Pequena Biblioteca de Enzaios - Boris Groys - 2021 - Zazie Edicoes
Pequena Biblioteca de Enzaios - Boris Groys - 2021 - Zazie Edicoes
Pequena Biblioteca de Enzaios - Boris Groys - 2021 - Zazie Edicoes
BORIS
GROYS Na mira da teoria
e outros ensaios
Tradução Ana Bernstein e Dora Silveira
Na mira da teoria
e outros ensaios
2021 ©Boris Groys
COLEÇÃO
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Laura Erber
EDITORA
Laura Erber
ORGANIZAÇÃO
Ana Bernstein e Laura Erber
TRADUÇÃO
Ana Bernstein e Dora Silveira
REVISÃO DA TRADUÇÃO
Pedro Florim
EDIÇÃO DE TEXTO
Angela Vianna
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Denise Pessoa Ribas
REVISÃO DE TEXTO
Cecilia Andreo
DESIGN GRÁFICO
Maria Cristaldi
Bibliotek.dk
Dansk bogfortegnelse-Dinamarca
ISBN 978-87-93530-xx-x
Zazie Edições
Copenhague / Rio de Janeiro
www.zazie.com.br
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
BORIS
GROYS Na mira da teoria
e outros ensaios
Tradução Ana Bernstein e Dora Silveira
Sumário
1
“The Truth of Art”. Artigo originalmente publicado em e-flux journal
71, abr. 2016.
9
científicas etc. Dentro desses coletivos, os indivíduos
não podem experimentar as possibilidades e limita-
ções das próprias ações – elas são absorvidas pelas
atividades do coletivo. No entanto, nosso sistema de
arte se baseia no pressuposto de que a responsabili-
dade pela produção deste ou daquele objeto de arte
individual, ou pela realização desta ou daquela ação
artística, é apenas do artista individual. Assim, em
nosso mundo contemporâneo, a arte é o único cam-
po reconhecido de responsabilidade individual. Há,
claro, um campo de responsabilidade pessoal não re-
conhecido: o campo das ações criminais. A analogia
entre a arte e o crime tem uma longa história, na qual
não entrarei. Hoje preferiria, em vez disso, sugerir a
seguinte questão: em que medida e de que forma os
indivíduos podem esperar mudar o mundo em que
vivem? Examinemos a arte como um campo no qual
tentativas de mudar o mundo são regularmente em-
preendidas por artistas e vejamos como essas tentati-
vas funcionam. Aqui estarei menos interessado nos
resultados dessas tentativas do que nas estratégias que
os artistas usam para realizá-las.
De fato, se os artistas querem mudar o mundo,
surge a seguinte questão: de que forma a arte é capaz
de influenciar o mundo em que vivemos? Há basica-
mente duas respostas possíveis. A primeira é: a arte
pode capturar a imaginação e mudar a consciência
das pessoas. Se a consciência das pessoas mudar, as
pessoas mudadas transformarão também o mundo
em que vivem. Aqui a arte é entendida como um tipo
10
de linguagem que permite aos artistas transmitir uma
mensagem. Essa mensagem deve entrar na alma dos
receptores e transformar sua sensibilidade, suas ati-
tudes, sua ética. Esse é um entendimento, digamos,
idealista da arte – similar ao nosso entendimento da
religião e de seu impacto no mundo.
No entanto, para ser capaz de transmitir uma
mensagem, o(a) artista deve compartilhar a lingua-
gem falada por seu público. As estátuas nos antigos
templos eram vistas como encarnações dos deuses,
eram reverenciadas, ajoelhávamos diante delas em
prece e súplica, esperávamos sua ajuda e temíamos
sua fúria e ameaça de punição. Da mesma forma,
a veneração dos ícones tem uma longa história no
cristianismo – mesmo considerando Deus invisível.
Aqui, a linguagem comum tem origem na tradição
religiosa comum.
Nenhum artista moderno, porém, pode esperar
que alguém se ajoelhe em prece diante de seu traba-
lho, busque nele ajuda prática ou o use para se esqui-
var do perigo. No início do século dezenove, Hegel
diagnosticou essa perda de uma fé comum em divin-
dades visíveis, encarnadas, como a razão pela qual a
arte perdera sua verdade: segundo Hegel, a verdade da
arte tornara-se algo do passado. (Ele fala de imagens
pensando nas antigas religiões versus a lei, a razão e a
ciência invisíveis, que governam o mundo moderno.)
Claro, ao longo da modernidade, muitos artistas mo-
dernos e contemporâneos tentaram recuperar uma
linguagem comum com seu público por meio de en-
11
gajamentos políticos ou ideológicos de um tipo ou de
outro. A comunidade religiosa era assim substituída
por um movimento político, do qual ambos, artistas
e seus públicos, participavam.
Porém, a arte, para ser politicamente eficaz, para
ser usada como propaganda política, precisa ser apre-
ciada por seu público. Mas a comunidade construída
com base na consideração de certos projetos artísticos
como bons e admiráveis não é, necessariamente, uma
comunidade transformadora – uma comunidade que
possa realmente mudar o mundo. Sabemos que, para
ser considerada verdadeiramente boa (inovadora, ra-
dical, prospectiva), uma obra de arte moderna deve
ser rejeitada por seus contemporâneos, do contrário
essa obra se torna suspeita de ser convencional, banal,
apenas comercialmente orientada. (Sabemos que mo-
vimentos politicamente progressistas com frequência
foram conservadores do ponto de vista cultural; e, no
fim, foi essa dimensão conservadora que prevaleceu.)
É por isso que artistas contemporâneos desconfiam
do gosto do público. E o público contemporâneo,
na verdade, também desconfia de seu próprio gosto.
Tendemos a achar que o fato de gostarmos de uma
obra de arte talvez indique que essa obra não é boa o
bastante – e o fato de não gostarmos, que o trabalho
é realmente bom. Kazimir Malevich acreditava que o
maior inimigo do artista é a sinceridade: os artistas
não deveriam nunca fazer aquilo de que genuinamen-
te gostam, porque provavelmente gostam de algo ba-
nal e artisticamente irrelevante. De fato, as vanguar-
12
das artísticas não queriam ser apreciadas. E – ainda
mais importante – não queriam ser “entendidas”, não
queriam compartilhar a linguagem falada por seu
público. Consequentemente, as vanguardas artísticas
eram extremamente céticas em relação à possibilida-
de de influenciar a alma do público e construir uma
comunidade da qual fizessem parte.
Nesse ponto, a segunda possibilidade de mudar o
mundo por meio da arte entra em jogo. Aqui a arte
é entendida não como produção de mensagens, mas
como produção de coisas. Mesmo que os artistas e
seus públicos não compartilhem uma linguagem,
eles compartilham o mundo material em que vivem.
Como um tipo específico de tecnologia, a arte não
tem o objetivo de mudar a alma de seus espectadores.
Mais propriamente, ela muda o mundo no qual esses
espectadores realmente vivem – e, ao tentar acomo-
dar a si mesmos às novas condições do ambiente, eles
mudam sua sensibilidade e suas atitudes. Falando em
termos marxistas: a arte pode ser vista como parte da
superestrutura ou como parte da base material. Ou,
em outras palavras, a arte pode ser entendida como
ideologia ou como tecnologia. As vanguardas artís-
ticas radicais buscaram essa segunda forma, a tecno-
lógica, de transformação do mundo. Tentaram criar
ambientes que transformariam as pessoas pela sua
introdução neles. Em sua forma mais radical, esse
conceito foi seguido pelos movimentos de vanguarda
dos anos 1920: o construtivismo russo, a Bauhaus,
o De Stijl. A arte de vanguarda não queria ser apre-
13
ciada pelo público. Ela queria criar um público para
si. De fato, se somos compelidos a viver em um novo
entorno visual, começamos a acomodar nossa pró-
pria sensibilidade e aprendemos a apreciá-lo. (A Tor-
re Eiffel é um bom exemplo.) Assim, os artistas da
vanguarda também queriam construir uma comuni-
dade, mas não se viam como parte dessa comunida-
de. Compartilhavam um mundo com seu público,
mas não uma linguagem.
A própria vanguarda histórica foi, claro, uma rea-
ção à tecnologia moderna, que transformou e ainda
transforma incessantemente nosso ambiente. Essa
reação foi ambígua. Os artistas sentiam certa afinida-
de com a artificialidade do novo mundo tecnológico.
