Aruã de Silva Lima, Uma Democracia Contra o Povo, 2009
Aruã de Silva Lima, Uma Democracia Contra o Povo, 2009
Aruã de Silva Lima, Uma Democracia Contra o Povo, 2009
Feira de Santana
2009
Feira de Santana
2009
Agradecimentos
Chamam-se sensitivas as plantas que se fecham quando tocadas. Eu fazia isso quando
criana, tocava apenas para v-las fechar. A sensao, poca, no exatamente clara em
minha memria. Hoje, ao trmino dessa dissertao, num claro esforo de tornar inteligvel
uma sensao adulta, me sinto assim: como quem toca numa planta sensitiva e espera o rpido
fechamento. Com isso quero dizer que ao contrrio do que se comenta no meio acadmico
acerca da escrita de monografias, essa dissertao no foi um parto e no foi composto por
momentos excessivamente dolorosos. O processo foi muito mais tranqilo do que eu prprio
poderia imaginar no incio. Essa calma e paz se devem, sobretudo, s pessoas que
contriburam e que me deram condies de realizar esse trabalho. Familiares, amigos, colegas,
professores e trabalhadores que tiveram participao indireta e direta neste trabalho sero
lembrados. Caso haja omisses, a conta deve constar na fatura de uma memria um pouco
cansada, embora eternamente grata.
Os anos da graduao na Universidade Federal da Bahia foram fundamentais para a
construo do projeto que redundou nessa dissertao. Com a companhia inicial de trs
veteranos do curso de Histria, Clio Arajo, Cristiano Alves e Mariana Pontim, eu, Jlio
Pinheiro e David Rehem ingressamos no grupo de estudo que se dedicou a discutir textos
acerca do anticomunismo. David Rehem, Cristiano Alves e Jlio Pinheiro terminaram sendo
os interlocutores mais assduos quando j era bolsista de Iniciao Cientfica (IC). A todos
eles minha gratido.
Esse grupo foi coordenado pelo professor Muniz Ferreira. Fui seu orientando por dois
anos de IC e seu aluno em diversas disciplinas. Com Muniz aprendi um pouco mais do
esforo necessrio para estudar. Porque conhecimento requer disciplina e persistncia. Chama
a ateno o misto de erudio e simplicidade que faz parte das sesses de orientao. No
entanto, creio que minha gratido para com Muniz se deve simplesmente ao fato de que foi
ele quem me abriu as portas da pesquisa em Histria. Ao mesmo tempo, me tornou, se posso
assim dizer, um pesquisador autnomo j que a relao entre orientando e orientador, sempre
muito cordial e respeitosa, supunha, implicitamente, a autonomia intelectual como objetivo.
Por fim, desejo agradecer a todos que comigo conviveram na Universidade Federal da
Bahia, dentre professores, colegas e tcnico-administrativos. Tambm sou grato queles que
conviveram comigo em outros espaos adjacentes universidade, tornando, de modo criativo,
ela uma instituio que se faz presente em todos os espaos da vida social de um estudante.
Clber, Priscilla, Victor Zimmer, Amanda, Carlos, Ana Luza, Larissa, Giselle, Simo,
Serginho e tantos outros...
Em Salvador, fui adotado por meus tios no decorrer dos quase 4 anos que morei com
eles. Acompanhei o cotidiano de suas vidas e dele fiz parte. Tio Chico uma figura rara por
vrios motivos e com ele aprendi, dentre outras coisas, o significado prtico do conceito
lugar social. Convenhamos que por si s bastaria esse ensinamento para os quase 4 anos
terem valido a pena. Contudo, no foi s isso. Tia Myrian me fez sentir em casa a tal ponto
que na minha cabea cartesiana parecia estranho ter duas casas. E, por fim, Bernardo, meu
primo, com quem dividia o quarto, foi um grande companheiro porque no s pude tornar
minhas a suas angstias (e vice-versa) como pudemos torn-las riso sempre que possvel. O
ambiente parecia muito com o da minha prpria casa: livros, almoos e jantares com
discusses (nem sempre to) elevadas.
Durante a minha pesquisa tive que ir ao Rio de Janeiro duas vezes. Em ambas fiquei
hospedado em casas por intermdio de Tia Myrian (mais um ponto de gratido para a fatura).
Na primeira vez conheci Vera, Almir e dona Lcia. Fui tratado como rei. Numa segunda
ocasio estive hospedado com Ana Cristina e Paulo e seus filhos Viviane, Maurcio e Jlia.
De ambas as famlias que me fizeram sentir acolhido e me brindaram com conversas, guardo
as mais ternas lembranas, muito obrigado.
No Rio pesquisei no APERJ, CPDOC e AN. Em todas as instituies fui tratado
excepcionalmente bem. No APERJ gostaria de dar meus parabns a Ana Lcia, Joyce e
Johenir que foram prestativos e atenciosos com este baiano errante. No CPDOC Renan aturou
minhas intensivas e longas horas de escuta e leitura de documentos, tendo que sempre ir e
voltar com pastas e mais pastas. Por fim, no AN, toda a equipe merece as congratulaes. Um
membro, porm, eu devo destacar. Joel gastou comigo alguns minutos preciosos para me
ensinar os caminhos e descaminhos daquele monstruoso arquivo.
Na Bahia pesquisei na Biblioteca Pblica do Estado da Bahia, no setor de jornais raros
e agradeo queles senhores inquebrantveis que l permanecem. O Centro de Memria da
Fundao Pedro Calmon poderia constar aqui de maneira elogiosa. Mas na verdade cumpriu
um desservio s tais polticas de transparncia e liberdade de informao do Estado.
CAPES que me financiou durante 2 anos.
Por meio da rede mundial de computadores requeri documentao de duas
instituies. Em uma delas, o Arquivo Pblico Mineiro, mantive contato com Denis da Silva.
A ele devo a documentao do acervo de Arthur Bernardes que faz referncia a Otvio
Mangabeira. Da Schlesinger Library, na Universidade de Harvard, tive acesso
Resumo
Esta dissertao trata da trajetria de dois grupos polticos que construram uma ambivalente
aliana poltica. Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira so eixos estruturadores desse
trabalho. A disposio da monografia est dividida em quatro momentos, sendo o primeiro
uma exposio rpida das trajetrias de Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira. O segundo
reporta-se construo do liberalismo baiano em dilogo com outras expresses regionais e,
tambm, com estratgias de interao entre grupos internacionais. O terceiro refere-se ao
anticomunismo, componente precpuo da UDN, como fator aglutinador de grupos dirigentes
cujas divergncias foram minimizadas face ao populismo varguista e ao avano do PCB. O
quarto captulo destaca a importncia desses dois agentes no americanismo forjado no pas,
principalmente a partir da segunda metade da dcada de 30, influenciando na construo de
liberalismo e anticomunismo inventado no Brasil. A relevncia desse trabalho, por fim, situase na historicizao da tica liberal de um grupo dirigente local com influncia nacional.
Palavras-chave: Juraci Magalhes; Otvio Mangabeira; UDN; anticomunismo; liberalismo.
Abstract
This dissertation is about the trajectory of two political groups that built a controversial
political alliance. Juraci Magalhes and Otvio Mangabeira are structuring axis of this
work. The disposition of this dissertation is divided in four chapters and the first one is a
short exposition of Juraci Magalhes and Otvio Mangabeiras trajectory. The second one
assesses the construction of liberalism in Bahia in dialog with other regional expression and,
also, with interaction strategies with international groups. The third chapter refers to
anticommunism, a fundamental compound of UDN, as agglutinating factor of leading classes
whose divergences were minimized when they faced populism of Vargas and the advance of
PCB. The fourth chapter highlights the importance of these two agents of the Americanism
forged in this country. Mainly it is about the second half of the 30s and it analyzes how they
both influenced on the construction of liberalism and anticommunism invented in Brazil. The
relevance of this work, then, is situated on the historicizing of the liberal ethics of a leading
local group with national influence.
Key-words: Juraci Magalhes; Otvio Mangabeira; UDN; anticommunism; liberalism.
Introduo
Captulo I Otvio Mangabeira e Juraci Magalhes: aspectos de duas trajetrias
1. Juraci Magalhes
1.1. No Cear
1.2. O Exrcito
1.3. Os tenentes
1.4. A organizao do PSD
1.5. Sucesso de Vargas e aliana possvel
1.6. Autonomismo dividido entre Juraci Magalhes e Getlio Vargas
1.7. Estado Novo e o embrio da Unio Democrtica Nacional (UDN)
2. Otvio Mangabeira
2.1. Os Mangabeira
2.2. O Colgio do Arlindo: entre a guia e a Raposa
2.3. A queda da Repblica Velha e a dcada de 30
2.4. Trs momentos da campanha do Brigadeiro
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Captulo II
A tradio liberal na Bahia: classes dirigentes e disputas
intestinas no tempo da assim chamada Era Vargas
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Introduo
O tema dessa dissertao o processo de aproximao entre Juraci Magalhes e
Otvio Mangabeira durante as dcadas de 30 e 40 do sculo XX. Tentei investigar em que
medida a aproximao desses dois sujeitos significou o estreitamento entre o autonomismo e
o juracisismo, dois dos grupos que se forjaram na sociedade poltica baiana aps o movimento
de 1930. Tambm busquei compreender as bases programticas e sociais que envolveram o
processo.
A metodologia utilizada para a exposio das interpretaes que fiz da documentao
pesquisada enfatizou, sempre que possvel, os mecanismos internos e externos sociedade
brasileira. A hiptese central desse trabalho articula o anticomunismo, liberalismo e
americanismo como eixos ao redor dos quais girou a aproximao entre os grupos polticos
dirigidos por Mangabeira e Juraci Magalhes. Todos esses trs elementos foram, ao mesmo
tempo, fenmenos brasileiros porque tiveram aqui expresses sui generis de suas
manifestaes e fenmenos transnacionais porque ocorreram tambm em outras sociedades
apresentando, em alguns aspectos, similitudes com os processos experimentados no Brasil. A
viso totalizante da anlise histrica inspirou esta investigao tendo em vista que busquei
compreender as determinaes diversas dos processos ora em exame, a partir da mobilizao
de categorias de anlise que elege as lutas sociais como foro privilegiado para o estudo das
sociedades.
Compreendi que, para realizar uma investigao da natureza a qual pretendi fazer,
deveria empreender uma anlise da classe dominante baiana. Com esse conceito, to
amplamente criticado nos ltimos anos, pretendi entender os mecanismos levados a cabo
pelos sujeitos de uma classe para construir consensos. Por classe, entendo um processo de
identificao entre sujeitos situados em posies semelhantes em relao aos meios de
produo. Ao mesmo tempo entendo que esse fenmeno acompanhado pelo processo
cotidiano de experimentao da condio de classe. Portando tanto o aspecto relacional como
do ser cotidiano como experincia da condio de classe devem ser considerados, sobretudo,
quando trato da histria dos grupos dirigentes. (WOOD, 2003, p 89)
Por vezes Juraci Magalhes, Otvio Mangabeira e outros so chamados de
intelectuais. O leitor atento saber diferenciar as diferentes acepes do termo no decorrer
texto. Muitas vezes a palavra se refere ao entendimento usual dado, a saber, referente ao
sujeito dado a trabalhos intelectuais, como a escrita, o debate e a leitura. Noutras tantas vezes,
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intelectual se refere a mais uma noo gramsciana. Aquela que supe o intelectual orgnico
como aglutinador e elaborador das idias da classe a qual pertence, influenciando diretamente
na cultura de modo a solidificar a hegemonia do grupo do qual fazia parte. Muitas vezes
Mangabeira e Magalhes desempenharam esse papel e isto destacado no texto. Mais uma
vez com Gramsci:
E no existe organizao sem intelectuais, isto , sem organizadores e dirigentes,
ou seja, sem que o aspecto terico da ligao teoria-prtica se distinga
concretamente em um estrato de pessoas especializadas na elaborao conceitual e
filosfica. Mas este processo de criao dos intelectuais longo, difcil e cheio de
contradies, de avanos e recuos, de debandadas e reagrupamentos; e, neste
processo, a fidelidade (e a fidelidade e a disciplina so inicialmente a forma que
assume a adeso da massa e a sua colaborao no desenvolvimento cultural como
um todo) da massa submetida a duras provas. (GRAMSCI, 2006, vol 1, p 104)
11
A documentao
Esse estudo deriva dos trabalhos de iniciao cientfica. A fonte trabalhada naquele
momento foi a imprensa oficial do Estado da Bahia. O Dirio Oficial do Estado da Bahia
foi pesquisado entre os anos de 1925 e 1935. Fiz a leitura do Dirio da Assemblia que era
um anexo daquele jornal com os discursos de deputados e senadores at 1930 a Bahia tinha
um Senado Estadual. Continuei com a pesquisa da imprensa oficial entre os anos de 1935 e
1945, seguindo o plano da iniciao cientfica. Acrescentei, a essa pesquisa, a leitura dos
textos biogrficos e autobiogrficos de Juraci Magalhes. Passei a ajudar na catalogao da
documentao de Otvio Mangabeira. O Centro de Memria da Fundao Pedro Calmon
ficou responsvel pela guarda do acervo pessoal de Mangabeira e contratava estagirios para
realizar a tarefa de sumarizao dos documentos. Em meados de 2006, quando encerrei meu
perodo no Centro de Memria, iniciei a feitura do projeto de monografia para finalizar meu
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curso de graduao e, quem sabe, concorrer numa seleo de mestrado. Fiz o anteprojeto na
expectativa de que alguns meses depois a documentao j estivesse disponvel para o
pblico. Todos os indcios, quela poca, faziam crer nessa probabilidade. J estava sendo
feito o trabalho de correo das sinopses j inseridas no sistema virtual e a mquina de
digitalizao estava em vias de iniciar as operaes. Visitei, algumas vezes, o Centro de
Memria para saber as quantas andava a tal documentao e esta sempre esteve fechada para
pesquisa. Certa feita, presente ao local, foi-me informado que deveria requerer um
agendamento via correio eletrnico. Fiz isso, e, infelizmente, no obtive resposta. A
documentao que segue citada no decorrer desse trabalho foi anotada ao longo do perodo
em que ajudei na catalogao do material.
Recebi tratamento diferente do Arquivo Pblico Mineiro, da Biblioteca da
Universidade de Harvard, do Arquivo Nacional, do Centro de Pesquisa e Documentao de
Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getlio Vargas (CPDOC FGV), do Arquivo
Pblico do Estado do Rio Janeiro e do setor de Peridicos e de Jornais Raros da Biblioteca
Central da Bahia.
Do Arquivo Pblico Mineiro obtive cpias das correspondncias entre Artur
Bernardes e Otvio Mangabeira, bem como cpias de inmeros dos manifestos pblicos e
cartas de Mangabeira ao General Dutra. Da Biblioteca da Universidade de Harvard me foi
enviada, sem custo, uma carta de Mangabeira Freda Kirchwey que muito ajudou na
apreciao inicial das relaes de Mangabeira com a intelectualidade estadunidense. Do
Arquivo Nacional, os relatrios dos delegados das localidades interioranas da Bahia me
ajudaram a compreender a natureza do anticomunismo praticado durante o Estado Novo. Esse
ltimo corpo documental terminou por no ser incorporado na dissertao. No CPDOC
FGV tive acesso aos acervos pessoais de Juraci Magalhes, Aliomar Baleeiro, Arthur Neiva,
Joo Mangabeira, Oswaldo Aranha, Juarez Tvora e Getlio Vargas de onde extra grande
volume
de
documentos
entre
manifestos,
telegramas,
cartas,
relatrios
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dados a partir da escolha de datas importantes como, por exemplo, a sublevao comunista
em novembro de 1935. A partir disso, estabelecia os parmetros da amostragem.
Captulos
Como j expus a tese central dessa dissertao, convm agora informar o modo como
est exposto o argumento de acordo com os captulos do texto. No primeiro tento reconstruir
aspectos das trajetrias de Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira. No trouxe luz fatos
aleatoriamente. Explicitei informaes que julguei importantes j que em nenhum momento
me propus a fazer uma biografia dos sujeitos supracitados. As trajetrias que pretendi abarcar
nesse trabalho so os caminhos polticos e a evoluo ideolgica dos sujeitos como
exemplos de formaes sociais mais amplas que suas prprias individualidades. Assim, nas
breves linhas em que reconstru as vidas pblicas de ambos, tentei faz-lo sem a preocupao
de expor as variadas opes que lhes avizinhavam. Ainda que entendesse interessante fazer,
imagino que nos captulos seguintes a noo de mltiplas possibilidades, ainda que imerso
num campo de limitaes, se faz presente. O primeiro captulo uma tentativa de mesclar
uma narrao de nascedouro e vida intelectual com a insero no mundo da vida pblica.
Alm disso, busquei realar as posies polticas de cada um deles nos momentos crticos da
Repblica bem como as de seus grupos polticos.
No segundo captulo inicio o primeiro argumento. Esboo objees a pensadores que,
por um lado, criticaram a trajetria do liberalismo brasileiro por este no ter cumprido tarefas
histricas, e, por outro, elegeram um grupo a ser chamado de liberais apenas porque se
situavam na oposio a um governo. Tento mostrar como Juraci Magalhes e Otvio
Mangabeira tinham muito mais em comum em meados da dcada de 1930 do que a
historiografia faz entender. Esta elege o segundo como liberal em oposio aquele ainda que
dez anos antes da fundao da Unio Democrtica Nacional quando, de fato, fizeram parte do
mesmo partido, tenha compartilhado idias parecidas. Por fim, destaco o equvoco dos
pensadores sobre o Brasil que viram o liberalismo como uma idia fora de lugar. O
liberalismo no Brasil desempenhou funes anlogas quelas que cumprira na Europa. Sua
vinculao com a democracia tardia e no necessria, haja vista a escravido. Mesmo sua
acepo de democracia deve ser historicizada, coisa que no fiz.
O terceiro captulo trata do anticomunismo. Como fenmeno global ele chega ao
Brasil e rapidamente se torna nacional. Os dois sujeitos no se constituem como grandes
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15
Captulo I
Otvio Mangabeira e Juraci Magalhes: aspectos de duas trajetrias
Este primeiro captulo tem como objetivo apresentar ao leitor rpidas informaes a
respeito das trajetrias de Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira. O uso de fontes secundrias
foi intenso. A formao dos grupos polticos dos quais ambos eram partcipes destacados
tambm foi analisada, ainda que de modo tmido posto que o intuito desse captulo apenas
informar o leitor com dados que sero mais discutidos nos prximos captulos.
A inspirao para esse captulo a formulao lapidar de Pierre Bourdieu acerca da
biografia entendida como trajetria. A idia da biografia como descrio linear da vida de um
sujeito descartada e redefinida inserindo a trajetria num campo de possibilidades:
O sentido dos movimentos que conduzem de uma posio a outra (de um posto
profissional a outro, de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.)
evidentemente se define na relao objetiva entre o sentido e o valor, no momento
considerado, dessas posies num espao orientado. O que equivale a dizer que no
podemos compreender uma trajetria (isto , o envelhecimento social que, embora o
acompanhe de forma inevitvel, independente do envelhecimento biolgico) sem
que tenhamos previamente construdo os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenrolou e, logo, o conjunto das relaes objetivas que uniram o agente
considerado pelo menos em certo nmero de estados pertinentes ao conjunto dos
outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espao
dos possveis. (BOURDIEU, 2002, p 190)
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1. Juraci Magalhes
A maior parte da documentao utilizada para a exposio a seguir o material
produzido pelo prprio Juraci Magalhes por meio de depoimentos ao Centro de
Documentao e Pesquisa em Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getlio Vargas
(CPDOC FGV). Algumas ressalvas foram feitas na anlise desse material. No entanto,
trabalhos de pesquisa no intuito de assegurar a veracidade de certas informaes no foram
feitos, como por exemplo, a checagem da certido de nascimento de Magalhes. Outras
informaes foram checadas com cruzamento de fontes, como por exemplo, sua participao
em episdios do movimento de 1930. O depoimento de Juraci Magalhes utilizado como base
para a anlise que se seguir foi colhido por pesquisadores do CPDOC FGV em 1977,
portanto, apresenta claros sinais de que suas memrias tm ligao com um Juraci Magalhes
vivido, sustentculo da Ditadura Militar e j ciente de seu legado para a histria poltica do
Brasil.
1.1. No Cear
Nascido em 1905, Juraci Montenegro Magalhes, empenhou-se na carreira militar
antes dos seus dezoito anos no 23 BC de Fortaleza. Fruto da emigrao de sua famlia do
serto cearense, Magalhes nasceu na capital. Sua famlia paterna parece ter vivido um
processo de ascenso social j que em razo do movimento migratrio teve a chance de
construir uma posio social a partir do comrcio de livros de seu pai, Joaquim Magalhes.
No possvel discorrer acerca do papel de seu pai no mundo rural de Uruburetama relativo
ao prestgio e posio de classe que ele tenha ocupado. Sabe-se, no entanto, que em Fortaleza,
Juraci Magalhes pde definir os laos de classe, no sentido de pertencimento a um certo
grupo social. Joaquim Magalhes pode participar do crculo da classe dominante da sociedade
da capital cearense que, apesar de restrito, permitiu que ele mantivesse dilogo com grupos
tradicionais.
O matrimnio de Juraci Magalhes pode ser explicado, levando em considerao as
estratgias de grupos de parentesco para manuteno e ascenso de posies. Devem ser
inseridas nesse contexto as relaes estabelecidas por seu pai: Meu pai e o general Raimundo
Borges,
pai de
Lavnia,
embora adversrios
polticos.
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De acordo com seu depoimento ele diz, acerca da participao poltica de sua famlia,
focando na atuao de seu pai:
Atuao poltica, entretanto, teve apenas muito reduzida: era um poltico diletante e
no se envolveu o suficiente para disputar cargos pblicos. No tempo do marechal
Hermes, verdade, ocupou a Secretaria de Fazenda do governador interino Carvalho
Mota, que era um banqueiro muito seu amigo, recebendo esta deferncia como uma
espcie de reconhecimento por sua participao nos acontecimentos que
determinaram a ida do interventor Franco Rabelo para o Cear. (MAGALHAES,
1982, p 38)
Em seguida, aponta para questes que indicam algo mais profundo ligado influncia
real de Joaquim Magalhes em Fortaleza nas primeiras dcadas do sculo XX:
A despeito de sua amizade com o velho Borges, papai mantinha uma relao poltica
e tambm de amizade pessoal com o chefe do partido tavorista do Cear. Era ele,
Fernandes Tvora, o mdico que papai chamava quando algum de ns adoecia. Os
dois eram bons amigos, mas no tempo da interventoria Tvora tiveram um
desentendimento. Politicamente no se estimavam mais, e isto teve reflexos no meu
relacionamento com Juarez, que no seu livro de memrias, injustamente, manifestou
certo ressentimento comigo. (MAGALHES, 1982, p 40)
Trata-se de algo que, embora requeira mais trabalho de pesquisa para confirmao,
pode ser entendido como uma tentativa, por parte do grupo em ascenso de galgar espaos
slidos para preservao de uma certa posio social.
H dois momentos da entrevista de Juraci Magalhes que podem explicar a ascenso,
ou ao menos parte dela, de seu pai, Joaquim Magalhes:
Aos poucos, conquistou um espao na sociedade local e granjeou uma boa
reputao. Com alguns colegas, criou a Fnix Caixeiral Sociedade dos Caixeiros
Cearenses, tornando-se um lder de sua classe. Mais tarde, medida que seus
mritos iam sobressaindo, assumiu outros cargos: chefe da maonaria, provedor da
Santa Casa de Misericrdia, presidente do Cear Esporte Clube e do Clube
Iracema... (MAGALHES, 1982, p 37)
Num outro momento, ao falar da circunstncia que provoca a mudana de seu av paterno, do
interior sertanejo para uma outra regio, ele afirma: Quando meu pai melhorou de vida,
mandou busc-lo e comprou para ele um pequeno stio em Maracana, onde ns
veranevamos. (MAGALHES, 1982, p 39)
Se por um lado, o segundo trecho citado retrata uma situao geralmente desejada pelo
migrante, qual seja, de melhorar as condies de vida, o primeiro descreve mecanismos de
ascenso em frentes diversas daquelas relacionadas unicamente trabalho como espao social:
a estratgia que levou aquisio de capital simblico a partir da participao na maonaria,
Santa Casa de Misericrdia e em Clubes sociais e na organizao e direo de entidades de
classe. Mesmo que a posteriori possvel destacar, em dois planos, questes fundamentais
para a reconstruo da trajetria de Magalhes: 1) seu prprio tempo narrativo traa uma
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biografia linear de seus antepassados calcando a ascenso social no mais perfeito paradigma
liberal j que supe o esforo individual como principal prerrogativa para o sucesso; 2) o
prprio processo de ascenso em si que permitiu a Juraci Magalhes pleitear posies de
privilgio e direo na sociedade cearense desde cedo.
Dentre os doze filhos e filhas de Seu Joaquim, trs partiram para a medicina, um foi
militar, um se tornou funcionrio pblico do Distrito Federal, o outro acabou funcionrio de
banco pblico e as mulheres se casaram com general e coronis. Do ponto de vista de uma
estratgia familiar de sobrevivncia, descontando trs bitos, fica patente a organizao
segura do grupo de parentesco. O carter empreendedor da atividade comercial aparece
apenas como o primeiro impulso da ascenso social; a estabilizao e solidificao da posio
no campo social seguiram a tendncia de tomada de pontos estratgicos e seguros da
organizao estatal como forma de trabalho e status. Assim, de se supor que, principalmente
numa sociedade sexista e machista, o papel dos homens no sentido de assegurar posies para
si e para mulheres com algum vnculo de parentesco tenha passado pela negociao entre
famlias. No meio militar, por se tratar de um tipo de organizao que se esfora para forjar
uma cultura prpria, a proliferao de unies matrimoniais, resultando em famlias de
militares, so comuns. Trata-se aqui de um exemplo, por um lado, de ascenso de um grupo
familiar, os Magalhes, ao mesmo tempo em que outro grupo perpetua sua existncia na
posio de conservao os Borges, a famlia da esposa de Juraci Magalhes.
Magalhes no pertencia a um grupo familiar desconhecido j que sua me Jlia
Montenegro Magalhes tinha no sobrenome do meio a tradio decada que, nas palavras do
prprio Juraci, tinha pequenas posses e, acima de tudo, uma posio social mais elevada do
que a famlia de meu pai. (MAGALHES, 1982, p 40)
Prossegue Magalhes, montando o cenrio: Na verdade, na famlia de minha
mulher
Lavnia
que
se
encontram
os
antecedentes
polticos
mais
marcantes.
(MAGALHES, 1982, p 40) Afirma tambm, paradoxalmente, que seu pai tinha esprito
pblico e acompanhava o Fernando Tvora, irmo do Juarez e chefe do Partido Liberal do
Cear, que participou da conspirao [relativo ao movimento de 1930], fez tambm a
Revoluo de 1930. A poltica era uma atividade inteiramente paralela vida de meu pai.
(MAGALHES, 1981, p 20) Talvez no fosse uma participao to puramente diletante por
parte de Joaquim Magalhes quanto descrita acima. Embora tenha sido discreta e episdica
sua participao nas atividades polticas no Cear, Joaquim Magalhes de fato teve algum
poder de influncia nas tomadas de decises na sociedade poltica.
