J. Borges: Entre fábulas e astúcia
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J. Borges - Maria Alice Amorim
Coleção perfis
A verdade biográfica mais rica talvez seja a que se assume como um olhar pessoal sobre a vida do biografado ou da biografada, e oferece ao leitor uma narrativa que o aprisione nas páginas do livro. Quanto das biografias são ficção e quanto das ficções são biográficas? Os perfis biográficos devem ser menos uma sucessão cronológica de eventos ligados à vida de uma pessoa do que uma experiência narrativa, que sacie o desejo insaciável que temos por histórias.
Por isso, a Coleção Perfis oferece 15 textos biográficos autorais, que recriam as vivências dos perfilados — homens e mulheres que construíram carreiras importantes em segmentos da sociedade pernambucana — a partir de uma narrativa que vai para além do jornalístico-documental, e permite um passeio intimista pelas vidas que ajudam a construir, em seus mais diversos aspectos, a memória coletiva da cultura pernambucana e brasileira.
José Francisco Borges, com quantos caracteres se forma uma biografia?
à maneira de apresentação neste primeiro
contato com o leitor, flashes possibilitam
vislumbrar a riqueza, a densidade das
experiências do protagonista
Era uma vez, noite fresquinha de maio, não chovia, não havia vento, nem calor, nem frio, nenhum desconforto nem nada. Latitude: paralelo nove. Atira-se ao olhar desprevenido a firmeza de pés e braços de mandacaru florido. Alteza da elegância: três metros. Idade presumida: 50. Flores, entre cinco e dez mal-acabadas de abrir. Admiravam-se, entre si, o mandacaru e a antiga estação da Leste. E nós, exultantes, alegrávamo-nos, admirando os dois. Quantos olhos, tantos ouvidos, quanta gente esbaforida eram os longínquos habitués nesse ir e vir de ruas empoeiradas a conectar por trilhos irrequieto mundo, mais ou menos rural, mais ou menos urbano. Além do que a vista alcança, o manto verde sobre um leito de rio. Ao alcance das mãos, a água da fonte direto ao pote. Ali plantada, a poucos metros quase em linha reta da porta central da estação, a generosidade de um chafariz, esculpido em formato de losango, como se fosse uma deusa-mãe a matar a sede de habitantes da caatinga ou uma Vênus paleolítica a seduzir moradores e passantes. Em volta da água, histórias de enganar o tempo. Em torno do trem, burburinho andarilho. Em volta do cacto, adivinhação de chuva. E a igreja de pedra, nave de memórias, se anunciava pelas torres imperiosas que velavam as margens ribeirinhas desse indecifrável rio, entranhado na paisagem, a pulsar, imenso coração executando sinfonia de cordas, de vozes, de barcos, carrancas, lembranças, lenda, mito, poesia.
Era domingo, o primeiro domingo de maio, 2018. O sertão, o mesmo que serviu de cenário para dois vaqueiros. Sertão de Petrolina. A história, um dia impressa em papel barato, se perdeu no tempo. O autor cascavilha arquivos, consulta amigos, convoca pesquisadores, pede ajuda ao filho, grita aos ventos, promete recompensa. Não sabe onde poderia reaver essa narrativa poética, papel esgarçado pelo tempo, e não faz muito tempo. Pouco mais de 50 anos, talvez contemporâneo daquele mandacaru, símbolo de firmeza e elegância nos prenúncios da fartura de chuva com que nos presenteia o dia seguinte àquele domingo. O alumbramento parecia transe, e era como se ouvíssemos Luiz Gonzaga: mandacaru quando fulora na seca é o sinal que a chuva chega no sertão. Pois foi esse o cenário onde o poeta situou a sua primeira narrativa em versos rimados, história de amor montada a cavalo, feito os livrinhos de feira escanchados em barbante. Vaquejada, vaqueiros, aridez e romantismos no roteiro rural de estreia poética. Vence o drama quem doma o boi. E depois vem o desfrute: a mão da filha do fazendeiro. Eis o resumo, assim nos contou o poeta, na noite domingueira de celebração com amigos. Ainda mais nos contou na noite seguinte, ante a plateia atenta do encontro de literatura, livro e leitura. A geografia do encontro era a mesma que havia inspirado o extraviado romance de cordel.
— Tenho um defeito, só sei falar da minha região, como Luiz Gonzaga cantou o Nordeste.
Com tantas alegrias a celebrar na atmosfera amistosa do domingo, o frescor da noite nos convida a atravessar o rio. Sobre a ponte vê-se a paisagem de cidades para sempre geminadas, confluência dessa fonte de vida, matriz. Na orla de Juazeiro, o papo flui, robusta cerveja. É a bebida que pedimos para brindar à felicidade do reencontro. O contador de histórias joga charme, faz rir, se diverte com a animação dos bares da orla, os passantes, os casais de namorado, a sedução da juventude. Retomamos alguns temas de minutos antes. Mantém a promessa de recompensa para a redescoberta do folheto de estreia, exibindo-nos o frescor de memórias inclusive aquela, tão recente, dos versos feitos sobre lendas do rio que corre ali nas nossas vistas, o Velho Chico. Faz um arco no céu veloz estrela cadente. O pedido ao astro surge com a mesma velocidade: que apareça de algum arquivo recôndito um exemplar do folheto.