Mas, ao mesmo tempo, se irritavam com a ausência
de direção e propósito superior característicos do pro-
gresso tecnológico. (Marshall McLuhan: os artistas
se mudaram da torre de marfim para a torre de con-
trole.) Essa meta era entendida pela vanguarda como
a sociedade política e esteticamente perfeita – como
utopia, se alguém ainda estiver disposto a usar esse
termo. Aqui, utopia não é outra coisa senão o estágio
final do desenvolvimento histórico – uma sociedade
que não tem mais necessidade de mudar, que não
pressupõe mais nenhum progresso. Em outras pala-
vras, a colaboração artística com o progresso tecnoló-
gico tinha o objetivo de interromper esse progresso.
Esse conservadorismo – pode ser também um
conservadorismo revolucionário – inerente à arte
não é, de forma alguma, casual. O que é a arte, en-
14
tão? Se é um tipo de tecnologia, então o uso artístico
da tecnologia é diferente de seu uso não artístico.
O progresso tecnológico se baseia na substituição
permanente de coisas passadas, obsoletas, por coisas
novas (melhores). (Não há inovação, mas melhoria;
inovação só é possível na arte: o quadrado preto.) A
tecnologia da arte, ao contrário, não é uma tecnolo-
gia de melhoria e substituição, mas de conservação e
restauração – uma tecnologia que traz os vestígios do
passado para o presente e que leva coisas do presen-
te para o futuro. Como se sabe, Martin Heidegger
acreditava que dessa forma a verdade da arte é re-
conquistada: interrompendo o progresso tecnológi-
co ao menos por um momento, a arte pode revelar
a verdade do mundo tecnologicamente definido e o
destino dos seres humanos nesse mundo. Contudo,
Heidegger também acreditava que essa revelação era
apenas momentânea: no instante seguinte, o mundo
aberto pela obra de arte se fecha novamente, e a obra
se torna uma coisa comum, tratada como tal por
nossas instituições de arte. Heidegger descarta esse
aspecto profano da obra de arte como algo irrelevan-
te para o entendimento essencial, verdadeiramente
filosófico da arte – já que para ele o espectador é o
sujeito desse entendimento essencial, e não o nego-
ciante de arte ou o curador do museu.
Na verdade, mesmo que o visitante do museu veja
as obras de arte como isoladas da vida prática, pro-
fana, os funcionários do museu nunca as vivenciam
dessa forma sacralizada. Os funcionários do museu
15
não contemplam as obras de arte, eles regulam os ní-
veis de temperatura e umidade dos espaços do museu,
restauram essas obras, removem a poeira e a sujeira
delas. Na lida com as obras, existe a perspectiva do
visitante do museu, mas também existe a perspecti-
va da funcionária da limpeza, que asseia o espaço do
museu como qualquer outro espaço. As tecnologias
de conservação, restauração e exibição são tecno-
logias profanas – mesmo que produzam objetos de
contemplação estética. Há uma vida profana dentro
do museu, e é precisamente essa vida e essa prática
profanas que permitem aos itens do museu funcionar
como objetos estéticos. O museu não necessita de ne-
nhuma profanação adicional, nenhum esforço a mais
para trazer a arte para a vida ou a vida para a arte: o
museu já é completamente profano. Assim como o
mercado de arte, o museu trata as obras não como
mensagens, mas como coisas profanas.
Geralmente essa vida profana da arte é protegida
da vista do público pelas paredes do museu. É certo
que, pelo menos desde o começo do século vinte, a
arte da vanguarda histórica tentou tematizar, reve-
lar a dimensão factual, material e profana da arte.
Porém, a vanguarda nunca foi completamente bem-
-sucedida em sua busca do real, porque a realidade
da arte, o lado material que a vanguarda tentou te-
matizar, foi permanentemente reestetizada – essas
tematizações foram postas sob as condições padrão
da representação artística. O mesmo pode ser dito da
crítica institucional, que também tentou tematizar o
16
lado profano, factual das instituições de arte. A crí-
tica institucional também permaneceu dentro dessas
instituições. Eu argumentaria que essa situação mu-
dou nos últimos anos, graças à internet e ao fato de
que ela substituiu as instituições de arte tradicionais
como a principal plataforma de produção e distri-
buição de arte. A internet tematiza precisamente a
dimensão profana da arte. Por quê? A resposta a essa
questão é bem simples: em nosso mundo contempo-
râneo, a internet é ao mesmo tempo lugar de produ-
ção e de exposição da arte.
Isso representa um afastamento considerável dos
modos de produção artísticos do passado. Como já
observei anteriormente:
2
Boris Groys. “Entrando no fluxo: o museu entre o arquivo e a obra de
arte total”. Artigo incluído nesta coletânea à p. 131.
18
ternet sobre esse artista: sua biografia, outros traba-
lhos, atividades políticas, resenhas críticas, detalhes
da sua vida pessoal etc. Aqui não me refiro ao sujeito
autoral, ficcional, que supostamente investe a obra
de arte de intenções e significados que deveriam ser
hermeneuticamente decifrados e revelados. Esse su-
jeito autoral já foi desconstruído e proclamado mor-
to diversas vezes. Refiro-me à pessoa real que existe
na realidade off-line, à qual a informação na internet
se refere. Esse autor usa a internet não apenas para
produzir arte, mas também para comprar ingressos,
fazer reservas em restaurantes, gerir negócios etc.
Todas essas atividades acontecem no mesmo espaço
integrado da internet – e todas são potencialmente
acessíveis a outros usuários. Aqui a obra de arte se
torna “real” e profana porque integrada à informa-
ção sobre o autor como pessoa real, profana. A arte
é apresentada na internet como um tipo específico
de atividade: documentação de um processo de tra-
balho real acontecendo no mundo real, off-line. Na
verdade, na internet, a arte opera no mesmo plano
que o planejamento militar, o comércio turístico, os
fluxos de capital etc.; o Google demonstra, entre ou-
tras coisas, que não há muros no espaço da internet.
Um(a) usuário(a) da rede não passa do emprego coti-
diano das coisas para sua contemplação desinteressa-
da – ele ou ela usa a informação sobre arte da mesma
forma como usa a informação sobre todas as outras
coisas do mundo. É como se tivéssemos, todos, vi-
rado funcionários do museu ou da galeria – a arte
19
explicitamente documentada como se ocorresse no
plano unificado das atividades profanas.
A palavra “documentação” é crucial aqui. Duran-
te as décadas recentes, a documentação de arte tem
sido cada vez mais incluída em exposições e museus
de arte – ao lado de obras tradicionais. Mas essa are-
na sempre pareceu altamente problemática. Obras de
arte são arte – elas se mostram de imediato como arte.
E assim podem ser admiradas, experienciadas emo-
cionalmente etc. Mas a documentação de arte não é
arte, ela apenas se refere a um evento artístico, uma
exposição, uma instalação ou um projeto que presu-
mimos ter realmente acontecido. A documentação de
arte faz referência à arte, porém não é arte. É por isso
que a documentação de arte pode ser reformatada,
reescrita, estendida, abreviada etc. Pode-se submeter
essa documentação a todas as operações que são proi-
bidas no caso da obra de arte porque mudam a sua
forma. E a forma da obra de arte é institucionalmente
garantida, porque somente a forma garante a reprodu-
tibilidade e a identidade dessa obra. A documentação,
ao contrário, pode ser modificada à vontade, porque
sua identidade e sua reprodutibilidade são garantidas
pelo referente “real” externo, e não por sua forma.
Contudo, mesmo que o surgimento da documenta-
ção de arte tenha precedido o surgimento da inter-
net como meio artístico, só a introdução da internet
deu à documentação de arte um lugar legítimo. (Aqui
podemos dizer, como Walter Benjamin observou: a
montagem na arte e no cinema.)
20
Enquanto isso, as próprias instituições de arte co-
meçaram a usar a internet como espaço principal de
autorrepresentação. Os museus exibem suas coleções
na internet. Depósitos digitais de imagens artísti-
cas, claro, são muito mais compactos e baratos de
manter que museus de arte tradicionais. Com isso,
os museus são capazes de apresentar partes de suas
coleções que se encontram geralmente guardadas
em depósitos. O mesmo pode ser dito dos websites
de artistas individuais – pode-se encontrar aí a mais
completa representação do que eles estão fazendo. É
o que normalmente os artistas mostram àqueles que
visitam seus ateliês hoje: se alguém vai ao ateliê de
um(a) artista querendo ver uma obra específica sua,
o(a) artista costuma pôr um laptop sobre a mesa e
mostrar a documentação de suas atividades, incluin-
do a produção de obras de arte, mas também sua
participação em projetos de longo prazo, instalações
temporárias, intervenções urbanas, ações políticas
etc. O trabalho atual do(a) artista contemporâneo(a)
é o seu currículo.