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Juraci Magalhes casou aos 23 anos com Lavnia Borges, em 1928. Ela, filha do ento
Tenente-Coronel Raimundo Borges, carregava o peso da tradio familiar no estado. A essa
altura, Magalhes j havia freqentado importantes centros educacionais de Fortaleza: o Liceu
do Cear e o Colgio Sagrado Corao de Jesus. A importncia de ter cursado o ento ensino
primrio e secundrio naquelas instituies foi a sua incluso num crculo de privilegiados da
elite cearense.
Aps ter terminado o ensino secundrio no Liceu do Cear, Magalhes ingressou, em
julho de 1922, no 23 Batalho de Caadores, em Fortaleza. L permaneceu por pouco mais
de seis meses quando j se vivia a influncia, na Escola Militar de Realengo, da Misso
Francesa de 1919 que mudara a matriz doutrinria do Exrcito brasileiro. Sobre sua entrada
no Exrcito ele afirma: Vim para o Exrcito, no por vocao guerreira, mas porque ramos
uma famlia de 12, e eu via os sacrifcios de meu pai para educar os filhos. (MAGALHES,
1981, p 18) Para depois concluir: Vim para o Exrcito como uma maneira de me educar,
uma maneira mais branda para o meu pai, sem maiores sacrifcios para ele. Via o que ele
gastava para educar o Jurandir e o Elizer, e form-los mdicos. (MAGALHES, 1981, p
19)
Assim, como tantos outros fizeram e continuaram a fazer no decorrer do sculo XX,
Magalhes submeteu-se rigidez do Exrcito com vistas educao, meio clssico de
ascenso social no mundo burgus.
1.2. O Exrcito
Em Fortaleza, no dia 5 de julho, dois dias depois de ingressar no Exrcito, foi preso,
segundo Magalhes
porque cantei o Seu M, uma msica inventada pelos partidrios do Nilo Peanha
na campanha contra Artur Bernades:
Ah, seu M, ah, seu M,
L no Palcio das guias
No hs pr o p.
O povo prefere a goiaba campista.
Ai, rolinha [era o apelido do Bernardes], desista. (p 41)
Foi ento a que seu pai influenciou para sua soltura. Joaquim Magalhes tambm,
num segundo momento, precisou intervir para evitar sua supresso dos quadros do Exrcito.
(p 42) O princpio de sua atividade no Exrcito teve sequncia muito em funo do poder
conquistado por seu pai em Fortaleza.
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Mesmo que s tenha encontrado Juarez Tvora em 1927, como ser visto a seguir, desde
1923, ele j havia iniciado as atividades de conspirao. Compreendendo a estrutura na qual
se situava Juraci Magalhes em seus anos de juventude, pode-se inferir que a conspirao
como prtica cotidiana montada pelos setores tenentistas do Exrcito tinha ligao profunda
com os antecedentes histricos de Juraci Magalhes, de membro de uma famlia em ascenso
22
1.3. Os tenentes
Iniciei a minha vida pblica como tenente revolucionrio. Participei da Revoluo
1930 e fui chefe da revoluo militar na Paraba, onde fiz meus primeiros
conhecimentos polticos, com Jos Amrico, Antenor Navarro, Ademar Vidal,
Basileu Gomes, Rui Carneiro, Francisco Ccero, Borja Peregrino, Ademar Londres,
vila Lins, Gratulino de Brito.
(...) Como ia dizendo, comecei a minha vida pblica como tenente revolucionrio.
Eu tinha 25 anos e assumi grandes responsabilidades. Sa da Paraba para atacar
Recife, onde inicialmente tinha fracassada a Revoluo. (MAGALHES, 1981, p 4)
23
Alm de referir-se a sujeitos que viriam a ser elementos da mais alta importncia no
campo das tomadas de decises no interior da sociedade poltica, Magalhes reacende a idia,
por ele posta, de que boa parte de seus contatos polticos foram efetivados por meio desse
movimento. E continua:
Todos os contatos que ns, militares, tnhamos com a chefia dos civis era com Jos
Amrico e, principalmente, com Antenor Navarro. Jos Amrica era realmente o
chefe civil da Revoluo. Na noite de 3 para 4 de outubro, quando desencadeamos a
Revoluo, o Jos Amrico chefiava a Revoluo na Polcia Militar da Paraba, com
o Joo Costa, o Coronel Sobreira...
(...) Tinha um grupo civil que conspirava sob a chefia do Jos Amrico. O Antenor
Navarro era o chefe do estado-maior, um elemento que se expunha, rapaz
formidvel. (MAGALHES, 1981, p 67)
Assim, possvel notar que tambm entre os tenentes e militares a questo do poder local e
regional limitava grande parte das tentativas de organizao de partidos com programas
nacionais, como sugere o arenista Juraci Magalhes de 1977.
24
condicionado sua aceitao anuncia do ento Vice-Rei do Norte, Juarez Tvora, a quem
Juraci Magalhes se via subordinado que, por sua vez, se ps favorvel tripla indicao.
(MAGALHES, 1981, p 96)
Ainda que se mostre excessivamente modesto ao dizer que no conhecia nada, o
depoimento que se segue d uma clara noo do tipo de oposio que foi feita a Juraci
Magalhes e, principalmente, os mecanismos que ele se utilizou para sobrepuj-la.
No conhecia nada, cheguei l, me ambientei e fiz esse trabalho de arregimentao
poltica.
Quando fui assumir a interventoria na Bahia, eu ia em um navio, com o Nlson de
Melo, que ia ser secretrio de Segurana em Pernambuco, e o Carneiro de
Mendona, que ia ser interventor no Cear. (...) Quando o navio encostou, tinha
umas dezenas de pessoas que os tenentes tinham arranjado para ir-me esperar, um
grupo onde no havia uma atuoridade, um s valor poltico; s os tenentes
revolucionrios tinham valor, como revolucionrios. Mas, de valor poltico, no
tinha nada. (...) Fiz contatos, tinha comunicao (o que era muito importante), e dava
muita entrevista pela imprensa. Criei um programa de rdio, e toda semana eu falava
no rdio. Assim, fui-me comunicando. D. Augusto, que era arcebispo naquele tempo
e que depois foi cardeal, me hospedou no Palcio quando cheguei cidade, frente
das tropas revolucionrias. Mais tarde, quando j era interventor, ele disse: Olhe,
Tenente Juraci, tenho dialogado muito com os seus adversrios, e sempre pergunto
por que, na opinio deles, o senhor no pode ser o interventor. Eles alegam que o
senhor militar. Eu respondo, dizendo que militar no um defeito, uma
profisso. Um civil poder ser, e um militar tambm. Depois, dizem que o senhor no
nasceu na Bahia e cearense. Respondo, dizendo que tambm sou pernambucano,
s sou baiano de corao. Finalmente, dizem que o senhor muito moo...
(MAGALHES, 1981, p 79)
25
Mas eu organizei bem a poltica municipal. Por exemplo, o Gileno Amado era chefe
de Itabuna e contra o Joo Mangabeira. Com o meu apoio, ele ganhou
espetacularmente. Em Ilhus, tambm era o Joo Mangabeira, e eu botei o Artur
Lavigne, a quem fiz candidato a deputado federal, e foi eleito. Entreguei a chefia a
ele. Assim, fui organizando a poltica. Francisco Rocha, que tinha sido do grupo
legalista, aderiu Revoluo. Entreguei a ele Barreiras, a rea do So Francisco. E
Clemente Mariani foi secretrio do Partido Social Democrtico da Bahia.
(MAGALHES, 1981, pp 74-5)
Muito provavelmente no foi to simples quanto ele faz supor a partir do depoimento
mas o fato de terem sido desalojados dessas esferas de poder aqueles que depois comporiam o
autonomismo d substncia sua verso.
No incio, porm, a reao dos polticos baianos decados parece ter sido mais de
estranhamento que de oposio aberta:
Os dirigentes tinham escrpulos de aparecer. Pedro Lago, por exemplo, almoou
comigo na casa do ex-ministro Francisco S, que era tio de minha mulher. Ele tinha
sido candidato a governador, mas a Revoluo no o deixou empossar. Era,
portanto, um homem contra a Revoluo. Mas ele levou o almoo todo instilando na
minha cabea a figura do Medeiros Neto como um dos homens mais aproveitveis
da Bahia. Realmente, quando cheguei Bahia, procurei o Medeiros Neto e ele
imediatamente ficou ao meu lado. Foi um dos companheiros de organizao poltica.
Altamirando Requio, que era diretor do jornal O Dirio de Notcias, esse tinha sido
sempre candidato a deputado federal e nunca fora eleito por causa da ata falsa; no
deixavam vez para ele. Ele me ajudou muito. O Marques dos Reis, que tinha sido
secretrio do Governo Calmon, era uma figura intelectual, grande advogado e de
grande prestgio na sociedade. Ento, fui tendo conversas individuais com eles, em
almoos e jantares. (MAGALHES, 1981, p 115)
26
A posio de outros sujeitos grados da sociedade poltica foi assim descrita por
Magalhes:
Agora, o Lima Cavalcanti e o Flores eram a favor da candidatura do Armando, mas
aceitaram o meu plano e encontraram uma cobertura moral para a nossa posio
contra o Getlio. Ento, Lima Cavalcanti ficou comigo, solidrio comigo at a
queda. O Agamenon, naturalmente, com a fora que tinha, tripudiou sobre o Lima
Cavalcanti, escreveu artigos horrorosos contra ele. Foi uma tristeza.
(MAGALHES, 1981 p 169)
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Parte significativa dos udenistas no foram favorveis a essa proposta que terminou por
vigorar.
2. Otvio Mangabeira
Para esta parte do trabalho foram utilizados escritos biogrficos e algumas fontes
primrias. A maior parte dos trabalhos biogrficos trata Mangabeira de maneira elogiosa e, ao
contrrio dos textos a respeito de Juraci Magalhes que so auto-biogrficos, os bigrafos de
Mangabeira so quase todos admiradores, ex-correligionrios e amigos. Alguns exemplos so
claros como Jayme de S Menezes que tem relao de parentesco com um um antigo
professor de Mangabeira. Assim, este, por ocasio da morte de seu professor disse: A Artur
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de S Menezes, (...) deve a Escola Politcnica da Bahia servios inestimveis, de que posso
dar testemunho. (ARINOS, 1980, p 38) Outros exemplos como Yves de Oliveira tratam
Mangabeira sob a gide da admirao autonomista. No foi possvel encontrar nenhum
trabalho de cunho acadmico sobre o tribuno baiano. Os cuidados com a anlise das fonte
secundrias foram diferentes daqueles identificados no exame de trajetria de Juraci
Magalhes. Tratou-se de despir o texto do frequente discurso apologtico acerca de
Mangabeira j que no se intentou analisar as manifestaes do discurso autonomista. Para
alguns a trajetria de Mangabeira foi smbolo mximo da eloquncia da simplicidade.
(ARINOS, 1980, p 10) H dois aspectos dignos de observao: a eloquncia enquanto forma
de trazer a ateno e a simplicidade como suposta prtica genuinamente baiana. No decorrer
das linhas que seguem alguns traos de ambos os aspectos sero evidenciados.
2.1. Os Mangabeira
Otvio Mangabeira nasceu no final do sculo XIX, em 1886. A 27 de agosto daquele
ano Francisco Cavalcanti Mangabeira e Augusta Mangabeira, pai e me, viram nascer algum
que
Mangabeira era farmacutico e pouco interesse tinha por poltica ainda que fosse fiel
monarquia na figura de Pedro II. (MANGABEIRA, 1978, p 17) Sobre sua me poucas
notcias h.
Mangabeira foi um dos quatro filhos do casal referido acima. Alm de Otvio, Carlos,
Francisco e Joo Mangabeira constituram a famlia sendo que Otvio era o caula. Sobre a
vida estudantil, alguns trechos de bigrafos referem-se a sua trajetria: Realizou, com grande
brilho, os seus exames preparatrios em dois anos, de sorte a matricular-se, em 1900, com
ainda 13 anos de idade, no Curso Anexo da Escola Politcnica da Bahia, cujos cursos foram
inaugurados em 1897. (ARINOS, 1980, p 13)
Sua escolha posterior pelo curso de engenharia teria sido sugesto de seu irmo Joo,
no sentido de que, tendo Carlos, o primognito, seguido a carreira do pai, Farmcia;
Francisco, Medicina; ele, Joo, Direito, devia Otvio cursar Engenharia. (ARINOS, 1980, p
13) Sobre esse momento, tambm se diz que teve, assim, Otvio que, a contragosto, marchar
para a Escola de Engenharia de Salvador, que vinha a ser fundada, e onde acabou professor de
Astronomia. No elaborou porm nenhuma planta de construo civil e deve ter dado poucas
aulas. (ARINOS, 1980, p 7) Reconhecido pelas inmeras anedotas que marcaram sua
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trajetria e o imaginrio acerca de sua vida, uma delas citada por Ruy Santos quando ele,
Mangabeira, agradecendo a homenagem lhe feita pela Escola de Engenharia no tempo da sua
aposentadoria, teria dito: Engenheiro e professor, chego a esta altura da vida sem ter sido
nem uma coisa nem outra. (ARINOS, 1980, p 7)
Mangabeira pertencia casta de intelectuais baianos do incio de sculo. Como diz
Paulo Santos Silva:
interessante notar que os oradores mais expressivos desse contexto deixaram
pouca coisa impressa em forma de livro. A crena na fora da palavra refletiu-se na
profuso de discursos modalidade elevada ao extremo por Rui Barbosa, em quem
os oradores baianos buscavam inspirao, procurando imit-lo. No por acaso, Joo
Mangabeira, um dos seus discpulos fiis, destacou-se antes pelos discursos que
pelos livros publicados. A projeo intelectual de Otvio Mangabeira deveu-se
quase exclusivamente aos discursos parlamentares, o que foi reconhecido e elogiado
por contemporneos e psteros. (SILVA, 2000, p 89)
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miserveis honorrios (...). Estes mesmo 100 mil ris se pagavam impontualmente,
visto como o governo, por seu turno, s pagava quando podia ao Instituto
Politcnico a subveno modestssima com que este mantinha a Escola. Mais ainda,
o professor, obrigado a trs aulas por semana, deixava escrito num livro o resumo de
cada lio, para o fim de, em caso de falta, lhe ser feito nos 100 mil ris o respectivo
desconto. Ora, claro que, em tais circunstncias, s houve um meio de recrutar
professores, e a este recorreu: era ir busc-los entre os antigos alunos que se haviam
de qualquer modo distinguido, e que aqui permaneciam depois da formatura.
(ARINOS, 1980, p 18)
Durante esse perodo em que exerceu o magistrio, Mangabeira teve dois cargos
pblicos. O primeiro deles foi a nomeao para Auxiliar Tcnico da Comisso Fiscal das
Obras e Melhoramentos do Porto da Bahia no mesmo perodo em que lecionou a disciplina
Navegao e Portos. (ARINOS, 1980, p 24) O segundo foi o cargo de Engenheiro Fiscal
da Companhia de Gs, Bahia Gaz Mard Eletric Company, para o qual fora nomeado por
Portaria de 24 de julho de 1909, do Ministro do Interior. (ARINOS, 1980, p 25)
Desempenhou essa funo por mais de dois anos. Foram suas nicas atribuies no servio
pblico.
Otvio Mangabeira participaria tambm de iniciativas literrias, como era comum aos
seus pares. Tal qual tantos outros, Mangabeira se envolvera na redao dos jornais Dirio de
Notcias e Gazeta do Povo, quando ainda estudante. (ARINOS, 1980, p 14) Participou de um
grupo fundado no nicio do sculo XX, Nova Cruzada. (SILVA, 2000, p 91)
Um dos traos mais curiosos da trajetria de Mangabeira e, principalmente da escrita
sobre ela, sua recorrente relao com Rui Barbosa como se a sua trajetria fosse
prosseguimento, aproximando ao sentido de superao, daquela.
Otvio Mangabeira, como Rui, foi homem da classe mdia, dentro do conjunto
social, a mais estvel, a classe de grandes virtudes. Falando de Rui, o admirvel
Santiago Dantas apontou que a sua vida foi um repertrio dessas virtudes,
circunstncias e episdios que exornam o ideal tico da classe e constituem uma das
foras profundas de que se alimenta sua fecunda trajetria social; no teve os
fatores e as facilidades da existncia dos filhos das classes privilegiadas; foi um
produto do seu trabalho e do seu merecimento. Tal qual Otvio Mangabeira,
homem da mesma classe, filho de um modesto boticrio. De fortuna herdada, apenas
a da formao moral; de riqueza pessoal, a do talento. (ARINOS, 1980, p 48)
Dos primeiros momentos de sua carreira poltica, os textos utilizados para uma breve
reconstruo de sua trajetria, tratam pouco ou quase nada de sua filiao inicial ao
seabrismo, em oposio a Ruy Barbosa. Assim o biogrfo Yves de Oliveira explica a posio
tomada por Mangabeira, quando ainda Conselheiro Municipal acerca do pleito presidencial
envolvendo Ruy Barbosa e Hermes da Fonseca, este ltimo apoiado por J. J. Seabra, a velha
raposa:
33
Chegou, afinal, o momento que julgou propcio, para uma definida posio
partidria. E ele o fez com diplomacia, fruto do seu temperamento e de sua cultura,
medindo as palavras, usando-as com a maior prudncia.
Ele sabia que, apoiando a candidatura Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca,
estaria contra a candidatura do mais eminente dos seus conterrneos, uma das
maiores figuras da Ptria e das Amricas, a figura consagrada de Rui Barbosa!
(ARINOS, 1980, p 150)
Quando ainda muito jovem (21 anos), Seabra o fez vereador e o elegeu depois duas
vezes para a Cmara Federal, onde os seus mandatos se sucederam at a sua
ascenso a ministro do Exterior no governo Washington Lus (1926 1930).
(...) Sabe-se que Otvio Mangabeira migrou com sucesso do tempestuoso quadro
seabrista de 1918 para o rusmo e para o calminismo dos irmos Miguel, Antnio e
Francisco Marques de Ges Calmon, afinal vitorioso em 1924. (TAVARES, 2001, p
454)
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Criticando, partiu a 25 de novembro de 1930 para a Europa. Tudo indica que tenha
passado alguns meses em Roma antes de escrever a 12 de novembro de 1932 uma carta ao
presidente do Supremo Tribunal da Justia Eleitoral, Hermenegildo de Barros onde j iniciava
as crticas supresso de liberdades polticas de maneira mais elaborada. Antes disso, porm,
ainda em Roma, Mangabeira enviou sua primeira mensagem pblica, inaugurando um modo
que lhe seria muito til de fazer mostrar suas opinies, intitulada Ao Povo Brasileiro:
Explicao necessria. Ele pormenoriza as condies de sua priso e revela suas primeiras
crticas pblicas ao movimento de 1930.
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Ento, era assim que se viam os baianos decados, alijados do quinho da direo do
Estado, como que imbudos de uma misso cvica de restaurao.
Para lutar pela autonomia baiana, a servio do Brasil, fundou-se, imediatamente, a
Concentrao Autonomista. Na primeira reunio do respectivo diretrio (...) ficou
esclarecido, sem opinio discrepante: a questo local do Estado se achava
necessariamente subordinada questo geral da Repblica; e o plano, a ser posto em
prtica, seria o de uma ao nacional, nos termos, linhas acima referidos.
(OLIVEIRA, 1971, p 158)
Fez o possvel para construir uma campanha eleitoral para Governador do Estado em
torno do autonomismo e, diante da necessidade de marcar posio face ao candidato
tenentista, Mangabeira disse:
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Aparece nesta ltima citao o momento que Mangabeira trava um dilogo com uma
corrente que, se no era opositora sua, no era exatamente um grupo de correligionrios.
Mesmo assim, Mangabeira teria procurado Jos Amrico do mesmo modo que Juraci
Magalhes procurou Armando de Sales: no intuito de construir uma candidatura nica. Esse
aspecto, vivo nos anos de 1936 e 1937, extremamente relevante para os argumentos que
sero desenvolvidos nos prximos captulos.
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1943 fez Uma sucinta exposio de fatos quando apresenta uma descrio crtica dos
eventos que propiciara, at ento, os treze anos de governo Vargas. Em 5 de novembro de
1944 escreveu Ainda uma vez, aos Meus compatriotas. Por fim, escreveu em 1945 Pontos
nos ii da Ditadura Brasileira, preparando a volta triunfal da democracia. Todos esses
documentos tiveram a iniciativa de promover, para alm da crtica, uma amostra aos
opositores do Estado Novo que havia necessidade de construir uma alternativa que viria a ser
a Unio Democrtica Nacional. Os trs ltimos manifestos tratavam j de uma continuidade
das conversaes que estavam sendo estabelecidas para fundao de uma ampla frente liberal.
(BENEVIDES, 1981, p 43)
Mangabeira chegou ao Brasil a 11 de maio de 1945. Foi recebido por um discurso de
Jos Amrico:
Sou eu, o adversrio de ontem, o antagonista de 1937, dos primeiros a saud-lo,
porque, antes de nos darmos as mos, nossos espritos se encontraram. Atingimos
um plano em que a reconciliao firmou mais do que o pacto de paz, o compromisso
cavalheiresco, lado a lado, de uma pugna que j no de nenhum de ns e de
todos.
(...) Um patriota de sua estirpe liberal nada mais ter desejado que ver a Ptria
liberta do absolutismo estrangeiro, da mais humilhante forma de conquista, pior que
o julgo da ocupao, que a do esprito do conquistador, vigente em regimes
importados. (OLIVEIRA, 1971, p 181)
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ambivalncias, como por exemplo sua posio favorvel visita de Jnio Quadros a Cuba.
(OLIVEIRA, 1971, p 273) Ao mesmo tempo, os ltimos anos de sua vida, marcam um tipo de
absentesmo de sua figura entre os autonomistas, que continuavam a ser importantes
partcipes do processo poltico na UDN. Em Otvio Mangabeira e sua circunstncia, Wilson
Lins publicou inmeros textos que tem ligao com Mangabeira. No primeiro deles, que data
de 1952:
Desterrado em sua prpria terra, o velho Papa do autonomismo baiano tem a sua
Avinho Avenida Princesa Leopoldina. No seu silncio, vai saboreando o calmo
ostracismo a que, voluntariamente, se submeteu, a deixar que o tempo corra, que os
homens passem, sorrindo, malicioso, dos que passam ao largo de sua porta. (LINS,
s/d, p 21)
Num outro texto diz, de agosto de 1956, com uma dose de tragdia e drama, a respeito das
comemoraes de aniversrio de 70 anos: Pobre e no ostracismo, vale pelo que , e s pelo
que e vale mereceu da Bahia as homenagens espontneas de que foi alvo. Tais homenagens
no poderiam ter sido mais importantes e delas os Poderes Pblicos deviam ter participado.
(LINS, p21)
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Captulo II
A tradio liberal na Bahia: classes dirigentes e disputas intestinas
no tempo da assim chamada Era Vargas
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liberalismo nesse consenso forjado entre Mangabeira e Magalhes e, como j foi dito, o
significado dessa resoluo para as lutas sociais na Bahia. Cabe salientar que no se pretende
defender a tese de que se tratou de uma empreitada pioneira. No h informaes, nos limites
desse trabalho, de qualquer pesquisa a esse respeito.
A estruturao do presente captulo obedecer seguinte ordem. Num primeiro
instante ser oferecida ao leitor uma brevssima apreciao do debate sobre as razes do
liberalismo no Brasil, tendo como fonte pensadores tidos como intrpretes do Brasil, como
Raymundo Faoro e Srgio Buarque de Hollanda. Pretende-se extrair alguns elementos para
dilogo com o argumento aqui formulado e no necessariamente realizar uma sntese do
pensamento brasileiro acerca do liberalismo e, muito menos, pautar a discusso em torno do
esgotamento de um autor. Num segundo instante ser realizada uma imerso nas expresses
do liberalismo na Bahia durante as dcadas de 30 e 40 do sculo XX, levando em
considerao os legados da Repblica Velha. Pretende-se enfatizar as idias de federao e
regio subjacente nos primeiros 40 anos da Repblica. Numa terceira seo a relao entre
liberalismo e democracia ser retomada, no mais como exerccio de discusso terica na
tradio liberal brasileira e sim como exerccio poltico dos agentes em estudo Mangabeira e
Magalhes de modo a expor a maneira pela qual a sociedade poltica baiana funcionava no
perodo. O penltimo momento aquele onde a fundao da UDN ser tratada em seu carter
mais factual bem como seu significado, tanto para os contemporneos como para os anos
seguintes no cenrio poltico baiano. O ltimo item constitui-se numa tentativa de sntese do
argumento do captulo a partir do cotejo das prticas autonomistas e juracisistas que se
mesclaram nas hostes udenistas constituindo um partido com inmeras caractersticas. A mais
marcante delas: o antipopulismo.
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autoritrio ainda vigente nas formaes estatais contemporneas. (FAORO, 2007, p 114)
Nesse sentido, tanto Faoro quanto Srgio Buarque de Holanda chegaram, por vias diversas, ao
seguinte denominador comum:
De todas as formas de evaso da realidade, a crena mgica no poder das idias
pareceu-nos a mais dignificante em nossa difcil adolescncia poltica e social.
Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem
saber at ponto se ajustam s condies de vida brasileira e sem cogitar das
mudanas que tais condies lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do
liberalismo democrtico jamais se naturalizou entre ns. S assimilamos
efetivamente esses princpios at onde coincidiram com a negao pura e simples de
uma autoridade incmoda, confirmando nosso instintivo horror s hierarquias e
permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi
sempre um lamentvel mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal
importou-a e tratou de acomod-la, onde fosse possvel, aos seus direitos ou
privilgios, ou mesmos privilgios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta
da burguesia contra aristocratas. E assim puderam incorporar situao tradicional,
ao menos como fachada ou decorao externa, alguns lemas que pareciam os mais
acertados para a poca e eram exaltados nos livros e discursos. (HOLANDA, 1989,
p 119)
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Em Schwarz a idia aparece com mais fora que em Holanda. explicitada por aquele
a noo de praticamente se assemelha a certa incompatibilidade entre teoria e prtica, como se
isso existisse na Europa liberal. A crtica de Schwarz reproduo social brasileira passa pela
aceitao de que havia modelos a serem seguidos; o liberalismo se constitura quase como um
receiturio a ser seguido. Esqueceu o crtico brasileiro que a histria do liberalismo, na
Europa, tambm tortuosa e repleta de ambivalncias. Assim, mais ou menos como um
pressuposto do qual parte Schwarz, possvel afirmar que, de acordo com ele, ao longo de
sua reproduo social, incansavelmente o Brasil pe e repe idias europias, sempre em
sentido imprprio. (SCHWARZ, 2000, p 29) Imprprio de acordo com o modelo europeu,
diga-se.
em meio ao escravismo, a uma Repblica imposta por militares positivistas e a uma
classe dirigente acovardada em relao ao avano do capitalismo que o liberalismo brasileiro
constri-se. Mesmo na efmera Repblica das Espadas possvel detectar vestgios de um
certo liberalismo. Embora variados elementos apontem para uma formao sui generis no
Brasil, talvez seja possvel detectar vestgios recorrentes de outros liberalismos. Holanda
detecta no personalismo uma barreira para a consolidao do liberalismo no Brasil haja vista
uma intrnseca impessoalidade deste ltimo. Observando-se as pedras angulares das estruturas
liberais, a saber, igualdade e liberdade, do Estado se espera um tratamento isonmico para
com seus sditos e, para isso, faz-se necessrio tornar a todos os cidados, subtraindo
qualquer relativizao. Faoro, por seu turno sugere a presena predominante no Brasil do
liberalismo ingls em oposio ao seu congnere francs, ainda que o jurista no defenda
recepo sem incorporaes brasileiras. Seu principal argumento que o liberalismo francs
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possui apelo maior participao das camadas populares enquanto que em John Locke h
apenas a necessidade de pacto e trust, no de participao. Ora, a formao dessa tradio
liberal tem como interpretao clssica a obra de C. B. MacPherson que detecta como fio
condutor de toda a tradio liberal um individualismo possessivo.
