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Mario Pedrosa - Itinerário

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A coleção Sentimento da Dialética é copyleft.

 
A coleção é organizada em sete categorias e três subcoleções, com diferentes
tipologias documentais e formatos de arquivos:
 
Categorias: Filosofia; Política; Estética; Arquitetura e Cidades; Artes Plásticas; Crítica
da Cultura e Trajetórias. Cada categoria adota uma cor específica aplicada na capa
do e-book.
 
Subcoleções:
E-books: livros, capítulos, prefácios, artigos e entrevistas (em formatos PDF, EPUB
e MOBI/Kindle) – com obras em português, inglês, espanhol, italiano e francês.
Documentos: matérias de jornal, fotos e documentos históricos (em formatos
PDF e JPEG)
Mídia: vídeos ou áudios de palestras, aulas e debates (em formatos MP3 e MP4)
associados a um canal da coleção no YouTube.
 
Coordenação editorial: Pedro Fiori Arantes
Projeto Gráfico: Paula Astiz
 
 
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

Arantes, Otília Beatriz Fiori, 1940-


Mário Pedrosa [recurso eletrônico] : itinerário crítico / Otília
Beatriz Fiori Arantes. -- São Paulo : [s.n], 2021.
(Coleção sentimento da dialética / coordenação Pedro Fiori
Arantes)
ISBN 978-65-00-20032-4
1. Pedrosa, Mario, 1900-1981. 2. Críticos de arte - Brasil. 3. Arte –
Brasil. I. Arantes, Pedro Fiori, 1974-. II. Título. III. Série.
CDD-709.2

Elaborado por Cristiane de Melo Shirayama – CRB 8/7610


 
 
DOI: http://doi.org/10.34024/9786500200324
 
 
 
 

Esta obra tem licença Creative Commons internacional 4.0


http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/
 
Publicado originalmente como:
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. 1a. ed. São Paulo: Ed.
Scritta, 1991.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Mário Pedrosa: Itinerário Crítico. 2a. ed. atualizada e
ampliada. São Paulo: CosacNaify, 2004.
Esta edição digital corresponde à última edição impressa, com imagens de ambas
as edições.
Tarsila do Amaral. Paisagem antropofágica – I, 1929 c – lápis s/ papel,
18,0 x 22,9 cm. Coleção Mário de Andrade. Coleção de Artes Visuais do
Instituto de Estudos Brasileiros USP. Reprodução gentilmente cedida
pela família e IEB USP.

O novo tempo do mundo exige dos intelectuais responsabilidades


que lhes são intrínsecas: a de tornar a força das ideias parte do mo-
vimento de entendimento e transformação do mundo. Os filósofos
Otília Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes cumprem,
juntos, há mais de 50 anos, a tarefa da crítica como intelectuais pú-
blicos atuantes, transitando entre diversas áreas das humanida-
des e da cultura, em diferentes audiências e espaços de formação.
A coleção Sentimento da Dialética é um lugar de encontro com a obra
de Otília e Paulo Arantes e reafirma o sentido coletivo da sua produ-
ção intelectual, reunida e editada em livros digitais gratuitos. É um
encontro da sua obra com um público cada vez mais amplo, plural
e popular, formado por estudantes e novos intelectuais e ativistas
brasileiros. É também um encontro da sua obra com o movimento
contemporâneo em defesa do conhecimento livre e desmercantili-
zado, na produção do comum e de um outro mundo possível.
sumário

11 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

17 INTRODUÇÃO

35 CAPÍTULO I
A DIMENSÃO SOCIAL DA ARTE

75 CAPÍTULO II
UM CAPÍTULO BRASILEIRO DA TEORIA
DA ABSTRAÇÃO

139 CAPÍTULO III


BRASÍLIA, SÍNTESE DAS ARTES

219 CONCLUSÃO
DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

237 APÊNDICE
ATUALIDADE DE MÁRIO PEDROSA

247 SOBRE MÁRIO PEDROSA


Mário Pedrosa nos anos 1950

 
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

Encontrei Mário Pedrosa pela primeira vez em 1979, na


casa de Radáh e Cláudio Abramo, onde costumava hospe-
dar-se quando vinha a São Paulo. Sua tese sobre a Natu-
reza afetiva da Forma acabara de completar trinta anos
de ineditismo, em todos os sentidos. Não sem tempo, Da.
Gilda de Mello e Souza chegara do Rio com um exemplar,
propondo-me que o publicasse. Logo o pequeno e anima-
do coletivo reunido em torno da Editora Kairós aceitou
a tarefa e me incumbiu de organizar e prefaciar sua pri-
meira e histórica edição. Está claro que minha primeira
providência foi enviar meu estudo de estreia na análise
de sua obra ao próprio Crítico. Daí o convite, queria co-
mentá-lo pessoalmente. A caminho, seu amigo e antigo
secretário Darle Lara assegurou-me que ele havia gosta-
do muito, mas mesmo assim tinha um ou dois reparos a
fazer. Não digo que não fiquei apreensiva, sem falar no
fato de que afinal ia conhecer uma figura histórica da crí-
tica brasileira na circunstância um tanto embaraçosa do
comentador, sempre incerto de ter avançado ou não o si-
nal. Para variar, falou-se de tudo menos do tal prefácio.
Lá pelas tantas, porém, puxou-me de lado e me garantiu,
sem maiores considerandos, que eu o explicava melhor
do que ele próprio o teria feito. Fiquei aliviada, mas não o
bastante. Antes de me despedir perguntei pelas ressalvas.
“Não importa, está bem assim”. Insisti até obter o que no
fundo desconfiava: “olhe, é que não tenho mais nada a ver
com a Gestalt”. Era verdade e eu sabia muito bem disso. A
11
mário pedrosa: itinerário crítico

rigor, àquela altura nem mesmo a crítica de arte parecia


interessá-lo mais, pelo menos com a antiga intensidade
dos tempos heroicos da arte moderna. O mundo tomara
outro rumo e a seu ver estávamos vivendo um momento
em que a urgência do político relegara a arte a uma jus-
ta posição de retaguarda. Apesar da ressalva previsível,
achei que não só não era o caso de modificar a redação,
mas persistia na convicção de estudiosa de seu itinerário,
que o Crítico de fato nunca abandonara inteiramente as
lições da Gestalt. Tratava-se por certo de uma teoria entre
tantas outras a que recorrera para explicar a dimensão a
um tempo material e universal da arte. Seja como for, ao
longo de toda sua carreira nunca deixou de dar primazia
ao momento estritamente construtivo do fazer artístico:
o da forma ordenada em função da qual sempre desconsi-
derou suas manifestações por assim dizer mais caóticas e
irracionais. Mesmo assim tinha razão, com o tempo a Ges-
talt fora perdendo força no seu argumento, no caso, um
raciocínio da maior originalidade em favor da aclimata-
ção brasileira da arte abstrata, sobre o que publiquei um
estudo na revista Discurso em 1983, do qual procede o ca-
pítulo central do presente livro. Ali o miolo de todo o seu
esforço crítico, a utopia estético-política de uma grande
arte sintética, como dizia.
Todavia – ou por isso mesmo – não podia ignorar que
Mário Pedrosa irrompera na crítica brasileira com uma
defesa mais do que enfática da arte dita proletária, con-
frontada com a intransigência característica dos anos
30 à autocomplacência formal de sua contraparte, a arte
dita por sua vez burguesa. Havia, portanto, um conside-
rável antes pedindo contas. Demasia meramente política
e de circunstância? Ou madrugava uma síntese futura,
esboçada em negativo, por exemplo, na arte de Käthe
12
otília arantes

Kollwitz – por onde o crítico inaugurou em 1933 suas re-


flexões de vida inteira sobre as artes plásticas? Foi esta
última hipótese que comecei a desenvolver por ocasião
de uma homenagem aos seus 80 anos, que, por iniciati-
va de Aracy Amaral, lhe prestaria a Bienal de São Pau-
lo. Sugeri então que o grande desenho de sua atividade
crítica formava um arco de coerência plena que, arran-
cando daquela conferência memorável, se lançava até os
bichos revolucionários de Lygia Clark, passando é claro
pelo encontro decisivo com Calder em meados dos nos
40. Como se sabe, homenagem não é lugar de conversa.
De qualquer modo, ocasião de mais uma confirmação:
ainda na mesa, cochichou-me, “você tem razão, Calder
para mim foi uma revelação”. Em julho daquele mesmo
ano de 1980, fui ao Rio levando comigo uma versão mais
acabada daquela intervenção. Novamente falou-se de
tudo um pouco, menos do meu artigo. Em compensação
ganhei um convite para acompanhá-lo numa visita à ga-
leria de Jean Boghici, onde se realizava uma exposição
em sua homenagem – mais uma. Desta vez, porém, não
digo que houve conversa, mas uma pequena aula parti-
cular magistral: mesmo andando com dificuldade, con-
duziu-me pelo braço comentando obra por obra. Para
mim pelo menos, primeira e derradeira amostra de uma
inteligência crítica exercida ao vivo, recapitulando o sé-
culo moderno com o qual de resto nascera e ajudara a se
formar. Falei brevemente do que andava pensando so-
bre ele e prometi voltar para afinal ouvi-lo sobre o arti-
go. Mas dois dias depois encontrei-o em sua indefectível
cadeira de balanço, muito abatido e silencioso. Já estava
bem doente e dessa vez fui eu quem respondeu – “não im-
porta” –, quando ao se despedir lembrou-se do texto. Não
nos vimos mais.
13
mário pedrosa: itinerário crítico

Em 1991, por ocasião de seu décimo aniversário de


morte, a Secretaria de Cultura do Município de São Pau-
lo, dirigida naquele momento de tantos futuros possíveis,
e por isso relendo com tanta avidez o seu passado ainda
vivo, cuja titular era Marilena Chauí, inaugurava um es-
paço com o nome de Mário Pedrosa, organizando para
tanto um ciclo de debates sobre sua obra. De minha par-
te me comprometi, naquela circunstância, a aprontar os
originais de um livro que sinceramente não imaginava
estar fazendo. Dessa perspectiva conclusiva faltava então
o último capítulo, o fecho de um projeto construtivo cujo
foco só poderia ser a Arquitetura Moderna e seu arrema-
te, Brasília. Dez anos depois me vi, portanto, retomando o
fio da meada pelo seu epílogo.
 
Trata-se apenas disso. Procurei neste livro refazer o iti-
nerário crítico de Mário Pedrosa pelo viés em que o li desde
o primeiro contacto com sua tese de 1949. Inútil dizer que se
restringe a uma visão deliberadamente parcial. Muita coisa
ficou pelo caminho. Busquei eu mesma reparar mais adiante
algumas lacunas, expondo inclusive com algum detalhe seu
ponto de vista sobre os artistas, brasileiros e estrangeiros,
e a particular história da arte que protagonizaram, no seu
modo peculiar de entender a experiência encerrada dos mo-
dernos – ao prefaciar os vols. 3 e 4 das coletâneas que organi-
zei para a EDUSP. No mesmo espírito, num escrito publicado
dez anos depois da primeira edição deste livro, me associei
ao centenário de seu nascimento, situando finalmente Má-
rio Pedrosa na grande linhagem da tradição crítica brasilei-
ra. A letra é outra, mas achei que não destoaria se o incluísse
em Apêndice a esta segunda edição.
Um livro escrito em épocas diferentes e cuja gênese
tem exatamente 25 anos, certamente envelheceu naquilo
14
otília arantes

que tinha que envelhecer. Apesar das rugas, acho, no en-


tanto, que vai sobrevivendo bem e terá sempre a sua utili-
dade para os que se iniciam hoje na obra de Mário Pedrosa
– se não for presumir demais. Limitei-me às correções de
praxe – que não foram poucas, tal a pressa da editora em
entregar o livro no dia 4 de novembro de 1991, nem antes
nem depois. Atualizei as referências em notas. Fiel à mi-
nha intenção didática inicial, mantive as inúmeras remis-
sões e citações, em geral pouco acessíveis na época.
 
(junho de 2004)

15
16
INTRODUÇÃO

O PONTO DE VISTA DO CRÍTICO

Durante a década de 20, Mário Pedrosa foi antes de tudo


um ativista político. Militante comunista, ligado depois
à IV Internacional, só muito esporadicamente exerceu
naquele período a atividade de crítico de arte. Segundo
consta, algumas resenhas de livros, especialmente para o
Diário da Noite de São Paulo, entre 1924 e 1926; um artigo
sobre Villa Lobos na Revue Musicale de Paris, em 1929,
aproveitando sua estadia na Europa; e algumas crôni-
cas, em geral com pseudônimo – por exemplo, no jornal
O Homem Livre (já então nos anos 30). Na crítica de artes
plásticas, estreará de fato apenas em 1933, com uma con-
ferência, logo muito famosa e hoje clássica, sobre a gra-
vurista alemã Käthe Kollwitz. Não precisaria de muito
tempo para se tornar em seguida um dos nossos críticos
mais importantes, inclusive pela projeção internacional,
coisa rara de se alcançar naqueles tempos, e mesmo hoje.
O mínimo que se pode dizer é que foi um intelectual
à altura do seu tempo e do seu oficio. Durante décadas
publicou incansavelmente em periódicos brasileiros e
revistas estrangeiras especializadas, sem que jamais
arrefecesse o ânimo combativo do militante político.
Além de crítico profissional, também lecionou Estética
e História da Arte no Rio de Janeiro e, vários anos mais
tarde, em Santiago do Chile. Assumiu responsabilida-
17
mário pedrosa: itinerário crítico

des várias igualmente no plano da organização da cul-


tura: promoveu e participou do júri de muitos certames
internacionais; integrou a direção da AICA e presidiu a
filial brasileira da mesma associação (ABCA); dirigiu o
MAM de São Paulo, no início da década de 60 e, no mes-
mo período, a Bienal de Artes Plásticas.
Empenhado também no fortalecimento da arte la-
tino-americana – tendo sido muito ligado a Romero
Brest, Torres Garcia e vários outros críticos e artistas
da América Latina – foi Mário Pedrosa quem tomou a
iniciativa de criar, quando exilado no Chile, no tempo
da presidência de Salvador Allende, o IEL (Instituto de
Estudos Latino-Americanos), tanto quanto o “Museu da
Solidariedade”.
Sem contar que, em suas numerosas e prolonga-
das viagens à Europa e Estados Unidos, conviveu com
artistas de renome sobre os quais escreveu estudos im-
portantes, como Calder, Miró e tantos mais, deixando
nestes por vezes uma forte impressão, como confessou
Morandi, que teria dito, depois de um dia inteiro de
conversa com o Crítico: “e muito mais ficaria com ele,
pois é raro encontrar-se uma pessoa tão inteligente e
tão entendedora das coisas de arte”.1 Ainda bastante
jovem, indo a Paris em 1928, para o casamento de sua
cunhada Elsie Houston com François Péret, entrou em
contacto com os surrealistas, especialmente com Navil-
le, com quem já se correspondia, Aragon, e Breton,2 do

1. Segundo depoimento de José Lins do Rego, em O Jornal, RJ, 04.11.51.


 
2. Sobre este episódio e suas amizades com os surrealistas, ver “Surrealismo
ontem, super-realidade hoje”, Correio da Manhã (CM), RJ, 27.08.1967, rep.
em Mundo, Homem, Arte em crise (MHAC). São Paulo: ed. Perspectiva, 1976,
pp. 281-286; p.283.
 

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otília arantes

qual sempre se manterá muito próximo – tendo, entre


outras coisas, traduzido para o português o Manifesto
por uma arte independente, coassinado por Trotsky e
Rivera, e, 30 anos depois desse primeiro encontro, cola-
borado com um verbete no livro L’Art Magique, prepa-
rado pelo mestre do surrealismo para o Clube Francês
do Livro.
Em resumo, sem abandonar a política, Mário Pe-
drosa foi aos poucos assumindo um outro combate, que
exerceu durante quase cinquenta anos, agora no campo
das artes, especialmente das artes plásticas, nele inclu-
ída a Arquitetura — tendo sido aliás um dos primeiros
teóricos da Cidade Nova em construção no planalto
central do país, Brasília. Ao longo desses anos, acompa-
nhando de perto a batalha dos jovens, foi um dos gran-
des responsáveis pela atualização da arte moderna no
Brasil, especialmente no pós-guerra, vindo a ser, como
ele mesmo dizia, um “arauto” das nossas vanguardas
artísticas.
Sob todos os aspectos, Mário Pedrosa foi uma figu-
ra excepcional na história da nossa crítica de arte. Em
1933, sendo o clima geral da opinião marcado pelo mais
agudo sentimento de urgência social, inicia sua carreira
de crítico, como lembrado, com a primeira e desde logo
mais consistente interpretação marxista da arte que se
tentava no Brasil, por ocasião de uma exposição de Kä-
the Kollwitz, em São Paulo. Além do mais, numa pers-
pectiva independente, não alinhada às posições do II
Congresso Internacional de Escritores Revolucionários
em Karkov (1930), que levaram às conclusões desastro-
sas do Congresso de 1934, sobre o “realismo socialista”.
Um ano depois, Mário Pedrosa publica, no Diário da
Noite, um balanço completo da obra de Portinari, onde
19
mário pedrosa: itinerário crítico

retorna à questão do conteúdo social da arte; mas se há


de convir, apesar do interesse e da importância históri-
ca, esses textos ainda refletem sobretudo o ponto de vis-
ta do político. É só a partir de 1940, mais precisamente
a partir da série de ensaios sobre os Murais de Portinari
em Washington e sobre Calder (1942-44), que se dedica-
rá de forma mais sistemática à reflexão sobre questões
estéticas. Sem nunca deixar a militância política, ja-
mais dissociará Revolução Social e Arte de Vanguarda.
Foi assim, voltando do exílio em 1945, o primeiro a es-
timular a arte abstrata no Brasil, além de seu principal
teórico, enfrentando a resistência equivocada da crítica
nacional. Posteriormente, na década de 60, será o pri-
meiro a discernir a emergência do Pós-Moderno, ques-
tionando-lhe, no entanto, os componentes regressivos.
Foi um longo combate travado em geral na grande
imprensa: inicialmente no Correio da Manhã, onde
assume, assim que retorna ao Brasil, uma coluna diá-
ria de “Artes Plásticas”, voltando a colaborar com o jor-
nal na década de 60; publica regularmente de 1950 a 54
na Tribuna da Imprensa, depois, no Jornal do Brasil
(onde, a partir de 1957, será responsável pela rubrica
“Artes Visuais”) e, esporadicamente, em vários outros
periódicos.
Embora nem sempre tenha interpretado da mesma
maneira a questão da autonomia da arte, como político e
como revolucionário foi se dando conta do quanto a luta
pela libertação da humanidade passa pela preservação e
ampliação daquele mínimo de iniciativa de que ela pode
dispor na sociedade capitalista, ou seja, daquelas possi-
bilidades que lhe sobram de “exercício experimental da
liberdade” (expressão predileta de Mário Pedrosa, espe-
cialmente na década de 60, para caracterizar uma arte
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otília arantes

que ele acreditava reatar com as fontes inovadoras das


vanguardas históricas). Foi essa convicção que marcou
sua militância. Quando aqui chegou em 1945, embora
tivéssemos passado por uma revolução modernista e
produzido grande pintura, a arte que encontrou conti-
nuava muito presa à figuração dos anos 20, às lições do
cubismo e do expressionismo e a uma temática de for-
te cunho nacionalista. Sem falar numa certa voga um
tanto ingênua e academicizante, em larga medida origi-
nária dos anos 30 e encarnada sobretudo pelos pintores
que, em algum momento, foram ligados aos grupos San-
ta Helena e Bernardelli (respectivamente em São Paulo
e Rio de Janeiro). Por outro lado, a revolução estética
modernista havia sido finalmente absorvida pela roti-
na das artes e do gosto, o que era bom, como mostrou
Antonio Candido, mas por outro lado, perdeu-se um
pouco rapidamente de vista uma das evidências moder-
nas: que o acerto em arte passa pela elaboração formal,
chave da eficácia social.3 Esta, a essência da lição de Má-
rio Pedrosa: o artista deve buscar na força expressiva
da forma a possibilidade de reeducação da sensibilidade
do homem, de modo a fazê-lo “transcender a visão con-
vencional”, obrigando-o a enxergar o mundo com ou-
tros olhos e, assim, a “recondicionar-lhe o destino”.4 Foi
com esse espírito que preparou sua tese para concorrer
à cátedra de Estética e História da Arte da Faculdade
Nacional de Arquitetura em 1949, inspirada nas teorias

3. Cf. Antonio Candido: “A revolução de 1930 e a cultura”, in A educação pela


noite e outros ensaios, São Paulo: ed. Ática: 1987, pp. 181-198.
 
4. “Arte e Revolução”, Tribuna da Imprensa, 29.03.52 e, em versão um pouco
alterada, no Jornal do Brasil (JB), RJ, 16.04.57, rep. em MHAC, pp. 245-248;
esta versão foi rep. em Política das Artes (PA), São Paulo: EDUSP, 1995, pp.
95-98.
 

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mário pedrosa: itinerário crítico

da Gestalt — Da natureza afetiva da Forma na Obra


de Arte —, estudo esse que deveria causar espécie por
seu caráter inusitado enquanto esforço de elaboração
de uma Estética da Forma.
Ao contrário do que se passava por aqui, Mário Pe-
drosa trazia o exemplo da arte internacional, causando
mal-estar e por vezes irritação ao defendê-la, especial-
mente a arte abstrata, ou ao encorajar os jovens artistas
brasileiros que estavam rompendo com os “mestres”.
Na linha da conclusão do Manifesto de Trotsky, Breton
e Rivera, acreditava que independência da arte e revo-
lução andavam juntas, batalhando para que o Brasil
saísse do isolamento e se alinhasse à arte mais avança-
da do tempo. Não há dúvida que esbarrava nos impas-
ses característicos de um país periférico, onde falar de
independência artística é algo no mínimo problemáti-
co, mas o sopro de ar novo que trouxe obrigou nossos
artistas e críticos a porem em discussão o rumo que a
arte — em nítido refluxo em relação às conquistas van-
guardistas — ia tomando entre nós.
Tais diferenças com a crítica local vão culminar no
seu afastamento da Tribuna da Imprensa, em 1954,
ocasião de um verdadeiro escândalo, quando, em en-
trevista àquele jornal, ousou afirmar que Segall e Por-
tinari, que já haviam tido uma sala especial na Bienal
de 1951, não teriam feito falta na 2a Bienal. Conforme
depoimento do próprio Mário Pedrosa, sua declaração
“fez estremecer as fibras cívicas” da crítica. José Condé
reagiu indignado no Jornal de Letras; ele próprio, por
sua vez, respondeu argumentando que não havia cabi-
mento querer que todos os artistas consagrados fossem
incluídos a cada dois anos na mostra internacional de
São Paulo, além do que, nenhum deles estaria em sua
22
otília arantes

melhor fase ou teria, nesse meio tempo, produzido obras


que justificassem seu retorno à Bienal. No calor da polê-
mica escreveu uma de suas mais contundentes críticas
ao maneirismo e sentimentalismo do último período de
Segall, às incoerências plásticas e ao comercialismo de
Portinari, bem como ao equivocado esforço de retorno
à fase Pau-Brasil por parte de Tarsila (presente à Bienal
de 1953, mas sem reproduzir a performance da primei-
ra, onde foi um dos premiados), ou ao acomodamento e
à repetição de Di Cavalcanti (também ele presente nas
duas Bienais). Impedido de publicá-la na Tribuna, por
censura de seu próprio diretor, Carlos Lacerda, sua res-
posta acabou saindo no Diário Carioca. 5
Àquela altura os ânimos já não andavam tão
exaltados. Inovações importantes principiavam então
a se aclimatar: os Museus de Arte Moderna de São Paulo
e do Rio, juntamente com as Bienais, começavam a
habituar o gosto do público às tendências internacionais
mais recentes. Apesar de tudo, algumas questões
permaneciam tabu, especialmente a da arte abstrata.
Assim, em 1952, em pleno auditório do Ministério de
Educação, num debate sobre o dilema, para muitos
cívico-nacional — “arte abstrata ou arte com temática
social” — Mário Pedrosa pôs em pé de guerra a plateia
ao defender, junto com Flávio de Aquino, e polemizando
com Mário Barata e Campofiorito, a causa da abstração,
ou da arte concreta, como a chamava desde os artigos
sobre Calder. Inutilmente procurou mostrar aos pre-
sentes que a nova arte estava elaborando os símbolos

5. “Dentro e fora da Bienal”, no Diário Carioca, RJ, 14.03.54. Rep. em Dos Mu-
rais de Portinari aos espaços de Brasília (MPEB), S. Paulo: ed. Perspectiva,
1981, pp. 47-54.
 

23
mário pedrosa: itinerário crítico

de uma linguagem plástica inédita, destinada a nos ar-


rancar da atonia perceptiva quotidiana, na esperança
de encurtar a distância que nos separa dos “horizontes
longínquos da utopia”.6 Anotem-se desde já os termos
modernos daquela justificação da arte abstrata: de um
lado, a mais intransigente autonomia, apartando a di-
mensão estética do “chão onde fazemos nossas andan-
ças”;7 do outro, o propósito de vanguarda de extravasar
no mundo vivido aquele conteúdo que precisou de liber-
dade para decantar-se segundo leis próprias.
Um ano depois tinha lugar, no Hotel Quitandinha, a
primeira Exposição Nacional de Arte Abstrata, que logo
será a tendência dominante no Brasil. Sem ter sido o
único fator a contribuir para esta modificação da men-
talidade reinante, sua atuação foi sem dúvida decisiva.
Lembro que foi inclusive o responsável pela criação do
primeiro núcleo “concreto”, em 1947/48, no Rio, com
Ivan Serpa, Mavignier, Palatnik — a que se uniram de-
pois muitos outros, dando origem ao grupo “Frente”, de
cujos desdobramentos surgiu o neoconcretismo.
 
Como se vê, o retorno de Mário Pedrosa não deixou
o meio indiferente. Já fustigara politicamente a ordem
social, agora importunava a intelectualidade estabele-
cida, mesmo aquela que se pretendia progressista, mas
que se sentia atingida nos seus “valores nacionais” e,
sendo a figuração da cor local o principal deles (ao me-

6. Citado na reportagem feita pela Revista da Guaira n.40, Curitiba, setem-


bro de 52: “A forma da alma humana”, pp. 44-49.
 
7. “A máquina de Calder, Léger e outros” em Arte. Necessidade Vital (ANV),
RJ: Liv. ed. da Casa do Estudante do Brasil, 1949, pp. 129-142. Rep. em Moder-
nidade cá e lá (Mcl), São Paulo: EDUSP, 2000, pp. 81-90.
 

24
otília arantes

nos desde a década de 30), olhava com desconfiança


toda arte que relegasse o assunto para segundo plano.
Repudiado à direita e mal visto à esquerda, Mário Pe-
drosa tornou-se, por força das coisas, uma espécie de
mentor dos artistas em início de carreira ou que já tri-
lhavam um caminho fora do eixo consagrado pela tra-
dição modernista.
Não foi, portanto, intempestivo, muito menos um
“novidadeiro” — como queriam seus adversários. Sim-
plesmente dispunha de um senso aguçado de oportuni-
dade histórica, que não era mera questão de preferência
pessoal. A serviço desse sexto sentido para a mudança —
desde que nos quadros permanentes do projeto moder-
no a que sempre permaneceu fiel —, reuniu o que pôde
em matéria de conhecimentos especializados, da Teoria
e História da Arte à Filosofia, passando pela Psicologia
e pela atualização científica, sem falar em sua formação
política de veterano da militância oposicionista. Assim
sendo, sabia que a grande crítica impressionista — e
que fora em grande parte exercida por escritores —, se
já não era coisa do passado, envelhecera e pedia subs-
tituição. Como dizia, o campo da pura expressão se es-
treitara e não conseguia mais acompanhar a sociedade
em processo de modernização acelerada. Não que de-
fendesse uma estética tecnológica — como se falava na
Europa — ou, nesta mesma linha, uma crítica suposta-
mente científica, mas achava que a crítica precisava se
renovar, revendo suas ideias de método e rigor, se qui-
sesse acompanhar o mundo do pós-Guerra.8 É verdade
— reconhecia — que ao contrário das outras formas de
conhecimento, a experiência estética é da ordem da in-

8. “Atividade artística, atividade prática”, JB, 11.03.58.


 

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mário pedrosa: itinerário crítico

tuição, mas hoje como ontem, essa “apreensão imedia-


ta” requer estudo, ao longo do qual se prepara e cultiva
a sensibilidade. Base permanente da função explicativa
da crítica, que apreende a obra pelo outro lado, pelo lado
da consciência.9 Também ponto de partida que sempre
demandou esforço e aprendizado demorado.
São tópicos que nenhum profissional desconhece,
antes de se entregar, muito bem armado, ao que lhe
diz a emoção estética do primeiro contacto. Ora, Má-
rio Pedrosa costumava lembrar que o mundo moderno
agravara exponencialmente essas exigências, rouban-
do o fôlego mesmo do mais tarimbado diletante. Hoje,
como nunca nos tempos modernos, as obras de arte se
afastaram de sua origem coletiva e de sua integração
direta e imediata na vida social, uma “perícia coletiva”,
espontânea e natural, foi definitivamente sepultada.
Vivemos hoje em dia numa “sociedade complexíssima,
internamente dividida, e onde crescem as especializa-
ções, formam-se a cada momento grupos e subgrupos
estanques, estranhos, senão hostis, uns aos outros”.
Num tal contexto de compartimentação generalizada,
em que a arte cada vez mais se dirige a um público res-
trito de especialistas e amadores experts, a capacidade
de “identificação”, que é por excelência a dos críticos,
passa a enfrentar dificuldades crescentes.10 Agravando
ainda mais a situação, a arte abstrata, predominante
depois da Guerra, por assim dizer deixara o crítico sem
assunto. O que falar, para além da descrição formal, de
uma obra que não dava chance à mera alegação temá-

9. “Em face da obra de arte”, JB,19.01.57. Rep. em PA, pp. 168-172, p. 172.
 
10. “Em ordem do dia a terminologia da crítica”, JB, 11.07.57.
 

26
otília arantes

tica, não fornecia qualquer pretexto literário, nenhum


ponto de apoio para a impressão ou a livre associação?11
A divisão social multiplicada, juntara-se uma arte exi-
gente a ponto de renunciar a toda figuração que simples-
mente reproduzisse a imagem literal dessa alienação. O
que fazer? Como não havia solução à vista que desman-
chasse aquelas oposições perversas, restava à crítica a
tarefa da invenção de uma nova linguagem, que reani-
masse a especialização incontornável com a intenção
didática: por certo apenas um ponto de vista individual
de esclarecimento, esperando um dia ceder a vez à re-
cepção coletiva anunciada pelo projeto construtivo da
arte moderna.
Mário Pedrosa não foi obviamente o primeiro a re-
conhecer a necessidade de conhecimentos técnicos, ou
de reunir tão vasta gama de informações, mas talvez te-
nha sido o nosso primeiro crítico profissional, stricto
sensu, acompanhando de perto a produção artística do
seu tempo do ponto de vista de um especialista, fazendo
coincidir de forma feliz a crítica jornalística e a crítica
culta. Já não era mais a crítica ensaística de cunho niti-
damente literário dos mestres modernistas, que embo-
ra tivesse trazido a pintura para o centro do processo
cultural, não se queria especializada (veja-se Mário de
Andrade, que se pretendia um amador e dizia só falar
do que lhe convinha, ou seja, do que trazia água para o
seu moinho, de um projeto estético maior); também não
era o discurso erudito e culturalmente bem aparelha-
do, saído da Faculdade de Filosofia da Universidade de
São Paulo, formado à sombra dos professores franceses,

11. Posfácio a Herbert Read, A arte de agora, agora, São Paulo: ed. Perspecti-
va, 1972, pp. 139-168.
 

27
mário pedrosa: itinerário crítico

mas voltado sobretudo para o nosso passado (um bom


exemplo é Lourival Gomes Machado); muito menos a
crônica de circunstância, a crítica de rodapé, coisa de
autodidata, que, por mais viva e bem escrita que fosse,
não era capaz de inserir a produção local e avaliá-la den-
tro de um quadro mais amplo de referências, históricas
ou mesmo teóricas, e, sem desmerecê-la, ficava quando
muito num bom plano descritivo. De lá para cá, afinou-
-se a peritagem, aprimoraram-se os estudos de história
da arte, multiplicaram-se as especializações universi-
tárias, e sobretudo firmou-se uma tradição moderna
na arte brasileira em condições de balizar as referên-
cias e as reflexões do crítico: muita animação, crítica
profissional abundante e eficiente, mas nenhum “passo
globalizante” (como, bem ou mal, ocorrera com os mo-
dernistas), que autorize a pensar a marcha do mundo
contemporâneo também a partir da crônica das confi-
gurações plásticas que ele vai armazenando.
Ora, sem muito exagero, pode-se dizer que Mário
Pedrosa foi pelo menos o primeiro a reunir as condi-
ções necessárias para dar aquele salto crucial em que
o ponto de vista do crítico poderia alcançar o ponto de
vista da totalidade. (Mas àquela altura, que intelectual
brasileiro poderia de fato dar tal passo?) Em primeiro
lugar, não me parece que, num país em que o imperati-
vo da atualização não podia deixar de ser atendido, se
possa negligenciar o seu périplo de intelectual cosmo-
polita. Tendo viajado pelo mundo todo, estudado na
Suíça, depois na Alemanha, vivido longos períodos na
França e Estados Unidos, algum tempo no Japão e ou-
tro no Chile, sempre a par do que se passava no mun-
do das artes, inclusive no campo da crítica e da teoria,
era com naturalidade que Mário Pedrosa podia cotejar
28
otília arantes

estilos e tendências provenientes de todos os quadran-


tes, e sobretudo colocar em perspectiva internacional a
experiência artística brasileira. Costuma-se dizer que
a crítica chega com atraso em relação às inovações que
vão se processando na arte; entretanto, no Brasil, um
cidadão do mundo como Mário Pedrosa, em mais de
uma ocasião antecipou-se e propiciou a emergência do
novo no domínio das artes plásticas, tornando-se, com
conhecimento de causa e apoio na tradição local, o prin-
cipal responsável pela modernização das nossas artes
na segunda metade do século.
Além do mais, numa terra que condenava os me-
lhores ao autodidatismo, portanto a um trato por vezes
arrevesado com as ideias, Mário Pedrosa foi o primeiro
crítico de arte a saber lidar com a teoria, da qual não sem
razão muitos fugiam. Jamais se entregou a aplicações
chapadas de esquemas passe-partout, muito menos
substituiu a experiência das obras pelo discurso genéri-
co sobre elas; até porque, contrariando o gosto dos con-
terrâneos pela atualidade enquanto tal, foi muito sóbrio
na recepção das doutrinas estéticas, que dominava sem
alarde. Nos idos de 40, era mesmo uma raridade entre
nós um livro composto por brasileiro que pudesse figu-
rar na bibliografia internacional, como foi o caso de sua
tese sobre Gestalt e percepção estética. Mas isto ainda
se devia ao acaso de uma formação multifacetada, não
era fruto orgânico da terra. Assim sendo, não espan-
ta que a crítica de Mário Pedrosa configure aos poucos
uma nova prosa, não uma prosa de escritor no exercício
de uma função supletiva, mas uma prosa especializada
que não obstante (aí também a novidade), não perdia o
sentido histórico e universal da cultura. Por isso mes-
mo, sua crítica nunca foi exotérica: simultaneamente,
29
mário pedrosa: itinerário crítico

dirigia-se ao grande público leitor de jornal e conseguia


falar à imaginação de todo brasileiro bem formado.
Enfim, foi também o primeiro a exercer a crítica de
arte no Brasil nos termos mesmos do projeto moderno em
toda sua abrangência, ao mesmo tempo que elevava a arte
brasileira à condição de capítulo relevante da modernida-
de estética — entendida como dimensão imanente de uma
nova sociabilidade. No Brasil, vanguarda sempre foi sinô-
nimo de experimentação estética, destinada a ofuscar os
passadistas e a emparelhar o país com o que ia pelo mun-
do — no melhor dos casos, a sua estilização primitivista
consagrava plasticamente a cor local. Ora, Mário Pedrosa
tomou-a em sua acepção original e radical de extravasa-
mento estético-social, isto é, descompartimentação e po-
lêmica com o caráter meramente afirmativo da arte: ao
mesmo tempo em que a apanhava em sua intenção antité-
tica, propriamente antiburguesa, sua crítica sempre este-
ve imantada pelo momento utópico em que mundo vivido
e forma artística passariam um no outro. Daí o privilégio
que concedeu ao ciclo “abstrato” do projeto moderno em
curso. E mais, o lugar central ocupado pela Nova Arqui-
tetura em sua crítica. Pode-se dizer que a rigor esta não
é mais do que o comentário do projeto “construtivo” da
arquitetura moderna no Brasil, das primeiras manifesta-
ções modernistas até Brasília, não por acaso lugar utópico
muito próximo da síntese das artes. Algo como um pon-
to de apoio material da arte moderna no Brasil, que por
aí passava a integrar o horizonte internacional da mo-
dernidade — renovando-se em consequência o país, bem
entendido.
Compreende-se finalmente porque, para fazer face
à hostilidade daqueles que o acusavam de sectário, es-
treie na sua coluna de “Artes Visuais” no Jornal do Bra-
30
otília arantes

sil, em 1957, com uma série de artigos sobre a atividade


crítica, apresentando-a — apoiado em Baudelaire —
como uma atividade “parcial, apaixonada e política”.12
Isto é, uma crítica que, para além da ilusão de neutrali-
dade do perito que apenas confere, toma partido diante
da obra, sendo capaz de discernir, comparar, hierar-
quizar, selecionar valores, em função do projeto maior
de emancipação pela arte. Porque “político”, como ele
mesmo esclarece, deve ser muito bem entendido, não
significando, como aliás também para Baudelaire, a
sujeição da arte às exigências extraestéticas do enga-
gement, muito menos aos imperativos doutrinários
da mera ilustração ideológica.13 Numa palavra, criti-
car politicamente é opinar sem reservas no horizonte
de uma ordem social antagônica e compartimentada.
É bem verdade que, no início de sua carreira, chegou
a defender uma arte funcional, “utilitária”. Em pouco
tempo, porém, corrigirá essa demasia dos tempos da
arte dita social, passando a ver, cada vez mais, o social
na arte como resultado do poder comunicativo da for-
ma que, ao se destacar e se contrapor à realidade, a sub-
mete a uma perspectiva imprevista, graças à qual um
novo mundo parece ser antevisto no âmago da percep-
ção estética.
Os anos 70 ainda não haviam se instalado no fim
de linha do pós (de todos os ismos libertários) e Mário
Pedrosa, julgando enxergar alguma coisa além do de-

12. “O ponto de vista do crítico”, JB, 17.01.57. Rep. em PA, pp. 161-164.
 
13. Baudelaire, Oeuvres Complètes, Paris: Pléyade/Gallimard, 1961, pp. 954-
955. Cf. a advertência de Baudelaire contra a arte com fins de propaganda da
“escola burguesa” ou da “escola socialista”, em “Les Drames et les Romans
honnêtes” e “L’Art Philosophique”; Ibid., pp. 620-625 e 1105-1111.
 

31
mário pedrosa: itinerário crítico

clínio irrecusável da arte moderna, confiava no nas-


cimento de uma grande arte coletiva, sintética, como
resultado do alargamento contemporâneo do campo
da comunicação: mais uma vez considerava que arte e
desenvolvimento das forças produtivas deveriam de-
mocraticamente convergir. A desilusão não tardará
quanto ao poder emancipatório de uma tal arte, mes-
mo assim não renunciará à utopia. Embora admitindo
o esgotamento histórico das vanguardas — uma exaus-
tão sem volta —, Mário Pedrosa continuará até o fim da
vida um moderno no sentido pleno da palavra — como
queria Rimbaud.

32
otília arantes

33
 
Capa do número de O Homem Livre, de 5 de agosto de 1933,
em que foi publicado o texto de Pedrosa
“As tendências sociais da arte de Käthe Kollwitz”

34
CAPÍTULO I

A DIMENSÃO SOCIAL DA ARTE

Partidário inconteste de uma grande arte sintética, Má-


rio Pedrosa contudo nunca deixou de reconhecer, como
alertará ao traduzir e publicar, em 1968, o manifesto de
Pierre Restany “Por uma arte total”, que a síntese pro-
posta, cuja matriz era a arte dos povos primitivos, não
pode sobreviver numa ordem econômica de apropria-
ção privada dos meios de produção e de consumo cons-
pícuo, o Gebildet Konsumieren de que já falava Marx.1
Preocupava-o então – numa época de retorno do ideá-
rio vanguardista em plena sociedade de massa –, acima
de tudo, o rumo que ia tomando a arte, sempre mais
sujeita à lei de aceleração das experiências contempo-
râneas, forçada, como estas, a entrar na corrida fatal
dos modelos no mercado, num ritmo muito próximo ao
da “arte industrial” reduzida ao styling – o ápice desse
processo sendo a pop, quando os limites entre a arte e as
commodities teriam definitivamente se esfumado.2 Ao
mesmo tempo, se tinha plena consciência de que ape-
nas numa sociedade diversa da nossa poderia ocorrer
uma arte inteiramente livre, coletiva e total, acredita-

1. “Crise do condicionamento artístico”, no CM, 31.07.66. Rep. em MHAC, pp.


87-92; p. 90.
 
2. Ibid., p. 91; “Quinquilharia e Pop’art”, CM, 13.08.67. Rep. em MHAC, pp.
175-179; e em Mlc, pp.261-267.
 

35
mário pedrosa: itinerário crítico

va igualmente que retirar toda a confiança nas possibi-


lidades dinâmicas e prospectivas da arte burguesa, era
expressão, mesmo nos espíritos mais de esquerda, da
“mentalidade totalitária dominante”.3 Assim, embora
vendo a utopia se distanciar, permanecerá sempre fiel à
máxima do Manifesto por uma arte independente: “A
independência da arte —para a revolução: a revolução
— para a libertação definitiva da arte”.4
O que há de mudar, portanto, no itinerário crítico
de Mário Pedrosa, é o seu juízo quanto às possibilida-
des de uma independência tal da arte que ela viesse a
revolucionar, pelo “dinamismo próprio das formas”
(como teria ocorrido num certo momento com a arte
abstrata – ao menos, era o que acreditara), a sensi-
bilidade do sujeito moderno, de modo a fazê-lo com-
preender e superar as transformações que estariam se
processando no mundo. 5 Feita esta avaliação sobre os
limites a que chegara a arte em meio ao “poder avas-
salador do mercado”, a ênfase de sua crítica, especial-
mente a partir de meados da década de 60, recairá em
grande parte na denúncia da determinação sempre
maior do condicionamento do mundo material sobre
o artista contemporâneo, 6 6 a ponto de transformá-lo
num ser no mínimo ambivalente: um “bicho-da-se-

3. “Arte e Revolução”; v. Introdução, nota 3. Em MHAC, p. 247; em PA, p. 98.


 
4. André Breton e Diego Rivera, México, 25.07.1938. Rep. em Valentim Facioli
(org.), Breton — Trotski, RJ: Paz e Terra/CEMAP, 1985, pp. 35-46.
 
5. “Arte e Revolução”; MHAC, p.247; PA, p. 98
 
6. Cf. os artigos do CM desse período, especialmente de 65 a 67, em Mundo,
Homem, Arte em crise, com destaque para “Especulações Estéticas”, MHAC
pp.121-139. Em Forma e Percepção Estética (FPE), São Paulo: EDUSP, 1995, pp.
347-366.
 

36
otília arantes

da” condenado à produção em massa.7 Numa certa al-


tura de sua crítica, Mário Pedrosa chegou a imaginar
que a dicotomia, já apontada por Marx a propósito
do Paraíso Perdido – e que é no fundo a do trabalho
improdutivo e produtivo no interior do capitalismo
–, fosse passível de ser contornada, desde que o ar-
tista não se curvasse, no ato da criação, aos ditames
do mundo prosaico e filistino do capital, mantendo-
-se, na medida de suas possibilidades, como um ser à
parte. 8 Essa linha de raciocínio levou-o mesmo a afir-
mar, em meados dos anos 40, numa disputa sobre a
funcionalidade ou não da pintura, e contrariando à
primeira vista tudo o que se poderia esperar de um
crítico feroz do capitalismo, que “o individualismo
é a mais sólida virtude social”. 9 Obviamente uma
boutade que talvez se explique pelo clima polêmico
da época, pois obviamente a autonomia da arte pro-
pugnada pelo nosso Autor está muito distante de uma
tal apologia liberal da individualidade. Entretanto,
passados vinte anos, ao fazer o balanço dessa arte
“desenraizada”, reconhecerá que os “poderes de su-
blimação dos puros valores plásticos” que culminara
na arte abstrata, haviam no mínimo se esgotado. A
experiência foi consumada, constata ele, tanto quan-
to a sobrevivência do artista – a menos que este tenha
a capacidade de, como as aves, buscar “novos ventos
que soprem em outras direções”.

7. Cf. “O ‘bicho da seda’ na sociedade de massa”, CM, 14.08.66. Rep. em mhac,


p. 109-114; e em PA, pp.133-138.
 
8. “Crise do condicionamento artístico”; MHAC. p. 92.
 
9. “O destino funcional da pintura”, CM, 1947. Rep. em ANV; pp. 223-227 e em
PA, pp. 57-59.
 

37
mário pedrosa: itinerário crítico

A conclusão a que chega é que já não se estava mais


dentro dos parâmetros do que se convencionara cha-
mar arte moderna, introduzindo em consequência uma
categoria inusitada naquele momento – e não só entre
nós: “Chamai a isso de arte pós-moderna para signifi-
car a diferença”.10 Chegáramos a um estágio em que a
ambiguidade do artista moderno acabava cedendo às
leis implacáveis da “produção em massa, cada vez mais
automatizada e mecânica, na base do mercado e que ex-
clui progressivamente a equação pessoal, humana, da
própria produção”.11 O projeto da arte moderna teria
esbarrado num impasse: ela, como o “mito da revolu-
ção”12 que a acompanhara, teria chegado a uma espécie
de epílogo com o triunfo da arte pop, já inteiramente
sujeita aos ditames da sociedade de consumo.
A partir desse momento, a crítica de Mário Pedrosa
oscilará entre a dúvida e o pessimismo. Sobre “O ‘bicho-
-da-seda’ na produção em massa”, acabará por concluir
(em 1967): “mas onde estão as condições sociais e cultu-
rais que permitam a esses bichos continuar a produzir
incessantemente a sua seda e a usar de seu dom natural
em toda a liberdade? Como conservá-la em sua autentici-
dade originária e como distribuí-la, sem alterá-la na sua
existência intrínseca, ou como doá-la, trocá-la numa so-
ciedade com sedas sintéticas em abundância e entregue
às mobilizações em massa e aos divertimentos em mas-
sa?”13 São estas interrogações que passarão a dominar a

10. “Crise do condicionamento artístico”; em MHAC. p. 92.


 
11. “O ‘bicho-da-seda’ na sociedade de massa”; MHAC, p. 112; PA, p. 136.
 