Os artistas hoje, como outros indivíduos e orga-
nizações, tentam escapar à visibilidade total criando
sistemas sofisticados de senhas e proteção de dados.
Como argumentei certa vez, em relação à vigilância
na internet:
23
dor na internet: o algoritmo, como aqueles usados pelo
Google e pela NSA [National Security Agency].
Permitam-me agora voltar à questão inicial, refe-
rente à verdade da arte – entendida como demons-
tração das possibilidades e limitações das ações do
indivíduo no mundo. Analisei anteriormente as es-
tratégias artísticas projetadas para influenciar o mun-
do, pela persuasão ou pela reacomodação. Ambas as
estratégias pressupõem o que podemos chamar de
um superávit de visão da parte do(a) artista – em
comparação com o horizonte de seu público. Tradi-
cionalmente, considerava-se o(a) artista uma pessoa
extraordinária, capaz de ver o que uma pessoa “nor-
mal”, mediana, não conseguia. Esse superávit de vi-
são deveria ser comunicado ao público pelo poder da
imagem ou pela força da mudança tecnológica. Toda-
via, nas condições próprias da internet, esse superávit
de visão está no olhar do algoritmo – não mais no do
artista. Esse olhar vê o artista, mas permanece invisí-
vel a ele (pelo menos enquanto o artista não começar
a criar algoritmos, o que mudará a atividade artística,
já que os algoritmos são invisíveis; ele cria apenas visi-
bilidade). Talvez os artistas ainda possam ver mais do
que os seres humanos comuns, mas eles veem menos
que o algoritmo. Os artistas perdem sua posição ex-
traordinária, mas essa perda é compensada: no lugar
de ser extraordinário, o artista se torna paradigmáti-
co, exemplar, representativo.
De fato, o surgimento da internet levou a uma ex-
plosão de produção artística em massa. Nas décadas
24
recentes, a prática artística se tornou tão disseminada
quanto foram, antigamente, apenas a religião e a po-
lítica. Hoje vivemos numa época de produção de arte
em massa, e não mais nos tempos de consumo de arte
em massa. Os meios contemporâneos de produção de
imagem, como as câmeras de fotografia e vídeo, são
relativamente baratos e universalmente acessíveis. As
plataformas contemporâneas de internet e redes so-
ciais como Facebook, YouTube e Instagram permi-
tem às populações do mundo todo tornar suas fotos,
seus vídeos e textos acessíveis universalmente – evi-
tando o controle e a censura das instituições tradi-
cionais. Ao mesmo tempo, o design contemporâneo
torna possível a certas populações moldar e vivenciar
seus apartamentos ou locais de trabalho como insta-
lações artísticas. A dieta, a preparação física e a cirur-
gia plástica permitem-lhes transformar seus corpos
em objetos de arte. Atualmente, quase todo mundo
tira fotografias, faz vídeos, escreve textos, documen-
ta suas atividades – e depois põe essa documentação
na internet. Antigamente falávamos de consumo cul-
tural em massa, hoje falamos de produção cultural
em massa. Na modernidade, o artista era uma figura
rara, estranha. Hoje não há uma só pessoa que não
esteja envolvida em algum tipo de atividade artística.
Assim, todo mundo agora toma parte num com-
plicado jogo com o olhar do outro. É esse o jogo pa-
radigmático da nossa época, mas ainda não conhe-
cemos suas regras. A arte profissional, porém, tem
uma longa história com ele. Os poetas e artistas do
25
período romântico já haviam começado a enxergar
suas próprias vidas como suas obras de arte de fato.
Nietzsche afirma, em O nascimento da tragédia, que
ser uma obra de arte é melhor que ser um artista.
(Tornar-se um objeto é melhor que se tornar um su-
jeito, é melhor ser admirado que admirar.) Podemos
ler os textos de Charles Baudelaire sobre a estratégia
da sedução, e podemos ler Roger Caillois e Jacques
Lacan sobre a mímica do perigoso, ou sobre atrair o
mau-olhado do outro para uma armadilha por meio
da arte. Claro, é possível afirmar que o algoritmo não
pode ser seduzido nem atemorizado. No entanto, não
é isso que está aqui realmente em questão.
A prática artística em geral é entendida como in-
dividual e pessoal. Mas o que o individual e o pessoal
significam de fato? O individual muitas vezes é enten-
dido como ser diferente dos outros. (Numa sociedade
totalitária, todo mundo se parece. Numa sociedade
democrática, pluralista, todo mundo é diferente, e
respeitado por ser diferente.) Porém, a questão aqui
não é tanto a diferença entre alguém e os outros, mas
a diferença de alguém em relação a si mesmo – a re-
cusa de ser identificado segundo um critério geral de
identificação. De fato, os parâmetros que definem
nossa identidade nominal, socialmente codificada,
são estranhos a nós. Não escolhemos nossos nomes,
não estivemos conscientemente presentes em nosso
lugar e data de nascimento, não escolhemos nossos
pais, nossa nacionalidade etc. Todos esses parâmetros
externos de nossa personalidade não se correlacionam
26
a nenhuma evidência subjetiva que possamos ter. Eles
apenas indicam como os outros nos veem.
Há muito tempo os artistas modernos praticavam
a revolta contra as identidades que lhes eram impostas
por outros – a sociedade, o Estado, a escola, os pais.
Eles afirmavam o direito soberano de autoidentifica-
ção. Desafiavam expectativas sociais quanto à função
social da arte, o profissionalismo artístico e a quali-
dade estética. Mas também abalavam as identidades
nacionais e culturais que lhes eram atribuídas. A arte
moderna entendeu a si mesma como busca pelo “ver-
dadeiro eu”. Aqui, a questão não é se o verdadeiro
eu é real ou simplesmente uma ficção metafísica. A
questão da identidade não é uma questão de verda-
de, mas uma questão de poder: quem tem o poder
sobre minha identidade – eu mesmo, ou a sociedade?
Em termos mais gerais: quem exerce o controle e a
soberania sobre a taxonomia social, os mecanismos
sociais de identificação – as instituições do Estado,
ou eu mesmo? A luta contra minha persona pública
ou identidade nominal, em nome de minha perso-
na soberana ou identidade soberana, também possui
uma dimensão pública, política, porque é direciona-
da contra os mecanismos dominantes de identifica-
ção – a taxonomia social dominante, com todas as
suas divisões e hierarquias. Posteriormente esses ar-
tistas, em grande parte, desistiram da busca do eu
verdadeiro, oculto. Em vez disso, começaram a usar
suas identidades nominais como ready-mades – e a
organizar um complicado jogo com elas. Mas essa
27
estratégia ainda pressupõe uma desidentificação de
identidades nominais, socialmente codificadas –, ob-
jetivando se reapropriar delas, transformá-las e mani-
pulá-las artisticamente. A política da arte moderna e
contemporânea é a política da não identidade. A arte
diz a seu espectador: não sou o que você pensa que
sou (em forte contraste a: sou o que sou). O desejo de
não identidade é, realmente, um desejo genuinamen-
te humano – os animais aceitam sua identidade, mas
os animais humanos não. É nesse sentido que pode-
mos falar da função paradigmática, representativa, da
arte e do artista.
O sistema tradicional dos museus é ambivalen-
te em relação ao desejo de não identidade. Por um
lado, o museu oferece ao(à) artista a oportunidade
de transcender seu próprio tempo, com todas as suas
identidades nominais e taxonomias. Ele promete le-
var o trabalho do(a) artista para o futuro. Porém, o
museu trai essa promessa no exato momento em que
a cumpre. O trabalho do(a) artista é levado para o
futuro – mas a identidade nominal do(a) artista é
reimposta sobre seu trabalho. No catálogo do museu
ainda lemos o nome do(a) artista, a data e o lugar de
seu nascimento, nacionalidade etc. (Foi por essa ra-
zão que a arte moderna quis destruir o museu.)
Permitam-me concluir dizendo algo positivo so-
bre a internet. Ela é organizada de uma forma me-
nos historicista que as bibliotecas e os museus tra-
dicionais. O aspecto mais interessante da internet,
como arquivo, são precisamente suas possibilidades
28
de descontextualização e recontextualização, por
meio das operações de copiar e colar que oferece aos
usuários. Hoje estamos mais interessados no dese-
jo de não identidade, que leva os artistas a sair de
seu contexto histórico, do que propriamente nesses
contextos. E me parece que a internet nos dá mais
oportunidades de seguir e compreender as estraté-
gias artísticas de não identidade do que os arquivos
e as instituições tradicionais.
