e horizontal. (ANTUNES, 1989, p. 72) dito anteriormente, a localização desta obra é desconhecida, sendo
as considerações acima traçadas pelo próprio compositor. Não há
Neste tipo de nuvem os intérpretes variam a
quantidade de sons emitidos na unidade de tempo, evoluindo nenhum registro de datas.
gradualmente desde o muito denso (sons pontuais condensados)
até o pouco denso (sons pontuais rarefeitos) e vice-versa. A
velocidade destas evoluções é determinada pelas durações indicadas
pelo compositor.
A relação intervalar
Podemos observar, portanto, que o piano, na linguagem de
Jaceguay Lins, é usado com o objetivo de explorar todos os timbres Segundo José Miguel Wisnik (1989, p. 53), intervalo é “a
possíveis, obtidos através do resultado das combinações existentes distância que separa dois sons afinados no campo das alturas.” Cada
entre ele e outros instrumentos, percussivos ou não, e a intervenção intervalo sugere de acordo com sua propriedade física, uma função
do intérprete de formas inesperadas ou pouco ortodoxas na literatura específica vislumbrada pela história da música a partir da Idade Média.
pianística tradicional. Este pensamento acompanha o de toda uma A relação intervalar, considerando-se a relação proporcional à altura,
geração que usou todos os recursos de que o instrumento pode dispor pode ser sentida pelas suas propriedades de atração, rejeição, resolução
a fim de obter o melhor resultado sonoro possível. A possibilidade e afinidade. Assim, temos a oitava como elemento de repouso que
melódica, harmônica e tímbrica do instrumento tornou-se quase reforça a tonalidade. A quinta e a quarta sustentam o eixo harmônico,
ilimitada desde que somaram-se à sua capacidade o uso de recursos conferindo apoio mas também movimento. Nesse universo harmônico,
externos e de atuações não convencionais por parte dos intérpretes. intervalar, as terças “incluem, segundo uma certa visão de semântica
musical, cores afetivas e sentimentais no campo das alturas (no sistema
Segundo o compositor, Sinergia é a única peça para piano tonal são o diferenciador de modo maior e menor, e suas cores mais
solo composta por ele. Foi escrita para Ney Salgado que a estreou “luminosas” ou “sombrias”, “alegres” ou “tristes”). (WISNIK, 1989,
no Instituto Villa-Lobos. Pode ser considerada um prelúdio onde o p.58) No entanto, a música do século XX encontra na segunda menor
uso das sonoridades do piano são bastante exploradas dentro de uma e no trítono intervalos “afinados” com o propósito de se desfazer da
aleatoriedade controlada. Trabalhada no teclado e nas cordas fazendo tonalidade. O trítono, pela sua instabilidade, oferece justamente por
uso de uma régua, com a qual o instrumentista deve raspar as cordas isso, a possibilidade de qualquer mudança.
Katemare, uma pequena cantata constituída de sete optou-se por transcrever os versos o mais próximo possível do som real
movimentos2, é uma das obras mais representativas do trabalho de obtido com pronúncia, embora o resultado desta transcrição não tenha
Jaceguay Lins, onde o compositor faz uso exaustivo da relação intervalar. sido satisfatório, segundo o compositor, com relação à questão da língua
Escrita para soprano, viola e percussão, foi composta no ano de 1970, tupi. Exemplos destes possíveis equívocos podem ser sentidos, segundo
ainda no Instituto Villa-Lobos e teve um resultado além das expectativas. o compositor, no quarto verso onde, a rigor, deveríamos ouvir “Jaçanã,
É dedicada a Sonia Born, quem apresentou o texto ao compositor, guyvareó”. No entanto, encontramos os versos escritos da seguinte for-
e a Georg Scheuermann. Foi apresentada na I Tribuna Nacional de ma: “Nhaçanin, guyvaréó”. A métrica “quadrada” e o formato em que os
Compositores – Rio de Janeiro, 1970 – e também foi escolhida para poemas estão dispostos também sugerem uma construção europeizada.
representar o Brasil na Tribuna Internacional de Compositores da Segundo o compositor, no poema existem referências a mitos Guarani,
UNESCO em Paris, em 1971. Para esta obra o compositor escolheu como por exemplo Japuin Guirapendê, pássaro mitológico. É possível
propositalmente os intervalos de trítono e 2ª menor para a composição que estas referências ocasionaram uma tradução bem livre dos versos,
do primeiro movimento e manteve a 2ª menor como elemento comum que, no entanto não apresentam uma grande ligação entre uma estrofe
a todos os sete movimentos da obra. Desta forma cria um contexto e outra. No poema a seguir, cada estrofe corresponde respectivamente a
aparentemente instável mas não desequilibrado. Esta obra é, antes de um movimento da cantata.
tudo, um exercício para a prática da relação intervalar sob o ponto de
KATEMARE CANTO FORTE
vista harmônico e melódico.
Mira pequé avá? O homem dormia docemente
Os versos utilizados para a composição da cantata foram reco- Emboiaçu memboava A Cobra-grande se aproximava
Aniová guripé Aniová [nome próprio] se assustou
lhidos de um antigo livro não preservado pelo compositor e os poemas, Emboiaçu memboava A Cobra-grande se aproximava
em tupi, são atribuídos a um índio chamado Katemare, que significa
Orerope conderava Nós, tristemente, olhamos o Japuin
Canto Forte. Após a composição da obra, entretanto, o compositor japuin guirapendê Guirapendê [pássaro mitológico]
começou a suspeitar da autoria indígena do poema quando verificou a Erori dera vidjuva Erori [nome próprio] ia banhar-se
Enovenonga cherecê E alegremente olhava [o pássaro]
estrutura dos versos. Há neles algumas características dúbias que o le-
varam a suspeitar de sua identidade autoral, ou da forma usada para sua É javaé Javaé [nome próprio]
Téle paranan paranan Vai ao rio, ao rio
transcrição. Jaceguay Lins supôs que, à falta de elementos fonéticos que Erorin yh… derá De lá, ele vai voltar
pudessem caracterizar fielmente a pronúncia de certas palavras indígenas, Derá vidjuva Ele voltou
Paranan janaeté Vamos todos ao rio
Paranan vituaçu O grande rio negro
2 Embora cada “movimento” da cantata não tenha a dimensão ca-
racterística do termo, este é o que melhor representa cada uma de suas Nhaçanin Nhaçanin Guyvaréó [o dono dos pás-
pequenas seções, visto que há, em todas elas, o denominador comum da Guyvaréó saros, mitologia]
relação intervalar (n. a.). Enovenonga cherecê Alegremente olhava
Ai! Nhaçanin guyvaréó Ah, Nhaçanin Guyvaréó significativos são a 2ª menor e o trítono que causam uma instabilida-
Enovenonga cherecê Alegremente olhava
de pelo seu uso em quase todos os movimentos. Podemos dizer então
É jaceô quocherendera Vai procurar a namorada com a canoa que a construção, na relação intervalar é, em quase todos os sentidos,
Canunguá, canunguacerê grande que lança n’água
Ai! Jaceô quocherendera Ah, Vai procurar a namorada com a ca- cerebral, analisando a estrutura e a disposição dos intervalos na partitu-
Canungá canunguacerê noa grande que lança n’água ra. A continuidade do esquema sonoro definido pelo compositor existe
Pyra Peixes numa seqüência intervalar estruturada, assim como as orientações dadas
Pyra Peixes ao intérprete fornecem uma base extremamente sólida para sua interpre-
Apononairumo pyra Vamos pegar peixes para a aldeia
Deretamo A outra aldeia tação. No entanto, não podemos negar a presença de elementos aleató-
Epiacê Peixinhos miúdos rios, embora estes não comprometam a idéia central do compositor. É
Pyra Peixes
Penderetama A aldeia do outro lado [do rio] importante definirmos aqui que o compositor considera somente o uso
da classificação dos intervalos utilizados assim como sua inversão. Um
Me maran pereicó Vamos para a roça
Ai me maran pereicó Ah, vamos para a roça exemplo do uso da relação intervalar pode ser vista no exemplo a seguir:
Derorivá amonguirá guirá Moquear em girau os pássaros. Os pás-
tauató saros estão moqueados [grelhados]

Na relação intervalar os primeiros elementos a considerar


são os intervalos escolhidos pelo compositor para a construção da
obra. Jaceguay Lins (1999) descreve o recurso da relação interva-
lar da seguinte maneira:
Início do segundo movimento – soprano e viola
Ao invés do uso de temas ou tema ou mesmo de série,
como é o que ocorre geralmente na música atonal, quando um
tema é substituído por uma série, o processo usado foi a total Cabe aqui ressaltar outro aspecto considerado
economia de meios, onde o que me interessa é a recorrência a
determinados intervalos e através dessa recorrência é que a obra pelo compositor sobre a relação intervalar: somente a sucessão
inteira é construída.
das notas determina o intervalo. Ou seja, considera-se sempre o
intervalo, partindo-se da última nota escrita para a primeira nota
. No caso de Katemare os intervalos que determinaram
a construção foram a 2ª menor, a 3ª maior, a 3ª menor e o trítono. seguinte. As notas sustentadas deixam de caracterizar um inter-
De todos estes intervalos utilizados pelo compositor nesta obra, os mais valo a ser considerado, a partir do momento da inserção de outra
nota. Outra questão no uso dos intervalos é a sua enarmonia, con- instrumental” (LINS, 1999). A sua forma foi elaborada para dar aos
siderada também na sua classificação. A seguir temos o esquema poemas sua concepção original de pequenos quartetos, portanto,
da relação intervalar de todo o quarto movimento: Katemare tem uma forma muito particular que tem como unificador,
os intervalos. Sua unidade é determinada pela 2ª menor. A escolha dos
intervalos determina uma seleção rigorosa de quais notas serão usadas,
de acordo com sua importância, e respeitanto o conceito de uma maior
economia de meios.

Katemare vale um lugar de destaque no conjunto da obra


de Jaceguay Lins pelo seu rigor formal e identificação que teve com o
pensamento da época, uma vez que foi a obra escolhida para representar
o Brasil na Tribuna Internacional de Compositores, em 1971. Esta
indicação já lhe garante, por si só, um lugar de destaque.

Timbre e intensidade
Esquema intervalar – movimento IV
Jaceguay Lins trabalhava o timbre e a intensidade de forma
É importante perceber neste exemplo que os intervalos peculiar, como se fora um processo de composição. Duas obras se
muitas vezes são classificados quanto à sua inversão e tomamos aqui a destacam usando estes parâmetros. A primeira delas é Lacrimabilis,
definição de trítono como aqueles intervalos que apresentam quatro composta entre 1972 e 1977. A segunda é Ave Palavra, composta
tons inteiros, ou seja, a quarta aumentada ou a quinta diminuta. em 1979, sobre poemas de Guimarães Rosa. Na capa do manuscrito
encontramos um poema escrito pelo compositor:
Katemare é nomeada cantata pelo compositor pelo simples
fato de ser uma obra para ser cantada, longe da denominação de
cantata barroca, em sua construção. Como uma peculiaridade desta
geração também podemos apontar que era uma característica destes
compositores o compromisso com a etmologia. “É uma pequena cantata,
na medida em que é uma peça para ser cantada com acompanhamento
Algumas vezes, por algum equívoco, a obra aparece em
alguns artigos e jornais com o título Illacrimabilis. Entretanto, nos
originais e documentos relativos à sua apresentação, confirmamos
o nome de Lacrimabilis –“aquela que foi chorada” – como sendo o
título original conferido à obra. Lacrimabilis mereceu o 2º lugar no
1º Concurso Nacional de Composição do Ministério da Educação e
Cultura – Fundação Nacional de Arte, Instituto Nacional de Música –
por ocasião da II Bienal de Música Contemporânea Brasileira – 1977,
na categoria “música sinfônica”. Observando o programa da II Bienal
de Música Contemporânea Brasileira, existe, no entanto, a referência
à premiação da peça ATMOS. Segundo o compositor, há aí um
equívoco: Lacrimabilis foi premiada na II Bienal, mas não executada.
Poema encontrado na capa do manuscrito de Lacrimabilis A prova de sua premiação, está em um outro programa referente à sua
estréia em São Paulo, dois anos depois, nos 12 Encontros Sinfônicos da
Lacrimabilis é uma peça sinfônica, em movimento único, Primavera, temporada de 1979, sob a regência de Eleazar de Carvalho,
concebida em quatro seções separadas, da segunda para a terceira, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. O mesmo regente,
por uma ponte. É construída dentro de um contexto estruturalmente conduziria o Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na
complexo, onde os elementos se repetem de formas variadas. Essa III Bienal, quando da apresentação de Lacrimabilis, naquela cidade.
repetição se dá, ora em timbres diferentes, isolados ou resultantes da Esta apresentação foi descrita no capítulo dois deste livro, quando
aglutinação de um ou mais instrumentos. Este contexto é construído mencionamos os artigos de Enio Squeff. Como foi dito, menos feliz
pela relação adotada entre os parâmetros já mencionados de timbre e foi essa execução, no mesmo ano, em virtude do preconceito existente à
intensidade. Esta obra tem uma forma própria, na qual são utilizadas época por parte de alguns músicos, especialmente com relação à marcha
pequenas células, variadas dentro de um grande conteúdo sinfônico, inserida nos últimos compassos da peça.
o qual é seccionado de acordo com a necessidade da exposição de
idéias. Isto a assemelharia a uma Sinfonia Breve, onde os elementos são
expostos inicialmente, apresentados de formas variadas em sequência,
A construção tímbrica
explorados e depois reexpostos na última seção. A condução dos
elementos, no entanto, nada lembra a tradicional esquematização
O resultado sonoro obtido com Lacrimabilis, num total jogo de
adotada para a construção de uma sinfonia nos moldes convencionais.
cores, efeitos com recursos inusitados, conferem à obra uma construção
tímbrica singular. Nesta obra os timbres são usados convencionando- *1º Percussionista – Wood-block; Vibrafone; Tambor;
se que o som fornece, com suas propriedades específicas, parâmetros folha de zinco; Campana; Tom-tons; Tam-tam (chamado de gongo
configurados em cada um dos sentidos que abrangem a sua formação: chinês); Bateria (no compasso 94, o instrumentista tem a escolha do
o timbre, a intensidade, a duração e a altura. John Cage resume da instrumento); Crótalos.
seguinte forma essa consideração: “O sentimento da durée [duração]
veio-me de uma consideração da natureza do som; sentia-o como tendo *2º Percussionista – Xilofone; Gran-cassa (bombo); Tam-
quatro dimensões: altura, intensidade, timbre e duração.” (CAGE apud tam; Caixa-clara; Triângulo; Campana; Bateria (também no compasso
MASSIN, 1997, p. 1205). Inerentes ao som produzido, todas estas 94).
dimensões, são, portanto passíveis de serem analisadas. Esses quatro
Outros recursos sonoros usados em Lacrimabilis são: voz
parâmetros é que conferem a singularidade à peça pelo modo como
humana (respectivamente sussurros, murmúrios e palavras), percussão
estão dispostos. A altura é estabelecida pelo compositor com a intenção
com os pés (marcha) e despertador.
de provocar a tensão ou relaxamento. Toda progressão do grave para
o agudo, assim como o crescendo e o acelerando, provocam tensão; Cinco incisos serão a base de toda a construção da obra e na
o movimento contrário dessas expressões levam ao relaxamento. O primeira seção, compreendida entre os compassos 1 e 26, predominam
timbre – a cor – é inerente ao instrumento, mas podemos pensar no
os blocos sonoros, clusters e uma grande densidade.
timbre resultante da soma de vários instrumentos, como uma nova
cor. A duração – longo ou curto – provoca também a tensão e a criação inciso 1, piano – compasso 1
do ambiente rítmico, assim como a intensidade será responsável pela
condução da estrutura sonora, pela mudança de interesse auditivo.
Para entendermos melhor estas colocações, tomemos inicialmente a
orquestração:

Orquestra – Flautim; 2 Flautas; 2 Oboés; Corne Inglês; 2


Clarinetes; Clarone; 2 Fagotes; Contrafagote; 4 Trompas; 3 Trompetes;
2 Trombones; Tuba; Harpa; Piano; Celesta; Tímpanos; 2 percussionistas inciso 2, violinos – compasso 1
(*)3; Cordas.

3 É interessante perceber que, ao invés de determinar os instrumentos


da percussão, o compositor já delimita aqui, quais serão os instrumentos des-
tinados a cada percussionita. n. a.
inciso 3 no tímpano – compasso 2

inciso 4, contrabaixos – compasso 2

Lacrimabilis, seis primeiros compassos.

A construção de Lacrimabilis se detém aos parâmetros de


timbres e intensidade, diferenciadores na obra. Sua arquitetura tímbrica
revela uma rica paleta orquestral, que pode ser observada através de
uma sucessão de cores sonoras renovada praticamente a cada compasso,
inciso 5, violoncelos – compasso 4
valorizando, pela orquestração, esse parâmetro. No exemplo anterior é
possível verificar o começo desta construção arquitetônica relacionadas
a este parâmetro. A intensidade revela uma sutileza no delineamento
da dinâmica, responsável por efeitos tensionadores e captadores da
atenção do ouvinte .