O indivduo [do sculo XVII] no era visto como um todo moral, nem como parte de
um todo social mais amplo, mas como proprietrio de si mesmo. A relao de
propriedade, havendo-se tornado para um nmero cada vez maior de pessoas a
relao fundamentalmente importante, que lhes determinava a liberdade real e a
perspectiva real de realizarem suas plenas potencialidades, era vista na natureza do
indivduo. Achava-se que o indivduo livre na medida em que proprietrio de sua
pessoa e suas capacidades. A essncia humana ser livre da dependncia das
vontades alheias, e a liberdade existe como exerccio da posse. A sociedade torna-se
uma poro de indivduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietrios de
suas prprias capacidades e do que adquiriram mediante a prtica dessas
capacidades. A sociedade consiste de relaes de troca entre proprietrios. A
sociedade poltica torna-se um artifcio calculado para a proteo dessa propriedade
e para a manuteno de um ordeiro relacionamento de trocas.
[...] Essas suposies [possessivas] que, de fato, correspondem substancialmente s
relaes reais de uma sociedade de mercado, foram o que deu a origem de sua [do
liberalismo] fraqueza no sculo XIX, quando a evoluo da sociedade de mercado
destruiu certos pr-requisitos para se extrair uma teoria liberal de suposies
possessivas, ao passo que a sociedade se lhes amoldou to intimamente que elas no
puderam ser abandonadas. (MACPHERSON, 1979, p 15)
Mayer sugere que embora o feudalismo tenha sido dado como extinto na Frana a partir da Revoluo de 1789,
a Europa inteira ainda conviveu como aquele sistema por mais de um sculo. Mesmo o crescimento da burguesia
e do empreendedorismo capitalista no foram capazes de constituir uma burguesia suficientemente coesa poltica
e socialmente. Assim, at 1914, esses magnatas da indstria e seus associados de bancos corporativos e os
profissionais liberais estavam mais dispostos a colaborar com os agrrios e com as classes estabilizadas no
governo que com a velha burguesia de manufatureiros, mercadores e banqueiros. MAYER, Arno. The
persistence of the old regime: Europe to the Great War. Pantheon Books: Nova Iorque, 1981, p 10. Eric
Hobsbawm, por outras vias, afirma que ou bem a resistncia poltica dos anciens regimes, contra os quais fora
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Nos Estados Unidos, no havia aristocracia e sim uma disputa fratricida entre o mundo
escravista e a burguesia industrial com nuances regionais (MOORE, 1983, pp 135-144).
Resolvida a disputa, o liberalismo americano tambm seguiu a trilha da conciliao, no que
diz respeito s questes scio-raciais, sobretudo4. Se observado este liberalismo de elite no
Brasil enquanto formulao das classes dirigentes, o desfecho histrico a conciliao com
setores no necessariamente liberais porque h elementos subversivos no liberalismo do
sculo XIX, porque tensionados por grupos radicais, que tenderam a deslocar a disputa para
caminhos imprevisveis s classes dirigentes. A subverso, mesmo que provinda de uma
tradio que tendeu a conciliao, era clara e facilmente detectvel numa sociedade
profundamente desigual e cuja represso tinha capilaridade maior que o prprio Estado.
Alguns exemplos de Faoro se seguiro dos modos como os liberais radicais cederam s
tentaes conciliadoras ou daquele liberalismo suave com as foras absolutistas por
receio de permitir qualquer subverso da ordem.
O primeiro exemplo a opinio do Conde de Palmela, absolutista vestido de liberal,
em 1821, no melhor estilo liberal como ttica absolutista, ao fazer a seguinte sugesto a D.
Joo VI sobre o problema da Constituio:
E, para me explicar melhor, direi que no meu conceito Vossa Majestade tem duas
coisas a fazer: a primeira conceder o que j agora no pode negar; a segunda
impedir que essas concesses passem de certos limites, o que sem dvida
aconteceria se se deixassem em Portugal os revolucionrios legislar sem freio e sem
receio. O primeiro objeto conseguiria Vossa Majestade por meio de uma carta
constitucional que promulgasse; o segundo s poderia obter-se indo Vossa
Majestade em pessoa, ou mandando o seu filho primognito, para inspirar respeito e
servir de centro aos bons portugueses. (DARRIAGA, 1886, vol. 2, pp.313-314
apud FAORO, 2007, p 108)
feita a Revoluo Francesa, havia sido superada, ou esses mesmos regimes pareciam aceitar a hegemonia
econmica, institucional e cultural de um progresso burgus triunfante. HOBSBAWM, Eric. A Era dos
Imprios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 5 Ed., 2005, pp 23-4.
4
Aproximadamente 10 anos depois da Guerra Civil, em 1876, instalou-se um conjunto de leis chamado Jim
Crow quando se legalizou a segregao racial, retirou-se o sufrgio da populao negra, impuseram-se
subjugao econmica e a violncia racial. HAWS, Robert (org.) The Age of Segregation: Race Relations in
the South, 1890 1945. Mississipi: University Press of Mississippi, 1978.
48
49
travava a luta por direitos individuais em favor de uma crescente tutela do Estado em relao
aos escravos, estabelecendo uma contradio com o liberalismo de at ento j que
preponderava, por vias tortas j que pela ao do Estado o princpio de liberdade ao de
propriedade. Melhor dizendo, as aes regulatrias do mercado de trabalho no eram regidas
pelo prprio mercado; o Estado intervinha nas relaes de propriedade (senhor-escravo),
destituindo do senhor, em muitos casos, a autonomia absoluta sobre a propriedade. Acabava,
desse modo, por utilizar-se de uma ttica tida como absolutista para colocar-se ao lado da
liberdade dos escravos. Postos em liberdade, trabalhadores, antes escravizados e agora livres,
tinham a seguinte regulamentao do Governo Provisrio, de acordo com Luiz Werneck
Vianna:
a ordem liberal de 91 no criar, no plano federal, nenhum dispositivo regulador do
mercado de trabalho. A promulgao do Cdigo Civil Brasileiro, em preparo de
1892, pela Lei n 3.071, de 1 de janeiro de 1916, confirmar a filosofia da
Constituio, subordinando os contratos de trabalho seco pertinente locao de
servios, vale dizer, compreendendo-os sob a concepo do contratualismo
individualista. (VIANNA, 1999, p 79)
50
51
Tampouco estranho que a UDN fundada por Mangabeira, trs anos aps sua morte,
tenha apoiado um golpe civil-militar que redundaria numa ditadura militar de 24 anos.
52
sociedade poltica num esforo louvvel. O primeiro trabalho de Sampaio relativo ao tema,
intitulado Os Partidos Polticos da Bahia na Primeira Repblica (1889 1930) original no
exatamente pelo mtodo, mas pelo tema. Trabalhos de cunho historiogrfico anteriores, se
existem, carecem de relevncia e notoriedade na produo historiogrfica baiana. H, neste
estudo, referncias acerca da composio dos partidos polticos em termos de origem e
posio social dos membros.
Um segundo texto fundamental e que lida diretamente com o presente estudo Poder e
Representao: o Legislativo da Bahia na Segunda Repblica (1930 1937) que tem como
foco os partidos de elite e o funcionamento do Poder Legislativo no momento de maior
evidncia de absolutismo do Poder Executivo. Para tanto, a autora esforou-se por
reconstruir aspectos das lutas sociais de finais dos anos 20 e 30 de modo a sustentar a tese de
que uma anlise do legislativo uma anlise da sociedade. Para alm disso, na viso de
Consuelo Novais Sampaio, as elites dominantes [se mostraram] despreparadas para
adaptarem-se s mudanas impostas pela vitria da revoluo [de 1930] (SAMPAIO, 1992, p
262). Para a autora, entre o Partido Social Democrtico (PSD) e a Liga de Ao Social e
Poltica (LASP), governistas e oposicionistas, respectivamente, pouca diferena havia.
Diferenciava-os mais a distncia de geraes. A LASP tinha em sua composio
homens mais jovens, na idade e na prtica poltica, enquanto o PSD era, em grande
parte, formado de homens maduros e experientes. Mas os membros de ambos os
partidos, de modo geral, recrutados de setores da classe alta e da classe mdia,
pareciam mais interessados no desempenho do poder do que na soluo dos urgentes
problemas que afligiam a sociedade. (SAMPAIO, 1992, p 262-3)
53
54
Trata-se do Projeto de Lei 71 que visava impedir a concesso de terra caso a propriedade excedesse 500
hectares de rea devoluta a qualquer pessoa. No caso da pessoa fsica, a limitao chegava a parentes
consanguneos e 2 grau. Essas discusses foram travadas em outubro de 1936 no Dirio da Assemblia
Legislativa da Bahia, anexo do Dirio Oficial do Estado.
6
Passadas, portanto, a crise econmica, a guerra e a ditadura, a burguesia mercantil e financeira baiana
descobre-se, de novo, a principal classe burguesa de uma economia exportadora que passa a ser gravada pela
formao do parque industrial brasileiro. Para inserir-se no processo de desenvolvimento nacional, resguardando,
ao mesmo tempo, seus interesses especficos, era preciso forjar um sistema de idias onde aquele processo,
principalmente a industrializao, convergisse com os seus interesses no comrcio exportador, de tal modo que
essa ideologia, orientando sua prpria poltica, levasse-a de novo a incrustar-se no bloco de poder nacional.
Naquelas ciscunstncias (sic), para satisfazer essas condies, o discurso teria que adquirir necessariamente um
tom regionalista. (GUIMARES, 2003, p 40)
55
caso de Otvio Mangabeira necessita uma breve digresso. Ele galgou proeminncia poltica
durante a vigncia da Repblica Velha enquanto elemento dos setores mdios da sociedade
soteropolitana, embora seja possvel que tenha mantido vnculos polticos com proprietrios
de terra. Conquanto ainda haja uma lacuna historiogrfica considervel sobre sua ascenso, h
indcios escorregadios que sugerem sua participao numa tentativa frustrada de repactuao
de foras polticas na Bahia envolvendo os grupos de Jos Joaquim Seabra, a famlia Calmon
e Ruy Barbosa entre os anos de 1910 e 19207. Setores intelectualizados das camadas mdias,
empreenderam nas primeiras dcadas da Repblica um processo de reformulao de sua autoimagem. Uma que se supusesse liberal, democrtica, embora devidamente protegida, e
como ponto de consenso com as classes dirigentes regional, avessa a certo cosmopolitismo.
Um exemplo consta em Silva que discorre sobre a formao de um grupo chamado Nova
Cruzada cuja composio era de trs hordas com os sugestivos nomes Neocruzados,
Cavaleiros da Honra e Cavaleiros Benemritos. O nome foi inspirado por uma Revista
fundada em 1901. Prossegue Silva, Dos que compunham a ala dos Cavaleiros da Honra
alguns nomes de peso da vida intelectual baiana chegaram at os anos 1930: Xavier Marques,
Alosio de Carvalho, Braz do Amaral, Carlos Chiacchio e Otvio Mangabeira. (SILVA,
2000, p 91) Aps desfeito esse grupo, dois deles, Xavier Marques e Carlos Chiacchio,
fundam, em 1928, a Arco & Flexa: mensrio de cultura moderna. Sugere Silva:
A revista no pretendia ser regionalista. Propunha-se a ir mais longe, porm
terminava dando a volta sobre si mesma. Partia e retornava Bahia procura do
substrato bsico da cultura nacional. O microcosmo baiano, tido como propagador e
difusor da cultura inicial, aparecia como referencial exclusivo do carter nacional.
Esta concepo resultou em negar a diversidade regional com a qual os modernistas
do sul pretendiam ver a brasilidade. O mensrio baiano parecia querer engolir e
diluir o Brasil a partir do pressuposto de que a Bahia decantava o que havia de
essencial na cultura brasileira. Era antropofgica sua maneira. (SILVA, 2000, p
93)
Aqui aplicvel a idia de dinmica social que faz convergir interesses entre classes
emergentes e mantenedoras do status quo para uma idia de consenso; no caso, a luta por uma
Bahia livre do jugo sulista, autnoma, ainda que a noo de pertencimento seja parte
Rinaldo Leite, em tese de doutorado sobre os discursos baianos acerca de sua prpria decadncia afirma, sobre
a tentativa de unir os dois grandes lderes baianos Seabra e Barbosa que: Muitas vozes se levantaram para
defender a necessidade de superao das diferenas partidrias que opunham os principais nomes da vida
poltica. No ponto de vista dos indivduos que partilhavam deste pensamento, equacionar as tenses existentes
nos planos regional e nacional se constitua uma premncia. A Bahia Ilustrada, em diversas ocasies, esteve
engajada nessa campanha, e sentia-se, com isso, no direito de cobrar dos deputados baianos uma cooperao
til, harmonisando orientaes pessoaes, abafando, muitas vezes, pequenas e grandes queixas, apagando
fundados e infundados ressentimentos, tudo no objectivo de um esforo efficiente na soluo de varios
problemas estades dentro da vida na federao. (LEITE, 2005, p 289) Mangabeira fazia parte da organizao
de Bahia Ilustrada o que, se no garante sua participao nessa iniciativa, sugere que h espao para a suspeita.
56
57
Tiradentes para sugerir um passado libertador do povo mineiro. Em Minas Gerais, uma
grande intensidade dessas referncias pode ser creditada importncia que o tema assumiu na
construo e na manuteno de uma identidade regional, apropriada com bastante
regularidade na prtica poltica, desde as primeiras dcadas do sculo XX. (FONSECA,
2002)
Do ponto de vista prtico, havia grande densidade poltica as sugestes que indicavam
autonomia para as localidades at a Revoluo de 1930. A tentativa de fortalecer os
tentculos estatais nos quatro cantos da Bahia foi feita por inmeros governadores e, no por
acaso, todos eles fracassaram at meados do sculo XX. O ltimo a tentar, antes de 1930,
Ges Calmon, fracassou de maneira to grosseira que se viu obrigado a formar acordos com
os Coronis do Serto, Horcio de Matos e Franklin de Albuquerque. A predominncia de
uma sociedade de mercado9, no sentido hobbesiano, no esquisita e ela prpria pode ter sido
fundadora da tradio liberal clssica, como j foi dito. A preponderncia do arqutipo
personalista e patrimonialista na gesto do Estado ajuda a compreender o posicionamento dos
setores mdios urbanos face s classes dirigentes. Considerando as parcas possibilidades de
mobilidade social e uma viso de mundo relativamente diluda no mundo urbano acerca dos
sertes que se equilibrava entre o estranhamento e a repulsa, a composio de uma aliana
entre setores mdios e dirigentes faz-se compreensvel. Especialmente porque at 1930, o
embate entre litoral e sertes, ainda que evidente, tinha encontrado efmera soluo na
concesso forada por parte do estado de espao para os setores que detinham de fato grandes
propriedades e grande poder de jugo. Desse modo, as classes subalternas nas figuras dos
trabalhadores urbanos e rurais foram postos numa posio de irascvel defensiva tambm em
funo de um pacto de reestruturao da Bahia de modo a reergu-la ao papel de protagonista
s custas tambm e, talvez, primordialmente, da explorao do trabalho.
Mangabeira significava um pouco de tudo isso: classes mdias urbanas que buscavam
poder de deciso no interior do aparato do Estado, um mundo urbano cambaleante avanando
desordenadamente sobre o rural e a personificao do embate contemporneo entre o
cosmopolitismo vazio porque seu contedo o avano das relaes de explorao e
regionalismo da Herona Herclea de Seios Titnicos.10
Para Hobbes O valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, seu preo; isto , tanto quanto
seria dado pelo uso de seu poder. Portanto no absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento de
outrem. (HOBBES, 1979, p 54) Superficialmente, pode-se entender a sociedade hobbesiana como lugar onde a
mediao das relaes sociais feita pela valorao de um por quem tem o poder de compra.
10
Exemplo das formulaes retricas que autonomistas usaram para resistir Revoluo de 1930
(MAGALHES, 1982, p 73).
58
esse o cenrio que parece coerente com o transcorrer da dcada de 20, para alm da
j conhecida histria poltica da Bahia. 13 Pode-se concluir, portanto, que o aspecto central do
liberalismo tal qual concebido pelas classes dirigentes na Bahia durante a dcada de 20 o
apreo pelo progresso, individualismo possessivo com relao aos ruralistas e, antes de tudo,
pela manuteno da ordem com respeito propriedade individual, por isso, liberdade de
quem tem posses.
11
59
60
16
61
ainda era o modelo. Na verdade, em meados da dcada de 1930, no se saberia dizer quem
detinha o monoplio da bandeira do liberalismo.
possvel detectar um liberalismo que se faz presente na afirmao contnua de uma
tradio circunscrita geograficamente cujo espao claramente definido pelas relaes sociais
de poder: a Bahia, ou seja, Savaldor. Os sujeitos polticos que partilhavam do idioma
simblico a partir do qual se operava a sociedade poltica na Repblica Velha fazem parte da
histria do liberalismo na Bahia. Portanto, J. J. Seabra, Ges Calmon, Otvio Mangabeira e
tantos outros, de fato, lutaram politicamente como liberais. Por outro lado, paradoxalmente, a
defeco social, ou melhor, a Revoluo de 1930, mesmo tendo causado um abalo nessa
estrutura surgiu tambm com aspectos liberais. Sobretudo, sua histria posterior desnuda a
existncia de grupos que se j no eram liberais na dcada de 1920 aprenderam a s-lo no ps
Revoluo de 1930.
Um dos exemplos mais claros dessa imbricao do liberalismo em pliades das mais
diversas no campo poltico baiano o planejamento feito pela Aliana Liberal para
reestruturao da Bahia. Um aspecto diz respeito burocracia estatal que um complemento
inevitvel ao desenvolvimento econmico moderno (SCHUMPETER, 1984, p 262). Assim,
no estranho que a poltica da Aliana Liberal tenha conduzido o estado da Bahia de modo a
fazer seus operadores a repensarem polticas fiscais. 17 Tambm dentre as realizaes da
Revoluo de 1930 incluem-se a criao de diversos institutos de fomento agricultura. O
Instituto do Cacau, mais famoso dentre todos, foi um entre os Institutos do Fumo, da Laranja
que congregavam foras de modo a aumentar o poder de barganha de setores agrcolas menos
pujantes que o caf, representado na Unio pelo Departamento do Caf. Embora criados pelo
Estado, a idia inicial era que, tal qual os outros, o da Laranja ter[tivesse] o carter de S.A.
sem interferncia do Estado.18 H tambm algumas correspondncias entre Juracy
Magalhes e Clemente Mariani sobre a questo industrial tendo no s como foco um
Programa de Industrializao de matrias-primas como de incentivo a indstrias qumicas.19
A questo dos transportes tambm posta em pauta nas discusses via telegrama entre
Mariani e Juracy Magalhes. 20 Supe-se, portanto, um esforo para inserir, por meio da
direo um novo Estado com agendas industrializantes e modernizantes. Esse processo se
fazia a partir da discriminao de rendas j que de todos os projetos [do governo] o que
17
CMcp 1934.00.25. Fundao Getlio Vargas. Nesse documento o Deputado Federal pela Bahia incentiva
taxaes especficas para o ento interventor Juracy Magalhes de modo a otimizar o nascedouro de uma poltica
industrial ao mesmo tempo em que otimiza o ritmo das exportaes reduzindo as taxas sobre estas.
18
CMcp 1935.03.14. FGV-CPDOC.
19
CMcp 1935.10.15. e CMcp 29.07.1935. FGV-CPDOC.
20
CMcp 1935.08.13. FGV-CPDOC
62
mais concilia interesses [no] Estado entretanto ainda provocar diminuio [na] renda.21
Buscava o governo manter a ordem poltica de modo a preparar o estado para a obra maior da
Revoluo que era tornar o Brasil um pas forte aos custos da racionalizao da explorao
do trabalho pelo capital mediada pela interveno do Estado na organizao produtiva e
sindical dos trabalhadores, de um fortalecimento induzido da burguesia industrial e,
principalmente, no caso baiano, da manuteno das oligarquias do fumo e do cacau. Mais uma
vez, apesar dos embates armados, buscava-se algum nvel de conciliao que acabou por no
ocorrer. Ao menos no neste momento. Como se sabe, a UDN seria fundada mais tarde como
opositora a Vargas e reuniria, nos anos 40, esses grupos antagnicos da dcada de 1930.
Aqui, ao invs de propostas substancialmente diferentes entre projetos de pas e de
expanso dos domnios do Estado, h um evidente aprofundamento das relaes capitalistas
na Bahia e, por isso, no h diferena estrutural entre o mangabeirismo e o juracisismo, por
exemplo. O leitor pode se surpreender j que Consuelo Novais Sampaio j chegara a essa
concluso com sua obra pioneira j citada. A nuance, entretanto, se situa no fato de que
Magalhes possuiu o apoio dos mais variados setores da sociedade baiana, forjou em torno da
sua proposta revolucionria, com concesses palpveis, um consenso sobre a necessidade
de fazer da Bahia um estado novamente glorioso, aos olhos de seus contemporneos, ao
mesmo tempo em que a inseria no contexto global de centralizao estatal em relao
Unio. O caso de Mangabeira sensivelmente diverso. Embora o exame documental no
tenha sido realizado a contento, o Mangabeira que combate a Revoluo aps a volta do
primeiro exlio no o mesmo poltico da Repblica Velha. Com isso no se pretende
recorrer a tese de que o ex-Ministro das Relaes Exteriores teria respirado ares europeus e se
modernizado, democratizado e ampliado sua tolerncia s demandas subalternas. Pretende-se,
no entanto, chamar a ateno para o fato de que face a um regime de fora e de massas, como
o que se havia consolidado na Itlia de Mussolini e engatinhava na Alemanha de Hitler, o
envolvimento de Mangabeira passava a ser aquele de um operador de decises diferente do de
Magalhes. Enquanto o intelectual Mangabeira parecia j antenado s implicaes globais do
triplo embate ideolgico, Magalhes parecia uma pea no jogo da grande poltica
revolucionria. Encontram-se, programaticamente, a partir de 1935, portanto, como fruto da
racionalidade prpria do processo de posicionamento face ao mundo polarizado por parte de
Oswaldo Aranha, Juarez Tvora, os irmos Mangabeira, Armando Sales e tantos outros,
21
CMcp 1934.00.25. FGV-CPDOC. Tratava-se de um pacote fiscal novo pensado por membros do governo
como Clemente Mariani e Medeiros Neto de modo a manter a importncia da produo do cacau por meio de
uma reviso para baixo nos impostos sobre exportao e nas taxas sobre as indstrias de modo a incentivlas.
63
Nesse excerto possvel notar uma tentativa de impor resistncia quele processo
identificado por Durval Albuquerque, citado anteriormente, mas revela, ao mesmo tempo,
uma atitude nova face regio que a incluso da Bahia no pacto. A efetivao de uma
poltica subordinada s diretrizes do Delegado do Norte, Juarez Tvora, fez dele uma figura
de muita importncia nas articulaes polticas da dcada de 1930. A indicao de Juracy
Magalhes foi e com alguma razo perceberam os autonomistas uma tentativa de minar
a decadente oligarquia baiana mas, muito mais efetiva do ponto de vista regional ao tentar
submeter a poltica do estado a uma unio norte-nordestina com sede em Recife que
22
JMcp 1931.12.07.
64
qualquer outra coisa. O pacto federativo, portanto, requereu novas conformaes que de fato
centralizassem o pas, afinal, era esse o ponto de honra do movimento de 1930: extirpar os
regionalismos do poder de deciso sobre suas prprias formulaes polticas. Os governos
estaduais deveriam, por conseguinte, implantar polticas previamente elaboradas pelo governo
central. Aqui se sugere que os assinantes do trecho citado acima explicitavam uma posio
suspeita em relao aos planos formulados pelos sulistas em relao ao Norte e, contra
ela, propunham a adeso, dentre outros, da Bahia.
Antes disso, porm, a indicao do interventor Arthur Neiva para a Bahia j havia sido
motivo de matria na Gazeta de Piracicaba que esboa de modo reluzente o pensamento
sobre a funo da Bahia na federao:
Felizmente o nosso illustre Presidente da Republica resolveu sabiamente o mais
perigoso incidente no governo revolucionrio escolhendo, para governar a Bahia um
dos seus mais illustres filhos, o scientista dr. Arthur Neiva, filho do grande tribuno e
velho deputado federal Comendador Neiva, o celebre representante da classe
operaria. [...] Todavia os bahianos no so bairristas; orgulhosos do nome de
brasileiros, de sua hospitalidade, no h um s filho de outro estado que a visite, que
no seja recebido como filho da terra da amorosa Paraguass, o que talvez no o
faa aquelle que nos chama bairristas.23
AN 1931.02.10-A.
Ainda no existem pesquisas que tratam especificamente da recepo desse discurso baiano em mbito
nacional de exaustivo e sistemtico como ocorre com as pesquisas acerca do prprio discurso em si.
25
Mesmo 20 anos depois de assumir a interventoria baiana, Juracy Magalhes ainda era chamado por nomes que
marcam seu distanciamento, em funo de sua naturalidade, da Bahia. (DANTAS, 2006, pp 484-5)
24
65
ser recusada. De todo modo, o governo central no podia atentar contra a Bahia, por suas
peculiaridades, e por isso, houve, sempre que possvel, alinhamento entre governos estaduais
e federais durante a Repblica Velha. A Revoluo de 1930 era um momento peculiar
porque significou um novo grupo regional lidando com um novo governo federal e por isso
um misto de uma poltica de acomodao com um conflito aberto.
A Unio Cvica criada para aglutinar os diversos setores revolucionrios, em sua
maioria aqueles do Norte, antes da Constituinte Nacional de 1933 fracassou em seu objetivo
central. A 28 de junho de 1933, Arthur Neiva enviou, em tom de preocupao,
correspondncia a Juracy Magalhes: Nunca mais se reuniu a Unio Cvica, e tenho a
impresso de que se os nortistas no organisarem (sic) um programa de realisaes (sic), essa
parte do pas continuar caudatria do sul.26 Aplaudiu, na mesma correspondncia a criao
de um Instituto do lcool e Acar em Pernambuco que, tal qual a Bahia, passava por
problemas econmicos. O primeiro processo que distanciara, de algum modo, o governo
Vargas dos revolucionrios do Norte, conseqentemente, era a questo regional; afinal
no s eram gritantes as desigualdades regionais no pas como os pleitos oligrquicos no
permitiam um tratamento isonmico por parte do governo federal, era necessria uma
predileo ou, no mnimo, uma ateno diferenciada para com os estados do Norte.