29
Arte, tecnologia e humanismo4
4
“Art, Technology and Humanism”. Artigo originalmente publicado em
e-flux journal 82, maio 2017. Versão anterior foi apresentada no Walker Art
Museum, como parte do simpósio Avant Museology, coprodução de Wal-
ker Art Museum, e-flux e University of Minnesota Press, 20-21 nov. 2016.
5
Martin Heidegger. The Question Concerning Technology and Other Es-
says. Nova York: Harper Perennial, 2013.
30
gressivamente independentes do Sol ao armazenar
energia em suas diferentes formas – e em geral nos
tornamos independentes das estações do ano e da
instabilidade do clima. Heidegger não afirma isso
explicitamente, mas a tecnologia, para ele, é sobre-
tudo a interrupção do fluxo do tempo, a produção
de reservatórios de tempo nos quais ele cessa de
fluir na direção do futuro – de forma que se tor-
na possível o retorno a momentos anteriores. As-
sim, podemos voltar a um museu e encontrar ali a
mesma obra de arte que contemplamos numa visita
anterior. Segundo Heidegger, o objetivo da tecno-
logia é precisamente imunizar o homem contra a
mudança, liberar o homem de sua dependência da
physis, do destino, do acaso. Heidegger obviamente
vê esse desenvolvimento como algo de extremo pe-
rigo. Mas por quê?
Heidegger explica isso da seguinte forma: se
tudo se torna um recurso que é armazenado e tor-
nado disponível, então o ser humano também co-
meça a ser visto como um recurso – capital hu-
mano, diríamos agora, uma coleção de energias,
capacidades e habilidades. Desse modo, o homem
se rebaixa; em busca de estabilidade e segurança, o
próprio homem se transforma em coisa. Heidegger
acredita que apenas a arte pode salvar o homem
dessa degradação. Ele acredita nisso porque, como
explica em seu texto anterior, “A origem da obra de
arte”, a arte é a revelação da maneira como usamos
as coisas – e, se quiserem, do modo como somos
31
usados por elas.6 Aqui é importante observar que,
para Heidegger, a obra de arte não é uma coisa,
mas uma visão que se abre para o artista na libera-
ção do Ser. No momento em que a obra de arte en-
tra no sistema da arte como uma coisa particular,
ela deixa de ser obra de arte, tornando-se simples-
mente um objeto disponível para venda, compra,
transporte, exposição etc. A liberação do Ser se fe-
cha. Em outras palavras, a Heidegger não agrada a
transformação da visão artística numa coisa. Logo,
não lhe agrada a transformação do ser humano em
coisa. A razão para sua aversão à transformação do
homem em coisa é clara: nos dois textos citados
ele afirma que, em nosso mundo, as coisas existem
como ferramentas. Para Heidegger, tornar-se obje-
tificado, mercantilizado etc. significa ser utilizado.
Mas será de fato válida essa equação entre uma coi-
sa e uma ferramenta?
Eu argumentaria que, no caso das obras de
arte, não. É verdade que um objeto pode funcionar
como mercadoria e ferramenta. Mas, na condição
de mercadoria, a obra de arte é diferente de outros
tipos de mercadoria. A diferença básica é: em geral,
quando consumimos mercadorias, nós as destruí-
mos no ato de consumo. Se o pão é consumido
– isto é, comido –, ele desaparece, deixa de existir.
6
Martin Heidegger. “The Origin of the Work of Art”. In: Basic Writings.
Nova York: Harper Perennial, 2008. [Ed. port.: A origem da obra de arte.
Trad. Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70/Almedina, 2010.]
32
Se a água é bebida, ela também desaparece (consu-
mo é destruição, daí a frase “a casa foi consumida
pelo fogo”). Roupas, carros etc. tornam-se gastos e
são finalmente destruídos no seu processo de uso.
Obras de arte, no entanto, não são consumidas
dessa forma: elas não são usadas e destruídas, mas
meramente exibidas e contempladas. E são manti-
das em boas condições, são restauradas etc. Nosso
comportamento em relação às obras de arte, então,
é diferente da prática normal de consumo/destrui-
ção. O consumo de obras de arte é apenas sua con-
templação – e a contemplação deixa a obra intacta.
O status da obra de arte como objeto de contem-
plação é, na verdade, relativamente recente. A atitu-
de contemplativa clássica se dirigia a objetos eternos,
imortais, como as leis da lógica (Platão, Aristóteles)
ou Deus (teologia medieval). O mundo material
em transformação, onde tudo é temporário, finito
e mortal, era entendido como um lugar não de vita
contemplativa, mas de vita activa. Assim, a contem-
plação de obras de arte não é ontologicamente legi-
timada, como a contemplação das verdades da razão
e de Deus. Dito de maneira mais apropriada, a pri-
meira torna-se possível graças à tecnologia de arma-
zenamento e preservação. Nesse sentido, o museu de
arte é apenas uma outra instância da tecnologia que,
segundo Heidegger, põe o homem em risco ao trans-
formá-lo em objeto.
Realmente, o desejo de proteção e autoproteção
nos faz dependentes do olhar do outro. E o olhar
33
do outro não é necessariamente o olhar amoroso
de Deus. O outro não pode ver nossa alma, nossos
pensamentos, aspirações, planos. É por isso que Jean-
-Paul Sartre argumentava que o olhar do outro sem-
pre produz em nós a sensação de estarmos em perigo
e envergonhados. O olhar do outro negligencia nos-
sa possível atividade futura, incluindo ações novas e
inesperadas – ele nos vê como um objeto já acabado.
É por isso que, para Sartre, “o inferno são os outros”.
Em O Ser e o Nada, o filósofo descreve a luta ontoló-
gica entre ele próprio e o outro – eu tento objetificar
o outro, e o outro tenta me objetificar. Essa ideia de
luta permanente contra a objetificação por meio do
olhar do outro permeia nossa cultura. O objetivo da
arte se torna não atrair, mas escapar ao olhar do ou-
tro – para desativar esse olhar, para convertê-lo num
olhar contemplativo, passivo. Assim a pessoa se liber-
ta do controle do outro. Mas se liberta para quê? A
resposta-padrão é: para a verdadeira vida. Segundo
certa tradição vitalista, só se vive de verdade quando
se encontra o imprevisível e o estranho, quando se
está em perigo, quando se está à beira da morte.
Estar vivo não é algo que possa ser medido no
tempo e protegido. A vida se anuncia apenas pela in-
tensidade de sentimento, pela iminência da paixão,
pela experiência direta do presente. Não por acaso os
futuristas italianos e russos como Marinetti e Male-
vich clamaram pela destruição dos museus e dos mo-
numentos históricos. Sua posição não era tanto a de
lutar contra o próprio sistema da arte, mas rejeitar a
34
atitude contemplativa em nome da vita activa. Como
afirmaram teóricos e artistas da vanguarda russa da
época: a arte deve ser não um espelho, mas um mar-
telo. Nietzsche já havia buscado “filosofar com um
martelo”. (Leon Trótski, em Literatura e revolução:
“Ensina-se o manejo do martelo com o auxílio do
espelho”.7) A vanguarda clássica queria abolir a prote-
ção estética do passado e do status quo com o objetivo
de mudar o mundo. No entanto, isso implicava a re-
jeição da autoproteção, já que essa mudança era pro-
jetada como algo permanente. Assim, repetidamente,
os artistas da vanguarda insistiram na aceitação da
futura destruição de sua própria arte pelas gerações
posteriores, que construiriam um novo mundo no
qual não haveria lugar para o passado. Essa luta con-
tra o passado era entendida pelas vanguardas artís-
ticas também como uma luta contra a arte. No en-
tanto, desde o princípio, a própria arte tem sido uma
forma de luta contra o passado – a estetização é uma
forma de aniquilação.
Foi a Revolução Francesa que realmente transfor-
mou coisas antes usadas pela Igreja e pela aristocracia
em obras de arte, isto é, em objetos exibidos em mu-
seus (originalmente no Louvre) – objetos para con-
templação apenas. O laicismo da Revolução Francesa
aboliu a contemplação de Deus como o objetivo mais
7
Leon Trótski. Literature and Revolution. Chicago: Haymarket Books,
2005. [Ed. bras.: Literatura e revolução. Trad. Luiz Alberto Muniz Ban-
deira. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.]