O inciso 1, apresentado primeiramente no piano e no


wood-block, repetido constantemente no decorrer da obra, será uma
Todos estes incisos podem ser percebidos nos primeiros das principais células usadas e sua importância é acentuada a medida
compassos da obra, no exemplo a seguir. que cresce a tensão, a partir do compasso 73. Este inciso, cada vez mais
adensado com a aglutinação de instrumentos, à medida em que aparece
– sempre sforzzatto ou fortíssimo – tem um caráter percussivo, a
maioria das vezes em extremos, culminando em ataques concentrados. posição visual da orquestra. O compositor insere no contexto uma
alusão ao momento político da época – a ditadura – onde o fortíssimo,
O inciso 2, cluster formado pelos harmônicos em divisi, a repetição das células iniciais e a marcha iniciada no compasso 101
sempre nos violinos, violas e violoncelos, tem, nesta primeira seção, são encerradas pelo timbre inusitado de um despertador, chamando
sua principal apresentação, já que só retornará em todas as cordas à realidade a sociedade brasileira. Apesar desta peça ter sido escrita da
novamente, tardiamente, antes disso só aparecendo isoladamente. década de 70, sua idealização encontra eco nos movimentos atuais. É
Este suporte harmônico, timbricamente instável, atende à construção importante ressaltar que o compositor usou o recurso do emascaramento
elaborada da intensidade, organizada precisamente, cada uma das de timbres, através de um mesmo ataque em vários instrumentos, mas
vezes em que o compositor se utiliza deste recurso. No esquema deste só um deles prolongando o som, por meio de cresc e decresc superpostos.
parâmetro, vamos observar que, do ppp ao fff , o compositor constrói
a intensidade de uma forma muito elaborada, servindo-se deste motivo No segundo compasso temos o inciso 4, apresentado
como elemento de ligação entre os outros incisos. nos contrabaixos. As notas definidas e sustentadas sugerem outro
elemento dentro da construção da obra: o elemento não aleatório,
A pequeníssima célula do tímpano – inciso 3, compasso 2 sonoramente determinado, inserido dentro da questão intervalar, com
– será o elemento que encerrará em si mesmo a tensão culminante na a predominância da 2ª menor e do trítono, com duração determinada.
última seção, conduzindo a densidade até o final, quando a marcha É a ele – o inciso 4 – que cabe a resolução do contexto da terceira seção
é introduzida. Este é o elemento alusivo ao coração, apresentado (compassos 47 a 77) no fff em decrescendo dos metais – compasso 73,
inicialmente no segundo compasso. Neste compasso, este inciso 3 é mostrado no exemplo a seguir:
inserido em p , juntamente com os sussurros, em 4/4 suportado por um
elemento de instabilidade que é o cluster inteiro, cromático, ascendente
de ½ em ½ tom, dividido pelas cordas e distorcido pelo vibrato. Essa
progressão do grave para o agudo estabelece uma tensão e, à medida em
que acontece, o tempo se estreita. Primeiro, 4/4, depois 3/4, seguido
por 2/4. Isso conduz a um acelerando.

Toda a densidade contida no uso dos timbres e da intensidade


tem no tímpano o principal elemento, usando usando o inciso 3, cada
vez mais acelerado, dentro de um contexto mais complexo, turbulento,
como a chegada de uma multidão. Primeiro os “sussurros”, depois os
“murmúrios” e em seguida as “palavras”, vindo de trás para frente, na
Apresentados os incisos e suas implicações, discorremos
rapidamente sobre as seções:

Na 1ª seção – compreendida entre os compassos 1 e 26 –


são apresentados os incisos e algumas de suas variações, assim como
as ideias centrais de toda a peça, com um amplo uso do elemento
aleatório, caracterizado pelo inciso 5, e uma elaboração da intensidade
que começa em um pianíssimo dos primeiros violinos, em contraste
com o motivo percussivo do inciso 1 ( sfz, no piano, mais o wood-
block), constituindo-se o primeiro emascaramento de timbres. A partir
daí, a elaboração da intensidade, sempre com uma sutileza em cada
compasso e a repetição dos incisos em timbres diferentes, criam um
universo instável, sonoramente retraído até o compasso 16, quando
pela primeira vez é usado o fff, recuando em seguida para o p, iniciando
Compasso 73
um grande progressão. Repara-se que nesta primeira seção, nenhum
compasso tem a mesma formação instrumental ou uma elaboração de
O último inciso, 5, é o elemento aleatório inserido no
intensidade que já tenha ocorrido na peça.
contexto. A sutileza, entretanto, estará presente nos compassos 21 a 25,
onde esse elemento perde a continuidade, ou seja, pode-se observar no
A 2ª seção – compreendida entre os compassos 27 e 36 – é
exemplo que se segue, a interrupção do desenho em cada seqüência,
a mais elaborada das seções, em andamento mais rápido. O elemento
comparados à sua primeira apresentação.
aleatório somente se fará perceber no compasso 35, onde há um
glissando do piano com a baqueta nas cordas. Todas as notas, escritas
minuciosamente não deixam dúvidas sobre a intenção musical do
compositor e ainda nesta seção, percebe-se a não repetição de timbres
e intensidade. Podemos pensar aqui em uma melodia distribuída por
toda a orquestra, acompanhada por uma harmonia “densa”. Ou seja,
pequenas células melódicas são distribuídas, ora em forma de arpejo,
ora cristalizadas (como harmonia) e ora sustentadas por acordes.
Também ocorre aqui um jogo de timbres, diferente do emascaramento,
usando nota ou acorde tocados por mais de um instrumento, sem
que o ataque ocorra ao mesmo tempo e com durações diferentes. É Este acorde é distorcido pelo vibrato cada vez mais largo, chegando
um trabalho mais sutil com os timbres da orquestra, ou seja, toda uma ao glissando. Há uma certa predileção do compositor pelo trabalho
estrutura de instrumentação e orquestração, voltada para a leitura de realizado a partir do compasso 85 até o 94, onde, a esse acorde, agora
timbres, o jogo de cores. em trinado, junta-se o inciso 4 nas madeiras e, depois, metais e celesta.
Segundo o compositor, é o momento em que, do ponto de vista da
Unindo estas seções, encontramos uma ponte compreendida orquestração, é obtido o melhor resultado sonoro, somando-se timbres
entre os compassos 37 e 46, que tem caráter melódico, caracterizado novos a um efeito distorcido nas cordas, com a intensidade definida
por um ambiente obscuro criado pelas cordas e o piano, trazendo de especificamente. Há, aqui, mais uma sutileza na composição, quando
volta os incisos iniciais, respectivamente, o inciso 4 nas cordas, com são inseridos compassos de diferentes tamanhos, deixando a resolução
exceção ao primeiro violino, que retoma o inciso 2. O piano mais a cargo de cada regente. A predominância da 2ª menor e as variantes
uma vez como instrumento percussivo, exibe uma variação do seu do acorde que se encontra na celesta, são timbricamente resolvidos,
primeiro inciso. A melodia é reservada ao clarinete e à flauta, primeiro ainda aqui, com diferentes agrupamentos em cada compasso. Os
em uníssono, depois em terças. Estes compassos são considerados uma trompetes predominam na condução para o compasso 94 e aqui, sim,
ponte de transição entre as duas primeiras seções e as duas últimas são reinseridos os incisos 1, 2 e 5, ampliados pela intensidade e com
seções por não configurar uma seção definida, havendo uma economia uma defasagem sutil no ataque de alguns instrumentos. A marcha, no
sonora, justamente para valorizar a melodia e conduzir ao início da compasso 101, como já dissemos uma forte alusão ao regime militar,
3ª seção. é suprimida gradativamente. Primeiro as cordas, depois as madeiras
seguidas pelos metais e, por último harpa, celesta, tímpano, crótalos
A seção mais importante considerando-se a transparência do
e triângulo. Terminando a marcha aciona-se o despertador colocado
objetivo do compositor ao compor a peça, é a 3ª seção, compreendida
atrás do público.
entre os compassos 47 e 77. Nesta seção o inciso 3 toma sua forma mais
importante, o elemento alusivo ao coração, sustentado pelo cluster O final desta obra é inusitado. Um belo acorde de Sol
ascendente nas cordas e ampliado timbricamente, tanto pelo uso dos Maior, arpejado na celesta e na harpa, é prolongado em harmônicos
instrumentos, como de outros recursos sonoros, como “sussurros”, nos instrumentos de cordas, conferindo ao tímpano mais uma vez a
“murmúrios” e “palavras”, que devem ser executados pelos próprios representação principal, oscilando entre as indicações de andamento
instrumentistas, na indicação da partitura. 56 e 80, “ad libitum”, até sumir.

Por fim, a última seção, a 4ª seção, é compreendida entre Acompanhando este processo composicional de usar o timbre
os compassos 78 e 107. É iniciada por um acorde de sol maior, e a intensidade como elementos de composição fundamentais, Jaceguay
apresentado no piano e nas cordas, onde culmina o desenho anterior. Lins compôs Ave, Palavra em 1979, sobre poemas de Guimarães
Rosa, para voz aguda e 4 percussionistas. Esta obra foi apresentada progressões dinâmicas de forma magistral, acompanhando a densidade
na IV Bienal de Música Contemporânea, em 1981, e representou o do texto. Em Ave, Palavra o compositor também trabalhou recursos da
Brasil na Semana Brasileira em Colônia (s.d.). Esta obra representa a linguagem serial. No segundo movimento isto se evidencia ainda mais
admiração que o compositor tinha pelo escritor Guimarães Rosa. É pela delineação da frase do soprano e uma dinâmica cuidadosamente
relevante a semelhança do pensamento de ambos para a composição trabalhada na percussão. Os efeitos obtidos com o uso de arcos de
das duas obras: os poemas e a música. Os poemas foram extraídos do instrumentos de cordas nos pratos em dinâmicas são extremamente
livro homônino Ave, palavra, publicado postumamente em 1970. Pelas sutis, apesar da rigidez do elemento serial.
próprias descrições de Guimarães Rosa, este livro pode ser definido
como uma miscelânea de contos, histórias e poemas. No resumo do
livro feito por Luiz Cláudio Vieira de Oliveira, na Revista Caligrana,
podemos perceber uma certa semelhança de diretrizes entre a estrutura
do livro e o pensamento de Jaceguay Lins. Vale a pena ler o resumo do
artigo publicado por Oliveira (2008):

Resumo: Análise do livro Ave, palavra, de João Guimarães


Rosa, com a indicação de suas características: a metalinguagem, a
busca da palavra exata, a experimentação lingüistica e a descrição
poética de seres e paisagens, a intertextualidade, a escrita da poesia,
o lirismo e a duplicação do narrador/autor. O volume representa
a compilação, feita por Paulo Ronái, de textos de qualidade
irregular, que serviram de matéria-prima para que Guimarães Rosa
desenvolvesse em outros textos, tal como fez com fragmentos de
Magma.

Só as pessoas não morrem: tornam a ficar encantadas.


Adamubies? Saudade, Sempre Ária
(versão aflita)
Guimarães Rosa Corpo triste Em meio ao som da cachoeira
Alva memória .
Alma é dor escondida. Hei de ouvir-me, a vida inteira
Tenho fadiga
A metalinguagem, a exatidão da disposição dos elementos, Não tenho história. O coração existe dar teu nome.
animal a um canto Tudo o mais levam as águas,
a experimentação e o lirismo, assim como a duplicação dos elementos Triste sono: - o triste. Mágoas vagas
Sonhar quero... Posso pecar contra ti para a foz
também estão presentes na obra ave, Palavra, do compositor Jaceguay Pelo que espero
Tudo abandono. ingenuamente: Vida que o viver consome.
Lins. O primeiro movimento Adamubies? explora o trabalho tímbrico há fogo, o fundo Um rio, e, do rio à beira,
através da precisão da aglutinação dos sons da percussão. Os padrões de Corpo triste, triste sono, o instante; não, tua imagem. Minha voz.
Faz frio à beira da cova, o esquecimento é voluntária A cachoeira
intensidade são estruturados de acordo com a frase vocal, auxiliando nas Onde espero a lua nova covardia. diz teu nome.
Como um cão que espera o
dono
Como em todos os movimentos, a música acompanha o construção. Somente desta forma é possível considerar qualquer obra
drama do texto. Ilustrando estas considerações sobre Ave, Palavra, de arte corretamente quanto à carga semântica que carrega.
o exemplo acima traz o manuscrito do primeiro movimento onde
podemos visualizar a conexão entre os instrumentos em um contexto
que não permite isolar cada parte. Percebe-se a precisão rítmica e as
oscilações precisas em intensidade. Os poemas escolhidos para compor
Ave, Palavra estão transcritos acima respectivamente, e podemos
pontuar sua carga dramática, acentuada pela composição.

Sabemos que os processos composicionais adotados por


um compositor, são, via de regra, um retrato de seu pensamento, suas
afinidades e sua forma de observar as suas relações com as tendências de
sua época. Soma-se a isto as influências pessoais e pode-se então delinear
as correntes estéticas mais seguidas. No caso de Jaceguay Lins estas
afirmações são verdadeiras quando analisamos sua obra, ou parte dela, e
verificamos que sua personalidade é indissociável do que escreve. Como
vimos brevemente em suas peças da primeira fase, suas preocupações
em desenvolver seu próprio leque de estruturas foi constante. Com
seu amadurecimento e o domínio de alguns de seus processos mais
utilizados, como a releção intervalar e sua maneira de observar e usar
a aleatoriedade, se evidenciaram em um discurso próprio, formal, mas
ainda assim experimental, quando busca sonoridades novas no uso dos
timbres e da intensidade.

Jaceguay Lins foi um compositor extremamente acurado e,


apesar de alguns processos de composição, como a linguagem serial
por exemplo, não facilitarem o lirismo, sua construção conseguiu
evitar uma expressividade momentânea e evidenciar a beleza de suas
composições. É preciso, no entanto, entender a obra sob o ponto de
vista do compositor considerando todas as variáveis aplicadas em sua
CAPÍTULO 9

Conclusão

A dissociação entre a “vida” e a “obra” dos artistas, bastante


comum quando se escrevem biografias de músicos, pintores ou literatos, faz
com que se perca de vista a dimensão humana da criação artística. A obra
de arte é tratada como se existisse por si só, independentemente da pessoa
que a criou, e a pessoa se apaga, sob a imagem do mito criado a seu respeito.
Há, assim, um apagamento do ambiente social em que todos vivemos e o
consequente privilégio a um indivíduo abstrato, destacado do mundo, que
criaria em virtude de um dom inato que o torna inatingível por outros
homens.

Paulo Renato Guérios,


Heitor Villa-Lobos
A indissociação entre “homem” e “obra” permite enxergar informações, as pesquisas, as entrevistas com o compositor, a assimilação
processos complexos de criação que caracterizam ambos e os inserem da linguagem contemporânea, o conhecimento do valor social de sua
em um contexto mais abrangente, definido por incontáveis variáveis e geração revelaram uma nova interpretação de sua vida, decisões que
que os definem como são. Da formação familiar ao momento histórico tomou e influências em seus processos composicionais.
e social vivido pelo artista, todas estas variáveis estarão influenciando
diretamente seu processo criativo. Fica evidente que a obra musical de Jaceguay Lins reflete o
trabalho de uma geração de compositores que formularam seus próprios
Desta forma, entender a vida e a obra de Jaceguay Lins foi, conceitos e suplantaram a inércia de um nacionalismo tardio que
antes de mais nada, entender sua época, sua relação com a família, a predominou no país na primeira metade do século XX. Seu trabalho
forma em que ocorreu seu aprendizado, os processos que marcaram as conquistou a admiração de seus colegas, alunos e ouvintes e a expressão
mudanças extremas na sociedade de sua época e como estas mudanças de sua linguagem é o retrato dessa geração admirável que rompeu
o marcaram, o pensamento estético de então, sua personalidade e barreiras e restabeleceu o contato com o mundo contemporâneo. As
como ele foi afetado por suas escolhas de vida. É possível perceber que pesquisas que estes compositores desenvolveram colocaram o Brasil
as relações estreitas que mantinha com seus colegas contemporâneos novamente em uma posição de destaque pela qualidade do trabalho
direcionaram sua produção. Seu trabalho tendeu ora para a busca de realizado. Deixaram para as gerações posteriores a certeza de um
seu amadurecimento composicional, ora para o desenvolvimento do objetivo atingido, de uma sólida e definida linguagem de composição e
que considerava seu meio de subsistência. A sobrevivência sempre foi a confiança de que é possível a realização de ideais maiores. Mais ainda,
difícil para Jaceguay Lins, até mesmo pelas escolhas que fez. implantaram centros de pesquisas e estruturaram cursos de composição
pelo Brasil afora, com perfis contemporâneos.
Através das entrevistas formais (e das conversas informais)
com o compositor, além das pequenas pistas encontradas durante a A publicação deste livro tem o objetivo de divulgar, de forma
pesquisa, foi possível delinear uma trajetória que envolve vários aspectos simples, a vida e a obra deste compositor que adotou o Espírito Santo
de sua vida, mas é claro, uma trajetória parcial. Muita perguntas como seu lugar e valorizou a cultura capixaba como muito poucos.
continuam sem resposta. Não foi por outra razão que este trabalho Sem a pretensão de escrever um livro sob o formalismo acadêmico, o
foi construído quase em sua totalidade sobre seus depoimentos, o que leitor terá encontrado aqui, nas palavras do compositor, fatos de sua
não invalida as informações fornecidas, uma vez chegadas e analisadas. vida, sua opinião sobre diversas questões pertinentes à evolução do
Nesta construção os dados escassos que puderam ser coletados em processo criativo musical a partir da segunda metade do século XX, e
seus arquivos pessoais, jornais e revistas que acompanharam o processo sua visão sobre sua obra.
de evolução da música brasileira contemporânea, forneceram peças
fundamentais neste quebra-cabeças. Entretanto, apesar da escassez de Os processos composicionais revelados por Jaceguay Lins, nos
breves comentários sobre suas obras, é a expressão de um compositor sonoras para cinema, produzindo gravações, algumas vezes escrevendo
capaz de dominar as formas de construção, as inovações, trabalhar a freneticamente temas e idéias vindas de uma imagem ou lembrança
estrutura e os timbres fazendo uso de uma grande arquitetura sonora, qualquer. Suas obras, muitas delas aclamadas pelo público e pelos
muito sutil por vezes, e apto a manipular os elementos de que dispõe compositores da época, merecem um justo lugar de reconhecimento
com uma inquestionável valorização do material sonoro. no repertório da música contemporânea brasileira.