At aqui tentou-se proceder a uma exposio de vrios processos simultneos que
compuseram o paradigma contraditrio envolto na trajetria histrica do liberalismo na Bahia
e, em menor escala, no Brasil. Foram citados tambm exemplos das ambivalncias liberais em
termos da racionalizao econmica a partir da criao dos institutos e das dificuldades
em ajustar uma liberalizao combinada regionalmente. A partir de agora a exposio ser
dedicada a como a questo da democracia foi tratada pelas correntes liberais aqui detectadas
em termos de alargamento de direitos polticos.
A democracia como aspecto integrante da poltica baiana aparece ocasionalmente e,
principalmente, a partir da dicotomia entre ditador e democrata. J. J. Seabra e Ruy
Barbosa protagonizaram a verso mais conhecida desse antagonismo. No entanto, Juracy
Magalhes e Otvio Mangabeira refizeram a contenda. Em 1932, Magalhes ordenou uma
represso a manifestaes pr-Revolta Constitucionalista em So Paulo que advogava pela
constituinte mas tambm guardava em suas entranhas demandas regionalistas que muito se
coadunavam com a agenda do autonomismo em formao. Com uma ao violenta da polcia
que culminou em ferimentos de vrios e um morto (TAVARES, 2001, p 391) paralela
26
AN 1931.06.03. FGV-CPDOC
66
campanha persistente de Otvio Mangabeira contra a ditadura e leis de exceo, fez-se uma
imagem de Magalhes como truculento que o perseguiria por toda sua trajetria poltica.
Mangabeira, por sua vez, redesenhou sua trajetria aps a dcada de 1930 e, de fato, fez-se tal
qual um paladino da democracia-liberal no pas e, ainda que tenha permitido relativo espao
para militncia de adversrios, no fez muito para proteger a democracia dos assaltos de seus
correligionrios udenistas. De qualquer forma, Mangabeira no possua uma formao militar
e, talvez, isso explique em parte sua viso de democracia necessariamente vigiada embora no
ostensivamente repressora.
O empastelamento de jornais, na Bahia, tinha sido relativamente rotineiro durante a
Repblica Velha e tal atividade tinha como alvo preferencial jornais operrios. A censura era
feita tanto por meio violento como da intimidao. No caso da Revoluo de 1930,
inmeras diretrizes foram baixadas pela direo da Revoluo no Rio de Janeiro destinadas
ao restante do pas. Desse modo, ainda em 1931, Heitor Modesto, Secretrio do Chefe de
Polcia da capital federal listou instrues dirigidas aos diretores de jornais e agncias de
informao. Vrias foram as proibies. Foram vedados espaos em branco e notcias sobre
tendncias separatistas. No fim da circular, a curiosa observao: vedada qualquer noticia
ou alluso s medidas de Censura Policial, excepo feita da nota circular. 27 Por volta do
mesmo perodo, o ento interventor da Bahia, Arthur Neiva, recebe a comunicao de alto
comissrio da Revoluo, Oswaldo Aranha: Ficaes autorizado [a] estabelecer censura [de]
imprensa no permitindo publicaes que contrariem interesses pblico da ordem ou da
administrao. Saudaes cordiais, Oswaldo Aranha. 28 Em data incerta mas provavelmente
muito prxima, Aranha persiste no tom mas especifica o que deve ser censurado:
Governo provisrio faz sciente [que] s permittir publicao [de] jornaes dentro
[dos] limites [da] colaborao, ficando expressamente prohibidos quaesquer
informes capitulados [entre os] seguintes: 1) publicaes sobre a situao financeira
com o fim de desprestigiar a aco do governo, justamente quando necessria a
cooperao de todos [...] 2) communismo, greves, pertubaes da ordem, etc; 3)
notcias de qualquer natureza com o fim de perturbar a vida do Exrcito [,] Marinha
e Polcia; 4) noticias sobre questes de nacionalismo e poltica exterior; 5) notcias
tendenciosas sobre a aco do governo nos Estados; 6) emfim qualquer campanha
com o fim de desprestigiar a obra da Revoluo atravez de seus rgos. Todos
jornaes devem ser notificados [d]essas medidas afim [de] prevenir. Qualquer
transgresso inclusive [a] publicao presente, [uma] notificao acarretar [no]
fechamento do Jornal que ser summariamente ordenado [pelo] interventor, sem
recurso. Cordeaes saudaes, Oswaldo Aranha.29
27
AN 1931.02.10. FGV-CPDOC.
AN 1931.02.10. FGV-CPDOC.
29
AN 1931.02.10. FGV-CPDOC.
28
67
68
custo de tantas luctas tendes adquirido! Os dois mil demittidos continuam carpindo
misria, sem esperana! Em Alagoinhas, Aramary, Aracaj, Bonfim, Cachoeira,
Calada, nas officinas, nas estaes, escriptorios, no trafego e na locomoo, tudo
nas mesmas normas infames de perseguies a quem ousar reclamar, ou
supprimiram umas para, maliciosamente, substiturem por outras peiores, mas mais
complicadas, que no comprehendeis ainda! Cortam a efficincia de vossas
organizaes, feitas a custo de vosso[s] salrios, introduzindo-se nellas,
administrando-as arbitrariamente! Ferrovirios hericos da Bahia e Sergipe, basta de
tanta pacincia, de tanta misria e perseguio atroz!31
Por fim, o exemplo claro do recuo da Aliana Liberal em relao aos camponeses.
Companheiros!
preciso falar a verdade. Ns temos sido embrulhados pelos homens da poltica, e
isto no pode continuar assim.
Os senhores liberaes nos tapearam. Elles diziam que iam fazer uma revoluo para o
povo e chegaram a falar em dar as terras para ns. Mas ns estamos sentindo qual
foi o resultado.
A tal revoluo foi uma revoluo de mentira, e no a nossa. Ella foi feita pelos
estancieiros do Rio Grande, pelos fazenderios de Minas e pelos usineiros do Norte.
Tudo por causa do negcio do caf, que no ia bem. [...] Era um caso l entre elles.
Mas, para fazer a guerra, precisavam da gente. Ento, comearam a prometter um
mundo de coisas, dizendo que ia chegar o dia da liberdade e que a nossa vida ia
melhorar. [...] Mas fomos enganados. Os homens da poltica nos passaram um
conto do vigrio.
[...] Que adeantou mudar o presidente? Este governo de agora ainda mais safado
do que o outro. So todos uma cambada de assassinos e de ladres. Elles mesmos j
esto dizendo que agora uma dictadura e que a lei no est vigorando. Quem
reclamar vae preso ou fuzilado. E ns estamos vendo que antes era ruim, e agora
ficou peior. Para o pobre tanto faz que vigore a lei como que no vigore. D tudo no
mesmo, porque quem go-.
[...] Vamos lutar. Desde j no paguemos os impostos. Contra as leis e decretos com
que nos exploram! Abaixo os novos senhores, iguaes ou peiores que os outros!
Os trabalhadores de todas as nacionalidades precisam ficar unidos e lutar contra os
capitalistas de todas as nacionalidades!32
31
69
Aps exemplificar com nmeros, quantidade de filhos, gastos mensais com comida,
roupa e aluguel o remetente indaga:
Como poder o pobre viver com importncia to insignificante para tantas
obrigaes?
S sabem dize-lo os que experimentam essa situao.
Chamando, pois, a ateno de V. Excia. para esse caso, Sr. Interventor, permito-me
lembrar-lhe, respeitosamente, que na fase de governos discricionrios em que ainda
nos encontramos, V. Excia. poderia, discricionariamente, tomar uma providncia a
respeito. Muitos lhe apresentaro argumentos jurdicos contra a minha sugesto.
Como, porm, at hoje os argumentos jurdicos no melhoraram a misria do Povo,
V. Excia. ser bem inspirado si fizer ouvidos de mercador aos que tais argumentos
lhe apresentarem e melhor inspirado ser ainda si tomar uma providencia urgente
sobre o grave caso que ofereo a soluo do seu esprito enrgico e bom.
Lembro a V. Excia., porm, que as casas cujos alugueres precisam de ser baixados,
so as de 260$000 mensais para menos.
Pobre no mora em casa maior desse preo.
Considere V. Excia. que de cada 100 individuos, 80, pelo menos, por necessitarem
de habitar em casas alugadas, esto sujeitos s [sic] exigncias e exploraes dessa
minoria geralmente sem corao, que a classe dos proprietrios.
Lanelli Caldas
Empregado na Secretaria do Comit Mixto Bahiano de Seguros, Rua Portugal n.
5 1 and. Nesta.33
70
dirigentes estatais se forjavam. A longa citao acima necessita de uma explicao acerca do
significado do Comit Mixto Bahiano de Seguros e do prprio cargo do autor que no sero
encontradas nesse trabalho. No entanto, pode-se inferir, com indcios no prprio escrito, que o
trabalho corresponde a um setor subalternizado sim, mas que no vive em estado de misria.
Imaginemos um individuo tendo uma famlia de 8 pessas (mulher, filhos etc.). Para esse
cristo, uma casa de 2 quartos no basta, sendo-lhe precisa, portanto, uma de 3. Isso
implicar, segundo ele, o comprometimento de at 50% do salrio o que deixar apenas mais
50% para os gastos inevitveis e imperiosismos da alimentao, da roupa, dos bondes e
elevadores, do medico e farmcia e, afinal, da educao dos filhos. Como no se pretende
partir do pressuposto de que essas pautas so de uma pequena burguesia porque no h
evidncia, sugere-se que se trata de um trabalhador do ramo comercial-financeiro sem
significar que se deve situ-lo em determinada posio social de conforto ou de misria. Seu
pleito comprova o que j havia sido denotado no panfleto citado na nota 30: as leis do estado
eram inaptas. Por isso, se assim era a realidade de uma sociedade onde havia disputa
competitiva inclusive na construo de normas o que no momento em questo se d o nome
de governo discricionrio que se fizesse seu uso em defesa da maioria.
No dizer de MacPherson, tal fenmeno se insere na raiz mais profunda do liberalismo
que a constituio de uma sociedade de mercado possessivo que no requer nenhum tipo de
laissez-faire. Lanelli Caldas tentara utilizar em prprio benefcio a possibilidade de o Estado
utilizar-se discricionariamente de uma medida para regular o mercado possessivo em seu
proveito. Ao relativizar a idia de justia, Caldas demonstra que esta flexibilizao est
submetida a uma competio. A respeito dessas modificaes passveis de serem feitas pelo
Estado, MacPherson afirma: o que o estado faz com tudo isso alterar alguns dos termos das
equaes que cada indivduo arma quando est calculando seu curso de ao mais rentvel.
(MACPHERSON, 1979, p 69) A lgica de alterao desses termos significa a disputa em
torno da idia de justia dentro da lgica de mercado. (MACPHERSON, 1979, p 75) O
clculo do curso de ao referido por MacPherson submetido avaliao do Estado que
estabelece o que justo e parte integrante dessa sociedade de mercado possessivo e, por
isso, obedece, via de regra, a lgica de quem impe as regras, nesse caso os proprietrios de
imveis residenciais.
Acresa-se a esse cenrio a luta de classes que determina sobremaneira de que modo a
disputa mercadolgica se dar e, mais importante, em benefcio de quem o estado manejar as
alteraes. No exemplo supra-citado, as condies de carestia na Bahia no mudaram de
modo substantivo, embora o ento interventor Juracy Magalhes tenha iniciado uma relao
71
deveras profcua com a classe trabalhadora soteropolitana de modo a, com ela, estabelecer
pactos pela ordem.
Outro aspecto que chama ateno, conforme j foi dito anteriormente, a questo da
carestia. Cosme de Farias, importante representante das classes pobres diz, em telegrama ao
interventor:
Solicito, em nome das classes pobres desta cidade a atteno de vossa excellencia
para o augmento do preo do po o qual representa mais um vexame para o
proletariado, que est lutando com dificuldades muito serias para obter os meios de
subsistncia. voz geral, diante das declaraes do antigo proprietrio da Padaria
Minerva, que se trata de um caso de ganncia. Attenciosas saudaes. Cosme de
Farias.34
72
mesmo assim fazia referncia a duas coletividades evidenciam pautas sociais que
culminavam na disputa por espao no Estado impuseram-se ao Legislativo. As discusses
durante as sesses da Constituinte de 1934, embora marcantes pelo talento retrico dos
legisladores e por isso inspiradores para universitrios36 , suscitaram embates em torno de
questes sociais como imposto territorial e evidenciaram o mal-estar das elites face retrica
de esquerda que avanava sobre os variados setores sociais, inclusive sobre seus prprios
domnios. 37 Sampaio descreve o constrangimento geral causado pelo uso da palavra
latifndio. (SAMPAIO, 1992, pp 252-254) As pautas, ao invs de surgirem do prprio
legislativo, como sugere Sampaio, lhes foram impostas tanto pelo crescente receio perante
comunistas e integralistas que propunham resolues concretas de problemas sociais, como
pelas greves de 1934 e a crescente presso contra a carestia em meados de 1930
relembrando a tese de fazer, o que quer que seja, antes que o povo o faa. Tais solues, como
um Estado super-centralizador era refutado tanto por liberais de oposio como de governo, e
o medo do comunismo habitava as mentes tanto de governistas como de opositores, ainda que
na maior parte das vezes tenha auxiliado a outros fins que no tinham relao com a fobia das
classes dirigentes aos bolcheviques. Por isso, se o carter moderno, democrtico e liberal da
constituio de 1935 fato jurdico inconteste, isso se deve muito mais s foras subalternas
que propriamente aos liberais do parlamento.
73
Os dados sobre integralistas, de acordo com fontes citadas pelos estudiosos do tema, variam de 46000 a 80000
camisas-verdes no estado da Bahia, para o ano de 1936. Tanto Las Ferreira como Jairo Nascimento advogam a
alta representatividade da AIB na Bahia. (FERREIRA, 2006; NASCIMENTO, 2007) A capilaridade do
integralismo no deve, contudo, ser superestimado. Em nenhum dos dois trabalhos se cotejam variadas fontes.
Tanto um quanto outro se pautam em contas de entrevistas em jornais, a primeira utiliza O Imparcial e o
segundo o A Tarde. Em ambos os casos, no h confiabilidade tendo em vista a disparidade dos nmeros, afinal,
quase a metade em termos absolutos. Por outro lado, no h uma problematizao quanto ao envolvimento
orgnico desses supostos milhares de militantes. Um aluno de uma escola integralista entraria no rol de
integralistas, necessariamente? Um freqentador pouco assduo de reunies significa o mesmo, ainda que em
termos frios de estatstica, que um agitador? So essas as questes que os estudos sobre o integralismo na Bahia
precisam ainda responder.
74
75
41
OMcp 1937.00.25
76
relaes que se entre-cruzavam formando uma rede de interesses na qual se pode destacar trs
aspectos que envolvem processos transnacionais: 1) choque imperialista do entre-guerras; 2)
avano do capital norte-americano nas Amricas; 3) por fim, o pacto anticomunista das
burguesias nacionais e elites dominantes tradicionais. Um claro exemplo a relao de um
sujeito fundamental no Estado brasileiro com as mais diversas foras polticas: Oswaldo
Aranha. Ele manteve um vnculo estreito com Juarez Tvora que, por sua vez, era o
coordenador de um grupo liberal do Exrcito, dentre os quais se inclua Juracy Magalhes,
mas, ao mesmo tempo, mantinha ligao com Joo Mangabeira42 e algum contato com Otvio
Mangabeira. Talvez essas relaes mais abrangentes tenham impactado com mais fora a
atuao de Mangabeira e Magalhes que os imbrglios regionais. Ainda, em razo disso, a
referida anlise de conjuntura pode ser relegada a um plano inferior, em nvel de importncia,
nas formulaes polticas de Mangabeira.
H tambm indcios de fraturas no partido juracisista o que possivelmente se relaciona
com a ofensiva getulista muito mais que com um fortalecimento das oposies j que estas
tambm foram caadas pelo regime Vargas. Numa nota cujo destino parece incerto, Demtrio
Mrcio Xavier faz as seguintes observaes, possivelmente, a Vargas:
Politicamente, na Bahia, o governador est enfraquecido no seio do Partido onde se
desenham trs correntes distinctas.
[...] Seria interessante ouvir o informante que pessoa de alto conceito e priva
intimamente com o governador bahiano. Alm disso, por ser amigo do mesmo e
sentir a verdadeira situao, tudo tem feito para salval-o dos compromissos com
aquelles elementos procurando demonstra-lhe que o seu dever estar integralmente
ao lado do Presidente Getulio.43
AN c 1931.06.03. Numa carta de 28 de junho de 1933, Neiva sugere que h ligaes entre Oswaldo Aranha e
Joo Mangabeira.
43
GV c 1937.01.00.
44
GV c 1937.02.01/1.
77
45
46
GV c 1937.04.18.
GV c 1937.04.28/4.
78
GV c 1937.06.08
GV c 1938.08.28
79
Declarou (o Flores) que conta com elementos no Norte, citando: No Par; no Cear,
elementos dos Tvora; em Pernambuco, gente do Lima Cavalcanti; na Baa, diz
contar com elementos mais poderosos, anunciando que trabalham juntos o Octavio
Mangabeira e o Juracy Magalhes, que esto em perfeito entendimento; em Minas, o
Bernardes, em carta que dirigiu ao Flores, diz que a situao ali tima ( o que
muito entusiasmou ao Flores) e que, dada a incompatibilidade em que est hoje o
Valadares com todo o povo mineiro, que no o tolera, havia campo para uma grande
possibilidade. Nessa carta, o Bernardes acrescenta que o Governo de Minas nunca
esteve to avacalhado como neste momento que a primeira vez que Minas tem
em seu Governo um Presidente jogador. Diz ainda o Bernardes que ia ao Rio para
entender-se com vrios amigos, inclusive o Joo Carlos Machado, e um emissrio do
Octavio Mangabeira.49
49
GV c 1938.09.19. Nessa carta h tambm uma advertncia ao Presidente com relao aos intentos homicidas
de Flores da Cunha: Que o Flores disse-lhe no confiar nos elementos do Rio para atentar contra o Presidente e,
por isso, j ter mandado gente daqui para assassina-lo e que tambm j devem ter ido jagunos da Baa para o
Rio, com o mesmo fim. Sugere sobre uma possvel tentativa de assassinato do presidente Vargas, o mesmo
autor, Joo Batista Luzardo, em outra correspondncia: Ligo tambm muita importncia ao fato de, segundo me
disse o Pequeno Pedroso, ter ido para a algum da Baa, pois, o Octavio Mangabeira tem muitos amigos
dedicados l e o Belmiro , como voc sabe, sertanejo baiano. GV c 1938.10.04.
50
A propositura interpretativa que sugere coisas fora do lugar tambm feita por Roberto Schwarcz.
80
globo: pela cassao. Juracy Magalhes e Clemente Mariani foram os principais articulares da
proposta.
Os acordos entre Juracy Magalhes e Otvio Mangabeira no passaram despercebidas
pelas classes subalternas baianas que tomaram como para si as bandeiras comunistas e
trabalhistas, ao menos no maior plo urbano do estado.51 Os prprios elaboradores de poltica
Juracy Magalhes e Otvio Mangabeira, no caso conservavam-se indiferentes aos
reclames por resoluo de problemas sociais agudos e perseverantes que, com a popularidade
que o comunismo e o trabalhismo tinham conquistado entre as camadas trabalhadoras,
tornava-se uma combinao especialmente perigosa. Talvez por isso, a combinao simblica
entre Mangabeira e Magalhes tenha servido inclusive para atenuar os efeitos da represso no
discurso histrico oficial j que quele a imagem de democrata persevera at os dias atuais
enquanto ao ltimo restou pecha de truculento. Desse modo, para este, vigiar a cambaleante,
jovem e ingnua democracia pode ter sido uma tarefa facilitada pela imagem socialmente
inquestionvel de Mangabeira como homem tolerante. Este ltimo fez-se governador nas
primeiras eleies aps o Estado Novo, em 1947, com o apoio de Magalhes aps um pacto
poltico. Sob o governo Mangabeira as ambigidades polticas, especialmente no trato dos
comunistas, revelaram tambm as ambivalncias daquilo que foi referido passagens atrs a
respeito da fundao da UDN. A polcia baiana empastelou o jornal comunista O Momento,
em 1948, e reprimiu, nesse mesmo ano, com prises e outras formas de disperso de
multides uma passeata que protestava contra a cassao dos mandatos comunistas a partir de
ordens do Presidente da Repblica, segundo Lus Henrique Dias Tavares. Teria o governador
Otvio Mangabeira ordenado a soltura de todos os presos envolvidos na passeata no dia
seguinte. (TAVARES, 2001, p 464)
Na Bahia, a composio eleitoral da base de apoio de Mangabeira surpreende aos
olhos dos observadores dos anos 2000. O PCB apoiou Mangabeira em troca do seu suporte
pela legalidade do Partido. Ao mesmo tempo, Mangabeira foi apoiado pelos resqucios
integralistas na Bahia, Partido de Representao Popular. As relaes entre os grupos de
presso de elite, como a Associao Comercial, e o governo so obscuras nos termos dessa
pesquisa. Faltam indcios quanto ao vnculo daquela entidade com quaisquer grupos de
direo estatal. No entanto, sabe-se que Associao Comercial apoiou a interventoria.
(CARVALHO, 2005, p 40)
51
Tavares cita o relevante fato da vitria do candidato de Vargas no pleito de 1947 na contagem de votos da
capital do estado contra Otvio Mangabeira, apoiado por Juracy Magalhes.
81
82
que fundariam a UDN no final da Segunda Grande Guerra e se alinhariam aos Estados Unidos
produzindo uma violenta campanha anticomunista. A ascenso poltica de Mangabeira fez
parte desse fenmeno; a posio de Mangabeira o colocou como contraponto material e
simblico em prol de um liberalismo que precisava fazer-se hegemnico. A figura de um
sujeito que no descendia de famlia oligrquicas, que havia percorrido uma longa trajetria
de quinze anos por reclames democrticos e, principalmente, tinha conseguido desvincular-se
do liberalismo excludente da Repblica Velha, fabricava uma auto-imagem de setores
mdios vidos por representao poltica e uma sociedade atrasada que visava se refazer,
adaptando-se aos novos tempos, a partir de cima. Juracy Magalhes teria desempenhado outra
funo; uma que admite certos abusos em favor da manuteno da ordem liberal, leia-se,
propriedade privada. Magalhes aglutinou em torno de si sujeitos que ansiavam por renovao
no Estado, sob limites precisos da proteo intransigente do status quo. Ele tambm ascendeu
socialmente dentro do Exrcito e procurava demonstrar s classes mdias que a aliana
preferencial devia ser estabelecida com os grupos conservadores j que o mtodo de ascenso
deveria ser preservado a todo custo.
A pergunta final: o que significava ser liberal no perodo estudado? Para alm do dado
circunstancial do choque entre oposio e situao, que diferenas palpveis para os sujeitos
contemporneos havia entre os autonomistas e juracisistas?
Pensar a tradio liberal em sua influncia dirigida aos dois grupos polticos referidos
significa submet-la ao exame do mundo no qual ela prpria estava imersa. Uma famosa frase
de Mangabeira retrata bem o argumento, dizia ele sobre suas duas intransigncias: uma a
intransigncia democrtica; a outra, qui mais profunda, a intransigncia catlica.
(MANGABEIRA, 1978, p 258) Uma sociedade como a baiana, arraigada de uma cultura
subalterna centenria, cujas entranhas se forjaram na experincia da escravido e do
aprendizado do ps-abolio republicano no poderia deixar de explicitar, em cada aspecto
seu, as marcas de uma cultura paternalista52, porm, devorada pelo conflito. Isso chega
sociedade poltica de modo avassalador porque confunde tradies dspares e mecanismos de
resistncia com aqueles de opresso. A prtica dos liberais na Bahia e no Brasil sempre se
destacou pela dificuldade de dilogo com as classes subalternas. Mesmo quando o assunto
tratava de uma questo to premente como a abolio da escravido ou a questo da
52
J so muitos os trabalhos que tratam dos resqucios da sociedade escravista em relao ao mundo do trabalho
ps-abolio e que apropriam-se, de modo acertado, da reinveno do termo, por Edward P. Thompson. Por ora,
dois exemplos dessa nova apreciao da idia de paternalismo: REIS, Joo Jos. Carne sem osso, farinha sem
caroo: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia. Revista de Histria (USP), So Paulo - SP, n. 2, p. 133159, 1996 e NEGRO, Antnio Luigi et GOMES, Flvio. Alm de senzalas e fbricas: uma histria social do
trabalho. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 18, p. 217-240, 2006.
83
84
europias do sculo XIX. No entanto, a experincia baiana produziu notveis diferenas que
sero observadas e, na medida do possvel, explicadas.
Refletir sobre a liberdade de mercado no Brasil pr-30 um exerccio da maior
complexidade. Isto se d por alguns motivos e o primeiro deles subjacente ao prprio
tempo: trata-se de um perodo curiosamente identificado como liberal, tanto por
contemporneos como por pensadores do presente. Por outro lado, a existncia de um
monoplio de um produto, incentivado pelas polticas pblicas e pelas foras hegemnicas
nacionais, sugere um grande contra-senso. Desde j, portanto, a liberdade de mercado
comprometida no que tange a prpria noo de livre empresa e isonomia do Estado em
relao s atividades econmicas das partes do todo federativo. No caso da Bahia, conquanto
houvesse uma certa variedade de produtos primrios sendo produzidos cacau, fumo, caf,
mandioca e pecuria no foi possvel detectar uma poltica estatal de incentivo livre
concorrncia entre produtores. Detectou-se justamente o contrrio: a produo tutelada pelo
Estado produziu um grupo de beneficirios que congelou o poder produtivo da Bahia em
relao a outros centros.
Uma indstria incipiente e em grande parte gestada pela estrutura fundiria tambm
no contribuiu para fazer crescer o esprito concorrencial que a liberdade de mercado
necessita. Na Bahia as indstrias, sobretudo txteis, no conseguiram impor uma agenda ou
criar organismos de presso como a Federao das Indstrias do Estado de So Paulo. O
grande grupo de presso das classes conservadoras baianas foi a Associao Comercial da
Bahia. Um bom exemplo a discusso sobre uma dita Reforma Tributria que procuraria
simplificar a taxao sobre exportao e territrio. Na publicao do A Tarde a Associao
Comercial tem como pauta fundamental a simplificao fiscal. Nos termos dessa
simplificao fica implcita a idia de diluir o peso dos impostos e, nesse sentido, trata-se de
um pleito tipicamente burgus no qual a pequena burguesia e as classes dirigentes firmam um
pacto contra o Estado. Nos termos da Bahia e do primeiro momento da administrao
revolucionria, uma rodada de discusso entre as classes conservadoras e o Estado visava a
modificaes na tributao de molde a conciliar os interesses do fisco e das classes, em que
for suceptvel modificar.54 Embora genrica, a frmula evidenciava uma anuncia por parte
da Associao Comercial em relao ao governo.
Ao mesmo tempo que veicula propostas de uma tributao mais simples, o A Tarde
estampa numa de suas edies, em primeira pgina: A boa situao econmica da Bahia: um
54
85
dficit irreal. Por que fazer do funccionalismo o bode expiatrio? Um martyrio intil...