12. Ibid.
 
13. Ibid ; MHAC, p. 114; PA, p. 138.
 

38
otília arantes

sua crítica e que cederão sempre mais a respostas céticas


quanto à possibilidade de realização desse impulso
para a liberdade, que deveria estar na origem de todo o
ato instaurador da arte. De certo modo, Mário Pedrosa
volta a ser tão pessimista quanto à autonomia crítica da
arte moderna como em 1933, ao analisar “As tendências
sociais da arte de Käthe Kollwitz”. Naquela ocasião ele
propunha, como alternativa, uma “arte proletária”
(provisoriamente utilitária); nos anos 70 ele acabará
por propor a ação política como única forma de romper
o círculo, criando novas condições para que um novo
homem surja e uma nova arte floresça; enquanto isto,
restaria aos artistas autênticos assumir uma posição de
resistência, produzir uma “arte de retaguarda”.14 Logo,
se Mário Pedrosa sempre se mostrou partidário de uma
arte independente, nem sempre interpretou essa inde-
pendência da mesma maneira, variando sua avaliação,
em grande parte, de acordo com o contexto e as mudan-
ças históricas.
 
 
ARTE E MILITÂNCIA POLÍTICA NOS ANOS 30

Em 1970, tendo mais uma vez de fugir da polícia, Mário


Pedrosa aproveitou seu pré-exílio em Cabo Frio para
redigir um minucioso balanço das artes plásticas no
Brasil — “Da semana de Arte Moderna às Bienais” —,
itinerário que reproduz até certo ponto o dele próprio.
Neste quadro situa a exposição da gravurista alemã Kä-

14. Cf. “Variações sem tema ou arte de retaguarda”, conferência apresentada


na 1a Bienal Latino-Americana em 1978 (cópia xerográfica no vol.1, org. Bienal
de São Paulo).
 

39
mário pedrosa: itinerário crítico

the Kollwitz em 1933, no Clube dos Artistas Modernos,


como um evento marcante, e explica as motivações de
sua conferência e a repercussão que teve, recapitulando
os fatos: a revolução de 1930 e 32, crise do café, crise das
instituições; o nazismo vitorioso que aqui assumia a
forma cabocla do integralismo. Enfim, justifica: “o am-
biente de alta tensão social e crise institucional não per-
mitia mais as explosões puramente estéticas e culturais
da Semana”. Embora se possa relativizar essa interpre-
tação daquela primeira hora do Movimento Moder-
nista, que toma ao pé da letra a famosa conferência de
Mário de Andrade, em 1942, certamente uma maior ur-
gência do político na década de 30 havia de interferir na
produção artística, e isso, às vezes, a ponto de se lhe dar
razão: “a polêmica não era mais artística, mas decla-
radamente política”.15 Naquele momento, as preocupa-
ções de Mário Pedrosa também não poderiam ter sido
outras senão aquelas predominantemente ideológicas.
Fazia pouco que se fixara em São Paulo, “ponto ne-
vrálgico da revolução” (comenta nesse mesmo texto),
pois, embora o poder central continuasse no Rio e as
forças sublevadas viessem do Rio Grande do Sul, São
Paulo fora ocupada militarmente e em nenhum esta-
do da Federação o processo de transformação política
e social fora mais acentuado — as convulsões foram ali
maiores, levando à revolta a burguesia e a pequena bur-
guesia, em nome da reconstitucionalização do Estado.
16
E foi justamente para cá que se transferiu no início da
década de 30, vindo do Rio, militante, ocupado em orga-

15. Cf. “Entre a Semana e as Bienais” (in “Da semana de Arte Moderna às Bie-
nais”, 1970, cit.) , MHAC, pp. 269-279, p. 278; PA, pp. 236-248; p.247.
 
16. Ibid.
 

40
otília arantes

nizar a “Liga” (seção brasileira da “Oposição internacio-


nal de esquerda”, trotskista) e logo também empenhado
na formação de uma frente de esquerda contra o inte-
gralismo. Chegando, passa a editar a Luta de Classes
e funda, em 1932, com outros companheiros, uma edi-
tora, a Unitas — a primeira a divulgar no Brasil textos
marxistas, e onde publica Revolução e contrarrevolu-
ção na Alemanha (uma coletânea de textos de Trotsky
selecionados, traduzidos e prefaciados por ele, Mário
Pedrosa). Colabora também na criação de O Homem
Livre, jornal da “Frente Única antifascista”, dirigida
por Geraldo Ferraz. Baleado na grande concentração
contra os integralistas, na Praça da Sé, em outubro de
1934, volta para o Rio, donde acaba tendo que se exilar.17
Foi nesse período, dentro desse espírito e com essa dis-
posição, que muitos dos artistas e críticos se puseram
a campo na batalha política, com os instrumentos que
tinham à mão. É ainda nosso Crítico quem resenha os
fatos nesse balanço de 1970 que estamos citando:
“Foi por esse tempo que apareceram os primeiros ar-
tistas brasileiros com mensagem social consciente.
Ao lado de um Osvaldo Goeldi surge mais um moço,
um novo gravador de força, Lívio Abramo. É ele o pri-
meiro artista, ao que saiba, a transpor para a xilo o
tema da luta de classes: o operário na fábrica, o ope-
rário coletivamente em protesto, a velha fábrica de
tecidos com seu perfil recortado, grades e chaminés
eretas como uma infantaria em face do inimigo (...).
Havia nos xilos e linóleos de Abramo, num desenho

17. Sobre o período cf. Paulo Mendes de Almeida, De Anita ao Museu, São Pau-
lo: ed. Perspectiva, 1976; e Aracy Amaral, Arte para que?, SP: ed. Nobel, 1985.
Sobre Mário Pedrosa, cf. “Dados biográficos - Cronologia”, em PA, pp. 349-363.
 

41
mário pedrosa: itinerário crítico

límpido e forte, um acento caloroso de solidariedade


de classes. Por esta época, Tarsila estava em sua fase
social quando nos deu algumas telas como Operários
e Segunda Classe em que transparecem todas as suas
simpatias proletárias (...). A grande pintora pagou es-
sas simpatias com a prisão em que foi jogada por sua
própria classe, como outro pintor ilustre, Di Caval-
canti, e vários intelectuais, durante os dias do levante
paulista de 32”.18

Oswaldo Goeldi,Peixe vermelho, c.1938


xilografia sobre papel, 20,8 x 27,4 cm
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

18. “Entre a Semana e as Bienais”; loc.cit.


 

42
otília arantes

 
Livio Abramo, Mulheres-Itapecerica, 1940
xilografia sobre papel,23 x 28 cm
Colecão de Artes Visuais,Instituto de Estudos Brasileiros da USP
 

Pouco antes, nesse mesmo texto, referia-se à conver-


são de Oswald ao Partido Comunista e a criação do CAM
“ao lado e em oposição à Sociedade Paulista de Arte Mo-
derna, fundada por antigos promotores da Semana, já
agora acusados de grã-finos, aristocratas e reacionários”.
Seu organizador e animador, Flávio de Carvalho,
“intelectual de alta têmpera, artista de múltiplas
possibilidades, rico e desabusado, oriundo de velha
família paulista, enche o meio paulistano com os
ecos de suas atividades e desafios (...). O seu CAM,
até ser fechado pela polícia sob o velho pretexto de
subversividade e orgias, foi uma tribuna de debates
bastante livre”.19

19. Ibid.; MHAC, p. 278; PA, pp. 246-247.


 

43
mário pedrosa: itinerário crítico

Durou apenas um ano, mas de intensa e provocativa


programação. A exposição de Käthe Kollwitz e a confe-
rência de Mário Pedrosa se inscrevem nesta sucessão
de eventos em que o debate ideológico é central: de Caio
Prado Jr. e Tarsila, falando sobre a União Soviética de
onde haviam chegado há pouco (a artista, referindo-se
especialmente à arte proletária), ou Jorge Amado, ex-
pondo a vida numa fazenda de cacau, a Siqueiros que,
de acordo com depoimento do próprio Flávio de Car-
valho, falou durante quatro horas para um público
hipnotizado.20
Segundo Oswald, que na época lia no CAM trechos
de sua peça O homem e o cavalo, a conferência do ar-
tista mexicano teria gerado muita polêmica e lançara a
primeira dissenção séria que viria a perturbar a unida-
de da ofensiva modernista. Esse conflito será registra-
do em seu romance Marco Zero: aparece no confronto
entre o arquiteto Jack de São Cristóvão, defensor do
modernismo sem compromisso, e o pintor Carlos de
Jaert, que faz uma pintura social e defende o classicis-
mo em sentido largo — “a arte que apoia uma socieda-
de e se ajusta a um ciclo histórico”.21 O volume final da
trilogia – Chão – explicita de forma muito clara as in-
tenções ideológicas do próprio romance, definido pelo
autor, já no post-scriptum ao primeiro – A Revolução
melancólica – como um “afresco social”. Chão só veio
a ser publicado em 1945, mas o romance, iniciado dez
anos antes, pretende na verdade ilustrar, “levando às
últimas consequências, problemas, sugestões e ideias

20. Ibid.
 
21. Oswald de Andrade, “Aspectos da pintura através do Marco Zero”, in Pon-
ta de Lança, RJ: Civilização Brasileira, 1972, pp. 103-110 (OC, vol. 5); p. 104.
 

44
otília arantes

que surgiram no caos subsequente à crise do café de 29


e às revoluções armadas”.22 É justamente quando incha
o fator ideológico nas nossas artes e a lição de Kollwitz,
de Isqueiros e dos demais muralistas mexicanos cai em
terreno fértil.
Mas nem a conferência de Mário Pedrosa, nem a
obra de Käthe Kollwitz se prestam a tais alegações pu-
ramente ideológicas, como não têm nada a ver com o
que se veio a chamar de realismo socialista. Militante
de velha data e tendo acompanhado de perto as discus-
sões sobre tais assuntos, na República de Weimar (quan-
do pela primeira vez, entrou em contacto com a obra de
Kollwitz), ou em Paris, entre os Surrealistas (quando a
questão maior era a Revolução), achava-se bem distante
do sectarismo das posições defendidas no Congresso de
Kharkov, em 1930. Recapitulemos, pois, o episódio e a
conferência que o acompanhou — fato marcante não só
na carreira de Mário Pedrosa, mas na crítica e na arte
brasileiras da época.23
 
 
A “ARTE SOCIAL” DE KÄTHE KOLLWITZ

Com a exposição, no fatídico ano de 1933, Käthe Kollwitz


firmava-se de vez em nosso meio artístico, passando a
exercer grande influência sobre os jovens gravuristas
que iniciavam sua carreira sob o signo da “função social”
da arte — alguns dos quais referidos há pouco. Não era a

22. Ibid. Ver o diálogo de Carlos Jaert com Jack, em Chão, RJ: Civilização Bra-
sileira, 1972; pp. 134 a 140 (OC, vol. 4).
 
23. “As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz”, publicado em o O Homem
Livre, julho de 1933. Rep. em ANV, pp. 7-34 e em PA, pp. 35-59.
 

45
mário pedrosa: itinerário crítico

primeira vez que o expressionismo e a artista alemã cru-


zavam o caminho da arte moderna brasileira. Três anos
antes, Käthe Kollwitz participara de uma mostra de gra-
vura expressionista alemã, responsável, pelo menos em
parte, por um curioso fenômeno local de retorno de um
impulso estético reprimido: o expressionismo, que jus-
tamente marcara o início de nossa revolução nas artes
plásticas. Depois de um período recalcado pela preponde-
rância das vanguardas francesas mais explosivas, estava
novamente na ordem do dia, só que agora em chave social
acentuada. O que parecia mais uma voga, de fato exprimia
uma tendência profunda, como atestava sua recorrência,
embora aguçada naquele momento. Num país com os pro-
blemas de afirmação nacional como o nosso, não se pode
ignorar por muito tempo, a despeito de seus equívocos, a
exigência, muito arraigada em nossa intelligentsia, de se
delegar também às artes e à literatura uma parcela do pro-
jeto coletivo de dar forma a uma sociedade condenada pelo
seu passado colonial. A preocupação permanente, ainda
que por vezes abafada, com a função social da arte, vinha,
portanto, a ser parte integrante dessa obsessão nacional.
A combinação expressionista de crítica social e pro-
fecia redentora, experimentação plástica moderna e
reativação de algumas linhas de força da mentalidade
pré-capitalista, pareceu a muitos sob medida, a ponto
de Mário de Andrade ter considerado o expressionismo
como a configuração artística que mais nos convinha,
chegando até a rastrear a sua gênese na obra de Aleijadi-
nho — como de resto, os teóricos alemães em relação a
Grünwald, por exemplo. O expressionismo trazido por
Anita Malfati na década de 10, ganhara novo e decisivo
impulso quando Lasar Segall fixou residência no Brasil;
mesmo assim, a década de 20 foi dominada pelo segundo
46
otília arantes

Cubismo e pela Escola de Paris — onde os nossos artistas


iam passar largas temporadas. A partir de 30 mudam as
referências; premidos por várias circunstâncias, espe-
cialmente as de ordem política e econômica citadas há
pouco, no texto de balanço da época feito por Mário Pe-
drosa, nossos artistas se voltam para outras fontes de
inspiração: justamente os gravuristas alemães, a sátira
social praticada pela Nova Objetividade e o muralismo
mexicano. Nesse clima de opinião, alimentado por um
novo sentimento de urgência social, abre-se a exposi-
ção de Kollwitz.
Pelos mesmos motivos, fez data também a conferên-
cia de apresentação da artista feita por Mário Pedrosa 24
— alguém tentava pela primeira vez, no Brasil, de modo
sistemático e razoavelmente articulado, não só uma
interpretação marxista da arte, mas uma interpreta-
ção não alinhada com as conclusões do Congresso de
Kharkov, cujo sectarismo levara, por exemplo, um Ara-
gon a romper com o Surrealismo e prenunciava a linha
justa jdanovista (para se ter uma ideia da força persu-
asiva da nova ortodoxia, lembro as outras conferências
que tiveram lugar no mesmo ano, no próprio CAM).
Alguns estudiosos do período preferem datar o nas-
cimento da crítica marxista da arte entre nós, da fala
do escritor Aníbal Machado abrindo uma exposição em
1935, intitulada “Arte Social”. Não se trata apenas de
insistir na precedência de Mário Pedrosa neste episó-
dio tão importante na história da nossa crítica de arte,
mas de reconhecer também que o marxismo já não era
o mesmo. Fora-se o tempo em que a Revolução de 17 e a
arte de vanguarda andavam juntas. O equívoco estético

24. Texto cit.


 

47
mário pedrosa: itinerário crítico

desastroso em que consistia o “realismo socialista” era


o indício mais eloquente da degradação ideológica do
marxismo soviético. A referida fala de abertura já era
um caso de jdanovismo assumido: na verdade, o que
de fato se inaugurava publicamente em 1935 era o longo
reinado, em nossos círculos artísticos mais politizados,
da retórica heroico-triunfalista daquela doutrina esté-
tica sumária. É bom lembrar que não era fácil contra-
riá-la, tal a ascendência política e moral da ortodoxia
soviética naqueles anos de resistência e ascensão do
nazismo. Inclusive membros da LCI (da qual fazia parte
Mário Pedrosa) chegaram a apoiar a política de frente
preconizada pelos comunistas. 25
Assim sendo, assinalar o caráter precursor da ten-
tativa de conceituação marxista empreendida pelo
Crítico é sobretudo recordar que nem sua conferência,
muito menos a arte de Käthe Kollwitz, se prestam a
esse tipo de doutrinarismo, tendência liquidacionista
contra a qual, defensor intransigente da arte avançada
e sem concessões, se baterá até o fim da vida. Mesmo as-
sim, uma importante linhagem de gravuristas, firma-
da sobretudo depois da guerra — como o “grupo dos 19”,
por exemplo — continuou a reclamar para a retórica de
propaganda dominante em suas obras o patrocínio da
artista alemã. No mínimo uma infidelidade flagrante
às lições de Kollwitz, tão bem interpretadas por Mário
Pedrosa. Tais ressalvas não visam esvaziar o sentido
político daquela mostra, sobretudo naquele ano em que
os nazistas chegavam ao poder e a artista era excluída

25. Fiel à posição oficial da LCI, Mário Pedrosa opôs-se vigorosamente à “fren-
te popular” propugnada pelos comunistas (devo este esclarecimento, que cor-
rige minha primeira versão dos fatos, a Dainis Karepov, a quem agradeço).
 

48
otília arantes

da Academia de Belas Artes da Prússia. Mas o enorme


e evidente efeito político daquelas obras não provinha
de modo algum da ilustração de um conjunto de ideias
programáticas, mas brotava de uma experiência social,
real, marcada pela dor mais profunda e expressa antes
de tudo pelo tratamento dado às formas e aos materiais,
o que os tornava exemplares como arte de combate, ja-
mais de propaganda.

Käthe Kollwitz, As crianças da Alemanha estão famintas, 1924


litogravura, 43 x 29 cm
Galeria Nacional de Washington

49
mário pedrosa: itinerário crítico

  Na primeira parte da conferência, Mário Pedrosa se


serve de toda uma conceituação marxista, de expressões
tais como determinismo histórico, modos de produção
etc., para refazer a história da arte do ponto de vista das re-
lações homem-natureza de acordo com o itinerário básico
do Capital. Mas essa não é a única fonte, quando mais não
seja, pela ausência de uma estética propriamente dita nos
textos de Marx e Engels. É quando Hegel, Grosse ou Semper
vêm em socorro e, possivelmente, ao tematizar a questão
central das relações arte-natureza, outros teóricos da Ein-
fühlung, como por exemplo Worringer (a quem citará mais
vezes, em outras ocasiões, porém fazendo reparos à sua po-
sição espiritualista). Ora, a teoria de Grosse funda-se justa-
mente no que poderíamos chamar de Einfühlung objetiva,
ou seja, o fundamento da arte estaria na natureza e não na
subjetividade — o que viria acrescentar substrato mais ma-
terialista à evolução da arte descrita por Hegel e retomada
em vários pontos por Mário Pedrosa. Mas o que fornece, de
fato, na conferência, as coordenadas básicas é o tecnicismo
de Semper: da figuração ao ornamento, a passagem se da-
ria em função da complexidade maior dos instrumentos
de domínio da natureza por parte do homem, ou seja, da
técnica. A tal ponto que, segundo Mário Pedrosa, muitas
das formas geométricas ou decorativas, posteriormente
integradas ao domínio artístico, teriam surgido “não de
aptidões desinteressadas do espírito mas têm mais mo-
destamente sua origem numa estilização forçada, imposta
pelas condições materiais do trabalho” (toma assim, na po-
lêmica Riegl-Semper, o partido deste, ou seja, não teria sido
a Kunstwollen de diferentes épocas, mas os materiais e as
técnicas disponíveis, a determinar a evolução dos estilos).26

26. Ibid.; ANV, p.8-10; PA, pp. 36-39.


 

50
otília arantes

Com o passar do tempo, contudo — como discorre Má-


rio Pedrosa especialmente na era capitalista, teria se dado
um distanciamento crescente entre o homem e a nature-
za, do mesmo modo que entre o progresso técnico e a inte-
gração do sujeito ao mundo da cultura. Separação entre o
homem e o trabalho social que acaba por gerar uma cisão
incontornável entre ele e suas próprias conquistas:
“O trabalho distancia-se das condições hu-
manas e a técnica vai se tornando um siste-
ma à parte, para si, independente do homem.
O trabalho, que no início era adaptado a este,
começa a exigir, pelo contrário, que o homem
se adapte a ele. O novo aparelho mecânico já
não é mais o antigo utensílio, acessório do or-
ganismo humano, torna-se porém o instru-
mento de um outro instrumento mecânico.
E o homem, manejador do próprio utensílio,
vai tornar-se depois um instrumento, mani-
vela de um utensílio que criou”.27

O mesmo se passa no plano da arte: embora a técni-


ca e suas invenções prodigiosas continuem a inspirar e
encher o cérebro dos artistas modernos, uma divisão,
marcada pela dualidade burguesa, impede que a “sede
ardente de síntese, contida em toda manifestação ar-
tística se dê, e faz com que esbarre em obstáculos in-
transponíveis, que as condições produtivas, jurídicas
e educacionais da ordem reinante não permitem que
sejam vencidos”. Responsável, segundo o crítico, por
uma inevitável divisão estética e social do campo artís-
tico: de um lado, aqueles artistas absorvidos por essa

27. Ibid.; ANV, 11; PA, p. 39.


 

51
mário pedrosa: itinerário crítico

segunda natureza, superposta à primitiva, moderna e


mecânica; de outro, os que abandonam as pesquisas pu-
ramente técnicas, para ver “a sociedade ao vivo, na sua
dramática fermentação” e que “vão buscar os elemen-
tos de uma expressão poética também moderna nas
relações contemporâneas”. Só assim estariam restau-
rando a sua dignidade antiga e representando uma fun-
ção social, “embora talvez com prejuízo de sua pureza
estética”.28 São as obras que nosso conferencista desig-
na como de finalidade estética “mediata”, entre as quais
inclui as de Käthe Kollwitz, mas onde, mais do que em
qualquer outra estaria a se anunciar uma síntese fu-
tura, embora em negativo, pela força da denúncia. Ou
seja, expressam uma consciência de classe que se inicia
“pelo sentimento de solidariedade na desgraça e assim
sua primeira expressão toma forçosamente uma forma
defensiva”.29
Esta divisão do campo artístico contemporâneo em
duas metades estética e socialmente antagônicas, embora
possa parecer de sabor maniqueista, tinha por finalidade
sublinhar a singularidade de Käthe Kollwitz — uma arte
cujo destino não está na própria arte. Mais exatamente,
opunha duas relações artísticas globais, que ele sabia po-
derem ser complementares, mas que resultavam de uma
divisão real da sociedade, e que se expressavam através de
uma interpretação inteiramente diversa do movimento
coletivo que vinha se alastrando, com a força que se sabia.
Conforme explicava ao público reunido no CAM, isto se
dava não por um capricho de moda ou idiossincrasia de

28. Ibid.; ANV, pp. 21-22; PA, pp. 45-48.


 
29. Ibid.; ANV, p. 31; PA, p.53.
 

52
otília arantes

alguns artistas isolados, mas por refletir um resultado


histórico, em última instância uma “imposição das forças
produtivas e culturais” cujo desenvolvimento desencon-
trado definia a fisionomia atual da sociedade. Um movi-
mento de resto inacabado, daí a divisão que lhe serve de
critério na classificação geral dos artistas.
Na primeira família artística, Mário Pedrosa censu-
rava uma espécie de estetização da “natureza mecâni-
ca”, algo da ordem da idolatria do “moderno” enquanto
tal que, mesmo nos mais disciplinados, redundava num
“jogo pueril de formas e naturezas mortas”. Embora
colada ao progresso técnico, essa arte ultramoderna
carecia de perspectivas, condenada, no limite, ao her-
metismo e ao consumo indiferente de uma casta para-
sitária, de sorte que o ciclo moderno da arte, “no meio
das fabulosas miragens de aço” que o emolduravam,
parecia completar-se com uma recaída paradoxal das
especializações características da era burguesa em seus
primórdios. De costas portanto para a sociedade in-
dustrial e sua ambivalência, imobilizada em imagens
apologéticas mesmo quando iconoclastas, o artista
moderno acabava perdendo o rumo nas pesquisas pu-
ramente técnicas que os novos tempos lhe facultavam.
E note-se que o juízo crítico de Mário Pedrosa podia
abarcar igualmente as manifestações extremas desse
campo, tanto o primeiro futurismo quanto a apoteose
kitsch modernista que se preparava com o “realismo
socialista” a caminho.
Do outro lado, uma nova expressão dessa mesma sen-
sibilidade moderna. No lugar do fetichismo, uma espécie
de austeridade materialista diante do espetáculo da vida
moderna: artistas que vão buscar os elementos de uma
configuração poética, tão moderna quanto a anterior, nas
53
mário pedrosa: itinerário crítico

relações sociais contemporâneas. Em poucas palavras,


artistas que procuram adotar o ponto de vista do proleta-
riado, isto é, da principal voz no capítulo da modernização
social, de destino ainda incerto. E por isso mesmo, na pro-
dução desses artistas, a finalidade estética, concluía o Crí-
tico, só podia ser uma dimensão mediata, entendendo por
tal finalidade, enquanto horizonte intransponível, a con-
sagração da “dualidade burguesa”, reino sem conflito da
arte separada e confinada no domínio da bela aparência.
Aproximando-se do proletariado, esses artistas que Mário
Pedrosa passa a chamar agora de “sociais”, sem renegar
com isso suas convicções antioficialistas referidas acima,
anunciam enfim a supressão daquele dualismo, a “síntese
futura entre a natureza e a sociedade”. Mais uma vez: sendo
entrevista na forma negativa da ausência, essa “antecipa-
ção intuitiva da sensibilidade” não poderá servir jamais de
caução para qualquer positividade, à direita e à esquerda.30
Nos termos desse confronto, sem dúvida extrema-
do e sectário para o gosto atual, Mário Pedrosa poderá
então incluir Käthe KolIwitz entre os “artistas sociais”,
tomando sua arte como um caso exemplar de “realis-
mo proletário”.31 Uma arte portanto cujo destino não
está na própria arte, mas na experiência social do pro-
letariado: uma arte que ostensivamente toma partido
na luta de classes, não esconde seu vezo instrumental,
nem seu caráter transitório (como é transitória a pró-
pria arte proletária) e que não obstante alcança uma
“assombrosa universalização”.32

30. Ibid.; ANV, p.23; PA, p.46.


 
31. Ibid.
 
32. Ibid.; ANV, p. 25; PA, p. 49.
 

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otília arantes

Käthe Kollwitz, As mães, 1922-23


xilografia sobre papel, 34 x 40 cm
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
 

Efeito da generalização produzido pela forma esté-


tica bem-sucedida, ou decorrência da posição central
das classes oprimidas, chamadas a decidir o destino da
sociedade moderna? Em 1933, Mário Pedrosa respon-
dia a esse falso dilema sustentando que humanidade,
arte universal e classes espoliadas recobriam-se sem
deixar resto. E para melhor ressaltar a universalidade
daquelas pequenas litogravuras, cuja força socializa-
dora lhes confere “proporções coletivas de um afresco
medieval”, o conferencista destacava justamente a ten-
dência social dominante na arte de Kollwitz: a fidelida-
de à sua classe, ao mundo pobre, “simples e banal” dos
despossuídos.

55
mário pedrosa: itinerário crítico

“Filha de pedreiro, continua através de toda sua


longa vida, filha de pedreiro, membro de família
proletária. Nem os triunfos de sua carreira, nem o
esnobismo das modas, nem os sucessivos grupos e
escolas técnicas que foi encontrando pelo caminho
afastaram-na um instante dessa fidelidade”.33

Desse traço permanente da consciência de classe, Má-


rio Pedrosa fazia derivar a relativização da atitude esté-
tica. Pelo menos desde o naturalismo, a vida das massas
proletárias tornara-se tema de representação artística
sistemática, mas ainda não se conhecia na história da arte,
lembrava, uma artista que, como Käthe Kollwitz, conver-
tesse a vida coletiva e sentimental do proletariado como
classe em causa primária de sua percepção plástica: sua
atitude diante das classes populares não podia ser mais
apenas estética, era um sistema de vida e, sendo um impe-
rativo social, já era um atitude política.
Nesse ponto de seu raciocínio, o Crítico queimava
todos os sinais, mesmo para os padrões daquela época
maximalista, para não falar nos de hoje, chegando a ex-
plicar a maturidade enfim conquistada pela artista, que
deixara para trás o naturalismo oficial, em função da
organização crescente da classe operária alemã: “sur-

33. Ibid.; ANV, p. 28; PA, p.50. Cabe aqui uma ressalva, que não retira contu-
do a força do argumento: essa afirmação quanto à origem proletária de Käthe
Kollwitz segue as traduções que atribuem a seu pai a profissão de pedreiro, ao
invés de construtor (conforme correção feita por Eliana de Sá Porto, em sua
tese de doutoramento, defendida na ECA-USP, em 1993: Uma aproximação à
obra de Käthe Kollwitz) – donde os equívocos, tanto de Mário Pedrosa quanto
de Mário de Andrade. Além de construtor, seu pai, como seu avô, teria sido
pastor da Primeira Comunidade Religiosa Livre da Alemanha (idem, p.5). De
qualquer modo, de que se tenha notícia, manteve-se sempre do lado dos opri-
midos, tendo se tornado uma simpatizante da causa espartaquista. Depois de
casada, foi morar com o marido médico, num bairro pobre ao norte de Berlim,
onde ambos se dedicavam às populações mais carentes.
 

56
otília arantes

giram assim simultaneamente a primeira organização


revolucionária de classe, o seu partido político que era
então a socialdemocracia, e a sua primeira grande ar-
tista na pessoa de Käthe Kollwitz”34 — cuja obra pro-
gride no mesmo ritmo em que se processa a tomada de
consciência de classe. Como este projeto se inicia pelo
sentimento de solidariedade na desgraça, é natural que
sua primeira expressão estética tome a forma defensi-
va, de que falava Mário Pedrosa, tendo em mente a vida
anônima dos trabalhadores nas obras da artista; mes-
mo assim, insiste ele, o instinto de classe que as anima
carrega consigo uma “noção de vida mais profunda e
mais verdadeira do que afeta possuir uma filha de mi-
lionário que cultiva as letras ou uma qualquer prince-
sa Bibesco”. A estocada final é reveladora, sobretudo
porque se repete, mais desenvolvida, logo adiante, a
pretexto de caracterizar a sensibilidade cósmica do
proletariado, encarnada por Käthe Kollwitz: tal sensi-
bilidade, sendo imensa, “não tem refolhos inacessíveis
nem chiquês interiores, não tem apuros de sentimento
nem requintes intelectuais”.35 Reveladora sem dúvida
do clima político de alinhamentos radicais daqueles
anos 30, mas não se pode descartar a impressão de que
Mário Pedrosa carregava um pouco propositalmente
na tinta proletária para espicaçar, ou mesmo sugerir, a
sempre alegada fusão entre modernismo e grãfinismo,
contra a qual o melhor antídoto poderia ser encontrado
justamente no “realismo proletário” da artista alemã,
em dosagem compatível com a realidade local.

34. Ibid.; ANV, p.29; PA, p. 52.


 
35. Ibid.; ANV, p. 32; PA, p. 54.
 

57
mário pedrosa: itinerário crítico

Passando à análise temática — obrigatória quando


se trata de “arte social” —, e detendo-se principalmente
no tema da guerra, cujo tratamento teria inspirado, a
seu ver, os mais notáveis desenhos e gravuras da artis-
ta, nosso conferencista cuidava sobretudo de esclare-
cer a origem da “tremenda força comovente” daqueles
quadros.36 Novamente não temia ser taxativo: do ponto
de vista da arte social — e era este o caso —, a partir de
um certo limiar técnico definido pelo estado das artes
no momento, a qualidade estética passa a depender so-
bretudo da posição social que se ocupa. Uma coisa ali-
ás totalmente impensável no plano da representação
artística mais exigente —, a guerra vista pelas classes
dominantes, do lado de cá da barricada: deste lado, não
há proeza estética, não há domínio técnico que salve
da nulidade acadêmica a filantropia das trincheiras, o
patriotismo de generais gordos e estrelados etc., salvo,
justamente, a “sátira vingadora” de um George Grosz,
por onde volta a grande arte e com ela, assegurando-lhe
a envergadura, a universalidade virtual em que se re-
solve o ponto de vista dos dominados.37
A guerra de Käthe Kollwitz, pelo contrário, “só tem
sacrifícios anônimos e monstruosos”, uma catástrofe
que se abate sobre o povo desarmado.38 Tampouco foi
um assunto que se impôs por razões humanitárias ób-
vias: Mário Pedrosa observa então que no início de sua
carreira, no tempo das águas-fortes sobre a rebelião
dos tecelões, os temas tinham um caráter episódico ou

36. Ibid.; ANV, p. 26; PA, p. 49.


 
37. Ibid.; ANV, pp. 26-29; PA, pp. 50-52.
 
38.Ibid.; ANV, p.27; PA, p. 50.
 

58
otília arantes

histórico ainda subordinado à anedota, mas que aos


poucos vai se universalizando, ganhando em capaci-
dade de generalização e se transformando, por assim
dizer, num assunto só — o povo, a fome, a morte, os
desempregados, os prisioneiros, a manifestação pro-
letária etc. Uma decantação temática contemporânea
do alargamento da consciência de classe. Dentre esses
emblemas expressivos elementares, pairando sobre
a vida sem nome dos explorados, a guerra dá o tom,
ponto terminal da alienação, diante da qual, insiste
Mário Pedrosa, revela-se o traço peculiar da artista,
a adesão sem lacunas à classe oprimida. Resumindo:
nessa linha sem concessões, depois de assegurar que a
consciência proletária encontrara no marxismo o seu
momento de esclarecimento científico, acrescentava
que a tentativa histórica de Käthe Kollwitz dava-lhe
finalmente expressão artística adequada; a ela viria
juntar-se depois a sondagem satírica de Grosz, que vol-
ta a dar como modelo de apodrecimento das classes
superiores.39
Tudo que o fio condutor da fidelidade de classe puxa
para o primeiro plano, a análise de procedimentos
também revelaria. Sem desenvolver este tópico meto-
dológico implícito no teor da conferência, nosso Críti-
co percorre o caminho da forma ao fundo e vice-versa,
pelo menos em dois momentos da exposição, sem dei-
xar porém de frisar que as razões das soluções plásti-
cas se encontram na tendência social que expressam:
uma vez, observando que a ausência da classe inimiga
das gravuras da artista dá-se sob a forma da fatalidade

39. Ibid.; ANV, p.33; PA, p. 54.


 

59
mário pedrosa: itinerário crítico

social, presente no “ambiente tenebroso” e indistin-


to — um fundo falso que envolve suas figuras;40 outra
vez, notando a intensidade dramática da madeira vio-
lentada por um traço de “rispidez quase hostil” — “sim-
plificação comovente” da matéria gravada, na qual
costuma-se identificar a sua linha interior de “expres-
são do próprio material”.41
A arte social de Käthe Kollwitz, embora de origem
e vocação popular, educou-se na escola da norma culta
— frequentou academias e ateliês em Berlim e Munique
—, para em seguida dar-lhes as costas, prosseguindo
em seu rumo inalterado e inalterável: essa fibra era o
que mais prezava Mário Pedrosa.
 
 
O MURALISMO DE PORTINARI

Um ano depois daquela conferência histórica, enfren-


tará a questão da “arte social” na figura de um artista
nacional, Cândido Portinari. Num longo artigo, cujo tí-
tulo — “Impressões de Portinari” — já se apresenta sem
maiores pretensões teóricas ou analíticas, Mário Pedro-
sa parece abandonar o projeto de uma “arte proletária”.
O vínculo entre dimensão estética e ponto de vista de
classe já não é mais evidente. Num certo sentido a for-
mulação do problema dá um passo atrás, torna-se mais
convencional, rompendo com o ímpeto revolucionário
do ano anterior. Não terá sido fortuita a associação de
Portinari a essa mudança de rumo. A partir de então o

40. Ibid.; ANV, p.3l; PA, p.53.


 
41. Ibid.; ANV, pp.30-31; PA, p.53.
 

60
otília arantes

juízo sobre as fases sucessivas de Portinari definirá em


larga medida a própria trajetória crítica de Mário Pe-
drosa. Vejamos os dois primeiros passos.
O primeiro deles foi em parte obra do acaso: per-
seguido pela polícia depois dos acontecimentos da
praça da Sé em 1934, Mário Pedrosa refugiou-se numa
galeria da Barão de Itapetininga, na qual se realiza-
va a primeira mostra do pintor de Brodósqui em São
Paulo. Tempo suficiente para retomar suas reflexões
sobre as artes plásticas. Havia de ter em mente, escal-
dado pelo ocorrido, que o país do artista é periférico e
se encontrava em fase de alinhamento (mimético ou
não, pouco importa) com os regimes autoritários da
Europa. Em consequência, exigirá do pintor mudança
de orientação e de recursos plásticos, chegando a su-
gerir o afresco mural. Em sua avaliação, teria faltado
a Portinari, ao menos em sua primeira fase, em que se
achava ainda perdido num certo “idealismo formal,
abstrato”, a “realidade ponderável, concreta da maté-
ria”. Matéria social, por certo, pois o Crítico ainda não
rompera inteiramente com a perspectiva mais drásti-
ca anterior, como atesta esta afirmação: “À força de
procurar a essência interior da forma, a unidade es-
trutural da composição, o conteúdo material (social)
se perdeu”. Mas a ressalva vem em tempo no que diz
respeito às últimas telas do pintor, onde, aos poucos,
via surgirem a sensualidade e a monumentalidade es-
cultórica que os temas demandavam – confrontados
porém com os “limites técnicos naturais da arte pic-
tórica especificamente burguesa — a pintura a óleo
e o quadro de cavalete”. À qual contraporá, a título
de exemplo, “a grande arte sintética, presidida pela
arquitetura, que foi perdida com o início da era capi-
61
mário pedrosa: itinerário crítico

talista”, e tal como a recuperava a moderna pintura


mural, especialmente no caso da escola mexicana. 42
Desnecessário dizer que, embora sensível, como
todo o mundo na época, à voga muralista, Mário Pedro-
sa apreciava nela menos o seu “didatismo de propagan-
da”, do que a presença daquela síntese utópica que ele
descobrirá mais tarde nas vanguardas, mesmo as mais
abstratas. Seu entusiasmo foi entretanto arrefecendo:
embora não deixasse de reconhecer nos artistas mexica-
nos o mérito da tentativa mais audaciosa de realização
desse programa moderno, foi se mostrando sempre mais
reticente em relação ao “zelo proselitista” que acabava
por sacrificar as qualidades estruturais intrínsecas do
mural a intenções “extrapictóricas”.43 Restrições que se-
rão enunciadas com veemência oito anos mais tarde, em
Washington, quando, em pleno exílio, estuda os painéis
de Portinari executados para a Biblioteca do Congres-
so americano. Ambos haviam então evoluído mais um
pouco nas respectivas posições, em uma curiosa conver-
gência – ao menos naquele momento: o artista adotara o
modelo proposto por Mário Pedrosa, em 1934 — o mural
—, enquanto o Crítico, sempre mais atento à dimensão
plástica da obra, se afastava de vez de toda arte com fina-
lidade social explícita, sobretudo do que nela ultrapassa
os limites próprios do gênero, muito preso ao assunto.
Mudança de ponto de vista, mas que – é preciso reconhe-
cer – já principiara a tomar corpo na fase anterior.
Senão vejamos: anos antes, quando se refugiou na ga-
leria da Barão de Itapetininga, Mário Pedrosa teve opor-

42. Publicado originalmente no Diário da Noite. Rep. em ANV, pp. 35-44, e


em Acadêmicos e Modernos (AM), EDUSP, 1998, pp. 155-161.
 
43. Ibid.; ANV, p. 43; AM, p.160.
 

62
otília arantes

tunidade de analisar cuidadosamente quadro por quadro


da exposição. Notara então que algo começava a se modifi-
car com O Mestiço e O Lavrador de café. Observara, em
particular, o surgimento de uma espécie de contradição,
solicitada aliás pela própria realidade social. É que Por-
tinari, deixando que suas figuras se projetassem brutal-
mente para fora, abrira, em contraste, o fundo do quadro
segundo perspectivas e planos que procuravam represen-
tar “a natureza na sua expressão concreta e social, a terra
e o trabalho”. Nada mais contrário aí, à técnica e à estética
do retrato e do quadro, reparava o Crítico, ao mesmo tem-
po que constatava que, rompendo com os limites do óleo,
extravasando as fronteiras da tela, achava-se Portinari
em condições de reencontrar as possibilidades organiza-
cionais e espaciais amplas, condizentes com os seus cená-
rios e com a monumentalidade e corporeidade maciça do
modelado de suas figuras.
Como consequência natural, portanto. Ainda que a li-
ção dos mexicanos não pudesse ser ignorada (e como seria
possível àquela altura?), sem que a moda o constrangesse –
dirá Mário Pedrosa, no balanço posterior, de Washington:
“Pela própria evolução interior de sua arte se pode
ver que foi por assim dizer organicamente, à medi-
da que os problemas de técnica e estética iam ama-
durecendo nele, que Portinari chegou diante do
mural. Foi como problema estético interior que ele
pela primeira vez o abordou”.44

44. “De Brodósqui aos murais de Washington”, Washington, fev. de 1942.


ANV, pp. 44-73. Rep. em MPEB, pp. 7-26; p. 12.
 

63
mário pedrosa: itinerário crítico

Candido Portinari, O Lavrador de café, 1934


óleo sobre tela, 100 x 81 cm
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
 

E vai mais longe: os afrescos de Portinari, na medi-


da em que privilegiam, “ao lado ou acima da realidade,
a finalidade plástica”, teriam suplantado os murais me-
xicanos, mesmo sem atingir a “violência exaltante” e a
“força expressiva contagiante” destes últimos.45

45. Ibid.; p. 16.


 

64
otília arantes

Ao mesmo tempo, era obrigado a reconhecer que


as coisas talvez não fossem exatamente assim, e que,
na obra de Portinari, esse impasse nunca havia sido
inteiramente desfeito — sem deixar, contudo, de rela-
tivizá-lo: mas não é essa a aporia característica da arte
moderna? pergunta-se o Crítico. O mérito do artista
estaria pois justamente em exprimi-la, em buscar a
“síntese fugidia, dramática na sua precariedade, entre
o plástico e o abstrato, entre o puro pictórico e a vida.
Esse dualismo deu o drama à sua obra anterior. Dá à sua
obra atual. E continuará a dar à sua obra futura”.46
Voltando, pois, ao episódio que o colocou diante da
obra de Portinari: pode-se depreender desse breve re-
trospecto, que não se deve ao mero acaso que o encer-
rou na galeria, a única responsabilidade pela escolha
de Mário Pedrosa. Não foi por acaso, vê-se logo, que se
deteve na carreira de um dos nossos artistas mais iden-
tificados (inclusive pela opinião) com uma pintura de
conteúdo social e nacional, justamente num momento
de agitação política intensa e de oposição declarada à
matriz europeia, sobretudo num instante de guinada
fascista generalizada. Mas mesmo então, não é apenas
essa evidência de conjuntura o que o atrai em Portinari
– como estamos tentando sugerir. Foi sobretudo o antia-
cademicismo de uma obra em condições de sobrepujar
o quadro estreito da pintura a óleo, o que nela aparecia
como busca obstinada de uma unidade artística, de um
domínio das técnicas apoiado na utilização de materiais
e recursos heterogêneos — quase uma experimentação
de linguagem. Impulso que atinge, numa tela como O
Lavrador de Café uma “harmonia precária, mas por

46. Ibid.
 

65
mário pedrosa: itinerário crítico

isso mesmo profundamente dramática, profundamen-


te dialética”.47 Numa palavra, apreciou a força expres-
siva demonstrada pelo pintor na tradução do drama
social, aliás de mesma índole do que o exibido por Kä-
the Kollwitz da maturidade, longe tanto da transcrição
literal da realidade quanto da estilização estetizante e
com fins apologéticos. Por isso mesmo, no estudo dos
painéis de Washington, procurará evitar as compara-
ções correntes, entre o pintor brasileiro e os muralistas
mexicanos, preferindo aproximá-lo das deformações
plásticas na obra de Picasso e da força interior das fi-
guras daí decorrente. Nesse mesmo estudo, após citar
o ensaio famoso de Mário de Andrade sobre Portinari,
de 1939, volta a falar em “antinaturalíssimo” e até mes-
mo em “super-realismo” (o outro Mário caracterizava a
grande latitude em que se movia a inspiração do artista
com a expressão “realismo estético”).48 Àquela altura,
fazia tempo que Mário Pedrosa já não via mais no tema
a fonte do poder de comunicação da obra procurando
a força ativa da arte na verdade interna da forma, bem
mais profunda e complexa. Por seu turno, Portinari
também alcançara a maturidade e, quem sabe ajudado
pela distância americana em que se achava, soubera
pôr em perspectiva a facilidade do tema nacional. Ob-
servou Mário Pedrosa:
“Jamais, e isso se depreende logo à primeira vista,
em nenhum outro momento de suas realizações
murais, se sentiu ele mais livre, mais desimpedido,
mais disposto a fazer as ginásticas técnicas mais

47. “Impressões de Portinari”; ANV, p. 43; AM, p.160.


 
48. “De Brodósqui aos Murais de Washington”; MPEB., p. 15.
 

66
otília arantes

perigosas e as deformações mais violentas. Estas


foram composições executadas sob um profundo
sentimento interior de liberdade”.49

Recapitulemos algumas passagens do ensaio, onde


chegou a um refinamento de análise poucas vezes iguala-
do em nossa crítica de arte, sem dúvida nenhuma a matriz
de todos os que se dedicaram a pensar a obra de Portinari.
Comecemos pela Descoberta do Brasil. Através da descri-
ção do jogo de cores, luz, linhas e planos, Mário Pedrosa vai
desvendando para o leitor aquilo que, sem concessões ao
convencionalismo histórico, ao tom solene e patriótico ou
ao pitoresco, é a “verdade plástica do drama representado”:
o ponto de vista sobre o episódio expresso na maneira iné-
dita de tratá-lo. A cordoalha e as velas estruturam o espaço
de forma a indicar a direção de um movimento decisiva-
mente descendente, no sentido da gravitação, para baixo,
desmentindo qualquer interpretação heráldica ou solene;
ao mesmo tempo se organizam de modo a centrar a atenção
sobre os marujos, no primeiro plano — “vibrantes na sua
exuberante materialidade” — atestando que a descoberta
é deles. Ao fundo da tela, no canto esquerdo, relegado a um
segundo plano, a “utilização audaciosa do convencional”.

49. Ibid.; pp. 18-19. No excelente balanço que faz, em 1970, da arte brasileira
desde a Semana da Arte Moderna, Mário Pedrosa em “A Primeira Bienal”, re-
capitulando a trajetória de Portinari e suas conversas em Washington, diz que
ao comentar as ousadias de Portinari naqueles painéis, este, “com aquele seu
jeitão esperto, à caipira, o bonachão, interrompe: — Pois é, eu aqui me sinto
mais livre do que no Brasil. Os literatos me atrapalham.” E o nosso Crítico jus-
tifica: “Ele queria dizer que as ideias forçosamente literárias dos intelectuais
amigos interferiam frequentemente com as suas, ou os seus projetos pura-
mente pictóricos. E ele nunca soube, com efeito, se livrar delas. No princípio
de sua carreira, eu também, então seu amigo e frequentador, me incluo entre
aqueles intelectuais. Exemplo: a insistência com que todos nós procuramos
incutir nele a importância ‘culminante’ dos muralistas mexicanos, não só
quanto à temática, mas inclusive quanto à técnica”. MHAC; p. 262; PA, p. 228.
 

67
mário pedrosa: itinerário crítico

Candido Portinari, Descobrimento, 1941


pintura mural e têmpera, 316 x 316 cm
Library of Congress, Washington
 

“Do mar, com suas belezas, do tema fácil, tão pre-


nhe de intenções literárias como esse da descober-
ta do novo mundo, o artista deixou passar apenas
uma nesgazinha, num plano triangular num canto
esquerdo do painel. E fê-lo magistralmente. Entre
a extremidade da grande vela e a amurada do fun-
do, há um rasgão de espaço azul, verde, branco, ful-
gurante, que deixa passar como num levantar de
cortinas (oh! Castro Alves) um pedacinho de terra
nova, numa autêntica paisagem marinha com seu

68
otília arantes

mar de vagas agitadas, com espumas, com velas


poéticas, sob um lindo céu azul etc. Esse pequeno
espaço aberto na superfície do painel dá uma extra-
ordinária sensação de espetáculo, e é mesmo para
ser visto e apreciado de cá, de dentro da caravela”.