Um ponto importante colocado neste livro e que necessita Jaceguay Lins é, portanto, um dos compositores desta
maior atenção é a ausência de políticas de pesquisa mais eficazes geração brilhante, formada a partir dos anos 60, e como tal deveria
para difundir e ampliar o conhecimento sobre o trabalho musical constar de forma mais justa e criteriosa na bibliografia musical. Seu
contemporâneo no Brasil. Reforçamos a idéia de que é preciso trabalho, merecedor de uma pesquisa mais aprofundada, é de extrema
intensificar o interesse sobre a música atual e reavivar o nome de grandes importância para a compreensão de todo um movimento musical,
compositores, dispersos pelo país mas ainda intensamente atuantes, que, assimilando a linguagem da época, rompeu barreiras, desenvolveu
com uma linguagem musical própria e que deveria ser observada, linguagens, novas estruturas, equipamentos sonoros e que deu à música
principalmente como estímulo didático. brasileira uma capacidade de autonomia que antes o país só tinha visto
em Villa-Lobos.
Acreditamos que, com esta pesquisa, um primeiro passo foi
dado para divulgar o trabalho de Jaceguay Lins. Foi possível perceber
um compositor dotado de uma forte personalidade composicional,
formalista, como ele próprio se considerava, elaborando estruturas
próprias a cada obra. Era capaz de esgotar as possibilidades e recursos,
em uma sintonia evidente com o pensamento dominante da época de
sua formação.

Percebemos um compositor dotado de uma grande


capacidade criativa, que explorou suas idéias ao máximo, e trabalhou
com um dinamismo comum a poucos. Sua personalidade era a de
um homem simples, com a única ambição de fazer música, criar à sua
maneira, sem absolutamente nenhum preconceito. Essa liberdade na
forma de condução de sua vida, está intimamente ligada ao ecletismo
a que se propõe, trabalhando na composição para balés, trilhas
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Catálogo de Obras

O catálogo de obras apresentado a seguir foi elaborado


juntamente com o compositor Jaceguay Lins e refere-se ao conjunto de
sua obra. Algumas encontram-se em seu arquivo pessoal, outras não
têm localização definida. Também encontram-se listadas suas trilhas
sonoras assim como suas obras para balé, multivisão e obras literárias.

Catálogo de Obras de Jaceguay Lins (1947-2004)

Instrumen-
Título Ano Observações
tação

Obras para instrumento solo

Sinergia s.d. Piano solo Dedicada a Ney


Salgado

Música de Câmera Vocal

Texto de Millôr
Três Hai-Kais Canto (soprano) e
1966 Fernandes
piano
Dedicada a Sonia Música de câmera instrumental
Canto (soprano),
Katemare Born e Georg
1970 viola e
Scheuermann
percussão Trio para flautas-
-doce 1964 Três flautas-doce
Estrela Sustenida 1971 Voz média e piano

Poemas de EncontroDesencon- Dedicada ao Quar-


Quarteto de
Guimarães Rosa. troReencontro s.d. teto Novo
cordas
Composta para
Ave, Palavra Soprano e quatro Retrato de Carmen Quatro trompas
1979 Martha Herr e o s.d.
percussionistas Parra
grupo Ágora de
percussão.

Soprano; Fl; Pn I;
Relações s.d. Obras para orquestra
Pn II; Perc.; Cn.

Obras corais Fábrica do Absoluto 1968 Orquestra

Textos de Leida Um Ponto no


Jongo s.d. Pequena orquestra
s.d. Coro SATB Miguel Infinito
Policromia 1970 Pequena orquestra
Textos de Leida Ciclo da cana-de- Orquestra de
Cantata Lírica 1969(?)
1969 Coro SATB Miguel -açúcar cordas
Piano e orquestra
Coro SATB, Concertante Dedicada a Jocy de
1974 de cordas
guitarra elétrica, Oliveira
In Memorian 1969 trompete, trompa,
trombone e piano Violino e orques-
Dodecadance s.d. tra de cordas
Noturno Coro SATB e
1969 Lacrimabilis 1977 Orquestra
trompa
Orquestra e banda
Colagem de trechos Guananira -
Cantata. 1995 de congo
Verde s.d. ecológicos do Velho Abertura
Coro SATB
testamento
Dedicada a
Melodiário
1997 Orquestra Hermógenes Lima
(Hermogeanas)
Fonseca
Tekoá Porã 1997 Orquestra e coro
Obras experimentais Arranjos

Poemas do autor, Vibrações - Jacó do s.d. Arranjo para


atriz, piano, flauta, Bandolim cordas
Viagem, uma
naipe de pratos
experiência 1968
com arco e
psicodélica
violoncelo. Ansiedade - Rossini s.d. Arranjo para
Ferreira cordas
Sax solo e dois
Saxofonia 1970 gravadores
Bachianas Brasilei- s.d. Arranjo para
ras nº5, Cantilena cordas
5 instrumentos – Villa-Lobos
Ciclo 1972 Indefinidos

Congos de Beira 1997 Arranjo para


Dedicada ao Quin- Mar orquestra
Metaflora Quinteto de teto Brasileiro de
s.d.
sopros Metais

34 instrumentos
Uma Refeição para
s.d. culinários
Dois Trilhas sonoras para cinema
8 violoncelos
Octofonia s.d.
Título Ano Diretor Categoria
Grupo indetermi-
nado de instru-
Praxis s.d. Mãos Vazias 1971 Luis Carlos La- Drama
mentos e regente
cerda
Sopros e piano Viagem pelo Inte- 1973 Sergio Santeiro Documentário
Atmos 1977 rior Paulista
Dois rádios de
Noturno s.d. Casa Grande e 1974 Geraldo Sarno Documentário
pilha e apitos
Senzala

Segunda Feira 1975 Geraldo Sarno Documentário


Ópera
Ladrões de Cinema 1977 Fernando Campos Comédia

O Reino de Duas Libreto de Jaceguay


2000 Ópera
Cabeças Lins
A Volta do Filho 1978 Ipojuca Pontes Drama Nossa Terra s.d. Nelson P. dos n.e.
Pródigo Santos
Petroquímica na s.d. Geraldo Sarno Documentário
Coronel Delmiro 1978 Geraldo Sarno Drama Bahia
Gouveia

Céu de Anil 1978 Paulo Chaves Documentário


Fernandes
Para Multivisão/ CD Room/Vídeo
O Princípio do 1979 Luis Carlos Drama
Prazer Lacerda
Cantares s.d. Frederico Moraes
Guaianumbi 1979 Orlando Bonfim Documentário Manguezais s.d. Humberto Capai
(Augusto Ruschi) Neto
Singular Plural s.d. Anna Saiter
Bububu no Bobobó 1980 Marcos Farias Comédia Quitungo s.d. Cia Neo Iaô / Dança
CCBB
O Homem de Areia 1981 Vladimir Carvalho Documentário Br 2000 – 500 anos 2000 Vídeo Eco-etnias capixa-
em 500 dias bas
Deus é um Fogo 1987 Geraldo Sarno Drama Vitória do Futuro s.d. Humberto Capai

Receita Artesanal 1988 Douglas Lynch Documentário

Dança
Sacramento 1993 Luísa Lubiana Drama

A Lenda de Proi- 1995 Luisa Lubiana Drama Woodoo 1998 Cia Neo Iaô / Parceria com Mag-
tnier CCBB no Godoy

O Ciclo da Paixão 2000 Luiz Tadeu Drama Cangaço 1999 Cia Neo Iaô /
Teixeira CCBB
A Morte da Mulata 2002 Marcel Cordeiro Drama

Vampsida 2002 Cloves Mendes Drama

A Mulher de Al- s.d. Margareth Taqueti n.e.


godão
Discografia Entrevistas
Título Produção/Gravadora

Policromia Música do Brasil - MEC 70/Odeon – vol.1


Ouvir a opinião de um artista sobre o seu trabalho talvez seja
Katemare Música do Brasil – MEC 71/Odeon – vol. 4 o meio mais eficaz de conhecer seu pensamento criativo, os processos
e influências que o levaram à criação, e a forma como percebe a sua
Coronel Delmiro Embrafilme/Saruê Filmes – 1978
Gouveia obra. No caso do compositor Jaceguay Lins esta conversa se tornou
indispensável, não só pela falta de pesquisas que abordassem a sua
Metaflora Quinteto Brasileiro de Metais – Arte e Expressão geração contemporânea, como pelas características peculiares de seu
– vol. 1
Tinha Bububu no Embrafilme/Marcos Farias Produções trabalho. As entrevistas forneceram uma fonte de pesquisa e um ponto
Bobobó de partida para a idealização deste livro, a partir de uma dissertação
de mestrado sobre duas de suas obras: Katemare e Lacrimabilis. Em
Maracongo Quarteto Nota Jazz – Lei Rubem Braga – PMV
várias horas de gravações foram registrados fatos relativos à vida do
Kilariô Andrea Ramos – Lei Rubem Braga – PMV compositor, alguns de conhecimento público e outros dos quais
somente ele tinha conhecimento. Nestas entrevistas Jaceguay Lins
Melodiário Orquestra Filarmônica do Espírito Santo expôs os acontecimentos mais marcantes de sua trajetória pessoal,
Coral da Universidade do Espírito Santo – Pro-
dução e direção: Anna Luzia Saiter. 1997. sua opinião sobre questões históricas e teóricas da música, processos
composicionais e sua visão sobre o conjunto de sua obra, assim como
outros assuntos pertinentes ao meio musical.
Produção literária
Desta forma foi possível utilizar sua própria descrição para
O Congo do Espírito Santo: uma 2009 Comissão Espí- traçar sua trajetória pessoal, mesmo que, em um primeiro momento
panorâmica musicológica das bandas de rito-Santense de ela seja parcial. Também foram relevantes para perceber sua visão a
congo. Folclore
respeito de seus próprios processos de composição, e desta forma obter
Orvalho Verso 1993 S.ed. Fotos de Alex embasamento para as considerações sobre as obras citadas neste livro.
Kruzemark Assim, podemos entender a vida e a obra de Jaceguay Lins através de
O Livro de Enoch 1991 Nemar-Massao
Ohno Editores
suas próprias palavras.
É importante destacar que todas as entrevistas foram realizadas interessados.
em sua residência durante os meses de janeiro e fevereiro de 1999,
portanto há quinze anos atrás. É possível que o compositor tivesse
uma opinião diferente sobre alguns assuntos, atualmente. Entretanto,
07 de janeiro de 1999
tornou-se impossível a transcrição integral das entrevistas pela
extensão da gravação. Portanto, encontram-se expostos neste anexo Há a necessidade de alguma digressão sobre história da música.
os trechos mais significativos destas entrevistas e que melhor ilustram o Eu sinto uma certa necessidade de vermos a trajetória da construção musical.
contexto deste livro. As entrevistas seguem transcritas aqui na ordem Porque, qual o critério que você tem por exemplo para analisar uma obra
cronológica em que foram realizadas. É preciso ressaltar também, barroca? Você tem uma construção intervalar, uma construção rítmica, uma
que, após sua transcrição total, as entrevistas foram submetidas ao série de esquemas que implicam em respostas. Vamos analisar um compositor
compositor para análise e também correção, assim como a supressão que muita gente considera, nesta mesma época, um compositor menor e que
eu acho inclusive que merece um dia ser visto de uma maneira diferente: o
dos trechos considerados de menor relevância. Em alguns momentos
Vivaldi. Vivaldi trabalha com uma tessitura mínima, banal, vulgar, com
não é claro a que assunto se refere o compositor, ou o por quê. Foram
uma temática que na maioria das vezes é quase repetitiva. [...] Acho que
então acrescentados alguns esclarecimentos isolados entre colchetes,
foi o Honegger que disse que ele era um compositor de duas obras e mil
assim como também a indicação de onde partes das entrevistas foram variações. O que é uma maldade quando você percebe por exemplo que na
retirados. Jaceguay Lins concordou com a transcrição, com ressalvas a obra do Vivaldi pela primeira vez você tem escrito e especificado o sentido da
uma fita, a qual não autorizou a publicação, quando da defesa do texto fraseologia nos arcos, nos sopros; é o legatto, o sttaccatto; é o arco pra cima, é
final da dissertação, por conter debates não pertinentes à pesquisa ou o pizzicatto; o que ele queria, [...] eu acho que a escola italiana como se tinha
conversas informais envolvendo personalidades do cenário musical. na época, era colocar para o mundo as possibilidades sonoras que até então
Sua vontade foi acatada e respeitada então, com também agora. as pessoas só viam do ponto de vista das alturas [o compositor faz referência
aqui ao parâmetro sonoro da altura]. Até por uma questão social da época,
Se faz necessário dizer que não cabem aqui comentários sobre econômica por conseguinte. Você não tinha um padrão. Cada cidade tinha
o conteúdo das entrevistas, uma vez que estas refletem o pensamento seu agrupamento que se chamava, digamos de orquestra ou de conjunto. Eu
do compositor, ou seja, sua visão particular das questões tratadas. Se acho que até então é nota... e nota. Era esse o objeto da análise. A grande
contribuição que se supõe que se deu foi a intensidade: era forte e piano. A
em concordância ou não com as vertentes históricas e estilísticas do
articulação sonora eu acho que vem com Vivaldi. É uma outra escola. Eu
leitor, esta é uma outra questão. Pretende-se somente tornar conhecida
acho que ele representa ali um pensamento de toda uma outra geração. Não
a percepção do compositor sobre sua vida e sua obra. Todas as fitas,
é a toa que ele apaixonou Bach!
contendo a íntegra das entrevistas, se encontram em seus arquivos
pessoais, aos cuidados da autora desta pesquisa, disponíveis aos Depois disso você tem os recursos intrínsecos a toda essa construção.
Um acorde, de repente, em determinado momento da história da música, não isso conscientemente. Então eu acho que já é um outro parâmetro que devia
é mais um acorde só. Um acorde pode ser todo um tema. Essas variantes ser objeto de análise.
possíveis, a partir da célebre inversão, passam a constituir um elemento de
composição. Sabemos de uma coisa: na evolução da história da música o ser No meu entendimento, depois de Vivaldi, o compositor mais
humano tende a agrupar mais sons próximos. Os sons próximos, a gente há significativo para mim, é Schoenberg. E quando eu digo Schoenberg eu
de entender, são os sons que tradicionalmente teriam um caráter melódico não estou esquecendo de Beethoven, que acaba a sua primeira sinfonia com
por serem próximos. Sabemos que quanto mais distantes mais tendem à um acorde de sétima, não estou esquecendo as complexidades harmônicas.
harmonia, não é isso? Então você tem uma outra vertente: Wagner, com Não estou esquecendo Wagner, com o cromatismo, a melodia sem fim. Só
o cromatismo, até que se chegue [...] em Schoenberg, onde você tem um que isso se descarrega pro que eu acho que é o grande divisor de águas: a
cromatismo absoluto ao ponto de instituir a escala de doze sons como sendo música dodecafônica. É quando temos, de novo, uma visão nota contra nota,
o fundamento formal de uma composição. Depois disso, os compositores não tanto que as alturas eram livres no dodecafonismo! Você podia oitavar quantas
satisfeitos, os chamados serialistas, elevam essas características dodecafônicas às vezes quisesse! Um sistema fantástico mas muito finito, muito cheio de regras.
últimas consequências. Então um dó não se apresenta apenas como a nota dó. [...] Agora, o sistema foi tão importante, tão importante, que eu acho que
Ele se apresenta como a nota dó que tem tal duração, em tal instrumento, por ele é a mola da música do século XX. Mesmo sendo renegado. O próprio
conseguinte com tal cor, com tal intensidade e aí você começa um verdadeiro Schoenberg, as últimas palavras dele ao morrer: “mais harmonia”!
estruturalismo sonoro. Depois disso, na minha escola, eu nem digo depois,
você tem aqueles que dizem assim: “não, eu vou dar a volta por cima! Isso aí Só que então vem os alunos de Schoenberg, não é? Vem o Webern.
eu já sei!” Então você pega o Concerto para violino de Alban Berg ... Nossa A obra inteira do Webern cabe em 23 minutos de um disco. Mas que
Senhora! Enfim, são parâmetros pra analisar. preciosidade, que colibri da música! Que jóia! E é ele o primeiro compositor
que abre o ponto para o chamado serialismo. Não apenas uma “série” de alturas
Eu estudei na escola antiga como todos da minha geração, onde mas uma série sonora! Toda uma estruturação de timbre, de intensidade, de
a análise se dava através da nota, e da figura da nota. Ninguém considerava duração! Tudo isso também já havia sido previsto pelo Schoenberg. Ele é
como elemento de análise a intensidade ou o timbre. Então eu acho que o autor da melodia de timbres, a klangfarbenmelodie1. É como se pudesse
Vivaldi, na época dele, é o compositor mais importante da história da fazer uma música em forma de um colar, onde cada som tem uma cor. [...]
música na medida em que, através dos concertos para instrumentos solistas E depois disso tudo você chega na segunda metade do século XX. Aí nós
e orquestra, ele impulsionou o desenvolvimento da técnica, do virtuosismo estamos falando já depois dos anos cinquenta, por conseguinte, depois de John
instrumental, [...] além dessa questão de colocar as ligaduras, ponto debaixo Cage, que introduz, diante de todo esse mundo [...] organizado, estruturado,
das ligaduras, acentos, enfim, a chamada fraseologia, a dinâmica. Então eu construído, o elemento aleatório e você tem repercussão mundial através de
acho que a história da música tem uma dívida com ele. Você pode dizer “mas a Pierre Boulez, através do Stockhausen, enfim, para citar os iniciadores. No
melodia dele é muito fácil, muito simples, a tessitura dele é muito pequena”.
De fato, é. Mas olha o outro lado! Olha o que ele deu de contribuição! É 1 Melodia de timbres – indica uma sucessão de cromatismos tonais
diferente de fazer “tía-ta-ta-ta” de “tá-ra-ta-ta-tá”. Ele foi o primeiro a escrever associados de forma semelhante à relação entre as alturas em uma melodia.
(GROVE, 2004)
Brasil nós tevemos um atraso talvez de 10 anos em relação a isso, a essa que há um ciclo e isso é uma crença pessoal. Assim como há os ciclos do
informação mas nós também trilhamos por esse caminho. [...] O fato é que sol, há ciclos em tudo. Parece até que o próprio dia e a noite já encerram
nós também tivemos uma visão voltada para isso. Foi a possibilidade de não em si um ciclo. De vez em quando há um retorno. Não é à toa que houve o
enxergar o mundo como sendo uma coisa tão estruturalmente fixa, rígida e chamado neoclassicimo. Hindemith chegou a ser chamado de neobarroco!
burra. E nesse sentido eu acho que a gente pode abrir a conversa pra falar da Coisa que eu não entendo. Aliás acho que nem ele também entendia! Pois seja!
Katemare. Porque eu acho que ela está nessa tradição de ter a rigidez absoluta Você vê que na história da música até o nosso século, ela é uma alternância
em alguns parâmetros associada à liberdade para que o intérprete deixe de ser de períodos polifônicos e períodos .... vamos chamar de melódicos, embora
apenas uma máquina humana. Para que ele possa dar também um pouco de tradicionalmente diga-se harmônicos. Mas eu não concordo com a expressão
si na construção e na elaboração da música. [...] e vou lhe dizer por quê. Eu entendo como polifônico todo e qualquer período
que encerra um contraponto. Nessa época! E como melódico todo aquele que
Eu estou com 51 anos. Sou de 1947. A minha geração teve o tenha uma melodia acompanhada. Por mais que seja importante a harmonia,
chamado momento de influência na cultura em torno de seus 20 anos, ou a melodia é predominante. Então, falando por exemplo, do classicismo: em
seja, era já o pessoal entrando na maturidade mas já sabendo que não queria Mozart, por mais maravilhosa que seja a harmonia dele, a melodia é quem
mais ser soldado do Vietnã, da Guerra no Vietnã. Foi o maior índice de manda. Aliás, pelo que me consta é o maior melodista da história de todos
deserção. Então, nessa época nós fomos influenciados primeiro, por uma série os tempos! Ele sabia fazer o que eu pretendo aprender! Falaremos disso
de pessoas que, de uma forma ou de outra, fugiram da Guerra mas traziam oportunamente nessa peça [ aqui o compositor faz referência a sua obra
cultura, traziam máquinas novas, máquinas fotográficas, máquinas de cinema, Katemare].
possibilidades de gravação. [...]Então veio toda aquela certeza de que os
cânones precisavam ser questionados e em algum momento eu acho até que a Pois bem! Nessa época nós já estávamos tendo informações. Pra
gente os abalou. você ter uma idéia, na época eu já sabia quem era Max Planck [1858-1947]2!
Estávamos falando já de música quântica! [...] Nós estamos falando dos anos
Foi quando surgiu também a única revolução que ocorreu na 60! A informação começou a vir do mundo inteiro. Do mundo inteiro! E de
história da música. A única! Foi o surgimento da indústria fonográfica. uma maneira – curiosamente você vê como é a vida – de uma maneira não
Só houve evolução na história da música. Você diz que Wagner foi um necessariamente partidária porque, na época o mundo tinha divisão esquerda
revolucionário! Foi! Fantástico! Mas se a gente se detiver nós vamos encontrar e direita. União Soviética e Estados Unidos. Independentemente disso havia
dez que o antecederam! Beethoven foi maravilhoso! Com certeza! Mas escuta uma solidariedade geracional.
as últimas obras de Mozart! E assim por diante. Schoenberg! Maravilhoso!
Revolucionário? Que coisa nenhuma! Evolucionário! Ele vem, ele é filho, Eu conheci vários egressos da Guerra do Vietnã morando,
cria de Wagner. Não é à toa que a primeira grande obra dele é wagneriana! provisoriamente que fosse, em casa de muitos amigos meus, por exemplo no
É a despedida dele como quem diz assim: “larguei o carma”, que é a Noite bairro de Santa Teresa, que na época concentrava parte da intelectualidade
Transfigurada! Ele ali foi ao auge! Enfim, só existe evolução! do Rio. Conheci, e alguns freqüentaram a minha casa. Havia uma troca de