35
importante da vida e o substituiu pela contemplação
de objetos materiais “belos”. Em outras palavras, a
própria arte foi produzida pela violência revolucioná-
ria, sendo desde o princípio uma forma moderna de
iconoclastia. De fato, na história pré-moderna, a mu-
dança de regimes e convenções culturais, incluindo
sistemas religiosos e políticos, levaria a uma icono-
clastia radical, à destruição física dos objetos relacio-
nados a formas culturais e crenças anteriores. Mas a
Revolução Francesa ofereceu um novo modo de lidar
com as coisas valiosas do passado. Em vez de serem
destruídas, essas coisas foram disfuncionalizadas e
apresentadas como arte. É essa transformação revolu-
cionária do Louvre que Kant tem em mente quando
escreve, na Crítica da faculdade do juízo:
8
Immanuel Kant. Critique of the Power of Judgement: Critical Essays. Org.
Paul Guyer. Trad. Paul Guyer e Eric Matthews. Cambridge: Cambridge
36
Em outras palavras, a Revolução Francesa intro-
duziu um novo tipo de coisa: ferramentas disfun-
cionalizadas. Logo, para os seres humanos, tornar-se
coisa não significava mais tornar-se ferramenta. Ao
contrário, tornar-se coisa podia agora significar tor-
nar-se obra de arte. E, para os seres humanos, tornar-
-se obra de arte significa precisamente isto: sair da
escravidão, estar imune à violência.
Realmente, a proteção dos objetos de arte pode ser
comparada à proteção sociopolítica do corpo huma-
no – isto é, à proteção conferida pelos direitos huma-
nos, que também foram introduzidos pela Revolução
Francesa. Há uma relação próxima entre arte e huma-
nismo. Segundo os princípios do humanismo, seres
humanos podem ser apenas contemplados, mas não
ativamente usados – não podem ser mortos, violados,
escravizados etc. O programa humanista foi sinteti-
zado por Kant em sua célebre afirmação de que, em
uma sociedade esclarecida, laica, o homem não deve-
ria nunca ser tratado como meio, apenas como fim.
Por isso consideramos a escravidão uma escravidão.
Mas usar uma obra de arte da mesma forma como
usamos outras coisas e mercadorias também signifi-
ca agir barbaramente. O mais importante aqui é que
o olhar laico define os seres humanos como objetos
possuidores de uma certa forma – especificamente a
forma humana. O olhar humano não vê a alma hu-
37
mana, isso é privilégio de Deus. O olhar humano vê
apenas o corpo humano. Assim, nossos direitos es-
tão relacionados à imagem que oferecemos ao olhar
dos outros. É por isso que nos interessamos tanto por
essa imagem. Também é essa a razão de estarmos in-
teressados na proteção da arte e pela arte. Os seres
humanos estão protegidos apenas na medida em que
são percebidos pelos demais como obras de arte pro-
duzidas pelo maior dos artistas, a própria Natureza.
Não por acaso, no século dezenove – o século do hu-
manismo par excellence –, a forma do corpo humano
era considerada a mais bela de todas as formas, mais
bela que árvores, frutas e cachoeiras. E os seres hu-
manos, claro, estão cientes de seu status de obras de
arte – e tentam melhorar e estabilizar esse status. Os
seres humanos tradicionalmente querem ser deseja-
dos, admirados, olhados, querem se sentir como uma
obra de arte especialmente valiosa.
Alexandre Kojève acreditava que o desejo de ser
desejado, a ambição de ser socialmente reconhecido
e admirado, é precisamente o que nos faz humanos,
o que nos distingue dos animais. Kojève fala desse
desejo como algo genuinamente “antropogênico”.
Um desejo não de coisas particulares, mas do desejo
do outro: “Assim, na relação entre homem e mulher,
por exemplo, o Desejo somente é humano se alguém
deseja não o corpo, mas o desejo do outro”.9 É esse
9
Alexandre Kojève. Introduction to the Reading of Hegel. Ithaca: Cornell
University Press, 1980, p. 5. [Ed. bras.: Introdução à leitura de Hegel. Trad.
38
desejo antropogênico que inicia e move a história: “A
história humana é a história dos Desejos desejados”.10
Kojève afirma que a história é movida por heróis le-
vados ao autossacrifício em nome da humanidade
por esse desejo especificamente humano: o desejo de
reconhecimento, de tornar-se objeto de admiração e
amor da sociedade. O desejo do desejo é o que pro-
duz a autoconsciência, bem como, pode-se dizer, o
próprio “eu”. Mas ao mesmo tempo esse desejo do
desejo é o que transforma o sujeito em objeto. No
limite, em objeto morto. Kojève escreve: “Sem essa
luta de morte por puro prestígio, nunca haveria seres
humanos na Terra”.11 O sujeito do desejo pelo desejo
não é “natural”, porque está pronto a sacrificar todas
as suas necessidades naturais e mesmo sua existência
“natural” pela Ideia abstrata de reconhecimento.
Aqui o homem cria um segundo corpo, por assim
dizer, um corpo que se torna potencialmente imortal
– e protegido pela sociedade, ao menos enquanto a
arte como tal for protegida publicamente, legalmen-
te. Podemos falar aqui da extensão do corpo humano
pela arte – em direção à imortalidade tecnicamente
produzida. De fato, após a morte de artistas impor-
tantes, seus trabalhos continuam a ser colecionados e
expostos, de forma que, quando vamos a um museu,
dizemos que “vamos ver Rembrandt e Cézanne”, em
39
vez de “vamos ver os trabalhos de Rembrandt e Cé-
zanne”. Nesse sentido, a proteção da arte estende a
vida dos artistas, transformando-os em obras de arte:
no processo de autoestetização, eles criam seu próprio
novo corpo artificial como objeto valioso, precioso,
que pode ser contemplado apenas, mas não usado.
Kojève acreditava, claro, que só grandes homens
– pensadores, heróis revolucionários e artistas – po-
deriam se tornar objeto de reconhecimento e admi-
ração pelas gerações subsequentes. No entanto, hoje
quase todos praticam a autoestetização, o autodesign.
Quase todos desejam se tornar objeto de admiração.
Artistas contemporâneos trabalham usando a inter-
net. Isso torna óbvia a mudança na nossa experiência
contemporânea de arte. Obras de arte de um artista
específico podem ser encontradas na internet quando
se busca seu nome no Google – e são mostradas no
contexto de outras informações encontradas na in-
ternet sobre esse artista: sua biografia, outros traba-
lhos, atividades políticas, resenhas críticas, detalhes
da sua vida pessoal etc. Aqui não me refiro ao sujeito
autoral, ficcional, que supostamente investe a obra
de arte de intenções e significados que deveriam ser
hermeneuticamente decifrados e revelados. Esse su-
jeito autoral já foi desconstruído e proclamado morto
diversas vezes. Refiro-me à pessoa real que existe na
realidade off-line, à qual a informação na internet se
refere. Esse autor usa a internet não apenas para pro-
duzir arte, mas também para comprar ingressos, fa-
zer reservas em restaurantes, gerir negócios etc. Todas
40
essas atividades acontecem no mesmo espaço integra-
do da internet – e todas são potencialmente acessíveis
a outros usuários. Aqui a obra de arte se torna “real” e
profana porque se torna integrada à informação sobre
o autor como pessoa real, profana.
A arte é apresentada na internet como um tipo espe-
cífico de atividade: documentação de um processo de
trabalho real acontecendo no mundo real, off-line. Na
verdade, na internet, a arte opera no mesmo plano que
o planejamento militar, o comércio turístico, os fluxos
de capital etc.; o Google demonstra, entre outras coi-
sas, que não há muros no espaço da internet. Um(a)
usuário(a) da rede não passa do emprego cotidiano das
coisas para sua contemplação desinteressada – ele ou ela
usa a informação sobre arte da mesma forma como usa
a informação sobre todas as outras coisas do mundo.
Aqui as atividades da arte se tornam finalmente ati-
vidades “normais”, reais – não diferentes de quaisquer
outras práticas úteis ou não tão úteis. O célebre slogan
“arte na vida” perde o sentido, porque a arte já se tor-
nou parte da vida – uma atividade prática entre outras.
Num certo sentido, a arte volta à sua origem, ao mo-
mento em que o artista era um “ser humano normal”:
um trabalhador manual ou um profissional da diver-
são. Ao mesmo tempo, na internet, todo ser humano
se torna um artista – produzindo e enviando selfies e
outras imagens e textos. Hoje, a prática da autoestetiza-
ção envolve centenas de milhões de pessoas.