Resistindo às seduções perigosas do tema, Por-


tinari subverte nossa visão do fato, ele evita a “be-
leza natural das cenas marinhas” — em seu quadro
não há capitães nem lindas caravelas, e a paisagem
ficou reduzida ao mínimo. A força desse painel não
advém, contudo, exclusivamente do inusitado no
tratamento do tema, mas na forma como se dá esta
mise en scène, na felicidade da composição espa-
cial, na expressividade das deformações plásticas,
na cadência dos volumes e das linhas — a qual nos
chega aos ouvidos “como uma canção de trabalho
que se levanta para unanimizar o esforço coletivo
dos marujos”. 50
Outro exemplo: o Garimpo. Para Mário Pedrosa, sem
dúvida o quadro mais audacioso, onde aparentemente não
há composição, e no entanto
“as figuras se arrumam em cruz, ou num x, o que
dá a todas elas uma unidade quase cósmica, e, ao
mesmo tempo, uma força desintegradora extraor-
dinária, pois permite um movimento de rotação
que impele as figuras a se projetarem em todas as
direções. Do mesmo modo, poderosos acordes dis-
sonantes dominam a cacofonia que ameaça irrom-
per do contraste do branco e do preto, do azul e do
vermelho”.

50. MPEB.; pp. 21-22.


 

69
mário pedrosa: itinerário crítico

E passa a seguir a uma análise minuciosa da organi-


zação da tela: a relação dos planos, a disparidade das fi-
guras, as combinações de cores e tons — ora berrantes,
ora sombrios, ora neutros, mais frios ou mais quentes
— num contraste que dói, difícil de ser absorvido. “Mas
pertencem à lógica interna senão ao método intuitivo
da composição. Numa violação às leis do acorde perfei-
to, o artista restaura a verdade plástica do drama repre-
sentado — excitação diabólica das figuras possessas na
cata do ouro”. De um lado, a “doçura da atmosfera”, de
outro, esses “bonecos mecanizados, duplamente escra-
vos, do ouro e da sociedade”. Sem os tons dissonantes de
vermelho e seus derivados, mesmo os gestos destempe-
rados não conseguiriam destoar — “a composição seria
‘ouro sobre azul’, mas não provocaria nenhum drama
plástico”. E conclui sua apreciação, fornecendo ao mes-
mo tempo para o leitor o registro em que Portinari volta
a conferir dignidade ao assunto, fugindo simultanea-
mente das contingências externas tanto quanto dos mi-
tos criados, raciais ou outros: desta forma, a finalidade
de todo o mural, que é exprimir uma realidade concre-
ta ou transcendente, “é restaurada sem que ao mesmo
tempo o artista caia na banalidade das descrições con-
vencionais, mantendo-se no domínio da pura criação”.51
Se para decifrar esses painéis é preciso passar por
“considerações estruturais e abstratas”, nem por isso
representam uma volta à primeira fase — já não se tra-
ta aqui de “definir formas abstratas, mas (de) reduzir
formas à abstração criadora”. Ou seja, a finalidade da-
quelas formas não seria mais de mera composição, mas
interpretativa: intensificando posições, multiplicando

51. Ibid.; pp. 24-25.


 

70
otília arantes

sinais geométricos, aproximando cores irreconciliá-


veis, destruindo perspectivas, fundindo planos, “mes-
mo com prejuízo do equilíbrio da composição ou da
representação imediata, tudo em troca de um aceno de
universalidade” (o grifo é nosso). Numa fórmula: “É a
sua fase de libertação criadora, a conversão do plástico
no abstrato dentro da matéria pictórica”.52
Êxito que não se repete, alguns anos mais tarde, mais
precisamente em 1949, no painel Tiradentes, no qual,
além de erros graves de composição e falta de unidade,
teria faltado a ousadia de “desrespeitar a verdade con-
juntural histórica, em nome da verdade artística”, con-
forme crítica severa por parte de Mário Pedrosa.53 Como
se vê, uma crítica que é feita do mesmo ponto de vista
que não só consagrava os painéis anteriormente comen-
tados, mas que, com os mesmos argumentos de Washin-
gton, acabara de fazer o elogio rasgado à Primeira Missa
da sede do Banco Boavista, no Rio de Janeiro, quando
chegou a afirmar que se tratava de uma das “realizações
mais pungentes da arte brasileira de todos os tempos”. Ao
interpretar um tema como esse, com tradição na nossa
pintura, novamente Portinari, fugindo à interpretação
naturalística a Victor Meirelles, e à “suposta” realidade
histórica, tanto quanto ao pitoresco da cena, com sua
paisagem tropical, bichos e índios seminus, transforma
a Primeira Missa num ato de “conquista cultural”, sem
alegações patrióticas, mas reforçando o caráter artificial

52. Ibid.; p. 19.


 
53. “O Painel de Tiradentes”, 1949. Pub. em Dimensões da Arte (DA), RJ, MEC,
1964; pp. 143-149, p.147; e em AM, pp. 173-181, p. 179. O paralelo com a “Primeira
Missa”, aparece neste mesmo texto (cf. PA, p. 181), porém, por extenso, no ar-
tigo do CM, 08.08.48: “A Missa de Portinari”. Rep. em MPEB, pp. 27-34 e AM,
pp. 163-171.
 

71
mário pedrosa: itinerário crítico

do episódio, através do abandono da cor local e da luz


natural, da delimitação do espaço como o de um palco,
do vitralesco da matéria como numa igreja, e assim por
diante, numa tradução plástica de seu conteúdo simbóli-
co. A partir de então, contudo, os caminhos do Crítico e
do Artista não mais se encontram.
 
 
POR UMA ARTE SINTÉTICA

Como ficou dito, esses ensaios sobre Portinari nos permi-


tem, até certo ponto, retraçar o itinerário crítico de Má-
rio Pedrosa: preocupado inicialmente com as imposições
da matéria, sobretudo da matéria social, passando pelo
elogio do muralismo, à valorização crescente da especifi-
cidade da arte — é bem verdade que em sua conferência
inaugural não chegara a ver uma antinomia nessa repar-
tição da dimensão estética. Se a ênfase muda, o que é sem-
pre perseguido neste esforço de decifração das obras, é a
sua vocação sintética e universalizadora. Descoberto esse
núcleo, a oposição entre a defesa de uma arte proletária
e a tomada de partido em prol da abstração (ou da arte
concreta) não é tão radical como se pretende. Veja-se, por
exemplo, o documento da ABCA de 1969, contra a censura
por parte do Itamaraty das obras que seriam enviadas à IV
Bienal dos Jovens, em Paris – em grande parte redigido
por Mário Pedrosa. Recorrendo ainda uma vez a Baudelai-
re, desafia os censores a dissociarem os aspectos “ideoló-
gicos” dos “plástico-formais”, concluindo:
“A própria função denotativa da representação ele-
va-se no plano da fusão criativa em substância uni-
versal. É precisamente por este processo de fusão e
síntese transformadora, que a representação deixa

72
otília arantes

de ser ilustração de uma cena ou acontecimento


factual para ser a concepção abrangente do mundo
na visão do artista”.54

Definição que talvez resuma bem a preocupação que


atravessa toda a sua crítica.
Em linhas gerais, a crítica militante de Mário Pe-
drosa, durante as décadas de 40 e 50, foi exercida so-
bretudo em favor da independência artística, a seu ver
inexistente nos países do Leste, mas ainda possível no
Ocidente, onde não se conhecia a “proteção oficial” que
a tutelava e tornava subserviente no lado stalinista.
A luta contra o realismo socialista o levará por vezes
a extremos de intolerância em relação a toda arte que
permanecesse figurativa. Mas aos poucos, nos anos 60,
seu alvo vai mudando de latitude — como assinalado
acima, são os rumos que toma a cultura de massa e a sua
manifestação mais típica, a arte pop, que passam a ser
vistos com desconfiança. Novamente o que está sendo
visado pela sua crítica é o processo de massificação da
arte. Assim, em um texto de 1967, ao analisar as con-
sequências da “civilização tecnológica”, utilizará uma
fórmula muito próxima à que adotara na conferência de
1933: “O homem, objeto do objeto de si mesmo, talvez vá
terminar seu ciclo, sem saber mais onde encontrar sua
essência ou sua substância”.55 E a partir daí se sucedem
os textos onde o tema principal é o da crise do mundo
moderno, e em consequência, da arte. 

54. “Os deveres do crítico de Arte na Sociedade”, CM, 10.07.69. Rep. em PA, pp.
211-216, p. 213.
 
55. “Especulações Estéticas: Lance Final III”, CM, 9.04.67. Rep. em MHAC, p.
133-139; pp. 138-139; FPE, pp 361-366; p.365.
 

73
Artistas na casa de Mário Pedrosa, Rio de Janeiro, 1953.
Da esquerda para a direita: Geraldo de Barros, Abraham Palatnik, Mário Pedrosa,
Lidi Prati, Tomaz Maldonado, Almir Mavignier, Ivan Serpa.

74
CAPÍTULO II

UM CAPÍTULO BRASILEIRO DA TEORIA


DA ABSTRAÇÃO

Talvez se possa datar de 1944 — justamente dez anos de-


pois da conferência inaugural sobre Käthe Kollwitz—
a total conversão de Mário Pedrosa à causa da arte
moderna, em particular na sua forma mais radical, a
da arte abstrata. A ocasião foi novamente a retrospec-
tiva de um grande artista, no caso, a primeira grande
mostra de Calder nos Estados Unidos. De forma bem
mais direta do que no ensaio sobre Portinari, Mário
Pedrosa enfrenta as questões estéticas que estavam na
ordem do dia: autonomia da arte e abstração, relações
com o mundo científico da técnica, arte e utopia etc.
Porém uma abordagem em nova chave. Ao contrário
do que dera a entender em sua fala de estreia, agora lhe
parecia possível uma síntese, embora precária, entre
atualidade estética máxima e arte social. Com uma
diferença: a reconciliação entre estas duas províncias
da civilização contemporânea se daria menos no plano
mais explícito dos temas do que no terreno dos proce-
dimentos artísticos, onde, à sua maneira e com recur-
sos próprios, a arte reinterpreta o mundo moderno,
nele incluído o universo tipicamente capitalista da
técnica. Sendo portanto a dimensão crítica da arte,
necessariamente, da ordem do estranhamento. “Desa-
75
mário pedrosa: itinerário crítico

climatação total”, foi a expressão utilizada por Mário


Pedrosa, ao caracterizar a reação do público diante da-
quelas obras de Calder, tão distantes da aparência uni-
forme da vida moderna, a ponto de obrigarem a uma
espécie de “verdadeira reeducação da sensibilidade”.1
Foi assim ao menos que interpretou, naquele momen-
to, as possibilidades de transformação do mundo pela
arte abstrata – ou concreta, como preferia seu amigo
Arp.2 E é nessa chave que deve ser lida sua avaliação
quanto às potencialidades críticas das criações do ar-
tista americano:
“Desinteressada tal como é — tão longe de quais-
quer fins de propaganda! — a arte de Calder, no en-
tanto, vai exercendo uma silenciosa ação de catálise
sobre a vulgaridade agressiva de nossa época. Se há
um artista, em verdade, que está próximo do ideal
da arte do futuro, dessa sociedade ideal em que a
arte seria confundida com as atividades da rotina
diária e a prática quotidiana do viver, esse artista é
Alexander Calder”.3

Ou ainda: “seus objetos ganham em latitude plás-


tica, criando relações mais pesadas de universalida-
de, libertos de quaisquer limitações contingentes ou
unilaterais”.4

1. Mário Pedrosa, “Tensão e coesão na obra de Calder”, em ANV, pp. 108-129,


p. 129; Mlc, pp. 67-79, p. 79.
 
2. “Calder, escultor de cataventos”, em ANV, pp. 85-108, p.107; Mlc, pp. 51-66,
p. 65.
 
3. Ibid.; ANV, pp. 107-108; Mlc, pp. 65-66.
 
4. “Tensão e coesão na obra de Calder”, em ANV, p. 108-129, p. 114; Mlc, pp.
67-79, p. 70.
 

76
otília arantes

Uma “utopia plástica” se deixava assim entrever no


agenciamento espacial dos objetos privados de finali-
dade externa, por Calder, que, nas convenções anula-
das, sabia fazer a “essencialidade das formas”.5 O que
no fundo nos encanta e intriga na imagem de equilíbrio
cósmico que se desprende da obra de Calder? – pergun-
ta o Autor. Precisamente a cifra da contra-finalidade de
que se falava há pouco. Nesses objetos-brinquedos-o-
bras de arte, o elemento funcional da indústria moder-
na transmuta-se, num “casamento intempestivo com
a imaginação”, em pura invenção.6 Vem daí a força su-
gestiva da forma gratuita – é que essa gratuidade é um
resultado artístico. A esfera instrumental é a um tem-
po desativada e posta a serviço de nada: transformada
num sistema sem função deixa ver o avesso promissor
da alienação.
Num certo sentido, podemos dizer que Mário Pe-
drosa não abandona o essencial de sua posição, mesmo
quando atribui à arte moderna essa função social quase
redentora. Ainda insiste na necessidade de a arte man-
ter-se à distância do processo de modernização social
que no limite a suscita, sem o que não poderia anun-
ciar um outro mundo, uma nova ordem, “o horizonte
longínquo da utopia”,7 como é do seu caráter negativo.
Nesse ponto de fuga haveria então lugar para uma arte
verdadeiramente sintética, capaz de reunir enfim as
duas metades em que se cindiu na modernidade.

5. “Calder, escultor cataventos”; ANV, p. 100; Mlc, p. 61.


 
6. Tensão e coesão na obra de Calder”; ANV, pp. 125-127; Mlc pp. 76-77.
 
7. “A máquina de Calder, Léger e outros.”; ANV, 142; Mlc, p.90.
 

77
mário pedrosa: itinerário crítico

Alexander Calder, Viúva negra, c.1948


arame e metal pintado,350 x 200 cm
Instituto dos Arquitetos do Brasil,São Paulo
 

Por onde se vê que Mário Pedrosa encontrou


o meio de ajustar o ideal moderno de autonomia
da arte — domínio estruturado irredutível — ao
utopismo das vanguardas históricas: a promessa de
78
otília arantes

emancipação na origem de uma nova sensibilidade.


Adiantemos que a matriz desta última é a dos povos
“primitivos” — revelada em negativo pela marcha
predatória da modernidade. Nisto, acompanhava
uma tendência de época que, na cultura antagônica
do modernismo, destacava o seu primitivismo, arca-
ísmo, regressão etc. Veremos adiante o que pensava
da “arte virgem”, como chamava a arte dos “primi-
tivos”, das crianças e dos loucos. Aos seus olhos, a
utopia prefigurada por Calder estava muito próxi-
ma dessa arte aparentemente desviante, mas reen-
contrada no coração da abstração. Por isso chama a
atenção para o modo pelo qual o artista americano
“brinca com a modernidade” e, com humor, desmon-
ta as finalidades da máquina. 8
Voltando para o Brasil depois de 1945, numa série
de artigos polêmicos, Mário Pedrosa vai associar a
invenção artística à imaginação solta — desvincu-
lada de todas as convenções, sensível a todas as ex-
periências novas, espontânea — da primeira idade,
mental ou cultural. Não que reduzisse a arte à mera
projeção, o que a converteria num simples aconteci-
mento subjetivo, singular e hermético. O modelo é
novamente Calder, um artista completo, que teria
sabido combinar a austeridade moderna com a iro-
nia, reunindo numa só personalidade artística Mon-
drian e Miró. 9

8. Ibid.; ANV, pp. 136 e 137; Mlc, pp. 85-86.


 
9. “Tensão e coesão na obra de Calder”; ANV, pp. 128-129; Mlc, pp.78-79. Cf.
também “Calder, escultor de cataventos”; ANV, pp. 94-102; Mlc, pp. 57-62.
 

79
mário pedrosa: itinerário crítico

DA ARTE PRIMITIVA AO CONSTRUTIVISMO

Em uma de suas últimas entrevistas, por ocasião de


seus oitenta anos, Mário Pedrosa, respondendo a Ro-
berto Pontual e ao que este chamara de “sua mudança
de interesses, da figuração combatente à mais rigorosa
ausência de figuração”, não falou de si nem de sua tra-
jetória crítica, mas recorreu à evolução da própria arte
contemporânea para mostrar que não havia propria-
mente contradição: “É engraçado — dizia ele —, com
o fim da guerra houve uma mudança muito grande no
movimento artístico mundial. Não acho, porém, que
tenha deixado de haver continuidade na passagem”. To-
das estas tendências, do expressionismo às últimas ma-
nifestações da arte abstrata ou concreta (Mário Pedrosa
deixa fora a arte pós-moderna ou pós-pop, da qual ti-
nha uma visão bem menos otimista), ainda obedece-
riam a uma intenção comum, presente na origem das
vanguardas históricas. Elas teriam se consolidado na
esteira da descoberta, no início do século, da arte pri-
mitiva, de “estrutura forte” e, ao mesmo tempo, “muito
mais viva, ligada a ritos e ritmos”.10
Sabe-se com efeito que o gosto ocidental vinha se
alargando desde os tempos da revolução impressio-
nista, como o demonstram a descoberta da estampa
japonesa nas últimas décadas do oitocentos francês,
ou, mais ou menos na mesma época, a valorização
do gótico, da arte egípcia e das técnicas artísticas do
Baixo Império Romano, para não falar dos primitivos
italianos, de parte do historicismo alemão, ou ainda o
interesse pelas artes menores e pelas artes aplicadas

10. JB, 24.04.1980.


 

80
otília arantes

— enfim, de tudo que contrariasse a supremacia da


norma culta europeia e a ideia clássica de progresso
que ela pressupunha. Mais um passo bem conhecido
e veríamos o cubismo aprendendo ao mesmo tempo
com Cézanne e com a arte negra: um entrecruza-
mento que ninguém previra tornava coextensivos
a decomposição erudita do espaço renascentista e o
choque polêmico de uma máscara ritual primitiva.
Choque ambivalente também, no qual se exprime
tanto a intenção de relativizar a couraça repressi-
va da cultura, quanto a tentação liquidacionista que
vai recrudescendo conforme avança o mal-estar na
civilização. Costuma-se dizer igualmente que a abs-
tração era apenas uma questão de tempo, a partir do
momento em que a importância do assunto começou
a declinar e a pintura a ser compreendida como uma
estruturação de linhas e cores.
Como lembrou certa vez Meyer Schapiro, quando
a arte começa a empregar a linguagem do absoluto —
onde tudo é puro, essencial e objetivo — assistimos ao
advento de uma espécie de confraternização univer-
sal de todos os objetos expressivos (transformados em
obra de arte como no museu de Malraux), uma queda
a-histórica de barreiras, reunindo num único panora-
ma os produtos da energia formalizadora do homem:
no centro, então, ao lado da arte abstrata plenamente
consumada, os desenhos infantis, a pintura dos doen-
tes mentais e a arte dos povos ditos primitivos. São tó-
picos conhecidos, recapitulados porque Mário Pedrosa
os tinha em mente ao responder a Roberto Pontual. Aos
quais acrescentou uma observação pouco usual, desdo-
bramento de sua convicção mencionada linhas acima,
de que arte autônoma e utopia vanguardista dessubli-
81
mário pedrosa: itinerário crítico

madora podem andar juntas no reordenamento da so-


ciabilidade. Segundo conta então, teria aprendido com
a “arte virgem” das crianças, loucos e primitivos, a ver
nos movimentos artísticos mais avançados do século
uma promessa análoga de fusão entre o que o moder-
nismo havia separado: dimensão estética e esfera ética,
arte autônoma e fundamento “vital”, experimento ar-
tístico e vínculo social renovado — descompartimen-
tação coletiva recusada pelos apóstolos modernos da
autonomia da arte.
Estavam assim lançadas as bases de sua adesão a
um projeto construtivo integral. Embora soubesse que,
numa sociedade dividida, como a nossa, essa unidade
não poderia ser reencontrada de maneira espontânea
e total, teria que ser conquistada a duras penas. Sem o
quê, a arte ficaria reduzida à uma mera projeção catár-
tica, colada à individualidade do artista. Como o “in-
formalismo” do pós-guerra, em relação ao qual Mário
Pedrosa não poupava críticas, ao mesmo tempo que
privilegiava a contenção geometrizante do nosso Volpi,
cuja pintura, embora lembrasse a singeleza das formas
puras e primitivas, não era simplesmente obra de um
pintor ingênuo, pintor de parede, ou pintor de domin-
go, como de fato fora no início. Quando Volpi obteve o
grande prêmio da 2a. Bienal de São Paulo, suas constru-
ções já eram resultado de uma elaboração “sábia”, do
aprimoramento no uso dos materiais e elementos plás-
ticos, de modo a fazer coincidir de maneira exemplar o
projeto de uma arte moderna com as virtudes da arte
primitiva.11

11. Cf. “Do informal e seus equívocos”. JB, 17.11.59. Rep. em MHAC, pp. 33-48.
Sobre Volpi, ver os ensaios em AM, pp. 261 a 276.
 

82
otília arantes

Vejamos como essas questões vão sendo formula-


das e resolvidas ao longo da crítica de Mário Pedrosa.
Em 1947, novamente numa conferência que marcou
época, intitulada “Arte, necessidade vital”, por ocasião
do encerramento da exposição de pintura organizada
pelo Centro Psiquiátrico Nacional, recapitula a histó-
ria da arte para mostrar o quanto, na sua origem, está
próxima das criações infantis. Citando ainda uma vez
Baudelaire, associa o gênio à “infância reencontrada
à vontade” e procura mostrar também como as intui-
ções ditas geniais são igualmente inexplicáveis, vindo
por vezes associadas a comportamentos psíquicos que
discrepam daqueles considerados normais, como em
Van Gogh, Hölderlin ou Blake.12 Acaba concluindo que
se as obras ali expostas nem sempre passam de “amos-
tras embrionárias da arte”, de qualquer modo essas ex-
pressões emotivas, por mais pobres que sejam, já são
de “evidente natureza artística”13 — falta-lhes talvez “a
vontade realizadora, aquela terrível vontade quase inu-
mana que vencia o próprio caos interior de Van Gogh,
impondo uma organização plástica e disciplinando suas
forças explosivas”.14 A interferência da consciência, en-
tretanto, não traria para o primeiro plano o intelecto
ou os procedimentos secundários, apenas subordina-
ria as emoções a uma “ordem natural” — aquilo que
nessa conferência ele chama de “alma da composição
artística”, a arte como uma “melhor organização das

12. “Arte, Necessidade Vital, em ANV, pp. 143-167; p. 152; rep. em FPE, pp. 41-
57¸ p. 46.
 
13. Ibid.; ANV, p. 167; FPE, p.57.
 
14. Ibid.; ANV, p. 158; FPE, p.50.
 

83
mário pedrosa: itinerário crítico

emoções humanas”; e conclui o comentário sobre Van


Gogh falando em subordinação de tudo a uma “ordem
cósmica final, necessária à criação” (a que já se referia
a propósito dos estábiles e móbiles de Calder). Por esse
caminho – como veremos adiante – nosso Crítico irá ao
encontro das teorias da Gestalt para explicar o caráter
ao mesmo tempo afetivo e ordenado (objetivo) da for-
ma (ele se manterá sempre muito reticente em relação
à psicanálise).
Acreditava então Mário Pedrosa que, justamente
por esse lado comum às crianças e aos povos mais “atra-
sados” (vistos em geral com mais condescendência nas
suas interpretações da realidade do que, por exemplo,
as deformações picassianas), a arte moderna pudesse
romper a resistência geral do público, despertando-o
para um mundo novo “muito mais surpreendente e fa-
buloso do que o que nos rodeia hoje”.15 É essa função de
recondicionadora dos sentidos que será o grande tema
das reflexões estéticas de Mário Pedrosa ao longo de sua
crítica futura, mesmo quando vier a relativizar muitas
das formulações teóricas desse primeiro momento de
militância ativa em prol da arte abstrata.
São preocupações dessa ordem que o farão, quando
de seu retorno ao Brasil e em suas primeiras crônicas no
Correio da Manhã, encorajar as escolinhas de arte e as
experiências artísticas com os doentes mentais. Aliás, o
primeiro grupo de artistas abstratos que se formava na
época estava diretamente ligado a elas, por exemplo Ivan
Serpa com sua escola para crianças, ou Mavignier, que
colaborava com Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico
de Engenho de Dentro.

15.“Caricatura e Arte Moderna”, 1947; ANV, pp. 231-235; p. 234.


 

84
otília arantes

É o próprio Mário Pedrosa que, no balanço que faz


da arte brasileira contemporânea em 1970, destaca
como o que há de “mais peculiar ou de mais importante
no campo cultural e artístico” às vésperas das Bienais,
estes dois acontecimentos que vinham romper com os
preconceitos acadêmicos que dominavam não apenas
os meios artísticos oficiais, mas até mesmo os meios
modernistas mais avançados: as escolinhas de arte
— cita Augusto Rodrigues e Ivan Serpa; e as iniciati-
vas terapêuticas de Nise da Silveira, no Rio, e Osório
Gomes, em S. Paulo. Tais fatos, segundo ele, eram sin-
tomáticos do movimento de ideias que começavam a
agitar, no plano científico e estético, a vida cultural
dos grandes centros do país. Assim, independente-
mente dos próprios artistas, “o mundo das Artes ia
ampliando pouco a pouco o que havia de restrito, de
preconceitual, de elitismo, nas concepções circulantes
sobre a matéria nos meios mais ‘avançados’ do Bra-
sil”.16 O que daria à arte moderna uma dimensão muito
maior do que a de uma simples moda ou escola: primei-
ro que tudo, vindo revelar que não é monopólio do pro-
gresso econômico ou intelectual; logo, alinhando-se a
uma dessas “reviravoltas dialéticas” do imperialismo,
como foi a descoberta da arte e dos valores dos povos
ainda em estágio tribal ou pré-capitalista, responsá-
vel, nos termos que se viu, pelo surgimento da arte de
vanguarda.

16. “Às vésperas da Bienal” (in “Da Semana de Arte Moderna às Bienais”, cit.),
1970, MHAC, pp. 281-286 pp. 283-285; PA, pp. 249-256, p. 252.
 

85
mário pedrosa: itinerário crítico

 
Raphael (Engenho de Dentro), sem título, 1948
nanquim sobre papel, 17x31 cm
Museu de Imagens do Inconsciente, Rio de Janeiro
 

Acrescente-se, diz Mário Pedrosa, em função das


contradições da própria sociedade e da cultura metropo-
litanas, outra conquista, desta vez na vertical, em pro-
fundidade, a descoberta de um novo mundo no interior
mesmo do homem, de cuja existência se suspeitava, mas
que era até então desprezado ou ignorado pelos precon-
ceitos “racionalistas” dessa mesma cultura burguesa: o
mundo do inconsciente.
“Com essa ampliação dimensional estava-se afinal
apto a discernir no homem, além de uma racionali-

86
otília arantes

dade em botão, permanentemente estorvada pelas


estruturas de classe, uma necessidade incoercível
de fabulação, como compensação, sem dúvida, a
um domínio imperfeito sobre a natureza e que se
exterioriza, incessantemente, nas criações míticas
dos povos primitivos, no seu longo e doloroso pro-
cesso de passar da natureza à cultura na imaginá-
ria infantil desimpedida e, aos trancos e barrancos,
nessa insopitável necessidade de expressão que está
em todo ser vivo, em todo ser humano, psicótico ou
inocente”.

Por esse alargamento das fronteiras artísticas, diz


ele, o terreno estava preparado para o processo de mo-
dernização que, impulsionado em grande parte pelas
Bienais, iria ocorrer.17
 
 
A BATALHA DA ABSTRAÇÃO

Embora tenham provocado uma inflexão importante


na arte brasileira, estimulando tendências vanguardis-
tas anteriores, as Bienais são ao mesmo tempo o resul-
tado de um processo de modernização que se iniciara há
algum tempo. Além da contribuição das experiências
referidas acima, será preciso registrar a criação, nos
anos de 1947 a 49, dos Museus de Arte Moderna do Rio e
São Paulo, e do Museu Assis Chateaubriand; exposições
e conferências de artistas estrangeiros, a vinda para cá
de alguns deles, e a repercussão de tudo isso num deba-
te que acontecia na grande imprensa e no qual Mário

17. Ibid.
 

87
mário pedrosa: itinerário crítico

Pedrosa era, sem dúvida, o defensor mais empenha-


do da nossa atualização artística. Lembro, a título de
exemplo, a 2a Exposição Francesa, em 1945; a presença
no Rio, desde o início da década, do casal Vieira da Sil-
va e Arpad Szenes;18 mais tarde, Leon Dégand e Samson
Flexor, em São Paulo; a vinda de Cícero Dias, em 1948
(já então ligado à abstração francesa); naquele mesmo
ano, as conferências do crítico argentino Romero Brest;
a exposição de Max Bill, em 1950 (cuja influência sobre
os artistas concretos brasileiros e argentinos é inegá-
vel); e, finalmente, as Bienais, que acabaram de mudar
a mentalidade reinante, a tal ponto que, na década de
50, a abstração chegará a ser a tendência dominante da
arte brasileira. Ao lado de tudo isso, é preciso não es-
quecer o contexto geral —tornou-se um lugar comum
na crítica associar o desenvolvimento da arte abstrata
(especialmente do concretismo) à modernização acele-
rada do Brasil: teria aquela muito a ver, sobretudo por
suas características construtivistas, com a hegemonia
da ideologia desenvolvimentista nos anos 50. Voltare-
mos ao problema mais adiante.
Mas antes de se transformar em ponto pacífico, a
abstração foi objeto de muita polêmica. A predominân-
cia de uma grande pintura expressionista, em geral de
cunho social, muitas vezes de dimensões monumentais
— Segall e Portinari, por exemplo; a presença muito ca-
racterística, de outro lado, de uma pintura singela, mas

18. Léon Dégand, ligado ao abstracionismo francês, foi o primeiro diretor do


MAM de São Paulo e teria sido sob sua influência que Flexor — rumeno de ori-
gem, que chegara de Paris em 1946 — teria passado para a abstração, vindo a
criar, em 51, o “Atelier Abstração”, cuja importância para os artistas paulis-
tas e o desenvolvimento em São Paulo da arte abstrata, foi sem dúvida muito
grande.
 

88
otília arantes

não menos atenta ao conteúdo — paisagens e casarios


dos bairros populares de São Paulo — representada pela
Família Artística Paulista (“pintores e escultores que,
embora modernos, se recusavam a quaisquer compro-
missos com as deliciosas e decadentes brincadeiras abs-
tracionistas”, no dizer de Sérgio Milliet),19 eram, entre
tantos outros, obstáculos que tornavam difícil nossa
adesão à arte abstrata. A resistência por parte dos ar-
tistas e críticos a este tipo de arte era de tal ordem que
uma artista como Vieira da Silva, de 1940 a 47 radicada
no Rio de Janeiro, foi relegada a um quase ostracismo
pela incompreensão geral.20 Milliet, por exemplo, então
um dos nossos maiores críticos, mostrava-se extrema-
mente reticente em relação a toda arte pós-cubista e, a
exemplo de Mário de Andrade, condenava a aventura
abstracionista como “intelectualista”, contorcionista”,
“egoísta” etc.21 Enquanto isso, nossos vizinhos da Ar-
gentina e do Uruguai (onde há de ter pesado a influên-
cia de Torres Garcia, desde 1934 de volta a Montevidéu),
estavam mais bem “sintonizados” com a arte mundial
mais recente. O certo é que, premidos pela situação
social e política ou fechados num provincianismo au-
tossuficiente (provavelmente as duas coisas juntas),
avançávamos na década de 40 ainda muito voltados so-
bre nós mesmos e muito presos aos motivos nacionais,
obrigatórios durante o auge do modernismo, como se
há de recordar.

19. Citado por Roberto Pontual, em Scliar, o real em reflexo e transfigura-


ção, RJ: Civilização Brasileira, 1970; p. 6.
 
20. Cf. a propósito o artigo de Nelson Aguilar: “Vieira da Silva no Brasil”, in
Colóquio n. 27, Lisboa: Fundação Gulbenkian, abril de 1976, pp. 5-15.
 
21. Cf. por exemplo Pintura quase sempre, Porto Alegre: Ed. Globo, 1944.
 

89
mário pedrosa: itinerário crítico

 
Antonio Maluf, Cartaz da primeira Bienal do MAM de São Paulo, 1951

Tudo isso dito e relembrado, caberia talvez come-


çar pelas razões dos que resistiram à novidade. Simples
passadismo? Não era bem o caso. Quase todos, artistas
e críticos, eram veteranos do modernismo que, a par-
tir dos anos 30, finalmente entrara na rotina mental do
país. Defendiam, portanto, uma tradição, a tradição
do modernismo. Sem dúvida a inventiva tensão inicial
90
otília arantes

baixara, mas bem ou mal, relativamente integrado, o


sistema da arte moderna funcionava no Brasil. Ora, não
custa lembrar que o auge do modernismo fora naciona-
lista, e o segundo tempo, francamente social. Além do
mais, declaradamente hostil à tentação abstrata, con-
tra a qual Mário de Andrade prevenia Tarsila em Paris.
Nisto davam seguimento a um empenho que vinha de
longe: não se concebia entre nós atividade cultural que
não estivesse a serviço da figuração do país, que não
fosse ao mesmo tempo instrumento de conhecimen-
to e consolidação da imagem de um país ainda muito
incerto de si mesmo — pintar era ajudar a descobri-lo
e edificar em parcelas uma nação diminuída pelo com-
plexo colonial. Acresce que o “desrecalque localista”
(Antônio Cândido) em que se resolvera o modernismo
da primeira hora, representara uma segunda descober-
ta do Brasil. Enquanto o primitivismo cubista e a defor-
mação expressionista de nítida índole social pareciam
ajustar-se a esse programa de transposição plástica do
país, imaginava-se que com a abstração seríamos obri-
gados a renunciar a tudo isso, que uma tradição a duras
penas seria erradicada da noite para o dia, como sugeria
um novo começo da capo.
Ocorre que o partido da tradição local esquecia que
o primeiro modernismo também fora um corpo estra-
nho e que, do mesmo modo, rompendo com um siste-
ma análogo de estilos quase oficiais, a pintura abstrata
vinha inaugurar um novo ciclo de atualização, a que
nos condenava nossa sina de país periférico. Na metró-
pole, o olho contemporâneo, acomodado à abstração,
num certo sentido era muito mais fiel ao princípio de
mimesis do que um naturalismo de fachada, meramen-
te retórico, de sorte que o abstracionismo, longe de ser
91
mário pedrosa: itinerário crítico

uma arte alienada, era uma verdadeira e rigorosa arte


da alienação: e do lado de cá, nós éramos parte do pro-
blema. De mais a mais, a abstração feria um outro es-
crúpulo herdado daquela mesma tradição “figurativa”
do país, o zelo documental mandava por chumbo na
imaginação que irrealizava o mundo; não que nossa
cultura artística tenha produzido grande obra realista,
muito pelo contrário, simplesmente precisara arrumar
um jeito de não deixar ninguém dar as costas à imagem
nacional sem remorso. Ora, para muitos, mesmo rigo-
rosa, a arte abstrata parecia fantasia desatada — para o
exercício da qual julgava-se o país ainda despreparado.
Neste quadro, a atuação de Mário Pedrosa foi decisi-
va, embora não tenha sido o único fator a pesar, como se
viu. Mas se há de reconhecer que foi o primeiro crítico a
assumir francamente a defesa da arte internacional mais
avançada, a começar pelos artigos sobre Calder, publica-
dos no Correio da Manhã, e a ter conseguido aglutinar,
após seu retorno dos Estados Unidos, onde convivera
com muitos artistas e intelectuais lá exilados por força
da guerra, o primeiro grupo de artistas abstratos. Tudo
isso, com firmeza e independência, enfrentando sempre,
apesar das pressões, “o caleidoscópio dos ismos, sem fa-
niquitos de impaciência, sem timidez, sem seguidismo
acrítico e bocó, sem frustrações de incompreensão, sem
negativismos, mas aberto, aberto e crítico!” — como dirá
anos mais tarde ao avaliar a tarefa do crítico na “época
das Bienais”.22
Portanto, não só não era intempestiva a defesa que
fazia da arte abstrata, como não era incondicional. Em

22. “Época das bienais” (in “Da Semana de Arte Moderna às Bienais”, cit.);
MHAC, pp. 287-297; p. 296; PA, pp. 257-271, p. 270.
 

92
otília arantes

meio à querela realismo versus abstração, chegou a afir-


mar que “os pintores abstratos são os artistas mais cons-
cientes da época histórica em que estamos vivendo”, pois
se deram conta de que o papel documentário da pintura
acabou.23 Esclarece entretanto, num artigo da mesma
época, intitulado “Abstração ou Figuração ou Realismo”
(onde comenta a conceituação de Seuphor no Dicioná-
rio da Pintura Abstrata e recorre a Fiedler, Wölfflin,
Fry e Venturi), que a questão não está propriamente na
não-figuração da arte abstrata: a abstração se oporia,
acima de tudo, ao realismo de uma pintura destinada à
mera ilustração anedótica. Foi portanto muito mais em
contraposição a toda pintura de “intenção de documen-
tação naturalista” — “o chamado realismo naturalista
ou socialista, ora em franca decadência, ou ainda susten-
tado por mera disciplina extra-artística, e assim mesmo
com muito encabulamento” — que Mário Pedrosa tomou
a defesa da arte abstrata: “neste sentido, toda pintura é
de ordem abstrata, são seus valores intrínsecos, e não a
maior ou menor fidelidade da representação externa, que
determinam a maior ou menor qualidade estética”.24 Em
todo esse debate, o que tentou fazer entender aos críticos
renitentes é que a ação da arte deve se dar “em seu campo
específico” e obedecendo a “leis próprias”,25 ou seja, que
a sua peculiaridade é atuar diretamente sobre a sensibi-
lidade e isto, menos pelos temas do que pelo “dinamismo
próprio das formas”26 — “cria-se assim em cada um de

23. “Arte e Revolução” cit., MHAC; p. 247; PA, p. 98.


 
24. JB, 10.08.57.
 
25. “A força educadora da arte”, ANV, pp. 221-223; p. 221; FPE, pp 91-92, p.91.
 
26. “Tensão e coesão na obra de Calder”; ANV, p. 127; Mlc, p. 78. Mário retoma-

93
mário pedrosa: itinerário crítico

nós melhor aparelho de apreensão e recepção, antenas


sensoriais mais agudas e transmissores à nossa disposi-
ção mais precisos e controlados”.27
Avesso a qualquer tipo de proselitismo na arte, Má-
rio Pedrosa também era alérgico a qualquer tipo de este-
ticismo, seja o de uma “arte pela arte” do século XIX, seja
o do formalismo modernista que, a seu ver, ao reduzir a
arte a uma construção de formas, acabava por importar o
modelo científico e a reproduzir os mecanismos sistêmi-
cos do mundo, do qual aparentemente deveria observar
a mais estrita distância. Cada vez mais atento à presença
do social no interior mesmo do estético, manteve-se de
fato acima tanto da arte “engajada”, quanto daquela que
se pretendia totalmente descomprometida com a vida.28
Para além de todo conteudismo e formalismo, sempre
buscou na história da arte aqueles instantes em que uma
síntese entre os impulsos da alma e as imposições da ma-
téria se faziam adivinhar: a junção entre o imaginário e
o plástico, entre a forma e a subjetividade. Subjetividade
que não deve ser entendida, vê-se logo, como fechada em
si mesma – trata-se, isto sim, do eu autônomo, do sujei-
to descentrado (na expressão de uma época mais recen-
te), acima e apartado do mundo da simples reprodução
material da vida. O sujeito, enfim, da arte moderna: um
constructo, que no limite pode descambar, ou para o
formalismo puro e simples, ou para tendências mais ir-

rá a mesma questão em diferentes ocasiões, cf., p. ex., “O destino funcional da


pintura” e outras crônicas do CM dos anos 40, em ANV. Rep. em PA, pp. 57-68;
ou, a propósito da arte abstrata ou “concreta”, MHAC, p. 20 e FPE, pp. 275-277.
 
27. “A força educadora da arte”; ANV, p. 222-223; FPE, pp. 61-62.
 
28. Cf. tanto textos como os que escreveu M. Pedrosa sobre Calder, como os que
dedicou à questão da funcionalidade da arte ou à “Arte, Necessidade Vital”.
 

94
otília arantes

racionalistas de vanguarda – como o surrealismo ou o


dadaísmo, em relação aos quais Mário Pedrosa sempre
se mostrou reticente.
Assim, malgrado as acusações de que foi alvo, pro-
curou escapar dos extremos em que se debatem artis-
tas e críticos contemporâneos, tentando, ao contrário,
aproximar a iniciativa individual e as emoções do artis-
ta, do rigor formal, buscando adivinhar aí a liberdade
una e total, desmembrada nessas metades que, à força,
lhe teriam sido arrancadas. Se via em Kandinsky o “es-
tuário de onde partiram todas as novas tendências da
arte abstrata contemporânea”, é porque, mais do que
qualquer outro artista, teria sabido unir fantasia e ri-
gor, “pintura coisa mental de Da Vinci e pintura de
jato, de pura improvisação”, o “ímpeto vital” com as
exigências “arquitetônicas da forma”.29
Do mesmo modo, a arte mais recente é devedora de
Calder, por ter sido este um “sonhador de olhos aber-
tos”, que conseguiu “coordenar as imagens etéreas sob
precisos cálculos matemáticos”.
“Casando a vida e a abstração, conjugando o humor
à mecânica, ele navega entre as duas grandes alas
da arte moderna: o surrealismo, com seu roman-
tismo incurável que degenera às vezes em charada
anedótica, e o abstracionismo, cuja obsessão de pu-
rismo formal se resolve não raro numa espécie de
misticismo brando e de pura puerilidade”.30

29. Cf. Panorama da Pintura Moderna, RJ: Ministério de Educação e Saúde,


Serviço de Documentação, 1952. Rep. em Arte, Forma e Personalidade (AFP),
SP: ed. Kairós, 1979, pp. 122-145, p. 143, em Mlc, pp. 135-175, p. 173 Cf. também
“Da abstração à autoexpressão”, JB,19.12.59. Rep. em MHAC, p. 35-47, p. 41;
FPE, 315-332, p. 322.
 
30. “Tensão e coesão na obra de Calder” in ANV, pp.128-9; Mcl, pp.76-0.
 

95
mário pedrosa: itinerário crítico

 
Vassili Kandinski,Composicão clara, 1942
óleo sobre tela, 73 x 92,3 cm
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
 

É preciso também ressaltar que, na visão de Mário


Pedrosa, o naturalismo não é o outro do formalismo:
justamente toda a arte ocidental, desde a Grécia, teria
sido “naturalista” na medida mesmo em que as formas
foram arrancadas à vida por um processo civilizatório
dominado pelo intelecto que acabou por reduzi-las a
meras apresentações; o formalismo seria apenas a con-
sequência natural desse processo. Portanto nada esteve
mais longe de sua crítica do que a defesa da “racionali-
dade” moderna ocidental, ou da redução da arte a uma
mera combinatória de elementos agenciados pela razão
científica.
Foi sem dúvida o que o fez, mesmo tendo tomado,
96
otília arantes

desde a primeira hora, a defesa da arte concreta, ir se


afastando progressivamente do grupo paulista e rejei-
tar toda sujeição da arte ao design e à informação. Sa-
bidamente, mentor das vanguardas cariocas, foi Mário
Pedrosa o responsável, ao menos em parte, pela direção
que tomaram. Acredito que se o neoconcretismo pôde,
em 1959, fazer a crítica ao objetivismo e racionalismo do
movimento nos anos 50, é porque já se achava bastante
distante de certos exageros deste. Creio mesmo que a
distinção, muito evidente, entre os concretos paulistas
e os cariocas (que Mário Pedrosa assinalou já por oca-
sião da la Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956,
no MAM de S. Paulo, e em janeiro de 1957, no MAM do
Rio: o “intelectualismo” daqueles ao lado do “quase ro-
mantismo” destes), tenha muito a ver com suas lições,
em que, sem desqualificar o trabalho dos concretistas
paulistas, os acusava de terem por vezes transposto,
pura e simplesmente, a ideia para a tela “como um de-
senhista sobre uma prancheta traça seu objeto”, ou de
seguidamente utilizarem cores “duras de superfície”,
como se estivessem “presas ao ‘leito de Procusto’ dos
padrões formais”.31 Num artigo da mesma época (feve-
reiro de 1957), vai mais longe na sua crítica, vendo inclu-
sive nessa pintura uma certa contradição com o próprio
projeto de uma arte concreta como a formularam seus
primeiros teóricos:
“Enquanto o poeta deixa o campo específico da
retórica verbal, o discurso lógico significativo, o
meio natural onde nascem, vivem, crescem, trans-

31. “Paulistas e Cariocas”, em Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-


1962), MEC/FUNARTE/MAM-RJ e Pinacoteca do Estado de S. Paulo, 1977, pp.
136-138.
 

97
mário pedrosa: itinerário crítico

formam-se, morrem as palavras para recomeçar


sua pesquisa, com a virgindade das experiências
primeiras, no plano das atividades Inter sensoriais
prático-fenomenológicas, onde age o pintor ou o
músico; o pintor concretista, ao contrário, quer
alcançar a nitidez da lógica simbólica, rompido
qualquer compromisso com as experiências feno-
menológicas pretéritas. Ele gostaria de ser a má-
quina de elaborar e confeccionar ideias para serem
vistas. O fenômeno desta disparidade de atitude
merece ser registrado”.32

Em conclusão, se o concretismo, por sua radicalida-


de e vocação construtiva, poderia, como acreditava Má-
rio Pedrosa, ter exercido um papel preponderante na
“revolução da sensibilidade”, e tenha de fato, em seu es-
forço de tocar o essencial, “limpado” a forma de todas as
suas impurezas, acabou na verdade por se enredar nas
malhas do desenvolvimentismo tecnológico, como ali-
ás todo projeto construtivo quando faz da própria cons-
trução uma norma. Foi o que ocorreu com boa parte da
arte concreta: às significações puras veio se substituir
o vazio das significações — simples signos intercambi-
áveis e funcionalizáveis. A busca de uma arte depurada
teria redundado no seu contrário: numa sujeição à racio-
nalidade moderna, da máquina, ao desenho industrial
“mais próximo do trabalho de engenharia do que do de
artistas”, ao Sting, criado e imposto pelo consumo de
massa.33 Vimos o quanto, já nos textos sobre Calder, dos

32. “Poeta e Pintor Concreto”, Ibid.; pp. 145-146.


 
33. Cf. “Considerações inatuais”, JB, 11.07.59; MHAC, p.24 e “Crise do condi-
cionamento artístico”, CM, 31.07.66; MHAC, pp. 90-91; PA, pp. 121-122.
 