Outra coisa: de vez em quando acontecem uns retornos. Parece 2 Max Planck – físico alemão considerado o pai da física quântica.
informação que a gente não tinha. [...] O Instituto Villa-Lobos, talvez tenha talvez resida exatamente em ter sido o cara pra dizer assim: “mas vem cá, e
sido a primeira escola no Brasil a comprar gravadores! Eu me lembro que o que eu tenho dentro de mim não vale nada? Eu tenho que preencher a
o Reginaldo de Carvalho contratou Conrado Silva, excelente compositor, fôrma?” Aquelas coisas que a gente sabe de cór, as formas Sonatas da vida, etc!
uruguaio, radicado em São Paulo. Conrado Silva Jorge de Marco! Excelente [...] Para que não haja esquecimento, eu gosto sempre de lembrar o exercício
compositor ligado à música eletrônica, estudou em Colônia, ligado a diário de Stravinsky: todo santo dia de manhã ele se sentava e compunha uma
Stockhausen...esse rapaz chega no Instituto Villa-Lobos pra montar um fuga! Acabava, ele embrulhava e botava na cesta do lixo! E o fazia não para
estúdio! O Instituto Villa-Lobos na época, recebeu como primeiro professor dizer que a fuga merece o lixo! Era pra dizer que domina uma forma complexa!
de composição Jorge Antunes, que é o pai da música eletrônica no Brasil. [...] Para a época, com certeza, eu acho que foi a forma mais complexa que o ser
Eu fui o primeiro aluno do Jorge Antunes, meu querido amado amigo, Jorge humano concebeu só que hoje ela não tem mais sentido. [...]
Antunes! Fui o primeiro aluno do Jorge Antunes! Fiz questão disso! Essa
informação trouxe pra nós uma abertura muito grande do ponto de vista do Mas o mundo mudou! E o mundo mudou exatamente por que
campo sonoro. A idéia de um quarteto já ficou muito pobre! O Jorge Antunes tivemos mais informação! Nós éramos circunscritos ao professor que nos
introduz, além disso, a música concreta. Pierre Schaeffer! Uma música onde ensinava segundo o que professor dele havia lido ou estudado na Europa, não
qualquer elemento sonoro possível de ser captado em gravação, é som. Culmina é? [...] Bom, eu acho que para falarmos da Katemare, nós temos que falar de
com tudo isso a vinda do Schaeffer! Nessa época nós tínhamos, só da ORTF tudo isso: de que foi um momento. Um momento em que tivemos muita
- Office de Radiodiffusion-Télévision Française - nós tínhamos de presente informação, em que o mundo estava questionando o mundo! É o chamado
apenas quarenta mil horas de fita gravada de música francesa contemporânea! movimento hippie, é o movimento dos maconheiros mesmo! [...] Bom, esse
Nenhum de nós nunca conseguiu ouvir tudo! E tinha lá de presente! Nós pessoal trazia também a cultura do Oriente! Pela primeira vez nós ouvimos
tínhamos festivais de música folclórica que ocorrem lá não sei aonde, em uma falar em chacras, acupuntura! Então foi uma coisa que ao mesmo tempo que
cidade de pedra, etc! E que, sem outra coisa que não o surgimento da indústria lembramos com tristeza porque, no mundo o que acontecia de mais drástico
fonográfica, a gente jamais teria tido acesso. É a indústria fonográfica que faz era um verdadeiro genocídio, que foi a Guerra do Vietnã! E que perdeu por
com que a gente escute o Zé Mané ... e aquele muito amigo de Deus! De uma essa geração! Perdeu a Guerra pela opinião pública mundial, quer dizer uma
maneira democrática, no Brasil ainda muito cara, mas um dia ela ainda vai mudança de valores, um negócio muito sério e as pessoas questionando! “Mas
estar a um custo muito baixo. Muito baixo! Porque, o que se cobra hoje [...] é vem cá: por que eu tenho que me matar em nome de não sei o quê , se amanhã
uma exploração! Eu mexo nessa área hoje profissionalmente, e sei. A margem ou depois o dirigente de meu país vai cumprimentar o outro com um sorriso
de lucro que se coloca nas lojas é fora de qualquer realidade econômica, senão pra uma foto e sair na tv de todo o mundo? Que conversa é essa? E eu
um absurdo! Enfim, eu acho que essa foi a única revolução na história da não valho nada?” [...] Isso foi tão levado a fundo que levou a uma volta
música. Se você me apontar qualquer compositor que tenha contribuído nisto para natureza. Nessa volta para Natureza [...] eu acho que veio um ritmo
ou naquilo, por favor me dê um tempo: eu vou pesquisar e vou lhe garantir mais livre, mais contemplativo. Era a idéia de fumar maconha na época e,
que houve alguns que o antecederam. De uma forma ou de outra. Porque além da maconha, o ácido, o LSD, que eu [...] experimentei sob orientação
a capacidade de compor fora de um padrão, fora da chamada fôrma, e haja psiquiátrica. Eu fui cobaia! Mas é um assunto que eu me reservo o direito de
acento nesta palavra, só se dá no Romantismo! A grandiosidade de Beethoven, não comentar, [...] como também participei, junto com alguns sociólogos, de
experiência de vida comunitária! [...]A gente estava lá de cobaia pra ver como é É professor de Guerra-Peixe, de Esther Scliar, além destes, outras pessoas
que era viver comunitariamente. Foi quando surgiram as comunidades rurais, que não foram meus professores, Edino Krieger, Eunice Katunda, enfim, a
as únicas que deram certo e só deram certo em áreas grandes, onde as pessoas gente já estava com outro pensamento. Nós já não tínhamos esse mundo tão
tivessem suas individualidades mantidas. [...] A gente nunca tinha ouvido com estruturado assim, não! Eu acho que a Guerra do Vietnã foi um momento
tanta vontade de perceber o que tinha de informação, e não o que tinha de muito significativo na história da humanidade. As comunicações trouxeram pra
exótico, como na minha geração! Porque antigamente você tinha os cânones, nós a ideia de que o mundo era uma aldeia global. [...] E havia, não só no Rio
na nossa, os cânones foram questionados. A informação!! A informação!! É mas nas grandes cidades brasileiras, havia um público ávido por isso. Ávido!
nesse sentido que eu acho que a indústria fonográfica é a única revolução. Se A gente não representou uma ruptura! Nada disso! A gente representou uma
você quiser escutar música indiana hoje, você liga a Internet e vai ouvir. outra janela, uma outra perspectiva. Uma geração que teve (o que eu acho que
é a coisa mais bonita, mais bonita dessa geração!) teve a compreensão de que o
Isso agora é um a parte necessário porque eu falei muito da coisa que é verdadeiro na academia, não é necessariamente a única coisa verdadeira
do novo e esqueci de dizer que no Instituto Villa-Lobos nós convivíamos com no Universo. Foi quando a gente começou a ouvir melhor as manifestações
Iberê Gomes Grosso, que era o porta-voz do conhecimento do violoncelo! folclóricas, não só do Brasil mas do mundo inteiro! Que sonoridade é essa?
Do ponto de vista mais tradicional possível, o mestre! A gente conviveu com Puxa vida! E esse instrumento, como é que ele faz isso? Para os quais muitas
folcloristas! vezes, não havia escrita. Senão para os instrumentos, para a forma de tocá-los,
não é? E que é um dos elementos que nós usamos nessa geração.

Eu acho que uma das grandes contribuições dessa geração foi a


Nessa época você teve alguma ligação com Koellreutter? Koellreutter criação de novos signos de interpretação. E eu acho que quem se destaca
ainda estava no Rio? no Brasil, nesse papel, é o Lindembergue Cardoso. Eu acho que ele é o cara
que mais contribuiu nesse sentido. Havia várias tendências, não é? Alguns
Não! Eu fui aluno na verdade do Widmer, que foi aluno dele.
preenchiam o espaço da pauta no sentido de que isso representasse, digamos,
A ou B! Não me interessa. Outros, como é o meu caso, optaram pelo desenho
Então você não chegou a ter contato com ele.
sonoro que o instrumento reproduz, enquanto que o Lindembergue foi o mais
Tive, do ponto de vista pessoal. Pessoal. Eu sempre achei muito consistente. O Lindembergue pensava: qual é o desenho físico desse som? E
interessantes as colocações dele. Houve até um debate público, que por uma aí eu acho que nesse sentido ele estabelece uma sinalização muito mais precisa,
falta de entendimento, na Sala Cecília Meireles, chegamos nós mesmos a muito mais universal. Isso tudo [...] foi num interregno de 3, 4 anos! Imagina
achar que estávamos falando de coisas distintas, quando na verdade estávamos a gente ter estudado harmonia tradicional, as quintas paralelas que não pode,
falando da mesma coisa! Acho que ele é um compositor interessantíssimo. embora Ravel, embora Beethoven, em um de seus quartetos! Então era como
(...) Eu acho um compositor significativo e muito importante na história da se a música não tivesse prazer até então! Era só como se fosse um exercício
música brasileira. Mas a gente já era um outro pensamento! O Koellreutter de aprendizado. De grande paciência! Eu acho que esse é o grande mérito
traz o dodecafonismo. O Koellreutter é o professor de meus professores. dessa geração. Tenho inclusive criado novas escritas de acordo com o novo
sentimento do mundo. É isso. De liberdade. Talvez a gente esteja falando certeza tem absoluta razão. Mas a organicidade disso numa partitura é um
disso. negócio complicadíssimo! Complicadíssimo. Eu vejo tudo, seja a visão do
professor Marcos, seja a visão daquele músico ágrafo que nunca nem quer
Adhemar Nóbrega, Aylton Escobar! [...] O Aylton tem, de todos ver na frente dele uma partitura mas tá lá com seu pandeirinho – e tem uma
nós da nossa geração, ele tem a maior sensibilidade. A melodia dele é um comunidade inteira que milenarmente dança em volta desse pandeirinho. Eu
encantamento permanente. A linha dele é muito fina, muito sutil. Nesse acho que essa idéia de tempo e de medida foi muito claramente revista, vista
sentido eu acho que, de todos nós, eu acho que ele é o mais sensível! Que de novo, na minha geração. Há compositores, como é o caso de [Claudio]
é um outro que vem da escola acadêmica, foi aluno do Camargo Guarnieri, Santoro, de Fernando Cerqueira, que compunham de maneira que em cada
aquele nacionalismo! página você tivesse acontecimentos que duravam, por exemplo, 20 segundos.
Cada página! Sem necessariamente nenhuma barra de compasso. Mas você
já tinha um compasso de 20 segundos onde o tempo subjetivo é maior do
que a idéia do metrônomo, correto? Mas você tem uma medida! Você tem
Nós vamos falar de tempo, é isso?
uma medida. O que não é de estranhar na história da música, porque nós já
temos as cadências, há muito tempo, não é? As próprias expressões italianas
É. Medida. Medida. Bom, eu acho que a primeira coisa que temos
de onde vem o Vivaldi, de novo, [...] não satisfeitos com a grafia musical, com
que considerar quando se fala em medida é que na história da humanidade
a notação, começam a botar adjetivos! Caprichoso, Andante mas não muito,
a gente tem o côvado, tem o palmo, tem o metro, não é isso? E por aí vai.
Nervoso, Agitato, ou seja, essa idéia do tempo. Sem contar que nós temos uma
[...] Portanto, as medidas são diferentes e por conseguinte, arbitrárias. Eu
figura que, pra mim é da maior importância, que é o chamado tempo rubato!
acho que a gente não pode nunca, esquecer isso. Depois nós vamos falar de
Toque Brahms no tempo escrito pra ver que horror que vai soar! Eu estou
parâmetros. Ora, nós falávamos do meu aprendizado com Esther Scliar, que
falando Brahms por que, por acaso, é o meu predileto! [...] Sibelius, no tempo
eu considero a minha verdadeira grande mestra! Sinceramente, sem o menor
rubato! Toca Schumann no tempo escrito! Ora, isso era uma característica da
desrespeito pelos outros, para mim, foi quem me deu o grande empurrão.
época, o abandono já daquela quadratura clássica! E é nesse sentido que eu
Uma pessoa que estudou profundamente o ritmo. Estudou muito. A ponto
digo que a gente vem evoluindo. A minha geração disse: “peraí! Vamos liberar
de saber que existe um tonus rítmico, que é o que é chamado por alguns,
um pouco mais!” Aí a gente inventa, por exemplo, na Katemare, “mais ou
na Argentina, no Instituto Torcuatto de Tella por exemplo, de um ritmo
menos um segundo e meio”! Que diabo é isso? “Mais ou menos um segundo e
tonal. Existe uma ocorrência quase tão permanente na música tonal, e como
meio”! É interessante, não é? É uma medida. [...]
o tonus se dá através do ritmo, a gente sabe disso (não sabemos ainda se
psicologicamente ou não, isso aí não interessa), o fato é que acaba induzindo
O terceiro tópico é o tempo do ponto de vista físico, psicológico
ao tonalismo. Aqui no Espírito Santo conheci o professor Marcos Ribeiro
ou adverso. Eu acho que o tempo físico [...] serve muito bem para detectar
de Moraes, mestre pela Universidade de Campinas com uma tese fantástica
problemas de enchente, neve, granizo....maravilhoso! Agora, na música
chamada Por uma teoria do ritmo. E ele coloca o ritmo como sendo inerente
o ser humano predomina, e eu acho que na medida em que colocamos o
às coisas vivas e que não é um parâmetro. Ele o coloca como sendo uma
ser humano, então o tempo é psicológico. Nós temos o tempo rubato, dos
questão de lugar. De lugar. Uma vez que ele tá falando de tempo, ele com
românticos....pode reparar que o quarto tempo dos românticos demora mais! está desde o começo das coisas.
Demora mais! É como se fosse uma condição cultural da época. Enfim, até
por que a gente não precisa, para escrever música, chegar a complexidade – só
para falar depois dos românticos, de um Stravinsky – onde um músico toca
stressado porque se ele cochilar ele toca no lugar errado. Tem tudo isso! Isso 18 de janeiro de 1999
para não falar nos exageros de alguns pós-serialistas. [...] Só que a gente queria
facilitar a vida do intérprete. Tendo-o como um companheiro. Pois bem, nesse
sentido que eu acho que o tempo na música é sobretudo, psicológico. E, só
para não deixar de levar em consideração, não é só o músico, tem o ouvinte Poderíamos falar sobre o uso intervalar?
também. E se o ouvinte se predispõem a escutar, fantástico. Se por acaso a
[...] Nós estamos falando do uso intervalar em vários períodos
música lhe é imposta através do disco do vizinho chato, ou seja, do poder da
da história da música. Comentamos que a 2ª maior é característica da Idade
indústria fonográfica, às vezes, esse tempo pra ele, é o chamado tempo adverso.
Média, a 4ª você encontra no Barroco, a 3ª você encontra no Romantismo
Onde o mais rápido do mundo é chato, é longo! Nesse sentido, eu acho que
e aí você chega no século XX e aparece a 2ª menor dividindo com o trítono.
a compreensão dessa geração abriu essa possibilidade, essa liberdade. Com
A nossa característica fundamental no século XX: o uso da 2ª menor e do
imprecisões, propositadamente feitas pra isso, tanto que chamam imprecisões
trítono! Agora temos que pensar na relação intervalar do ponto de vista
propositais, mas pra isso, foi um tempo de reflexão, sem muita “fundição de
vertical, quer dizer harmônico. Você tem por exemplo a 3ª, sobretudo a 3ª
cuca”, que era o que a gente dizia na época.
paralela, como uma coisa muito comum em várias civilizações. [...] Na nossa
Na música aleatória o tempo impreciso é preciso em relação música elaborada, [...] você tem uma presença pesada da oitava. Que eu
às coisas, ao que se lhe está acontecendo. Eu não sei se é extemporâneo ou considero um intervalo. E não é pelo fato dele em si, significar que é um
não mas não podemos esquecer que quem faz a música é a memória do intervalo maior ou menor do que outro não. É porque tem valor harmônico.
ouvinte. [...] As experiências por exemplo, que houveram na nossa geração, A oitava é um negócio muito sério.
elas também não representam nenhuma revolução. De jeito nenhum! Elas
representam um reconhecimento a coisas do passado, que a gente citou,
por exemplo essa questão do espelho de Bach, que compreende uma única
Em que sentido?
pauta escrita para dois músicos que em posições opostas, lêem portanto todos
lêem a parte do outro de cabeça pra baixo. Mas a sua parte está ali impressa, No sentido em que ela estabelece um tonus, uma tonalidade, um
de tal forma que na Idade Média era chamado de espelho. Uma coisa que tom. [...] Eu acho muito perigoso o uso da oitava a não ser como efeito de
parece, já era ultrapassada e que o Bach fez, como exemplo de vituosismo. orquestração porque eu acho que ela é uma característica da nossa música mais
Isso vem como exemplo, porque a gente vai acabar falando de análise, das tradicional. Basta dizer que os contrabaixos ficaram independentes muito
formas de construção contemporâneas, não é? Muitas delas, às vezes, muito recentemente, não é? [...] Na época de Mozart era privilégio dos compositores
esquematizadas, mas só pra lembrar que não é invenção nenhuma não. Isso terem uma escala já fundamentada por Bach, que é a escala diatônica, certo?
Na nossa época nós tivemos esses intervalos que citamos, uma coisa mais Era como se fora uma camisa de força quando já havia muita vertente. O
comedida mais ao mesmo tempo com mais possibilidades de vôo, digamos final do século passado, o começo deste nosso [século] é muito pródigo de
assim, que foi o uso de intervalos que não implicassem numa necessária compositores que acenaram com outras hipóteses.
condução a outro intervalo mas que pudesse ficar à vontade do compositor.