Apareceria uma contradio maior: conforme a receita liberal de enxugamento do estado,
corte de impostos e diminuio da burocracia como faces da mesma moeda. Felizmente, para
o historiador, a contradio no se demonstra. No decorrer da matria, diz o articulista, aps
discorrer sobre a situao favorvel da Bahia em relao a outros estados:
Porque descarregar sobre o funccionalismo (coitado!) o machado dos crtes, se essa
parcimonia de palitos, aggravando o mao estar presente, em nada concorrer para
attenuar os efeitos da crise commercial? Faamos como os povos adiantados, que
no temem os dficits como papes, pelo s horror da palavra, e consideram sagrado
o dever do paiz de no augmentar, de modo prprio, e para a lisonja de theorias, o
exercito de infelizes. Imitemos os Estados Unidos e a Inglaterra.
O rebaixamento de ordenados significaria uma poupana de meia dzia de mil
contos, que uma nica estrada de rodagem consome. Melhor seria ento reduzir os
quadros. Jamais inutilizar o empregado com a meia-rao dos vencimentos ridculos,
que fermentam nelle o dio ao trabalho, transformando-o, de maquina productiva,
que pode ser, em pensionista inactivo do thesouro. O problema h de ser enfrentado
por esta face: poucos e bons, nunca muitos e pssimos.55
Nesse trecho, em incios de 30, fica evidente uma apreciao extremamente liberal do
papel do Estado diante de um cenrio de livre mercado, como deve ser o mercado de
trabalho. Curiosamente trata-se de um perodo de interveno estatal ps-1929 quando
esforos foram empreendidos pelos governos citados na fonte para fazer decrescer o exrcito
de infelizes desempregados por ordem estatal. Tambm notvel a soluo encontrada
para o arrocho nas contas estatais que teriam dado origem reduo salarial do
funcionalismo. A reduo de quadros colocada como alternativa mais plausvel que a
diminuio dos ordenados. Qual lgica rege a tomada de posio exposta na primeira pgina
do vespertino citado? Num ambiente de crise, sobretudo econmica, a interveno estatal
vista, mesmo por liberais ou, talvez, sobretudo por eles como o caminho criativo para sua
superao. Assim, a lgica que parece ditar o ritmo de assertivas como a que sugere supresso
de empregos em detrimento da reduo de salrios, sugere uma tentativa de direcionar o papel
do Estado para a construo de uma burocracia elitizada, como bem atesta a concluso do
articulista: O problema h de ser enfrentado por esta face: poucos e bons, nunca muitos e
pssimos.
Uma mostra que muito elucida sobre ser liberal na Bahia de incios de 30 provm do
vespertino j citado. Uma coluna escrita por Wenceslau Gallo, poltico e, possivelmente, um
dos fundadores do Jornal A Tarde56. Inicialmente ironizando e problematizando as diretrizes
55
86
H estranheza na crtica a censura tal qual praticada pelo governo. Gallo critica a falta
de transparncia nas regras da coero. Para ilustrar sua objeo ele demonstra a paz e a
tranqilidade com que era efetuada a censura durante a 1 Repblica. A recorrncia e a
normalidade da censura se impunham como que naturalmente, afinal de contas, tratava-se de
uma praxe christ. Assim, a ordem mantinha-se e o caminho parecia seguro rumo
conservao. Ou seja, a restrio na 1 Repblica parecia cumprir uma tarefa de classe j que
se consensuava utilizando o propsito christo como mote aglutinador. No caso presente, a
abril de 1931, no se encontram certas de seu futuro as classes dirigentes baianas. E o
liberalismo sob cuja bandeira os ideais de progresso e modernidade eram levados a cabo,
embora cambaleante, ainda aparecia como maior argumento contra o cerceamento das
liberdades. No entanto, se fosse possvel consensuar em torno da tarefa da 2 Repblica, se
fosse possvel tornar a feitura dos grandes edifcios visvel, ento, nesse caso, graduar a
liberdade de pensamento no seria um grande problema, afinal de contas, os antigos hbitos
seriam mantidos e a composio se manteria. Outros aspectos aparecem nesse fragmento
como massa ignara e turbas indifferentes s elites suspeitas que fazem meno mesma
idia de povo bestializado e aos grupos dirigentes em litgio na crise de 30. A excluso
permanece e a liberdade de imprensa continua como meio, no de aprofundar idias
57
58
87
88
Estados e municpios ser a partir de abril de 1934 feito de accordo com o plano
organizado pelo Governo Federal.
E o art. 2 fixa a obrigao, para os Estados, de reservar nos seus oramentos a verba
necessria dvida externa, de accordo com este plano.
Trata-se de um tratado aprovado pela Constituio Federal, e cuja vigncia no pode
ser, pois, contestada. 60
H aqui duas defesas veementes por parte de Balbino. A primeira delas a defesa dos
investidores estrangeiros, ingleses e franceses. A segunda a defesa dos acordos firmados por
dentro do Estado, ou seja, se havia uma determinao firmada por meio de decreto, seu
cumprimento deveria ser imediato. Assim, uma parcela da intelectualidade que era parte da
sociedade poltica baiana fez, entre 1930 e 1937, uma interessante inflexo. Esses dois pontos
merecem destaque. No caso de Balbino que esteve prximo dos movimentos construdos pela
Aliana Liberal, enquanto estudante no Rio de Janeiro, em meados de 30 j se posiciona de
modo distante, para ento chegar ao pice da formao ainda com uma acentuao muito
mais liberalizante, quer dizer, da Frana61, se referindo ao momento do Estado Novo. Esse
pequeno lao une um setor poltico regional s outras elites regionais no mundo pr-Segunda
Guerra. A participao de Balbino na defesa de contratos com organismos e empresas do
capital internacional, num momento de crise, d um primeiro indcio de que o carter liberal
deve menos juventude das hostes autonomistas, como sugere Consuelo Sampaio, ou pela
oposio ao governo de Juracy Magalhes, de acordo com Paulo Santos Silva, que pela
percepo e tomada de posio prpria de grupos localizados na periferia do capitalismo em
relao aos parceiros internacionais que desejam ter e, sobretudo, de acordo com a maneira
como pretende dirigir o Estado em relao s lutas sociais.
Pelo lado da situao, interessante notar de que modo o liberalismo influencia as
aes polticas. No caso especfico, as ferramentas que servem oposio no so utilizadas.
Um exemplo muito interessante o caso do Dirio de Notcias. Em que pese o apoio que
concede ao governo juracisista, apresenta um discurso fortemente influenciado pela onda
nazi-fascista, e como aponta Peixoto (2004), h um discurso editorial que, embora critique um
liberalismo, no o faz de maneira universal. Um primeiro aspecto o tributo concedido
questo democrtica. Ainda que crticos ao liberalismo aplicado at 1929, o editorial se coloca
como amigo da democracia.62 No estranho que, como afirma Peixoto, tenha havido
participao de capital e material alemo no Dirio de Notcias. Por outro lado, no de todo
esquisito que setores das elites baianas tenham se visto prximas ao integralismo em algum
60
89
63
90
sculo XX. A assuno forada desses grupos dirigentes, sobretudo dos trabalhadores como
sujeitos polticos dignos de ouvido, parece um primeiro sintoma de que a composio da
sociedade poltica requeria novos parmetros. Por outro lado, a obsesso pela vigilncia e pelo
aparelhamento do poder coercitivo do Estado, sem dvida, continuaram como diretrizes
fundamentais no projeto social do liberalismo baiano, como ser possvel observar no
prximo captulo.
91
Captulo III
Anticomunismo na Bahia: sociedade poltica e represso
Seria repetitivo iniciar um texto sobre anticomunismo reportando ao espectro
comunista que rondou a Europa nos idos de 1848. No entanto, os discursos que traduzem uma
inquietao receosa por parte da burguesia e aristocracia europia em meados do sculo XIX
so anlogos queles encontrados no Brasil do sculo XX. As trajetrias dos processos de
afirmao de um imaginrio anticomunista, embora tenham se realizado de modos originais e
nicos, tambm seguiram paradigmas relativamente prximos no obstante a distncia
cultural e geogrfica entre Brasil e Europa. No caso brasileiro, conforme aponta, ainda que
timidamente, parte da curta produo historiogrfica, os caminhos do discurso anticomunista
foram trilhados de acordo com signos legados da originalidade histrica da sociedade
brasileira, embora esse aspecto no tenha sido enfatizado de maneira adequada. Ou seja,
embora um fenmeno mundial desde meados do sculo XIX, o anticomunismo aconteceu no
Brasil de modo particular numa permanente dialtica entre um discurso universal e
apropriaes locais. 64
Esta historiografia, portanto, j conseguiu se livrar de um problema: a fcil
apropriao de fenmenos mundiais como homogneos, sem diversidade. Ao debruar-se
sobre os trabalhos de historiadores acerca do anticomunismo no Brasil, detecta-se um cuidado
intenso na anlise do fenmeno enquanto histrico, assim sendo, sujeito tambm a uma
dinmica prpria. No entanto, a historiografia brasileira comete o equvoco de tracejar esse
anticomunismo no Brasil elegendo um espao geogrfico restrito a centros como Rio de
Janeiro, So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul como se essa escolha significasse uma
apropriao legtima de toda elaborao anticomunista brasileira, nacionalizando a partir de
exemplos regionais, sem verificao emprica em outras localidades. No geral, so
elaboraes situadas exatamente nesses centros e desse modo cabe a correo desse equvoco
s outras regies omitidas da histria do anticomunismo no pas, como o caso da Bahia.65
Para o presente trabalho as linhas gerais dos discursos e prticas anticomunistas
64
Em que pesem possveis crticas a essa historiografia, os esforos empreendidos por historiadores como
Rodrigo Patto S Motta (2002), Carla Luciana Silva (2001) e Eliana Dutra (1997) so importantes, sobretudo se
pensados como pioneiros na anlise historiogrfica da construo do imaginrio anticomunista, enfatizando
arqutipos discursivos e representaes imagticas.
65
Desde j preciso enfatizar a mudana paulatina desse percurso historiogrfico. Na Bahia, sobretudo, no
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal da Bahia, algum esforo tem sido feito no
sentido de suprir essa lacuna. Todos os trabalhos realizados nesse programa sero apreciados no momento
oportuno ainda neste captulo.
92
A autora refere-se no texto citado uma especializao veloz da atividade do capitodo-mato. O carter do ofcio foi regulamentado em uma detalhada exposio de jurisdies,
responsabilidades, remunerao e outras sortes de limites. Para Lara, antes de estadismo e
cuidado com a segurana do imprio o texto revela preocupaes mais pragmticas, que
visam a dirimir querelas entre autoridades locais, capites-do-mato e senhores de escravos,
66
Mesmo que divergentes quanto ao perodo exato de efetivao de uma poltica anticomunista, Dutra (1997, pp.
33-87), Silva (2001, pp. 23-50), Motta (2002, pp. 179-230) concordam quanto centralidade dos anos trinta para
a consolidao de um imaginrio anticomunista.
93
94
95
MAGALHES, Juracy. Minha vida pblica na Bahia. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1957, pp 83-4.
96
anticomunismo o qual, por sua vez, possui traos de uma trajetria mais longa de represso de
classe.
A Revoluo de 1917 na Rssia apresenta-se como um marco das lutas sociais no
globo, e tambm na Bahia, no s enquanto novo paradigma para as classes trabalhadoras
porm tambm como evidncia, por parte das classes dirigentes, de uma necessidade de
tomada de medidas preventivas com o propsito de evitar uma revoluo bolchevique alhures.
Foi nesse momento que a idia de anticomunismo ganhou corpo, no exatamente porque era
necessria a existncia de um pas governado por um Partido de massas, como a Rssia, para
a consubstanciao de um projeto anticomunista e conservador. Tanto assim que se pode citar
o seguinte exemplo:
O historiador Mario Maestri, estudando o papel histrico de Castro Alves, cita um
projeto abolicionista que determinava a emancipao dos filhos de cativas, em 1871.
Segundo ele o projeto foi combatido pelos escravistas, que chegaram a apresent-lo
como inspirao da terrvel internacional comunista.68 (SILVA, 2001, p 27)
O trecho em aspas se encontra em: MAESTRI, Mrio. Castro Alves: genealogia crtica de um revisionismo.
Porto Alegre: CEM-RS, 1998, p 7.
69
O termo designa as mais variadas manifestaes contestatrias que ocorreram durante o perodo Republicano,
desafiando o poder institudo de algum modo. Portanto, por anti-sistmico entende-se, desde as greves
sindicais s revoltas tenentistas.
97
exemplo 70. Aos membros da Coluna Prestes inmeros adjetivos e substantivos foram
empregados de modo a caracterizar de forma depreciativa o movimento. Assim, como
realizadores da mashorca, propagadores da demagogia rubra, os membros da Coluna
eram descritos por se colocarem ao largo do status quo.
Ao longo da dcada de 20 comunistas e anarquistas digladiaram-se em torno da
hegemonia do movimento operrio de modo que ao fim dos anos 20 o PCB j se constitua
como um partido relativamente organizado, ainda que sob a constante vigilncia do estado. O
Bloco Operrio Campons (BOC) e o PCB tiveram suas trajetria envencilhadas de modo que
a influncia comunista nos meios operrios havia crescido proporcionalmente ao decrscimo
dos anarquistas. Assim, aos termos subversivos e anarquistas foram acrescidos
comunista, internacionalista e bolchevique numa ampla pliade de denominaes para
elementos que no se adequavam s normas sociais. A ascenso do anticomunismo enquanto
termo predominante para caracterizar a prtica anti-subversiva do Estado brasileiro sugere71 o
crescimento do movimento comunista no pas a tal ponto que se criou uma Comisso
Nacional de Represso ao Comunismo (1936).72
Novas pesquisas apontam um nvel de organicidade por parte do PCB e outras
organizaes at ento desconhecido na historiografia baiana.73 Estudiosos do perodo
referente Era Vargas na Bahia defendiam a tese de desorganizao comunista at metade
da dcada de 30. (TAVARES, 2001, p 404 e SAMPAIO, 1992, p 107) Ao contrrio do que
70
Dirio Oficial do Estado da Bahia, 01/01/1925, j citado no captulo II: de paz que precisamos para
realizao dos nossos ideaes de progresso, que no devemos esperar dos excessos da demagogia rubra, nem dos
ignbeis atentados contra a ordem legal e as instituies firmadas, dos quaes resultam simplesmente descrdito e
vergonha. E Deus, temos f, ouvir o nosso apello, que o tambm o da conscincia incorruptvel da nao.
71
Pode sugerir tambm uma predominncia de um discurso historiogrfico que enfatiza, enquanto objetos de
estudo o comunismo e o anticomunismo em detrimento de outras foras polticas nos mundos do trabalho.
72
Os trabalhos realizados por essa Comisso possivelmente resultaram numa documentao ampla sobre o
combate ao comunismo na dcada de 1930. No entanto, essa documentao dada como inexistente pelo
Arquivo Nacional e em nenhum dos trabalhos de referncia sobre anticomunismo h qualquer apreciao detida
sobre os trabalhos dessa Comisso.
73
Alguns estudos recentes e em andamento ainda no consultados sobre anticomunismo na Bahia merecem
destaque: o trabalho de ALVES, Cristiano Cruz. Um espectro ronda a Bahia: as manifestaes
anticomunistas na imprensa (1930-1937). Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2008, Dissertao de Mestrado (Programa de Ps-Graduao em Histria UFBA), Salvador,
2008, LINS, Marcelo. Vermelhos da Terra do Cacau: atividades comunistas no sul da Bahia (1935-1936).
Dissertao de Mestrado (Programa de Ps-Graduao em Histria UFBA), Salvador, 2007, PRIMO, Jacira
Cristina Santos. Tempos Vermelhos: A Aliana Nacional Libertadora e a Poltica Brasileira (1934-1937).
Dissertao de Mestrado (Programa de Ps-Graduao em Histria UFBA), Salvador, 2006 e FERREIRA,
Las Mnica Reis. Educao e Assistncia Social: as estratgias de insero da Ao Integralista Brasileira
em O IMPARCIAL. (1933-1937), Dissertao de Mestrado (Programa de Ps-Graduao em Histria
UFBA), Salvador, 2006.
98
sugere Eliana Dutra74, no escopo desse trabalho, a idia de anticomunismo como poltica de
Estado, na Bahia, existe desde, pelo menos, 1930. A autora sugere que apenas a partir de 1935
um iderio anticomunista passou a ser difundido no imaginrio social. A documentao da
imprensa na Bahia d indcios de um anticomunismo difuso, que elegeu a Coluna Prestes
como movimento anti-sistmico a ser combatido e, em alguma medida, o cangao que
impedia a expanso do Estado para os sertes do Brasil nordestino. Nesse ltimo caso, porm,
a referncia a um anticomunismo em relao ao cangao seria demasiadamente forada e
imprpria. No entanto, caractersticas comuns entre comunistas e cangaceiros so
identificadas pela imprensa, especialmente quando so feitas aluses semelhantes a ambos
como sanguinrios, brbaros etc. Desse modo, a associao de uma imagem prxima o
cangao a uma outra distante o comunismo traduz-se por vinculao indireta que chega
ao intento final, qual seja, caracterizar a ambos como fenmenos malficos ao bem-estar
social.
A vinculao do PCB, a atuao do BOC na Bahia ainda no foram pesquisada e, por
isso, no possvel precisar nem muito menos esboar qualquer tipo de hiptese quanto s
foras de represso do estado empreendidas no sentido de limitar a atuao do Bloco. Por
outro lado, embora tambm curta na Bahia, a historiografia recente do PCB mostra algum
crescimento do partido no final da dcada de 20 e, no obstante o fracasso da participao do
Partido na chamada Revoluo de 30, o comunismo j era deveras diferente daquele de sua
fundao. O presidente Washington Lus, s vsperas de ser derrubado do poder, pronunciou
as seguintes palavras:
Na tribuna parlamentar, na imprensa e nos comcios, recorrendo a retumbantes
armas que o nosso estado de civilizao j no tolera, desenvolveram desenfreada
propaganda de idias subversivas, com o fito de affrouxar os laos de solidariedade
nacional, de estimular os germens anarchicos e communistas que, por acaso, existem
no seio da sociedade.75
Para essa autora assim como para Motta, o ano de 1935 baliza do incio do anticomunismo brasileiro. No
caso Motta h uma certa dubiedade j que ele considera o ano de 1935 como incio de uma primeira onda
anticomunista.
75
Dirio Oficial do Estado da Bahia (DOE-BA), 19.10.1930.
99
Se bem que alguns liberaes o sejam sinceramente, a maior parte no passa de uma
scia de embusteiros e como tal seria lhes entregar o paiz, com tanto sacrifcio e o
que peior, facilitando a penetrao rpida do communismo que, j tendo algum
corpo, adquiriu agora a cabea.76
CALASANS, Jos. A Revoluo de 1930 na Bahia: documentos e estudos. Salvador: Universidade Federal
da Bahia, 1980, p 19.
100
Ao prosseguir com o relatrio o chefe do gabinete informa que houve uma priso, em
Aracaj, de Leovigildo Ges em cujo poder foram encontrados documentos que
compromettem, seriamente, o Snr. Geographo Barros Amora, Inspector da Anglo Mexican
Petroleum Co.. Continua o relator: Por este aviso tornou-se egualmente suspeito o Snr. Joo
Gama da Silva companheiro de trabalho e de residncia daquelle. Diante do fracasso da
investigao que a polcia levou a cabo durante dias para escarafunchar as duas vidas acima
referidas, o relator comenta as diligncias que a polcia tomou:
No podendo admittir a hypothese de no terem tentado estes Snrs. converter ao seu
credo os demais Funcionrios da Anglo Mexican, convidei o Gerente da
Companhia, o Snr. Fischer, para um entendimento neste Gabinete.
77
AN 1931.03.13, FGV-CPDOC.
101
A este Snr. fiz saber, por alto, do que se trava e pedi-lhe para fornecer polcia uma
relao dos demais viajantes e Inspetores e as localidades onde se achavam, o que
foi feito.
(...)
Apresentei tal lista a S. Exa. O Snr. Secretario pedindo para telegraphar s
autoridades policiaes daquellas localidades no sentido de serem revistadas as
bagagens e detidos aquelles em cujo poder fossem encontrados folhetos
communistas ou correspondncia compromettedora.
102
o identificou como communista. O Chefe de Gabinete fez, a partir dessa informao, contato
com o Delegado Geral de Recife de modo que fosse feita uma observao da casa indicada
onde facilmente sero detidos, no s o Dr. Basbaum como, naturalmente, oitros (sic)
elementos communistas. Solicitou tambm a apreenso da correspondncia de Josepha
Oliveira.
Por fim, o seguinte extrato um exemplo daquilo que Luciana Pereira aponta como
uma necessidade da polcia em destacar sua atuao e eficincia, mas simultaneamente
refora a crena de que o mal ainda real e crescente. (PEREIRA, 2004, p 193)
Devo expor a V. Exa., Snr. Dr. Interventor, as difficuldades com que luta o gabinete
de Capturas, especialmente para o desempenho desta ultima misso.
No possuem os Agentes os indispensveis Passes para bonds e ascenores,
dispendendo este Gabinete sua insignicante verba da Porta, que de Rs.416$000,
com o transporte dos mesmos. Accresce nem sempre pagar em dia o Thesouro do
Estado, como acontece actualmente, vendo-se este Gabinete forado a pedir por
emprstimo Thesouraria da Policia.
Julgo indispensvel ser concedido credito mais amplo ao Gabinete, ao menos
emquanto duarar (sic) a campanha contra o communismo. Necessrio se faz
conduzam (sic) os Agentes comsigo maior quantia, prevendo-se o acompanhamento
de algum dos vigiados, em automvel.
Peo permisso, ainda, para levar ao conhecimento de V. Exa. Ter sido expedida
ordem Companhia de Energia Electrica para a retirada do telephone do signatrio.
Assim sendo, e no me sendo possvel mantel-o s minhas expensas, serei forado a
utilisar-me do telephone da Penso onde resido. Claro est que nestas condices
no poder haver o indispensvel sigillo, mxime em se tratando da campanha
anticomunista.
103
sanitarista para o comunismo procede para a Bahia, em especfico para Salvador j que este
o centro das atividades policiais referente ao combate anticomunista78. O Chefe de Gabinete
deixa nas entrelinhas, mais uma vez, a intensa relao que se estabelecia entre os diversos
rgos da administrao estatal o que, inclusive, transcendia as barreiras municipais e, em um
caso, estadual.
Um terceiro aspecto remonta sugesto anterior de que alguns sujeitos recebiam uma
vigilncia maior que outros. Os motivos que levariam um general ser mais observado que um
trabalhador so evidentes, em especial em funo do perodo. O poder de controle de uma
tropa uma chave essencial para afirmao de um governo que ainda se encontrava em seu
perodo provisrio como era o governo revolucionrio instaurado em outubro de 1930.
Uma quarta questo se refere s possveis ligaes entre os comunistas baianos e de
outros estados em 1931. No se pode, com segurana, afirmar a veracidade da informao
haja vista a observao de Luciana Pereira j citada acerca da auto-valorizao do trabalho de
inteligncia e poucos seriam melhores e mais verossmeis que Lencio Basbaum, destacado
militante do Partido Comunista do Brasil. Ter encontrado um rastro de Basbaum significaria
um grande passo no combate ao comunismo.
Por ltimo, mas enquanto continuao do ltimo aspecto apontado, est a forma direta
da qual se utilizou o Chefe de Gabinete de modo a se assegurar que seus pleitos eram
legtimos. Em primeiro lugar, fez uma exposio das atividades e diligncias que tomou
sempre com o intuito de combater o inimigo e captur-lo. Em segundo, tentou mostrar que as
condies de trabalho no estavam altura daquela que se constitua como uma tarefa
premente. Inclusive, a partir da cota de sacrifcio individual e coletiva, tanto do Chefe de
Gabinete como do Gabinete de Investigao e Capturas, tentou galgar mais amplos recursos
para a manuteno das atividades. Por outro lado, bom lembrar que esse processo,
usualmente, d incio a um ciclo que requer a constante reinveno do perigo, do inimigo j
que postos de trabalhos e, portanto, a sobrevivncia de uma srie de indivduos passou a
depender da atividade investigativa e esta da existncia de um inimigo que precisa ser
presente apenas o suficiente para justificar a estrutura repressiva.
Um outro relatrio do mesmo Gabinete de Investigao e Capturas foi enviado ao
interventor Arthur Neiva a 1 de abril de 1931. Alguns indcios nesse segundo relatrio
apontam uma continuidade entre este e o citado previamente. Nomes de sujeitos objetos de
investigao foram includos sem uma prvia exposio de motivos o que tambm sugere a
78
Outras localidades tiveram ampla atuao anticomunista, principalmente no sul da Bahia. (LINS, 2007)
104
AN 1931.04.01 CPDOC-FGV.
Certamente trata-se de uma referncia ao antigo interventor Leopoldo Afrnio Bastos do Amaral. Governou a
Bahia do dia 1 de novembro de 1930 a 16 de fevereiro de 1931. Uma pesquisa detida sobre o perodo que
Amaral foi mandatrio do Estado da Bahia no foi feita em virtude do desconhecimento acerca de sua
documentao pessoal, obedecendo aos critrios da presente pesquisa, qual seja, intercalar pesquisa em
peridicos, acervos privados e, em menor escala, arquivos de polcia. Suspeita-se que Amaral fazia parte do
grupo vinculado a Jos Joaquim Seabra.
80
105
polcia teria feito a diligncia at o local s 23 horas do dia 18 do mez findo, nada
encontrando de anaormal (sic). Apenas ali estava, espantado com nossa visita, o proprietrio
do estabelecimento. O relator, claramente, afirma ter se tratado de uma espcie de engano.
No h qualquer tipo de documentao que comprove a existncia de um imaginrio no
referido perodo que caracterize um temor social em relao ao comunismo to amplamente
difundido que justifique a citada situao. Ou seja, em 1930-1 comeava uma poltica de
segurana de Estado que reprimia comunistas. No h sinais de que nas classes subalternas,
nesse perodo, havia um novo parmetro de auto-controle que justificasse tamanha
vigilncia. Pode-se supor que, talvez, tratava-se de uma questo pessoal ou, ainda o que
parece mais plausvel: a associao de indivduos nos fundos de um Armazm, muito
distante da linha de tramways lembra aquelas tradies repressoras do Conde da Ponte
cujos objetos eram exatamente grupos sociais que se encontravam surdina, como faz
entender o relator. No entanto, nenhuma prova h sobre uma possvel relao entre tenses
polticas e tnico-raciais no documento. Tampouco o referido documento d argumentos
irrefutveis sobre um anticomunismo amplamente difundido. Trata-se, portanto, de um
problema aberto.