98
otília arantes

idos de 40, era manifesta a preocupação de Mário Pe-


drosa com uma necessária espontaneidade crítica por
parte da arte em relação à modernidade, à sempre exor-
cizada frieza da máquina e ao espírito analítico da ciên-
cia. Como dirá numa crônica um pouco posterior, a arte
“quer e precisa do novo mas não se submete ao novo”.34
No caso do artista americano, teria sido justamente a
total familiaridade com o que havia de mais moderno
na ciência e na técnica que, na visão do Crítico, lhe as-
segurou uma maior autonomia em relação a elas: “nin-
guém já fez uso dessas aquisições no domínio das artes
plásticas com mais espontaneidade, viço e imaginação
do que ele”. Calder foi buscar na máquina a única coi-
sa que ela justamente não podia dar: “a energia criado-
ra”.35 Passadas quase duas décadas, em artigo de 1960,
ao comentar a obra de Palatino, Mário Pedrosa voltará
a insistir que, se “os artistas revolucionários de nossos
dias ou serão ‘inventores’, ou não serão”, a utilização
dos recursos tecno-científicos, no entanto, só se justi-
ficam na medida em que podem propiciar uma “maior
liberdade”.36 Assim, embora partidário de uma arte que
se utilize de cálculos matemáticos e geometria, e que se
inspire nas últimas conquistas da ciência, nunca o foi
de uma arte ou de uma estética tecnológica, como pro-
punha à época Max Bense, por exemplo.
Segundo Mário Pedrosa, o que importa, de fato,
numa obra de arte, é antes de tudo, aquilo que Kan-
dinsky dizia ser sua “necessidade interior” (expressão

34. Id. “A máquina de Calder, Léger e outros”, in ANV, p. 136; Mcl, p. 83.
 
35. Ibid.; ANV, p. 139; Mlc, p. 88.
 
36. “Arte e Invenção”, JB, 23.03.60. Rep. em MHAC, pp. 57-59.
 

99
mário pedrosa: itinerário crítico

que, com algumas variantes, é retomada ao longo de


toda sua crítica). Foi em nome de um tal princípio que
repudiou ou aplaudiu muitas manifestações artísticas,
não apenas por preconceito contra qualquer forma de
arte figurativa ou aceitação incondicional das manifes-
tações artísticas mais up to date, como pretenderam
alguns de seus opositores. Por exemplo, as ressalvas que
fez à pintura social de Segall dos anos 40, devem-se me-
nos aos temas, do que ao que nela teria restado apenas
como recursos formais de que lançara mão o expressio-
nismo no início do século, sobrevivendo como soluções
meramente retóricas e anacrônicas. O que não ocorria
— reconhece — em suas primeiras telas, ou nos belos
retratos, naturezas mortas e admiráveis paisagens da
última fase.37 Do mesmo modo, eram as virtualidades
expressivas da pintura de Volpi — fosse ela de conteúdo
social, paisagem, fachada, ou simplesmente construção
abstrata — que fizeram Mário Pedrosa dar tanto desta-
que ao artista, por ocasião da retrospectiva de 1957 no
MAM do Rio, a ponto de atribuir-lhe o mérito, para es-
cândalo de muitos, de ser “o mestre brasileiro de nossa
época”,38 ressalvando, por isto mesmo, sua originali-
dade em relação aos artistas concretos paulistas. Não
por acaso Volpi acabou fazendo a unanimidade dos dois
partidos, o localista e o universalista: com efeito, não
há composição abstrata dele que bem observada não re-
meta à cor local de alguma reminiscência, sem que, no
entanto, em momento algum, sua abstração seja mera
estilização dos dados imediatos da experiência. Com-

37. Cf. os textos sobre Segall republicados em MPEB e AM .


 
38. Cf. “Dentro e fora da Bienal” (in “Da Semana de Arte Moderna às Bienais”,
cit.) e “O Mestre brasileiro de sua época”, in Ibid.
 

100
otília arantes

promisso ou solução? Seja como for, o problema era


real e mais adiante veremos Mário Pedrosa à procura
do nexo orgânico entre arte abstrata e cultura material
do país, descartando o simples alinhamento ideológico
com os programas de modernização, como se costuma
fazer ao se justapor abstração e desenvolvimentismo
dos anos JK.

A PROBLEMÁTICA DA SENSIBILIDADE

Talvez se possa dizer que a dualidade clássica, conteúdo


e forma, desloca-se nas especulações estéticas39 de Má-
rio Pedrosa, para esta outra que a reformula em termos
mais radicais: subjetividade-objetividade. Ou seja, a
questão é posta — ao menos desde as discussões sobre
arte e técnica nos anos 40, até as reflexões sobre arte e
linguagem, invenção e lógica da expressão, da década
de 60 — em termos tais, que poderíamos resumir dizen-
do que se trata de uma abordagem estético-epistemoló-
gica: a arte como forma de conhecimento.

39. Estou utilizando de forma genérica o título de uma série de ensaios que Má-
rio Pedrosa publicou em 1967 no CM. Rep. Em MHAC e FPE.
 

101
mário pedrosa: itinerário crítico

Alfredo Volpi, Casas, 1955


têmpera sobre tela, 115,5 X 73 cm
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Uma de suas obsessões é determinar qual a modali-


dade específica de conhecimento da arte e sua objetivi-
dade, ou seja, seu poder de comunicar. E se isso fica muito
claro na tese sobre a Gestalt — Da natureza afetiva da
forma na obra de arte —, o problema já está esboça-
do nos ensaios sobre Calder, passando pelas discussões
travadas na imprensa carioca sobre a funcionalidade
da arte, posteriormente por suas incursões no campo
102
otília arantes

da psicologia e da psicanálise, da fenomenologia, até as


atualíssimas teorias da comunicação. Variem, contudo,
os enfoques, a palavra chave que lhe permite decifrar
o que há de específico no conhecimento artístico é a in-
tuição. E a revitalização desta é dada justamente como
a grande missão educativa da arte moderna: “sua fun-
ção agora é outra — a de ampliar o campo da linguagem
na pura percepção”.40
O empenho da arte moderna, segundo Mário Pedrosa
– como víamos há pouco –, consiste justamente “em aca-
bar com a terrível dicotomia da inteligência e da sensibi-
lidade”, pelo menos desde Mondrian, Klee e Kandinsky
— em “sensibilizar a inteligência” através das “formas-in-
tuições” que lhe são próprias:
“E é precisamente por essa qualidade sensível,
vital, não conceitual, não intelectual, que a arte
moderna, reagindo contra o conceitualismo re-
presentativo acadêmico, adquiriu sua formidável
universalidade, e pôde, por sua força expressiva,
entrar em comunicação ao vivo, entre sensibilida-
des humanas”.41

Nos anos 50, ao discutir “A problemática da sensibili-


dade na arte”, reforçando o seu argumento, recorre a uma
citação de Suzanne Langer:
“A obra de arte ‘nos dá formas de imaginação e
formas de sentimento inseparavelmente; quer di-
zer, clarifica e organiza a intuição mesma. E é por
isso que tem a força de uma revelação e inspira um

40. “Arte e Revolução”; MHAC, p. 247; PA, p. 98.


 
41.“Arte, linguagem internacional”, JB, 17.02.60. Rep. em MHAC, pp. 53-55, p.
54.
 

103
mário pedrosa: itinerário crítico

sentimento de profunda satisfação intelectual, em-


bora não manifeste nenhum trabalho intelectual
consciente (raciocínio)’.”42

Mas a grande referência teórica e artística de Má-


rio Pedrosa, em todo esse debate sobre a intuição como
experiência primeira na arte, foi sempre, sem dúvida,
Kandinsky, sobre o qual, num de seus artigos, publi-
cado em 1959 no Jornal do Brasil, chegou a declarar
que teria sido “quem revelou, teórica e plasticamente,
todos os novos valores” estéticos.43 Porque a equação
interior-exterior foi a primeira das suas preocupações
(desde os textos de 1911 e 12, como no Espiritual na Arte
ou em “Sobre a questão da forma”, no Der Blaue Reiter)
teria sido ele o “responsável pelas correntes mais vivas
da arte moderna”.44 Ainda uma vez: sua importância
adviria justamente do fato de ter conseguido fazer a
síntese entre as fabulações subjetivas e a eleição e com-
posição das formas. Ou seja, a aparente antinomia en-
tre forma e emotividade, expressão exterior e conteúdo
interior, estaria resolvida, na concepção de Kandinsky,
desde que obedecidas as “leis da necessidade interior,
leis que cabe distinguir como espirituais” e que o ar-
tista captaria e traduziria pela “intuição imediata”.45

42. “Problemas da Sensibiolidade I”, JB 11.07.1959. Rep. Em MHAC, p. 15; FPE,


p.272.
 
43. Cf. Ibid, e “Problemática da Sensibilidade II”, JB, 18.07.59. Rep. em MHAC,
pp. 17-24 e FPE, pp.272-278.
 
44. Cf. também “Forma e Personalidade”, 1951. Publ. em Dimensões da Arte
(DA), Rio de Janeiro: MEC, 1964, pp. 61-105; , pp. 61-105; Rep. em AFP, pp. 87-121;
especialmente p. 98; e. em FPE, pp.179-220, p. 196.
 
45. Kandinsky, De lo espiritual en el arte, BA, Ed. Nueva Visión, 1967; p. 68.
(Ed. Brasileira, O espiritual na Arte, SP: Martins Fontes, 2000).

104
otília arantes

De tal modo que as necessidades da arte seriam a bem


dizer as do próprio Espírito,46 e o artista, não mais do
que “a mão que com a ajuda desta ou daquela tecla, tira
da alma humana a vibração justa”. 47
Embora Mário Pedrosa retome essas noções e che-
gue a dizer que a forma artística é de “pura origem espi-
ritual”, há contudo uma diferença básica na posição de
ambos que merece ser enfatizada, pois redunda numa
avaliação diversa a respeito do lugar e da função da obra
de arte: para Kandinsky, a intuição artística se funda
numa “necessidade mística”, é do domínio do sagrado;
enquanto para o Crítico, ela resulta de um acordo entre
a consciência e o mundo (o que num determinado mo-
mento ele pretendeu explicar pelo isomorfismo gestál-
tico). Sem excluir a iniciativa do artista, Mário Pedrosa
esteve sempre muito próximo de uma postura objetivis-
ta, sempre mais ou menos corrigida pela incorporação
de alguns ensinamentos das filosofias do sujeito, como
se verá. Ficou-lhe, no entanto, alguma coisa da sabedo-
ria esotérica professada pelos grandes abstratos. É as-
sim que, em mais de uma ocasião, se referiu à arte como
“transposição no plano humano das leis da criação cós-
mica”. Vê-se que o elogio da “relação cósmica” presente
nos estábiles e móbiles de Calder era algo mais do que o
reconhecimento de uma estruturação bem sucedida. A
matriz que modela a sua arte são
“as forças incontroladas do cosmos, o movimento
irredutível que alimenta o motor do universo, o

 
46. “A pintura como arte pura”, Der Sturm, set. 1913. Rep. em Tutti gli scritti,
a cura de Ph. Sers, Milão: Feltrinelli, 1973; p. 137.
 
47. De lo espiritual em el arte, p. 55.
 

105
mário pedrosa: itinerário crítico

eterno fluir das formas no espaço (...) O mecanismo


que em última análise provoca as expressões artís-
ticas não é mais inconsciente ou subjetivo, mas ar-
mado de fora, objetivamente”.48

A adesão por uma espécie de simpatia superior à mi-


tologia, a que todo grande artista tem direito por romper
com a ordem estabelecida das coisas, serve ao Crítico de
trampolim para realçar o primado do momento objetivo.
Mas também — entrando agora no domínio das ideologias
compensatórias —, para ressaltar a oposição espiritual,
em nome de uma energia criadora de dimensões cósmicas,
ao mundo reificado do intelecto manipulador, mecânico.
Mário Pedrosa não está evidentemente sozinho nesta espe-
culação equívoca. Empenhado em devolver à consciência
perceptiva o enigma do mundo que lhe fora roubado pelas
operações redutoras da ciência e da técnica, Merleau-Pon-
ty também via na pintura uma operação central, uma das
últimas em condições de nos reabrir o acesso ao Ser — e
estava se apoiando justamente na espécie de iluminação
transcendente produzida pelo esforço da pintura moderna
de conquistar suas próprias dimensões, desvencilhando-se
enfim das peias do iluminismo naturalista.
Voltemos ao “movimento cósmico” que animaria
os móbiles de Calder. Um cosmos em pleno mundo mo-
derno, a sua antítese mais acabada? Subscrevendo essa
convicção de artista, nosso Crítico, por outro lado tão
impregnado pelas teorias explicativas as mais rigoro-
sas, deixava-se arrastar pela báscula característica da
reação ao desencantamento do mundo que os teóricos

48. Cf. os ensaios sobre Calder cits., em especial “Tensão e coesão na obra de
Calder”.
 

106
otília arantes

da modernização ocidental costumam assinalar. Ora,


a arte abstrata é protagonista dessa perda progressiva
de sentido que define o referido processo. Só que ela se
apresenta como o seu exato contrário, como uma eman-
cipação, mas liberação justamente da significação que
a dimensão representativa abolida conferia à inten-
ção estética. Decompondo esta intenção significativa
nos seus elementos puros, a abstração denuncia-lhe o
caráter ideológico, mais uma ilusão metafísica que fi-
cou para trás, ao mesmo tempo em que se mostra peça
fundamental da Aufklärung. Peça ambivalente, como
estamos vendo: como o princípio construtivo é parte
essencial de sua definição, a arte abstrata volta a reatar
com a procura do sentido, que da forma bem construída
imagina transferir para a sociedade a refazer e, sobre-
tudo, extrair de um mundo reanimado como o antigo
cosmos. Daí a utopia que lhe é inerente e por isso mes-
mo configurada em nome de impulsos cósmicos que o
mundo moderno dissolveu.
Voltando àquela armação externa das formas, torno
a lembrar que para Mário Pedrosa, naquele momento, a
experiência individual deve ser ultrapassada de modo a
que a universalidade da forma garanta a comunicabili-
dade da obra, portanto a intuição estética não deve ser
identificada com a “simples e rombuda percepção ori-
ginária”, própria às crianças e aos loucos, embora estes
possam atingir, em certos momentos privilegiados de
sua criação, “uma lucidez vertiginosa e enigmática”.49
(É preciso ter claro que, embora valorizasse enorme-
mente tais manifestações, Mário Pedrosa nunca igno-
rou as diferenças entre a “arte virgem” e a arte culta.)

49. “Problemática da Sensibilidade II”; MHAC, p. 18; FPE, p. 275.


 

107
mário pedrosa: itinerário crítico

 
AS LIÇÕES DA GESTALT

Sem abandonar jamais o terreno da intuição, Mário Pe-


drosa é contudo compelido a ir além da expressão ime-
diata, em busca de um fundamento comum, objetivo, que
torne possível a elaboração/comunicação da obra, e a pro-
por, inclusive, uma ciência da forma ou da arte, que lhe
será fornecida, ao menos inicialmente, pela Gestalt, em-
bora logo ele seja obrigado a relativizá-la para dar conta
da especificidade do domínio estético.
É, portanto, com o intuito de determinar os
fundamentos da universalidade da experiência estética
que Mário Pedrosa recorre aos ensinamentos da
Psicologia da Forma, capazes, segundo ele, de desfazer
o conflito subjetividade versus objetividade, forma
versus expressão, ao fornecer uma explicação científi-
ca (e mesmo materialista) para a percepção estética. O
interesse pelas experiências brasileiras com crianças e
doentes mentais o levava para o campo da psicologia,
mas já desde os anos 20, quando aluno de Filosofia da
Universidade de Berlim (1927-29), interessara-se pelas
teorias gestálticas. Na ocasião, de passagem por Paris,
teve oportunidade de discutir longamente o problema
com Pierre Naville, cujas simpatias aliás iam mais na
direção do behaviorismo. Mas será apenas vinte anos
mais tarde, ao ler uma entrevista de um jovem pintor
francês não figurativo, Atlan, sobre o caráter fisionômi-
co afetivo de suas telas,50 que retornará à Gestalt. Deci-
dido então a participar do concurso para a cátedra de
História da Arte e Estética da Faculdade Nacional de Ar-

50. Aimé Patri, “Entretien avec Atlan”, in Paru, maio de 1948; p. 53.
 

108
otília arantes

quitetura, encomendou toda a bibliografia disponível


sobre o assunto e redigiu em poucos meses uma tese que
se constituiu, na ocasião, numa das raras tentativas,
em plano mundial, de utilização sistemática dos ensi-
namentos da Gestalt para resolver problemas estéticos
— teóricos ou metodológicos.51 Sua tese — Da nature-
za afetiva da forma na Obra de Arte— apresentada
em 1949 e defendida dois anos mais tarde. Acabou clas-
sificada em segundo lugar no concurso e permaneceu
durante trinta anos inédita. Em nosso meio, apesar do
prestígio da Gestalt entre alguns psicólogos (orientados
por Newton Campos no Rio e Anita Cabral em S. Pau-
lo), um estudo como esse devia causar espécie por seu
caráter quase pioneiro, enquanto esforço de elaboração
de uma Estética da Forma. Foi em contrapartida objeto
de um comentário altamente elogioso do Prof. Etienne
Souriau — então catedrático de Estética na Sorbonne —
na Revue d’Esthétique.
Apesar de, na tese, Mário Pedrosa ter se utilizado de
vários estudiosos do problema da forma, especialmente
nas artes plásticas (Dilthey, Geiger, Hans von Marées,
Conrad Fiedler, Híldebrand, Wölfflin, Cassirer e outros
mais), foram antes de tudo os teóricos da Gestalt (Wer-
theimer, Köhler, Koffka, Paul Guillaume) que lhe forne-
ceram os primeiros subsídios científicos, na tentativa
de solucionar a antítese clássica — subjetividade ver-
sus objetividade. Esta estaria superada à medida que
a chave da experiência estética estivesse nas proprie-

51. Salvo o texto raríssimo de Koffka, citado por Mário Pedrosa: The Problems
in the Psychology of Art (apresentado no Bryn Mawr Symposium na Pensyl-
vânia, em 1939), nada de maior fôlego havia sido publicado. Arnheim, embora
já tivesse escrito um artigo sobre o assunto em 47, só veio a publicar seu pri-
meiro livro — Art and Visual Perception —em 1954.
 

109
mário pedrosa: itinerário crítico

dades intrínsecas à obra de arte, ou na “natureza afe-


tiva da forma”. É o que a tese tenta demonstrar através
de uma Psicologia da Arte voltada para as obras e suas
qualidades formais (fisionômicas), que comandariam
as reações afetivas do espectador. O que garantiria a
universalidade da obra, seu poder de comunicar, seria
o fato de que as leis que a governam também se apli-
cam ao campo cognitivo. Mais do que isso, de acordo
com a Gestalt, a “boa forma” é tanto da realidade física,
quanto do sistema nervoso e das estruturas percepti-
vas. Haveria, portanto, no mínimo, um parentesco ou
uma homologia perfeita que tornaria inócua a oposição
tradicional sujeito-objeto e explicaria o caráter não dis-
cursivo, intuitivo, da arte.
Desnecessário insistir que Mário Pedrosa nunca
pretendeu propor teorias normativas ou um conjunto
de preceitos a serem adotados pelos artistas, apenas
encontrar uma explicação para a universalidade das
“formas-intuição” instauradas por cada obra particu-
lar. Para tanto, mesmo tendo incorporado alguns anos
mais tarde outras lições, como a da teoria das formas
simbólicas de Cassirer (já referido na tese) ou de Su-
zanne Langer, será ainda à Gestalt que atribuirá o mé-
rito de ter propiciado uma melhor compreensão das
funções cognitivas. – Assim, num texto seu, publicado
em 1960, ainda se pode ler uma afirmação como esta:
“Desde que os psicólogos da Gestalt descobriram
as leis da percepção, (...) a noção, por exemplo, de
intuição passou a ser abordada por filósofos, se-
manticistas, estetas e psicólogos de modo mais
concreto, e o seu papel naqueles processos a ser
melhor compreendido. Cassirer, o genial criador
e sistematizador das ‘formas simbólicas’ pôde

110
otília arantes

então mostrar como toda cognição da forma é in-


tuitiva. E, fundada nessa asserção, S. Langer es-
creveu: ‘Toda ordem de relações, distintividade,
congruência, correspondência de formas, con-
traste e síntese numa total Gestalt, só pode ser co-
nhecida por uma iluminação (insight) direta, que
é a intuição”. 52

Voltando um pouco no tempo. Em um comunicado


apresentado ao IVº Congresso da AICA em Dublin, sobre
as relações entre ciência e a arte, afirmava, então quase
sem fazer restrições, embora já se inspirasse em Suzan-
ne Langer, que a explicação principal viria da Gestalt,
ou seja, que só a noção de forma, como concebida pelas
teorias gestálticas era capaz de fornecer o fundamento
comum a ambas. Dizia então que, apesar de criar “obje-
tos ideais”, a arte se mantém “em um plano de analogia
com as unidades formais de significação própria, como
as Gestalts no mundo psicofísico e as estruturas físico-
-matemáticas”. Assim, o seu poder de comover, que não
passa pela mediação do entendimento, adviria do fato
— agora, citando Langer — de “a racionalidade descer
até o plano rudimentar da organização psicofísica da
percepção”.53 O intuicionismo gestáltico encontraria
pois o seu fundamento na lei da “boa forma”, presente
já na “percepção primitiva”. Eram essas leis estruturais
que já vinham expostas na tese de 1949.

52. “Das formas significantes à lógica da expressão”, 1954. Pub. em JB, 23.07.60.
Rep. em MHAC, pp. 61-71; pp. 61-62; e em FPE, pp. 301-310, p. 301.
 
53. “As relações entre a ciência e a arte” —Comunicação ao IV Congresso da
AICA em Dublin, julho de 1953. Pub. em DA, p. 197-205; p. 204. Rep. em FPE,
pp. 243-251, p.250.
 

111
mário pedrosa: itinerário crítico

Contudo, aceita essa explicação, alguns problemas


permanecem, inclusive um problema central: o da es-
pecificidade da arte. Se uma Estética da Forma a bem
dizer inexistia, é bem verdade que os teóricos da Ges-
talt tomaram sempre a arte como modelo: Ehrenfels,
no ensaio que deu o nome à escola, partia de estruturas
melódicas para pensar a forma como totalidade; a per-
cepção primitiva passou a ser chamada de artística por
Koffka e os demais, devido à sua capacidade de se orga-
nizar da melhor maneira nas condições dadas; e todos
eles assumiam — como vai notar Arnheim — uma pos-
tura que pretendiam ser comum ao artista, de interpre-
tação globalizadora da realidade, em oposição à visão
analítica da ciência. Mas se uma estética aí implícita se
deixava adivinhar, necessitava ainda ser questionada,
além de formulada. A função do teórico da arte não po-
deria ser apenas a de percorrer o caminho inverso ao
do psicólogo, tentando aplicar os esquemas da Gestalt
às obras, mas a de propor uma discussão metodológica
muito mais radical, que pusesse em questão os próprios
fundamentos da teoria gestáltica: a legitimidade do
modelo primeiro, ao mesmo tempo que a especificidade
ou não da arte. Algumas das perguntas que se colocam:
A lei da “boa forma” autoriza a identificação entre as re-
presentações primitivas e artísticas? A criação artísti-
ca está sujeita à mesma inexorabilidade e objetividade
das leis estruturais? Ou ainda: por que precisamos de
arte se a percepção já é artística e se a arte é governada
pelos mesmos princípios que norteiam as experiências
primárias e não elaboradas?
Mário Pedrosa responde a essas questões atribuin-
do à arte uma função duplamente corretiva: ela é uma
espécie de retificador da percepção primeira, seletivo,
112
otília arantes

respeitoso da espontaneidade desta, porém dando-lhe


uma estrutura “idealmente perfeita”; ao mesmo tempo
que não permite o desvio do sentido original da percep-
ção formal primitiva, desembaraçando-a de todo asso-
ciacionismo mecânico e cultural. Isto é, a experiência
primeira já traz em germe a arte, embora suas manifes-
tações mais primitivas, como na infância, ainda sejam
bastante rudimentares. O que não impede que alguns
povos, ditos primitivos, tenham alcançado formas
de estruturas complexas, fortes, vivas – que hoje são
consideradas por nós como artísticas – demonstrando
um sentido formal que a arte do ocidente, naturalista,
perdeu. Daí continuarem sendo elas, segundo Mário
Pedrosa, o grande modelo, em todos os tempos de uma
arte pura e sintética.54
Se a “renascença” das artes nos anos 10 está es-
treitamente associada à descoberta da arte negra e
pré-colombiana, é devido ao seu poder “emocional ex-
pressivo”, ou ainda, como escreveram Paul Guillaume
e Munro — citados pelo nosso Autor —, devido ao fato
de que “essas remotas tradições acentuam ainda mais o
desenho do que a reprodução literal, apresentando efei-
tos de forma, qualidades de linhas e superfícies, com-
binações de massa, que são desconhecidas da tradição
grega”. Ou seja, naquelas estatuetas e máscaras, os ar-
tistas contemporâneos teriam descoberto “uma forma
de sentimento, uma arquitetura de pensamento, uma
expressão sutil das forças mais profundas da vida”, com
um sentido formal que, diz Mário Pedrosa, nossa escul-
tura ocidental teria perdido, “presa a um jogo pueril ou
gracioso de superfície, mas sem grandeza, sem pureza,

54. Cf. a tese “Da natureza afetiva da Forma”, AFP, pp. 12-86 e FPE, pp. 103-177.
 

113
mário pedrosa: itinerário crítico

sem síntese”, ainda amarrados às exigências de repre-


sentação naturalística da estatuária clássica.55
Ora, a cultura ocidental, desde a Grécia dominada
pelo “modo lógico-discursivo”, acabara subordinando a
arte a fins práticos, transformando-a em transmissora
de informações, perdendo o poder original de comuni-
cação intuitivo-afetiva, resultante de sua essência sim-
bólica, bem distinta do símbolo verbal discursivo. No
entanto, diz Mário Pedrosa, na arte
“não há um objeto prévio anterior (...), o que ela
traz é uma formalização de vivência desconheci-
da, uma organização simbólica nova, perceptiva
ou imaginária. Como não é nunca uma proposição,
seja qual for a sua classificação por escola, tendên-
cia ou estilo, o que nos dá, para ser autêntica, é sem-
pre do domínio das formas intuitivas do pensar e
do sentir”.56

Mas para dar conta desta dimensão simbólica da


arte, a problemática proposta pelo nosso Autor na tese
de 1949 vai aos poucos se deslocando, obrigando-o a re-
lativizar os ensinamentos da Gestalt. Embora susten-
tando sempre a irredutibilidade e a natureza afetiva
da forma, Mário Pedrosa integrará aos poucos outras
lições para explicar a emergência de significações iné-
ditas, que não preexistem às próprias obras.
 
 

55. “Panorama da Pintura Moderna”, AFP; p. 128-129; Mlc, pp. 151-154.


 
56. Cf. “Problemática da Sensibilidade I”, MHAC, pp. 14-15; FPE, p.271. Sobre
tudo isto ver a série completa “Problemática da Arte Contemporânea”, em
FPE, pp. 265-310.
 

114
otília arantes

OUTRAS FILIAÇÕES TEÓRICAS

A Forma como foi concebida pelas teorias gestálticas,


embora pareça superar as antíteses clássicas, mantém
uma ambiguidade incontornável. Como adverte Merle-
au-Ponty, é preciso considerar que as estruturas fisioló-
gicas e mentais possuem uma especificidade e que não
podemos explicar suas relações por uma soma de coin-
cidências, ou pelo isomorfismo entre os processos bio-
lógicos e físicos. Na medida em que a Gestalt pretende,
mantendo-se numa posição empirista ou objetivista,
fundar-se nas estruturas físicas para explicar os com-
portamentos humanos, a dualidade é restaurada — ela
passa a pensar de acordo com o princípio de causali-
dade e não segundo a “forma”; ao mesmo tempo opta
pelo realismo contra o idealismo, ao invés de superar a
oposição. Conforme Merleau-Ponty, “a forma não é um
elemento do mundo, mas um limite para o qual tende o
conhecimento físico e que ele próprio define”, ou seja,
“a forma não deve ser definida em termos de realida-
de, mas em termos de conhecimento, como um conjun-
to percebido”.57 Ao mesmo tempo que a Gestalt parece
reconhecer isso, utiliza-se das próprias estruturas fí-
sicas como modelo para pensar a percepção, acabando
por transformá-la em acontecimento natural, fazendo
daquelas o fundamento ontológico (a causa) das estru-
turas perceptivas. Ao adotar a explicação causal, a Ges-
talt esqueceria outro dado importante: que as reações
a um estímulo dependem da significação que ele possa
ter para o organismo — o sujeito não é passivo, ao con-

57. Merleau-Ponty, La structure du comportement, Paris, PUF, 1963 (1a. ed.


1942); pp. 153 e 156.
 

115
mário pedrosa: itinerário crítico

trário, é do lado deste que é preciso colocar a iniciativa,


“as reações perceptivas não podem se explicar por mo-
delos físicos a não ser nos casos em que se as isola artifi-
cialmente do contexto de ação em que naturalmente se
inscrevem”.58
Mesmo adotando vários conceitos extraídos da feno-
menologia e insistindo cada vez mais no caráter inédito
das formas artísticas, Mário Pedrosa não chega entretan-
to a desenvolver uma crítica completa à Gestalt e suas
referências a Merleau-Ponty são poucas, mas é por indi-
cação sua que os neoconcretos adotarão, no final dos anos
50, a autoridade da Fenomenologia da Percepção para se
afastarem da Gestalt e marcarem sua divergência com o
concretismo. Confira-se, por exemplo, o que diz Ferreira
Gullar, na época, quando acusa os gestaltistas de reafir-
marem, embora não o pretendessem, a oposição Homem-
-natureza. Segundo Gullar,
“no campo da estética, a forma é perfeita em rela-
ção ao que ela exprime e como o que o artista expri-
me não preexiste à sua expressão, a ‘perfeição’ da
forma é encontrada ao mesmo tempo que a forma:
é a expressão mesma. Encarando a forma apenas
como um fenômeno físico — que ela também o é,
sem dúvida — a Gestaltheorie relega para segundo
plano o problema da significação”.59

Gullar, o principal ideólogo do grupo, não escon-


de o quanto naquele momento era discípulo de Mário

58. Ibid, p. 163, Cf. sobre os problemas aqui abordados especialmente os caps.
III e IV.
 
59. “Arte neoconcreta, uma contribuição brasileira”, em Projeto construtivo
brasileiro na arte; p. 166.
 

116
otília arantes

Pedrosa. E foi seguramente a preocupação deste com a


emergência da significação na arte por meio de “símbo-
los novos”, de “formas-intuições ainda não conhecidas”,
com a expressividade e funcionalidade da forma etc. —
questões que transcendem a descrição dos esquemas per-
ceptivos de organização espacial e os inscrevem numa
problemática mais ampla, de dimensão vital da arte —,
que acabou por contaminar os artistas abstratos cario-
cas, inquietos também eles com o problema da expressi-
vidade da “forma”.
Num artigo de 1951, “Forma e Personalidade”, onde
alguns pontos de vista defendidos na tese eram nuan-
çados ou corrigidos,60 afirmando a natureza simbólica
da arte contra o formalismo de Roger Fry, Mário Pe-
drosa insistia no caráter “presente e ativo” do proces-
so de “cristalização da forma na arte”, comparando-a à
capcidade de fabulação do pensamento mágico.61 Dois
anos mais tarde, ao falar sobre a abstração, ou ao
comparar arte e ciência, voltará a insistir no caráter
simbólico da arte, a que denomina então, citando Lan-
ger, de “símbolo presentativo”, não discursivo, a se
comunicar por meio de uma “apresentação integral
e simultânea”.62 Já então o nosso Crítico se avizinha
das teorias de Cassirer sobre a função simbolizadora
do espírito. Ao relativizar o objetivismo da Gestalt,
acaba se alinhando também, num certo sentido, ao
transcendentalismo das filosofias neokantianas.

60. Foi por sugestão do próprio Mário Pedrosa que publicamos esse ensaio jun-
tamente com a tese, pois para ele os dois escritos eram complementares.
 
61. Cf. “Forma e Personalidade”; AFP, pp. 113-118; FPE, pp. 210-214.
 
62. “As relações entre a ciência e a arte”; ANV, p. 204; FPE, pp. 249-250.
 

117
mário pedrosa: itinerário crítico

Sem renegar de todo sua tese, parece compartilhar


a posição de Cassirer, quando considera que as leis ges-
tálticas concernem apenas ao curso das representações,
mas não tornam inteligíveis “as figuras e as formas origi-
nais que produzem em se agenciando, as representações
e a unidade de ‘sentido’ que se estabelece entre elas”.63
Como se sabe, apesar de propor uma gramática da fun-
ção simbólica, Cassirer mantém-se bastante distante do
objetivismo e do sensualismo (a expressão dele próprio)
dos psicólogos da Gestalt. Seu propósito é antes de mais
nada explicar a instauração pelo espírito de significações
novas: os diferentes produtos da cultura, originados jus-
tamente da tentativa de transformar o mundo passivo
da simples impressão, em que o espírito parece inicial-
mente fechado, em um mundo de pura expressão. Só
através dessa atividade produtora do espírito, portanto
da ação, é que o ser se tornaria acessível. 64 Nas palavras
do filósofo:
“Os signos simbólicos que encontramos na lingua-
gem, no mito e na arte, não são primeiro para adqui-
rir em seguida, para lá de seu ser, uma significação
determinada: todo o seu ser, ao contrário, decorre
da significação. Seu conteúdo específico se confunde
pura e simplesmente com a função de significar”.65

Desse ponto de vista, a oposição subjetividade ver-


sus objetividade se desfaz na medida “em que em cada

63. Cassirer, La Philosophie des Formes Symboliques, Paris, Minuit, 1972; p.


47.
 
64. Ibid.; p.2l.
 
65. Ibid.; p.50.
 

118
otília arantes

signo que projeta livremente, o espírito apreende o ob-


jeto, apreendendo ao mesmo tempo a si próprio e a le-
galidade de sua atividade imaginária”.66 Estamos muito
próximos da Crítica do Juízo ou, ao menos, dentro de
uma problemática que se inscreve no desdobramento
do kantismo. É aliás o próprio Mário que nos adverte
que, ao explicar o processo elementar de simbolização,
Cassirer combina “a análise dos dados da experiência
em Kant” aos “dados experimentais da Gestalt quanto à
percepção”67 – talvez dando mais ênfase à essa do que o
faria o próprio Cassirer. Em resumo, para o mestre ale-
mão é preciso nos atermos, de início, à “forma interna”
de cada uma das expressões do espírito, mas, como fi-
cou dito, cientes de que as regras gestálticas são apenas
descritivas e não dão conta do significado e da especifi-
cidade de tais manifestações.

Por vezes, nos ensaios de Mário Pedrosa, das déca-


das de 50 e 60, sobre a problemática da sensibilidade,
reminiscências dessas lições de Cassirer reaparecem,
quase ipsis literis, como ao afirmar que “a arte parti-
cipa da natureza simbólica do pensamento humano”,
mas, ao contrário do símbolo verbal discursivo, não
possui um objeto prévio:
“É a objetivação sensível ou imaginária de uma
nova concepção, de um novo sentimento que pas-
sa, assim, pela primeira vez, a ser entendido pe-
los homens, enriquecendo-lhes as vivências. O
artista apenas organizou para nós, para nosso

66. Ibid.; p. 34.


 
67. “Das formas significantes à lógica da expressão”; MHAC, p. 62; FPE, p. 302.
 

119
mário pedrosa: itinerário crítico

conhecimento, para nossa contemplação, uma


forma-objeto, um objeto-sentimento, um senti-
mento-imaginação. E esta forma se nos apresenta
não como uma comunicação de algo preciso que
existia e continua a existir lá fora, no mundo exte-
rior ou num lugarzinho bem determinado do mun-
do interior do artista, mas como uma aparição que
para, como uma estrutura acabada, e que se repete
por inteiro e sempre de súbito cada vez que entra-
mos em contacto com ela”.68

Num outro ensaio, quase contemporâneo ao que


vínhamos citando, depois de referir-se à posição de
Cassirer a respeito das formações simbólicas, afirma,
em total sintonia com o autor citado, que os símbolos
na arte, por serem diferentes dos da fala ou de outras
modalidades de informação prática, como os sinais de
trânsito, não podem ser transpostos de um contexto a
outro, só agem “na obra em que se apresentam, onde
funcionam como os concretizadores de sua qualidade
expressional”.69 Nesse sentido, cada forma simbólica
representaria, segundo a fórmula de Goethe, retoma-
da por Cassirer, uma “síntese do mundo e do espírito”70
(justamente o que tanto perseguia Mário Pedrosa nes-
sas suas idas e vindas).

68. “Problemática da Sensibilidade I”; MHAC, pp. 14-15; FPE, p 269-272.


 
69. “Arte, linguagem internacional”; JB, 17.02.60. Rep. em MHAC, p. 54.
 
70. Cassirer, op. cit.; p. 55.
 

120
otília arantes

Mário Pedrosa em debate sobre arte abstrata no Ministério da Educação, em 1952.


Foto da Revista Guaíra, número 40, Curitiba, setembro de 1952.

Dentro desse horizonte teórico, o próprio dilema fi-


guração versus abstração deixaria de ter pertinência. A
novidade da arte moderna estaria no fato de ela ter dei-
xado de ser simples representação, quer ela seja figurati-
va ou não: ela é em si mesma forma-expressão. O grande
realismo e a grande abstração acabariam pois por con-
vergir, como queria Kandinsky.71 O conceito de realidade
teria ganho assim uma outra dimensão, bem diversa dos
lugares comuns do “realismo social” e do “naturalismo
acadêmico”. Dentro desse espírito, Mário Pedrosa, ao
tentar, em Forma e Personalidade, estabelecer uma
ponte entre o formalismo extremado de Fry e o subjeti-
vismo de Breton, chegou a dizer que a querela do realis-
mo e não-realismo estaria superada, na medida em que

71. Kandinsky, Tutti gli scritti; p. 122-123.


 

121
mário pedrosa: itinerário crítico

não se considere o conteúdo da obra como alguma coisa


que exista independentemente dela, tanto quanto a for-
ma, como algo que se acrescente de fora. Portanto, não
há que quebrar a cabeça para saber se estamos diante de
“uma realidade formal ou de um formalismo real”, pois
a realidade na obra é a realidade da própria obra72 —é
preciso, isso sim, ficar atento à “verdade estética”, como
muitas vezes alertou. Foi o que o fez recorrer à Filosofia
das Formas Simbólicas, completando e corrigindo os
dados experimentais da Gestalt, de modo a melhor cap-
tar a especificidade do estético.
A arte como forma simbólica fica, entretanto, confi-
nada ao plano gnoseológico mais estrito e, assim, se as
leis do universo ou as formas do mundo físico não for-
necem recursos suficientes para explicá-la, também as
teorias da consciência transcendental não esgotam a ex-
periência estética. Para Mário Pedrosa, a arte é uma for-
ma de conhecimento, mas também um fenômeno vital,
no qual está implicado o homem não mutilado e, com ele,
a sociedade global. Portanto, sem nunca ter formulado
uma teoria acabada da arte, vai combinando uma série
de sugestões teóricas que lhe permitem pensá-la no seu
conjunto. Por exemplo, ao voltar sua atenção para a arte
primitiva, mobiliza conhecimentos que lhe permitem
relacionar aquelas formas artísticas com o modo de vida
das sociedades arcaicas. Do mesmo modo, comparando
a criança, o esquizofrênico e o artista, é obrigado a dar
atenção aos problemas ligados ao inconsciente.
Enquanto na tese de 1949 são discutidas diferentes
teorias da percepção, especialmente da percepção es-
tética — por exemplo, o associacionismo (Deonna), a

72. “Forma e Personalidade”; AFP, p. 88-89; FPE, 185-186


 

122
otília arantes

posição utilitarista e sentimentalista de Rignano, os


critérios mnemônicos de Thurston —, o enfoque psica-
nalítico é de imediato descartado “por uma questão de
método”, à medida que encara o problema unicamente
pelo lado subjetivo do artista (o que é incompatível com
uma psicologia “concreta”). Já no texto publicado dois
anos depois, Forma e Personalidade, o debate vai girar
justamente em torno dos substratos emocionais que po-
deriam estar por detrás do prazer estético. Embora ain-
da seja para mostrar que o fenômeno artístico escapa à
pura interpretação psicanalítica (freudiana ou junguia-
na), que esta não dá conta dos “autênticos impulsos es-
téticos” que moveram o seu criador.73 Mas a explicação
da obra de arte já começa a se deslocar, deixando espaço
para o modelo interior. A própria preocupação com as
manifestações primitivas da arte (centrais nesse texto),
obriga-o a questionar a relação entre as fantasias ou os
valores simbólicos e as estruturas formais. Se não é o
inconsciente que confere à forma sua eficácia criadora,
é inegável a presença na arte de conteúdos ideoafetivos.
Enquanto fenômeno expressivo, reconhece nosso Au-
tor, ela “se organiza pela simbiose do elemento psíquico
e do elemento formal”.74 Descartando o formalismo ex-
tremado de Fry, pretende mostrar antes de mais nada
que, entre uma posição que valoriza a forma e outra que
enfatiza a subjetividade, não haveria obrigatoriamente
querela. Mas ainda aí é a Gestalt (da qual aliás ele nun-
ca se dissolidarizará inteiramente) que lhe fornece a
chave.

73. Ibid.; AFP, p. 85; FPE, p. 182


 
74. Ibid.; AFP, pp. 88-89; FPE, pp. 185-186
 

123
mário pedrosa: itinerário crítico

Nesse artigo, de 1951, recorrendo a Jeanne Hersch,


Minkowska, Heinz Werner, Prinzhorn e outros, acaba
adotando uma posição muito semelhante a de Breton
em 1941, nos Estados Unidos, quando este último, fa-
zendo um balanço do surrealismo e recorrendo à psico-
logia da época, especialmente à Gestalt, sustentava que,
entre as qualidades sensíveis e as qualidades formais,
não há distinção, e que o automatismo gráfico obedece
a tensões individuais profundas, ao mesmo tempo que
é capaz de satisfazer plenamente a vista ou o ouvido por
sua unidade rítmica.75 Indo pela mesma trilha, Mário
Pedrosa tentará conciliar os impulsos inconscientes ou
de afirmação e os de ordenação formal — uma de suas
preocupações centrais, como temos insistido. No en-
tanto, mesmo abrindo uma brecha para o inconsciente,
este é pensado, em contrapartida, como uma região que
não escapa às leis gestálticas (ao contrário da psicaná-
lise que, justamente, considera a percepção profunda
ou os processos primários como destituídos de Gestalt).
Para Mário Pedrosa, tudo o que escapa a essa estrutura-
ção será sempre visto como da esfera da psicopatologia,
fugindo do domínio estético para o campo da clínica.
Três anos mais tarde, comentando o livro de Su-
zanne Langer, Form and Feeling, e reportando-se a
Ehrenzweig (The Psychonalysis of Artistic Vision
and Hearing), parece afrouxar um pouco essa posição,
ao reconhecer que a percepção visual “não é apenas um
processo sensorial e mental da superfície”, mas que vem
do inconsciente e se cristaliza na consciência depois de
“uma luta entre as várias camadas perceptivas”. Con-

75. Ibid.
 

124
otília arantes

sequentemente, embora reafirmando que toda forma


criada se organiza como aperfeiçoamento ou arran-
jo da forma perceptiva primária, é obrigado a convir
— contrariando a crença dos psicólogos da Forma na
prevalência da organização estável e compacta da boa
Gestalt na arte — que isto “não se dá sem contradições,
sem atritos e sem conflitos” entre ambas. Donde resul-
taria “a maior dose de significação emocional” da forma
artística: “Ela se sobrepõe como um enxerto na forma
perceptiva que a sobrepuja contra a vontade desta de
permanecer, de resistir à medida que o artista mais se
aferra sobre ela para modificá-la.” E conclui, levando-
-nos a deduzir que as estruturas gestálticas são antes de
tudo padrões culturais rígidos:
“O comum dos homens é mais sujeito que os artistas
às percepções das formas privilegiadas na concep-
ção gestaltiana, formas fortes, prenhes, natural-
mente de predominância figural. Mas os padrões
menos organizados, de maior oscilação de partes,
ou de ambivalência marcada na relação figura-fun-
do não são por isso mais facilmente descartáveis
que as outras na visão do artista. Pode verificar-se
até o contrário, que a sua ambiguidade mesma seja
um elemento de atração a mais”.76

Como se percebe, Mário Pedrosa esteve a ponto de


abandonar os esquemas da Gestalt, mas não chegou a
fazê-lo de todo: após as considerações acima, recorre-
rá a uma lógica da visão para voltar a dizer que “a rica
ambivalência dos símbolos presentativos” (S. Langer)
acabaria, apesar de tudo, por se cristalizar em formas

76. “Das formas significantes à lógica da expressão”; MHAC, p. 67; FPE, 302.
 

125
mário pedrosa: itinerário crítico

articuladas, obedecendo a um “impulso insopitável”


para a estruturação (Warendock) que sujeita todo o
material fragmentário, os elementos amorfos ou aluci-
nações a uma organização da qual, apesar da complexi-
dade e das alternâncias, podem dar conta os esquemas
gestálticos.77 A experiência ou o sentimento estético
tornam a coincidir com a percepção dentro da qual as
sensações se disciplinam e se fundem.78

DA TEORIA À PRÁTICA

É em nome desse princípio que Mário Pedrosa se manterá


sempre extremamente reticente em relação às tendências
“informais” na arte. Primeiramente quanto à designação
que lhe parece totalmente imprópria, pois, como escreve
num artigo de 1959 — “Do informal e seus equívocos” — a
forma é o elemento primeiro de toda percepção e sem ela
não se poderia discernir coisa alguma, mormente numa
tela que, apesar dos pesares, ainda se destina a ser vista”.

77. Ibid.; MHAC, p. 66-67; FPE, 306.


 
78. Mário Pedrosa não chega a proceder a uma crítica radical da Gestalt,
como por exemplo Ehrenzweig. Embora o cite, não adota integralmente seus
argumentos. Para Ehrenzweig, uma técnica livre de Gestalt não constitui
por si só a arte, mas é fundamental a participação da “mente profunda”
simbolizada nesta técnica. Sua crítica à redução do estético aos esquemas de
superfície acompanha a da “ilusão de exterioridade” — que projeta a origem
do sentimento estético do mundo interior para o mundo físico. Segundo ele, “a
experiência emocional na arte não depende da estrutura do objeto externo da
arte, mas é determinada pela luta entre o movimento da forma inconsciente e a
reação do Superego”. Assim também, a pregnância da forma ou a “boa forma”,
enfim, o prazer estético ligado ao belo (ao simples e harmonioso) é resultado
da ação organizadora e repressora dos processos secundários sobre o conteúdo
simbólico próprio aos impulsos primários; é fruto, antes, da cultura, do que
o inverso — os “sentimentos estéticos” servem ao Superego contra a pressão
exercida pela percepção inconsciente (mais livre e indiferenciada entre os
primitivos). Cf. The Psychoanalysis of Artistic Vision and Hearing e The
Hidden Order of Art.
 