[...] O que interessa é a relação onde você percebe a melodia. [...]


Eu gosto muito, quando uso o piano, gosto muito das oitavas agudas que dão O Widmer e o Guerra-Peixe cumpriram o papel deles. Depois veio a
um certo brilho. E eu não considero naquele momento o valor harmônico. sua geração que também teve a sua importância. Você acha que não há mais a
Eu considero o valor tímbrico. Tímbrico, com um certo brilho sobretudo na busca que havia na sua geração?
região aguda. Nesse sentido eu acho que nós temos que voltar a pensar aqui
que, no nosso sistema, o fundamento harmônico está no grave. Parece que O Widmer, eu acho, foi um dos primeiros a sacar essa questão. A
cria uma brecha no sentido de dizer que esse mesmo grave, se for pro agudo citação do Widmer é que essa coisa da vanguarda, de que tem ser o novo, o
não tem valor harmônico. Tem, mas não tanto quanto o grave. Uma oitava novo! Ora, nós fomos a vanguarda da nossa geração! Para nós é o que significava
aguda não tem o poder tonal de uma oitava grave. De jeito nenhum. Até realmente o papel de cada um de nós! Representar possibilidades novas no
porque o tonus significa, entre outras coisas, lugar de repouso e a gente sabe universo como era! E eu não creio que isso tenha ficado restrito à everfecência
que quanto mais grave um som mais repousante em relação ao agudo que é o da época. Ao contrário. Eu acho que todo esse trabalho está massificado, todo
seu oposto. Toda progressão do grave pro agudo cria tensão. E o seu contrário esse trabalho através dos instrumentos eletrônicos. Toda a pesquisa que se fez
é verdadeiro. Do agudo pro grave o sentido é de relaxamento. Então eu acho na época, música concreta, música eletrônica, está em qualquer tecladinho de
que temos que ponderar tudo isso. Os intervalos são os mesmos mas nós não segunda ordem, em qualquer filme infantil, em qualquer desenho animado, tá
estamos fazendo escalas, nós estamos fazendo uma música! [...] Eu acho que incorporado à nossa época para sempre e foi um trabalho da minha geração.
estes recursos enriquecem a música. [...] Existe um ritmo tonal, ou seja, existe
uma articulação de valores, que, pelo menos na nossa cultura, implicam na
ideia de tensão, de relaxamento e de vez em quando repouso. [...] Essa peça
Você acha que a sua geração esgotou as possibilidades que tinha?
[Katemare] para mim foi uma forma de, sob o ponto de vista rítmico, me
libertar um pouco disso. Era uma preocupação da época nos libertarmos Esgotar é impossível! As nossas nós esgotamos. Nós chegamos ao
de todas as amarras do tonalismo que, no meu entendimento, embora haja a ponto de esgotar as possibilidades não só do ponto de vista tímbrico. Afinal
questão acústica, e nós estamos falando de novo de Hindemith, embora haja de contas é a geração que cria a música eletrônica, não é? Temos que pensar em
esta questão acústica, ele chega a afirmar que a tonalidade é uma lei como a Stockhausen, em Pierre Shaeffer com a música concreta, ou seja, mais uma vez
lei da gravidade. Ele chega a afirmar isso. Bom, eu tenho minhas dúvidas se estou te dizendo que essa coisa está ligada à indústria fonográfica. Nós estamos
essa lei não é revogada pela cultura humana. Pelo caminhar da humanidade falando de gravador, de instrumento eletrônico. Pierre Henry trabalhava para
que a cada década incorpora mais sons aos seus acordes. Mais informação Phillips pesquisando timbres. Outro compositor importantíssimo na época.
para os ouvidos. [...] Foi uma luta da minha geração se libertar desse negócio. [...]
exatamente às seis horas da manhã. Pois bem. Havia duas farmácias. Era a
do Monteiro “preto” e a do Monteiro “branco”. [...] Monteiro “preto” tinha
Você acha que ainda há o que buscar? um alto-falante que ele botava na única rua comercial, tanto que eu nasci na
Rua do Comércio n.º 30, num sobrado em cima da padaria do meu pai, de
Vai ter sempre. O ouvido se alarga. A inteligência se alarga. Hoje modo que ele botava a comunicação da época. Era um alto-falante, lá da sua
nós temos uma tendência oposta à minha geração. E, aliás, na qual eu farmácia, e ele dividia em duas sessões: aos domingos, ele escolhia a música
pretendo estar diretamente ligado. Não tenha a menor dúvida! Essa coisa de que ele queria colocar. Não interessava pra ninguém. A partir das seis horas
minha geração! Eu não morri ainda! Estou vivo e compondo até hoje! Acho ele abria o serviço dele pra quem quisesse oferecer uma música pras pessoas!
que há uma tendência que é o contraponto da globalização econômica, da Imagine você o que não deve ter sido esses discos! Eu não cheguei a ver
dita globalização da informação. Esse instrumento é maravilhoso! Hoje, estão nenhum! Eu era criança! Mas eu ouvia tudo e me encantava no domingo de
procurando a mistura. A música étnica. Porque que eu teria que morrer manhã porque havia uma riqueza enorme! Tudo quanto era música gravada da
sem conhecer a música de Bali, ou aquela que ocorre numa cidade do Iraque, época, ele tinha! Numa cidadezinha pequena, um homem que se acostumou
quando eu tenho os meios de comunicação aí? Eu acho que essa é a tendência. a ir todo dia receber o trem – a nossa cidade tinha um trem de ferro vindo do
É misturar! Isso aí não é novidade, não. Já houve um antecessor, Mahler, é Recife – todo dia de manhã era pra pegar a informação sonora. Ele dava isso
o primeiro a pensar nessa brincadeira. Essa coisa de música erudita brasileira de graça pra cidade. Isso foi muito importante, acho que do ponto de visto do
vai ficar no passado. Eu acho que sim! Ao mesmo tempo você vai se afirmar meu despertar para a música.
enquanto cultura fazendo música brasileira. Mas o que eu quero dizer é o
seguinte: o global tem o seu contraponto que é o particular. O global é a soma A família da minha mãe, à exceção dela, era toda protestante,
dos pedaços. Não esqueça. Eu acho que a tendência é misturar.” presbiterianos, acostumados a cantar em coro de igreja. Alguns, me lembro
até hoje, tinham vozes lindíssimas! Então foi toda essa convivência até o belo
dia em que, aos seis anos de idade, me perdi do meu pai na festa, na praça da
cidade, Novena de São Sebastião. Uma senhora, dona Adelina, centenária, a
Poderia falar um pouco sobre você? Sua infância?
cidade a mantinha (ela vendia cocada!) para que com o lucro, ela pudesse fazer
a maior festa da região que era a Novena de São Sebastião! Nove noites de festa
O nome completo é Jaceguay Monteiro Lins. Esse Monteiro Lins
onde em cada noite você tinha no mínimo, no mínimo, uma banda convidada
é um erro. Não sei se foi o meu pai, não sei se foi o “cartorário” lá, o fato é que
das redondezas. Um belo dia eu me perco e tem uma banda maravilhosa
era pra ser Lins Monteiro. Isso porque na tradição brasileira o nome do pai
tocando...aí eu subi no palanque e fiquei sentado escutando os clarinetes.
vem por último, né? [...] Aí eu fiquei Monteiro Lins.
Ali ficou decidido para sempre, Amém! Louvado seja Deus! Achei a minha
A cidade chama-se Canhotinho, fica no sertão de Pernambuco mas salvação! A música. A minha salvação!
uma cidade já quase limítrofe do agreste, da zona da mata. Uma cidade hoje
Lá eu tinha na época, um negócio obrigatório no colégio, que era
em franca decadência. Na minha época, quer dizer, na época que eu nasci,
o chamado canto orfeônico. Na época era a coisa mais chata do mundo! [...]
não é isso? Estamos falando do ano da graça de 1947, no dia 21 de abril,
Depois disso, eu acho que até uns onze por aí, eu entendi de ser seresteiro. Eu gentil fez dois comentários: “muito interessante a mudança do sustenido tal
tocava violão. Comecei tocando num acorde só, porque eu não sabia trocar para o bequadro tal. Você precisa estudar mais contraponto. Um abraço, estou
os dedos, e fazia serenata na cidade com os boêmios. Depois fui aprendendo. à sua disposição. Ernst Widmer”. A essa altura eu já conhecia ... nossa ... o
[...] Não sou um violonista, não! Aliás, não sou um instrumentista. Essa é que havia de música gravada do nosso século, eu já conhecia através do Camel.
que é a verdade. Cheguei a tocar razoavelmente bem clarinete. Razoavelmente Esse cara pra mim, foi um pilar na minha construção pessoal, melhor dizendo,
bem. E, na interpretação da música do século XVI, XVII eu acho que cheguei na construção do meu aprendizado. Ele abriu os caminhos, abriu! Ao mesmo
a tocar bem flauta-doce. Sou um percussionista que dá conta do recado mas tempo, o regente Geraldo Figueiredo - era regente da Camerata Belorizontina
não sou um exímio instrumentista. De jeito nenhum! Dou conta do recado! - um coral amador mas que tinha muito significado na época, na cidade,
Isso tudo tem a ver, já com onze anos de idade, onde, presente de minha eu fui pra lá e depois de uns três meses ele me alçou à condição de regente
mãe, [ganhei] um clarinete Selmer. [...] Então fui tocar numa banda em Belo assistente dele porque tinha percebido que eu tinha um certo jeito pra ver o
Horizonte. “todo”. Trabalhou muito solfejo comigo e chamou muito a minha atenção no
sentido de conhecer o que Camel já tinha me sugerido. Aí chegou o momento
Em Belo Horizonte eu fui morar com meus avós. Desde criança de procurar uma cidade grande onde eu pudesse ter mais informação. Por
eu sempre tive essa liberdade, graças a Deus. Eu tinha duas casas. Sempre sugestão do Camel, eu fui pra São Paulo, procurei a figura fantástica do maestro
tive. [...] Aos onze eu queria estudar música. Eu não podia sair de Canhotinho Edoardo de Guarnieri, que deu ao Brasil um trabalho fantástico além de ter
pra outro lugar senão pra casa de minha avó! Eu tinha só onze anos! Fui dado esse grande ator que é o Gianfrancesco. Cheguei lá, ele disse que não ia
pro jornal. Tinha lá escola “não-sei-do-quê”. Cheguei lá pra dizer que queria me dar aula não porque não dava aula particular. Aí eu menti pra ele. Eu disse:
estudar música e o tal caboclo já foi me perguntando assim: “o senhor quer “mas pra mim o senhor vai ter que dar porque eu vim lá de Pernambuco!”
violino ou piano?” É brincadeira? Mas aí eu disse que preferia o piano. Ele [...] Enfim, ele me arranjou um emprego numa sapataria pra eu poder ficar em
perguntou: “e por que o piano? O senhor tem piano?” Eu disse: “não senhor. São Paulo, e começou a trabalhar contraponto comigo. Contraponto! Mas de
Eu quero estudar o piano pra saber juntar as mãos e fazer música”. Nessa uma maneira tão obsessiva que eu acabei ficando com a chamada memória
época, sem o menor preparo, até porque eu não tinha orientação nenhuma. fotográfica. Até hoje eu boto o olho numa partitura e ela fica. Posso tirar o
[...] Ao mesmo tempo, encontrei Carlos Alberto Pinto Fonseca, regente do olho dela ... tô lendo tudo! Ele chegava a ser obssessivo! Quando eu entendi
Madrigal Ars Nova, Berenice Meneghalli, Rufo Herrera e acima de tudo um que já tava na hora de sair pra outra coisa, eu escolhi o Rio de Janeiro porque
cidadão chamado Camel Abras. Ex-aluno de Koellreutter, estudava trompa. eu queria estudar com o Guerra-Peixe. O Edoardo de Guarnieri tentou me
[...] Quando ele descobriu meu talento [...] começou a me falar de outras dissuadir. Ele dizia: “não! Você tem que estudar é com Santoro!” Eu dizia:
coisas, começou a me falar de ritmo, e a gente saía à noite e batucava nas bancas “não! Mas eu gosto é do Guerra!” Ele ainda brincou, disse: “você é burro! Vai
de jornal. Ele fazendo 2, eu fazendo 3. 3 contra 2, 4 contra 5... Repetidas estudar, depois você me fala”. [...] No Rio, eu fui muito bem acolhido pelo
vezes pra eu perceber que havia outras formas de manifestação. E esse rapaz, Guerra-Peixe, muito bem acolhido. Ficamos amigos, e a gente deixou de ter
Camel Abras, é a pessoa que me fez a ligação com o Widmer. Eu escrevi uma aula formal. Então, o maestro Alceo Bocchino, regente na época da Orquestra
peça, uma peça para coro a três vozes. Não considero nenhuma obra. É um Sinfônica Nacional, me sugeriu que eu começasse a estudar percussão. Porque
trabalho de estudante mesmo. E submeti por carta ao Widmer. Ele, muito era uma coisa carente. Enfim, isso me possibilitou poder ficar no Rio. Porque
isso tudo, eu era muito jovem. Acabei ficando amigo do Guerra e, a gente, 24 de janeiro de 1999
com essa coincidência, a gente passou a tocar na mesma orquestra. Ele era
violinista e eu tocava percussão. Depois da orquestra a gente saía pra tomar
um chopp e comentar aquela obra que a gente havia tocado. Isso foi de um
aprendizado muito grande pra mim, muito grande. Nada de teoria. Nada de Poderia falar um pouco sobre a sua concepção da construção?
referência bibliográfica, nada disso. “Aquele compasso assim, você viu como
é que soa?” “O efeito é esse. Ele conseguiu isso com tal instrumento”. Aí me Você tem a chamada construção linear, que é por exemplo, uma
despertou pra escutar a orquestra ao invés de ficar tocando pausa! Então a escala, ou um desenho que tem tal direção, você tem o oposto disso, que
vivência na orquestra foi muito importante. Na época eu tocava na Sinfônica eu citaria aí no caso, talvez mais o Webern. Com uma melodia mais em
Nacional, eventualmente na Orquestra de Câmera da Rádio MEC, que tinha ângulos. Aquela coisa de você partir do super agudo pro super grave, esses
sempre regentes convidados, e sempre toquei na Orquestra Juvenil do Teatro saltos, verdadeiros ângulos. Eu preferi, até hoje, sempre preferi uma melodia
Municipal do Rio de Janeiro. Sempre. Foi ali que eu aprendi tímpanos. Uma mais sinuosa. Eu acho que o que caracteriza a melodia é a sinuosidade. Você
coisa era a escola, outra coisa era a prática de orquestra, né?” encontra isso em Mozart, por exemplo. Ao invés de fazer dó-ré-mi, que seria
uma coisa linear, ele faz dó-si-dó-ré-mi. Uma certa sinuosidade, vamos dizer
assim. Eu acho que isso cria um elemento expressivo bastante significativo e
não é óbvio como a escala, aquela coisa direcionada, ou a melodia angulosa
Quando você foi para o Instituto Villa-Lobos? que eu acho muito dura. [...] Eu acho que o que mais marca a Katemare, do
ponto de vista melódico, é a sinuosidade. Você pode reparar que dificilmente
Eu estava já com uns 17 anos por aí. Quando eu saí de Belo você tem uma seqüência que tenha, digamos, mais de três notas num mesmo
Horizonte estava com 14. Um ano em São Paulo, 15. Eu devo ter chegado sentido. [...] Para mim é o grande mérito de uma melodia. [...] O Guerra
no Rio, eu acho que com uns 17 por aí. [...] Não havia no Brasil a figura achava que esse processo composicional decorrente do dodecafonismo, o
do professor de educação musical. O instituto se propunha a uma nova serialismo, enfim, pra simplificar, atonal, ele achava que era incompatível
pedagogia. É graças ao Instituto que você tem hoje o musicoterapeuta, etc. E com a afeição brasileira. Ele achava que era uma característica basicamente
não foi um concurso propriamente, houve uma abertura de vagas, digamos européia e que a gente jamais chegaria a criar uma linguagem digamos, que
assim, para propostas. Alguns compositores, inclusive o Guerra, meu querido tivesse uma característica da nossa música usando essa metodologia. Esse uso
Guerra, fez uma proposta e me sugeriu que eu fizesse uma. Fiz, e por acaso de intervalos não tonais. Eu sempre pensei diferente. O Widmer tem uma
foi a minha proposta que foi aceita. Era uma nova pedagogia, eu não queria peça se não me engano, chama-se Pulsars que tem um trecho chamado ritual
entender de jeito nenhum de ninguém começar aprendendo a escrever. Era onde ele usa um elemento se não me engano, é do maculelê. [...] Ele usou isso.
aprendendo a tocar, a fazer, cantar.... E isso era, digamos assim, afinado com Eu me lembro na época eu até comentei com ele: “como soa tão diferente...”
o que pretendia o Reginaldo de Carvalho que era o diretor do Instituto. [...] [...] E eu me lembro do único comentário dele. Ele disse: “o ser humano não
Fiquei no Instituto eu acho que .... 68 até 70...acho que uns dois anos. [...]” vive sem rituais”. Isso ficou guardado na minha cabeça e, na Katemare decidi
pôr à prova. Tanto que deixei o soprano inteiramente livre, independente da
percussão. E, nesse sentido eu acho que o Guerra não estava correto. Vai soar chamada arte conceitual. Ao invés de pensar numa partitura inteira, acabada,
brasileiro de qualquer jeito.[...]” ela é uma partitura gráfica, que reflete uma época da arte brasileira que tem
no poema processo, toda a sua fundamentação. Ou seja, já ninguém naquele
Ao invés do uso de temas ou tema, ou mesmo de série, como é o que momento estava preocupado em fazer um poema que tivesse um verso ou que
ocorre geralmente na música atonal quando um tema é substituído por uma tivesse uma estrofe mas que tivesse um processo de construção. Como é o caso
série, o processo que eu usei foi da total economia de meios onde o que me por exemplo, do livro A Ave, de Wlademir Dias-Pino. Que é considerado um
interessa é a recorrência a determinados intervalos e através dessa recorrência é marco do movimento. Um movimento muito mais radical do que a poesia
que a obra inteira é construída. Nada da idéia de tema, desenvolvimento, nada. concreta. Enquanto que a poesia concreta talvez esteja mais pro lado do
Não tinha nem pensado nesse assunto. Muito embora, em alguns momentos serialismo, o poema processo está mais pro lado do aleatório onde a própria
você tem a inversão desses intervalos, você tem até a repetição de um ou outro forma de editar, a própria paginação do livro encerra o propósito do poema.
trecho de frase como um elemento da construção, mas em síntese é como se Ele tem a forma de uma ave. Então a forma gráfica encerra em si um conteúdo
o intervalo fosse em si mesmo o próprio tema de cada movimento.[...] Na estético. Eu tive o prazer de participar desse grupo colocando a música como
minha obra inteira, muito dificilmente você vai encontrar alguma música, se elemento poético. Lembro-me até que pra surpresa minha [...] essa peça
é que você vai encontrar, que possa ser classificada do ponto de vista da forma [referência à Ciclo], foi apresentada uma vez pela rádio MEC, e eu tomei um
estrutural tradicional. [...] susto muito grande porque o locutor me apresentou como compositor poeta.
E estava longe de mim a idéia de pretender ser poeta. Eu queria apenas me
[Sobre Katemare] A palavra acorde, ela tem uma semântica que eu identificar com esse movimento. [...] Muitas vezes a obra não era outra coisa
acho que na música atonal deixa de existir, quando, por exemplo, em alguns senão uma interferência no universo do consumidor. Naquele momento a
movimentos você tem na viola duas notas, digamos, uma 2ª menor, seja ela em gente questionava o papel da arte, questionava essa aura da obra de arte, o
forma de sétima ou de nona. Uma coisa que eu acho que você pode considerar trabalho de sobressair entre os grandes trabalhos da humanidade como se fora
quando pergunta sobre a escolha dos intervalos, a relação de um intervalo uma coisa de iluminados, de inteligências superiores! [...] Passados não sei
com outro...eu considero [que escolhi] por mérito. Se você usa a 2ª menor e quantos anos eu vejo a peça hoje mais como uma coisa de interesse artístico
o trítono você cria um universo sem nenhuma possibilidade de conclusão, de mas não musical. Eu não chamaria hoje de uma composição musical. A gente
repouso no sentido de uma nota caminhar pra outra. Você cria um universo estava muito preocupado com a ideia da liberdade. [...] O uso do aleatório,
instável, digamos assim. [...] essa coisa de deixar a coisa mais ou menos solta, onde a proposta é o que
interessa, a proposta formal, a macro forma era delineada mas não delimitada.
[Sobre a dissertação de mestrado feita sobre Katemare e Lacrimabilis]
Isso não é outra coisa senão um Brasil inteiro que na época ansiava por uma
Uma coisa que talvez seja importante, embora você vá analisar especificamente
liberdade no sentido mais amplo da palavra. Eu não creio, pelo menos na
a Katemare e a Labrimabilis, eu acho que seria interessante, já que você está
nossa geração, eu não creio que o uso do elemento aleatório tenha constituído
falando do compositor também, fazer referência a outras obras porque há
um formalismo estéril, vanguardeiro, não. Eu acho que tinha uma conotação
alguns elementos estilísticos que se repetem.
política. Eu acho que era acima de tudo um grande grito de liberdade que
foi levado às últimas conseqüências. [...] Longe da ideia do compositor como
Falando especificamente do Ciclo: o Ciclo está no terreno da
sendo o autor único, a minha geração tem uma coisa que eu acho que foi numa geração com uma cara única. Você tinha, simultaneamente, os
muito importante. Muitos de nós interferíamos diretamente na obra do compositores paulistas, que tiveram uma influência muito grande de Camargo
outro, seja através de sugestão, seja através de pegar a caneta e escrever isto Guarnieri, que criou uma verdadeira escola de cunho nacionalista, tonal – a
ou aquilo na obra do colega, e tudo isso com o consentimento múltiplo de título de exemplo, o que me ocorre assim no momento, Sérgio Vasconcellos
que a gente estava num processo novo que a gente não tinha referência na Corrêa, é um exemplo típico – o que não quer dizer naturalmente que todos
tradição, por conseguinte. Não tinha referência na escola. [...] Era uma prática os alunos de Camargo Guarnieri rezassem pela cartilha dele. Você tem Aylton
comum. Eu dou várias peças minhas que tem determinados instantes que Escobar, ex-aluno de Camargo Guarnieri, e que é um compositor inteiramente
foram inseridos por terceiros, colegas meus, com consentimento, e na maioria voltado para o que havia de mais avançado na época. A obra do Aylton nesse
das vezes, acertadamente. Eu acho que essa foi uma característica marcante sentido, eu acho que é marcante, primeiro pela qualidade. A melodia! Ele
que fez com que a gente tivesse a ideia de geração no sentido mais amplo da é a sensibilidade total. Eu acho que, de todos nós, ele foi o mais sensível. Há
palavra. aquela sinuosidade típica dele, seja na música sinfônica seja na de câmera.
Ele conseguiu inclusive a façanha de colocar em música sinfônica elementos
Dentro dessa questão do aleatório, eu me lembrei agora de típicos da música de câmera. Determinado tipo de desenho, às vezes até de
Concertante, para piano e cordas, escrita sob encomenda de Jocy de Oliveira. caráter experimental, que ele conseguia pela transparência da orquestração,
Foi escrita daquela maneira porque era pra Jocy. Mas no meu entendimento, conseguiu botar numa peça sinfônica.
não tem nenhuma novidade, não tem nada de novo debaixo do sol. [...] Do
mesmo jeito que os concertos tinham uma cadência para seus solistas, e muito Você tem simultaneamente, por exemplo, a escola da Bahia. A
compositor chegou a escrever cadências de outros, e que você pode até utilizá- escola da Bahia é marcada pela influência da escola de Viena, dos serialistas,
las. Às vezes, o próprio autor faz a cadência. Mas a rigor, a cadência já era enfim, desde o dodecafonismo que foi introduzido lá através de Koellreutter,
desde séculos, a visão do aleatório na música. A possibilidade de o artista, de o que já é uma geração anterior. Nessa escola você tem figuras exponenciais,
intérprete poder mostrar seus dons, seus dotes, além do que o compositor era como é o caso de Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira, Jamary de
capaz de conceber. Oliveira e um músico argentino, que hoje a gente deve considerar na verdade
como mais um compositor brasileiro, que é o Rufo Herrera, autor de uma
linguagem própria, tem um sotaque particularíssimo, e que mesmo fazendo
parte dessa escola conseguiu fazer uma obra única trabalhando blocos,
12 de fevereiro de 1999 trabalhando simultaneidade de exemplos sonoros numa verdadeira visão nova
de polifonia.