— Os escritos revelam os seus autores.
— E a vida desenhada, Borges?
A vida um pouco malandra, assim é a vida de artista, explica-me José Francisco Borges. Não é que o artista não trabalhe. Trabalha, e muito. Ah, sim, entendi. Mas, só faz o que gosta, no tempo que lhe apetece, eu acrescento, perguntando-lhe se é isso o que quer dizer. Sim, sim, isso mesmo, exclama. Reforçando a compreensão do que quer dizer com vida de artista
, vou reafirmando para mim mesma alguns sinais dessa escolha. Se for para acordar cedo todos os dias, é porque assim acha melhor. Se for para ficar sem fazer nada, só apreciando a vida, não tem remorsos, a fantasia necessita de ócio. Se for para virar as noites todos os dias, é porque prefere trabalhar com o silêncio das estrelas sobre o escuro do céu. A vida é dádiva, precisa apenas compreender que as flores enfeitam, guardam segredos, ainda que não perfumem.
Todo percurso de vida pede ritos iniciáticos, ritos de passagem, que marcam etapas, delineiam processos do que afinal a vida é: transição. O primeiro banho, à maneira de batismo, é iniciação. A água sagrada de um caldeirão, cenário agreste, pacifica a transição entre o não nascido e o ser encarnado. O caldeirão, certamente adornado de veios de ouro à maneira de fábula, guardava água de chuva, à espera do recém-nascido. Recebe o primeiro banho ali, numa escavação na rocha. Um banho na pedra. Prenúncio de alegrias e prosperidade? Caldeirão em sonhos pode significar fartura. Caldeirão de bruxa é símbolo esotérico. Símbolo feminino, o ventre. Lugar de fertilidade, renascimento. Lugar de alquimia, junção, onde elementos são amalgamados, seres são gerados, tomam forma. Metáfora do cosmos.
A vida rústica, rural, embala o bebê. A paisagem agreste envolve-o, soberana, na primeira década, tempos de infância solta pelos campos. Depara-se com serpente e árvores floridas. Frutos silvestres encarnando o paraíso e as assombrações. A figura da avó, amorosa guardiã do neto, evoca a presença de Aracne, curvada sobre a almofada de fazer renda, espécie de símile daquela escultura de mulher rendeira plantada nos jardins do hotel onde o poeta esteve hospedado em Petrolina. Comovente pedaço de granito esculpido na década de 1960 pelo artista Zé Cláudio, em Nova Jerusalém. Firme companheira, ali no jardim, do mandacaru florido e da ex-bucólica paisagem dos arredores da estação de trem. Livre por jardins agrestes, solto na vida cíclica das quatro estações, as horas do relógio pouco importam para o menino. Cummings vem segredar: ante os mistérios da vida, a doce e espontânea terra nos seduz com a primavera.
Desde a meninice, o poder de observação capta os ritmos naturais. Borboletas no prado. As flores e os frutos. Sabor de jaca e de banana. O cavalo no prado, a briga da onça com a serpente. A colhedora de rosas. As tiradeiras de lenha. Crianças no laranjal. A cabra leiteira, o bode, o carneiro, o peru, a galinha. A imaginação vem a galope, solta no vento. Os bichos falam e rivalizam. O cavalo misto tem penugem e asas. Ou duas cabeças, e carrega no lombo beija-flor. Duelo de dragões. O jumento escrevendo. As pedras do árido agreste recebem os garranchos do adolescente que, pedaço de carvão nas mãos, vai treinando a escrita e a caligrafia. Talvez a pedra do primeiro banho tenha recebido, nalgum dia, a letra desenhada do futuro poeta.
Desenha o professor. Em madeira e papel, carne e osso. Imprime em letras grandes: a educação é a base de tudo. Defende a premissa, para si e para todos. E diz não ter prazer maior do que ensinar. Aonde vai e dá aulas, adora saber que faz mais um artista. Um, pelo menos um. O pai foi o mestre primeiro. Conduz as ideias de menino no mundo além, o mundo da leitura, de reino encantado e fantasias. Na prática, fazia o que o filho, adulto, passa a defender: a leitura é feito planta, tem que regar todo dia para se transformar em árvore bonita. O sagitariano, mistura de centauro, pégaso e cavalo-do-cão, é leitor apaixonado e seduz leitores por histórias aladas que correm mundo, voam pela galáxia.
O etéreo caminho das imaginosas narrativas, da inspiração vai sendo regado com os mananciais sagrados da memória longa. Abre caminhos a fogo. Enraizado na terra, nos costumes, na vida natural, cresce intuitivamente dosando fogo, água, terra, ar. A terra em que vive é terra sagrada. A água, fonte de vida. O fogo, a energia que o impulsiona, é o elemento que impulsiona o signo de sagitário. O ar — o imaginário, a fantasia, a criação — é o elemento que impulsiona o signo de Gêmeos, o seu ascendente no mapa natal.