O segundo evento descrito no relatrio discorre sobre um novo aviso a respeito de uma
casa localizada na Rua do Pilar, n 204. Uma advertncia relacionando a referida casa a um
ponto de encontro de communistas, contrabandistas e gatunos. Relata o Chefe do Gabinete
de Investigao e Capturas: Na mesma noite de 18 do mez findo, de volta de Brotas, l
estivemos encontrando a casa, de msero aspecto por signal, fechada, no estando a chave na
fechadura, como conseguimos apurar. A concluso do investigador, aps uma nova visita,
realizada no dia seguinte foi que a casa mal freqentada por nella estar installada uma
agencia do chamado jogo do bicho. Salvo os moveis necessrios a este triste trabalho est a
mesma completamente vasia. O investigador teria encontrado 150 cartuchos de guerra
enferrujados. Allega o proprietrio da casa que taes cartuchos foram ali depositados por
soldados revolucionrios, em Outubro do anno findo. Parece-me plausvel a explicao (...).
Aps isso, o relator ainda teria voltado novamente ao local para confirmar que tudo estava
como havia deixado. Entre os ltimos dois casos de denncias, h relaes: denncias foram
feitas tanto aquela que se relacionava estranha reunio de indivduos longe do tramways
como esta ltima denncia que trata de um hbito triste numa casa de msero aspecto no
intuito de combater hbitos subalternos, caracterizados como antnimos da ordem e de bons
costumes.
106
Para a Rua da Legalidade n 2, ponto por ns visado, apenas uma carta foi
remettida.. Penso ter havido um cochillo, por parte do Dr. Administrador dos
Correios, no tocante esta carta.
Aberta que foi, julgo que tal epistola, de contedo insuspeito, no dizer daquelle Snr.,
no mais deveria ter sido entregue.
A nota aberta pela censura veio, forosamente, suscitar suspeitas no animo do
destinatrio. Propositalmente ainda no varejei aquela casa, deixando adormecer
qualquer desconfiana dos seus habitantes.
107
Conclui o relator:
Pode no ser communista o tal Palatiniki, sendo, todavia, um caso suspeito por ser,
no mnimo, um cavalheiro de industria. De amigos meus, negociantes nesta Praa,
soube existir suspeita, visto apresentar-se Palatiniki ora como negociante de jias,
ora como representante de Casas vendedoras de casimiras. , pois, merecedor das
attenes do Gabinete de Investigao.
Para concluir esse incio do captulo no qual foi proposta uma exposio acerca do
estado do aparato anticomunista na Bahia, talvez a seguinte citao traduza com alguma
preciso o que se tentou defender nesse primeiro momento:
108
Janeiro de 1931 cuja localizao seria interessante para este e imprescindvel para futuros
estudos que tenham como foco o estado da Bahia e a histria de suas polticas de segurana;
ou melhor, a localizao desse fichrio e sua conseqente anlise poderia fornecer inmeras
pistas acerca do que a polcia entendia como suspeito de comunista j que ela no tinha
experincia no trato de comunistas, portanto, talvez, o que era suspeito na Repblica Velha
poderia continuar sendo. No caso, trabalhadores anarquistas, pais-de-santo e toda uma ampla
gama de sujeitos simplesmente caracterizados como gatunos.
Por fim, antes de prosseguir, nunca demais lembrar que, dentro dos marcos
cronolgicos analisados at aqui, Lus Carlos Prestes tinha grande popularidade, j havia
rompido com a Aliana Liberal e desde 1928 j estava em contato com Astrogildo Pereira,
militante comunista. Por outro lado, Juarez Tvora e a cpula do Exrcito que coordenava os
rumos polticos imediatos da revoluo previam que, em algum momento, Prestes poderia
aliar-se de forma orgnica aos comunistas. possvel que a aparente insistncia de Arthur
Neiva, mesmo com o investigador chefe expressando uma impresso pessoal de ser theorico
o trabalho communista na Bahia, tenha tido a influncia de Tvora. Assim, a aliana baiana
com os tenentes comeava a trilhar seus caminhos pelos esforo de Arthur Neiva e,
posteriormente, de Juraci Magalhes.
109
Tal afirmao segue a conjectura sugerida por Antnio Srgio Guimares (2003) no captulo II de sua
dissertao de mestrado cuja referncia completa segue no fim do texto.
110
JMcp 1932.02.16.
111
112
113
(...) Conspira-se aqui com certa intensidade. Estou apurando com muita cautela os
fatos narrados dessa denncia, apurao que a tem confirmado e completado. Assim
que sei mais que j vieram dois emissrios do Sul, de parte do Coronel Taborda,
que aqui estiveram e prosseguiram para Pernambuco, onde se entenderam com o Dr.
Borges de Medeiros. Tenho metido na conspirao um oficial da Polcia que me
fornece todas as informaes. Da a necessidade de manter absoluto sigilo sobre o
assunto desta carta, do qual ningum aqui tem conhecimento, nem mesmo o
Comandante da Regio, porque temo perder essa fonte segura de preciosas
informaes.
(...) Dever ir breve ao Rio o Dr. Simes Filho, a fim de completar os entendimentos
para futura execuo do movimento. Peo-lhe sobre ele um servio rigoroso de
vigilncia, que poder nos fornecer novos dados interessantes e seguros sobre a
marcha e os participantes da conspirao no cenrio nacional. (MAGALHES,
1982, p 248)
114
ora pela candidatura Gis, ora de Osvaldo ou de outro qualquer que no seja eu. (VARGAS,
1995a, p 273)
As tenses nos meses de fevereiro a maio de 1934 foram sensveis. Porque nacional, o
movimento teve implicaes na Bahia e aumentou a desconfiana do interventor para com os
seus opositores. Os comunistas representaram pouco protagonismo at onde foi possvel
depreender das fontes. Os esforos dos mecanismos de produo de inteligncia pareciam
atentos aos movimentos insurrecionais que visavam a tomada do estado. O ano de 1934
tambm marcou um recomeo intenso das atividades grevistas:
84
115
Estava em cheque uma disputa nos termos descritos no captulo anterior em torno de
liberalismos. Entretanto, artifcios do combate anticomunista como a conspirao,
inteligncia e risco de sublevao da ordem mantinham o comunismo na ordem do dia.
Juracy Magalhes em depoimento afirma que no combateu a Aliana Nacional
Libertadora chegando mesmo a dar certa liberdade aos comunistas durante meu governo.
(MAGALHES, 1982, pp 94-3) No sustentvel a assertiva de Magalhes por alguns
motivos: 1) a vigilncia mencionada por Vargas para organizao de classe impe limitaes
severas s representaes polticas no alinhadas ao governo; 2) a postura de Tvora, ento
superior de Magalhes, era de profundo cuidado com os comunistas, como demonstra a
documentao referente ruptura de Prestes em 1930; 3) por fim, a relativizao que
Magalhes explicitou em depoimento ela prpria sugestiva de que se impe uma restrio.
Tal restrio jamais foi negada portanto no h novidade. Mas o curioso fato de ter se dado
maior nfase liberdade dada que a restringncia imposta digna de nota. Por um lado
85
Os excertos citados encontram-se no Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), FUNDO DESPS
294, fls. 28 a 39.
116
86
Alm disso, quem nos governava, na poca, era o cearense Juracy Magalhes, que no perseguia comunistas
(seus principais adversrios estavam no integralismo da ABI (sic) ), at porque tinha um irmo perseguido pela
poltica, escondido no interior do Estado. (RISRIO, 2004, p 499)
87
A crtica dessa documentao ser feita adiante. No entanto, cabe adianta que se trata de um depoimento
colhido em 1977 quando o sujeito em questo entendia-se como democrata e defensor das liberdades e
provavelmente nem tenha se lembrado que flertou com o integralismo como ser evidenciado a seguir. Um claro
processo de forja de uma memria poltica. Curiosamente ele afirma mais frente no depoimento a respeito da
ANL que no foi preciso combater; foi s dizer que era contra! Mas o pessoal comunista tinha certa liberdade.
(MAGALHES, 1981, p 148).
117
Baleeiro. (SAMPAIO, 1992, p 252) Ela sugere que o interventor era levado por um
pragmatismo, por traos de sua personalidade, como nos trechos a seguir.
Juracy abjurou o vago idealismo revolucionrio e elegeu o pragmatismo como linha
de conduta.
(...) Juracy no se sentiu desconfortvel com o retorno das velhas prticas polticas.
Carneiro de Mendona [interventor do Cear] acabou por demitir-se, mas Juracy,
realisticamente, adaptou a revoluo rgida estrutura oligrquica. (SAMPAIO,
1992, p 74-5)
Mas o papel de destaque que a Bahia desempenhou no cenrio nacional tinha muito
a ver com a sua personalidade, na qual curiosamente se combinavam a ousadia e a
intrepidez da juventude com o autoritarismo militar. Suas origens modestas
aproximavam-no da classe mdia e da gente pobre, numa poca em que grande parte
da elite baiana era-lhe abertamente hostial. Sagaz e pragmtico como Vargas, Juracy
tinha outros atributos pessoais que o ajudaram a construir sua carreira poltica. Uma
admirvel memria, por exemplo, permita-lhe chamar pelo nome o mais obscuro
chefe poltico local, ou o mais humilde eleitor. (...) Determinao e pragmatismo,
acima de tudo, foram as linhas de conduta maiores do jovem tenente. (SAMPAIO,
1992, p 86-7)
No difcil para um leitor atento diferenciar o teor das narrativas acerca dos dois
principais partidos baianos em 1935, PSD e a Concentrao Autonomista, considerando
ambos como virtualmente iguais em termos ideolgicos, como a autora afirma.
Um breve exame de composio do diretrio central do PSD revela a acomodao
da elite poltica bem como o amorfismo e artificialidade do novo partido.
(...) Em ltima anlise, o PSD era uma mistura incongruente de homens que haviam
prestado lealdade a diferentes governos, em perodos diversos da histria baiana,
sem qualquer compromisso de ordem ideolgica. (SAMPAIO, 1992, p 95)
Mobilizados pelo ardor da campanha, estudantes universitrios organizaram-se em
torno da Ao Acadmica Autonomista, que pode desenvolver a campanha com
audcia que os mais prudentes no se arriscariam. Cerca de 1200 empregados do
comrcio congregaram-se em torno da Ao Comerciria Autonomista. Revivendo o
estilo das campanhas civilistas de 1910 e 1919, caravanas autonomistas viajaram
atravs do estado, instalando comisses para a libertao da Bahia. Em unssono,
exigiam a restaurao da autonomia do estado, usurpada por invasores militares.
(SAMPAIO, 1992, p 95)
118
Paulo Santos Silva, mais at que Sampaio, persistiu na similitude entre autonomistas
e liberais. Mesmo que seja evidente o cuidado do autor em destacar a presena poltica de
liberais no fim do Estado Novo, Silva, por vezes, deixa evidente a semelhana entre
autonomismo e liberalismo. Com a aproximao do Estado Novo, os liberais baianos,
reunidos na Concentrao Autonomista da Bahia... (SILVA, 2000, p 45) e Encabeados
pelos autonomistas, os liberais lanaram mo de todos os meios possveis para enfraquecer o
Governo Vargas... (SILVA, 2000, p 48) so alguns exemplos dessa relao. No trabalho
anterior de Silva, A Fora da Tradio, a sinonmia exaustivamente repetida. Por exemplo:
Para que os autonomistas pudessem assumir de fato e de direito os postos que
reclamavam, determinadas etapas preliminares teriam que ser realizadas. Estas
etapas passavam pela conquista e garantia da mais ampla liberdade de expresso e
organizao poltico-partidria, pela convocao de uma Assemblia Nacional
Constituinte, pela soltura dos presos polticos e pela volta dos exilados. De um, em
particular: Otvio Mangabeira, lder dos liberais no estado. (SILVA, 1991, p 23)
119
120
mesmo tempo se precavendo contra investidas insurrecionais por parte de fraes excludas
da direo do Estado.
Os quatro anos que separam a chegada de Juracy Magalhes ao poder e a sublevao
comunista de novembro de 1935 so extremamente relevantes para o segundo processo
mencionado acima. O ltimo semestre de 1934 ps abaixo possveis planos insurrecionais por
parte das elites baianas. O comeo de 1935 deu incio ao que hoje pode-se entender como um
perodo chave da trajetria de Juracy Magalhes. Nesse ano o Partido Comunista do Brasil
(PCB) provou ter uma capilaridade considervel entre os trabalhadores urbanos do pas. J em
1934 movimentaes comunistas tomaram lugar sendo que, de acordo com Lus Henrique
Dias Tavares, a partir de ento o partido de fato iniciou um processo de organizao no estado
da Bahia, conforme j citado.88 (TAVARES, 2001, p 404) Por outro lado, a Ao Integralista
Brasileira (AIB) passava a ganhar fora entre militares e adeptos entre as mais variadas
classes e setores sociais. A polarizao evidente no mundo, principalmente, a partir da
ascenso de Hitler em 1933, causou espanto, no s aos liberais mas, sobretudo, aos
comunistas que, face ao fracasso da poltica chamada de obreirismo foram obrigados a
repensar suas linhas de atuao. A Aliana Nacional Libertadora (ANL) foi fruto dessa
tentativa de reorganizao do PCB ao mesmo tempo em que forneceu ao governo Vargas e
AIB possibilidades para agudizao artificial do momento poltico. (PINHEIRO, 1991, p 319)
A Lei de Segurana Nacional e a posterior criao, em 1936, de uma Comisso Nacional de
Represso ao Comunismo foram apenas os mais notveis exemplos do que se seguiu no
decorrer do binio 1935-36 no pas.
Uma mostra de como Juracy Magalhes dedicou amplos esforos ao combate do
comunismo uma troca de correspondncias com Vargas na qual ele afirma:
(...) Estou acompanhando a marcha dos extremismos no Brasil. Apreensivo s vezes.
Tranquilizo-me quando vejo Vossa Excelncia na presidncia. Sua viso poltica
resolve tudo. Mas preciso no encarar com otimismo uma situao que se agrava.
O comunismo progride. Doutrina contraria nossas tendncias encontra adversrios
(sic). Estes, vendo o governo sem dar providncias, procuram no integralismo um
meio de resistir bolshevizao do paiz. As foras democrticas diminuem pelo
ingresso de seus adeptos, em geral pouco convencidos, nas duas correntes
extremistas. Para onde vamos? A lei de segurana dorme no esquecimento. Penso
que Vossa Excelncia est deixando as cobras se desenvolverem.89
88
H uma reafirmao de Tavares no trabalho de Jacira Primo j que esta cita passos de uma rearticulao
interna que teria se iniciado em novembro de 1933, a partir da chegada de Honrio de Freitas Guimares
Bahia. Para tanto, Primo cita relatrio de polcia e a autobiografia de Guimares. (PRIMO, 2006, pp 31-2)
89
GV c 1935.06.27. FGV-CPDOC.
121
Mal saberia Juracy Magalhes que alguns meses depois estaria ajudando na fuga de
membros da ANL e, por isso, abria dois flancos na sua posio: por um lado a oposio
autonomista acharia nesse fato munio para acusaes das mais diversas e por outro o
prprio ncleo varguista lhe teria como suspeito. Tanto assim que aps os eventos de
novembro de 1935 e as medidas tomadas por Magalhes, dois processos que se contrapunham
s diretrizes do Governo Federal seriam iniciados. O primeiro deles, mais marcante e visvel,
foi o esforo estadual empreendido no combate ao integralismo. O segundo, iniciara-se uma
articulao, por parte de setores do exrcito e setores civis, de modo a assegurar a realizao
das eleies programadas pela constituio para 1938.
A represso empreendida por Juracy Magalhes j foi analisada por Jacira Primo da
seguinte maneira:
Mas sua condescendncia aos comunistas e aliancistas no ultrapassou a linha dos
parentes e amigos, pois em vista do pedido da relao dos adeptos do credo
comunista feito pela comisso aos governadores de cada estado, Juracy no se
demorou em requisitar que a polcia baiana enviasse a documentao pedida que
constava de 27 pronturios e 138 fichas. As fichas, enviadas pela polcia baiana a
CNRC, mostram vigilncia de pessoas consideradas suspeitas (comunistas,
aliancistas, sindicalistas), estando anotado com quem falavam, as reunies que
faziam e suas viagens para outros estados. (PRIMO, 2006, p 105)
Quando se refere a parentes e amigos, Primo localiza no lao fraterno entre Juracy
Magalhes e Eliser Magalhes um aspecto preponderante para a condescendncia daquele. A
autora tambm demonstra que as relaes mantidas entre Juracy Magalhes e Pedro Ernesto
tambm fizeram com que aquele tomasse partido deste ltimo. Assim, nesse caso,
compreender os rumos da grande poltica de Estado compreender uma srie de eventos e
processos entrecortados por relaes de classe, raciais e, por que no, afetivas. No cenrio
amplo de explicaes historiogrficas atitudes individuais tm relevncia na evoluo de
processos que transcendem o poder de influncia daquelas. Por outro lado, talvez
compreender aes que se situam fora do escopo explicativo racionalista e atribuir a elas
demasiada influncia das individualidades no seja o modo mais acertado, visto que no se
trata de um ato isolado. Exemplos de que regimes autoritrios tm sido fragmentados por
aes desse tipo no so poucos.
Um bom exemplo dessas idiossincrasias que os sujeitos se impem durante suas
trajetrias o que Patrcia Carneiro identificou. Uma espcie de lampejo de contradio
gritante entre uma correspondncia e a prtica poltica posterior de Magalhes.
122
90
Setores do Exrcito, de acordo com o depoimento de Magalhes, teriam lanado suspeitas sobre a ligao
deste com o comunismo haja vista sua proximidade de Agildo Barata e a participao de seu irmo na ANL.
provvel que tais acusaes tenham sido formuladas com o intuito de intimidao j que durante o regime de
exceo os comunistas foram alvos preferenciais. (MAGALHES, 1981, p 188)
123
Sob orientao do Tenente Ulysses da Rocha Pereira, que tinha como auxiliares do
peito, Sargentos Carlos, Pereira e Galro, mais o cabo Aurindo e soldado Eusebio, se
procedia ao alliciamento de soldados, cabos e sargentos, ora se olhes dizendo
tratava-se dum partido do governo, do qual faziam parte as principaes autoridades,
ora se lhes falando na federalisao das policias e nas futuras melhorias, ora se
ameaando de suspenso de communismo.91
91
92
124
125
Num dos trechos citados pelo delegado Mattos h uma curiosa sugesto por parte de
um capito sobre o avano integralista no estado. Em um relatrio escrito por este capito,
chamado Consenza, citado por Mattos, aquele aponta a culpa pela defeco de soldados em
prol do integralismo em virtude da atuao de superiores:
(...) fortalecidos pela explorao dos mais sagrados sentimentos dos nossos
soldados, condensados na trilogia Deus, Patria e Familia, ora transformada pelo
integralismo em material de propaganda, para o assalto ao poder, como se o actual
regime fosse orientado e defendido por atheus, impatriotas e desmoralisados.98
Num dos casos mais emblemticos, como protagonista, est o tenente-coronel Jos
Aureliano Alves, comandante do 2 B/C enviando carta ao Major Jos Francisco de Amorim.
Nela, o primeiro tenta obter recursos para realizao de uma reforma no dormitrio dos
soldados e adquirir colches para maior conforto da tropa. Nessa carta apreendida pela
polcia, h demonstraes da problemtica entre interior e capital, serto e litoral.99 H
amostras de como, no dizer dos integralistas, havia receio de que fosse desenvolvido um
levante comunista disfarado de integralismo para comprometer a ao da AIB.100 Por fim, o
aspecto interessante do escrito, diz o Tenente:
Agora que tenho o privilgio de conseguir aqui tamanha Victoria, prima pela boa
ordem e interesse pelo soerguimento deste nosso Brasil, que, coopere com o seu
companheiro, afim de que elle no fique mal em face do quanto mostrou, para ser
concedido o prdio, que soldado no o que o povo pensa, um grupo de homens
desclassificados, que no conhecem nem sabem o que conforto, educao,
tratamento, sociedade, etc. etc., auxiliando-me com o fornecimento de umas vinte
camas mais, trinta colches e cincoenta roupas de camas, para que bem possamos
apresentar ao publico, que est ancioso por ver agora o nosso quartel, exigindo at
uma inaugurao solemne.101
Por fim, nessa mesma carta, h uma recorrente acusao dos integralistas: O Izaias102,
juntamente com as demais autoridades, continuam dando prestigio franco aos comunistas e
perseguindo atrozmente os integralistas, bem assim procede o Salomo.103
98
126
No est em questo uma saga por uma verdade que, nesse caso, dada as dificuldades
de prova, seria apenas axiolgica. De todo modo, mentira ou verdade, parece relativamente
plausvel que estratagemas diversos para, no caso da Polcia e do Exrcito, livrar-se do
interrogatrio da sindicncia e motivaes transitrias possam ter condicionado a inclinao
de grupos sociais a determinadas agremiaes polticas. No se pretende, contudo, inserir no
bojo explicativo esse argumento. Entretanto, a possibilidade de ascenso social que nesse
momento o integralismo poderia significar, dado o prestgio que tinha no governo Vargas, e a
estigmatizao a que tinham sido submetidos os comunistas pode ser um leitmotiv do sucesso
da campanha anticomunista empreendida tanto por integralistas como pelo Estado brasileiro.
6. O autonomismo anticomunista
O anticomunismo do grupo autonomista tem um carter diferente daquele praticado
pela polcia e outros dispositivos do governo federal. Tendo em vista que no se tratava de um
grupo com amplas inseres nos meios sindicais, os anos da chamada era Vargas na Bahia,
perodo de atividade do grupo autonomista, no tiveram grande atividade anticomunista por
parte dos autonomistas. Esse anticomunismo no deve ser entendido como prticas escusas de
vigilncia irrefrevel. A repulsa ao comunismo parece ser evidenciada no que tange a disputa
poltica na qual se obedecem algumas regras. Do ponto de vista histrico destacam-se dois
perodos desse processo de formao e diluio do anticomunismo no grupo autonomista. O
primeiro deles certamente tem ligao com as insurreies de 1935. De acordo com o exame
documental no possvel detectar nenhum tipo de sistema ideolgico anticomunista
proveniente do grupo que comps o autonomismo baiano. Aps 1935, duas frentes se abrem:
1) um embate parlamentar que envolve os irmos Mangabeira na cruzada contra as supresses
das liberdades, quando eles identificam o comunismo como pretexto; e 2) a impressa coloca-
104
127
se entre o rastro da parania da invaso comunista propagada pelo governo federal e uma
posio moderada quanto supresso das liberdades. A exposio desse importante tpico
passar pela apreciao de alguns momentos marcantes da definio dos marcos do perodo
anticomunista e depois de que modo era feita a propaganda.
Cristiano Alves analisou a recepo pela imprensa das insurreies de 1935 e
corroborou com as certeiras observaes acerca da importncia das sedies de novembro
para a construo do anticomunismo como parte componente, sobretudo, do arcabouo
ideolgico conservador. No entanto, Alves analisa peridicos que tem filiaes imprecisas
com autonomismo mesmo que O Imparcial tambm tenha passado por fases autonomistas,
fica a sensao de que este ltimo peridico teve intensa influncia integralista, sobretudo no
perodo estudado por Alves. O peridico autonomista na Bahia o A Tarde. O trabalho de
Maria do Socorro Soares Ferreira se dedica ao estudo do A Tarde durante a conjuntura
revolucionria de 1930. Por isso, a autora no ataca questes relacionadas cruzada
anticomunista. No entanto, ela fundamenta, com propriedade, o pressuposto fundamental do
argumento ora desenvolvido:
No mbito local, o movimento autonomista da Bahia contaria com a ativa
colaborao do Jornal A Tarde, que desde 1931 j reivindicava uma nova
Constituio para o pas e que seria, ao longo perodo subseqente, um importante
canal de expresso dos autonomistas baianos.
(...) A Tarde investiu na explorao do movimento revolucionrio de 1930
caracterizando-o como ilegtimo. Deixava evidente a sua posio na luta poltica e
buscava construir o respaldo do leitor induzindo-o ao descrdito em relao ao
Governo Provisrio, que desde o incio fora tido como ditatorial. (MARIA DO
SOCORRO FERREIRA, p 52, ATARDE)
Compreendida esta relao torna-se quase que um mero silogismo perceber as ligaes
entre a imprensa autonomista e seus braos na sociedade poltica. De agora em diante resta
exemplificar com algumas amostras de discursos o tipo de embate ao qual se propunha o
autonomismo. Tratam-se de exemplos vinculados primeira fase citada anteriormente, qual
seja, aquela em que o autonomismo se v prximo ao encurralamento e percebe o governo
Federal utilizando o comunismo como pretexto para supresso das oposies. As anlises de
conjuntura dos autonomistas, como possvel constatar pela apreciao dos discursos de
Otvio Mangabeira, so muito precisas ao afirmar os propsitos do governo. Assim, quando
da votao no parlamento federal pela implantao do Estado de Stio, Joo Mangabeira,
tendo sido acusado de no apoiar integralmente o pedido do governo em funo de seu filho
participar da ANL, fez discurso transcrito pelo A Tarde:
Ainda no governo do Sr. Washington Lus, com 17 ou 18 annos, meu filho, ento
acadmico, era preso, pelo Chefe de Polcia de ento, sob o pretexto de ser
communista. Nada implorei do governo. E elle no se vergou. No entanto elle no
128
129
comunismo, assegurando Nao o que ela tem de mais caro: a liberdade, a honra!
(mangabeira, perfil parlamentar, 269-70, 11/08/36)
105
130
131
108
132
O movimento que redunda na formao da UDN tem, dessa maneira, ligao com
processos que envolvem a formao de novas acomodaes polticas portanto dissoluo
paulatina de antigas formaes polticas e, por sua vez, tem relao com dois
deslocamentos, tanto em mbito local como nacional: 1) a ruptura do ncleo juracisista, como
reverberao local do desligamento oficial de Juarez Tvora, Jos Amrico e outros militares
das hostes governistas; 2) uma sensvel coalizo de comunistas com o grupo ligado
candidatura de Armando Salles, este, por sua vez, vinculado a Octvio Mangabeira, Arthur
Bernardes e outros membros da Repblica Velha. Assim, concomitantemente vrios
movimentos tm lugar no fracionado bloco de oposio ao governo. Ambos os grupos locais
so deslocados da direo do Estado na Bahia, ao menos seus quadros mais proeminentes.
Como parte dessa segunda fase, uma defeco importante ocorre no ncleo
autonomista: Ernesto Simes Filho filia-se ao Estado Novo109. Exprimindo um pouco do que
sugeria uma carta enviada a Otvio Mangabeira por um correligionrio menor que
interpretava o golpe de Getlio Vargas proferido em novembro de 1937 como um mal menor
j que o interessante foi a queda de Juracy Magalhes.110 Para Simes Filho, aparentemente, o
inimigo no era o governo Vargas em si e sim Juracy Magalhes e tudo que ele representava:
os idias revolucionrios de 1930, o tenentismo, o suposto saneamento da poltica. A
composio de Simes Filho pode ser vista como prxima ao fisiologismo ainda que limitado
por concepes polticas precisas como o tal liberalismo excludente da Repblica Velha.