No Rio de Janeiro você tem, basicamente, duas vertentes: uma que


Como você definiria a sua geração de compositores e a função social e é ligada à Escola de Música da UFRJ, na época Escola Nacional de Música,
cultural que ela teve, e que compositores eram esses? de feição tonal, muito aparentada a Béla Bartók, ao primeiro Stravinsky e
desses, eu citaria David Korenchendler como um bom exemplo e, mesmo
Num país do tamanho do nosso, fica muito difícil você pensar
fruto dessa escola, você tem já outras visões como é o caso, por exemplo, de contar uma coisa que marcou muito: a assimilação de muitos instrumentos
Jorge Antunes. da música popular. Eu acho que essa foi a grande marca dessa geração.
Sintetizando, talvez fosse o caso de redizer que essa geração foi marcada pelo
Jorge Antunes é o introdutor no Brasil da música eletrônica. A lado experimental e ela tem uma feição atonal que era na verdade uma escola
visão dele está muito mais próxima dos que fomos influenciados pela escola da mundial. Você tinha isso na Europa inteira, nos Estados Unidos, você tinha
Bahia, por causa da visão cosmopolita que ele tinha. O Jorge é um compositor isso no mundo inteiro, pelo menos no mundo ocidental, claro. E às vezes
que reflete o pensamento geracional de todo o mundo. Uma música atonal mas até no mundo oriental também. Era uma preocupação da época. Parece que
com a preocupação formal muito grande. A forma nele é muito visível, muito o tonalismo já tinha dito tudo. A gente estava já querendo mostrar que o
cuidada e sem, evidentemente, cair no academicismo que marcou, digamos mundo tinha uma outra cara.
assim, os meus colegas oriundos dessa escola. Você tinha ao mesmo tempo
uma vertente ligada à Esther Scliar, que foi professora de uma geração inteira, Quanto a essa outra parte da sua pergunta que é a questão social, eu
também vinculada a esse universo atonal, onde a micro forma, ou seja, os acho que, o que marcou essa geração foi, desse ponto de vista, ter trazido para
procedimentos internos eram muito mais trabalhados do que a grande forma a convivência com essa música, com esse experimentalismo, um público muito
no sentido da forma tradicional. Eu citaria como exemplo, Vânia Dantas grande. No caso específico do Rio de Janeiro você tinha os Festivais de Música
Leite. Pra mim foi das alunas mais brilhantes da Esther e reflete também esse da Guanabara, os primeiros no Teatro Municipal, e ali estava bem delineado
pensamento de uma música mais arrojada. que nós estávamos numa encruzilhada. Toda música que soava naqueles
festivais com uma feição mais acadêmica era literalmente vaiada. O público
Simultaneamente você tem também Guerra-Peixe, que formou estava dizendo que não queria mais aquele tipo de música. Lembro-me até de
também alguns compositores dentro de uma visão nacionalista mas não tonal. um concerto em que a reação pública foi muito grande contra uma obra de
Não o compararia, por exemplo, jamais a Camargo Guarnieri. Jamais. O Camargo Guarnieri. Uma cantata chamada Guaná – bará. O público, dizendo
Guerra, embora sua obra, pessoalmente, depois da vivência que ele teve com que não queria aquele tipo de música mais. Que não queria! Nessa época
Koellreutter, tenha assumido uma forma mais tradicional, ele era um homem você tinha os compositores, digamos, dessa fase que a gente está chamando de
de uma cultura muito grande e nunca foi de impor isso ou aquilo a nenhum experimental, você tinha neles um verdadeiro guia. Uma verdadeira senda, um
aluno. O Guerra na verdade, nem gostava muito de se intrometer no lado caminho que era o caminho que esse público queria. Havia uma identificação
criativo dos alunos. Ao contrário. Ele agia mais como um técnico. Abordava muito grande com essa coisa de dizer: “não, peraí! Todo mundo já falou, a
muito as questões de orquestração – no que ele era grande – de modo que gente já ouviu, agora nós queremos ouvir coisas novas”.
você tem, na mesma geração, infinitas caras, infinitas facetas, sendo que, o
que predomina, se a gente tivesse que fazer uma peneira, se a gente tiver que A gente não pode esquecer também, que esse novo não se dava
circunscrever todo esse universo a uma coisa mais representativa, eu diria que só no terreno da música. Nós estávamos aí, com a poesia concreta, com o
é a influência da música atonal e um grande número de atividades que a gente poema processo. A poesia concreta muito mais fortalecida em São Paulo
pode afirmar que estão no campo do experimentalismo. Eram proposições através dos irmãos Campos, Décio Pignatari, etc., e o poema processo, no
novas, novas formas de tocar, o uso de instrumentos não convencionais, sem Rio, mais influenciado por Wlademir Dias-Pino, que influenciou também
toda uma geração de artistas plásticos a exemplo de Antônio Manuel, Lygia É bom citar também que um elemento importantíssimo na criação
Pape, etc. O cinema, notadamente o curta metragem, voltado também para desse público foi o surgimento do Instituto Villa-Lobos. O primeiro Instituto
um experimentalismo. Eu citaria Sérgio Santeiro como o maior expoente Villa-Lobos, na praia do Flamengo, 132, criado pela figura sonhadora de
dessa vertente. E acredito que foi aí, nos Festivais de Música da Guanabara Reginaldo de Carvalho. Foi ali onde o Jorge Antunes fez o primeiro curso
que a gente tem uma verdadeira ruptura na relação do criador com o ouvinte. de música eletrônica do país, do qual inclusive, eu me orgulho de ter sido
Os compositores, contávamos todos com os nossos colegas intérpretes. Não é aluno. Foi ali que a gente conheceu as experiências de um Conrado Silva. A
à toa que uma das marcas dessa geração é o uso de elementos aleatórios, onde gente tinha um lado também de uma visão acadêmica, representada no caso
necessariamente o intérprete tem de ser criativo. Então, nesse sentido eu acho por Emílio Terraza, um compositor muito cioso da forma, da estrutura, etc.
que é onde a gente vê a contribuição social. Foi no sentido de formar um novo Pra você ter idéia, havia uma matéria comum que era obrigatória a todos os
público. Um público que não apenas ouvia, gostava e aplaudia. Um público alunos do Instituto, que era a prática coral. Por acaso eu era o regente do coral
que discutia, que queria ver que processo era aquele que tinha sido usado, do Instituto e a gente às vezes estava ensaiando com mil e duzentas pessoas,
como é que fulano escreveu aquela frase, etc. Havia uma interação muito fazendo música avançada com essa quantidade de gente. E é claro, isso nos
grande. Lembro-me agora, por exemplo, de uma composição do Gilberto obrigou a criar novas formas de escrita que pudessem ser inteligíveis a massa
Mendes que tinha participação do público. Ele fazia alusão a um jogo de humana e não atributo de meia dúzia de intelectuais.
futebol e um dos elementos sonoros que ele usava era o público gritando
“gol” em determinados momentos que eram sugeridos através de uma placa Tudo isso evidentemente vai gerando uma nova linguagem. E nisso
[referência à obra Santos Football Music]. Quem regeu essa obra foi o Eleazar o papel do Instituto Villa-Lobos foi importantíssimo. Eu acho que o Instituto
de Carvalho na época. Os Festivais já não eram mais no Teatro Municipal e, Villa-Lobos representou para o Rio de Janeiro o que a Escola de Música da
também, parece-me que a partir do terceiro ou quarto festival, já começou a Bahia representou para Salvador.
ter um caráter internacional. A gente já teve a participação de compositores de
quase toda a América sobretudo da América Latina.[...]