126
otília arantes

E explica: ela
“não é apenas a regular, a geométrica, a forte, no
sentido gestaltiano. Mancha é, aliás, a primeira
das formas que se veem e que se estudam nas ex-
periências perceptivas da Gestalt, pois mancha é o
que de mais elementar e primeiro se destaca do fun-
do. O que se pode dizer, com precisão, é que a pintu-
ra tachista atual é uma pintura de predominância
do fundo sobre a figura.”79

Mas sua desconfiança vai mais além, envolve esse


tipo mesmo de arte de “efeitos cacofônicos”, “sem ca-
dência e sem direção preferencial”. Pollock, Kline,
Mathieu (este último de maneira extremada) são con-
siderados por ele frutos da crise contemporânea, daí a
distância que os separa da criação artística “pura”. Ao
sacrificarem as preocupações plásticas ao narcisismo,
às fantasias idiossincráticas, a interesses singulares
de ordem moral ou utilitária, os tachistas teriam sido
prisioneiros da primeira fase do processo criativo — o
da projeção —, enquanto a criação artística deve con-
sistir na passagem para um segundo estágio, de “sim-
plificação e cristalização da expressão”.80 Estaria Mário
Pedrosa pretendendo propor, em oposição a essa pin-
tura, uma outra, de predominância figural? Acredito
que não, mas sua posição a respeito não se esclarece
inteiramente. É bem verdade que, apesar de sua gran-
de maleabilidade em matéria de renovação estética,
nunca abandonou o critério da universalidade, em

79. “Do informal e seus equívocos”, JB, 16.11.59. Rep. em MHAC; p. 34.
 
80. “Da abstração à autoexpressão”, JB,19.12.59. Rep. em MHAC; p. 35-48; p.
36-37; FPE, p.316.
 

127
mário pedrosa: itinerário crítico

nome do qual tenderá sempre a privilegiar as formas


mais depuradas da pintura construtivista, ou aquelas
obras, de um passado recente, das quais se pode falar
em “ideações puras ou desnudas, sem compromissos ou
insuspeitadas” (Cézanne, Kandinsky, Klee, Malevitch,
Mondrian, Delaunay, Boccioni, Calder...).
“A arte moderna, nas suas formas mais audazes,
nas suas manifestações aparentemente menos
sensíveis e humanas, está formulando certas pre-
missas indispensáveis a um novo homem ou a uma
humanidade bem diferente desta que estamos vi-
vendo, com apreensão, os derradeiros lances”.81

Em plano nacional, o destaque vai para artistas


como Mavignier, Serpa, Palatnick, Aloisio Carvão, Dé-
cio Vieira, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amílcar de Cas-
tro, Mary Vieira, Lygia Clark e Volpi. Assim, apesar das
ressalvas quanto a certas tendências da arte concreta,
Mário Pedrosa afirmava que “seja como for, paulistas e
cariocas do campo concretista representam, em vários
graus, boa parte das esperanças brasileiras no futuro
de suas artes visuais”.82

81. “Das formas significantes à lógica da expressão”, MHAC, p. 71; FPE, 310.
 
82. “Paulistas e Cariocas”; in op. cit., p. 138.
 

128
otília arantes

Amilcar de Castro, sem titulo, década de 60


aço, 54 x 54 x 12 cm
colecão Delcir da Costa

Lygia Pape, Pirâmide, do Livro da arquitetura, 1959-60


têmpera sobre cartão, 30x 30 x 0,3 cm fechado.
Arquivo da artista

129
mário pedrosa: itinerário crítico

Como se vê, a aposta de Mário Pedrosa na arte abs-


trata ou concreta e as pesquisas teóricas no intuito de
justificá-la, tem um embasamento muito real: no fundo
é a mesma aposta no poder regenerador da arte feita pe-
los artistas de vanguarda no início do século. Descar-
tando a acusação feita pela crítica segundo a qual essa
arte seria meramente “decorativa”, expressão de um
ponto de vista superficial, procura justificá-la nos se-
guintes termos:
“Com efeito esta arte não visa enfeitar a vida, mas
antes harmonizá-la, arrancá-la de seu desespero e
de suas contradições trágicas. Ela visa interpretá-
-la em função do mundo natural, antinatural ou
hipernatural criado pela ciência e pela técnica e
que a enquadra. Seu empenho consiste exatamen-
te em acabar com a terrível dicotomia da inteligên-
cia e da sensibilidade; em fundi-las de novo como
quando o homem tomou pela primeira vez cons-
ciência de seu destino e de seu ser à parte. (...) Os
próprios concretistas, ageométricos ou constru-
tivistas, procuram trazer ao mundo, ou melhor,
reatualizar no plano da mentalidade hodierna,
um modo de conhecimento abandonado pela ci-
vilização ocidental; eles querem rejuvenescê-lo,
por meio de símbolos novos, de formas-intuições
ainda não conhecidas, de origem imaginária ou
extraperceptiva”. 83

Dentro desse projeto, foram os neoconcretos que


chegaram mais próximo da síntese: “Repelindo as for-
mas seriadas do concretismo e reabsorvendo o velho

83. “Problemática da Sensibilidade II”; MHAC, p. 20; FPE, 275-277.


 

130
otília arantes

apelo expressional, banido da arte concreta, o neocon-


cretismo buscava uma obra total”. 84
Se, no entanto, recuarmos um pouco até o território
comum de concretistas cariocas e paulistas, apreciado na
sua tendência de conjunto, não só veremos Mário Pedrosa
identificar o verdadeiro fio condutor da síntese encarecida
há pouco, como teremos a chave do capítulo brasileiro da
arte abstrata, aliás não por acaso fornecida ao nosso Crí-
tico por um observador estrangeiro, com razão espantado
com o paradoxo do concretismo num país periférico. Se-
gundo relata o próprio Mário Pedrosa, um crítico austría-
co, visitando em 1959 uma exposição brasileira itinerante,
da qual participavam, entre outros, Ivan Serpa, Volpi,
Lygia Clark, Milton Dacosta e Décio Vieira, estranhou a
predominância do abstracionismo geométrico na mostra.
Onde o “infalível exotismo”, a cor local, as exuberâncias
tropicais, onde enfim a suposta imagem do país?
Note-se que, à exceção da expectativa da natureza
retratada ao vivo, derivada tacitamente de uma espécie
de divisão internacional do trabalho (para os europeus,
as grandes tendências da arte mundial; para um país de
passado colonial, o pitoresco do lugar), o desconcerto do
Sr. Lampe era da mesma ordem que a resistência dos figu-
rativos brasileiros à implantação da arte abstrata no país
de Portinari. A explicação que encontrou não deixa de ser
engenhosa: não devia se tratar de mero formalismo de im-
portação, mas sim do resultado de um cálculo deliberado,
de uma vontade profunda, justamente o desejo de se de-
fender contra essa natureza caótica e borbulhante, contra
a circunstância ameaçadora dos trópicos.

84. “Época das Bienais”; MHAC, pp. 287-297; p. 290; PA, pp. 256-271, pp.
262-263.
 

131
mário pedrosa: itinerário crítico

Mário Pedrosa aproveitou a deixa e deu-lhe uma feição


global, explicativa das verdadeiras anomalias nacionais.
Sintaxe e gramática da arte abstrata não só tinham cabi-
mento na periferia como estavam a serviço de um projeto
de reconstrução nacional.
“A nitidez, a lógica das novas estruturas, a desco-
berta súbita, reveladora, da beleza das formas or-
togônicas que ensandeceram Mondrian (‘a sublime
beleza da linha reta não encontrada na natureza’)
como a invenção da perspectiva torrou os miolos
de Ucello, num intervalo de cinco séculos; a pureza
enfim do novo vocabulário, surgiam àqueles artis-
tas como o antídoto às deliquescências românticas
ou folclóricas, falsamente ingênuas, a um figurati-
vismo banalizado nos temas e nas formas usadas de
um elenco exausto, destinado a contentar uma ma-
gra clientela de burgueses ou pequeno-burgueses
provincianos”.85

Um antídoto destinado a ocidentalizar de vez nossa


velha ordem colonial, cujas pragas transpareciam na
supremacia da ideologia localista no plano da cultura,
mesmo modernista, como se a arte abstrata, banindo a
cor local, pudesse enfim desprovincianizar o país e ao
mesmo tempo balizar a ruptura com a ordem interna-
cional que aprofunda o atraso: uma mudança de sensi-
bilidade que

85. Ibid.; MHAC, p.292; FPE, pp. 263-265.


 

132
otília arantes

Hélio Oiticica, Relevo espacial, 1959


óleo sobre madeira, 150 x 63 x 50 cm
Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro

“se traduzia numa necessidade imperiosa por assim


dizer da ordem contra o caos, de ordem ética contra
o informe, necessidade de opor-se à tradição su-
postamente nacional de acomodação ao existente,
à rotina, ao conformismo, às indefinições em que

133
mário pedrosa: itinerário crítico

todos se ajeitam, ao romantismo frouxo que sem


descontinuidade chega ao sentimentalismo, numa
sociedade de persistentes ressaibos paternalistas
tanto nas relações sociais como nas relações de pro-
dução. A tudo isso acrescenta-se a pressão enorme,
passiva, de uma natureza tropical não-domestica-
da, cúmplice também no conformismo, na conser-
vação da miséria social que a grande propriedade
fundiária e o capitalismo internacional produzem
incessantemente”.86

  A implantação bem sucedida da arte abstrata no


Brasil — como atestava o valor das obras e o público
reencontrado — não significava apenas uma revolução
no gosto, mas parecia anunciar um recomeço ético-
-espiritual, num país de nonchalance, acomodações e
falta de rigor; Mário Pedrosa chegava a imaginar uma
renovação tão ampla decorrente dessa nova reviravolta
modernizante, cuja extensão faria pensar num segun-
do outubro de 1930: “E agora podemos divagar. Será
que no futuro iremos ver manifestações dessa mesma
autodisciplina, desse espírito menos complacente con-
sigo mesmo, em outros campos, imediatamente mais
importantes e ponderáveis, como os da administração
pública, da política, da educação?”.87 Devaneios à parte,
o certo é que Mário Pedrosa considerava a abstração tão
bem ajustada às exigências nacionais quanto, no pas-
sado, o primeiro modernismo; agora era a própria arte
abstrata que, impelida pela “dialética cultural do país”,

86. Ibid.; MHAC, p.29l.; FPE, p.263.


 
87. “O paradoxo concretista”, JB, 24.06.59. Rep. em MHAC, pp. 25-27; p. 26.
 

134
otília arantes

passava a representar resultados locais contrapostos à


simples voga internacional que os desmantelaria:
“O movimento concretista foi o primeiro movimento
brasileiro a apresentar resistência aos ventos inter-
nacionais então predominantes. E tanto assim é que
o apego das jovens vanguardas artísticas brasileiras
— vanguardas não só pela juventude como sobretudo
pelas concepções estéticas — às formações mais seve-
ras e universais da abstração geométrica, ao cabo de
algum tempo começou a causar irritação e impaciên-
cia a muita gente e sobretudo, à crítica internacional,
já aferrada em sua maioria a uma estética subjetiva
romântica, então reinante por toda parte sob a desig-
nação de ‘tachismo’ ou ‘informal’. Não se compreen-
de aquela resistência brasileira, por tanto tempo, à
corrente internacional. Todos aqueles não atinavam
que se essa resistência local era capaz de enfrentar a
moda internacional, era porque não podia deixar de
ter raízes na própria dialética cultural do país”.88

A segunda observação de Mário Pedrosa dá a chave


dessa inesperada integração cheia de promessas de re-
generação nacional, bem ao feitio do Modernismo his-
tórico, também empenhado numa remodelação do país.
Trata-se, por assim dizer, do suporte material dessa mes-
ma vontade construtiva: ela se exprimiria e se apoiaria
no “formidável peso estético e cultural da nova arquite-
tura no Brasil”. Diretamente enraizada na esfera pública
da produção, a Nova Arquitetura que vinha se firmando
desde os anos 30, passara a ocupar uma invejável posição
hegemônica na evolução da cultura material do país. A

88. “Época das Bienais”; MHAC, p. 291; FPE, p. 263.


 

135
mário pedrosa: itinerário crítico

grande síntese anunciada pelas vanguardas históricas e


reativada pelo projeto construtivo da arte abstrata esta-
va agora nas mãos da arquitetura moderna, a cuja insta-
lação brasileira Mário Pedrosa dedicará o melhor de seu
esforço crítico. No plano propriamente estético, a conta-
minação recíproca de arquitetura e abstração era uma
prova suplementar do rumo que deveria tomar a sensi-
bilidade moderna no Brasil — por isso insistirá nas pro-
vas locais dessa confluência, ora destacando a Estação de
Hidroaviões de Atílio Correia Lima como uma das mais
perfeitas obras abstratas que se criaram entre nós, ora
salientando na abstração de Volpi, Lygia Clarck ou Da-
costa, a “irmã de leite dessa arquitetura”.
“Como se era ingênuo”, dirá Mário Pedrosa, pensando
em sua aposta na civilização “visual” e, com ela, na revi-
talização da intuição como a grande missão educativa da
arte moderna, diante das técnicas de comunicação que se
tornaram senhoras do mundo. Mas já então estaríamos
numa outra fase, quando a arte moderna, ainda que não
saiba, passa a se debater comprimida entre a informação
e a expressão. Nesse momento torna-se necessário averi-
guar quais as estruturas globais que podem permanecer
intactas, exprimindo o domínio do inteligível, quando
campos perceptivos se dilatam cada vez mais na busca
de um marco inatingível de uma percepção exaustiva. —
“Por quanto tempo a percepção estética poderá ainda fun-
dar-se nos afinal arcaicos ensinamentos das experiências
primeiras?”89 — pergunta-se o Crítico, que se vê obrigado
a também conceder um lugar às Teorias da Informação,
na medida em que expressam um conflito aberto nos li-
mites perceptivos do indivíduo numa sociedade de mas-

89. “Especulações Estéticas”. Em especial MHAC, p.134; e FPE, pp. 361-362.


 

136
otília arantes

sa. Mas já então a crítica de Mário Pedrosa entrara no seu


derradeiro capítulo, o da arte pós-moderna.

137
 

Mário Pedrosa entre Affonso Eduardo Reidy e Lucio Costa,


Rio de Janeiro, início da década de 1950.

138
CAPÍTULO III

BRASÍLIA, SÍNTESE DAS ARTES

Mais conhecido como crítico de artes plásticas, Mário


Pedrosa também teve um papel relevante nos debates
sobre a arquitetura brasileira contemporânea, especial-
mente por ocasião da construção da Nova Capital.
Se ao voltar ao Brasil, em 1945, passa a navegar à
contracorrente da opinião dominante nas artes plás-
ticas — sobretudo nos primeiros anos mais polêmicos
da batalha da Abstração —, mostra-se, contudo, intei-
ramente afinado com a linha, já então hegemônica,
da Arquitetura Moderna, na qual reconhecia o ponto
conclusivo do projeto construtivo que tanto defende-
ra. Um projeto que ainda esbarrava, como vimos, na
resistência muito arraigada de inúmeros artistas e
críticos importantes, modernos, porém inconforma-
dos com a lógica que afastava a arte contemporânea da
figuração.
Seguindo a tradição moderna, Mário Pedrosa atri-
buía à arte uma função de síntese que só a Nova Arqui-
tetura poderia de fato realizar, caso finalmente tomasse
corpo a utopia totalizadora e internacionalista que a
animava. A evolução do debate em torno da arte abstra-
ta, que na época confundia-se com a própria vanguar-
da, levou-o naturalmente à discussão dos pressupostos
e implicações da Arquitetura Moderna, encarando-a
como a verdadeira “síntese das artes”, a seu ver exem-
139
mário pedrosa: itinerário crítico

plarmente prefigurada, mais tarde, em Brasília, a “cidade


nova” por excelência. Aliás o título polêmico do Congres-
so Internacional de Críticos de Arte, de 1959, “Brasília,
síntese das artes”, reunido no Brasil para estudar de perto
a nova capital em construção, foi sugerido pelo próprio
Mário Pedrosa. Começam aí, entretanto, as dificuldades,
num projeto assim sobrecarregado de intenções. Cedo ou
tarde, a análise de um processo tão intrincado quanto o
desenrolar da atividade projetual exigida pela Arquitetu-
ra Moderna — e em particular, o exame do caso Brasília
—, revelaria por assim dizer ao vivo os impasses dessa
mesma Modernidade.
Mais explicitamente que no restante de sua crítica
de arte, começa a abordá-los pelo nó das relações entre
o nacional e o internacional na arte, talvez porque na
arquitetura a base material da produção seja decisiva e
interfira mais diretamente no seu rumo; fica assim mais
difícil, por exemplo, contrabandear o “sotaque” brasi-
leiro — tentação muito grande conforme aumentava o
prestígio da nova arquitetura nacional no exterior. Em
conferência pronunciada na França em 1953, Mário Pe-
drosa lembraria, portanto, de saída, a regra geral de
uma cultura dependente, a preponderância do influxo
externo1: “a Arquitetura Moderna no Brasil, apesar de
sua súbita emergência, não é uma eclosão espontânea.
Como em várias manifestações de ordem cultural, é no
exterior que é preciso buscar sua origem.”2 Com uma

1. Na fórmula clássica de Machado de Assis, extensamente comentada por


Roberto Schwarz.
 
2. Publicado em L’Architecture d’Aujourd’hui, n. 50-51, Paris, dez. 1953. Rep.
em trad. de Aracy Amaral em MPEB, pp. 255-264; p. 255. Cf. comentários de
Aracy Amaral, em Arte para quê?, op. cit.; pp. 283-285.
 

140
otília arantes

diferença, no entanto. Sabe-se que, ultrapassada a pri-


meira etapa de atualização acelerada, os modernistas da
fase heroica passaram a subordinar a experimentação
estética à pesquisa do caráter nacional, que afirmavam
ter sido sufocado pelo superego europeu do brasileiro
cultivado: o primitivismo local, reabilitado e estetizado
pelas vanguardas, entrava em nova fase de empenho na-
cionalista, caindo em desgraça a tentação abstrata das
novas escolas europeias. Isto nos anos 20. Com muito
mais ênfase, a tendência social predominante na déca-
da seguinte reagiria a qualquer inovação que parecesse
ameaçar a chave do momento, a figuração das desgraças
do nosso povo oprimido: como retratá-lo com os recur-
sos rarefeitos de uma arte que por ser abstrata estava à
mercê do mais indiferente cosmopolitismo? As coisas
só começariam a mudar depois da guerra, com o retor-
no de artistas e críticos que viviam fora do país (entre
eles o próprio Mário Pedrosa), aos quais se juntariam
estrangeiros de passagem ou emigrados. Pela primei-
ra vez apresentavam-se modificados os termos do pro-
blema da internacionalização e, com ele, o de uma arte
decididamente não figurativa. Ora, com a Arquitetura
Moderna deu-se o inverso: desde o início de sua insta-
lação no país parece ter havido unanimidade quanto
ao seu caráter pouco nacional. Noutras palavras, a
grande arquitetura brasileira que começava a fazer
sucesso lá fora era justamente a mesma arquitetura
internacional transposta para cá tal e qual, com todos
os seus preceitos puristas. No entanto, como vinha
acompanhada de um discurso utópico, convergia com
as aspirações modernizantes gerais.
É bem verdade que no início houve um pequeno
descompasso. Como sabemos, num primeiro
141
mário pedrosa: itinerário crítico

momento, na hora mais exaltada de redescoberta


do Brasil, os modernistas se voltaram para a
arquitetura neocolonial (um passo em falso? — até
hoje não se sabe ao certo). Mas o desencontro durou
pouco. Logo Rino Levi, Warchavchik (o manifesto
“Acerca da Arquitetura Moderna” é de 1925), Flávio
de Carvalho e, em seguida, Lúcio Costa e um grupo
de jovens arquitetos cariocas reverteram o quadro,
com a adesão incondicional da nova geração. Em
1930 a exposição da casa da rua Itápolis consagrava
todos os modernistas, mesmo variando motivações
e interpretações do acontecimento, como demonstra
a polêmica entre Oswald e Mário de Andrade. 3 Era
enfim o melhor da tradição construtiva, a linhagem
Loos-Bauhaus que aqui chegava. Igualmente impor-
tante — para Rodrigo Mello Franco de Andrade e Pau-
lo Santos, talvez mais importante que a sacrossanta
Semana de 22 —, foi o Salão de 1931, nem sempre lem-
brado na sua devida dimensão. Uma revolução em
nossos hábitos culturais, que não só abria aquela mos-
tra tradicional à pintura moderna que se firmava no
Brasil, acabando com a exclusividade de que gozavam
os acadêmicos, como pela primeira vez, num evento
dessa natureza, a arquitetura estava representada, e
justamente pela mais avançada da época. Warchav-
chik, convidado a lecionar na Escola Nacional de Be-
las Artes durante a curta gestão de Lúcio Costa — que
durante alguns meses (1930/31) subvertera o ensino
da Arquitetura na antiga Academia Imperial — tam-
bém expunha no Salão, ao lado do próprio Lúcio Cos-
ta, juntamente com Reidy, Gerson Pinheiro, Marcelo

3. Sempre a mesma conferência citada, de 1953.


 

142
otília arantes

Roberto, Moura Brasil e Alessandri Baldassini. É fato


que o mentor da reforma, tanto do Salão oficial quan-
do da Escola, logo foi afastado, mas o processo desen-
cadeado por ele já se tornara irreversível, a ponto de
alguns historiadores, como Abelardo de Souza (aluno
na época daqueles acontecimentos escandalosos) di-
vidirem a história da arquitetura brasileira em antes
e depois daquela intervenção de Lúcio Costa.

Gregori Warchavchik, Casa Modernista da rua Itápolis, 1930.


 

Seja como for, o que se poderia chamar de Arqui-


tetura Moderna Brasileira estava começando naquele
momento. — Conhecemos a sequência, da qual nun-
ca se pode deixar de referir a passagem decisiva de Le
Corbusier pelo Brasil em 1929. Segundo conta Lúcio
Costa, entre 1931 e 1935, formou-se um verdadeiro
143
mário pedrosa: itinerário crítico

reduto de arquitetos puristas reunidos em torno da


doutrina e da obra de Le Corbusier, “encaradas já en-
tão, não mais como exemplo entre tantos outros, mas
como o Livro Sagrado da Arquitetura”. Constitui-se
assim um núcleo de tal forma coeso pela impregna-
ção dos ensinamentos do Mestre que, quando se apre-
sentou a oportunidade de pôr em prática a teoria, a
resposta veio instantânea, na aparência de “espon-
tânea contribuição nativa”. O projeto do Ministério
de Educação, baseado no risco original do próprio Le
Corbusier, sofreria, entretanto, “adaptações” numa
direção que já assinalava os novos rumos da nossa
arquitetura.
  É essa crônica, já hoje bastante conhecida, que
Mário Pedrosa passa em revista para o auditório fran-
cês, em 1953, apoiando-se inclusive no Depoimento de
Lúcio Costa citado acima.4 Ao qual acrescentava, entre
os elementos favoráveis àquela eclosão induzida de ar-
quitetura moderna entre nós, o clima de revolução cul-
tural vivido pelo Brasil de 1930, sem falar na emergente
reorganização capitalista de nossa sociedade, precipitada
pela crise mundial de 29. Tudo parecia concorrer para a
adoção quase imediata e irrestrita das ideias de Le Corbu-
sier — na visão retrospectiva de nosso Autor —, de tal sor-
te que, como evidenciado pelo “milagre” do Ministério de
Educação, “de um dia para o outro a arquitetura moderna
era lançada e parecia ter adquirido a maturidade”. Mário
Pedrosa, para melhor ressaltar a índole revolucionária
deste transplante de ideias num meio ele mesmo convul-

4. Lúcio Costa, “Depoimento de um arquiteto carioca”, in Sobre Arquitetura,


Porto Alegre: CEUA, 1962, pp. 169-201; e Registro de uma vivência, BB/Em-
presa das Artes, 1995, pp. 157-171.
 

144
otília arantes

sionado, chega a chamar de “jacobinos” — mais precisa-


mente, jacobinos do purismo arquitetônico—aqueles
jovens arquitetos ao encontro de cujas aspirações vinha a
utopia corrupiana.

Le Corbusier, desenhos do Ministério de Educação e Cultura no Rio de Janeiro, 1936


Evolução da ideia do edifício, do projeto de Le Corbusier
à solução final encontrada pelos brasileiros.

145
mário pedrosa: itinerário crítico

 Não seria demais lembrar que o próprio Lúcio Costa,


no referido Depoimento de 1951, evocando o estado de
espírito de sua geração, compara-o ao da intelligentsia
positivista do século passado: nos anos 30, a demorada
e minuciosa análise daquele “Livro Sagrado da Arquite-
tura”, também assentaria no “dogmatismo de uma dis-
ciplina autoimposta” e, sobretudo, no “intransigente
apego, algo ascético, aos princípios de fundo moral” que
pareciam inspirar a lição do Mestre. E Mário Pedrosa
completaria, dois anos depois, que foi justamente esse
dogmatismo que lhes permitiu levar a bom termo seu
“papel de militantes”. São correspondências que não se
devem apenas ao acaso das comparações e já anunciam
algo das relações embaraçosas que manteriam com o
Poder Central de uma nação em movimento. Aliás, após
ressaltar a disciplina própria de discípulos e doutriná-
rios, Mário Pedrosa explica que um tal dogmatismo re-
pousava, contudo, num sentimento verdadeiramente
moderno: “a fé nas virtualidades democráticas da
produção em massa” — fé, dizia ele ao público fran-
cês, “que vos falta aqui”. Mas porque deveria estar no
Brasil o futuro do modernismo, ampliado agora pelo
ponto de vista social da utopia corbusiana? Como esse
sentimento, despertado por uma arte de massa como
a arquitetura nova, poderia ter se desenvolvido justo
num país de passado colonial, situado nos confins da
expansão capitalista? Por que seria ele o portador da so-
ciedade ainda por vir, em função da qual fora concebido
o novo projeto construtivo? Ilusão compensatória, refor-
çada pelas marés modernizantes? Mário Pedrosa não se
detém na explicação de seu raciocínio, mas em vários
outros momentos, como veremos, volta a essa vocação
moderna brasileira.
146
otília arantes

Retornando à conjuntura em que se consolidou a


Arquitetura Nova, num meio tão improvável como o
nosso, Mário Pedrosa não deixa de registrar o caráter
contraditório daquela época de transição, para explicar
atos e fatos flagrantemente dissonantes, desde a convo-
cação de Lúcio Costa para dirigir a ENBA até o equívoco
patrocínio da experimentação projetual por uma dita-
dura política, aparentemente convencional, como tan-
tas outras na América Latina.
 

Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos, Jorge Machado Moreira,
Lucio Costa e Oscar Niemeyer, Ministério da Educação e Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 1936

147
mário pedrosa: itinerário crítico

  Em linhas muito gerais, o seu argumento se apoia-


va na seguinte constatação: naquela década confusa,
inaugurada pela Revolução de 30, marcada por confli-
tos internos e violentos entre as várias oligarquias (até
sua concertação, mas também sufocamento, pela dita-
dura do Estado Novo), a direita dominava sem contraste
no plano político, mas cabia aos dissidentes, impelidos
pela fermentação modernista, a hegemonia no plano da
cultura, a ponto de comandar, por vezes, a remodelação
de instituições oficiais — em suma, uma época de ilus-
tração comandada pela reação. Ora, nela a primazia ar-
tística coube à arquitetura, assegura o Crítico.5
Até onde posso saber, Mário Pedrosa talvez seja o
único, não só a associar estreitamente o êxito da im-
portação da Nova Arquitetura à função catalisadora
da Revolução de 30, mas a atribuir-lhe a liderança na
corrida das atualizações culturais que então se conso-
lidavam. Mais do que o romance social, o grande fato
novo e a nota dominante do segundo capítulo moder-
nista teriam se dado no terreno da arquitetura — que
teria exercido uma função tão “revolucionária” quanto,
na mesma época, os murais mexicanos. O paralelo é do
próprio Mário Pedrosa, embora para em seguida desta-
car as diferenças entre uma revolução e outra, e, por-
tanto, também, entre as manifestações culturais que
se seguiram. Enquanto no México se procurou, através
da pintura mural, figurar a epopeia de um povo oprimi-
do, reatando, no plano épico, com a grande civilização
destruída, aqui, pelo contrário, num país como o nosso,
onde, com exceção da mata virgem e de algumas tribos
nômades na Idade da Pedra, tudo veio de fora, tanto o

5. Sempre a mesma conferência citada, de 1953.


 

148
otília arantes

senhor como o escravo, o importante será criar algo


novo. A visada dos jovens artistas estava muito mais
voltada para um futuro a ser construído. Sem dúvida
um raciocínio um tanto tortuoso, mas que estabelece
um contraste a favor do seu argumento.6
Ao mesmo tempo, considerando-se a natureza pouco
revolucionária da Revolução de 30 e o caráter do regime
político que acaba por se instalar, o fato da oficialização
progressiva dessa arquitetura (que de resto não teria
como sobreviver sem o patrocínio dos governantes),
gera contradições que Mário Pedrosa evidentemente
não deixa de referir, enfatizando aliás as disparidades
e conflitos de duas “modernizações”, ora complemen-
tares ora contraditórias. Como sempre, animados pelo
mesmo desejo de compassar o Brasil com o mundo ci-
vilizado, mas nem sempre pelas mesmas razões, os
caminhos da inteligência e do poder público, em mo-
mentos autocráticos de modernização forçada, acabam
se cruzando, em função de circunstâncias históricas
específicas (pois nosso Autor não estava cogitando de
generalidades acerca da simbiose entre arquitetura e
poder do antigo Egito a Mussolini). Simplesmente deu-
-se o caso, lembra Mário Pedrosa (sem novamente po-
der aprofundar a análise), em que as “preocupações de
autopropaganda, de exibição de força”, manifestadas
pela ditadura recém-declarada, ofereceu (literalmen-
te) aos novos construtores a possibilidade paradoxal
de realizar os “ideais democráticos e sociais implícitos
nos princípios racionais e funcionalistas” do Movimen-
to Moderno. A incongruência há de se manifestar na

6. Ibid., pp. 257-258.


 

149
mário pedrosa: itinerário crítico

própria forma dessa arquitetura — “o gosto do suntuo-


so e da riqueza para impressionar os responsáveis pela
ditadura, simbolizada talvez então pelo brio às vezes
excessivo e as formas gratuitas que se tornaram moda”7
— sempre acompanhando esse primeiro retrospecto
em que o nosso Crítico de Arte traz a arquitetura para
o centro das atenções (retomaremos a questão mais
adiante).
Voltando ao argumento central que parece situar
no nosso atraso a condição que nos colocaria no rumo
da história, arquitetura à frente, aproveito a deixa para
lembrar — guardadas evidentemente todas as propor-
ções — que ocorria aqui algo semelhante ao que se pas-
sara na Alemanha, no início do século. Limito-me a
reproduzir os termos em que Benevolo resumiu a ques-
tão, a saber, porque a partir de 1900, a Alemanha se en-
contra no centro da cultura arquitetônica europeia:
“Com efeito, na Alemanha, essa cultura não pos-
sui por trás de si mesma uma tradição comparável
à francesa ou inglesa, a industrialização é de data
recente e as estruturas sociais estão ligadas mais
fortemente ao passado; mas é exatamente a relati-
va ausência de precedentes que permitiu a consti-
tuição de uma minoria de operadores econômicos,
de políticos e de artistas de mentalidade aberta e
progressista, e colocou-os, não em posição polêmi-
ca contra os poderes constituídos — como ocorre
em quase todos os demais Estados europeus — mas
em condições de ocupar alguns postos diretivos
na sociedade em vias de transformações; assim,
os teóricos e os artistas de vanguarda chegam com

7. Ibid.; p.259.
 

150
otília arantes

relativa facilidade a ensinar nas escolas estatais,


encontram-se dirigindo as revistas mais impor-
tantes, orientando as grandes editoras, organizan-
do as exposições, influenciando em grande escala
na produção industrial e também em certa medida
influindo na política cultural do governo”.8

Não estou querendo procurar nenhum Muthesius


brasileiro ou algum equivalente nacional da Deutscher
Werkbund, muito menos aproximar o take off desen-
volvimentista do Estado Novo da fulminante moder-
nização tardia que transformou a velha Alemanha na
primeira potência industrial da Europa; tampouco pro-
longar além do necessário a analogia entre a cooptação
harmoniosa da inteligência modernista num e noutro
país, nas circunstâncias históricas indicadas. A princi-
pal diferença reside aliás — devolvendo-nos ao coração
do nosso problema, que comanda à distância os tateios
clarividentes de Mário Pedrosa, às vésperas da constru-
ção de Brasília — na índole de nossa maior influência, o
“espírito novo” de Le Corbusier. É sabido que o Mestre,
durante a década de 20, confiara o destino de sua utopia
à audácia empresarial da grande burguesia, mas que,
depois da Grande Depressão, passou a considerar que
não haveria mesmo uma mudança decisiva nos rumos
da arquitetura e da urbanística sem a intervenção di-
reta do poder público, mas não um poder público qual-
quer, segundo o antigo figurino liberal; por isso não
hesitou, antes e depois da guerra, em oferecer seus ser-
viços, tanto aos Estados autoritários metropolitanos,

8. Leonardo Benevolo, História da Arquitetura Moderna, trad. Ana M.


Goldenberger, SP: ed. Perspectiva, 1976; p. 374.
 

151
mário pedrosa: itinerário crítico

quanto, aparentemente com maior sucesso, às camadas


dirigentes da periferia, elites modernizantes que con-
seguiam se impor aos setores arcaicos locais, na forma
de Estados fortes e desenvolvimentistas.9 Foi esse o nos-
so caso a partir de 1930. Quanto a saber se por esse ata-
lho (de fato um problema de oportunidade histórica), o
Movimento Moderno estava destinado a reencontrar
afinal sua verdade justamente na periferia do mundo
capitalista, é uma outra questão que não posso decer-
to abordar aqui. Mário Pedrosa sem dúvida a entreviu,
anulando-a, porém, na visão otimista do progressismo
da época.

 
Affonso Eduardo Reidy, Museu de Arte Moderna-MAM, Rio de Janeiro, 1953-58

9. Cf. Otília B. F. Arantes, “Os dois lados da Arquitetura francesa pós-Beau-


bourg”, SP: Novos Estudos n. 22, CEBRAP, SP, 1988 pp. 102-134, p. 116. Rep.
em O lugar da Arquitetura depois dos Modernos, SP: EDUSP-Studio Nobel,
1993, pp. 157-214, p. 181.
 

152
otília arantes

  Ser moderno na Alemanha do anglófilo Muthesius


era uma questão de sobrevivência na corrida imperia-
lista, mas também um impulso promissor favoreci-
do pela ausência de cultura arquitetônica tradicional
estabelecida. Quanto à nossa vocação moderna, não
há dúvida que um passado postiço facilitava as coi-
sas, embora também rebaixasse o mérito dessa mes-
ma vocação. Um peso morto a menos, no entender de
Mário Pedrosa, uma vantagem do “atraso” portanto;
nas suas palavras: “O nosso passado não é fatal, pois
nós o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele
ao nosso destino. Estamos, pela fatalidade mesma de
nossa formação, condenados ao moderno”.10 Era esta
fórmula de conversão do negativo em positivo, uma
das preferidas do nosso Crítico, sobretudo quando se
tratava de definir a civilização do país numa só frase.11
Fórmula mágica, sem dúvida, além de retrato de uma
época tão carregada de expectativas que era possível a
um antigo e tarimbado ativista de extrema esquerda
ressuscitar a velha mitologia do país novo, sem passado
que o condenasse, quando ocorre justo o contrário: a
fatalidade de nossa formação colonial e escravista ain-
da presidia nosso destino, a reboque das novas metró-
poles, como também a faculdade de refazê-lo todos os
dias denotava menos amplidão de horizonte do que es-
colhas culturais epidérmicas e, por isso, renováveis da
noite para o dia. Quando Blaise Cendrars — em quem

10. “Brasília, a Cidade Nova”, Comunicação apresentada no Congresso da


AICA, 1959, pub. in JB 19.09.59. Rep. em MPEB, pp. 345-353, p. 347; e em AM,
pp. 411-421; p.413.
 
11. Cf. “Introdução à Arquitetura Brasileira I”, JB, 23/24.05.59. Rep. em MPEB,
pp. 321-327, p. 321.
 

153
mário pedrosa: itinerário crítico

Mário Pedrosa reconhece ter se inspirado para forjar o


seu axioma — sugeriu esta senha de ingresso na moder-
nidade aos seus amigos paulistas, não o fez sem alguma
condescendência divertida, pois pensava no jovem sem
passado livresco, por definição sempre up to date. Em
suma, nossa irresistível vocação moderna — uma con-
denação que absolvia — era por assim dizer um ready
made achado na Europa.
Está claro que Mário Pedrosa levava tudo isso em
conta ao reexpor para um público europeu as origens da
arquitetura moderna no Brasil, recordando-lhe inclu-
sive a boutade de Paulo Prado acerca do país redesco-
berto pelos modernistas nacionais do alto de um ateliê
da praça Clichy. Também será preciso não perder de
vista que a referida definição da civilização brasileira,
quando usada com parcimônia, lhe servia em primeiro
lugar para ressaltar o que nos distinguia dos vizinhos
andinos e do México, como se viu, e por aí tomar pé na
compreensão da originalidade do nosso modernismo
arquitetônico. Nada disso parece invalidar a impressão
que se procurou sugerir, de que ao atinar com a supre-
macia artística da arquitetura no cenário nacional, so-
bretudo a partir do momento em que reconheceu nela a
“síntese construtiva” da arte moderna no seu conjunto,
Mário Pedrosa, se não sucumbiu inteiramente, reavi-
vou, na interpretação daquela primazia, antigas fanta-
sias modernistas acerca do caráter de nossa civilização.
Mas retomemos o fio da conferência, onde convivem
observações críticas sobre os impasses do presente e
concessões a velhos mitos culturalistas de explicação
das anomalias brasileiras.
Depois de distinguir, como vimos, o modernis-
mo literário — pelo menos numa de suas fases mais
154
otília arantes

características, a do primitivismo ou da cor local


reabilitada e estetizada pelo culto da vanguarda eu-
ropeu ao bárbaro, ao ingênuo, ao alógico etc. —, do
modernismo em arquitetura, cujo purismo interna-
cionalizante fazia justamente abstração (em todos
os sentidos) de qualquer enraizamento nos resíduos
pré-capitalistas do lugar (fosse ele codificado em
termos expressionistas ou cubistas), Mário Pedrosa
volta a invocar nossa condição de país aliviado do
fardo da tradição para sugerir o quanto a tábula rasa
do Movimento Moderno nos concernia diretamente.
Como não se punha (ao menos de forma mais explí-
cita) a questão da arquitetura vernacular, e o ecle-
tismo dos estilos históricos não passava de um frágil
arremedo de segundo grau, estávamos dispensados
da tarefa negativa preliminar de abolir nosso entu-
lho arquitetônico.
Anti-historicistas de nascença (pois não era o mo-
derno nosso habitat natural?),12 não tinha cabimento
para nossos arquitetos descobrir ou redescobrir
o país, fosse ele de vanguarda: para um arquiteto
moderno não há nada primordial que não seja a
realidade física e geográfica com a qual se defronta, de
sorte que o país à sua frente não é uma paisagem pau-
brasil redescoberta, mas apenas algo de inelutável
que “sempre estivera lá, presente com sua ecologia,
seu clima, seu solo, seus materiais”. Realidade bruta,
desencantada, sem nenhum apelo estético portanto, a
ser incorporado numa nova estrutura que lhe subverta

12. Cf. “Reflexões em torno da Nova Capital”, in Brasil, Arquitetura Contem-


porânea, n. 10, 1957. Rep. em MPEB, pp. 303-316, p. 304; e em AM, pp. 389-406,
p. 390.
 

155
mário pedrosa: itinerário crítico

o sentido original. Resta ver se a lembrança da natureza


mortificada pelo colonizador português —evocação
escorada em José Lins do Rego sobre as relações entre
o homem e a paisagem na história da civilização brasi-
leira 13 — não o trará de volta à valorização modernista
da realidade nativa (veja-se nessa mesma conferência
o elogio a Burle Marx por ter concedido “direito de ci-
dadania às plantas plebeias”, contra uma tradição de
conceber os jardins à maneira francesa, com flores de
essências raras, ou plantas altaneiras, como a palmeira
imperial, importada das Antilhas).
É forçoso contudo reconhecer que, por mais
“moderno” que fosse o habitat natural, nossa nova
arquitetura não teria surgido sem o influxo externo e
que o Esprit Nouveau não brotou espontaneamente em
solo brasileiro. Noutras palavras — de Mário Pedrosa
novamente —, é forçoso reconhecer como parte inte-
grante e determinante da evolução do modernismo ar-
quitetônico no Brasil a evidente “defasagem entre uma
arquitetura concebida por seus criadores para colocar a
serviço do homem os benefícios da produção em massa”
e as condições sociais do seu país de adoção. Descompas-
so e incongruências que são afinal a marca registrada
da dependência, que por seu turno exige a importação
em bloco do aparato civilizacional moderno se não qui-
sermos ficar à margem do mundo. Sem que nada garan-
ta que a reiteração desse processo, redimensionando
as desigualdades internas, não venha a agravar ainda
mais a situação de dependência, em função da qual não
podíamos renunciar à modernização que nos era fatal.
Mario Pedrosa, leitor de Trotsky e de Rosa Luxembur-

13. “Arquitetura Moderna no Brasil”, MPEB, p. 264.


 

156
otília arantes

go, sem falar no abc leninista sobre imperialismo e con-


dição colonial, sabia evidentemente disso tudo, mas era
também um intelectual brasileiro fiel à tradição cultu-
ralista de interpretação e acomodação de nossas singu-
laridades. Uma tradição onde alternavam sentimentos
de consternação e entusiasmo, e que, até certo ponto,
dará as coordenadas que orientarão sua reconstituição
da trajetória brasileira dos discípulos de Corbusier.
 

BRASÍLIA, CAPITAL-OÁSIS

Alguns anos mais tarde, para dar conta da ambígua apote-


ose da nossa Arquitetura Moderna que culmina em Brasí-
lia, Mário Pedrosa recorrerá ao conceito de Worringer de
“civilização-oásis”: Brasília não faria senão reproduzir,
ainda uma vez, o paradigma dos reiterados transplantes
artificiais que ocorreram ao longo do nosso processo de
colonização. Vejamos como mobiliza tal conceito para a
interpretação do arremate final do projeto construtivo
brasileiro.
A Nova Capital em construção —1957 — deve ter su-
gerido ao nosso Autor um bom número de reflexões ambi-
valentes acerca do projeto em andamento, a começar pela
clara implicância com o nome Brasília, “horrível nome
sintético”, sugerido, ao que parece, por José Bonifácio
quando propôs a transferência da capital para Goiás; neu-
tralizada entretanto pela adesão entusiasmada à propos-
ta de Lúcio Costa, mas temperada pelas dúvidas de quem
conhece o seu país: “a Brasília de Lúcio Costa é uma bela
utopia, mas terá ela algo a ver com a Brasília que Juscelino
Kubitschek quer edificar?” Como confiar um “empreendi-
mento tão transcendente” a um governo tão dúbio como
157
mário pedrosa: itinerário crítico

o atual? “Que diabo de cidade poderá sair” de um meio


como o nosso? Uma obra “suntuosa e prefeitural”? (Mário
Pedrosa temia que viesse a ser uma nova Pampulha, como
veremos.) O tamanho das inquietações poderá ser medido
pela magnitude das esperanças insufladas pela industria-
lização acelerada dos anos 50:
“Que monstro de ‘modernismos’ e ‘nacionalismos’
não poderá resultar de toda essa barafunda, de
modo a estragar para sempre a fabulosa oportuni-
dade de edificar uma nova Capital para o Brasil, e,
com ela, a de construir, dadas as condições de de-
senvolvimento do país, em plena crise de cresci-
mento, à procura de sua afirmação nacional, o mais
belo padrão de cultura, de civilização e de arte do
século XX?”14

Mas as nuvens que pairam sobre Brasília não se de-


vem apenas à leviandade de nossas classes dirigentes,
ao imediatismo das políticas populistas do período; há
algo de imaturo e ao mesmo tempo anacrônico — pros-
segue nosso Autor, confessando suas perplexidades —,
no “programa” de Brasília, cujo caráter obscuro e hí-
brido acaba se refletindo na vaguidão dos “partidos” e
planos-pilotos apresentados. Ora, a sabedoria de Lúcio
Costa consistiu em aceitar a incongruência difusamen-
te pressentida por todos. Pois relendo o relatório do
projeto enviado por Lúcio Costa ao concurso, Mário Pe-
drosa julga ter encontrado uma das chaves de tudo que
de contraditório “se esconde no invólucro modernís-
simo” da concepção de Brasília. Aliás a deixa lhe vem
do modo pelo qual o próprio arquiteto interpretou a

14. “Reflexões em torno da Nova Capital”, MPEB, pp. 303-305; AM, pp. 389-391.
 

158
otília arantes

solução que encontrou para o plano-piloto: ponderando


que a concepção urbanística da cidade não seria decor-
rência de um planejamento regional inexistente, mas a
causa dele, tomou ao pé da letra a fundação da cidade,
que daria “ensejo ao ulterior desenvolvimento plane-
jado da região”, isto é, como os tempos estimulavam a
imaginação dos grandes recomeços, atribuiu-lhe o ca-
ráter de um “ato deliberado de posse” mas no sentido de
um gesto “ainda desbravador, nos moldes da tradição
colonial”, de modo que a solução procurada “nasceu do
gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma
posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o
próprio sinal da cruz”.15
Ficava assim, na opinião de Mário Pedrosa, estili-
zada a incongruência do programa, evitando-se com
audácia o meio termo e o ecletismo, abrindo caminho
para o “reconhecimento pleno de que a solução possí-
vel ainda era na base da experiência colonial”, “à moda
cabralina”, E ainda uma segunda intenção ostensiva,
deliberada, em forma de um emblema modernista: a
contiguidade épica de um elemento central da icono-
grafia nacional, a caravela do descobrimento que dá
sentido ao ato de fundação, com o risco na “forma de um
avião” a “pousar docemente” sobre o Planalto Central.
Imagem otimista, sem dúvida, como quer Mário Pedro-
sa, sugerindo desbravamento e pioneirismo, coragem
de engenheiro flechado rasgando estradas na mata vir-
gem, de piloto do Correio Aéreo Nacional aterrissando
em clareira aberta na selva, sob o olhar atônito de ín-
dios e caboclos seringueiros; mas também montagem
modernista, ora afirmativa, como num certo Portinari,

15. Lúcio Costa, op. cits.; respectivamente pp. 264-265 e 283-284.


 

159
mário pedrosa: itinerário crítico

ora dissonante, como no tupi tangendo alaúde, ou paró-


dica, como na cartola de Rui Barbosa, pregando civis-
mo na Senegâmbia.
A ideia de uma capital “plantada” na aridez do
cerrado central aparece, portanto, a Mário Pedro-
sa como a repetição do gesto de nossos antepassados
que para cá “transplantaram” sua cultura europeia,
não tendo encontrado cultura ou civilização que de-
vesse ser preservada. O Brasil, como a América, não
passava de imensos viveiros de formas importadas
— qual “oásis” em meio ao deserto (que podia ser a
mata virgem da floresta americana). Por isso mesmo
Mário Pedrosa prefere falar em civilização, dado o
seu caráter antinatural, e não em cultura, que resul-
taria, ao contrário, de uma relação orgânica entre o
homem e a natureza (ele retoma aqui a oposição es-
tabelecida por Frobenius e adotada por Worringer).
O termo “civilização-oásis” enfeixaria assim o arco
dessa mitologia da condição colonial da qual Brasília
ainda faz parte — não apenas por se instalar lá longe
em meio a terras áridas, mas por se afastar daquelas
áreas onde se desenvolve o “processo vital” de iden-
tificação da história natural e da história cultural e
política do Brasil. Como se vê, a abundância do oásis
pode se transformar em algo nefasto e, ao usar esse
conceito, tem em mente essa outra dimensão: o insu-
lamento de uma civilização desenraizada. Estaria aí
sintetizada, nesse conceito, a ambiguidade mesma da
nossa modernização.
 