E não só os próprios seres humanos mas também
seus espaços de moradia se tornaram progressiva-
41
mente protegidos do ponto de vista estético. Museus,
monumentos e mesmo vastas áreas das cidades se
tornaram protegidos contra mudanças porque foram
estetizados como coisas pertencentes a uma dada he-
rança cultural. O que não deixa muito espaço para
a transformação urbana e social. Realmente, a arte
não quer transformações. A arte diz respeito ao ar-
mazenamento e à conservação – e por essa razão ela
é profundamente conservadora. Assim, a arte tende
a resistir ao movimento do capital e à dinâmica da
tecnologia contemporânea, que destroem incessante-
mente velhas formas de vida e espaços de arte. Podem
chamar isso de turbocapitalismo ou neoliberalismo.
Seja como for, o desenvolvimento econômico e tecno-
lógico contemporâneo é direcionado contra qualquer
política de proteção esteticamente motivada. Aqui
a arte se torna ativa; de modo mais específico, ela é
politicamente ativa. Podemos falar numa política de
resistência – a proteção artística se transforma em po-
lítica de resistência. A política de resistência é a políti-
ca de protesto. E a arte passa da contemplação à ação.
Mas resistência é uma ação em nome da contempla-
ção – reação ao fluxo das mudanças políticas e eco-
nômicas que tornam a contemplação impossível. (Em
um seminário que dei sobre a história da vanguarda,
uma estudante espanhola, creio eu, da Catalunha,
queria escrever um trabalho baseado em sua própria
participação num movimento de protesto em sua ci-
dade natal. O movimento tentava preservar a aparên-
cia tradicional da cidade contra a invasão de marcas
42
comerciais globais. Ela acreditava genuinamente que
se tratava de um movimento de vanguarda porque era
um movimento de protesto. No entanto, para Mari-
netti, este seria um movimento passéista, exatamente
o oposto do que ele desejava.)
Qual é o significado dessa resistência? Eu argu-
mentaria que ela demonstra que a utopia vindoura já
chegou. Ela mostra que a utopia não é algo que temos
de produzir, que temos de alcançar. De modo mais
preciso, a utopia já está aqui e deve ser defendida.
O que é a utopia, então? É a estagnação estetizada,
ou antes a estagnação como um efeito da estetização
total. De fato, o tempo utópico é o tempo sem mu-
dança. A mudança é sempre produzida pela violên-
cia e pela destruição. Assim, se a mudança fosse pos-
sível na utopia, não haveria utopia. Quando se fala
sobre utopia, fala-se frequentemente sobre mudança,
mas ela é a mudança derradeira. É a transformação
da mudança para a não mudança. A utopia é uma
obra de arte total, na qual a exploração, a violência e
a destruição se tornam impossíveis. Nesse sentido, a
utopia já está aqui – e cresce sem parar. Pode-se di-
zer que a utopia é o estágio final do desenvolvimento
tecnológico. Nesse ponto, a tecnologia se torna au-
torreflexiva. Heidegger, como muitos outros autores,
estava atemorizado com a perspectiva dessa virada
autorreflexiva, pois acreditava que ela significaria a
instrumentalização total da existência humana. Mas,
como tentei demonstrar, a auto-objetivação não leva
necessariamente à autoutilitarização. Ela também
43
pode levar a uma autoestetização que não tem ob-
jetivo fora de si mesma e, assim, é o oposto da ins-
trumentalização. Dessa forma, a utopia laica triunfa
de verdade – como o encerramento final da tecnolo-
gia em si mesma. A vida começa a coincidir com sua
imortalização, o fluxo do tempo começa a coincidir
com sua imobilidade.
No entanto, a reviravolta utópica da dinâmica tec-
nológica continua incerta por sua falta de garantia
ontológica. Pode-se dizer que a arte mais interessan-
te do século vinte voltou-se para a possibilidade es-
catológica da destruição total do mundo. A arte da
antiga vanguarda manifestou repetidamente a explo-
são e a destruição do mundo familiar. Assim, muitas
vezes foi acusada de apreciar e celebrar a catástrofe
mundial. A acusação mais famosa desse tipo foi for-
mulada por Walter Benjamin no final do ensaio A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.12
Benjamin acreditava que a celebração da catástrofe
mundial – tal como praticada, por exemplo, por Ma-
rinetti – era fascista. Aqui Benjamin define fascismo
como o ponto mais alto do esteticismo: o prazer es-
tético da violência e da morte máximas. De fato, há
muitos textos de Marinetti que estetizam e celebram
a destruição do mundo familiar – e sim, Marinetti
era próximo do fascismo italiano. No entanto, o pra-
12
Walter Benjamin. The Work of Art in the Age of Its Technical Reprodu-
cibility, and Other Writings on Media. Cambridge, MA: Belknap Press,
2008. [Ed. bras.: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
Trad. Márcio Seligmann-Silva. Porto Alegre: L&PM, 2018.]
44
zer estético da catástrofe e da morte já era discutido
por Immanuel Kant em sua teoria do sublime. Nela,
Kant perguntava como era possível desfrutar esteti-
camente o momento de perigo mortal e a perspectiva
de autodestruição. Ele diz mais ou menos o seguinte:
o sujeito desse prazer sabe que é razoável – e a razão
imortal, infinita, sobrevive a qualquer catástrofe na
qual o corpo humano pereça. É essa certeza interior –
de que a razão sobrevive a qualquer morte particular
– que dá ao sujeito a habilidade de estetizar o perigo
mortal e a catástrofe que se aproxima.
O homem moderno, pós-espiritual, não acredita
mais na imortalidade da razão ou da alma. No en-
tanto, a arte contemporânea continua inclinada a
estetizar a catástrofe, pois acredita na imortalidade
do mundo material. Ela acredita, em outras palavras,
que, mesmo que o Sol exploda, isso significaria ape-
nas que partículas elementares, átomos e moléculas,
seriam liberadas de sua submissão à ordem cósmica
tradicional, e assim a materialidade do mundo seria
revelada. Aqui a escatologia permanece apocalíptica
no sentido de que o fim do mundo é entendido não
meramente como a descontinuação do processo cós-
mico, mas também como a revelação da sua verdadei-
ra natureza.
De fato, Marinetti não apenas celebra a explo-
são do mundo como também deixa a sintaxe de seus
próprios poemas explodir, liberando assim o mate-
rial sônico da poesia tradicional. Malevich inicia a
fase radical de sua prática artística participando de
45
uma produção da ópera Vitória sobre o Sol (1913),
da qual todas as figuras líderes da antiga vanguarda
russa também participaram. A ópera celebra o declí-
nio do Sol – e o reino do caos. Mas para Malevich
isso significava apenas que todas as formas tradicio-
nais seriam destruídas, e o material da arte – em pri-
meiro lugar, a cor pura – seria revelado. É por isso
que Malevich se refere à sua própria arte como “su-
prematista”. Essa arte demonstra a supremacia final
da matéria sobre todas as formas produzidas natural
e artificialmente, pelas quais a matéria estava antes
escravizada. Malevich escreve: “Mas transformei a
mim mesmo no zero das formas e surgi como o zero
de 1”.13 Isso significa precisamente que ele sobrevi-
ve à catástrofe do mundo (ponto zero) e encontra a
si mesmo do outro lado da morte. Mais tarde, em
1915, Malevich organizou a exposição “0.10”, apre-
sentando dez artistas que também sobreviveram ao
fim do mundo e passaram pelo ponto zero de todas
as formas. Aqui não são a destruição e a catástrofe
que são estetizadas, mas os restos materiais que ine-
vitavelmente sobrevivem a essa catástrofe.
A ausência de qualquer garantia ontológica foi
expressa poderosamente por Jean-François Lyotard
no ensaio “Pode o pensamento continuar sem um
corpo?”, de 1987. (O ensaio foi incluído num livro
de Lyotard com o adequado título de O inumano.)
Ele inicia o ensaio com uma referência à previsão
13
Kazimir Malevich. Sobranie sochinenii, v. 1. Moscou: Gilea, 1995, p. 34.
46
científica de que o Sol explodirá em 4,5 bilhões de
anos. E escreve ainda que esse cataclismo iminente
é, a seu ver,
14
Jean-François Lyotard. The Inhuman: Reflections on Time. Palo Alto:
Stanford University Press, 1992, p. 9. [Ed. port.: O inumano: considerações
sobre o tempo. Trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa:
Estampa, 1997.]
15
Ibidem, p. 12.
47
software (atitudes, opiniões, ideologias) e o põe sobre
o hardware (organismo, máquina, suas combinações,
processos cósmicos e eventos).