Eu queria fazer uma ressalva porque, quando eu citei alguns Na época de atuação dessa geração, ou seja, nas décadas de 1960/70,
compositores paulistas vinculados a Camargo Guarnieri eu fui muito como se processava a informação, como vocês tinham acesso à troca de conhecimento?
simplista e evidentemente injusto porque você não tinha só esse lado. A
É bem interessante essa pergunta. Eu tive ocasião de enfatizar esse
gente não pode esquecer, e foi citando Gilberto Mendes que me veio agora à
lado visionário do Reginaldo de Carvalho. O Reginaldo [...] como orientador,
memória, a gente não pode esquecer de um Willy Corrêa de Oliveira, Mário
foi grande. O Reginaldo era um homem cosmopolita. Era um homem que
Ficarelli e um compositor exponencial que é o José Antônio de Almeida Prado.
estudou composição com Messiaen, estudou em Paris, uma visão inteiramente
Compositores, todos esses em maior ou menor grau vinculados à tendência
diferente do que a Bahia nos oferecia, que era de influência mais alemã,
mundial que era a música atonal sem o rigorismo do dodecafonismo. Muito
austríaca, enfim, a chamada escola vienense. O Reginaldo tinha formação
menos o serialismo, mas usando desse fonema, que é o tratamento intervalar,
francesa e no Instituto, Conrado criou um verdadeiro mini laboratório que
que conduz ao atonalismo.
compreendia possibilidade de geração de sons eletrônicos mas compreendia
também um mini auditório todo voltado pra gente ouvir música. Para você fica se achando feliz. Não! Era coisa vista por milhões de pessoas. De modo
ter uma idéia, só da embaixada francesa, mais precisamente da ORTF, nós que a indústria fonográfica por exemplo, contribuiu de uma maneira muito
tínhamos quarenta mil horas de fita gravada. Tudo o que havia gravado na pequena para essa difusão. A produção de discos é quase insignificante nesse
Europa a gente tinha. É impossível a um ser humano ouvir essa quantidade de processo. A indústria fonográfica, naquela época como hoje, sempre teve uma
informação durante uma vida inteira. Mas a gente tinha! De modo que, um visão mercantilista. De um certo modo, perversa, muito mais voltada para o
compositor que hoje pode não ser significativo, que o tempo até pode tê-lo sucesso fácil e imediato do que para um trabalho de conteúdo mais relevante
esquecido, a gente ouviu. As experiências! para a contribuição artística e cultural deste país. Nesse sentido o cinema foi
mais importante. E quero crer que essa quantidade de material que a gente
[...] Nós tivemos a visita de Pierre Schaeffer como conferencista tinha gravado, foi na época o apogeu da fita magnética.
e não éramos só nós que ouvíamos. Eles também ouviam as coisas que a
gente fazia. Havia toda essa permuta. Tem uma figura importantíssima, um As escolas [de música] até então, as escolas profissionais, não tinham
compositor baiano chamado Rinaldo Rossi, que assumiu, se não me engano, sequer um gravador, sequer uma vitrola! Não, uma vitrola até que tinha mas
por um ou dois anos só, a direção da Orquestra Sinfônica Nacional. E aí há, não tinha sequer um gravador. No Instituto não, tudo era avançadíssimo.
também, um divisor de águas. Existe um antes e um depois. Porque o Rinaldo E é claro, toda vez que você tem esses meios, você tem a informação. Nós
Rossi abriu as portas dessa Sinfônica para tocar a música que nós fazíamos. sabíamos de tudo que estava sendo gravado no mundo, a gente permutava,
mandava fitas, vinham compositores dos Estados Unidos para lá, mostrando a
Havia uma rejeição muito grande, nem sempre pelos regentes, obra deles, era uma efervescência na época!
na maioria pelos músicos, os músicos mais velhos, envelhecidos inclusive de
espírito, e não cabe aqui citar mas havia um preconceito muito grande com o
que não fosse o feijão com arroz do tradicionalismo. E na rádio MEC, à qual era
ligada a Sinfônica Nacional, ainda é até hoje, parece-me crer, havia programas Essa visão cosmopolita na época proporcionou uma despolarização da
voltados para música contemporânea. Você tinha um outro elemento que era música, ou seja, deixou-se de pensar só em Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador
o cinema. O cinema passou a ser naquele momento um dos mais importantes como pólos isolados?
veículos da música avançada, da música contemporânea. Muitas vezes nós
íamos ver um filme mais de uma vez, não pela qualidade fílmica mas pela Sim. Eu não posso afirmar que era uma prática comum a
qualidade sonora. Compositores já trabalhando certos elementos e então, o todos. Não posso afirmar isso. Posso falar de mim pessoalmente. Eu vivia
cinema passou a ser veículo também dessa coisa. Sem contar, que a gente praticamente sem saber onde ficava. Porque, sempre que me era possível, eu ia
não pode esquecer que nessas décadas 1960/70, qualquer filme brasileiro era à São Paulo. Lá, meus contatos eram: Conrado Silva, de uma lado, através da
visto por um milhão, dois, três milhões de pessoas. Evidentemente que é música eletrônica e Mário Ficarelli, de quem sou amigo pessoal, no terreno da
um público muito grande. O cinema foi um dos instrumentos que a gente música sinfônica. [...] Essa coisa que você questionou se havia interação entre
utilizou para divulgar as nossas experiências. Não era como hoje que, quem esses diversos pólos ... nós sempre tivemos também um elemento aglutinador
tem um filme que é visto por quatrocentas mil pessoas dá graças a Deus e que no meu entendimento foi a coisa mais importante na música brasileira
de todos os tempos: a criação das Bienais de Música Contemporânea, na Sala
Cecília Meireles, que a gente deve a Edino Krieger, Myrian Dauelsberg, isso porque ela tem esse caráter de revolução? Porque pela primeira vez na história
só pra citar os dois mais engajados. O Brasil deve a esses dois a existência da humanidade você tem um veículo, estamos falando do disco, capaz de fazer
das Bienais de Música. De modo que de dois em dois anos o Brasil inteiro com que a informação processada em Darmstadt, seja conhecida em Manaus. A
tinha encontro marcado na Sala Cecília Meireles. Quem fazia música tinha indústria fonográfica representa o que para a década atual representa a Internet.
obrigação! Ali você tinha a cada dois anos a produção mais significativa É uma mudança muito grande no padrão de comportamento humano. Já
do país reunida. Os compositores ouvindo uns aos outros, conversando, não se trata da colaboração de um autor que, pelo uso disto ou daquilo, fez
trocando idéias, etc. As Bienais tiveram um papel aglutinador que, no meu com que a música caminhasse para aquele lado ou para aquele outro. Ela
entendimento, foi a coisa mais importante na história da música no Brasil. se coloca como um processo comportamental. Era só ter um dinheirinho
Pela primeira vez, um país inteiro podia mostrar sua cara, sua linguagem. que você podia ouvir o que se fazia no mundo inteiro, e pela primeira vez.
Nós não estamos mais na época em que Haendel viajou, se não me engano,
A minha identificação maior, com certeza, se deu com o grupo de dois dias de carruagem para assistir a uma execução de Bach. Você não tinha
compositores da Bahia. Até porque, desde minha adolescência eu já tinha mais a ideia de pólos culturais como por exemplo fora Praga na época de
o Widmer como mestre. Sem conhecer pessoalmente Ernst Widmer, eu não Liszt. Você não tinha mais a idéia de que Paris era a capital do mundo. Nada
escrevia uma nota que não mandasse pra ele e ele, muito criteriosamente, disso! A indústria fonográfica, de uma certa maneira, transformou a música
mesmo diante de uma obra de estudante, portanto insipiente ainda, analisava, num patrimônio mundial. Num patrimônio da humanidade e não mais de
abordava por escrito, isso ou aquilo. uma cidade ou de um povo mais ou menos culto do que outro povo. Nesse
sentido eu acho que ela é a única revolução que se processou. Todo o resto,
qualquer procedimento que você me mostrar em qualquer período da história
da música, eu lhe garanto que a gente com acuidade, com muito cuidado, a
Nós falamos uma vez sobre a indústria fonográfica, que você
gente vai ver que já foi feito. É uma coisa mais ou menos salomônica, sabe?
considera uma revolução na música .
“Não existe nada de novo debaixo do sol”.

A única revolução! A única revolução!