160
otília arantes

Marcel Gautherot, Vista aérea do eixo monumental, 1958.

A explicação (ad hoc?) da civilização brasileira,


no intuito de esclarecer as razões da Nova Arquitetu-
ra na fundação da capital ultramoderna de um país
periférico, encontrou-a Mário Pedrosa, como lem-
brado há pouco, relendo Worringer. Com o auxílio do
próprio Autor, não é difícil atinar com o que chamou
sua atenção na Arte Egípcia: na análise daquele caso
máximo de civilização-oásis, como Worringer qua-
lificava o Egito dos faraós, a ênfase na sua natureza
de “colônia” assentada sobre uma base artificial, e a
comparação com a moderna sociedade americana do
norte (sem dúvida um tertium comparationis mui-
161
mário pedrosa: itinerário crítico

to remoto quando se quer ressaltar, mesmo à antiga


maneira culturalista, o que há de intrinsecamente
antinatural — e por conseguinte moderno, esse o
ponto — nos “americanos, canadenses, argentinos e
paulistas”). Para que se possa apreciar na justa medi-
da o uso que delas faz o Crítico brasileiro, recapitulo
brevemente as associações feitas por Worringer.16
Laboriosamente confinado numa estreita faixa de
terra comprimida entre dois desertos e fertilizada pelas
enchentes do Nilo, o Egito antigo, carecendo de relações
orgânicas com a terra que o alimenta, não é uma cultura
mas uma civilização, cuja persistência e constância pluri-
milenar se explicam pela força plástica, niveladora de todo
produto artificial, quer dizer, própria de uma coletividade
não autóctone. A qual, justamente por faltar-lhe amarras
naturais, mostra-se capaz de engendrar rapidamente um
tipo social uniforme e artificial, dotado de um forte estilo
civilizador em condições de absorver as mais diversas for-
mas culturais, modelando-as na atmosfera disciplinada
de um jardim de inverno. Noutras palavras — chaves para
Mário Pedrosa —, uma civilização-oásis, tanto no sentido
próprio quanto metafórico de paisagem enxertada, im-
plantada como uma colônia, mas uma colônia por assim
dizer absoluta porque sem metrópole. Civilização aqui
também quer dizer disciplina, pela qual se toma distância
da natureza dominada pelo artifício da técnica, graças à
qual o egípcio transforma a catástrofe natural das inun-
dações periódicas em elemento de fecundidade máxima.
Triunfo do cálculo e da astúcia de um povo de formigas,
pois a civilização acumula, é sóbria e prática, nada em-

16. Cf. Wilhelm Worringer, El Arte Egípcio, trad. E. R. Sadia, Buenos Aires:
Nueva Vision; cap. I.
 

162
otília arantes

preende sem ter em vista uma utilidade qualquer.


Fica difícil reconhecer a obra do colonizador por-
tuguês nesse retrato. Não há dúvida, há uma certa
desproporção entre a disciplina egípcia para vencer
pela técnica os obstáculos de uma natureza adversa, e
a nossa formação cultural. Mário Pedrosa estava evi-
dentemente ciente disto. “O egípcio não se entrega à
natureza, domina-a pela técnica”, diz ele citando Wor-
ringer, e acrescenta: “No Brasil, nem nos entregamos
à natureza, nem a dominamos. Estabeleceu-se um mo-
dus vivendi medíocre”.17 Mas ficou a deixa para o que
lhe convinha ressaltar: “nunca tivemos passado nem
rastro por trás de nós”. Observação otimista, no vezo
modernista de converter o negativo em positivo, o atra-
so em plataforma para um salto à frente. A América
não era exatamente um oásis entre desertos, mas era
simplesmente nova, isto é “um lugar onde tudo podia
começar do começo”. E começar tudo de novo é sinal

17. “Reflexões em torno da Nova Capital”; MPEB, p. 305; AM¸ p.390. Um exem-
plo significativo para entender o teor de época, de tais sínteses e aproximações
baseadas na avaliação sinóptica de fisionomia e caráter das civilizações, e que
Mário Pedrosa seguramente conhecia, é o livro Raízes do Brasil. Só que, a jul-
gar pelo capítulo que contrasta o zelo urbanístico demonstrado pelos castelha-
nos na fundação das cidades na América hispânica — tal fundação entendida
como instrumento de dominação social, conforme a teoria de Max Weber —
com o espírito rotineiro da expansão portuguesa, Sérgio Buarque de Holanda
seguramente chamaria de “egípcio” de preferência o colonizador espanhol, do
que o nosso antepassado português. Pois, segundo ele, “já à primeira vista, o
próprio traçado dos centros urbanos da América Espanhola denuncia o esfor-
ço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agres-
te: é um ato definido de vontade humana”. Quanto à atividade colonizadora
dos portugueses, norteada pelo imediatismo da feitoria, teria emprestado às
cidades que construíram no Novo Mundo, uma tal falta de rigor, método ou
previdência, que a palavra “desleixo” exprimia com exatidão um abandono,
portanto, muito distante do “produto mental” de uma cidade-oásis à maneira
de Worringer. Erguida pela rotina do entreposto de ocasião, e não pela “razão
abstrata”, a cidade colonial portuguesa, acrescenta Sérgio Buarque, “não che-
ga a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da pai-
sagem”. Cf. Raízes do Brasil, 7o ed., RJ: José Olympio, 1973; cap. IV, p. 62-76.
 

163
mário pedrosa: itinerário crítico

dos novos tempos, a modernidade em pessoa. Se an-


tes nos deprimia tudo o que havia de postiço em nossa
civilização mimética, a teoria do oásis vinha reabilitar
os sucessivos enxertos que nos faziam estar à la page.
(Forçando um pouco a nota, seria o caso de lembrar que,
naqueles anos de 50, o espírito do tempo corria a favor
das importações que ajudassem a queimar etapas, como
se dizia, da indústria automobilística à arte abstrata.)
A mata virgem era um convite à tábula rasa das van-
guardas, e a imitação quase um privilégio. Assim, os co-
lonos que desembarcaram no Novo Continente, diz ele:
“puderam transplantar, por assim dizer intatas,
suas formas culturais mais adiantadas, como se tra-
tasse de uma transplantacão de oásis (...) A América
se fez com essas transplantações maciças de cultu-
ras vindas de fora: que estilo, que forma de arte foi
imediatamente transplantada para o Brasil mal des-
coberto? A última, a mais ‘moderna’ vigorante na
Europa — o barroco. E na parte inglesa do norte? O
que se viu ali foi um renascimento desembocando,
sem tardar, no neoclássico. Foram eles, assim, lá em
cima, de revival em revival, isto é, de modernismo
em modernismo.”

É óbvia a intenção de polemizar com o gosto


retrógrado dos nacionalistas, mas ao mesmo tempo,
de outro lado, a de demolir o mito da civilização
orgânica que o modelo europeu nos impingira e que,
embora conservador, servia de argumento a uma
certa esquerda. Como não nascemos naturalmente,
mas pela irrupção artificial e exógena de comunidades
urbanas, estamos “condenados ao moderno”, isto é,
a desenvolver um “formidável poder de absorção de
164
otília arantes

quaisquer contribuições culturais, por mais complexas


e altas que sejam”. Modernos de nascença, banimos de
vez o espírito conservador “que só admite a evolução
histórica como fruto espontâneo e orgânico de fatores
naturais e da tradição”.18
De volta aos bons tempos eufóricos em que Blaise Cen-
drars ensinava aos seus amigos paulistas como se trans-
formar em modernos, já que de qualquer modo estavam
destinados a sê-lo? Nem por sombra. Tanto é verdade
que Mário Pedrosa, ao mesmo tempo que parece racioci-
nar nos velhos termos do imaginário modernista, logo
muda de rumo, relativizando nossas conquistas e trans-
formando a “civilização-oásis” numa etapa colonial a ser
superada. Assim, após ter se vangloriado de não termos
passado, admite na frase seguinte, consternado, que des-
conhecemos as “formidáveis vias de penetração dos ve-
lhos impérios”, e mais, se não conhecemos “num passado
remoto, essas indestrutíveis vias calçadas de lajes” por
onde passaram legiões romanas ou incaicas, tampouco
dispusemos até agora do próprio emblema da modernida-
de oitocentista, a ferrovia, cuja malha foi aos poucos re-
cobrindo tanto as vastidões atrasadas da Rússia czarista
quanto as pradarias sem fim da jovem república burguesa
norte-americana.
Diante dos “intervalos-desertos” a serem vencidos se
quisermos extirpar o estigma colonial dos núcleos iso-
lados uns dos outros, Mário Pedrosa parece reabilitar a
noção da cultura orgânica, só que agora entendida como
etapa subsequente — aliás, para ele, esse é um processo

18. “A Cidade Nova, Síntese das Artes, intervenção no Congresso da AICA de


1959, publicados nos Anais do Congresso, p. 8-10 e 165-167. Rep. em MPEB, p.
355-363; p. 358. Cf. também MPEB, 304; AM, 390.
 

165
mário pedrosa: itinerário crítico

natural em todos os povos: a civilização de oásis, ao criar


formas homogêneas e sólidas, transforma-se, para as ge-
rações vindouras, em habitat. Sem pois se desdizer, lasti-
ma a lentidão com que vamos queimando as etapas. É bem
verdade que
“em vários pontos do território nacional, a fase des-
ses oásis ‘históricos’ foi vencida, e acabaram eles
por transformar-se em centros de irradiação, isto
é, em antítese do oásis. Graças a essa transforma-
ção, áreas relativamente vastas já constituem uma
trama de inter-relações não mais puramente geo-
gráficas, embora ainda de pouca densidade social e
cultural. Assim, a evolução histórica já começa por
aí a ser condicionada pela terra. Quer dizer, a civi-
lização se vai naturalizando, enquanto a adaptação
à terra se torna orgânica, criando raízes bastante
para permitir brotos culturais autóctones”.19

Não deixa de ser estranha essa adesão sem mais às te-


ses culturalistas por parte de um militante de formação
marxista, seguramente uma concessão a um certo gosto
teórico local que o afasta da chave do problema em pauta,
ou seja: a correspondência entre forma cultural e matura-
ção social. Brasília, em todo o caso, há de repor inevitavel-
mente a questão das relações sociais e de poder.
Antes de analisá-la, ainda um dado importante e mais
uma manifestação da persistente ambiguidade da nossa
modernização, tanto quanto do sentimento dividido de
Mário Pedrosa perante a vocação moderna do país. É ver-
dade que não temos as ferrovias que alastraram a civili-

19. “Reflexões em torno da Nova Capital”; MPEB, p. 305; AM, 391.


 

166
otília arantes

zação burguesa pela Europa, nem as modernas estradas


de rodagem norte-americanas, por onde trafegam — ou-
tro fetiche modernista — os automóveis, mas temos em
compensação “algo novíssimo: linhas aéreas de comuni-
cação”. Voltamos à teoria do oásis, do enxerto ultramo-
derno? Não, justamente são as incongruências desse fato
que nosso Autor pretende assinalar, retomando a ima-
gem sugerida pelo plano-piloto de Lúcio Costa: um avião
pousando suavemente na aridez do planalto central, uma
paisagem que, à primeira vista, não lhe concerne, mas
que a máquina de voar veio despertar de sua aparente le-
targia pré-histórica, acordá-la para o reencontro com o
seu destino moderno, queimando as etapas fixadas pela
mentalidade conservadora. Mas há um porém: ao con-
trário da irradiação “orgânica” das estradas de ferro ou
asfalto que varam o território criando raízes, as ultramo-
dernas linhas aéreas “saltam apenas” e não “penetram”.
Noutras palavras, o meio mais avançado de comunicação
vem reforçar e perpetuar a fase colonial dos oásis, é difícil
pensar neste caso em uma civilização que vai se naturali-
zando, brotando como planta original do lugar. Podemos
acrescentar, dentro do mesmo quadro de raciocínio, que
a imagem da aeronave pairando sobre o chão rústico da
ex-colônia, hoje país subdesenvolvido, também sugere as
nossas modernizações pelo alto, como que supensas no
ar, desmoronando ao menor tranco do país antigo, porém
real.
Assim, rebaixado tal tipo civilizatório à condição de
fase colonial pretérita, as dúvidas voltam a pairar sobre
Brasília, o estopim de todas essas idas e vindas. No mesmo
artigo que principiou situando na forma-oásis da cultura
nacional a plataforma de lançamento de nossa moderni-
dade, lemos
167
mário pedrosa: itinerário crítico

“Eis, então, que surge a ideia de se criar uma nova


Capital precisamente para esse Brasil que já supe-
rou a fase colonial de oásis. Mas como? Pelo velho
processo das ‘tomadas’ de posse da terra quase sim-
bólicas? Pelas implantações maciças de civilizações
e a dominação mecânica de um solo despovoado, so-
litário, por uma técnica importada. Quer-se, então,
fundar uma capital ou plantar novo oásis? Brasília
participa ainda da concepção civilização-oásis”

E mais:
“vencida a fase da colônia ocupante com suas carac-
terísticas de produto artificial sintético, as quais de
algum modo se assemelham às ruínas de praça si-
tiada, será possível construir-se a nova Capital fora
das áreas naturalizadas, onde desabrocharam os
primeiros rebentos de uma cultura enfim orgânica
e autóctone?”

De trampolim, o oásis passa a quisto ameaçador polí-


tico e socialmente:
“não é paradoxal destinar-se tal ‘colônia’ de fa-
bricação ultramoderna a ser a cabeça dirigente do
país, a sede de seu governo? Instalar-se-ia assim o
centro político-administrativo do Brasil de novo
num oásis, isto é, numa colônia de ocupação afasta-
da das áreas onde se desenvolve o processo vital de
crescente identificação entre sua história ‘natural’
e sua história cultural e política”.

O caráter contraditório, imaturo e anacrônico — como


caracteriza um tal programa — adviria daí: a nova capital
não seria mais do que uma “casamata impermeável aos
168
otília arantes

ruídos externos, aos choques de opinião”. Mas, num certo


sentido, não foi sempre assim? Nossas sucessivas moder-
nizações conservadoras correram sempre por este trilho,
de um lado as camadas impenetráveis e ultramodernas
dos dominantes, do outro lado do abismo, a multidão dos
despossuídos amarrados pelas mesmas relações sociais de
antanho.

Lúcio Costa, Desenho para o concurso do Plano Piloto de Brasília, 1957


 

Inconformado, Mário Pedrosa se volta para a solu-


ção de Lúcio Costa e a visão utópica que a anima. O ar-
quiteto fez pousar o avião, chanfrando mais uma vez
na terra, à moda cabralina, o signo da cruz, confiando
exatamente no quê? “Na esperança de que a vitalidade
mesma do País, lá longe, na periferia, queime as etapas,
169
mário pedrosa: itinerário crítico

e venha de encontro à capital oásis, plantada em meio


ao Planalto Central, e a fecunde por dentro”.20 Noutras
palavras, Lúcio Costa projetava para um futuro no qual
todos confiavam e que não haveria de ser apenas brasi-
leiro.21 Posta assim em perspectiva utópica, ficava rea-
bilitada a capital-oásis, e com ela, outra vez, a tipologia
da “civilização-oásis”, tomada em sua derradeira acep-
ção, a que superpõe oásis e utopia: “Quando se faz uma
cidade nas condições de Brasília, partindo do nada, a mil
quilômetros de distância do litoral, é preciso no mínimo
reconhecer um ensaio de utopia. Não receio a palavra, se
tomar utopia no sentido de oásis”.22 Lembremos que a hora
desenrolava-se então sob o signo do Plano: plano de metas,
plano-piloto (do urbanismo à poesia concreta) e, na esfera
internacional (o processo acelerado e por vezes traumático
de descolonização, correndo paralelo à montagem do Wel-
fare State nos países centrais), a ordem era subordinar a
nova expansão capitalista de preferência menos à reali-
dade do que à ideologia do planejamento, que a esquerda
por seu lado pensava tornar um fato novo. Embalado por
esse espírito, Mário Pedrosa chegou a ver em Brasília “um
eco do antigo espírito mercantilista do rei colonizador,
mas, na sua realidade profunda, embora ainda não intei-
ramente explicitada, a força motriz é o espírito de utopia,
o espírito do plano, em suma, o espírito de nossa época”.23

20. Ibid.; MPEB, pp. 306-307; AM, pp. 391-392.


 
21. Ibid.; MPEB, p. 310; AM, p. 397.
 
22. “A Cidade Nova, Síntese das Artes”; MPEB, p. 356.
 
23. “Brasília, a Cidade Nova”; MPEB, p. 350; AM, 417.
 

170
otília arantes

Marcel Gautherot, Nuvens sobre Brasília, 1970.

 Com este último curto-circuito, Mário Pedrosa com-


pletava a recapitulação neomodernista de nosso destino
de civilização-oásis: varando o tempo, a capital-oásis da
antiga colônia, fecundada pelas novas técnicas construti-
vas, corria ao encontro da utopia da nova era... Logo, logo,
entretanto, começarão a se acumular as “nuvens sobre
Brasília.” Será então um dos primeiros a alertar para a
tempestade que se aproximava: a ditadura.24 As imagens
utilizadas já no texto de 1957: “casamata” e “um estado

24. Cf. “Nuvens sobre Brasília”, JB, 21.05.58. Rep. em MPEB, pp. 337-339, p.
339.
 

171
mário pedrosa: itinerário crítico

maior abrigado em cavernas subterrâneas blindadas”,


não estariam a anunciar um futuro que o velho militan-
te já adivinhava, cifrado no desenrolar dos fatos daquela
hora, incluído Brasília?
 

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Sabemos que Mário Pedrosa era anti-imperialista, mas


temia igualmente o nacionalismo. Também não era eta-
pista: estávamos “condenados ao moderno” porque não
estávamos condenados a reproduzir em nosso futuro o
passado dos mais adiantados numa corrida que pode-
ria não ser a nossa, nem a da humanidade. As leituras
trotskistas lhe ensinaram, por outro lado, que uma
onda modernizante, talvez inevitável, podia muito
bem agravar relações arcaicas de dominação. O que se
acabou de ver mostra que o mesmo raciocínio alcança
a dimensão estética. Para Mário Pedrosa, a preponde-
rância do influxo externo — que se espelha com maior
nitidez em civilizações-oásis como a nossa —, parte in-
descartável do processo cultural de um país dependen-
te, não é, entretanto, em si mesmo algo que nos diminua
ou até mesmo engrandeça por definição. Sendo assim
permanente o descompasso, o que interessa é o seu fun-
cionamento atual, cujo desfecho é sempre incerto: ne-
fasto quando atalha experiências locais penosamente
elaboradas (como lembrou certa vez Roberto Schwarz),
mola propulsora quando desmancha fantasias em tor-
no de falsas tradições, elas mesmas remanescentes de
antigas transposições ultramarinas. A Itália atrasada
gerou o Futurismo, que a Rússia ainda mais atrasada
172
otília arantes

adotou — num e noutro lugar houve acertos notáveis


e incongruências gritantes. Como o atraso é expressão
de um movimento mundial e não atrofia individual,
cabe ao crítico — como era a convicção de Mário Pe-
drosa — verificar o modo pelo qual se combinaram tais
elementos descompassados que ora asseguram à forma
moderna importada um funcionamento produtivo, ou,
não podendo mesmo andar juntos, decretam a falência
do arremedo.
Veja-se o caso do Barroco. Nas vezes em que o men-
ciona, quase sempre para efeito de argumentação ad
hoc, Mário Pedrosa enfatiza tanto o abrasileiramento
da matriz portuguesa e as continuidades que daí se se-
guem, quanto o fato bruto de sua transplantação dire-
ta, sem retoques: mas foram os acasos e injunções da
colonização que nos permitiram estrear na “vanguar-
da”, ela não brotou espontaneamente do solo nacional
em virtude de algum sexto sentido brasileiro para as
grandes rupturas artísticas. O que faz o Crítico recor-
rer àquela arte da colônia tanto para tomá-la como pa-
radigma de civilização-oásis quanto para sugerir que
um processo de aculturação acabou ocorrendo e cobrar
fidelidade a um tal passado. Por exemplo, “a velha edi-
ficação portuguesa”, posta de lado no século XIX, pelo
neoclassicismo — é o que afirma na apresentação do ca-
tálogo da exposição de Arquitetura Brasileira, Do Bar-
roco à Brasília, realizada no Museu de Arte Moderna
de Tóquio.25 Ou seja, no fundo, a Missão Francesa teria
impedido a consolidação de um processo pelo qual a ci-
vilização portuguesa começava a ganhar, aqui, contor-
nos de cultura local. Mas não era apenas isso, ela vinha

25. “Introdução à Arquitetura Brasileira I”, pp. 323-324.


 

173
mário pedrosa: itinerário crítico

também interromper uma atualização que possivel-


mente nos seria melhor assegurada via Portugal, que
então (justamente por ter ficado para trás) se aproxi-
mava do Romantismo inglês, que depois triunfaria em
todo o Continente.
Essa interpretação do Neoclassicismo que a Missão
Francesa trouxe para o Brasil, está exposta numa tese
apresentada por Mário Pedrosa à cadeira de História
do Colégio Pedro II, em 1956, mas que não chegou a de-
fender nem publicar: A Missão Francesa, seus obstá-
culos políticos.26 Como indicado no título do trabalho,
o Autor concentra-se sobretudo na intrincada rede de
intrigas políticas, trocas de favores e outros arranjos
menores entre franceses emigrados, portugueses en-
castelados em privilégios e brasileiros interessados nas
mesmas sinecuras, em nome do aprimoramento espi-
ritual do país. A tese revê a versão oficial e consagra-
da daqueles fatos que retardaram a criação da Escola
de Belas Artes e descaracterizaram em parte a função
atualizadora de uma “missão cultural”, mesmo impro-
visada como aquela (embora integrada por alguns ra-
ros talentos verdadeiros como os da família Taunay). O
que nos interessa aqui é a discussão paralela, conduzi-
da nas entrelinhas. Um exemplo: Araújo Porto Alegre,
então em viagem pela França, via com entusiasmo os
últimos momentos da agonizante hegemonia cultural
lusa do Brasil. O jovem e fiel discípulo de Debret e da es-
tética davidiana imaginava abrir-se para as belas artes
no país um futuro radioso, antevia (nas suas palavras)
um Rio de Janeiro que “se enfeita com ornatos de uma
outra Atenas”, pensava nos dignos intérpretes nativos

26. Reprod. em AM, pp. 41-114.


 

174
otília arantes

que a arte dos David e dos Percier encontraria entre nós,


sonhava com “galerias, arcadas e arenas”, eclipsando os
monumentos inspirados pelos Le Brun e os Bernini. O
que ocorreria se o devaneio de Porto Alegre se tornasse
realidade plena? Sem falar no disparate de um Rio de
Janeiro greco-romano (embora tudo fosse postiço na
colônia), Mário Pedrosa observa que Portugal já passa-
ra a frente, que os pintores portugueses daquele tempo,
longe de serem insignificantes (“um Sequeira resiste, e
com vantagem, ao confronto com qualquer dos mestres
franceses da Missão”),
“já começavam a beber na Inglaterra as fontes de
uma nova inspiração que ia, pouco tempo depois,
ganhar, contra o neoclassicismo e contra David-
-Ingres, a batalha do romantismo em Paris. Dessas
mesmas fontes ia, mais tarde, dentro do coração da
grande metrópole, jorrar uma nova revolução esté-
tica: a revolução impressionista.”

Não deixa de ser um mérito tirar proveito de um


vínculo tradicional de dependência, como a de Portu-
gal em relação à Inglaterra, como também é familiar a
recomendação implícita de que diversifiquemos nossas
fontes de abastecimento cultural. Mas o recado de Má-
rio Pedrosa vai mais além, nele não só ainda ecoa uma
antiga palavra de ordem modernista, mas aflora a con-
vicção de que já corríamos por um caminho próprio,
“orgânico”, incompatível com a intromissão neoclássi-
ca: “os nobres davidianos”, sustenta, “vinham alterar
o curso da nossa verdadeira tradição artística, que era
barroca, via Lisboa”.27

27. Ibidem, pp. 83-84.


 

175
mário pedrosa: itinerário crítico

Três anos depois, no catálogo da referida exposição


de Tóquio, volta a bater na mesma tecla, referindo-se aos
novos edifícios que passaram a ter colunatas e frontões
clássicos, como “uma arte fria, inteiramente importa-
da”. Obviamente que não ocorreria a Mário Pedrosa uti-
lizar um tal chavão nacional-modernista para repudiar
a introdução da Arquitetura Nova no Brasil, em particu-
lar o purismo “racionalista” de Corbusier28 — longe de
nosso Autor, profissões de fé tradicionalistas ou reviva-
listas. Ele se mostra tão reticente em relação ao artifício
revivalista “pseudocolonial ou neocolonial”, como o fora
em relação ao neoclassicismo de importação — em sequ-
ência no mesmo catálogo de Tóquio.29 País sem tradição,
ao incorporar e fazer sua a arte barroca portuguesa, é
como se, com ela — “a arte de Vanguarda’ da Europa de
então” —, tivesse também importado uma vocação per-
manente para o novo. Afinal o texto do catálogo abre
com a seguinte afirmação: “Se se pudesse definir com
uma só frase a civilização de um País como o Brasil, tal-
vez se pudesse dizer que é um País ‘condenado’ ao mo-
derno, desde o seu nascimento.” É a teoria do oásis que
aqui reaparece na sua acepção positiva. Assim, ser fiel ao

28. Registro aqui a discrepância de avaliação da Missão Francesa feita por


Lúcio Costa e Mário Pedrosa, que por seu turno raramente deixou de acom-
panhar o raciocínio da mais completa e bem armada inteligência arquitetôni-
ca do Brasil contemporâneo. É justamente em nome do futuro Espírito Novo
corbusiano que o mestre carioca atribuirá a Grandjean de Montigny, graças
à introdução do ensino regular de arquitetura, por ele mesmo inaugurado no
próprio edifício que projetara, o mérito de nos ter integrado oficialmente “no
espírito moderno da época, ou seja, no movimento geral de renovação inspi-
rado, ainda uma vez, nos ideais de deliberada contensão plástica próprios do
formalismo neoclássico, em contraposição, portanto, ao dinamismo barroco
do ciclo anterior, já então impossibilitado de recuperação”. Cf. Depoimento
citado; respectivamente, p. 169-170 e 157.
 
29. “Introdução à Arquitetura Brasileira I”, MPEB, p. 324.
 

176
otília arantes

nosso passado é manter-se dentro dessa que parece ser a


nossa tradição, a tradição do novo... Ao iniciar sua apre-
sentação dessa maneira, Mário Pedrosa dá a impressão
de simplesmente retomar a explicação de Worringer so-
bre a arte egípcia, que começa pelos traços fisionômicos
de um caráter coletivo (étnico). Talvez até seguindo uma
tradição mais próxima, se pensamos no vínculo estabe-
lecido por Mário de Andrade entre as características da
nossa arte barroca — com a sua força expressiva — e a
“mulatice muita” do Aleijadinho. Mas Mário Pedrosa,
além de apenas mencionar de passagem a questão étni-
ca, avança significativamente em relação às interpreta-
ções culturalistas, indo buscar na história as condições
que propiciaram o aparecimento entre nós desse novo
(embora na maior parte das vezes não chegue a elaborar
o quadro nos detalhes, alguns episódios o obrigarão a fa-
zê-lo de forma mais explícita — é o caso justamente da
arquitetura moderna e, em especial, de Brasília).
Um exemplo: a maneira pela qual explica o apareci-
mento da Arquitetura Moderna brasileira no catálogo
japonês. Cito-a na íntegra:
“Pouco antes da arquitetura atual, surgia uma con-
trovérsia entre aqueles que se revoltavam contra a
importação maciça do ecletismo estilístico profun-
damente decadente da Europa por querer criar um
estilo pseudocolonial ou ‘neocolonial’ (indicando
assim que se tratava de uma volta à suposta tradi-
ção luso-brasileira), e aqueles que, gabando-se de
um progressismo à la page, não queriam ouvir fa-
lar de qualquer volta ao passado. O desenrolar dos
acontecimentos mostrou que essa controvérsia não
tinha sentido. Com efeito, a atual arquitetura bra-
sileira não veio dessa vã discussão, mas de outros

177
mário pedrosa: itinerário crítico

acontecimentos, principalmente de ordem socioló-


gica e política, bem mais importantes, e de influên-
cias culturais bem mais profundas.”

Portanto, a Nova Arquitetura “não caiu do céu, a


despeito do seu aparecimento súbito”.30 Em seguida o
nosso Autor passa a enumerar as causas econômicas e
políticas já em parte referidas na conferência de 1953
na França, ao que acrescenta, no plano cultural, as in-
fluências externas associadas a uma sabedoria local
de engenheiro que, de um certo modo, se formara nos
procedimentos artesanais postos em prática na “velha
edificação portuguesa”. Este o salto importante, onde
a combinação do velho e do novo não se dá simples-
mente pela utilização de soluções estilísticas e cons-
trutivas já envelhecidas, mas na incorporação de um
saber qualitativamente alterado pela interferência de
novas técnicas.
Como dizia Lúcio Costa, citado por Mário Pedro-
sa, os jovens arquitetos estavam “preocupados apenas
em estabelecer novamente a conciliação da arte com a
técnica e em tornar acessíveis à maioria dos homens os
benefícios possíveis da industrialização”.31 Nas duas re-
constituições de Mário Pedrosa, da formação da nossa
Arquitetura Moderna, são enfatizadas justamente as
soluções avançadas encontradas para velhos proble-
mas, enfrentados pelos nossos construtores na época
da colônia. Veja-se a questão do controle da luz e do sol,
tão importante em se tratando de um país tropical —

30. Ibid.
 
31. Ibid., p.327.
 

178
otília arantes

dos pilotis ao brise-soleil. Este último, concebido por


Corbusier em seu projeto inacabado para Barcelona,
foi utilizado na prática pelos arquitetos brasileiros.
“E veio deles ainda toda variedade de sistemas de bri-
se-soleil movediços ou fixos, basculantes, horizontais
ou verticais etc., hoje conhecidos e adotados em todo o
mundo”.32 Trata-se de uma invenção moderna, mas que
à sua maneira reinterpreta uma solução empregada nas
velhas janelas coloniais (que Mário Pedrosa diz já serem
um “sistema de brise-soleil”, aliás adotado tal qual por
Niemeyer, no hotel de Ouro Preto). Com esse recurso,
os nossos arquitetos restituíram à fachada uma impor-
tância que não se justificava mais na Arquitetura Mo-
derna, mas que entre nós, apesar das estruturas livres
em balanço e do rigor funcional, exigia uma atenção
especial. Criou-se assim “uma verdadeira arte gráfica
bidimensional”: “através das paredes fenestradas, as
tramas, os claustros, o cobogó, os painéis montados so-
bre chassis deram o toque próprio à nossa arquitetura
moderna, feito de encanto, graça audaciosa e de nervo-
sismo.” (Embora, por vezes, tenha se tornado “um sim-
ples jogo ou capricho decorativo” — adverte o Crítico.33)

32. “Introdução à Arquitetura Brasileira II”, JB, 30/31.05.59. Rep. em MPEB,


p. 329-335; p. 330. Cf. tb. “Arquitetura Moderna no Brasil”, MPEB, pp. 261-262.
 
33. Cf. os dois textos citados, MPEB, pp. 262 e 330.
 

179
mário pedrosa: itinerário crítico

Lucio Costa, Conjunto habitacional do Parque Guinle,


Rio de Janeiro, 1954.

Outro traço das nossas fachadas: a horizontalidade,


que Mário Pedrosa mais uma vez compara com as nossas
velhas casas rurais, sobretudo em Pernambuco — “ja-
nelas de grades leves em madeira e paredes fenestradas
para permitir a aeração”. Acrescenta, entretanto:
“Vejam, estes arquitetos não buscaram deliberada-
mente uma tradição em suas preocupações de fa-
chada e de horizontalidade em relação ao sol e aos
acidentes de terreno, mas, ao final, terminaram por
descobrir certas afinidades bem distantes entre o que
fazem hoje e as velhas casas do século XVII e XVIII”.34

Assim, não é só a industrialização acelerada de uma


nação na periferia que pode explicar a aclimatação quase

34. “A Arquitetura Moderna no Brasil”; MPEB, pp. 262-263.


 

180
otília arantes

milagrosa da arquitetura moderna entre nós. Técnicas e


repertórios modernos, na medida em que vão se adaptan-
do à terra, vão reencontrando o fio de uma cultura de mais
de três séculos. No caso preciso, Mário Pedrosa está se re-
ferindo explicitamente a Francisco Bolonha e Lúcio Costa.
Ora, sabemos que o nosso mestre do modernismo sucum-
bira, na primeira hora, à tentação neocolonial e que, mes-
mo depois, continuava valorizando nossa tradição, mas já
então naquilo que ela tinha de verdadeiro — que não es-
tava mais no Barroco já sem vida da época colonial, mas
sobrevivia no ofício mais do que secular dos mestres-de-
-obras “incultos”, que, de geração em geração, conserva-
ram, adaptaram e desenvolveram a arquitetura popular
portuguesa, cuja “saúde plástica perfeita” transferiu-se
para cá com os primeiros colonos. O que leva Lúcio Costa
a recomendar aos jovens arquitetos — pelo menos desde
1937 — aproveitar uma tal lição e adaptá-la aos programas
atuais. Ele estava convencido que do estudo despreconcei-
tuoso dos vários sistemas e processos de construção, solu-
ções de planta etc., desenvolvidos pela antiga arquitetura
vernacular brasileira, resultariam, sem dúvida, observa-
ções em apoio das experiências da moderna arquitetura.
Noutras palavras, achava, sem exagero, que as razões da
Nova Arquitetura encontrariam novas razões na evolu-
ção da referida tradição que, por seu turno, se enquadra-
ria sem violência no processo em marcha.35 Como se vê,
ainda uma vez as análises de Mário Pedrosa convergem
com o depoimento do arquiteto carioca.
Mas existe um outro lado nessa arquitetura, para o
qual chama sempre a atenção, e que retoma a nossa tradi-

35. Ibid. Cf. o texto de Lúcio Costa de 1937, “Documentação necessária”, em op.
cits., respectivamente pp. 86-94 e 457-462.
 

181
mário pedrosa: itinerário crítico

ção no que ela tem de perdulária, caprichosa, excessiva,


monumental, das velhas igrejas barrocas à arquitetura
de Oscar Niemeyer. Os adjetivos utilizados pelo Crítico
são: brio às vezes excessivo, formas gratuitas, lado faus-
toso, gratuidade experimental, luxo etc. — associan-
do-os sempre às condições históricas que novamente
possibilitaram essa exuberância pouco funcional: “seu
comércio inicial com a ditadura”. Observa — como assi-
nalávamos páginas atrás — que a ditadura ofereceu essa
possibilidade de modernização, “mas resultou daí uma
contradição ainda não totalmente superada”.36 O exem-
plo recorrente é sempre o primeiro grande conjunto de
Oscar Niemeyer — a Pampulha —, cuja gratuidade expe-
rimental é atribuída ao “pequeno ditador local”. Justa-
mente aquele que será responsável, na década seguinte,
pela construção da Nova Capital, o que talvez reforce os
temores de Mário Pedrosa, várias vezes manifestado, de
que Brasília viesse a ser uma nova Pampulha.
Já sabemos que o Crítico, depois de muitos conside-
randos, acabou aderindo à solução urbanística de Lúcio
Costa para Brasília, mas não estava seguro quanto à
edificação, notadamente os grandes monumentos des-
tinados a abrigar os poderes públicos: no fundo temia
uma reedição da combinação bem brasileira — da qual a
Pampulha é um bom exemplo — entre demonstração de
proficiência moderna e atendimento aos desígnios tra-
dicionais de um chefe político (que assim passava à ca-
tegoria de estadista dotado de “visão”). Falando pois aos
franceses, é natural que lhe tenha ocorrido em primeiro
lugar comparar os edifícios da Pampulha às “folies” dos
príncipes absolutistas dos séculos XVII e XVIII — so-

36. “A Arquitetura Moderna no Brasil”; MPEB, p. 259.


 

182
otília arantes

mente um Estado autoritário, posando de esclarecido,


embora de raízes oligárquicas, poderia se dar ao luxo
daquele “capricho magnífico”. Por certo um casamento
de conveniência, havendo interesses de propaganda dos
dois lados: como é regra no país, o novo regime preci-
sava alardear “modernidade” e não poderia encontrar
melhor fachada; por sua vez, desde os primeiros tempos
heroicos de afirmação, o Movimento Moderno nunca
desperdiçou oportunidade de demonstrações didáticas
e estas tendem, por natureza, à exibição de virtuosismo
de quem a expõe necessitando de aplauso.

Oscar Niemeyer, Casa de Baile no conjunto da Pampulha,


Belo Horizonte, 1943.

No Brasil, então, era de se esperar que nos excedês-


semos no brio diante de um público recalcitrante — daí
o fausto e a ostentação, em nome do direito à experi-
mentação. O mecenato oficial, dando latitude a essa
progressão no vazio, por assim dizer exasperou a voca-
ção formalista da nossa arquitetura moderna.
183
mário pedrosa: itinerário crítico

Mário Pedrosa não é, evidentemente, o primeiro a


chamar a atenção para esse lado da nova arquitetura
brasileira. No mesmo ano em que ele nos explicava aos
franceses, Max Bill, em sua famosa entrevista a Flávio
de Aquino para a revista Manchete, condenava nossa
arquitetura pelo apego excessivo e ostensivo ao inú-
til, ao simplesmente decorativo, à forma pela forma, e
quanto à Pampulha, era evidente que um projeto ela-
borado basicamente em torno de curvas caprichosas e
gratuitas tinha o seu sentido arquitetural inteiramen-
te voltado para si mesmo — um verdadeiro disparate
como de resto aparece aos olhos estrangeiros tudo o
que é “moderno” no Brasil; abria no entanto uma exce-
ção elogiosa (como aliás o fará também Mário Pedrosa)
para Pedregulho, tão inexplicável como toda exceção
que confirma a regra.37 Mas se esta era também, sem
dúvida alguma, a defasagem apontada tantas vezes
pelo Crítico brasileiro — para este era possível, apesar
de tudo, adivinhar aí expectativas promissoras: uma
arquitetura cujo programa depende da convergência
entre arte e técnica, subordinando seu futuro à orga-
nização racional de toda a sociedade, só pode estar em
atraso (ou muito à frente) da situação atual do Brasil. O
que só faz aumentar o desconforto de um arquiteto tão
clarividente como Lúcio Costa, em meio, por exemplo,
“à lamentável defasagem entre o que é concebido e o
que é possível e realizável”. Veja-se o confinamento que
atrofia (ou hipertrofia) antes de tudo estes monumentos
ao “moderno” enquanto tal, que são os edifícios públi-

37. Cf. “Max Bill censura os arquitetos brasileiros”, in Arte em Revista, n. 4,


SP, ed. Kairós/CEAC, 1980, p. 49-50. Cf. também a conferência proferida na
mesma ocasião na FAU USP, publicada em Habitat n. 14, jan-fev. 1954.
 

184
otília arantes

cos, quase sempre palacianos, perdidos na imensidão


subdesenvolvida do país, e que paira como uma amea-
ça sobre o “novo caminho” inaugurado pelo conjunto
habitacional de Pedregulho, uma ilha de consciência
arquitetônica rodeada de “favelas, barracos e pela efer-
vescência da miséria e de um urbanismo caótico”.38

Affonso Eduardo Reidy, Conjunto Pedregulho, Rio de Janeiro, 1950-52

Mas essas ambiguidades parecem mesmo in-


contornáveis: de onde surgiriam as bases sociais e
produtivas sobre as quais assentar de vez, sem incon-
gruências a racionalidade democrática da Nova Cons-
trução? Niemeyer, justamente o criador da Pampulha

38. “Arquitetura Moderna no Brasil”; MPEB, pp. 260-261.


 

185
mário pedrosa: itinerário crítico

e expoente máximo da nossa Arquitetura Moderna, é


a expressão mais acabada dessa contradição de nas-
cença que ele ora tenta enfrentar, ora procura sim-
plesmente contornar — o que faz também com que
as avaliações por Mário Pedrosa de sua obra oscilem,
embora nem sempre na mesma direção. Assim, se
em 1953 censurava os jogos de superfície de nossos
arquitetos, “em detrimento de um pensamento es-
pacial mais articulado e mais profundo”, ressalvava
Niemeyer por realizar as experiências mais bem su-
cedidas nessa área, para entretanto logo relativizar
o elogio: “frequentemente dir-se-ia que ele esquece a
importância do programa em função da liberdade do
partido e dá preferência a uma forma gratuita, uma
grande curva no perfil espetacular do conjunto” (afi-
nal, acabara de citar a Pampulha como exemplo de
fausto, capricho e gratuidade experimental). Mas, na
última hora, um recurso inesperado, quase a título de
absolvição: “esta tendência corresponde talvez a uma
constante cultural, se não for racial”39 — clichê que
no fundo expressa o quanto Mário Pedrosa se sentia
dividido, não só em relação às características que as-
sumia entre nós o programa funcional moderno, mas
também quanto aos recursos teóricos que dessem
conta dos descompassos registrados, oscilando entre
uma interpretação materialista da nossa história e o
viés culturalista de boa parte de nossos historiado-
res e críticos, reforçado pela tese de Worringer (sem
dúvida nenhuma um teórico importante para as suas
elucubrações sobre a arte abstrata).

39. Ibid., p.262.


 

186
otília arantes

Para se entender essa ambivalência talvez seja ne-


cessário recorrer também — é o nosso passo seguinte
— à maneira pela qual nosso Autor enfrenta o problema
das relações entre Arquitetura e Crítica de Arte, onde
parece acreditar que a correta apreciação estética teria
sido sufocada pela “dieta funcionalista”, mandada “às
favas” pelos arquitetos brasileiros, “homens dos trópi-
cos meridionais banhados pelas águas macias do Atlân-
tico Sul”. Um desafogo que viria justamente de uma
espécie de Macunaíma da arquitetura (playboy, “dile-
tante”, “cético”): “Desde então o nosso terrível, o nosso
grande Oscar Niemeyer desembestou. Graças a Deus”.40
Dois anos antes, em 1955, Niemeyer, fazendo também
ele um balanço da nossa Arquitetura Moderna — “O
problema social na Arquitetura” —, ao mesmo tempo
que mostrava uma consciência aguda da “falta de con-
teúdo humano” da mesma, interpretava-a como im-
posição de um meio acanhado e brutalmente desigual.
Portanto, a invenção plástica da nossa arquitetura “dis-
criminatória e superficial, em que somente o aspecto
plástico subsiste” exprimia fielmente uma injustiça de
classe — uma espécie de fatalismo que acaba quase por
um convite a conviver bem com a contradição enquanto
dias melhores não vêm. A crítica cede lugar à justifica-
tiva. Ao invés de renunciar ao formalismo, que de resto
nos rendia sucesso, cultivá-lo, pois de qualquer modo
uma “arquitetura social”, ou soluções “rígidas e frias”, à
europeia, não encontrariam lugar em nosso ambiente.41

40. “Arquitetura e crítica de Arte I”, JB, 22.02.57. Rep. em MPEB, pp. 269-271;
p. 270.
 
41. O. Niemeyer, “O problema social na arquitetura”, AD Arquitetura e Deco-
ração n. 13, SP, set./out. 1955. Rep. em Arte em Revista n. 4, pp. 53-55.
 

187
mário pedrosa: itinerário crítico

Mário Pedrosa não chega a resolver com tanta de-


senvoltura esse dilema, por isso mesmo, tomando ao
pé da letra o “Depoimento” de Niemeyer (espécie de au-
tocrítica, publicada na Revista Módulo, em fevereiro
de 1958), congratulou-se com a promessa do arquiteto
de buscar o equilíbrio entre forma plástica, problemas
funcionais e estrutura. Acreditava que “a experiência
serviu para fazer desabrochar nele a consciência social,
imprescindível a qualquer intelectual e artista de nos-
sa época, mormente arquiteto”.42 Mas não podia prever
a recaída no ano seguinte: a profissão de fé na arquite-
tura como uma das belas artes com “liberdade plástica
quase ilimitada”, onde Niemeyer, ao defender as formas
adotadas em Brasília, declararia ter em vista, através da
surpresa e da emoção por elas provocadas, o alheamen-
to do visitante dos problemas difíceis da vida (sic!).43
Brasília era evidentemente para Mário Pedrosa
algo bem mais complexo do que esta forma de conso-
lo, contudo ele próprio volta a endossar parcialmente
a posição do arquiteto, defendendo, contra os que se
escandalizaram com este libelo formalista — “Forma
e Função na Arquitetura” —, um ponto de vista esté-
tico centrado nos efeitos visuais das formas arqui-
tetônicas,como se fosse “uma arte abstrata”.44 Tema
que retoma no ano seguinte, quando opõe uma ar-

42. M. Pedrosa, “O Depoimento de Oscar Niemeyer I”, JB, 27.08.58. Rep. em


MPEB, p. 289-295; p. 290. Cf. Niemeyer, “Depoimento”, Módulo n.9,1958. Rep.
em Alberto Xavier, Arquitetura Moderna Brasileira: depoimento de uma
geração, coed. ABEA/FVA/PINI, SP, 1987, pp. 221-224.
 
43. O. Niemeyer, “Forma e função na arquitetura”, Módulo n. 21,1959. Rep. em
Arte em Revista, n. 4, pp. 57-60; p. 60.
 
44. M. Pedrosa, “Niemeyer e crítica de arte”, JB,2.12.59. Rep. em MPEB, pp.
383-385.
 

188
otília arantes

quitetura que se reduz aos “elementos arquitetônicos


essenciais”, como queria Niemeyer — “pura arte não-
-representacional” — àquela que busca uma perfeita
compreensão funcional do programa. Mas aí, deixan-
do o leitor perplexo com tantas idas e vindas, para não
optar por nenhuma — quanto a saber qual das duas
arquiteturas teria “barra sobre o futuro”, o Crítico su-
gere ter dúvidas.45 Como se sabe, Brasília seria o teste.
Salvo engano, deixando a interrogação parada no ar,
nessa data, Mário Pedrosa, a bem dizer, deixou de fa-
lar de arquitetura (ao mesmo tempo que sua atenção se
deslocava da arte abstrata para as neovanguardas). Os
ventos que começavam a soprar nesse início da década
de 60 obrigavam mais uma vez nosso Autor, como aliás
todo intelectual mais atento aos movimentos da histó-
ria, a rever também sua rota.
Tropeços à parte, vejamos melhor em que termos
devolvia à obra arquitetônica a dimensão estética, sem
entretanto perder de vista que a prova dos nove nesta
questão, com maior ou menor complacência, lhe era
fornecida por um gritante caso brasileiro, pelas razões
que se viram (e num certo momento expostas pelo pró-
prio Niemeyer), de dominância estético-formal no Mo-
vimento Moderno.
  

45. Id., “Das arquiteturas e de suas críticas”, CM, 30.07.60. Rep. em MPEB, pp.
403-408. A expressão utilizada por M. Pedrosa vem do francês “avoir barre sur
quelqu’um” (estar em posição de vantagem sobre alguém).
 

189
mário pedrosa: itinerário crítico

Vista aérea do Eixo Norte-Sul e Superquadras de Brasília,


década de 1960.