Um ltimo aspecto curioso sobre o autonomismo e sua diluio dentro da UDN tendo
como parmetro seu comportamento em relao ao comunismo uma avaliao feita por um
interlocutor annimo de Mangabeira sobre os comunistas e Getlio Vargas. Aps a anistia de
abril de 1945 os comunistas passaram a atuar legalmente no pas. Entendiam os comunistas
que era a chance de prosseguir no trabalho de conquistas de direitos e construir a liderana da
revoluo democrtico-burguesa, com o suporte de um governo cujas principais bandeiras
fossem as defesas dos interesses nacionais. Eis que em fins de outubro de 1945 um golpe
retira Vargas do poder e, de acordo com famoso discurso de Prestes a 20 de maro de 1946
debatendo com Mangabeira no parlamento:
ramos contra os golpes, contra as tendncias golpistas de V. Exas. Era o que nos
separava [comunistas e udenistas], e no podamos deixar de nos manifestar, porque
tnhamos a certeza de que os golpes armados seriam contra a democracia, contra o
proletariado, contra o nosso povo. Na noite de 29 para 30 de outubro, quando o Sr.
109
Embora tenha se colocado inicialmente na oposio ao Estado Novo, Simes Filho apoiou as aes do
interventor Landulfo Alves (1938-1942) e posicionou-se neutro durante o governo de Renato Pinto Aleixo
(1942-1945). Com a redemocratizao do pas em 1945, foi partidrio da candidatura vitoriosa do general Eurico
Gaspar Dutra presidncia da Repblica.
110
FPC OMcp 1937.00.25
133
Antes disso, porm, Mangabeira tinha disposio a seguinte leitura sobre a posio
dos comunistas em relao a Vargas, entre abril e outubro de 1945:
Tudo indica que os comunistas, passados os primeiros momentos de gratido ao
apoio recebido de Vargas, se enfileiram (sic) francamente ao lado da oposio,
formando assim um quorum suficiente para contrabalanar a maioria
governamental.111
7. A UDN e o anticomunismo
A consolidao de uma frente poltica opositora a Vargas se deu, na Bahia, de um
modo que provavelmente no foi nico no Brasil, mas se coaduna com a tese aqui
apresentada. A aproximao de Juracy Magalhes e Otvio Mangabeira que ser descrita a
seguir, demonstra a existncia dos aspectos liberalismo, anticomunismo e americanismo que
unificaram grupos polticos distintos.
111
OMcp 390 19
134
A base documental do argumento que ora se apresenta o longo depoimento dado por
Juraci Magalhes ao CPDOC em meados de 1977. O perodo central para compreender a
fundao da UDN e o aparecimento de tipos distintos de anticomunismos o Estado Novo.
Por um lado um anticomunismo com a participao dos sustentadores do regime que
ampliaram o estigma de comunista para legitimar prticas restritivas. Por outro, se forjava
uma oposio ao regime que, embora tenha construdo uma atividade contestadora junto aos
comunistas, lhes impunham oposio cerrada. Deste ltimo grupo fazem parte Magalhes e
Mangabeira. As fontes a respeito da trajetria de Magalhes so escassas, sobretudo durante o
perodo de Estado Novo. Um guia que se apresenta para a reconstruo desse perodo o
citado depoimento. A partir dele, ser feito o cruzamento de informaes com outras fontes.
Sobre sua atuao nesse perodo Magalhes diz:
Vivi o perodo do Estado Novo fazendo os meus cursos no Exrcito,
arregimentando, servindo no Estado-Maior, conspirando todo o tempo em favor da
democracia, at que houve a convocao para as eleies. Pedi ento uma licena no
Exrcito, para tratar de interesses particulares. Fui disputar a eleio na Bahia e sa o
deputado mais votado de todo o Estado. (MAGALHES, 1981, p 9)
135
Ele disse: Pois no. E l se foi o Major Juraci112 conversar com o chefe do EstadoMaior. Cheguei e disse: General Gis, sei que o senhor tem recomendado todo
cuidado comigo. No digo para o senhor no ter cuidado. Sou democrata e o que
puder fazer para restabelecer a democracia no Brasil, eu fao. Agora, s o que no
admito, General, que os senhores me ponham a pecha de comunista. Quanto a isso,
protesto, porque no sou comunista. Se eu fosse um comunista, diria a mesma coisa
que estou dizendo ao senhor em relao a mim, ao meu pensamento de democrata.
(MAGALHES, 1981, p 188)
Provavelmente houve aqui um lapso de Juracy Magalhes j que ele ainda era capito s vindo a ser Major
em 1942.
136
113
Quando vim ao Rio, o Osvaldo Aranha, que era muito meu amigo... Entrevista, p 164, JM. Tambm p 180.
Trata-se da entrevista publicada no a 22 de fevereiro de 1945 Correio da Manh. possvel encontr-la, na
ntegra, na rede mundial de computadores: http://www.abi.org.br/jornaldaabi/Janeiro-2009.pdf. Ento fica clara a
relao entre o Correio da Manh e O Globo, j que o primeiro, matutino, e o segundo, vespertino, publicaram a
tal entrevista.
115
Eu no tinha a confiana que o Mangabeira e o Virglio tinham na vitria [de Eduardo Gomes]. Eles
achavam que qualquer transao nesse rumo era jogar fora uma vitria que estava certa e se iludiram com os
lindos comcios do Brigadeiro. Entrevista, p 215, JM. Na verdade, voto vencido em parte. O governo Dutra teve
participao de ministros udenistas e de udenistas em suas medidas mais polmicas. H, pelo menos, uma
correspondncia dirigida a Otvio Mangabeira que supe a existncia de um grupo da UDN que compreende a
democratizao, ou seja, a queda de Vargas, como algo maior que uma possvel vitria do Brigadeiro Eduardo
Gomes. OMcp 1945.06.07 1220.
114
137
sempre foi a minha fora na Bahia), eu tinha os meus comcios interrompidos pelo Queremos
Getlio! Queremos Getlio! Queremos Getlio! (MAGALHES, 1981, p 215)
Para a trajetria de comunistas e udenistas a cassao dos mandatos do PCB foi um
dos trmites mais emblemticos por um lado do tipo de alinhamento ideolgico hegemnico
no Brasil como, por outro, do tipo de democracia que se visava construir no pas:
Minha lembrana de que, na cassao do mandato dos comunistas, fui um
elemento relevante. (...) Depois falaram no Senado Ivo de Aquino, pelo PSD, e
Napoleo de Alencastro Guimares, pelo PTB, ambos fazendo referncia ao meu
aparte: Depois do histrico aparte do sr. Juraci Magalhes ningum mais pode ter
dvidas de que o Partido Comunista obedece a uma linha internacional e no tem
autonomia nacional. O que era uma verdade histrica. Com isso, o lcio Souto,
chefe da Casa Militar e muito anticomunista, me convocou ao escritrio dele no
Palcio do Catete.
L estava o general Canrobert, ento ministro da Guerra. Ambos apelaram para que
eu assumisse a chefia, a liderana da campanha para expulso dos comunistas.
Estava-se procurando obter uma deciso do tribunal eleitoral, que foi tomada por
trs a dois, uma votao muito dividida. Eu disse que colaboraria como francoatirador. (...) E realmente nas discusses de plenrio, participei muito ativamente.
(...) Os comunistas defenderam brilhantemente, corajosamente, ardorosamente os
seus mandatos, mas no chegaram ao desespero de provocar um combate dentro do
plenrio. Foi a sorte deles, mais do que nossa. Da bancada deles, no escaparia
nenhum. Dentro do plano que eu tinha traado, se todos cumprissem sua parcela de
responsabilidade, como eu estava disposto a cumprir a minha, iramos liquid-los.
(...) No me recordo de nenhum parlamentar que no fosse comunista que tivesse
tomado extremamente a defesa dos comunistas. Houve alguns votos, alguns
discursos tmidos, mas no me lembro de algum ter marcado sua posio de luta
contra a cassao.
(...) No, unanimidade no houve. Lembro-me de que Otvio Mangabeira fez uma
declarao de voto.
(...) mas creio que foram muito poucos os que tomaram essa posio francamente a
favor dos comunistas. No debate ficou muito ntido que o Partido Comunista era
uma filial do Partido Comunista Russo. (...) Ficou muito claro isso, que eles no
representavam uma parcela do Brasil, eles eram um pedao da Rssia dentro do
Brasil. Era como eu via o problema. (MAGALHES, 1981, p 256-7)
Dizia aos seus mais chegados correligionrios eu sou pela cassao, porque eles [os
comunistas] no so cidados brasileiros, so cidados russos. Sou pela cassao. Agora,
quem deve dirigir o Acrcio Torres, o lder de vocs. Ajudarei, na UDN. (MAGALHES,
1981, p 43)
Um outro trecho relevante da entrevista que trata da cassao o seguinte:
- Embaixador, desculpe voltar atrs, mas agora lembrei de uma coisa me parece
importante. A UDN tentou buscar o apoio do PC na primeira candidatura Eduardo
Gomes, em 45?
- Ah, sim! No havia nenhuma contra-indicao. Houve conversas nesse sentido.
- O senhor participou da articulao?
- No, eu era contra-indicado para isso. Eu tinha tido um incidente muito grave com
o Prestes, logo depois da volta dele do exlio.
- Em 45?
- Sim, em 45. Ele estava numa casa em Laranjeiras e o Agildo me levou para
conversar com ele. Saiu uma discusso to acalorada (...). Ento, eu era um homem
pouco indicado.
138
- Por que o senhor o procurou, nesta ocasio? Estavam conspirando contra o Estado
Novo, nesse perodo?
- Fui visitar o Prestes porque havia a possibilidade de ele tomar uma linha pelo
menos paralela, simptica a ns. Mas o prestes ficou mais radical contra a UDN do
que contra o dr. Getlio. A candidatura prpria que ele fez foi do Fiza, prefeito do
Getlio em Petrpolis.
(...) O PC teve 600 mil votos naquela ocasio, creio. Fez uma bancada de 15. Talvez
taticamente tenha sido a melhor orientao, dentro do interesse do Partido
Comunista. No deixo de reconhecer isso. Para ns, democratas, uma pena que
uma corrente que podia nos fortalecer fosse desviada para fortalecer o adversrio.
(MAGALHES, 1981, p 267-8)
De acordo com Maria Vitria Benevides, Juraci Magalhes era o mais veemente
partidrio da cassao dos mandatos comunistas por parte da UDN. Para ela, trata-se,
possivelmente, da presena marcante do simblico ano de 1935 na memria do ento capito
do Exrcito. Segundo a autora Juraci apresentava seus pontos de vista nas reunies do
Diretrio Nacional, sempre favorvel cassao, insinuando inclusive, que o general Dutra
condicionava seus bons entendimentos com a UDN ao apoio para a represso aos comunistas
e a favor da cassao dos mandatos. Por outro lado, a posio de Mangabeira, embora
contrrio cassao, se alinhava a de Magalhes na medida em que supunha igualmente a
inclinao do governo Dutra a manter a cordialidade com a condio referida. No entanto,
Otvio Mangabeira propunha que se desse um jeito de deixar o Poder Judicirio tomar a
deciso perante a opinio pblica. (BENEVIDES, 1981, p 66) Subscrevendo as palavras de
Benevides o episdio da cassao dos mandatos dos deputados comunistas revela, tambm,
aspectos interessantes do legalismo udenista, enraizado nos valores do liberalismo clssico.
(BENEVIDES, 1981, p 67) Para Otvio Dulci, outro importante estudioso da UDN,
as discretas imposies militares no sentido de expurgar os comunistas, de que
fala Afonso Arinos, indicavam que correntes importantes das Foras Armadas
incentivavam a poltica restritiva do governo, destinada a reduzir o mbito da
participao poltica aos limites tradicionais. O general Dutra, durante o longo
perodo em que servira como ministro da Guerra de Vargas, havia pautado seu
comportamento por notria desconfiana das esquerdas e mesmo dos liberais.
Agora, na direo de um governo constitucional, era estimulado a manobrar no
sentido de uma democracia sob condies. O apoio certo da maioria parlamentar,
assegurado pela ndole conservadora das elites situacionistas, completava o quadro.
(DULCI, 1986, p 96)
Otvio Dulci conclui, incluindo a criao da Escola Superior de Guerra em 1949, que
eram os tenentes da dcada de 20, que, afastados dos centros de influncia poltica nos
primeiros tempos da Revoluo de 1930, dispunham-se agora a formar um ncleo de
elaborao intelectual e de preparao de quadros com vistas ao futuro do pas. (DULCI,
1986, p 96)
139
Uma das motivaes para a perseguio poltica aos comunistas empreendida pela
UDN baiana talvez tenha tido tambm uma conotao pragmtica. Aliomar Baleeiro dizia a
Juraci Magalhes em carta de 24/05/1945:
Embora o Albrico ache exagerada a minha impresso, acredito que o comunismo
abriu caminho e domina 80% da mocidade acadmica. a impresso do Ajax, como
estudante de direito e, pois, em contacto direto. certo que o comunismo do
brasileiro constitui mistura confusa de marxismo sentimental, liberalismo
democrtico e um pouco de snobismo intelectual, quando no puro cabotinismo.
Mas preciso no avali-lo a menos do que representa em nmero e em
entusiasmo.116
116
140
Captulo IV
Notas preliminares acerca do american way of life na sociedade poltica
baiana
Antnio Pedro Tota, em O Imperialismo Sedutor, reproduz um excerto de Lima
Barreto que muito bem ilustra um dos diversos modos de pensar o surgimento do fenmeno
americanismo no Ocidente. Dizia Barreto:
(...) No temos o bom senso de repelir os grosseiros e megatricos ideais
americanos e ficar ns mesmos. O mundo no sempre o mesmo, embora sua
substncia possa ser uma e nica; e os homens, portanto, no podem ser e devem
variar com ele.
Substituir o ideal coletivo que espontaneamente o nosso, por um outro que vai de
encontro nossa mentalidade e ao nosso temperamento, suicidar-nos.
A fascinao do modelo estrangeiro [...] entre em algum grau na formao de
qualquer sociedade, mas, para ser til e progressiva, no deve substituir inteiramente
o modelo prprio e ancestral.
No possvel que, tomando hoje uma aparncia, amanh outra, depois aquela
outra, haja quem deseje que sejamos afinal o brutamonte americano.117
Situando sua crtica entre uma exacerbao da auto-entrega do modo de ser brasileiro,
ou seja, uma abdicao desse jeito de ser e ao mesmo tempo caracterizando pejorativamente a
voracidade do novo modo de vida que se avizinhava, Barreto se aproxima de um modelo de
pensamento criticado, mais de uma dcada depois, pelo pensador italiano Antonio Gramsci.
(...) Quando se fala do americanismo, considera-se que ele mecanicista,
grosseiro, brutal, isto , pura ao, contrapondo-se a ele a tradio, etc. Mas esta
tradio, etc., por que no assumida tambm como base filosfica, como a
filosofia enunciada em frmulas daqueles movimentos para os quais, ao contrrio, a
filosofia se afirma na ao? Esta contradio pode explicar muitas coisas: por
exemplo, a diferena entre a ao real, que modifica essencialmente tanto o homem
como a realidade exterior (isto , a cultura real), que o americanismo, e o ridculo
esprito de gladiador que se autoproclama ao e que s modifica as palavras e no
as coisas, o gesto exterior e no interior do homem. (GRAMSCI, 2001, vol. 4, p
254)
Lima Barreto, O nosso ianquismo. Revista Contempornea. Rio de Janeiro, 22/03/1919 apud TOTA,
Antnio Pedro. O Imperialismo sedutor: a americanizao do Brasil na poca da Segunda Guerra. So
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p 9.
141
118
142
143
Onde Moura v presso, por parte dos Estados Unidos, Ricardo Seitenfus enxerga o
ABREU, M. de P. A dvida pblica externa do Brasil: 1931 1943. Pesquisa e Planejamento Ecnomico, v.
5, p. 37-88, 1975, p 59.
144
classe mdia, de acordo com o autor, da politizao das massas. Por fim, os militares foram
cooptados pela velha elite. Ento o corpo de oficiais que comps o ncleo do Estado Novo era
permeado por essas caractersticas, no que redundou num apoio macio desses oficiais ao
regime. McCann sugere que a classe de oficiais que tomou a frente da poltica nacional em
1945 pertencia a outro tipo de militar, comprometido com o desenvolvimento econmico e
com a insero do Brasil no crculo de vitoriosos da guerra. (MACCANN, 1973, pp 444-5)
Esse cenrio historiogrfico acima delineado demonstra a complexidade do tema em
debate. Para o nivel o qual esse trabalho se prope importante apenas identificar os traos de
vinculao entre os dois sujeitos da pesquisa, Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira, com
elementos estadunidense e aferir as reverberaes dessas ligaes no Brasil. Mesmo que seja
evidente o papel de Aranha na construo da aproximao com os EUA, no possvel
entender esse processo apenas a partir da atuao do ento Ministro. preciso uma viso
estrutural que d conta das vicissitudes pontuais diferenciando coero de convencimento e
ponderando os papis de indivduos na estrutura. Desse modo, parece que a abordagem de
Gerson Moura aponta para anlises mais frteis do caso brasileiro durante a Segunda Guerra
Mundial. A exposio sobre o processo de aproximao entre Brasil e Estados Unidos ser
feita da seguinte maneira: 1) a atuao de Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira nesse
processo; 2) as maneiras imperialistas, para alm da negociao direta com o Estado
brasileiro, de se fazer influente nas diversas esferas da reproduo social no Brasil; 3) as
vises de democracia e liberdades impostas e/ou negociadas com modelo norte-americano;
4) e, por fim, as caractersticas do nascedouro da inveno regional anticomunista, liberal,
excludente e baiana.
Depois da longa trajetria de quase sete anos no comando do Estado da Bahia, Juraci
Magalhes, opositor silencioso de Vargas desde 1935 e renegado do ento novo arranjo
estadonovista, e Otvio Mangabeira, um dos mais severos crticos do regime instaurado em
1930, encontraram-se em Nova Iorque, em 1942. A chegada a esse encontro entre dois
sujeitos, ento componentes secundrios da sociedade poltica brasileira, permite
compreender, a nivel global, a queda do antigo imperialismo britnico e a ascenso forada de
um novo paradigma hegemnico, e em termos regionais, a queda de uma tradicional elite
poltica, o aprendizado do manejo do Estado de novos grupos socias organizados e, por fim, o
reaprendizado de elementos daquela elite preterida.
Em incios da dcada de 20 os britnicos j se preocupavam com o avano norteamericano. A escolha dos Estados Unidos para executar uma Misso Naval no Brasil foi um
145
primeiro sinal de que o processo de mudana de eixo era irreversvel. Em 1922 o governo
brasileiro mostrava que, para reformular sua mais antiga e tradicional arma, dizia no
tradio da Royal Navy. Para os ingleses, a aproximao entre os dois pases significava uma
tentativa estadunidense de forjar uma liga de marinhas que ocuparia, na Amrica, papel
similar quele da Prssia, na Confederao Alem. Embora parea exagerada a formulao do
adido britnico, a difuso de influncia era notvel. (GARCIA, 2006, pp 215-7)
Embora a influncia britnica em termos econmicos tenha demorado mais tempo a
ser suplantada pela norte-americana, tambm ela foi superada j que havia muitos brasileiros
que
146
com os EUA e este era o governo Washington Lus. Nesse caso especfico tambm os Estados
Unidos, tal qual a Inglaterra, se preocupava com alteraes no status quo.
Igualmente curioso o fato de que as anlises de conjuntura do movimento comunista
no Brasil identificavam um antagonismo de imperialismos que estava vinculado aos dois
grupos em disputa no final da dcada de 20: a Aliana Liberal seria o brao estadunidense
enquanto a Repblica Velha estaria ligada ao imperialismo britnico. (BANDEIRA, 1973, p
220)
O caso do Citybank, acusado de crime contra o sistema financeiro brasileiro elucida
bem a afirmao de Bandeira acerca do cenrio favorvel, no Brasil, ao imperialismo ianque.
Nesse evento, especificamente, Otvio Mangabeira colocou-se contrrio penalizao do
grande conglomerado financeiro o que, seno caracteriza uma filiao ao capital, fundamenta,
ao menos, uma flexibilidade para com o grande capital. 121 (BANDEIRA, 1973, p 221) Nessa
mesma correspondncia citada, o remetente o qual no foi possvel identificar diz: Me
convenci de que poltica, economicamente e mesmo intellectualmente deviamos orientar
nossos destinos para a grande nao americana do Norte. Sei alis, pelas conversaes que
temos tido que esse tambm o seu pensar.
Otvio Mangabeira foi, desde 1926, atuante nas tomadas de decises mais importantes
do Estado. Enquanto ministro, tambm mantinha laos com seus correligionrios e baianos
ilustrados. Em 1927, tratou de negociar com Ansio Teixeira a ida deste aos Estados Unidos
para fins de estudo.122 Assim, a ligao de Mangabeira com os Estados Unidos remonta aos
ltimos anos da Repblica Velha.
1) Mangabeira e os EUA
Otvio Mangabeira, durante seu segundo exlio (1938 1945), manteve inmeros
contatos com setores progressistas nos Estados Unidos. Desse modo, a atuao de Mangabeira
teve grande amplitude j que conservou ligaes com grupos da grande imprensa como a
Readers Digest, mantinha contato desde finais da dcada de 20 com um jornalista da Time e,
por fim, teve contato com importante grupo anti-fascista internacional organizado nos Estados
Unidos, cuja sede era em Nova Iorque.
. Ainda no possvel afirmar a intensidade da coordenao dos opositores a Vargas,
grupo o qual Mangabeira era um dos lderes. Sua atuao de contestao ao Estado Novo
121
122
OMcp 1930.01.18
OmMre 1927.04.13 3731.
147
parece ter sido empreendida a partir de um misto de duas esferas de atuao: uma interna e
outra externa. A primeira esfera era feita a partir de intensa correspondncia de consulta aos
correligionrios. A segunda foi empreendida a partir da interao ideolgica que Mangabeira
assegurava com os espectros ideolgicos opositores ao Nazi-fascismo do perodo que
antecede e que comporta a Segunda Grande Guerra.
A aproximao dos comunistas aos liberais ganhou fora principalmente depois da
abertura da frente oriental da guerra. No entanto, o ensaio dessa aproximao se dava no nvel
das potncias Ocidentais mesmo que ainda seja possvel problematizar as motivaes
desde 1939, principalmente entre Estados Unidos e Unio Sovitica. (VALIM, 2006)
Mangabeira foi uma espcie de agente que simbolizou a capacidade de convencimento da
propositura de aliana estadunidense cuja fora variava ao sabor das conjunturas. Embora
exilado, Mangabeira atuou como elemento numa frente perifrica que se traduz como poltica
de domnio continental sendo efetivada, se observado os passos da poltica externa norteamericana na dcada de 20, consolidando posio de hegemonia e liderana continental,
fugindo do isolacionismo. O ento ministro das Relaes Exteriores do ltimo governo antes
do movimento de 1930 dera mostras da lealdade brasileira aos Estados Unidos quando
recebera Herbert Hoover, em dezembro de 1928, destacando a permanente amizade entre os
dois povos e, principalmente, quando o Brasil seguiu a posio estadunidense de sair da Liga
das Naes. (BANDEIRA, 1973, p 223) Cabe lembrar aqui as relaes j descritas por
Bandeira entre o movimento Constitucionalista de 1932 e os Estados Unidos. Esse mesmo
grupo de paulistas e insurgentes se organizariam mais tarde na construo da chapa de
Armando Sales para a sucesso de Vargas em eleio que teria se realizado em 1938 caso no
tivesse ocorrido o golpe de novembro de 1937 que instaurou o Estado Novo. Esse mesmo
grupo foi apoiado por Mangabeira, tanto em 1932 como nos anos seguintes. Assim,
Mangabeira teria sido um agente brasileiro de ponte entre o novo imprio e o Brasil.
Importante lembrar a atuao de Mangabeira no campo das comunicaes, parte to
essencial da penetrao estadunidense no pas. Ele participou das discusses iniciais da
efetivao da revista Selees no Brasil. Aqui no Brasil, a verso tupiniquim da Readers
Digest comearia suas atividades em 1942.
Selees era a verso brasileira do Readers Digest norte-americano, revista lanada
nos Estados Unidos em 1922 e um sucesso absoluto de pblico naquele pas. No
Brasil, Selees entrou em 1942 plena Segunda Guerra Mundial pedido de
Nelson Rockefeller ao Departamento de Estado
norte-americano. Rockefeller, na poca, tinha interesses comerciais na Amrica
Latina em geral, e no Brasil em particular. A solicitao devia-se ao fato da revista
mostrar uma imagem positiva dos Estados Unidos, apresentados como o nico pas
148
Havia contatos entre Afrnio Coutinho, que seria depois grande pea na redao da
Selees como redator-secretrio, e Eduardo Crdenas, como redator-gerente. Coutinho, por
sua vez, via em Mangabeira, como membro da Academia Brasileira de Letras e em exlio nos
Estados Unidos, um timo nome para ocupar um cargo no futuro peridico. Tanto assim que
se evidenciam correspondncias entre Crdenas e Mangabeira, pelo menos a partir 1941.
Possivelmente o fracasso das negociaes pode indicar uma ingerncia do governo Vargas de
modo a impedir que o veculo de comunicao funcionasse como mais um meio para tentar
desestabilizar o regime. No entanto, trata-se de mais um meio no qual se inseriu Mangabeira.
O campo jornalstico estadunidense, cuja heterogeneidade j lhe era peculiar, tambm
teve participao de Mangabeira. Durante essa aproximao ele escreveu palavras
surpreendentes. Ironicamente, foi nos Estados Unidos que Mangabeira se aproximara mais da
esquerda. Dois dos seus interlocutores diretos e indiretos foram, respectivamente, Freda
Kirchwey e Jlio Alvarez Del Vayo. Cabem duas breves digresses sobre esses dois sujeitos.
A primeira, Kirchwey, foi editora, a partir de 1933, de uma importante revista liberal norteamericana chamada The Nation. O citado peridico desde 1935 j advogava uma aliana entre
comunismo e democracia contra o fascismo sustentando que o grande conflito a ser travado
no decnio seguinte seria entre fascismo e democracia, quando esta ltima deveria ser apoiada
pelas foras da revoluo, o comunismo. Em 1937 The Nation, em editorial, demandou que o
governo estadunidense apoiasse as foras republicanas durante a Guerra Civil espanhola.
Aps a ecloso da Segunda Guerra, Kirchwey manteve a linha contrria ao Nazi-fascismo, em
apoio aos aliados, que contava com os comunistas, perdendo grande parte de seus leitores, j
que os Estados Unidos mantinham a neutralidade. The Nation foi favorvel censura da
imprensa fascista nos Estados Unidos, causa que acabou perdendo. Kirchwey defendeu a
USSR publicamente, aps a Segunda Guerra, quando esta foi acusada de imperialista. Na
argumentao da editora de The Nation, qualquer poltica de segurana por parte da Unio
Sovitica que parecesse imperialista, se tratava de uma manobra, de fato, defensiva. No
preciso dizer que ela foi tambm uma das mais severas crticas do MacCartismo.