[...]Um compositor que de uma certa maneira também é citado
como revolucionário é Stravinsky. Não tem nada de revolucionário, não! Ele
Muita gente diz assim: Wagner foi um revolucionário. Que
representa o pensamento de muitas culturas emergentes que, através do que se
revolucionário coisíssima nenhuma! Vê os compositores da geração dele o
convencionou chamar de nacionalismo, estavam mostrando as caras. Por que
que já estavam fazendo, encaminhando já para a dissolução tonal. Ele é um
ao mesmo tempo que você tem Stravinsky, você tem Béla Bartók. A gente tem
evolucionista. Tem gente que desavisadamente diz que Schoenberg é um
junto de Béla Bartók o Zoltán Kodály, buscando na música popular húngara,
revolucionário. Que conversa, que falta de cultura! Schoenberg fez apenas
a feição daquele modus musical. Se me fiz entender, eu acho que na história
reviver todos os processos contrapontísticos da Ars Antiqua. Eu estou falando
da música só existe evolução. Revolução mesmo só existe com o surgimento
de antes da Renascença! Essa idéia de retrógrado, inversão, não tem nada
da indústria fonográfica porque revolucionou o padrão comportamental do
de novidade nisso não. Não tem revolução nenhuma. Os compositores já
ser humano. Isso é uma revolução.
faziam isso na música vocal. A grande revolução é a indústria fonográfica. E
Edino Krieger. Todas as vozes na música dele cantam e isso é um procedimento
contrapontístico. Eu acho que essa foi a grande contribuição do Koellreutter.
Qual a importância que você atribuiria a Koellreutter a ao Widmer no Ao mesmo tempo – é claro, eu já sou aluno dos alunos dele, eu não vivenciei
desenvolvimento do pensamento musical dessa época no Brasil? – mas é claro, a gente tem a informação histórica e eu tive a sorte também
de conviver com todos esses que eu citei. De modo que, as informações deles
Primeiro eu acho que a gente tem que entender o papel do também passam a fazer com que a gente tenha uma visão mais ampla do
Koellreutter como um papel inovador. É ele que traz para um Brasil que Koellreutter. Não sei se como professor ele tenha um papel mais significativo
estava iniciando a sua maneira de ser musical, ou seja, fazendo parte daquelas do que esse já citado. E quando digo não sei, é porque curiosamente todos os
chamadas culturas emergentes que, de uma certa maneira caracterizava- alunos de Koellreutter se rebelaram contra ele. Todos, a começar por Guerra-
se pela criação de escolas nacionais, a que se deu genericamente o nome de Peixe através de um artigo chamado Que ismo é esse Koellreutter? onde ele de
nacionalismo, que era um fenômeno da época, e que, no meu entendimento uma certa maneira renega todo esse procedimento dodecafônico – no que fez
já tinha, no caso brasileiro, chegado ao seu ponto culminante prematuramente muito bem, porque o dodecafonismo é uma faca que corta a própria lâmina,
através de Villa-Lobos. Aí aparece a figura de Koellreutter trazendo o novo, e sabe? É muito fechado, é um sistema hermético e como tal não pode dar
esse novo com uma cara cosmopolita. É claro que a grande contribuição do frutos. Muito fechado, muito rígido.
Koellreutter é a introdução do dodecafonismo no Brasil, mas se a gente pegar
só esse lado a gente está sendo injusto. Porque é só você ver a quantidade Já o Widmer, além de dar continuidade a todo esse campo, esse
de compositores brasileiros que estudaram com Koellreutter e que não são procedimento que eu insisto em dizer, cosmopolita, o Widmer curiosamente é
dodecafônicos. Eu citaria, por exemplo, de ex-alunos dele, Santoro, Guerra- o mais brasileiro dos compositores europeus. Você olha a música do Widmer,
Peixe, Esther Scliar, Edino Krieger, Eunice Katunda, cada um desses com você escuta o Nordeste. Sem precisar fazer música nacionalista mas certos
uma cara própria. Eles não tinham a cara do Koellreutter. O que Koellreutter procedimentos melódicos são característicos da música nordestina. E ele,
trouxe com o dodecafonismo foi, insisto em dizer, a retomada dos processos dono de uma cultura imensa, comparável à cultura de Koellreutter.
composicionais sob a égide do contraponto. É como se, no nacionalismo,
a gente estivesse vivendo uma fase, um período que alternasse – porque a O Widmer tem uma característica muito singular: ele era a
história da música é sempre uma alternância entre um período harmônico heterodoxia. Só para você ter ideia, dos alunos do Widmer, Lindembergue
e um período contrapontístico, sempre – é como se o nacionalismo Cardoso – que na minha opinião, é autor da obra mais significativa da Escola
tivesse sido, esse ponto culminante de Villa-Lobos, tivesse sido o grande de Música da Bahia – desse grupo de compositores com procedimentos
período harmônico e aí chega o Koellreutter e introduz, com os processos vanguardistas, é criador de novas notações gráficas, exatamente porque o que
do dodecafonismo, um reestudo do contraponto. Todos esses que eu citei, ele trazia já não podia mais ser tocado na escrita tradicional, e esse mesmo
mesmo quando escolhem fazer uma música de caráter mais harmônico, eles compositor faz uma missa para receber o Papa, que é cantada pelo povo da
têm uma fatura contrapontística muito sólida. Você pega por exemplo uma Bahia. Não por um coral, pelo povo da Bahia. Uma música de massa. Esse
obra de Edino Krieger. Por mais que no conjunto, na verticalidade, ela soe mesmo compositor que pega, por exemplo, elementos do candomblé e bota
harmônica, você pode reparar que tem vozes ali cantando. Característica do sem a menor cerimônia, ou seja, sem aquela idéia de uma escola fechada,
rígida, ou seja, sem ismo a não ser a contemporaneidade, a vivência de com a etmologia. Nós somos a geração que aprendeu com Haroldo de
tudo que lhe é contemporâneo. Juntado num caldeirão, e que faz a comida Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, que aprendeu a dar nome
aparentemente nova mas não é não – os ingredientes são os mesmos de sempre, aos bois. De modo que você não vai encontrar na Katemare o sentido da
apenas com uma abertura, uma visão muito mais ampla, muito mais generosa cantata barroca. É uma pequena cantata, na medida em que é uma peça
e nesse sentido eu acho que o Widmer foi insuperável. O Widmer é professor para ser cantada com acompanhamento instrumental. A forma de Katemare,
desse rapaz, mas é professor do Jaceguay, que tem outra visão. O Widmer é na verdade, foi determinada pelos poemas, pelos pequenos quartetos que a
professor de Rufo Herrera, que é o mais pessoal de todos os compositores da compõem. Sobre ainda a questão da forma, eu quero dizer o seguinte: eu sou
nossa época! A música do Herrera é única, única! Nunca conheci nenhum formalista por definição. Não concebo uma música que abra mão da forma.
compositor que usasse os processos dele. Ele trabalha com blocos. O Herrera, O que não quer dizer que nós estamos falando da forma tradicional. Katemare
polifonista de mão cheia, é capaz de compor uma música onde um coro tem uma forma que lhe é própria. Aliás, como qualquer música minha. [...]
infantil, por exemplo, num outro ritmo, num outro andamento até, canta uma Cada música tem necessariamente que ter uma forma própria, uma cara
canção folclórica e os instrumentos num universo mais arrojado, harmonias própria. Aí, há que se perguntar qual o elemento unificador que configura,
mais complexas. Ou seja, o Widmer representa essa abertura. Nesse sentido numa peça em sete movimentos, curtíssimos inclusive, o que é que configura
eu acho que ele – os dois, Koellreutter e o Widmer – atenderam aos espíritos a unidade e nós voltamos ao ingrediente básico de todas as músicas de todos
das suas épocas. Widmer na verdade, apenas consolidou de uma maneira mais os tempos: o intervalo. O que configura a unidade da Katemare é aquela 2ª
generosa, mais ampla o que o Koellreutter iniciou. Eu acho que existe um menor dizendo “ei, tô aqui!”. Por mais que mude o verso, muda o fonema mas
antes e um depois de Koellreutter no Brasil. a 2ª está ali, unificando. Na verdade, há alguma preocupação no sentido de
não transformar o intervalo no ditador da história. Claro, se em determinado
momento, quando eu digo “Muito Lento” num determinado movimento e
não mais aquela medida de ±1 ½’’ por compasso, parece que eu estou querendo
Eu queria falar um pouco da Katemare. Como é que você define a dizer que aquele movimento deve ter um caráter mais expressivo e quando eu
construção, a macro estrutura de Katemare? digo mais expressivo, eu estou ainda no terreno da história da música, parece-
me que, em toda a história da música, os movimentos mais lentos procuram
o lado mais expressivo. Então, mesmo não sendo essa forma barroca, eu me
atenho a esse cuidado de fazer com que ela não seja apenas sete pequenas peças
Eu acho que é preciso salientar o seguinte: esse subtítulo de cantata
como se fora uma suíte. Não é uma suíte. Ela tem começo, meio e fim.
é pelo fato de que ela é uma peça para ser cantada. Não estamos falando de
cantata no sentido da forma barroca, no sentido da construção de quase um
oratório. Não se trata disso. É uma característica dessa geração renomear as
coisas. Por exemplo: se não me engano, Pierre Henry, compositor francês, foi Qual foi a importância de Katemare na sua produção?
muito criticado por todos nós porque compôs uma “cantata falada”. Ora, se é
cantada não é falada, se é falada não é cantada! Havia essa preocupação nossa.
Nós não podemos esquecer que a nossa geração estava toda comprometida
Primeiro, para a gente falar contextualizando a Katemare, na E o conteúdo não tem outra maneira de se expressar senão através da forma.
minha produção, vamos falar um pouco do meu processo de aprendizagem. Portanto não há dicotomia. A Katemare, de uma certa maneira, foi uma
A maioria dos músicos da minha geração, ou teve um mestre, ou teve uma maneira de dizer: tem começo, meio e fim. Não é qualquer notinha que
escola. Eu tive um monte de mestres. Não tive nenhuma escola. É claro que vai entrar ali não. Para entrar, ela tem que ter um significado num conjunto
eu estudei, por exemplo, contraponto e fuga. Estudei! Eu adorava as aulas maior. Senão, eu teria escrito toda ela aleatória, não teria construção nenhuma
de Henrique Morelembaum. Mas nunca como estudante formal no sentido e cada cantora que cantasse do jeito que quisesse! Não é o caso. Eu queria
acadêmico. Estudei regência com Edoardo de Guarnieri, que para mim era mostrar para mim mesmo que com a maior economia de meios possível, era
o maior regente brasileiro na época, embora ele seja italiano de nascimento. possível construir uma obra.
Orquestração ... para mim o grande orquestrador brasileiro era Guerra-
Peixe. Foi com ele que eu fui estudar. Forma ... o processo da composição
propriamente dito, Ernst Widmer. Por que ele tinha domínio sobre isso. Ou
seja, ao invés de fazer um curso regular, eu fui pinçando. Não importava a Porque, quando eu lhe procurei, você me sugeriu a Katemare para
cidade. Eu queria saber o seguinte: quem é melhor nisso? É com esse que eu fazer este trabalho [referência à dissertação de mestrado]?
quero estudar. E, neles todos, eu nunca encontrei quem tivesse o domínio
Por duas razões: a peça em si, pelo seu rigorismo formal mais do
do intervalo. Vim a encontrar essa pessoa na professora Marlene Fernandes,
que tudo, pra que através de sua pesquisa, a Katemare fosse colocada no lugar
paulista, professora do Instituto Villa-Lobos. A Marlene era aluna do
que lhe é devido, visto que, não sei por obra de quem, até porque, essa coisa não
Ginastera, estudou no Torquato di Tella, enfim, toda uma geração argentina
tem a menor significação, porque não corresponde à verdade, [...] a Katemare
de altíssimo nível e, sobretudo o Gerardo Gandini, que era um especialista
é citada de vez em quando numa ou noutra obra literária, como exemplo de
na questão intervalar. A Marlene me passou isso e no momento em que havia
aleatório total. Na verdade, eu te sugeri a Katemare, para que através dessa sua
uma certa confusão para compor música, [...] por exemplo, professores mais
tese, que é um trabalho que, por definição, tem feição acadêmica, a Katemare
antigos não compreendiam muito bem o que se estava fazendo com intervalos
pudesse ser vista por alguns, como ela de fato é. Uma obra construída, onde
não tonais, com fórmulas não tonais. Até mesmo a questão de ritmo, porque
não é qualquer coisa que é igual a qualquer coisa não. É claro que tem também
o fato é que você tem um ritmo tonal. [...] E, a Marlene com muita paciência,
o lado emocional do compositor. De muitas de algumas músicas, é claro que
me ensinou a trabalhar o intervalo pelo seu valor em si. Que era o sonho de
eu tenho as minhas prediletas, Katemare é uma delas. Gosto dessa peça,
Schoenberg: independentizar cada som, cada sonoridade, cada altura, sem
mais uma vez por causa da economia de meios dela. Fiquei até receoso de
a hierarquia que é comum no tonalismo. Quando Sônia Born me mostra
que ela não ensejasse uma análise mais profunda, pelo fato dela ser simples,
esse texto indígena, eu vi ali nos fonemas uma novidade, uma coisa nova.
uma obra muito simples, mas acho importante que ela tenha sido objeto da
Sonoridade bonita, aí eu quis botar em prática esse ensinamento da Marlene.
sua análise, exatamente pra que não fique aquela coisa nebulosa de um ou
Levei às últimas conseqüências. Tenho consciência disso, ao ponto de no
outro autor falar isto e aquilo, às vezes me dando até a impressão de que não
último movimento ter partido para a microtonalidade. [...]
conhece a peça. [...] Até porque, a Katemare, independente do meu gosto
Eu acredito que a forma é maneira pela qual se expressa o conteúdo. pessoal, independente de ser uma das minhas prediletas, é uma peça que foi
muito bem compreendida pelos compositores da minha geração. Muito bem
compreendida, tanto que ela foi escolhida na I Tribuna Nacional. [...] Lembro- elemento que é o elemento da cor mas o elemento da altura, quando você faz
me por exemplo, nessa ocasião, eu estava ao lado de Conrado Silva e nós uma transcrição, você não muda porque, se mudar, você vai estar mudando
tínhamos que votar nas obras dos outros compositores também. E os nossos a essência da construção musical. Nesse sentido, é que a relação intervalar
votos coincidiram porque a gente discutiu plenamente todas as obras que a passa a ter um papel de condutor do pensamento composicional. [...] O uso
gente ouviu [...] e decidimos analisar. De 1 a 10, que eram as notas que a gente dos intervalos é que faz com que as alturas estabeleçam a linguagem. [...]
dava, decidimos dar à Katemare a nota 8,0. A gente deu a nota 8,0 porque, Ora, sabendo de todas essas experiências e vivendo numa época em que o não
ouvindo lá, e acompanhando a partitura, o Conrado chamou a atenção para tonal era para nós o significado do novo, entendi que eu tinha que ter muito
uma coisa que eu poderia ter cortado: no quarto movimento, numa hora em cuidado com o uso dos intervalos. Era uma preocupação tão grande! Para
que os pizzicatos duplos na viola são demasiadamente repetitivos. [...] Nesse você ter ideia, eu tive a satisfação de tocar num conjunto com Sonia Born,
quarto movimento ela peca pelo excesso, pela redundância desses pizzicatos. Georg Scheuermann, José Botelho, Peter Dauelsberg, era uma preocupação
Essa foi a nossa visão. Claro que eu não sei o que os compositores acharam, tão da nossa geração, que o nome do nosso conjunto era “Atonalis”. É como
mas o fato é que ela foi também escolhida para representar o Brasil na Tribuna se fosse uma bandeira da nossa geração. A gente já sabia que, um intervalo de
Internacional de Compositores, nessa ocasião, em Paris. Isso para mim, já é quinta por exemplo, ele foi lindo pro Barroco! A gente sabia que a terça é o
gratificante porque, quem ouviu e votou, evidentemente se identificou. [...] ponto culminante do Romantismo enquanto expressividade. Do jeito que a
De modo que essa foi uma das razões pelas quais a sugeri. Independente de eu gente tem a 2ª maior, a gente tem na Idade Média, não é? Aqueles melismas do
achar ou não, os meus colegas também acharam. cantochão e tudo, é tudo 2ª maior. Parece que, na nossa época, a 2ª menor foi
a rainha. Parece que é a marca do século XX. [...] E o trítono. Isso porque ele
em si, é a negação da hierarquia da quinta. Ele é a negação, por conseguinte,
da linguagem harmônica tonal. Claro que você tem outros elementos aí. Do
O que você considera como sendo a relação intervalar? mesmo jeito que, de fato, há um ritmo tonal, e pra mim o maior exemplo é
a obra de Brahms. [...] Te confesso inclusive que, no meu caso particular, eu
Alguns autores consideram as alturas como a força motora da
tenho muito de ritmo tonal. Propositadamente, muito. Eu faço questão da
composição. Entendo que é uma visão pobre. Até porque um som, e estou
quadratura, porque como instrumentista que fui, quero dizer, eu sei qual
falando da natureza sonora, tem que ser necessariamente curto ou longo, grave
é a angústia que é ler uma “filipausa” de silêncio ao ponto de transformar o
ou agudo, brilhante ou opaco, ou escuro como se queira, assim como ele tem
executante numa pessoa stressada. [...]
que ser necessariamente forte ou fraco. Claro que nós estamos simplificando.
O que mais marca na memória humana, tudo indica que é o parâmetro altura.
Parece que o ser humano não retém, pelo menos na memória, ele não retém
a cor do som. [...] Mas, parece que o elemento que predomina na memória Para você, existe um propósito para esta instabilidade em sua música?
humana é a relação intervalar. [...] Quando digo que esse parâmetro altura é o
que prevalece é porque é ele que faz você assobiar uma melodia da qual você [...]Não sei se sei lhe responder a essa pergunta. Eu vou tentar. A
se lembra e ele é tão importante, que você tem transcrições. Às vezes alguém vida ocorre à velocidade da luz. O que cria a música é a memória humana.
pega uma peça pra violino e piano e transcreve pra flauta. Você perde um Quando você acabou de tocar uma sonata, eu, como seu ouvinte, é que criei
na minha memória a música que você tocou, posto que uma vez que você tirou sinfonia lendo uma partitura. [...] O ser humano escreve música! Mesmo com
o dedo do teclado, aquela nota já não existe mais, a não ser na minha memória. toda essa genialidade, existem algumas questões agógicas que a escrita nunca,
[...] Essa instabilidade leva o ouvinte necessariamente a manter-se atento. jamais em tempo algum vai conseguir realizar. [...] Por outro lado, você tem
Não há mais aquela idéia de repouso, ponto, não. A música atonal requer do no nascimento da escrita musical, sugestões. Os melismas do cantochão,
ouvinte um permanente acompanhamento. Exatamente porque você já não por exemplo, são mantidos através da tradição. Não está tudo escrito ali. Os
lida mais com a sintaxe tradicional que faz com que uma frase tenha um fim neumas gregos, são apenas alguns sinais. [...] De modo que desde os seus
tonal, uma resolução em si mesma. Nós estamos aí no campo da interação primórdios, parece que estava embutido o elemento aleatório. O elemento
entre ouvinte, compositor e intérprete. Claro que isso leva a algumas coisas. aleatório está presente no concerto para solista e orquestra, por exemplo, que é
Fica muito difícil você assobiar uma música atonal! É mais fácil você pegar um concerto clássico, na cadenza. É verdade que na nossa geração o elemento
uma ária de Verdi e sair cantarolando por aí, mas é um jogo com regras bem aleatório passou a ser a prima dona, mas ele está presente em toda a história
claras. A gente sabia que corria esse risco. O Webern morreu acreditando que da música. Mesmo se você considerar uma partitura com escrita definitiva,
o dodecafonismo seria instituído no mundo como uma coisa compreensível nunca haverá dois intérpretes tocando-a da mesma maneira. Por conseguinte
por toda a humanidade, de tão lógico que ele era. A história mostrou que não está implícito o elemento aleatório, pelo modus de fazer música. Eu tenho
é bem assim. É muito difícil você assobiar uma peça de Webern. Ao mesmo a impressão de que o aleatório na nossa geração tem um papel de tamanha
tempo é quase impossível ouvi-la sem estar permanentemente estimulando a importância devido à complexidade da geração anterior. Lembras-te que eu
sua inteligência. É isso que eu acho que é mais importante. A música deixou te falei que é muito stressante tocar determinados compositores? Às vezes você
de ser uma coisa a ser fruída placidamente. Não. Você tem o sobressalto obtém o mesmo resultado deixando o intérprete livre. Há momentos, por
permanente de acompanhar nota por nota. exemplo, sobretudo nas grandes massas sonoras – estamos agora no campo da
sinfônica – há momentos em que seria desumano um compositor escrever nota
por nota para um verdadeiro “efeito” sonoro. [...] E não faz a menor diferença
porque ele vai soar igual. E quando digo soar igual é porque existe um limite
Eu gostaria que você falasse um pouco sobre o seu ponto de vista em para que a memória humana elabore a informação adquirida pelo ouvido. Se
relação à questão do elemento aleatório na música contemporânea. você tem uma progressão, digamos, do grave pro agudo com inúmeras notas,
a tendência do ser humano é conservar na memória a primeira e a última. As
Do mesmo jeito que é muito difícil a gente falar de música,
intermediárias passam a ter o papel de desenho. Apenas desenho. [...] Ora,
toda vez que eu leio um livro qualquer sobre música, tenho diante de mim
parece que os compositores da nossa época, se aperceberam disso e decidiram
que terei que interpretar as palavras do autor. Porque uma coisa é um som
dizer: “não! Vamos facilitar a vida dos outros!” Que coisa triste você tocar
musical, outra coisa é a descrição literária desse som. De igual maneira a
stressado! A gente de um lado tinha na música moderna, um instrumentista
escrita musical, a chamada semiologia musical, que é no meu entendimento
tenso, proibido errar! E ao lado dele tinha um músico popular improvisando,
o ponto culminante da inteligência humana – essas cinco linhas onde você
dando vazão a seu espírito. [...] A gente percebeu isso. E decidiu facilitar a vida
anota o dó, mib, etc., que faz com que, simultaneamente, você leia duração,
dos outros, sem nenhum prejuízo formal. [...] Eu acho que talvez tenha sido
timbre, intensidade e altura – é a escrita mais genial que o ser humano já
a maior contribuição da nossa época. Inserir na partitura outras formas de
concebeu. Nenhuma outra se lhe compara. [...] Você é capaz de escutar uma
escrita onde vale mais a sugestão. [...] forma de cluster e 2ª menores em fagotes, um trabalho bem interessante. Tem,
com Sérgio Santeiro, uma experiência também cinematográfica: ele dividiu
[...] É bom que se diga que muitas vezes o elemento aleatório é o filme em dois rolos de material de imagem e elaborou o primeiro rolo todo
decorrência da genialidade de alguns intérpretes que conseguem, seja na sua montado, perfeito e pediu para eu musicá-lo. Depois de pronto, o tema que a
voz, ou no seu instrumento, fazer coisas que só ele faz, [...] e que outro que gente usa, são temas do folclore brasileiro, do folclore de São Paulo, recolhidos
não faz aquilo, vai fazer de uma maneira diferente e nem por isso a estrutura por Mário de Andrade. A gente usou piano, fagote e alguma percussão. E
muda. [...] ele usou a música, copiou-a e ela foi um guia, um verdadeiro roteiro sonoro
para ele montar a outra metade do filme. Estava embutida esta proposta
experimental neste trabalho. Embora com temas do folclore, é uma música de
caráter bem mais avançado até. Com Fernando Campos, no filme Ladrões de
22 de fevereiro de 1999 Cinema, eu tive oportunidade de trabalhar músicas de Mano Décio da Viola,
e uma ou outra interferência minha, uma ou outra. Enfim, de uma riqueza
extrema. Você é obrigado a trabalhar com um vasto conhecimento do roteiro,
normalmente a última coisa a ser feita é a música, o que significa uma grande
Podemos falar um pouco sobre a música para cinema?
vantagem, porque no meu caso quase sempre eu acompanhava as filmagens,
enfim, e muita conversa com o diretor.
Eu acho que numa música de cinema, o lado autoral do compositor
submete-se ao filme. Isso diz respeito por exemplo à época, isso diz respeito ao
caráter geral último, por exemplo se é uma comédia ou se é um filme épico.
É claro que a música de um filme épico há de ser diferente da música de uma Podemos falar sobre a sua parceria com Geraldo Sarno?
comédia. O cinema tem como exigência básica ao compositor que se dedica a
esse tipo de trabalho, a pluralidade das linguagens musicais. Com Luis Carlos Geraldo é mestre. Com Geraldo a gente pôde criar para a época,
Lacerda eu pude fazer uma música de caráter bem experimental. Em Mãos mais precisamente para o chamado documentário do cinema novo brasileiro,
Vazias, o elemento aleatório nela é bastante acentuado. É uma partitura bem se é que a gente pode chamar de cinema novo. Talvez cinema novo por causa
gráfica até. da geração. Geraldo Sarno é um formalista de primeiro time. Com ele aprendi
a analisar cinema de um ponto de vista absolutamente formal. De modo que a
gente conseguiu resultados fantásticos. Tem um filme dele chamado Segunda
Feira, onde um mero crescendo de um trêmulo de quarteto de cordas parece
E o Princípio do Prazer, foi assim também?
que se casa com a imagem de um amanhecer. São os primeiros planos. Um
mero elemento sonoro mas com o uso de uma dinâmica, tendo como partitura
Não! O Princípio do Prazer , do mesmo autor, eu usei um tema
a luz. Não pense você que é um cluster! Não! É um acorde de Mi Maior!
popular, uma canção popular antiga. Disfarçada, de uma maneira tonal,
do jeito que me apropriei de uma frase de Caetano Veloso e harmonizei-a em
E Coronel Delmiro Gouveia?

Coronel Delmiro Gouveia coroa essa parceria muito embora depois


disso a gente tenha feita outros trabalhos. O Coronel Delmiro Gouveia, acho
que coroa porque é um filme com uma estrutura mais complexa, tem toda
uma narrativa histórica. Um dos temas do filme, por exemplo, é uma alusão a
Sinfonia n.º 5 de Cláudio Santoro. Tem um caráter bem nordestino como o
filme impunha, e afora essa identificação com as imagens, eu não considero a
obra musical de valor intrínseco. Não! Ela é uma boa música para cinema.

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