 
ARQUITETURA, DIMENSÃO ESTÉTICA E CRÍTICA
DE ARTE

Naqueles anos de 50 em que mais intensamente se dedi-


cou aos problemas da arquitetura, Mário Pedrosa dava a
impressão de estar dividido diante das várias posições em
torno da função social da Nova Construção. Sempre ali-
nhando sem concessões com a autonomia da arte, a marca
por excelência da sua condição moderna, e, em particular,
defensor intransigente da abstração, em matéria de ar-
quitetura Mário Pedrosa ora censurava a despreocupação
social das obras, ora realçava e se interessava apenas pela
sua dimensão estética. Incoerência? Falso dilema?
Antes de mais nada, voltemos aos artigos que con-
sagrou ao assunto, mais exatamente à questão mais
ampla — e ainda hoje pendente no Brasil — da crítica
da arquitetura. Em resumo, quando Mário Pedrosa
abordou os dilemas daquele gênero ainda incerto de si

190
otília arantes

mesmo, o panorama era mais ou menos o seguinte: era


gritante o contraste entre o renome da moderna arqui-
tetura brasileira, ao qual, bem ou mal, correspondia
uma real consistência, e a timidez, quando existia, da
atividade crítica que deveria, em princípio, comentar-
-lhe o desenvolvimento. Costumava-se explicar tal ini-
bição, lembrando que da parte dos arquitetos havia o
constrangimento natural em fazer reparos a projetos
de colegas, além do mais era hora de cerrar fileiras em
torno do Movimento Moderno, o que favorecia apenas
apreciações estritamente técnicas ou então manifestos
doutrinários; enquanto da parte da crítica de arte pro-
priamente dita, exercida, via de regra, por autodidatas
que foram se formando por força da obrigação do roda-
pé na imprensa periódica, de apresentação de catálo-
gos, nas conferências ou cursos efêmeros de história da
arte, era compreensível que recuassem diante da maté-
ria que exigia conhecimentos técnicos especializados.46
Mas nem sempre os arquitetos julgavam que apenas ar-
quitetos poderiam falar de arquitetura — dogma que,
se tomado ao pé da letra, tornaria na prática impossível
a crítica de arquitetura que tanto reclamavam. Houve
mesmo dentro da corporação, quando o isolamento ain-
da era grande, quem se amparasse em resoluções dos
primeiros CIAM, para convocar o crítico de arte para
a tarefa de explicar ao público o sentido da arquitetura

46. Cf. o balanço feito por Sylvio de Vasconcellos a propósito justamente do


texto de Mário Pedrosa sobre “Arquitetura e Crítica de Arte I”, op. cit.: “Crí-
tica de Arte e Arquitetura”, O Estado de S. Paulo, 29.06.57, rep. em Alberto
Xavier, op. cit., p. 284-287. Cf. também a comunicação de Ferreira Gullar ao II
Congresso Brasileiro de Críticos de Arte em SP, 1961, pub. em Cultura pos-
ta em questão, RJ: Civilização Brasileira, 1963. A propósito desse panorama
volto a citar o capítulo de Aracy Amaral, “A polêmica sobre a função social da
arquitetura”, op. cit., pp. 275-308.
 

191
mário pedrosa: itinerário crítico

nova, sem o que, alegava-se, ela continuaria paradoxal-


mente à margem de um sistema das artes, do qual em
princípio deveria ser o centro.47
Em suma, passados vinte anos, a situação não era
muito diversa de quando, por iniciativa de Lúcio Cos-
ta, a arquitetura participara do Salão Nacional de Belas
Artes em 1931, nem um passo importante a mais fora
dado; numa palavra, o simples fato de relançar perio-
dicamente a questão de suas relações com a crítica de
arte, ora para polemizar, ora para pedir atenção, ates-
tava que, malgrado sua posição estratégica na esfera
da produção, a arquitetura ainda não fora incorporada
como força viva na evolução da cultura nacional. Ape-
sar das inúmeras revistas especializadas durante a dé-
cada de 50,48 o círculo restrito dos arquitetos não era
rompido, quem opinasse sobre ela seria, quando muito,
ouvido pelos pares, mas não parecia estar interferindo
no rumo da vida ideológica do país. Esse o panorama
antes de Brasília.
Sem esconder sua condição de crítico de arte, Mário
Pedrosa, numa série de artigos no Jornal do Brasil, em
1957, reabre a discussão, mostrando o quanto a entrada
em cena da Arquitetura Moderna veio baralhar os cri-
térios da crítica. Até então a arquitetura era sobretudo
assunto de historiador da arte, cujos juízos, facilitados
pela aceitação de valores historicamente consagrados,
eram mais uma questão de sensibilidade e erudição: nos

47. Cf. Eduardo Corona, “Da necessidade de crítica sobre arquitetura”, Habi-
tat n. 5,1951. Rep. em Alberto Xavier, op. cit., pp. 281-284.
 
48. No Rio de Janeiro: Acrópole (desde 1936), Brasil, Arquitetura Contempo-
rânea (1953-58), AD (1953-57), Módulo (desde 1955), além das revistas do IAB e
do SPHAM. Em São Paulo, Habitat. Em Belo Horizonte, Arquitetura e Enge-
nharia (desde 1947).
 

192
otília arantes

velhos tempos dos grandes historicistas, uma unidade


arquitetônica, um estilo de época, eram analisados e in-
terpretados em função das técnicas construtivas dos pe-
ríodos, das representações mentais geradas na sociedade
que os viu nascer etc.; numa palavra, havia um pouco de
tudo, mas não havia crítica.49 Com o advento da revo-
lução arquitetônica, as coisas mudaram inteiramente
também para o lado da crítica, porém em dois tempos.
Segundo nosso Autor, não compreenderíamos, na sua
justa dimensão, a ênfase estética característica da crítica
atual sem referi-la à abstinência, forçada pelas circuns-
tâncias, da etapa anterior. O itinerário que apresenta a
seguir, além de verossímil em si mesmo, teria, a seu ver,
a caução da própria evolução astuciosa de Le Corbusier.
No princípio, a arquitetura precisava combater em duas
frentes a mesma batalha do gosto e da mentalidade —
esta última, paradoxalmente, precisando ser convencida
da própria modernidade —, uma verdadeira erradica-
ção da inclinação natural para a sublimação estética da
parte de profissionais e público, educados na escola do
ecletismo burguês do século passado. Contra o arreme-
do sem compostura dos estilos históricos — como dizia
Lúcio Costa —, servir o remédio amargo, único antído-
to contra a praga do ornamentismo (prática criminosa
segundo Loos, como se sabe), do “abandono radical de
toda preocupação plástica”. Por outro lado, para vender
à burguesia a nova “máquina de morar”, convinha dar
um passo a mais no caminho da total desestetização,
apresentando-a numa embalagem esteticamente neu-
tra ou francamente antilírica, ou seja, convinha prote-
ger o novo padrão de construir, e assim firmá-lo de vez

49. Cf. “Arquitetura, obra de arte”, JB, 23.02.57.


 

193
mário pedrosa: itinerário crítico

no mercado, com uma “couraça de ideias ‘sérias’, ‘bur-


guesas’, isto é, prosaicas e objetivas, práticas, técnicas,
sociais, científicas”. Cinismo? Pelo contrário, o entusias-
mo de Mário Pedrosa com o retorno do estético talvez o
impedisse de ver que não era acessória a prosa burguesa
da nova linguagem arquitetônica, mesmo quando con-
trariava o gosto dominante que tratava então de atua-
lizar, convertendo-o à sua própria verdade; e mais, que
ela se prolongava no tino empresarial e “moderno” do
profissional Corbusier, no qual reconhecia apenas a ruse
de guerre de um artista em campanha. Seja como for,
o próprio Corbusier e seus discípulos brasileiros passa-
ram adiante esta versão, que aliás estava longe de ser
falsa, encampada por Mário Pedrosa nos seus artigos em
defesa da crítica de arquitetura como crítica de arte: en-
quanto não triunfavam os novos cânones construtivos e
persistisse o perigo de uma recaída nas divagações esti-
lísticas do passado recente, Corbusier (em linhas gerais
creio que nosso Autor devia englobar também os demais
pioneiros e mestres do Movimento Moderno na mesma
estratégia) não ousara ultrapassar os limites austeros
das “cogitações técnicas funcionais”; uma vez supera-
da aquela fase provisória de profilaxia, poderia a nova
construção entregar-se afinal à “emoção artística e lidar
diretamente com problemas de pura estética da arquite-
tura-arte”. Caberia à crítica acompanhar esta manobra,
isto é, quebrar o jejum a que a condenara aquele perío-
do de ascetismo deliberado, do qual nos ficara uma “crí-
tica de arquitetura inibida, complexada, com um medo
dos diabos de escapulir, de entregar-se, enternecida ou
apaixonada, vigorosa ou complacente, à sua tarefa espe-
cífica, que é a apreciação estética”. Mário Pedrosa com-
pletava, lembrando que, já fazia algum tempo, o melhor
194
otília arantes

da crítica moderna aprendera essa lição: abordar o fenô-


meno arquitetura moderna (está claro, pois é a única que
existe), como se aborda a pintura, a escultura ou a músi-
ca, evitando entretanto os exageros sistemáticos de um
Bruno Zevi, “que ergueu como uma espécie de absoluto a
bandeira do anti-funcional”.50
Pode-se presumir que, no espírito do nosso Autor, o
que tornou possível essa nova etapa da arquitetura e da
crítica foi o cumprimento da primeira, de tal modo que
não se poderia encarar, como obra de arte, um edifício
que faltasse com os requisitos de funcionalidade e hones-
tidade construtiva. Digamos mais exatamente que Má-
rio Pedrosa tentava ajustar o ideal de síntese, na origem
da grande Arquitetura Moderna, ao programa de uma
crítica analítica que lhe vinha de sua vasta leitura e ex-
periência no domínio clássico da história da arte. Lem-
brava então, num dos artigos da série que publicou em
1957, no Jornal do Brasil, que nos mestres do passado,
em meio àquelas grandiosas elocubrações historicistas,
encontravam-se muitas vezes “páginas de profunda pe-
netração crítica, em que a arquitetura era efetivamente
elevada à categoria de uma arte tão desinteressada quan-
to a escultura ou a pintura”.51 Mas isso só era possível
— segunda observação — quando punham de lado, por
um momento, a interpretação global de uma forma ar-
quitetônica como expressão do espírito objetivo de uma
época, e se entregavam, de caso pensado ou não, pouco
importa, a análises que isolavam as diferentes ordens até
então confundidas numa entidade máxima, distinguin-

50. Cf. M, Pedrosa, “Arquitetura, obra de arte”, JB, 23.02.57.


 
51. “Arquitetura e Crítica de Arte I”; MPEB, p. 271.
 

195
mário pedrosa: itinerário crítico

do o especificamente estético, do técnico, do social, do


psicológico etc.
A fórmula metodológica que adotará para superar
o pragmatismo dos funcionalistas e temperar a rigidez
dos puristas, ele a achou numa obra famosa, “algo en-
velhecida, porém clássica” de Geoffrey Scott (discípulo
dileto de Berenson) — The Architecture of Humanism
— de 1914. Segundo Scott, na apreciação da arquitetura
é preciso saber distinguir o que concerne à acomodação
aos fins, o que se prende aos méritos estruturais e o que
deriva de um impulso estético, impulso diferente de to-
dos os outros que a arquitetura pode simultaneamente
satisfazer — uma crítica só é precisa e eficiente na medi-
da em que visar, separadamente, cada um deste aspec-
tos.52 Sem dúvida uma dissociação artificial daqueles
três princípios já enunciados por Vitrúvio —firmitas,
utilitas, venustas—, mais um expediente analítico,
uma espécie de disciplina para orientar o pensamento
num gênero ainda confuso. — De qualquer forma nem o
nosso Crítico ignora, nem os seus autores de referência,
que em arquitetura a aspiração desinteressada à beleza
e o prazer que daí se segue dependem de uma esfera uti-
litária de objetivos práticos e soluções mecânicas, cuja
satisfação não se pode dispensar. Além do mais é sério
o risco, nesse rumo, da divagação estético-filosófica,
“geralmente estéril e vazia” — embora Mário Pedrosa
preferisse corrê-lo para fugir dos “pormenores irrele-
vantes” e das “implicações sociais intermináveis”. No
fundo procurava apenas apoios para fugir do dilema:
funcionalismo ou então a desgraça do esteticismo, do
formalismo etc. — Mas como era obrigado a conceder

52. “Arquitetura e Crítica de Arte I”; MPEB, p. 271.


 

196
otília arantes

que não haveria percepção estética plenamente reali-


zada em arquitetura, caso a sua destinação prática não
estivesse igualmente assegurada, ficávamos na mesma,
de volta à antinomia, ou redundância, do juízo estético,
desinteressado por definição, sobre uma obra interes-
sada também por definição: a experiência estética do
objeto arquitetônico não teria lugar caso ele não satisfi-
zesse as condições que justamente fazem dele uma for-
ma arquitetônica, sobre a qual entretanto recaía o juízo
de gosto, sem que nele pesasse a consideração das fina-
lidades cumpridas, uma finalidade sem fim em suma,
mas cuja beleza pressupunha seu desempenho técnico
e funcional...53
No calor da polêmica, contudo, chega a avançar o
sinal. Inspirado ainda em Scott, formula seu axioma
predileto, sobre o qual baseará a causa da crítica de
arquitetura: nem mais nem menos, como no caso da
escultura e da pintura, “arquitetura, simples e imedia-
tamente percebida”. — Esse o ponto de vista que deve-
ria nortear a atitude do crítico de arte, diante de um
edifício de qualidade. Como lhe fizessem ver — mais
precisamente Sylvio de Vasconcellos 54 — que tal atitude
implicava um estreitamento do olhar num momento
em que se tratava antes de alargar-lhe o horizonte, na
medida que restringia a apreciação da construção ao
seu exterior transformado assim em cenário (coisa de
“bocó, a admirar de fora a fachada dos palácios e das
casas” — nas palavras do criticado, ao rechaçar a acu-
sação), Mário Pedrosa responde que não desdenha ne-

53. Ibid.
 
54. Cf. Sylvio de Vasconcellos, “Crítica de Arte e Arquitetura”, op. cit.
 

197
mário pedrosa: itinerário crítico

nhuma das três condições prévias à boa edificação, mas


insiste que é necessário isolá-las na apreciação crítica.
E para barrar de vez a insinuação de que o privilégio da
intenção plástica no fundo encorajaria — caso não fosse
a mera sublimação deles — maus hábitos do turista bo-
quiaberto diante de fachadas prestigiosas, alega em seu
favor que perceber, simples e imediatamente, a arqui-
tetura como tal, deixando-a agir sobre nós como mas-
sa, linha, cor, espaço, é uma operação complexa que
demanda educação estética na acepção mais enfática
da expressão: tanto no sentido de impulso formal culti-
vado (impulso que libera, por se ater à mera aparência),
como no sentido de uma reconversão das expectativas
utilitárias do cidadão comum, concentrado no uso do
instrumento. A percepção educada o retiraria justa-
mente desse circuito prático, mais ou menos como se
passa, segundo outros autores, da prosa à poesia.
Aprender a ver arquitetura? Sem dúvida, mas uma
arquitetura muito especial: a posição do crítico não é
apenas a de um olhar educado, mas a de quem, para jul-
gar, procura situar-se na posição de um arquiteto que
projetou, tendo em vista o efeito visual da obra sobre
o espectador. Portanto, mais do que um artifício de mé-
todo, é uma certa concepção de arquitetura que está em
jogo. Ao mesmo tempo, devolve-a à esfera privada do
recolhimento estético de quem se entrega à percepção
depurada por uma espécie de contaminação espiritual
máxima, em que a obra afinal é mantida à distância,
exatamente aquilo que não faz o público real a quem
ela se destina. Nosso Autor poderia objetar que se tra-
ta, antes de mais nada, de manter a arquitetura dentro
do horizonte moderno da autonomia da arte: não-figu-

198
otília arantes

rativa, a nova arquitetura alinharia, sem distinções de


material, elemento ou suportes, com uma pintura de
Mondrian, um mobile de Calder ou uma escultura de
Moore. Basta entretanto relembrar tais laços de famí-
lia para reencontrarmos, na outra ponta do desenvol-
vimento estético específico da arte abstrata, o projeto
construtivo “funcional” de uma configuração arquite-
tônica total da vida moderna no seu conjunto. A ênfa-
se do Crítico continuava a recair no entendimento da
lógica interna que comanda a passagem da arquitetura
maximamente funcional à abstração, porém por força
desta mesma lógica é obrigado a analisar igualmente
as motivações funcionais do espaço arquitetônico que
aliás o especificam: as correspondências entre planta e
estrutura, espaço maleável interno e fachada, interior e
exterior e assim por diante.
Embora de preferência pela trilha estética da abs-
tração, transitando sem cessar entre os dois polos que
em princípio a Nova Construção finalmente unifica-
ria, Mário Pedrosa, tudo bem pesado, foi antes de mais
nada um moderno, no sentido mais rigoroso do termo,
inclusive por acompanhar em todas as suas consequên-
cias as aporias da Arquitetura Nova, sobretudo as que
se seguem do assim chamado viés estético do funcio-
nalismo. Noutras palavras, reconhecendo, como lem-
bramos desde o início, o ideal construtivo da Abstração
encarnado no Movimento Moderno, Mário Pedrosa
não poderia ter deixado de embarcar na ideologia mo-
dernista da racionalidade arquitetônica. Não é que não
tenha percebido e registrado impasses, insuficiências e
compromissos na realização dos preceitos funcionalis-
tas. Mesmo assim, sendo aliás recorrentes os diagnós-
ticos de esgotamento da Arquitetura Moderna desde
199
mário pedrosa: itinerário crítico

que ela se firmou, contrapondo-se a eles, nunca deixou


de reafirmar, como sempre o fizeram os teóricos da mo-
dernidade (pois a praga dos desvios patológicos parece
acompanhá-la desde o seu nascedouro), sua confiança
num projeto quando muito traído por incompreensão
ou coisa parecida. Vendo Brasília ser construída, como
deixar de apostar na força de emancipação germinando
tanto na própria evolução dos materiais arquitetônicos,
quanto na forma urbana ordenada pela visão sinóptica
do Plano? Como, em meio àquela atmosfera francamen-
te favorável à utopia, dar conta das injunções externas
presentes no enrijecimento doutrinário do princípio
construtivo integral (da Abstração à Arquitetura Nova)?
Onde a chance, naquelas circunstâncias, de reconhecer
no mesmo gesto de se desembaraçar, pela abstração, do
processo real imediato, a capitulação ante as injunções
ditadas pela reprodução do sistema? Facilmente esque-
cia-se o quanto, ao dar livremente satisfação às suas
exigências internas — incorporando ciência e técnica
enquanto força produtiva —, a construção aparente-
mente autônoma reproduzia a lógica dominante a que
tudo o mais se subordinava.
Não há dúvida de que a crítica de Mário Pedrosa ain-
da é tributária da fase de implantação da Arquitetura
Moderna no Brasil (como de certa maneira não deixou
de insinuar Sylvio de Vasconcellos no artigo citado
páginas atrás). A predominância ou mesmo o exclusi-
vismo do aspecto plástico, no qual, como vimos, o Mo-
vimento Moderno baseou sua causa entre nós, acabou
determinando a orientação correspondente da crítica.
Não surpreende pois que Mário Pedrosa tenha sido em
certos momentos taxativo quanto à confirmação bra-

200
otília arantes

sileira de que a arquitetura moderna é a mais comple-


ta manifestação da arte abstrata, o “gênio plástico” de
Oscar Niemeyer estava aí para prová-lo. No Congresso
Internacional de Críticos de Arte, em 1959 — Brasília à
vista — apresentava Niemeyer como a melhor ilustra-
ção da nova tendência crítica que “resolveu, tão delibe-
radamente quanto os teóricos defensores do ponto de
vista funcional radical no início do século, abordar a
arquitetura como um crítico aborda uma obra de arte
qualquer”.55
Um ano depois, comentando o programa apresenta-
do por Reyner Banham, então principal redator da Ar-
chitectural Review, em suas “considerações funcionais
da crítica de arte da arquitetura”, Mário Pedrosa retorna
à questão por um outro ângulo.56 Em discussão: decidir
se cabe ou não ao arquiteto aprovar ou desaprovar pro-
gramas; se a formulação de programas é ou não uma
imposição da sociedade, e se o for, como interpretá-la.
Teriam razão os modernos ao sustentar que o programa
era em si mesmo gerador da forma arquitetural? Como
na obra acabada redescobrir o que o cliente realmente
imaginou? E assim por diante. No fundo, uma discussão
em torno do verdadeiro alvo de um julgamento de valor
na arquitetura. Retruca, contudo, que a perfeita mani-
festação sensível de uma ideia não faria muita diferença
entre um edifício de Saarinen (estudado por Banham) e
uma ponte. Não é, portanto, qualquer espécie de arquite-
tura que reclama a atenção do crítico. É neste momento
que as distinções de Banham passam a interessá-lo, pois

55. “Niemeyer e Crítica de Arte”, MPEB, p. 384.


 
56. “Das arquiteturas e de suas críticas”; MPEB, pp. 403-408.
 

201
mário pedrosa: itinerário crítico

há duas arquiteturas: uma informal, doméstica, verna-


cular, que não procede de nenhum programa particular,
por assim dizer ritualizada e de baixo teor inventivo; e
outra que depende de escolhas pessoais conscientes, dis-
cerníveis no processo do desenho, onde cada edifício é
projetado como se outros não tivessem existido antes. É
evidente que só esta última pede antecipação crítica, que
consiste, antes de mais nada, em explicar como e porque
o edifício acabou tomando a forma que tomou: dessa des-
crição emergirá um juízo crítico, centrado na avaliação
da consistência interna. No limite, uma espécie de close
reading de uma obra em que aparência estética e com-
preensão funcional do programa se fundem como num
organismo estruturado por leis próprias. A crítica só faz
sentido no âmbito dessa arquitetura de autor. Como esta
última predomina na estreita faixa do Brasil Moderno,
compreende-se que Mário Pedrosa tenha visto com sim-
patia as ideias críticas de Banham. Mesmo assim, um
pouco austeras demais para quem julgava ter chegado
no Brasil o momento de quebrar o jejum funcionalista.
Era preciso novamente avançar o sinal e conferir, por
assim dizer, uma dimensão superlativa à arquitetura de
autor, evidentemente realçada por programas em que
predominem os “valores simbólicos expressivos”. Neste
particular, Niemeyer parecia-lhe então imbatível. Tudo
vinha a calhar: assim como o Crítico encampava o ponto
de vista de um observador educado no exercício da per-
cepção formal desinteressada, o Arquiteto ia propondo
em suas obras uma espécie de ordenação das formas se-
gundo o efeito visual provocado no espectador, cuja ade-
são conquistaria pelo jogo abstrato, porém literalmente
edificante, dos “elementos arquitetônicos essenciais”.

202
otília arantes

 
Oscar Niemeryer, Desenhos da Praça dos Três Poderes, Brasília
 

BRASÍLIA — UTOPIA DE UMA “CIVILIZAÇÃO


ESTÉTICA”

Voltemos aos argumentos que levaram Mário Pedrosa à


apologia da Nova Capital, mais especialmente os que a si-
tuavam numa perspectiva utópica de síntese das artes.
Comecemos pelo problema do espaço. Ao defender
sua crítica estética, ainda em resposta a Sylvio de Vas-

203
mário pedrosa: itinerário crítico

concellos, Mário Pedrosa encontra as razões da maior


abrangência deste ponto de vista na própria experiência
moderna do espaço pluridimensional — justamente o que
a todo momento estaria obrigando o crítico a extravasar o
edifício isolado em direção ao espaço urbano, configura-
ção máxima da vida moderna.
Num artigo de 1953 — “Arquitetura e atualidade”57
—, portanto anterior aos outros sobre a crítica de arqui-
tetura, Mário Pedrosa, condenando o tratamento geral-
mente improvisado dispensado ao espaço, enquadrado
como um espartilho dentro de quatro paredes, insistia
já na liberação dos espaços internos, propiciada pela
abolição das paredes sustentadas, ela mesma faculta-
da pela ampla gama de possibilidades oferecidas pelos
novos materiais, valorizados, por seu turno, por uma
tecnologia em constante renovação. Enaltecia a planta
livre, que permite criar vazios amoldáveis às exigências
do uso: “o edifício, como um organismo vivo, vem de
dentro para fora, abrindo-se para o exterior com a regu-
laridade, o ritmo e a fantasia de um botão em flor”. Não
nos enganemos com as metáforas orgânicas — essa con-
cepção do espaço e da relação interior/exterior inspi-
ra-se apenas parcialmente nas reflexões de Bruno Zevi
sobre a dinâmica do espaço interno na arquitetura. Não
só ela se mantém no interior do racionalismo moder-
no, como recusa explicitamente as críticas do arquiteto
italiano ao Movimento Moderno, cujo suposto descaso
pelo espaço interno atribui às suas origens cubistas.
Num artigo de 1960, “Equívocos de uma consciên-
cia espacial”,58 Mário Pedrosa irá mostrar, em primeiro

57. O Estado de São Paulo, l .03.53. Rep. em MPEB, p. 265-268.


 
58. JB, 16.03.60.

204
otília arantes

lugar, que justamente o cubismo e os movimentos que


nele se inspiram abandonam as “limitações táteis do
volume ortogônico, ou mesmo fechado, para almejar a
multidimensionalidade”. Além disso, o que o cubismo
e a arquitetura racional criticada por Zevi tinham em
comum, era exatamente a descoberta do plano que, no
campo pictórico, redundou no abandono da perspectiva,
e, na arquitetura, acarretou a destruição da planta
fechada rígida. Portanto, continuava nosso Crítico,
o argumento de que o interior estava enquadrado por
um volume, em geral uma forma pura estruturada
previamente, não tinha cabimento. A virtude do espaço
moderno, ao contrário do que supunha Zevi, residiria
na sua máxima flexibilidade: “o protagonista desses
espaços são planos que se cortam, movidos por uma
dinâmica própria”. Sua alma, como no cubismo e no
neoplasticismo, não é a “estática do volume fechado, mas
o fogo de uma dialética de contrários, ou a procura de
um máximo de tensões num mínimo de proponentes”.
E mais, o que na verdade teria ocorrido foi a ruptura dos
limites e a consequente tentativa de captar no interior,
os espaços externos, de estabelecer uma relação direta
com eles — esta, a tensão básica, vinculando interior e
exterior, sobre o qual repousa a força e o interesse da
espacialidade moderna. Em princípio, uma atitude de
“relatividade espacial generalizada”, mas igualmente
de totalização do espaço arquitetônico, ultrapassando
os limites do edifício para abarcar toda a cidade, o lu-
gar por excelência da síntese.59 Acrescentemos, de nos-
sa parte, que Bruno Zevi tinha em mente o espaço dito

 
59. Ibid.
 

205
mário pedrosa: itinerário crítico

orgânico da arquitetura residencial de Wright, numa


palavra, o interior burguês que o Movimento Moderno,
não por acaso, tentará por assim dizer devassar, dis-
solvendo-lhe os limites num todo complexo, a cidade
moderna. Malgrado o crescente descrédito com que era
vista a racionalidade de um espaço assim concebido,
Mário Pedrosa persiste em sua profissão de fé modernis-
ta, chegando a sustentar, contra a opinião desfavorável
que se espraiava cada vez mais, que o espaço moderno
ainda não se esgotara.60 Afinal Brasília, nessa data em
que debate o ponto de vista de Zevi (um aguerrido opo-
sitor da Nova Capital), acabara de ser inaugurada, a uto-
pia ainda estava no ar.
Como todo o mundo, Mário Pedrosa sabe muito
bem que os assim chamados técnicos em planejamento,
mesmo quando acreditam estar trazendo o mundo ideal
dos fins para o plano da realidade empírica, trabalham
de fato com abstrações tais que suas ordenações espa-
ciais acabam gerando as mais rígidas separações urba-
nas. Mas o pior é que estas intenções retas convergem,
à revelia de seus formuladores, com os desígnios anôni-
mos do Capital, que vai criando em seu desenvolvimen-
to, anárquico ou regulado, segregações até o limite da
“dissolução do caráter eminentemente comunitário da
cidade”. Observo desde já, que Mário Pedrosa também
sabia, como todo mundo, que a cidade moderna é o re-
sumo edificado de uma sociedade de classes e que, por-
tanto, não cabia mais — salvo vontade de maquiagem
ideológica — falar a seu propósito em comunidade, jus-
tamente um traço das sociedades tradicionais que a ur-
banização viria apagar. Assim sendo, quando reunidas

60. Ibid. Cf. também os textos sobre cidade em MPEB e AM.


 

206
otília arantes

num argumento, comunidade e cidade passam então a


indicar o lugar ideal e contraditório da utopia moderna.
Voltando: ao chamar a atenção para o fenômeno expos-
to acima, num artigo de 1959, “Crescimento da Cidade”
contrapõe àquela tendência perversa a Carta de Atenas,
para concluir com a seguinte declaração, no sentido da
observação que se acabou de fazer:
“A cidade moderna não se coaduna mais nem com a
centralização militar do poder à la barroca, nem
com o gosto pequeno-burguês do subúrbio, nem
com o desenvolvimento ao deus-dará do libera-
lismo. Ela quer uma estrutura humana através da
qual expandir-se e restaurar a coesão social perdi-
da. Sonha por isso em conciliar a ordem, a técnica
urbanística mais avançada, um desenvolvimento
planejado, com o calor humano e o convívio social
direto de seus habitantes, como na época da Comu-
na. Brasília, última e maior das cidades modernas
em construção, tenta ser a realização desse ideal
moderno. Conseguirá? Depende isso de muitos fa-
tores, mas também, certamente, da atual geração
brasileira”.61

Não se poderia exprimir com mais clareza a qua-


dratura modernista do círculo: restaurar a coesão so-
cial perdida (se é que ela existiu algum dia), através da
mais avançada modernização urbana. Lembremos em
todo o caso, a seu favor, que não eram poucas nem de-
simportantes as variantes do pensamento socialista que
imaginavam reintegrar, numa nova e superior forma
de organização social, o patrimônio cultural destroça-

61. “Crescimento da cidade”, JB,16.09.59. Rep. em MPEB, p. 297-299, p. 299.


 

207
mário pedrosa: itinerário crítico

do pelo capitalismo. Trocando em miúdos, embora ain-


da muito genéricos, essa aspiração de se reencontrar
a sociabilidade perdida através da reinvenção da ação
coletiva atomizada sob o capitalismo: Mário Pedrosa su-
bordinava, na esteira dos modernos mais politizados, o
êxito do plano à participação dos habitantes diretamen-
te concernidos. Todos os seus escritos do período vão
nessa direção. Lembra-se então, naquela conjuntura de
expectativas aceleradas, do que afirmara o historiador
e teórico da cidade, Lewis Mumford, acerca das condi-
ções em que as utopias se transformam em projetos exe-
quíveis: “nos períodos de rápida cristalização social”
— seria o que estávamos atravessando? — “se forma uma
representação coletiva clara de suas próprias finalida-
des e aparece a fé apaixonada na possibilidade de uma
nova atividade e de uma profunda mudança social”.62
Reforma, Revolução, Utopia? Crise de hegemonia em
que mudam os protagonistas da dominação social que se
concentram nas aglomerações urbanas? Ainda que seja
qualquer um desses o horizonte remoto de seu raciocí-
nio, Mário Pedrosa simplesmente esperava que, nesses
momentos, a “comunidade” a ser instituída (mas já pre-
sente) ganhasse força para influir nos grandes remane-
jamentos sociais em curso. Acompanhando Mumford,
como exigia seu assunto naquele instante, reflui sobre
as características locais a serem reforçadas pelo plane-
jamento regional, tendo, no entanto, sempre presente o
equilíbrio superior a ser alcançado na cidade, nova ou a
ser refundida de alto a baixo.63

62. “Planejamento, arte e natureza”, JB, 15.08.59.


 
63. Ibid.
 

208
otília arantes

Como se vê, estamos no coração do Movimento Mo-


derno: intenção plástica da função e fundo social da
dimensão estética acabaram se reencontrando noutra
escala, no interior dessa construção maior, coletiva, e
por isso mesmo uma obra de arte total, a cidade. Estas
as coordenadas dentro das quais Mário Pedrosa tenta-
rá pensar Brasília, síntese das artes, como aliás desig-
nará o encontro da AICA de 1959. Como alguns críticos
resistissem ao tema proposto, Mário Pedrosa justifi-
cava-se lembrando, entre outras coisas, que não vinha
ao caso o tema na sua acepção trivial de uma “eventu-
al colaboração entre arquitetos, escultores e pintores”,
que evidentemente só faria sentido se entendido num
“plano social e cultural de ordem geral”.64 Ainda um
“pálido começo de cidade”, Brasília reunia não obstan-
te — e nem poderia ser de outro modo, naqueles tem-
pos em que os ideais do Movimento Moderno pareciam
finalmente querer se concretizar — todas as condições
para vir a ser uma autêntica “obra coletiva”, inclusive
como obra de arte. Novamente, o programa moder-
no no seu fundamento social e moral: “é que Brasília,
para ser bem sucedida, traz em si mesma, como parte
integrante de seu processo de criação, um ideal ético su-
prapessoal, um ideal social mesmo, capaz de congregar

64. “A Cidade Nova, Síntese das Artes”; MPEB, p. 361. Já sete anos antes, no I
Congresso Internacional de Artistas, em Veneza, o próprio Corbusier pro-
pusera o tema, sugerindo a criação de um canteiro de obras com a presença de
arquitetos e artistas plásticos trabalhando em conjunto. A síntese das artes é
retomada pela UNESCO, que lança em 1956 um inquérito internacional entre
críticos e artistas sobre o assunto. (Veja-se sobre isso o artigo de Mário Bara-
ta, “A arquitetura como plástica e a síntese das artes”, in Brasil, Arquitetura
Contemporânea n. 7, 1956. Rep. em Alberto Xavier, op. cit., p. 291-296.) Mário
Pedrosa, entretanto, ao retomar o tema em 1959 procura dar-lhe uma dimen-
são mais ampla do que a de simples colaboração entre os artistas, como parecia
estarem entendendo os críticos presentes ao Congresso.
 

209
mário pedrosa: itinerário crítico

todas as forças atuantes da cidade”. 65 E mais, associado


ao fato de que seria uma capital, o caráter artificial de
Brasília faria dela
“o exemplo mais completo e oxalá o mais feliz de
uma totalidade social, cultural e artística que con-
tém em si mesma, fatalmente, por força de sua
própria natureza, todos os requisitos necessários à
realização da mais alta aspiração artística do nosso
tempo — a integração de todas as artes num só com-
plexo, numa só comunidade, para não dizer numa
só sociedade”.66

Impossível depositar maior confiança na força pro-


pulsora da cidade moderna, tal como a entendiam os
CIAM, está claro.
Como todos, Mário Pedrosa não duvidava de que o
homem moderno, vitimado pela mais completa alie-
nação e, por isso mesmo, no limiar da redenção social,
aspirasse mais do que nunca à síntese que afinal reco-
lheria os cacos da experiência moderna. Esta síntese
que a Nova Construção carregava consigo, aparecia en-
tão como a única e última maneira de “dar de novo às
artes um papel social e cultural de primeiro plano na
obra de reconstrução geral por que vai entrar o mun-
do”.67 Como também havia chegado para nós a “hora
do planejamento”, Mário Pedrosa arrumará um jeito de
nos encaixar nesta marcha da utopia traçada pelo Mo-
vimento Moderno. Voltamos a encontrar aqui o amál-

65. Ibid.
 
66. “Síntese das Artes em Brasília”, JB, l .05.58.
 
67. Ibid.
 

210
otília arantes

gama modernista que nos prometia o mundo: sabemos


que os modernos, enganados também a respeito de si
mesmos, enquanto de fato tratavam de redesenhar o
espaço burguês na sua totalidade, sonhavam com um
futuro em que a obra de arte se espraiaria finalmente na
realidade visível e tangível de nosso ambiente. Quanto
a nós, Mário Pedrosa — juntando novamente Trotsky e
Oswald de Andrade — antevia ao término de nossa mar-
cha pioneira através de um território sem passado, da
qual Brasília seria a meta, algo como uma restauração
da Polis e da Comuna, graças ao domínio técnico da na-
tureza sem o tributo devido à alienação mercantil, uma
vez que o “liberalismo do laissez-faire nunca foi, para
este país, um fim em si (como foi o caso para os Estados
Unidos); chegando atrasado em nosso país, ele aparece,
agora e cada vez mais, como uma exceção, necessária
talvez, mas em todo o caso, transitória”.68 Quem não
gostaria de acreditar?
Na mesma linha de raciocínio, Mário Pedrosa, em-
bora não ignorasse os riscos de um tal empreendimen-
to (sendo o Brasil o que de fato é), imaginava ter soado
para nós a “hora plástica” da construção, a hora da
“civilização estética”. Nesta hora, também de “rápida
cristalização social”, volta-se a pensar na antiga função
da arte na polis grega, uma fantasia recorrente na his-
tória da cultura moderna, renovada mais recentemen-
te, para dar a referência mais próxima do nosso Crítico,
pela utopia neoplástica, em cujo centro encontramos
a Cidade. Fora dela não faz sentido falar-se em “civili-
zação estética” — nas palavras do Autor: “se se colocar
este problema sob o título de cidade nova, na realida-

68. “Brasília, Cidade Nova”; MPEB, p. 347; AM, 412-413.


 

211
mário pedrosa: itinerário crítico

de isso será deslocá-lo para o inscrever nas atividades


sociais, culturais e científicas de nossa época”. Com a
“hora plástica” soaria também a hora da comunidade
(ou da Comuna, se preferirmos): Brasília, cidade nova,
seria uma comunidade superlativa, ao quadrado, “co-
munidade de comunidades” (pois a cidade como uma
comunidade isolada não passaria de uma abstração,
afirma Mário Pedrosa, citando Martin Buber).69

Nelson Kon, Vista aérea do eixo monumental, Brasília

 
Há momentos todavia naqueles escritos de
uma época quase visionária — guardadas todas as
proporções, muito parecida com o clima alemão em que
a Bauhaus parecia um prelúdio da Revolução próxima

69. “A Cidade Nova, Síntese das Artes”; in MPEB, p. 363.


 

212
otília arantes

—, em que Brasília, além de figuração exemplar, é quase


um pretexto para se discutir, e entronizar, o papel da
arte na reconstrução do mundo, que de qualquer modo
já estava em andamento. No limiar dos anos 60, quem
duvidaria? Conforme avançava a década, recrudescia
em nosso Crítico a confiança de que estava a caminho
a nova educação estética da humanidade. (Aliás seria
bom lembrar que na mesma época, e isso a bem dizer
estava no ar neossurrealista do tempo, Marcuse
ressuscitava a utopia estética de Schiller, ela mesma ora
um sucedâneo, ora a antecâmara da Revolução Social.)
Assim, em 1967, intitula significativamente um artigo
“A espera da hora plástica”, no qual, relembrando temas
do Congresso de 1959, volta a sonhar com a função
quase demiúrgica da arte, disciplinando a ciência e a
expansão tecnológica do mundo graças ao “espírito de
síntese” que lhe atribuirá o Movimento Moderno em
seu núcleo constitutivo. Gostava então de evocar nestas
ocasiões uma fórmula de Martin Buber, “o encontro da
imagem e do destino na hora plástica”, uma expressão
que julgava obscura, mas que, a seu ver, traduzia de for-
ma intuitiva a impressão partilhada por todos, de que
vivíamos à espera desta hora.70 Durante algum tempo
deixa-se embalar pela miragem mcluhaniana de uma
aldeia global eletrônica, arrematando o movimento
deflagrado pela Bauhaus. Mas na raiz do tropeço, aliás
muito breve, persiste a ideia moderna por excelência: a
síntese coletiva das artes cuja realização a arquitetura
nova trazia desenhada em seu projeto totalizador.71

70. Cf. Ibid. Retomado em “A espera da Hora Plástica”, GAM n. 5,1967 e “Do
purismo da Bauhaus à Aldeia Global”, CM, 28.06.67. Rep. em MHAC, p. 169-173.
 
71. Cf. “Do purismo da Bauhaus à Aldeia Global”, op. cit.
 

213
mário pedrosa: itinerário crítico

Obra de arte total, Brasília, na simplicidade e globa-


lidade de sua concepção, teria atingido, “sem ênfase, o
monumental”72 — outra dimensão importante da Nova
Capital. O eixo monumental teria retomado não apenas
o modelo da cidade barroca, indicando como esta a pre-
sença do poder central, através de avenidas largas e im-
ponentes, situando-o igualmente numa praça de raízes
barrocas, mas também, em seu traçado de leste a oeste,
estaria a apontar para o infinito — é o horizonte que lhe
dá o ponto de fuga. A imagem a que recorre o Crítico,
tendo ainda em mente o oásis em meio ao deserto, é a
de um rio a irrigar a cidade a partir de uma nascente
em que se encontraria a sede do poder.73 De novo, o ana-
cronismo ostensivo e deliberado faz da cidade-capital
tanto o símbolo do poder instituído — ou usurpado —
quanto o de uma aventura prestes a ser iniciada: a hora
plástica e política do Plano pela qual todos esperavam.
É possível que tenha se lembrado de Giedeon,74 na sua

72. “O eixo monumental”, JB, 2.09.59. Não esqueçamos que um dos argumen-
tos da crítica ao projeto vencedor, em 1957, era a sua monumentalidade. Ve-
ja-se matéria do jornalista Jayme Maurício no CM, 24.03.57, entrevistando
os irmãos M.M.M. Roberto, apoiado no depoimento de Sir William Holford,
bem como a resposta de Lúcio Costa três dias depois, nos seguintes termos:
“Quanto ao conceito de monumentalidade, não vejo por que na Democracia a
cidade deva ser necessariamente despojada de grandeza. Da grandeza osten-
siva e enfática, sim; mas não daquela que decorre naturalmente de um traçado
simples e funcional, concebido com elevada intenção. Mormente tratando-se,
como no caso em apreço, de uma capital, cidade ímpar por mais socializado
que seja o país”. Rep. em Sobre Arquitetura op. cit., p. 279-281. É sem dúvida
essa monumentalidade não enfática a que se referia Mário Pedrosa.
 
73. M. Pedrosa, “O eixo monumental”, op.cit. Imagem a contrabalançar a
consciência do real significado da cidade barroca: “as largas avenidas rasga-
das em linha reta, em torno de monumentos e de edifícios centrais, visavam a
mostrar aos papalvos das ruas o poder absolutista que se estendia até os hori-
zontes e se erguia ao alto para coroar-se em cúpula.”
 
74. Cf. Giedion, “Reflexions sur une nouvelle monumentalité” (1956), in Archi-
tecture et vie collective, Paris, Gonthier, 1980.
 

214
otília arantes

crença muito firme de que a vida comunitária ativa


deve expressar-se através de monumentos que tragam
à lembrança de todos os ideais da coletividade. Muito
mais do que a praça dos três poderes, a própria Brasí-
lia seria um grande monumento, na exata medida em
que também era um centro de vida coletiva, um lugar
onde os homens finalmente tomariam consciência de
sua existência mutilada. Sendo, como vimos, o remé-
dio para essa atrofia social a restauração pública da di-
mensão estética, deveríamos encarar aquela utopia em
construção justamente uma “obra de arte coletiva”.

 
BRASÍLIA OU MARACANGALHA?

Nesse meio tempo, os primeiros desencantos com Bra-


sília, associados ao regime militar que passara a sediar,
começam a arrefecer o otimismo dos anos anteriores.
Lembro a propósito que um dos títulos da série de 1957
— “Reflexões sobre a Nova Capital” —, que comentamos
longamente, traduzia já uma desconfiança bem brasi-
leira: “Brasília ou Maracangalha?” Para onde iríamos?
E verdade que a Maracangalha da marchinha carnava-
lesca de Dorival Caymmi também indicava, a seu modo,
um oásis, ele sim feito de sombra e água fresca. Mas está
claro que Mário Pedrosa pensava na discrepância, fri-
sando a paródia, entre o Brasil do chefe político minei-
ro JK e a utopia corbusiana de Lúcio Costa.75
Como vimos, Mário Pedrosa foi antes de tudo um
moderno, nascido aliás num país condenado ao moder-

75. Cf. “Reflexões em torno da Nova Capital”; MPEB, pp. 303-307; AM, pp.
389-394.
 

215
mário pedrosa: itinerário crítico

no. Cedo ou tarde deveria experimentar a exaustão da


Nova Arquitetura e a revelação da falsa modernidade
brasileira. Hoje sabemos que Brasília era uma derra-
deira fuga para a frente de nossos estrangulamentos de
nação periférica. Em mais de uma ocasião, entretanto,
como assinalamos, o Crítico detectou sinais precurso-
res da revisão ulterior — da especulação imobiliária e a
segregação social que traria consigo, à fisionomia urba-
na ambígua que parecia amoldar-se, de antemão, à au-
tocracia por vir. Mesmo assim, diante das nuvens que
se avolumavam sobre Brasília, como já dizia em artigo
de 1958, continuava a confiar no tournant democrático
que a revolução arquitetônica da nova cidade acelera-
ria, e até no hoje remoto “pacto comunitário” dos arte-
sãos urbanos, do qual nasceria a personalidade coletiva
de Brasília.76
 Tudo bem somado, Mário Pedrosa não se equivocou
nem mais nem menos do que os ideólogos do Movimen-
to Moderno. Como eles, presumiu que a Nova Constru-
ção, bem como a utopia estético-política que a norteava,
pairavam sem compromisso acima do solo histórico e
do modo de produção que lhes abriram as portas do fu-
turo. Não surpreende então que a Brasília de Mário Pe-
drosa, que foi em grande parte a de Lúcio Costa, embora
totalmente incompatível com as circunstâncias políti-
cas e econômicas que lhe presidiram a concepção, tenha
afinal se revelado a verdadeira capital de um país que
em princípio ela deveria ajudar a subverter.
Ao reclamar o tema da “síntese das artes”, qua-
se uma década depois, a Nova Capital já estava fora de
cogitação. Como veio — profecia modernista altisso-

76. “Em torno de Brasília”, JB, 9.04.58.


 

216
otília arantes

nante —, o assunto se foi, recalcado ou simplesmente


abandonado (posto de lado sem tirar as consequências
que cabiam). O fato é que não tratou mais de arquitetu-
ra, talvez escaldado com o fiasco galopante de Brasília.
Além disso, o utopista Mário Pedrosa haveria de confiar
cada vez menos no poder emancipatório da arte. A seu
ver, ela deveria doravante passar da vanguarda à “re-
taguarda” — na expressão dele mesmo77 —, cedendo o
passo para iniciativas de outra ordem, em particular à
prática política. Enquanto isso a “civilização estética”,
com a qual nunca deixará de sonhar, hibernaria.

77. “Variações sem tema ou Arte de Retaguarda”, op. cit.