Quíron, o centauro mágico, protetor de curandeiros, leva consigo uma serpente enrolada em um bastão. Na cosmologia grega antiga, o oroboro é o oceano primordial onde tudo começa e tudo termina. É prima materia na alquimia filosófica da Idade Média. Nele, o oroboro, tudo está contido: vida e morte, luz e trevas, o bem e o mal, a criação e a queda. Assim, a relação corpo a corpo desse sagitariano com animais, plantas, objetos é começo e é fim, é mote e é glosa. A vida explodindo, e continuamente se reconstituindo, em metáforas de vida.
A força física do agricultor e oleiro, a força criativa, as mãos marcadas pelos ofícios de artesão, a agilidade de um cérebro que pensa porque tem mãos sinalizam esse começo e esse fim. A metáfora. O mote e a glosa. Nas mãos, a vida, naquilo que nos traz de lancinante e efêmero: a foice e o pote de barro. A olaria vai glosando a nossa fragilidade humana mais ancestral, do artista vindo e voltando ao barro. Num impulso lúdico, o artista-mirim mergulha nas necessidades de infância com os brinquedinhos de barro feitos por ele mesmo. Na vida cotidiana, a moringa, a quartinha, a jarra, os pratos, o alguidar sabem a barro, trazem o sabor do que somos feitos, afinal. O agricultor manuseia a terra, ceifa o campo com a foice, conduz o carro de boi que executa som rascante nos prados, a madeira sendo preciosa engrenagem nos modos de trabalho e meios de transporte, matéria-prima e suporte de ferramentas de trabalho, ofícios do campo.
Na vida campestre, embalado pelos afagos da mãe e da avó materna, a madeira alimenta o fogo de lenha, assa o pão, move a casa de farinha, abriga as galinhas, se transforma em cerca nos currais. O candeeiro ilumina os rituais de leitura noturna. Quantas vezes, o pai, narrador de histórias de cordel, fez o filho embriagar-se e adormecer com as invenções de pássaro misterioso e bichos que falam! À mesa, a fartura possível vem diretamente do que cultivam, do chão onde labutam: o queijo, a manteiga, o boi, a vaca, a cabra, o bode, o peru, as galinhas. Tecer o cesto é o mesmo que conjugar verbos. Cortar o cipó. Preparar a fibra. Escolher o formato. Vergar as tiras. Domar o cipó para as beiras. Coser as beiras. Fiar o fio do algodão plantado na roça. A roca e o fuso falam de um tempo cíclico, o de plantar e o de colher. Falam de um mundo campestre, rural, movendo-se pelas mãos e pelos pés do camponês, pelos pés do burro, do cavalo, do boi. A mão e o pilão, ambos de madeira, facilitam os trabalhos na cozinha. A mãe, a avó pilam a carne seca, o milho, o café. Tudo guarda sintonia com o que vemos na outra ponta do mesmo jardim daquele hotel sertanejo. A mulher do pilão, a outra escultura em granito ali plantada, e executada pelo mesmo artista Zé Cláudio, simbolicamente homenageia o hóspede ilustre, que vai nos contando um pouco da infância rural, da primeira vez que andou de trem, aos 10 anos. O cenário da conversa é uma constelação de signos, marcas das experiências de vida do poeta-xilógrafo, para quem a arte, a poesia, a madeira são coisa divina.
Madeira nervosa, não gosta. Já usou peroba do campo, gonçalo, cedro, mogno. Prefere a imburana, que não empena. E o louro-canela. Quando trabalha, busca seguir os veios da madeira, ou melhor, as veias por onde correm as vidas inventadas, fabulação. Por onde escorrem as cores, vivacidade. Encarnação de imagens que circulam no próprio sangue do ser poeta, narrador. Narrador do vivido e sonhado, ofício do possível e impossível, mundos de sensibilidade, paixão, utopias, dor. A madeira, matéria de sonhos, é raiz e é fuga. Puxa o artista para o rés do chão, estabilizando-o, e o impulsiona a balançar-se nos galhos mais altos, acariciar nuvens e estrelas.
A morfologia do espaço da morada inclui o vasto espaço exterior, que se estende pela paisagem afora até chegar à feira e ao mercado. A distribuição interior desse espaço passa pelo chiqueiro dos animais, o depósito de grãos, a despensa, a cozinha, o fogão de lenha. A sala de estar e dormir com os armadores de rede, em madeira, incrustados nas paredes de barro. O alpendre de onde se vislumbra a vida chã e o insondável cósmico a alimentar crenças e saberes, medicina tradicional e religião. Pedindo licença a Goethe, é o delicado empirismo ou este modo de compreender a vida baseado na experiência direta que move desde sempre o homem-artista Borges.