Jlio Alvarez Del Vayo militou no movimento Republicano espanhol. Depois de
exilado nos Estados Unidos passou a defender posies mais esquerda do que defendia na
Espanha, principalmente aps a vitria do general Franco. Ingressou, quando nos Estados
Unidos, na International Free World Association, da qual faziam parte a j citada Freda
149
Kirchwey e Albert Einstein dentre outros. Dentre os vrios artigos que Del Vayo escreveu na
The Nation, segundo Sara Alpern, um deles chamou em especial a ateno da editora.123
Em World War III? Del Vayo apresentou, em 1942, um paralelo entre o Congresso
de Viena em 1815, e o Tratado de Versailles, depois da Primeira Grande Guerra. O autor
sugere que em ambos os casos o objetivo de adquirir poder, por parte das naes, fez com que
fosse prioridade manter o status quo e suprimir as foras populares. Para ele, portanto, a
situao era similar j que ao mesmo tempo em que se identificava o sonoro desejo por
mudana, faziam-se ouvir ecos dos intensos receios do socialismo, produzindo uma ao
bizarra: alguns aliados teriam passado a ver o fascismo como contrapeso ao socialismo. Para
ele, a nica soluo para o incio duradouro de um perodo de paz era a tomada do poder por
lderes antifascistas e progressistas em todos os pases onde isso no acontecia. De acordo
Alpern, Kirchwey no s concordava com Del Vayo como saudou esse artigo da melhor
maneira possvel: contatando inmeros intelectuais para lhe escrever rplicas.
Mangabeira, em junho de 1942, responde possivelmente a esse artigo124 de maneira
muito elogiosa. Alm de concordar com Del Vayo, o exilado brasileiro mostrava-se um tanto
desolado com o fato de que os fascistas tinham se aproveitado do terreno frtil da liberdade de
pensamento da democracia para espalhar suas sementes. Comeou estabelecendo um
antagonismo entre a tarefa histrica de uma nao democrtica e uma ditatorial: a primeira a
civilizao e a segunda crime. Demonstra uma discordncia de Del Vayo na medida em que
apresenta uma viso de participao poltica que restringe a atuao escolha:
Atualmente a nica forma das pessoas intervirem nas grandes decises de fato a
presena de seu representante real no governo porque apenas governos exercem
ao efetiva; eles esto mais fortes todos os dias e todos os dias mais prximos um
do outro. Portanto o tipo de homens no poder da maior importncia.125
Essa uma idia que comps a formao udenista e que aparece slida a partir da
interao dialgica. Por outro lado, lampejos dessa formulao, do exerccio pleno da
democracia se traduzir no voto, no ato de delegar a representao a algum, j se fazia
presente em 1932, em 1934 e a partir de 1937. Mesmo que, contraditoriamente, fosse esse um
dos itens que movimentou frente a Revoluo de 1930, contrria dentre outros, a
Mangabeira.
123
124
Mesmo que Mangabeira tenha se referido a outro artigo Del Vayo parece que as idias deste se repetem como
ser demonstrado a seguir.
125
Kirchwey, Freda, paper, Selected correspondent 215, Schlesinger Library, Radcliffe Institute, Harvard
University.
150
151
GV c 1942.09.04
Aprendi a amar seu modo de vida.
128
OMcp 1946.08.31
127
152
No acervo particular de Vargas h uma nota retirada do The New York Times que
assim noticia o ocorrido:
No final do discurso Dr. Mangabeira beijou a mo do General Eisenhower enquanto
a Assemblia inteira ficou de p e aplaudiu. General Eisenhower respondeu ao
discurso, expressando aprovao contribuio brasileira na guerra e seus princpios
democrticos de governo.130
153
militares que mais tardiamente se envolveria na fundao da UDN. Esse mesmo grupo iniciou
uma oposio silenciosa ao governo Vargas em meados da dcada de 30. As relaes tensas
entre Juarez Tvora e a empresa norte-americana Standard Oil principalmente quando da
organizao da Comisso de Inqurito sobre o Petrleo no ano de 36 ainda no foram bem
analisadas. Principalmente se foram observados os interesses de exploradores internacionais
j que
tenentes liderados por Tvora, quele momento, se posicionou, de acordo com suas prprias
palavras, contrrios internacionalizao das riquezas do solo brasileiro. Por outro houve
intenso debate que envolveu Monteiro Lobato e os regulamentos pretendidos pela
revoluo. Para Lobato, de acordo com um de seus antagonistas, as regras pretendiam
entregar as riquezas brasileiras ao capital internacional. Para os fins desse trabalho no
interessa quem tinha razo no debate. curioso e indicador do teor do debate acerca da
infiltrao estrangeira no Brasil e de que modo o grupo liderado por Tvora ao qual
pertencia Juraci Magalhes era percebido pelos seus opositores: como entreguistas.
De acordo com o relatrio da comisso a Standard Oil tinha longa trajetria de
atuao no pas. A descoberta de petrleo na Bahia, ainda na dcada de 30, e o anterior
vnculo dos militares nordestinos em torno de Tvora, pode ser uma pista da vinculao desse
grupo com interesses avanados do capital internacional j em meados da dcada de 30. A
documentao nada revela a esse respeito bem como no constam, no acervo de Juarez
Tvora qualquer correspondncia com Juraci Magalhes no perodo de sua interventoria. H
alguma coisa no acervo do prprio Magalhes entre este e Tvora mas no fornece subsdios
para uma anlise mnima dos dilogos a esse respeito. sugestivo o silncio dos documentos
a respeito da relao entre Tvora e Magalhes. curioso o fato de no haver
correspondncias entre Magalhes e Tvora haja vista a j comprovada relao poltica
inclusive admitida pelo prprio Juraci Magalhes entre ambos. Feita essa ressalva a respeito
dos documentos, as relaes que sero descritas a seguir pertencem ao campo das hipotses
fundamentadas enquanto tais, ou seja, verossmeis. Tornar ou reconstruir algo como
verossmil no campo do conhecimento histrico significa recompor o cenrio do tempo
pretrito em suas nuances contextuais e relacion-las s aes possveis de grupos e
indivduos. O limite das possibilidades indicado pelo exame das foras polticas do todo
social e por um balano das lutas sociais na circunscrio pesquisada.
A seguir dois trechos do relatrio da Comisso de Inqurito sobre o Petrleo. Um
primeiro retrata no que, para Tvora, implicava a discusso sobre a explorao de minas tendo
em vista o programa de ao desenvolvido nos trs anos anteriores:
154
devo declarar ainda que esses programmas de ao so, no fundo um dos pontos
contra os quaes mais se batem os particulares e empresas de petrleo, porque
querem inteira liberdade aco, sem ter, porm, os meios de exercital-a; porquanto
podem a maioria dos recursos do Ministrio e este ou os cede e fica impossibilitado
de agir pelos seus servios, ou no os cede e soffre a campanha. Ceder o material a
terceiros e activar as prprias pesquisas milagre que o Ministrio no poder fazer,
deante da precariedade de recursos de que dispe.132
Aqui se evidencia uma defesa de Tvora face s acusaes de que estaria elaborando
um cdigo cujo fito seria favorecer grupos estrangeiros. O ento Coronel faz meno a um
memorial encaminhado pela Standard Oil onde esta companhia critica os termos do tal
cdigo. Dessa maneira, pretende Tvora provar sua idoneidade na questo. Como j foi dito
antes, o envolvimento do Coronel e, em grande medida, o envolvimento posterior de Juraci
Magalhes na questo petrolfera brasileira e o silncio dos arquivos podem ser indcios de
um tipo de posio poltica desse grupo, j ento organizado, e em oposio silenciosa a
Vargas. Um outro fato curioso que o conhecido Delegado do Norte tivera acesso s
tentativas de Juraci Magalhes de realizar estudos geolgicos na Bahia. Nesse citado
132
JT dpf 1936.02.28, p 3. Trata-se de um documento com pouco mais de 150 pginas que contm inmeras
informaes a respeito da atuao da referida comisso e da questo do petrleo e minas na dcada de 30. O
relatrio de Tvora encontra-se nas ltimas pginas. At que se diga o contrrio, sero mencionadas as pginas
do relatrio e no do documento.
133
Op cit., p 6.
155
No quero insistir. Creio, entretanto, que deverias vir a este pas [Estados Unidos].
Os nossos interesses militares exigem um homem de tua viso, responsabilidade e
envergadura moral.
A nossa obra de approximao com este pas precisa ser solida, mas sem
vassalagem. E isso s um homem da tua qualidade poder ver, sentir e realizar.
134
156
Assim, fica evidente a ligao e, caso o desejo de Aranha tenha sido de fato sincero
o que no h motivo aparente para duvidar trata-se de um projeto poltico muito bem
definido. Circunscrito na mesma medida que o remetente annimo de Mangabeira fizera ao
sugerir que os destinos do Brasil fossem iluminados pelo gigante do norte. A resposta de
Tvora foi, como se conhece, negativa, para aquele perodo. Acabou por no seguir como
adido e prosseguiu na luta poltica no pas. Aranha, contudo, j contava com a presena
daquele que seria depois o grande Brigadeiro, Eduardo Gomes, que j se mantinha em estreito
vnculo com a arma congnere estadunidense.
So tambm dignas de nota as correspondncias entre Joo Mangabeira e Oswaldo
Aranha. Nelas possvel identificar uma relao de amizade que, embora no faa parte do
tema em questo, redunda em uma aproximao de grupos regionalmente distantes. Joo
Mangabeira fazia parte do grupo autonomista, rival de Juraci Magalhes na disputa regional, e
evidenciava alguma proximidade com Oswaldo Aranha. Desde envios de livros
estadunidenses at dilogos acerca do regime Vargas e do governo Magalhes, Joo
Mangabeira e Aranha discorrem com muita fluidez sobre temas diversos de seu tempo,
explicitando uma proximidade surpreendente entre grupos supostamente antagnicos.139
Assim, em meio a obscurido documental a que se submete, contrariado, o historiador,
alguns vestgios so encontrados, meio que fruto de um tatear atarantado. Magalhes, aps
sua queda em novembro de 1937 quando o Estado Novo teve seu incio, encontrou-se com
Otvio Mangabeira em Nova Iorque em 1942. Quase cinco anos tinham passado desde o
Estado Novo e Magalhes j tinha viajado pelo Brasil em atividades ligadas sua
reintegrao ao Exrcito quando aproveitava a ocasio e conspirava. De acordo com Gerard
Colby, Juracy Magalhes, apesar do proclamado patriotismo, era informante do FBI e vinha
enviando relatos sobre o governo Vargas desde pelo menos 1942, quando J. Edgar Hoover o
identificou pela primeira vez para o OSS (Office of Strategic Services) como um dos
138
139
OAcp 1935.03.26.
OAcp 1935.08.07 e OAcp 1935.07.11/2
157
principais informantes do FBI. (COLBY, 1998, p 216)140 Esse trabalho era feito por
inmeros sujeitos dos grupos que se opunham de diferentes maneiras ao Estado Novo. No
caso dos militares, cabia a conspirao. No caso dos exilados competia a tentativa de manter
contato com os correligionrios visando driblar a censura; arranjar meios de publicao em
veculos de comunicao internacionais; criar fatos polticos por meio de manifestos e cartas
abertas. Antes disso, porm, ocorreu uma primeira iniciativa dos opositores a Vargas de
construir uma alternativa partidria mquina governista.
Este importante dado no pode ser confirmado pelo autor. A citao de Colby para sustentar essa vinculao
de Magalhes com o servio secreto estadunidense o Relatrio OSS n 13.886, de 20 de maio de 1942,
Registros Militares Modernos, Arquivos Nacionais.
158
159
Do ponto de vista das entidades, talvez a UDB tenha sido aquela que formulou uma
poltica mais prxima de uma formao ideolgica liberal. Ao mesmo tempo, a partir de sua
atuao, um primeiro canal de negociao e suporte para sua prtica poltica parece ter sido os
EUA ancorado na efetivao de um dilogo entre sujeitos do governo (Oswaldo Aranha),
militares dissidentes (grupo de Tvora) e os tais liberais da UDB.
141
Arthur Bernardes Arquivo Pblico Mineiro (APM) Caixa 141, Doc. 438, 017.
160
Os modos distintos de opor-se ao estado das coisas levaram Juraci Magalhes e Otvio
Mangabeira a se encontrar em 1942. Esse encontro consolidou uma tentativa de reunir os
setores oposicionistas a Vargas que havia sido iniciada desde meados de 1936 quando
Magalhes intentara demover Armando Sales de uma candidatura ou ao menos iniciar um
debate em torno de uma candidatura que mediasse o conflito poltico instaurado entre
opositores, varguistas e os dissidentes da revoluo. O referido encontro em Nova Iorque se
deu por ocasio do exlio de Otvio Mangabeira e em razo do curso de Juraci Magalhes na
Escola de Estado-Maior em Fort Leavenworth. As necessidades que ambos se impunham
enquanto opositores silenciados pelo regime era coerente com o momento. A indefinio do
ano de 1942 em relao ao futuro do Ocidente colocara na ordem do dia, para as foras
liberais uma necessidade de auto-definio. Os Estados Unidos entraram na guerra a 8 de
dezembro de 1941. A postura chamada por Gerson Moura de equidistncia pragmtica
chegava ao seu fim no Brasil e o pas se via diante da inevitabilidade de ter que sair da
neutralidade.
O incio da reao estadunidense, ancorada nos elementos internos j descritos no
decorrer do captulo, compe os elementos que tornaram possveis as definies pactuadas
nesse encontro entre Juraci Magalhes e Mangabeira. A respeito desse encontro h apenas
duas passagens no depoimento j citado de Magalhes. A pequena parte do acervo de
correspondncias de Mangabeira pesquisada no faz meno ao encontro.
Um primeiro elemento que requer alguma anlise o entendimento do encontro como
marco. Quando da queda de Juraci Magalhes, um documento, j devidamente citado, que
evidencia a existncia de grupos autonomistas que elegeram Magalhes e, no Vargas como
principal opositor, sugere que a notcia do encontro entre Magalhes e Mangabeira pode no
ter sido amplamente bem recebida. 142 As motivaes poderiam ser diversas: desde a
existncia de antipatias pessoais a projetos polticos distintos, j que o prprio autonomismo
era pouco homogneo. O melhor exemplo talvez seja o de Ernesto Simes Filho, dono do
peridico A Tarde. Embora autonomista, Simes Filho apoiou as interventorias do Estado
Novo e quando no o fez, manteve-se neutro. Mas no s ele.
O antigo deputado autonomista Antnio Balbino de Carvalho Filho escreveu no
jornal O Imparcial um artigo de apoio acentuando que o novo interventor era
baiano e civil. Tambm nessa linha foram as declaraes de J. J. Seabra: Estou
certo que a minha terra vai entrar numa fase de atividade e ser restituda s tradies
de austeridade. (TAVARES, 2001, p 423)
142
J citado no captulo I: queda de Juracy ( um fato) maior frente ao menor que foi o golpe de Getlio.
OMcp 1937.00.25
161
Embora ciente do nvel das relaes entre sujeitos que dividiram espaos e
engrossaram as fileiras das classes dominantes baianas, preciso ressaltar que esses
indivduos, sobretudo aqueles que mantiveram vnculo pessoal ainda que adversrios polticos
caso da famlia Mariani e os autonomistas, por exemplo tinham disputas internas. As
disputas, embora reguladas por uma tica que previa uma subordinao ao status quo,
denotam uma heterogeneidade. partindo desse pressuposto que ora se pretende compreender
o encontro entre Juraci Magalhes e Otvio Mangabeira em Nova Iorque como forma de
iniciar a resoluo de certos entraves.
Talvez o primeiro e principal desses obstculos que foram enfrentados para a
construo de uma aliana tenha sido a demarcao anterior dos limites de atuao de cada
um dos grupos principais. Como j foi dito, somente o acervo de Juraci Magalhes diz algo
sobre o tal encontro. Nele ficam implcitos alguns acordos. Adiante os termos usados por
Magalhes para descrever o encontro:
Depois que dissenti dele [Vargas] no episdio de decretao do Estado Novo,
evidentemente esse partido [PSD] ficou dividido. Alguns marcharam comigo para a
oposio, para o underground, para luta pelo restabelecimento da democracia
durante todo o perodo da ditadura, at que ns nos fssemos encontrar, exjuracisistas e ex-autonomistas, na campanha do Brigadeiro Eduardo Gomes.
Em Nova Iorque, tive um encontro com Otvio Mangabeira, proporcionado pelo
Rafael Correia de Oliveira, fiscal do consumo da Paraba e cunhado do Rui
Carneiro, muito amigo do dr. Getlio e muito dedicado a ele, mas que no fundo era
democrata e conspirava pela democracia. Ele estava como funcionrio da Delegacia
do Tesouro em Nova Iorque e me procurou, dizendo que o dr. Mangabeira queria me
ver mas estava com escrpulos de ir me visitar no hotel, e perguntava se no
podamos arranjar um lugar neutro. Eu disse: No, Rafael. Vou visitar o dr.
Mangabeira no hotel dele, tranquilamente; no tem problema. Fui e conversamos. O
dr. Mangabeira me fez uma pergunta que guardo quase ipsis verbis: Major, o senhor
acredita no voto como um instrumento capaz de dirimir as divergncias entre os
homens? Eu disse: Sim senhor, dr. Mangabeira. Ele disse: Ento, no h razo
para que no militemos no mesmo partido. Fizemos a Unio Democrtica Nacional
na Bahia. Eu tinha mais votos do que ele, e achei que devia ceder a vez a ele, que era
mais velho e ainda no tinha governado o seu estado. Ajudei decisivamente a fazer a
candidatura do dr. Otvio a governador do Estado. No fim do seu governo, veio o
problema da sucesso. A o voto no foi capaz de dirimir as divergncias entre os
homens.[rindo] (MAGALHES, 1981, p 193)
162
163
164
A vinculao entre democracia e liberalismo foi um jogo retrico que, se tem, naquele
momento um fundamento prtico combate ao nazi-fascimo acaba por subjazir o contedo
propagandstico. Esse o elemento novo que se incorpora tradio liberal brasileira
fundamentalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial quando, os discursos que
elegiam a liberdade passaram a dominar as imagens da poca. Comunismo e democracia,
embora partidrios do mesmo propsito libertador, iniciavam um caminhar divergente. Ao
que parece, no Ocidente, por iniciativa dos democratas, para usar o linguajar da poca, a
aliana com comunistas se desfazia j no quase imediato fim da guerra.
O contedo anticomunista das formulaes liberais que ora se faziam presentes na
sociedade poltica brasileira herdava o passado autoritrio e excludente bem como o
eternizava acrescentando-lhe as restries que o mundo Ocidental exigia de seus aliados. A
diferena desse novo momento anticomunista a existncia desse fenmeno difundido em
todos os setores da arrumao poltica brasileira mas, principalmente, a existncia de um
partido destinado ao combate anticomunista.
Parece sensato citar a literatura sovitica sobre o tema:
Na Amrica Latina, como em nenhuma outra regio do mundo capitalista, o
anticomunismo no s a corrente ideolgica mais reacionria, mas, antes de tudo,
uma prtica terrorista de represso contra os comunistas e os representantes das
massas trabalhadoras.
(...) Nas condies de um regime militar-policial, a adeso ao comunismo
incriminada a todos que se pronunciam contra a poltica do imperialismo e da reao
interna e pela realizao de reformas scio-econmicas que no atinjam as bases do
regime capitalista. Uma posio anloga tambm adotada pela propaganda
anticomunista nas condies de um regime constitucional, quando se apela
represso contra os elementos subversivos (...) (KHATCHATUROV, 1980, p 5456)
165
143
AT c 1945.11.14.
166
tenha feito a um discurso de Mariani seja desconhecida, sua existncia no pode ser
descartada. O mais elucidativo o fato de dois sujeitos que mantiveram vnculo com grupos
distintos autonomismo e juracisismo tenham manifestado posies parecidas em dado
momento, trilhando o mesmo caminho de Juracy Magalhes e Mangabeira. Ao mesmo tempo,
cabe lembrar que a histria de Mariani no combate ao comunismo no pode ser comparada
quela de Ansio Teixeira j que este frequentemente manteve-se na defesa das liberdades,
sobretudo, de expresso e poltica.
167
construiu seus prprios tentculos. Assim, nesse captulo, intentou-se entender as formas que
adquiriram os conflitos polticos em seus elementos imperialistas, ainda que materializado em
terras austrais e longnquas dos grandes (epi)centros.
Sendo o tema, ento, o americanismo, dois estudos de caso foram apresentados. O
primeiro, de Mangabeira, luz de sua correspondncia e sua trajetria de vida, cujo objetivo
foi descrever a paulatina aproximao de um representante da Repblica Velha a um
liberalismo americana no seu perodo de exlio, sobretudo, seu segundo momento de
ostracismo. Do ponto de vista ideolgico, da sua submisso a um mundo novo, repleto de
novas e diferentes leituras, de uma imprensa pautada por normas distintas daquelas
vivenciadas no Brasil, Mangabeira parece ter refeito aspectos de sua viso de mundo no
decorrer de finais dos anos 20 e 30 do sculo passado. Redefiniram-se, aparentemente,
aspectos de seu liberalismo. Enquanto intelectual de uma burguesia sfrega e desunida,
esforou-se em estabelecer um pacto em torno de novos pressupostos programticos. Para
alm disso, do ponto de vista da ao poltica, sua proeminncia se fez presente nas suas
relaes estreitas com a intelectualidade liberal americana. Assim, a Selees, a Readers
Digest brasileira, concebida para edio no Brasil com grande influncia sua.144 Afinal,
Mangabeira no era apenas um poltico, era um imortal da Academia Brasileira de Letras.
Ocupou a cadeira de Jos de Alencar muito embora s tenha de fato assumido o posto aps
a volta do seu primeiro exlio na Frana entre 1931 e 1934. O segundo sujeito Juracy
Magalhes, que manteve vnculos estreitos com Juarez Tvora o qual foi, por sua vez, grande
aliado de Oswaldo Aranha. A relao que Magalhes estabeleceu com os Estados Unidos e
seus crculos militares diz respeito exatamente a esses vnculos que so, sem dvida, pessoais,
mas que denotam filiao a uma viso de mundo especfica. E mais, a um projeto de nao
que secundarizava a participao democrtica na tomada de decises. Ou ainda, a um tipo de
democracia excludente e exclusiva a grupos e sujeitos predeterminados, excluindo, dentro
outros os comunistas. Essa influncia americanista, por assim dizer, foi parte de um processo
bem definido por Paulo Fbio Dantas: Eles [Juracy Magalhes e Octvio Mangabeira]
alimentaram para o pas o caminho da conciliao intra-elites (DANTAS, 2004)
Assim, ainda que se tenha sustentado a dificuldade que a pesquisa do perodo
enquadrado entre 1937 e 1945 imps, as perguntas a respeito do papel da presena
estadunidense nas formaes polticas baiana e brasileira, se no foram respondidas de modo
144
Para mais informaes sobre a Revista Selees: JUNQUEIRA, Mary A. Representaes polticas do
territrio latino-americano na Revista Selees. Revista Brasileira de Histria, vol. 21, n 42, So Paulo, pp
323 342, 2001.
168
169
Consideraes Finais
A construo da Unio Democrtica Nacional na Bahia significou uma aliana entre o
que havia restado do tenentismo e os remanescentes da Repblica Velha. O processo difcil
que culminou nesse desfecho foi descrito nas pginas anteriores como algo que brotou de uma
srie de determinaes. Uma delas, sem dvida, foi a oposio a Getlio Vargas. De fato este
sujeito poltico determinou boa parte das decises polticas tomadas no decorrer das dcadas
de 30 e 40 do sculo XX. Significou tambm uma nova tentativa de redefinir os contornos da
idia de democracia. A democracia passaria cada vez menos a significar governo do povo.
Otvio Mangabeira, Ministro decado do ltimo governo pr-1930, imps severa
oposio aos tenentes, ainda que coadunando, silenciosamente, com o lento e errtico
caminhar da nao rumo aos braos de Tio Sam. Tinha simpatia pelo rigor anticomunista do
governo. Criticou sua exacerbao j que atingiu tambm as oposies; transformou-se em
pretexto para submeter opositores.
Juraci Magalhes, por seu turno, embora no tenha sido, na dcada de 1930, idelogo
do anticomunismo como prtica poltica de supresso de oposies, utilizou-se de tal artifcio.
Foi acusado de comunista por adversrios locais mesmo quando j lutava no mesmo lado que
aqueles. O setor autonomista que reservou a Magalhes os maiores petardos crticos pertencia
vertente de Simes Filho. Mangabeira parece ter percebido o vagaroso distanciar de certo
setor do Exrcito da base de apoio de Vargas.
Assim, no decorrer dos sete primeiros anos da dcada de 1930 ocorrem a construo
de dois grupos polticos antagnicos e a entrada de um novo sujeito na sociedade poltica. O
ruir da coeso dentro das Foras Armadas, o desgaste em torno da constitucionalizao e a
continuidade de Vargas trouxe fraturas ao seu ncleo. A ao de Agamenon Magalhes
parece ter contribudo para a rachadura do juracismo na Bahia ps-1935. Do lado
autonomista, setores mais autonomistas comeavam a comemorar a queda do interventor
holandez. Outros, menos autonomistas, iniciavam as articulaes para anular o iminente
golpe.
As presses internacionais se faziam presentes no Brasil. Entre duas grandes mquinas
industriais e, por conseguinte, mquinas de guerra o pas segurou-se at 1941. Alemanha e
Estados Unidos disputaram enquanto foi possvel a influncia sobre esta parte do globo. A
aproximao momentnea do Brasil com o nazi-fascismo no se sustentaria. O fato que se
instalou no pas um regime de fora que lutou nas fileiras aliadas. Os Estados Unidos
170
abrigou Mangabeira, como exilado poltico, e Juraci Magalhes como oficial em treinamento.
Ambos vincularam-se ao modo de vida estadunidense, ao seu modo. Os dois contriburam
para o alastramento da cultura estadunidense; ajudaram na consecuo de planos elaborados
em conjunto com grandes trustes, como o da famlia Rockefeller. Assim, um teve alguma
participao com Revista Selees da Readers Digest no Brasil e possivelmente foi
informante de agncia de inteligncia estadunidense.
A democracia passou a fazer parte do repertrio das oposies ao regime do Estado
Novo. Assim, o termo liberal que outrora designava as propostas mais progressistas,
sobretudo, dos grupos opositores ao regime Vargas, passava a ser substitudo pela
democracia. Otvio Mangabeira e Juraci Magalhes, em diferentes espaos, manifestavam-se
favorveis democracia. Isto significava que eram contrrios continuidade de Vargas. O
liberalismo brasileiro, somente na dcada de 1930 inclura a palavra democracia em seu
repertrio. Mesmo assim, fazia com as restries anticomunistas. Partidrios que passaram a
ser dessas idias, Otvio Mangabeira e Juraci Magalhes trilharam caminhos diferentes para
chegar a esta apropriao.
Que democracia poderia ser construda quando dois de seus propugnadores
participavam de conspiraes? Quando um deles havia sido Ministro do ltimo governo de
uma era republicana marcadamente oligrquica?
As Foras Armadas, a UDN e a burguesia baiana triunfariam plenamente apenas aps
1964 quando as foras progressistas foram sumariamente derrotadas. A inflexo dos
trabalhistas que resultou numa agenda prxima das atividades comunistas, principalmente
aps 1945 foi o grande empecilho para os udenistas. Otvio Mangabeira e Juraci Magalhes
forjaram prticas polticas; os grupos os quais faziam parte perpetuaram projetos de poder;
escreveram novos captulos da histria do liberalismo brasileiro e, por fim, lutaram para
manter as desigualdades em prol da manuteno do status quo, alis, papel precpuo dos
liberais ps-1945.
Portanto, contribuindo para uma democracia restrita, uma democracia contra o povo.
171
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