 

217
Mário Pedrosa com Hélio Oiticica em Londres, por ocasião
da exposição Oiticica na Signals Gallery, 1967.

218
CONCLUSÃO

DA MODERNIDADE À PÓS-
MODERNIDADE

Antecipando-se em quase dez anos à voga polêmica do


termo, já na década de 60 Mário Pedrosa começou a cha-
mar pós-moderna a arte contemporânea. Queria marcar
com esta denominação uma dupla diferença com relação
à arte moderna: no plano dos meios, a predominância do
suporte eletrônico e tudo que daí se segue no domínio da
informática e da automação; no plano dos fins, o retorno
à realidade (ou suposta ser tal), no caso a realidade da so-
ciedade de consumo. Aos seus olhos, era então pós-moder-
na essencialmente a cultura da publicidade e do detrito, e
isso muito antes que o seu uso se generalizasse entre críti-
cos e artistas.
Pelo menos desde esse período, uma coisa era certa
para Mário Pedrosa: estaríamos assistindo aos últimos
lances de uma cultura em extinção. Vemos assim deli-
near-se aos poucos nos seus escritos a evidência de que
o ciclo da “arte moderna” — das Demoiselles d’Avignon
ao Tachismo — se exaurira. E mais, acompanhando os
últimos episódios deste ciclo, estava convencido de que
à arte apenas sismográfica e carregada de hermetismo
que vinha a ser o tachismo, se substituiria uma derradei-
ra tendência, apoiada desta vez nos media. Um processo
inexorável do qual procurou extrair todas as consequên-
219
mário pedrosa: itinerário crítico

cias. Reconhecia, por exemplo, que doravante os artistas


só poderiam ser inventores neste domínio da informação,
ao qual estavam condenados, que precisariam ampliar
sistematicamente o campo perceptivo à procura de outros
condutos e novas “mensagens”. Numa palavra, por um
momento Mário Pedrosa acompanhou McLuhan, embar-
cando no otimismo dos media, que caracterizaria uma
década de falsas esperanças. Não é difícil compreendê-lo
neste mau passo, afinal sempre associara o destino da arte
à uma espécie de educação estética da humanidade, uma
reforma da sensibilidade e da percepção que parecia final-
mente encontrar o seu veículo material, para além da arte
contemplativa dos museus. Achava então que a tecnolo-
gia eletrônica, alterando nossa percepção particularista,
própria da idade mecânica que se encerrava, nos aparelha-
ria para uma apreensão da “totalidade social”, do mesmo
modo que a arte, em consequência, abandonaria o “campo
estreito da pura expressão em busca do campo mais largo
e mais contemporâneo da comunicação”. A arte tornava-
-se “acelerador sensorial”.
“Interprete-se como se queira todo o formidável es-
forço científico exploratório da Teoria da Informação,
esse terrível acelerador sensorial; mas — pergunta-se
— não terá aqui sua explicação, essa inquieta, quase
neurótica obsessão da pesquisa que domina os artis-
tas mais audaciosos e criativos da época? Trata-se
ainda e no fundo de absorver, de abarcar campos cada
vez mais vastos na apreensão sensorial e também
substantiva do mundo, o que em outros tempos, ou
mesmo desde a arte das cavernas, foi sempre, afinal
de contas, a grande missão civilizadora da Arte”.1

1. “Especulações Estéticas: Lance Final — III”; MHAC, p. 136; FPE, p. 363


 

220
otília arantes

Toda pesquisa estética deveria voltar-se para o


desbravamento dessa nova ordem, em particular, de-
dicar-se a ultrapassar a “espessura do presente”. Uma
arte que não quebrasse esses limites perceptivos não
estaria à altura dessas novas forças produtivas. Nou-
tros termos, a arte precisaria engrenar nessa “progres-
siva e dialética objetivação” do ser social, sua evolução
dependeria da resposta que soubesse dar à crescente
complexidade dos condutos informativos. Aí o otimis-
mo mencionado acima: por esse caminho a arte não só
não traía seu destino mas o potenciava, facultando aos
indivíduos antecipar pela imaginação, figurar plasti-
camente o mundo fabuloso descortinado pela técnica,
desencadeada no presente estágio da evolução social.2
Vê-se que a aposta nos media reatava com a função
profética que a vanguarda construtiva atribuía à arte,
como se a eletrônica a confirmasse em sua missão civi-
lizadora, fazendo da arte algo da “maior relevância não
apenas no estudo dos meios e veículos de comunicação,
como no desenvolvimento dos controles nesses mesmos
meios”.3
Desde o início, entretanto, Mário Pedrosa não pare-
cia ignorar a ambivalência desse processo de extrover-
são. Por um lado, achava de fato que esta extensão do
homem, prolongado em novos canais de comunicação,
poderia modificar para melhor as relações do artista
e do público com a realidade, enfeixados por uma lin-
guagem comum, por assim dizer transparente porque
sem desvios subjetivos. Por outro lado, reconhecia em

2. Ibid.
 
3. Cf. McLuhan, Os meios de Comunicação como extensão do homem, trad.
Décio Pignatari, SP, Cultrix, 1969; p. 15.
 

221
mário pedrosa: itinerário crítico

funcionamento virtual senão atualizado, o velho me-


canismo da alienação: a autonomização daquela lin-
guagem comum — cujo arco mediático concentra-se
sobretudo nos imperativos da publicidade requerida
pela mercadoria —, de instrumento de emancipação e
conhecimento, poderia converter-se em instrumento
de controle e dominação.
“Ela (a arte) tateia à procura talvez do justo com-
portamento humano nesse longo, grande percur-
so matutino que se abriu. Tudo se passa como se o
velho homem estivesse a preparar-se para deixar,
como precária borboleta, o casulo dentro do qual
até aqui viveu, do seu arcaico habitat, na sua velha
cultura folclórico-mágico-idealista-capitalista-o-
cidental, e sair por aí a debater-se, incerto e corajo-
so num outro habitat cultural que ele mesmo veio
criando, ou se vai formando, já agora por si mesmo,
e que também o vai transformando, de contradição
em contradição”.

Ao término desse processo, o homem, cada vez mais


outra coisa que ele mesmo, “terá feito, então, a camba-
lhota no cosmos sobre si mesmo e seu destino. Mas sa-
berá, então, naqueles inconcebíveis tempos, que é ele
próprio? Isto é, que é nós mesmos, ainda e sempre?”
São trechos de suas “Especulações Estéticas”,4 onde as
dúvidas parecem suplantar as esperanças depositadas
inicialmente no novo Iluminismo, encarnado pela in-
dústria cultural, capaz até de romper com o arcaísmo
das relações capitalistas de produção.
“Ó! Otimismo!”, dirá mais tarde, recapitulando a

4. Pp. 137-139.
 

222
otília arantes

crença de sempre, primeiro na força sintética do projeto


construtivo da abstração, depois no esclarecimento esté-
tico promovido pelos media. Agora percebe, enfim com
nitidez, a verdadeira face da cultura administrada, vendo
que afinal a redução da distância estética redundara no
seu contrário. “O homem arrancado de seu ritmo de ma-
turação e adaptação, justo e orgânico, tem de se integrar
na ‘esfera do audiovisual, ou na iconosfera’, na denomina-
ção de Cohen-Fugeyrollas”. E conclui:
“Eis o drama da arte contemporânea. As técnicas
de comunicação avançam sobre a imaginação deles
(os artistas), num desenvolvimento cada vez mais
autônomo. Os artistas debateram-se dentro de uma
representação que não fizeram nem receberam fai-
xa, mas que se elabora sem eles”.5

Enfim, as leis do styling acabariam por subme-


ter igualmente arte e mercadoria ao mesmo sistema de
objetos.
Mesmo assim, Mário Pedrosa ainda continuou, por
um bom tempo, achando possível uma relação menos
bastarda com o mundo, que se exprimiria numa espécie
de atividade livre que se poderia chamar de arte. Nela
passou então a incluir o Neoconcretismo (movimento
que a seu ver teria marcado, no Brasil, a passagem de
um ciclo a outro), a Arte Ambiental, os Happenings e
até mesmo a forma de vida encarnada pelos hippies.
Ante a ameaça da diluição da arte na mercadoria, o Crí-
tico via nessas iniciativas, não sem paradoxo, maneiras
extremas de se preservar a autonomia da arte numa so-

5. “A passagem do verbal ao visual”, CM, RJ, 23.03.67. Rep. em MHAC, pp.


147-151.
 

223
mário pedrosa: itinerário crítico

ciedade que já estava chamando de pós-moderna. Auto-


nomia sem dúvida ameaçada, na fronteira da arte, que
passa então, à maneira das vanguardas históricas, a
rivalizar com a própria vida: Mário Pedrosa vai assim
enumerando os gêneros dessa atividade mais coletiva
do que individual, “atos”, “gestos”, “paixões”, “erotis-
mo”, até chegar aos movimentos negros e às guerrilhas
dos anos 60. Nisso tudo via uma extroversão que não
deveria configurar-se em valores de mercado, mais ou
menos da ordem dos não-objetos, da antiarte — simples
“movimentos no plano da atividade-criatividade”, sem
nenhuma pretensão de realidade, no sentido forte do
termo, apenas um exercício coletivo, experimento no
qual se daria a conhecer o que ainda restasse de liberda-
de numa sociedade altamente regulada.6 Força produti-
va estética? Práxis que amalgamasse política e libido? O
fato é que a reflexão de Mário Pedrosa, dominada mais
de vinte anos pela questão do aparato perceptivo da ex-
periência estética, voltou-se para um novo problema,
imprevisto, a um tempo empecilho fatal e nova virtu-
alidade: as relações da iniciativa artística com a esfera
da produção, conexão perversa balizada pelo horizonte
da mídia.
Se fôssemos reler seus escritos desse período, vería-
mos que, entretanto, não tinha muitas ilusões quanto à
dessublimação em curso, sobretudo por se tratar de uma
dessublimação institucionalizada. Descompartimentada,
a dimensão estética deixaria de representar uma instância
crítica, um ponto de vista polemizando com a sociedade
pelo simples fato de ser um ponto de vista separado. Má-
rio Pedrosa pressentiu essa perda de tensão decorrente da

6. Cf. os artigos dos anos 60, especialmente os de 1966 e 67, em MHAC e FPE.
 

224
otília arantes

indiferenciação crescente, notou-a sobretudo na arte do


momento, que para ele vinha a ser então a personificação
do pós-modernismo, a pop-art. Tratava-se de um proble-
ma no entanto conhecido, que já havia formulado na dé-
cada anterior a propósito da voga da arte informal, à qual,
como sabemos, se opusera decididamente. Voltando-se
contra a imediação expressiva praticada por tachistas e
informais (espécie de ideologia em ato da descomplexifi-
cação da tradição artística), censurava-lhes a quebra da
diferença estética, de resto sem nenhum proveito crítico.
Tomou emprestado de um crítico estrangeiro a expressão
“distância psíquica”, para poder afirmar como um axioma
que a obra de arte, sem se descaracterizar e perder sua ra-
zão de ser, não pode se misturar ao cotidiano da vida.
“Por sua própria natureza, ela tem de se afastar do
chão onde fazemos nossas andanças ou, como no
teatro, reserva-se uma área onde se encontram e
agem os atores, separados de outra maior onde es-
tão os espectadores, carregando capas, comendo
amendoim ou empunhando binóculos”.7

Abolida essa distância metafórica, abria-se o caminho


para uma desestetização a seu ver sem futuro, pois arris-
cava-se nela a própria aniquilação da arte. Foi o que suce-
deu em parte no ciclo seguinte.
Aberto o novo período, entretanto, Mário Pedrosa,
que não poderia deixar de acompanhar o que viria a ser
o último surto vanguardista, não descartou de imediato
a possibilidade de que uma nova quebra de “distância psí-
quica”, como preferia dizer, pudesse propiciar também
uma súbita visão das coisas “pelo outro lado”. E se a des-

7. M. Pedrosa, “Da abstração à autoexpressão”, in MHAC, p. 37; FPE, pp. 316-18.


 

225
mário pedrosa: itinerário crítico

sacralização fosse mesmo produtiva? E se a subversão das


relações convencionais entre a arte e o seu destinatário
induzisse a uma espécie de cristalização coletiva, em que
as energias liberadas se apresentassem como um exercí-
cio experimental da liberdade? O Crítico passa então a
avaliar essa substituição das velhas categorias estéticas
pela ideia de participação do espectador.
Nessas condições, a obra de Lygia Clark retorna ao cen-
tro de suas reflexões. E com ela, é o Brasil que por um mo-
mento passa de modesto seguidor a precursor, uma vez que
Lygia Clark foi um dos primeiros artistas no mundo a pôr
em execução essa reviravolta. Mário Pedrosa já escrevera
em 1960 sobre a artista, observando que, diante do esgota-
mento generalizado das artes, especialmente da escultura,
ela representava uma verdadeira renovação, ao cancelar a
recepção puramente estético-contemplativa da obra (que
deixava, num certo sentido, de ser tal), jogando por assim di-
zer o espectador dentro da obra. Nisto rompia com uma tra-
dição de vanguarda inaugurada pelos futuristas: as linhas
de força que eles sabiam tão bem destacar ainda eram tribu-
tárias do privilégio concedido à soberania clássica do olhar,
da contemplação solitária à distância. Lygia Clark teria sub-
vertido essa relação, graças à intervenção direta do observa-
dor que participa, não propriamente da criação (agora uma
instância muito relativa), mas do desabrochar e da vida sub-
sequente da obra. E verdade que introduzindo o tempo em
suas esculturas, Lygia Clark reativa a grande tradição que
concebia a escultura nos moldes do arquitetônico e do cinéti-
co, mas algo de novo se passava com os seus “bichos”. Mário
Pedrosa costumava compará-los, nas suas virtualidades, a
uma jaqueira a dar jacas, tantas as formações plásticas sur-
preendentes, mas são formações cuja multiplicação fica na

226
otília arantes

dependência do gesto de intervenção do antigo espectador.


Com isso mudou o espaço da arte: já não é mais um espaço
centrado numa perspectiva egocêntrica, mas vem a ser o
espaço real, circundante. Nesse processo evidentemente pe-
sam as inovações que vêm da técnica, mas um dos grandes
méritos da artista teria sido o equilíbrio com que soube con-
ciliar o rigor de feição matemática das severas estruturas dos
seus objetos (ou “não-objetos”), com uma verdadeira força
expressiva, quase orgânica. Animados por leis próprias, os
“bichos” de Lygia Clark só se punham em movimento graças
à manipulação desenvolta do público, conjugando máquina
e corpo numa forma de criação coletiva.
“O espectador não é mais um sujeito passivo e pura-
mente contemplativo em face do objeto; nem tampou-
co um sujeito egocêntrico que para se impor nega a
obra, o objeto, como na pintura e na escultura român-
tica e baixamente naturalista, ora em moda, que foge
à realidade exterior, acovardada diante das dificulda-
des e complexidades do mundo contemporâneo, numa
posição inteiramente solipsista. A nova arte de Clark
convida o sujeito-espectador a entrar numa relação
nova com a obra, quer dizer, com o objeto, de modo
a que o sujeito participe da criação do objeto e este,
transcendendo-se, o reporte à plenitude do ser. A arte
moderna começa a romper de novo com o obscurantis-
mo romântico e, retomando uma atitude otimista, se
propõe vencer com o homem e para o homem o enig-
ma do mundo, e lhe recondicionar o destino. As atuais
realizações de Lygia Clark têm esse papel”.8

8. “Significação de Lygia Clark”, JB, 23.10.60. Rep. no cat. do MAM-RJ, 1963; na


col. “Arte Brasileira Contemporânea”, MEC/FUNARTE, 1980; e em MPEB, pp.
195-203. Cf. também os outros artigos sobre Lygia, especialmente “A obra de
Lygia Clark”, O Estado de São Paulo, 28.12.63; rep. em AM, pp. 347-354.
 

227
mário pedrosa: itinerário crítico

  Isto em 1960. Aos poucos afloram outras dimen-


sões dessa nova arte, neutralizando o que antes parecia
revolucionário.

Lygia Clark, Bicho, 1960.


Alumínio anodizado.
Coleção particular

Segundo Mário Pedrosa, uma espécie de movimento


pendular governa a História da Arte. Do subjetivismo der-
ramado a que chegara a arte moderna nos anos 50, terí-
amos passado para o outro extremo, estaríamos vivendo
uma fase de objetivismo recrudescido. Mas se esta extro-
versão caracteriza com algum proveito (em princípio)
uma arte de comunicação, a “trágica dialética do encon-
tro social”, como diz sete anos mais tarde, se encarregaria
228
otília arantes

de descortinar uma outra perspectiva antagônica — tal-


vez o seu desdobramento fatal —, como estava convenci-
do o Crítico nos seus últimos depoimentos: eram visíveis
os sinais de capitulação diante da positividade do real (no
caso, a sociedade do capitalismo avançado), de exaustão
da inventiva estética, que degenerara em redundância
mortal.
Nos escritos da década de 60, quando se refere ao con-
formismo que estaria liquidando a arte, é sobretudo na
arte pop americana que Mário Pedrosa estava pensando.
Não que idealizassem uma realidade insuportável, mas
havia nos americanos muita complacência e exaltação da
mediania repudiada pela grande arte.
“Eles pertencem de corpo e alma ao meio de onde
tiram seus assuntos, e têm pleno conhecimento do
que fazem porque todos foram ou são formados em
arte comercial, ou na arte da publicidade. Não são
artistas porque são técnicos da produção de massa.
São especialistas que trabalham (ou trabalharam)
para a atividade decisiva da sociedade americana”. 9

Não é menos verdade, todavia, que o pop liquidou


com as prerrogativas desta mesma grande arte, anu-
lando aparência e distância estéticas, erradicando
brutalmente o conceito fátuo de obra de arte única e
eterna. Mas o fez — rifando a promessa de democra-
tização enunciada nesta démarche esclarecida — em
nome da banalidade do lugar comum consagrado por
uma sociedade afluente e desigual no seu logro de mas-
sa. O sacrifício da unicidade da obra pode muito bem ter

9. “Quinquilharia e Pop’Art”, CM, 13.08.67. Rep. em MHAC, pp. 175-179, p. 177;


Mlc, pp. 261-267, p. 264.
 

229
mário pedrosa: itinerário crítico

sido em vão, malgrado o progressismo desse programa


radical.10 Aos olhos de Mário Pedrosa, que não era na-
cionalista, antes cosmopolita, viria ao caso constatar
novo trunfo brasileiro na corrida contra a alienação
pós-moderna. Enquanto o pop americano procurava
aprisionar o insólito na redundância da comunicação
de massa, o pop brasileiro, longe de ser apenas um de-
calque do original metropolitano, conseguia colocar a
redundância, prezada pela matriz, a serviço da revela-
ção do insólito: a infrarrealidade detectada pela ação e
não estilizada por uma poética da cumplicidade na alie-
nação. Ultrapassava-se a Arte na esteira de uma práxis
responsável por uma nova relação com o mundo, como
o demonstravam as obras de Oiticica, Gerchman ou An-
tônio Dias.11
Resta saber até onde se pode qualificar de pós-mo-
derno (embora ainda fosse incerto esse diagnóstico de
época), o inconformismo declarado do pop brasileiro.
Podemos supor que, diante das crescentes restrições
que fazia ao pop e ao assim chamado pós-pop—com
os quais identificava o essencial da arte pós-moderna,
a seu ver já inteiramente apologética —, Mário Pedro-
sa prezava naqueles jovens artistas brasileiros, antes
de tudo, a maneira pela qual souberam renovar (na
medida em que isto ainda era possível) o velho espírito
revolucionário das vanguardas históricas.12 Afinal, não

10. Cf, por exemplo, “Manifesto por uma arte total de Pierre Restany”; MHAC,
p. 240.
 
11. Cf, além de “Crise ou revolução do Objeto”, MHAC e FPE; “Arte ambiental,
arte pós-moderna, Hélio Oiticica” e “Do pop americano ao sertanejo Dias”,
MPEB e AM.
 
12. Cf. Otília B.F. Arantes, “Depois das vanguardas”, in Arte em Revista no.
7, SP, 1983.

230
otília arantes

custa insistir, nunca foi outro o seu programa crítico: se


acompanhou com simpatia a transformação estética na
virada dos 50 para os 60, foi sem dúvida, como sempre,
em nome das mesmas “aspirações sociais libertárias”
que estavam nas “origens anticapitalistas da arte mo-
derna”.13 Aliás, é ele mesmo que o diz numa de suas úl-
timas entrevistas, depois de criticar o pop, isto é, o que
propriamente considerava arte pós-moderna:
“todos nós que estivemos ligados à arte moderna
a víamos como uma arte com futuro, progressis-
ta, companheira da nova arquitetura, pensando o
homem como um todo. Quando estávamos no auge
da luta por Brasília, era na arte moderna que pen-
sávamos. Uma arte que se pretendia mundial, uni-
versal, levantando os problemas da modernidade
como forma de lutar por uma nova civilização.” 14

Ocorre, reconhece, que “a avalancha do mercado


barrou nosso otimismo”, otimismo que, dez anos antes,
não era incompatível com as mudanças tecnológicas e
culturais que se acumulavam. Curiosamente ainda arru-
mava jeito de confiar à arte pós-moderna a tarefa, quem
sabe, de pôr ordem no caos reinante, prolongando em
parte aquela universalidade que entrevira na Arquite-
tura Nova. — Esperança efêmera! Logo haverá de convir
que esta mesma arte era a primeira a desvirtuar aquele
paradigma. Eis um balanço daqueles anos, onde vemos
novamente arte pós-moderna e síntese arquitetônica se
cruzarem no mito da aldeia global:

 
13. Expressões de Mário em “Variações sem tema ou arte de retaguarda”, cit.
 
14. Entrevista concedida a Roberto Pontual, JB, 24.04.80.
 

231
mário pedrosa: itinerário crítico

Antonio Dias, Fumaça do prisioneiro, 1964


óleo e latex sobre madeira , 120 x 93 cm
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo
 

“Críticos e pensadores atuais reclamam uma ordem


nesse caos, e aspiram a que os homens modernís-
simos de agora possam reencontrar numa espécie
de aldeia global atualíssima os condicionamentos
harmoniosos de sentido e de espírito do ambiente
tribal de nossos antepassados. As últimas instân-
cias da arte de nossos dias, da arte pós-moderna,
vão nesse sentido. Caberia assim à Arquitetura en-

232
otília arantes

globar esse esforço de síntese plurissensorial, tri-


bal e comunal, nostalgia do perdido homem deste
fim de século”.15

Esse otimismo, seguidamente temperado de dú-


vidas, não podia mesmo durar muito. O futuro da arte
parecia-lhe cada vez mais incerto. Para quem passara a
vida, sobretudo os últimos anos, à espreita das menores
chances de irrupção do novo, o clima agora era de beco
sem saída.16 O título da Comunicação que apresentou
em 1978 no Simpósio da Bienal latino-Americana — “Va-
riações sobre um mesmo tema ou arte de retaguarda”
— fala por si mesmo: a arte abandonara seu lugar de
vanguarda na corrida da civilização. A título de exemplo
dessa perspectiva de fim de linha, isto é, nenhuma pers-
pectiva, veja-se como passa a considerar os happenings:
chama-os simples “truques”, “surpresas que se repetem
e perdem logo a graça”, representam quando muito um
triunfo fácil às custas do público, transformado no povo
abestalhado das feiras. O mesmo desencanto diante da
body art, outra falsa superação da arte, não mais do que
experimentos “revulsivos” de “niilistas ultralógicos”:
“não se oferecem aos outros como espetáculo como
faziam Marinetti e seus fascistas: se dão a si mes-
mos, pois seu corpo é seu objeto, o objeto de sua bus-
ca. A destruição volta-se contra eles mesmos, contra
o que não são em seu ser mesmo; pura autodestrui-
ção, é esta que se dá em espetáculo — o espetáculo

15. “Do purismo da Bauhaus à aldeia global”; MPEB, p. 173.


 
16. “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás”, Versus n. 4,1976. Rep. em C.E. de
Senna Figueiredo, Mário Pedrosa, retratos do exílio, RJ: Antares, 1982, p.
101-110; e PA, pp. 333-340.
 

233
mário pedrosa: itinerário crítico

que pretende ser edificante. Querem edificar pela


autodestruição. O ato estético que sempre negaram
transforma-se em ato moral. Como desqualificar tais
ações? Como testemunho de um condicionamento
cultural, final, sem abertura, nem existencial, nem
transcendental. O ciclo da pretensa revolução fecha-
-se sobre si mesmo. E o que resulta é uma regressão
patética, sem retorno: decadência”.17

Decadência, esta sem dúvida a palavra mais utiliza-


da por Mário Pedrosa depois que voltou do exílio em 1977.
Não via mesmo nenhuma alternativa. Em 1975 — quando
escreveu o “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás” (que ví-
nhamos citando) —, ainda era possível encontrar nos seus
depoimentos alguma confiança nos deserdados da cultura
que viviam no Terceiro Mundo, fratura exposta da falsa
ordem mundial, mas que, apesar de tudo, parecia preser-
var de forma latente um potencial revolucionário. — Abai-
xo da linha do Equador, onde “germina a vida, uma arte
nova ameaça brotar”. Mas logo nem mesmo aí discernirá
energia necessária para uma reviravolta que modifique o
panorama redundante da Arte, como se a negação tivesse
desaparecido de vez do que restara da dimensão estética
do mundo. Num certo sentido a Arte torna-se mesmo coisa
do passado, como se pode verificar nesta última palavra de
uma trajetória crítica exemplar:
“Até o movimento da pop art, os artistas tinham no-
ção de que iam inovando o enredo, a problemática,
da arte moderna, inspirados nas artes primitivas
(...), hoje a arte é cada vez mais um produto da indús-
tria e, portanto, do mercado. (...) Eu fui um dos arau-

17. Ibid.
 

234
otília arantes

tos da arte moderna no Brasil e podemos dizer que


chegamos ao fim de um processo. Surgiram experi-
ências novas para além dos problemas puramente
estéticos. E claro que não estamos no fim da arte. A
arte é algo permanente, não acaba. Segundo alguns
teóricos, a arte é o quarto reino da natureza. Mas o
importante é a sua significação, o que se vai fazer
dela. Não existem mais vanguardas. O que se pode
dizer é que estamos em uma época de decadência,
embora em épocas de decadência às vezes surjam
grandes obras de arte. Hoje a arte não tem a mes-
ma importância que tinha há cinquenta anos atrás.
(...) A arte não irradia mais influência, não desperta
mais atenção. (...) Estamos numa época de crise pro-
funda, de crise ainda mais aguda no Terceiro Mun-
do. (...) Diante de conflitos tão radicais, terríveis,
insolúveis, é natural que a arte passe para um nível
secundário”.18

18. Entrevista de Cícero Sandroni, JB, 02.04.80.


 

235
 

236
APÊNDICE

ATUALIDADE DE MÁRIO PEDROSA1

No centenário de um crítico decisivo como Mario Pedrosa,


é natural que se pergunte pela atualidade de seu empenho
de vida inteira em favor da renovação permanente e escla-
recida da arte brasileira. Passados 20 anos de sua morte,
em que pé estamos? Beneficiados pela vantagem involun-
tária da perspectiva histórica, sabemos hoje que de nada
sabíamos quanto ao fim de ciclo vivido naquela virada dos
anos 70 para os 80. Não era para menos. Àquela altura, a
cultura oposicionista brasileira parecia se aproximar de
um novo auge. Para que não houvesse dúvidas a respeito,
ali estava a grande novidade histórica representada pela
construção autônoma de um Partido dos Trabalhadores,
de cuja fundação o crítico de arte e militante socialista
Mario Pedrosa participou. Menos de dez anos depois, re-
forçando aquela sensação de apogeu, uma frente popular
liderada pelo novo partido por pouco não ganhava uma
eleição presidencial. E, no entanto, estava se encerrando,
sem ter resolvido nenhum dos problemas de uma agenda
histórica de construção nacional (nem mesmo a indus-
trialização, que se completara nos anos 70, fez a diferença

1. Publicado na Folha de São Paulo, caderno Mais! 19.04.2000, pp.4-7. Republi-


cado sob o título de “Mário Pedrosa e a tradição crítica”, in Mário Pedrosa e o
Brasil, São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001, pp.43-50. Republicado
como “Mário Pedrosa Today”, in Ferreira, Herkenhoff, Primary Documents,
NY; Moma, 2015, pp, 68-72.
 

237
mário pedrosa: itinerário crítico

que se esperava), meio século de nacional-desenvolvimen-


tismo (1930-1980), meio século de modernização conser-
vadora, portanto, em cujo desenlace positivo todavia a
tradição crítica a que pertencia Mario Pedrosa apostara,
pois, afinal, neste longo ciclo de crescimento material
e polarização social, o país estivera inegavelmente em
movimento. Exatamente ao longo destas cinco décadas
transcorreu a atividade crítica de Mario Pedrosa. Por isso
mesmo, como tudo que foi rigorosamente “moderno”, ela
poderia parecer arquivada, quando muito objeto de curio-
sidade histórica. Evidentemente, não sou desta opinião —
ou não estaria pesquisando, publicando e divulgando sua
obra, como tenho feito ao longo destes anos todos.
Não é fácil, contudo, definir a atualidade de Mario
Pedrosa, para além do exemplo e da envergadura do per-
sonagem, sobretudo se confrontados com os herdeiros
intelectuais de duas décadas de estagnação mental e re-
trocesso social. Se disser que a atualidade está antes de
tudo no método crítico e não na matéria histórica das
opiniões — aliás exatas no seu tempo, de Käthe Kollwitz
e muralistas mexicanos até Brasília e o construtivismo
—, estarei sendo pouco específica, ou melhor, estarei
dizendo apenas o essencial, a saber, que a força de seu
modo de aproximação dos problemas da modernização
artística brasileira provinha justamente da maneira
pela qual soube reatar com o veio subterrâneo da me-
lhor tradição cultural brasileira, mais exatamente com
a tradição de reflexão anti-ilusionista sobre a diferença
brasileira e, por isso mesmo, sempre projetada sobre o
fundo da marcha desigual e enganosamente convergen-
te da civilização capitalista em expansão no planeta. Por
isso, a boa pergunta sobre a atualidade de Mario Pedro-
sa diz respeito, antes de tudo, ao futuro dessa tradição
238
otília arantes

crítica, na qual se cristalizou algo como o ponto de vista


da periferia acerca da natureza de um sistema mundial
que lhe retirava com uma mão o que lhe oferecia com a
outra — estou me referindo, por exemplo, ao colapso
do desenvolvimento, mas de um desenvolvimento a um
tempo dependente da metrópole, porém associado a esse
mesmo polo dominante. Aliás, termo de comparação
obrigatório para quem se disponha a pensar, agora que
se encerrou, e com um fiasco sem precedentes, o breve
interregno construtivo do capitalismo global na peri-
feria. Resta então saber se avançaremos culturalmente
desarmados em meio ao vácuo ideológico que se insta-
lou. Em poucas palavras: estamos ou não diante de um
novo começo da capo, como parece ser o drama das for-
mações interrompidas em sociedades mal-acabadas. Ou,
por outra, simplesmente nossa modernidade enfim se
completou — como das outras vezes, a cada ciclo sistêmi-
co de acumulação mundial —, só que com um desfecho
inesperado e inescapável (salvo numa ordem pós-capita-
lista), cuja lógica não é mais a da integração, mas a de um
permanente girar em falso rumo à desagregação?
Mesmo assim, gostaria de ressaltar a originalidade
do método crítico de Mario Pedrosa: o ajuste entre ten-
dências internacionais e realidade local (algo impensá-
vel ou sem sentido para um crítico europeu, pelo menos
enquanto lhe for possível refletir sobre a tendência do
seu material sem pô-lo à prova na câmara de decanta-
ção da periferia). E mais: toda vez que abandonamos tal
modo de pensar em dois tempos — que manda confron-
tar a norma metropolitana com o seu “desvio” colonial,
e vice-versa, resvalamos para a mais completa irrele-
vância (como costuma lembrar Roberto Schwarz). Este,
é claro, não foi o caso de Mario Pedrosa.
239
mário pedrosa: itinerário crítico

Podemos apreciar tal método crítico, característico


da situação periférica, em funcionamento na disputa,
redefinida pelo nosso autor, entre “figurativos”, parti-
dários da ênfase na cor local — tal como a redescobriu
e reinventou o modernismo em seu momento “nacio-
nalista” — e o internacionalismo dos “abstratos”. Ao
demonstrar a pertinência nacional da abstração e a re-
levância cosmopolita do modernismo do período ante-
rior, Mario Pedrosa, ao advogar nestes termos a causa
de uma possível tradição construtiva brasileira, sim-
plesmente dava continuidade, apesar do desencontro
na avaliação — arte abstrata ou figurativa? —, à lógica
mesma de nosso sistema cultural binário, que manda-
va regular um pelo outro, o particular-local e o univer-
sal-ocidental. É bem verdade que para os modernistas
o primitivismo cubista e a deformação expressionista
de nítida índole social pareciam ajustar-se a um pro-
grama de transposição plástica do país, ao que o “desre-
calque localista” (na expressão de Antônio Cândido) os
induzia, ao passo que com a abstração imaginavam que
seríamos obrigados a renunciar a tudo isso, que uma
tradição articulada a duras penas seria erradicada da
noite para o dia, forçando a um novo recomeço. Ocorre
que o partido da tradição local esquecia que o primeiro
modernismo também fora um corpo estranho e que, do
mesmo modo, rompendo com um sistema análogo de
estilos quase oficiais, a pintura abstrata vinha inaugu-
rar um novo ciclo de atualização, a que nos condenava
nossa sina de país periférico. Na metrópole, o olho con-
temporâneo, acomodado à abstração, num certo senti-
do era muito mais fiel ao princípio da mimesis do que
um naturalismo de fachada, meramente retórico, de
sorte que o abstracionismo, longe de ser uma arte alie-
240
otília arantes

nada, era uma verdadeira e rigorosa poética da aliena-


ção contemporânea; e, do lado de cá, nós éramos parte
do problema.
Convém pois observar que os dois polos não só estão
presentes em cada um dos momentos em questão, como
por sua vez se sucedem: são momentos com ênfases es-
teticamente contrapostas, porém não no ânimo cons-
trutivo nacional —do mundial (abstração) ao localista
(modernismo) —, sem que no entanto, repito, se rompa
a continuidade do propósito formativo entre ambos,
essa a causalidade interna decisiva. Exemplo: a fase ilu-
minista-institucional do Mario de Andrade dos anos 30
e a depuração abstracionista-construtiva no esforço de
superação do subdesenvolvimento que daria o tom na
etapa subsequente; de outro lado, nada mais “local” do
que uma nova capital — ente territorialista por exce-
lência —, em que culmina esse processo. Por onde se vê
que os dois Mários procuravam a mesma síntese entre
a construção nacional e o passo universalizante dessa
mesma construção.
Até aqui, porém, a metade, por assim dizer, afir-
mativa dessa lógica cultural que especifica o raciocí-
nio crítico de todo intelectual brasileiro que se preze,
envolvido, portanto, na tarefa histórica de viabilização
do país. Por isso a naturalidade do argumento de Mario
Pedrosa: tudo se passa como se estivéssemos prepara-
dos desde sempre — ao menos pelo viés construtivo dos
modernistas — para encaixar sem arbitrariedade o des-
dobramento “abstrato” da arte moderna. Caráter afir-
mativo desse contraponto (no fundo “harmonioso”!)
entre experiência local e sua formulação verdadeira nos
termos artísticos os mais avançados, porque ele supõe
que uma tal síntese entre o local e o mundial se verifique
241
mário pedrosa: itinerário crítico

tanto na sua dimensão expressiva ou simbólica como


na material ou social — isto é, que a competição entre
as nações pela riqueza capitalista se transfigure (não
há outro termo para esta fantasia) numa prosperidade
compartilhada graças a uma sábia e racional divisão
do trabalho, no concerto das nações — enfim, tudo que
o capitalismo está condenado a prometer sem jamais
cumprir. Difícil não ver que o momento internaciona-
lista (porém aclimatado) encarnado por Mario Pedrosa
tinha precisamente o mesmo pressuposto, a saber, que
à articulação cultural nos moldes da sensibilidade es-
tética emancipada correspondesse uma sociedade eco-
nomicamente moderna e integrada. Não espanta então
que ambos os projetos, o da arte moderna levada ao seu
limite, ou plenitude construtiva, e o da superação na-
cional do subdesenvolvimento tenham se esgotado na
mesma hora histórica. “Condenados ao moderno” — na
fórmula sempre repisada por Mario Pedrosa — significa
o quanto esta dimensão afirmativa do sistema cultural
brasileiro (por assim dizer, em constante período de
formação) é ineludível: ignorá-la seria uma sentença de
morte político-intelectual; subscrevê-la integralmen-
te, também, como ensina a experiência de dois séculos
de vida nacional independente porém de segunda mão,
o que sempre acaba esterilizando qualquer impulso
emancipatório — o qual, por sua vez, se descarta um tal
passado, torna-se, agora sim, “abstrato”, como todo en-
xerto sem antes nem depois.
Resta a outra metade desse ponto de vista da perife-
ria: o seu avesso propriamente crítico ou negativo, o
momento de revelação local do andamento desconjun-
tado do sistema mundial — refiro-me ao contraponto
sem “síntese” entre o influxo externo, sempre prepon-
242
otília arantes

derante na periferia, condenada subalternamente a se


“atualizar” para não perecer, e suas metamorfoses lo-
cais. Podemos ver esse outro lado atuando nas oscila-
ções de Mario Pedrosa em torno dos transplantes que
ele batizou de “civilização-oásis” (inspirado em Worrin-
ger): ora enclave colonial, ora matriz geradora de uma
nova ordem social à altura de seu tempo, corporificada
na mitológica edificação de uma nova capital — Brasília
—, fecho do processo construtivo a que me referia, e da
qual Mario foi, como se sabe, um incansável defensor.
A esse respeito, aliás, não sei de melhor exemplo do
que o destino do Movimento Moderno no Brasil, se me
for permitido citar um argumento que venho desenvol-
vendo, por minha conta e risco, a propósito do “suces-
so” da arquitetura brasileira. Abreviando ao máximo:
um transplante bem-sucedido — quando tudo a conde-
nava ao arremedo inconsequente, à vista da clamorosa
ausência de pressupostos técnico-sociais exigidos pela
nova racionalidade construtiva —, cujo rumo necessa-
riamente “formalista” no entanto exibia a verdade ocul-
ta nas metrópoles de origem, o fundo falso da ideologia
do plano, cuja tabula rasa utópica vinha a ser o prolon-
gamento funcional da interminável, e eufemística,
“criação destrutiva” que resume o regime da acumula-
ção capitalista. Neste caso — o da formação da moderna
arquitetura brasileira e seu girar em falso final, a partir
de Brasília —, contraponto sem síntese entre mundial e
local, quer dizer, algo como uma relativização recípro-
ca, um desmentido mútuo, na origem (como presumo)
de uma perspectiva crítica original acerca da gravitação
conjunta das duas instâncias: cópia e modelo, matriz e
filial, reforçando-se e desautorizando-se mutuamente,

243
mário pedrosa: itinerário crítico

como o demonstram os sucessivos e alternativos mal-


-entendidos entre críticos de cá e de lá a respeito de
quem era verdadeiramente fiel ao projeto original. Re-
petindo: lado a lado, purismo rigoroso e desenvoltura
meramente plástica acertavam acerca de si mesmos no
que criticavam no outro. Mas, tudo somado, a prova dos
nove se dava aqui mesmo, na periferia desenvolvimen-
tista. Juntando as duas pontas da meada, é só verificar,
no que concerne à implicação mútua de abstração e pro-
jeto construtivo brasileiro (em todos os sentidos), e ver
se não foi essa afinal a demonstração levada a cabo ao
longo da trajetória crítica de Mario Pedrosa.
 
Voltando ao nosso ponto de partida, tudo isso para
dizer, que, apesar do valor de Mario Pedrosa ir muito
além do esforço de atualização da cultura estética bra-
sileira, grande parte do interesse na evocação de seu
itinerário reside na oportunidade de se avaliar a atua-
lidade da tradição crítica que o inspirou e cuja lógica
evolutiva, como vimos, reside no comparatismo siste-
mático e obrigatório — em virtude da mera localização
periférica da cultura local, submetida às idas e vindas
das marés hegemônicas — entre o “desvio” ou a “dife-
rença” nacional e o corpus normativo da modernidade,
definido pela “normalidade” das culturas centrais. Ora:
o que até então caracterizava (e deprimia) esse ponto de
vista da periferia, sempre embaraçado por uma “ques-
tão nacional”, à primeira vista provinciana, se coteja-
da com o cosmopolitismo das formações hegemônicas,
e que, portanto, era uma exceção, tornou-se hoje regra
geral, embora ninguém tenha parado para pensar o
atual curso do mundo por esse ângulo que até então era
o nosso. Refiro-me, é claro, ao período que se seguiu ao
244
otília arantes

eclipse do nacional-desenvolvimentismo (na periferia)


e do fordismo ou compromisso keynesiano (no núcleo
orgânico do sistema), e que atende pelo nome passepar-
tout de globalização. Hoje, não há paper que não explo-
re, infalivelmente, dicotomias que nos são familiares
— por exemplo, as dissociações de sempre entre o “glo-
bal” e o “local”. Onde a novidade? É que esse raciocínio
chegou ao Primeiro Mundo — não que os Estados nacio-
nais deste último estejam abalados pela transnacionali-
zação a ponto de se assemelharem aos quase-Estados do
Terceiro Mundo, mas pela primeira vez se está fazendo,
naqueles espaços privilegiados e resguardados, a expe-
riência periférica por excelência da dessolidarização
nacional. Dualidade, tal qual a conhecemos: os “fato-
res” sem mobilidade redescobrem-se como “locais”, da
mão-de-obra à cultura autóctone. E mais: pela primeira
vez a competição pelas novas localizações trouxe para o
primeiro plano a síndrome das atualizações perversas,
até então apanágio dos retardatários congênitos.
Gostaria de destacar apenas um aspecto deste nive-
lamento de posições no âmbito das reações intelectuais
— o que nos traz de volta ao nosso tema. Trata-se do que
se vem chamando de cultura global a partir da multipli-
cação das contribuições “locais” que vão aflorando na
periferia (ou, nos países centrais, por meio das mino-
rias e imigrantes) à medida que se processa algo como
um “desrecalque” (nem mais nem menos) das culturas
subalternas, antes preteridas, mas que agora ganham
não só visibilidade, mas passam a alargar algo como
um cânone mundial em princípio desierarquizado.
Ora, justamente aí, na ficção deste sistema cultural glo-
bal, podemos reconhecer a componente afirmativa do
contraponto “harmonioso” de que estávamos falando
245
mário pedrosa: itinerário crítico

no início, o ponto de convergência síntese entre o par-


ticular e o universal — no “concerto das nações” (ou ex-
-nações, ou ainda nações meramente culturais). Àquela
época, entretanto, um ponto de fuga com fundamento
na realidade, mas hoje, quando o capitalismo já disse a
que veio, como sustentá-lo? Justamente aqui, a neces-
sidade de pôr à prova o método crítico que, por sua vez,
Mario Pedrosa soube tão bem levar adiante, e reativar
enfim a carga negativa dessa mesma tradição. Talvez
nossa contribuição consista em apressar, dado o nosso
infeliz know-how na matéria, a hora da virada críti-
ca, pressentida por Mario Pedrosa: desautorizando um
pelo outro, “globalistas” e “localistas-identitários” — o
fio vermelho que atravessa sua obra. tão avessa ao em-
paredamento nacionalista como ao acanhado cosmopo-
litismo de nossos dias.
Pensando bem, não estarei exagerando se observar
que Mario Pedrosa nunca foi tão premonitoriamente
atual quando, pressentindo o retrocesso global que se
anunciava, recomendava aos artistas que resistissem
discretamente na retaguarda e dessem passagem à luta
política propriamente dita. É que tantos anos depois
tal premonição viu-se ironicamente confirmada pela
reviravolta que somos obrigados a testemunhar, esfre-
gando bem os olhos para crer: à sombra da revanche do
capital, os antigos dissidentes sentem-se cada vez mais à
vontade na substituição do confronto político pela ação
cultural, tanto mais reconfortante quanto conduzida
sob o pretexto de aprimoramento estético na percepção
da nova ordem mundial.

246
SOBRE MÁRIO PEDROSA

Mário Pedrosa fez várias intervenções públicas e em coló-


quios, publicou textos em revistas nacionais e estrangei-
ras, prefaciou livros, apresentou inúmeros catálogos de
exposições de artistas (sempre, aqui e no exterior), mante-
ve uma coluna de crítica em diferentes jornais – em espe-
cial, Diário da Noite de São Paulo (anos 1920), Tribuna
da Imprensa (anos 1950), Correio da Manhã (anos 1940-
60) e Jornal do Brasil (anos 1950-60). Como militante po-
lítico, escreveu para jornais da grande imprensa, ou de
grupos de esquerda, como O Jornal (1929); nos anos 1930,
O Homem Livre e a Luta de Classe; e Vanguarda Socia-
lista, no final dos anos 1940.
Redigiu quatro teses. Quase nada disto foi coletado
em livros. Grande parte dos ensaios estéticos e artigos de
crítica de arte foram reunidos por Otília Arantes e posta
à disposição dos pesquisadores em doze volumes nas bi-
bliotecas do IEB e MAC, na USP. Alguns deles foram pos-
teriormente reunidos em quatro coletâneas editadas pela
EDUSP (de 1995 a 2000), outros já haviam sido publicados
em edições preparadas por Aracy Amaral para a editora
Perspectiva (1975 e 1981). Mais recentemente (2015) a edito-
ra CoscNaify publicou outras duas coletâneas. As anterio-
res, organizadas pelo próprio Mário Pedrosa, hoje estão
esgotadas.
Assim, embora as edições em livros tenham sido pou-
cas, sua produção teórica e crítica – sobre arte e política
– é extensíssima e não haveria como repertoriá-la. Parte
247
mário pedrosa: itinerário crítico

deste material está hoje depositado também na Biblioteca


Nacional, no Rio de Janeiro, e no Centro de Estudos Mário
Pedrosa (CEMAP), UNESP, São Paulo.

LIVROS

Arte, necessidade vital. Rio de Janeiro: Casa do Estu-


dante do Brasil, 1949.
Panorama da pintura moderna. Rio de Janeiro: Minis-
tério de Educação e Saúde Pública, 1952.
Dimensões da arte. Rio de Janeiro: Ministério de Educa-
ção e Cultura, 1964.
A opção imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1966.
A opção brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 1966.
Mundo, homem, arte em crise (org. Aracy Amaral). São
Paulo: Perspectiva, 1975.
A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo.
Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 1976.
Arte,forma e personalidade (org. e pref. de Otília Aran-
tes). São Paulo: Kairós, 1979.
Sobre o PT. São Paulo: Ched Editorial, 1980.
Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília (org.
Aracy Amaral). São Paulo: Perspectiva, 1981.
Politica das artes (org.e pref. Otilia Arantes). São Paulo:
EDUSP,1995.
Forma e percepção estética (org. e pref. Otília Arantes).
São Paulo: EDUSP, 1996.
Acadêmicos e modernos (org.e pref. Otília Arantes). São
Paulo:EDUSP, 1998.
248
otília arantes

Modernidade cá e lá (org.e pref. Otília Arantes). São Pau-


lo: EDUSP, 2000.
Arte: ensaios (org e prefácio Lorenzo Mammi). São Paulo,
CosacNaify, 2015.
Arquitetura: ensaios críticos (org e prefácio de Guilherme
Wisnik). São Paulo, CosacNaify, 2015.
 
 
TESES

Da natureza afetiva da forma na obra de arte, 1949.


Obstáculos políticos a Missão Francesa, 1955.
As principais correntes na Revolução Russa, 1956.
Evolução do conceito de ideologia, 1956.
 

Este livro foi composto


nas fontes Literata e Work Sans
em Junho de 2021.

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