Aqui Lyotard afirma que o homem deve ser supe-
rado, não a fim de que se torne o animal perfeito, os
Übermenschen de Nietzsche, mas para que uma nova
unidade entre o pensamento e sua estrutura de supor-
te inorgânica, inumana – porque não animal – possa
ser alcançada. A reprodução natural do animal hu-
mano deveria ser substituída por sua reprodução me-
cânica. Pode-se, claro, deplorar a perda da aura hu-
manista tradicional. No entanto, Walter Benjamin já
havia aceitado a destruição da aura como alternativa
ao momento aurático da destruição total do mundo.
As práticas e os discursos artísticos da vanguarda
clássica de certa forma foram prefigurações das con-
dições sob as quais nossos segundos corpos, artificiais
e autoproduzidos, existem no mundo contemporâneo
da mídia. Os elementos desses corpos – obras de arte,
livros, filmes, fotos – circulam globalmente de ma-
neira dispersa. Essa dispersão é ainda mais óbvia no
caso da internet. Se buscamos um nome em particu-
lar na internet, encontramos milhares de referências
que não somam qualquer unidade. Tem-se então a
sensação de que esses corpos artificiais, secundários,
autodesenhados já estão em um estado de explosão
em câmera lenta similar à cena final de Zabriskie
Point, de Michelangelo Antonioni. Ou talvez estejam
em estado de decomposição incessante. A luta eterna
entre Apolo e Dioniso, descrita por Nietzsche, leva a
48
um estranho resultado aqui: o corpo autodesenhado
é desmembrado, dispersado, descentrado, até explo-
dido – mas ainda assim mantém sua unidade virtual.
No entanto, essa unidade virtual não é acessível ao
olhar humano. Apenas programas de vigilância e
programas como o Google podem analisar a internet
em sua totalidade e, assim, identificar os segundos
corpos de pessoas vivas e mortas. Aqui uma máquina
é reconhecida por outra máquina – e um algoritmo
é reconhecido por outro algoritmo. Talvez essa seja a
prefiguração da condição a respeito da qual Lyotard
nos advertiu, na qual a humanidade sobrevive após a
explosão do Sol.
49
Sobre o ativismo artístico16
16
“On art activism”. Artigo originalmente publicado em e-flux jornal
56, jun. 2014; e também em In the Flow, cap. 3. Londres/Nova York:
Verso, 2016.
50
senvolvidas, expor preocupações ecológicas, oferecer a
populações de países e áreas pobres o acesso à cultu-
ra e à educação, chamar atenção para a situação dos
imigrantes ilegais, melhorar as condições para pessoas
que trabalham em instituições de arte. Em outras
palavras, os ativistas da arte reagem ao colapso pro-
gressivo do Estado social moderno e tentam substituir
as instituições sociais e as ONGs que, por diversas
razões, não podem ou não cumprem seu papel. Os
ativistas da arte querem ser úteis, mudar o mundo,
transformar o mundo em um lugar melhor – mas, ao
mesmo tempo, não querem deixar de ser artistas. E é
nesse ponto que surgem problemas teóricos, políticos
e até puramente práticos.
As tentativas do ativismo artístico de combinar
arte e ação social têm sido alvo de ataques, tanto da-
queles que têm perspectivas tradicionalmente artísti-
cas quanto dos que têm perspectivas tradicionalmen-
te ativistas. A crítica de arte tradicional opera com
a noção de qualidade artística. Desse ponto de vis-
ta, o ativismo artístico é visto como artisticamente
inadequado. Muitos críticos dizem que esses artistas
substituem qualidade artística por intenções moral-
mente boas. Na verdade, esse tipo de crítica é fácil
de rejeitar. Durante o século vinte, todos os critérios
de qualidade e gosto foram abolidos pelas diferentes
vanguardas artísticas, de modo que não faz sentido
reinvocá-los hoje. A apreciação feita pelos ativistas é
muito mais séria e demanda uma resposta crítica ela-
borada. A crítica ativista opera principalmente com
51
as noções de “estetização” e “espetacularidade”. Se-
gundo certa tradição intelectual com raízes nos es-
critos de Walter Benjamin e Guy Debord, a esteti-
zação e a espetacularização da política, incluindo o
protesto político, são coisas negativas, pois desviam
a atenção dos objetivos práticos do protesto político
para sua forma estética. Isso significa que a arte não
pode ser usada como meio de protesto político ge-
nuíno, porque o uso da arte para uma ação política
necessariamente estetiza essa ação, transforma a ação
em espetáculo e neutraliza, por isso mesmo, seu efeito
prático. Como exemplo, basta nos lembrarmos da re-
cente Bienal de Berlim, curada por Artur Żmijewski,
e da crítica que provocou: ela foi descrita a partir de
diversas perspectivas ideológicas como um zoológico
para os ativistas da arte.
Em outras palavras, a componente arte do ativis-
mo artístico é vista, frequentemente, como a prin-
cipal razão pela qual esse ativismo fracassa no nível
prático, pragmático – no nível de seu impacto social
e político imediato. Em nossa sociedade, tradicional-
mente, a arte tem sido considerada inútil. Então, pa-
rece que essa inutilidade um tanto ontológica infecta
a militância artística e a condena ao fracasso. Ao mes-
mo tempo, a arte é vista, em última análise, como se
celebrasse e estetizasse o status quo, minando nossa
vontade de transformá-lo. A saída para essa situação,
como se supõe em geral, é o abandono da arte – como
se o ativismo social e político jamais fracassasse quan-
do não infectado pelo vírus da arte.
52
A crítica da arte como algo inútil e, portanto,
moral e politicamente problemático não é nova. No
passado, essa crítica levou muitos artistas a abando-
nar totalmente a arte a fim de praticar algo mais útil,
algo moral e politicamente correto. Porém, os artistas
ativistas contemporâneos não têm pressa em abando-
nar a arte; em vez disso, tentam tornar útil a pró-
pria arte. Essa é uma posição historicamente nova.
Alguns críticos questionam sua novidade referindo-se
à vanguarda russa, que quis, sabidamente, transfor-
mar o mundo por meios artísticos. Essa referência me
parece incorreta. Os artistas da vanguarda russa da
década de 1920 acreditavam em sua capacidade de
mudar o mundo porque naquela época sua prática
artística era apoiada pelas autoridades soviéticas. Eles
sabiam que o poder estava do seu lado e achavam que
esse apoio não diminuiria com o tempo. O ativismo
artístico contemporâneo, ao contrário, não tem razão
para acreditar em apoio político externo. O ativismo
artístico age por conta própria, confiando apenas em
suas redes e no fraco e incerto apoio financeiro de
instituições de arte com mentalidade progressista.
Essa é, como eu disse, uma nova situação, que de-
manda uma nova reflexão teórica.
O objetivo central dessa reflexão deve ser analisar
o sentido preciso e a função política do termo “es-
tetização”. Acredito que essa análise nos permitirá
esclarecer os debates sobre o ativismo artístico, o lu-
gar em que ele se posiciona e de onde age. Eu argu-
mentaria que hoje o termo é usado, na maioria das
53
vezes, de maneira confusa e desorientadora. Fala-se
em estetização para se referir a operações teóricas
e políticas diferentes e até mesmo opostas. A razão
para esse estado de confusão é a divisão da própria
prática da arte contemporânea em dois campos dis-
tintos: arte, no sentido próprio da palavra, e design.
Nesses dois campos, estetização significa duas coisas
diferentes e opostas. Analisemos a diferença.
17
Immanuel Kant. Op. cit., pp. 90-91.
57
não expõem os cadáveres de seus mortos, eles os ocul-
tam, como as pirâmides. Ocultando seus cadáveres,
os cemitérios criam um espaço encoberto, obscuro e
misterioso e assim sugerem a possibilidade de ressu-
reição. Todos nós já lemos sobre espectros, vampiros
que saem de seus túmulos e outros mortos-vivos pe-
rambulando à noite nos cemitérios e no entorno. Vi-
mos filmes sobre uma noite no museu: quando nin-
guém está olhando, os corpos mortos das obras de
arte têm oportunidade de voltar à vida. No entanto,
o museu durante o dia é um lugar de morte defi-
nitiva, que não permite nem ressurreição nem retor-
no ao passado. O museu institucionaliza a violência
verdadeiramente radical, ateísta e revolucionária, que
exibe o passado como incuravelmente morto. É uma
morte puramente materialista, sem retorno – o cadá-
ver material estetizado funciona como testemunho da
impossibilidade de ressurreição.
(A propósito, foi por isso que Stálin insistiu tanto
na exibição pública permanente do cadáver de Lênin.
O mausoléu de Lênin era uma garantia visível de que
Lênin e o leninismo estavam verdadeiramente mor-
tos. É também por essa razão que os atuais líderes da
Rússia não têm pressa de enterrar Lênin, contra todos
os apelos de muitos russos para fazê-lo. Não querem
o retorno do leninismo, que seria novamente possível
caso Lênin fosse enterrado.)
Assim, desde a Revolução Francesa, a arte tem
sido entendida como o cadáver disfuncionalizado e
publicamente exposto do passado. Esse entendimen-
58
to determinou as estratégias da arte pós-revolucioná-
ria – até agora. No contexto da arte, estetizar coisas
do presente significa descobrir seu caráter disfuncio-
nal, absurdo, impraticável – tudo o que as torna inu-
tilizáveis, ineficientes, obsoletas. Estetizar o presente
significa transformá-lo em passado morto. Em outras
palavras, a estetização artística é o oposto da esteti-
zação pelo design. O objetivo do design é melhorar
esteticamente o status quo, torná-lo mais atraente. A
arte também aceita o status quo, mas o aceita como
cadáver, após sua transformação em mera representa-
ção. Nesse sentido, a arte vê a contemporaneidade de
uma perspectiva não só revolucionária mas também
pós-revolucionária. Pode-se dizer que a arte moder-
na ou a contemporânea veem a modernidade ou a
contemporaneidade como os revolucionários france-
ses viam os designs do Antigo Regime: já obsoletos,
reduzidos à pura forma, já cadáveres.
Estetizando a modernidade
18
Filippo T. Marinetti. “The Foundation and Manifesto of Futurism”. In:
Critical Writings. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2006, pp. 11-17.
60
Que ridículo! Que aborrecimento! […] Freei forte e,
para o meu desgosto, as rodas deixaram o solo e voei
para dentro de uma vala […] Ó mãe de uma vala, cheia
de água enlameada. Como saboreei teu lodo fortifican-
te, que tanto me lembrou os santos seios negros de mi-
nha ama sudanesa.
19
Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Repro-
duction”. In: Illuminations: Essays and Reflexions. Londres: Pimlico, 1992.
62
sabidamente fala da “metalização do corpo humano”
– metalização apenas com um sentido: a morte do
corpo, transformado num cadáver entendido como
objeto artístico. Benjamin interpreta o texto como
uma declaração de guerra da arte contra a vida, e re-
sume o programa político fascista com as palavras:
“Fiat art – pereas mundus” (“Faça-se a arte, pereça o
mundo”). Benjamin escreve ainda que o fascismo é a
realização do movimento L’Art pour L’Art.
Claro, a análise de Benjamin acerca da retórica de
Marinetti é correta. Só que há uma questão aqui, e
ela é crucial: quão confiável é Marinetti como teste-
munha? O fascismo de Marinetti já é um fascismo
estetizado: fascismo entendido como aceitação heroi-
ca do fracasso e da morte. Ou como forma pura: a
imagem pura que um escritor tem do fascismo quan-
do esse escritor está sentado sozinho e sob a chuva
incessante. É evidente que o fascismo real não queria
a derrota, mas a vitória. De fato, no fim das décadas
de 1920 e 1930, Marinetti tornou-se cada vez menos
influente dentro do movimento fascista italiano, que,
precisamente, não praticava a estetização da política,
e sim a politização da estética, usando o Novecento
e o neoclassicismo e, sim, também o futurismo para
seus objetivos políticos – ou, podemos dizer, para seu
design político.
Em seu ensaio, Benjamin opõe a estetização da po-
lítica dos fascistas à politização da estética dos comu-
nistas. Porém, na arte russa e soviética da época, as li-
nhas de frente estavam traçadas de forma muito mais
63
complexa. Falamos hoje em vanguarda russa, mas os
artistas e poetas da época falavam de futurismo russo
– e, depois, de suprematismo e construtivismo. Ora,
dentro desses movimentos encontramos o mesmo
fenômeno: a estetização do comunismo soviético. Já
em 1919, Kazimir Malevich, no ensaio “On the Mu-
seum”, advogava não só a queima da herança artística
das épocas anteriores como também a aceitação de
que “tudo o que nós fazemos é feito para o cremató-
rio”.20 No mesmo ano, no ensaio “God Is Not Cast
Down”, Malevich argumenta que atingir as condições
materiais perfeitas para a existência humana, como
os comunistas pretendiam, era tão impossível quanto
atingir a perfeição da alma humana, como a Igreja
já havia tentado.21 O fundador do construtivismo so-
viético, Vladimir Tatlin, construiu sua famosa Torre
da Terceira Internacional, que deveria girar mas não
girava, e depois um avião que não voava (o chamado
Letatlin). Mais uma vez, aqui, o comunismo soviético
foi estetizado da perspectiva de seu fracasso histórico,
de sua morte próxima. E, mais uma vez, na União So-
viética, a estetização da política se transformou poste-
riormente na politização da estética – o uso da estética
para objetivos políticos, como design político.
Não quero dizer, claro, que não haja diferença
entre fascismo e comunismo – a diferença é imensa
20
Kazimir Malevich. “On the Museum”. In: Essays on Art, v. 1. Nova
York: G. Wittenborn, 1971, pp. 68-72.
21
Kazimir Malevich. “God Is Not Cast Down”. Ibidem, pp. 188-223.
64
e decisiva. Apenas quero dizer que a oposição entre
fascismo e comunismo não coincide com a diferen-
ça entre a estetização da política, com raízes na arte
moderna, e a politização da estética, manifestada no
design político.
Espero ter esclarecido a função política dessas duas
noções divergentes e até contraditórias, a estetização
artística e a estetização do design. O objetivo do de-
sign é mudar a realidade, o status quo – melhorar a
realidade, torná-la mais atraente, melhor para usar. A
arte parece aceitar a realidade, o status quo tal como
ele é. Mas a arte aceita o status quo como algo dis-
funcional, já fracassado, a partir de uma perspectiva
revolucionária ou pós-revolucionária. A arte contem-
porânea coloca nossa contemporaneidade no museu
de arte porque não acredita na estabilidade das pre-
sentes condições de existência, em um grau tamanho
que a arte contemporânea nem mesmo tenta melho-
rar tais condições. Disfuncionalizando o status quo, a
arte prefigura sua próxima derrocada revolucionária.
Ou uma nova guerra global. Ou uma nova catástrofe
global. Em todo caso, um evento que tornará toda a
cultura contemporânea, incluindo suas aspirações e
projeções, obsoleta, como a Revolução Francesa tor-
nou obsoletas todas as aspirações, projeções intelec-
tuais e utopias do Antigo Regime.
O ativismo contemporâneo da arte é herdeiro des-
sas duas tradições contraditórias de estetização. Por
um lado, o ativismo artístico politiza a arte, usa a
arte como design político – uma ferramenta nas lu-
65
tas políticas do nosso tempo. Esse uso é totalmente
legítimo, criticá-lo seria absurdo. O design é parte
integrante da nossa cultura, não faria nenhum sen-
tido proibir sua utilização por parte de movimentos
políticos oposicionistas sob o pretexto de que isso leva
à espetacularização, à teatralização do protesto políti-
co. Afinal, há bom e mau teatro.
Mas o ativismo artístico não pode escapar a uma
tradição muito mais radical, revolucionária, da este-
tização da política: a aceitação do próprio fracasso,
entendido como a premonição e a prefiguração do fu-
turo fracasso do status quo em sua totalidade, que não
deixará espaço para melhoria ou correção. O fato de
que o ativismo artístico contemporâneo esteja preso
a essa contradição é algo bom, não é ruim. Em pri-
meiro lugar, somente práticas autocontraditórias são
verdadeiras, num sentido mais profundo do termo.
Em segundo lugar, no nosso mundo contemporâneo,
só a arte indica a possibilidade da revolução como
mudança radical, além do horizonte de todos os nos-
sos desejos e expectativas atuais.
Estetização e retorno
Assim, a arte moderna e contemporânea nos permi-
te olhar para o período histórico em que vivemos da
perspectiva de seu fim. A figura do Angelus Novus,
como descrita por Benjamin, é baseada na técnica
de estetização artística, tal como praticada pela arte
66
europeia pós-revolucionária.22 Aqui temos a descri-
ção clássica da metanoia filosófica, da inversão do
olhar – o Angelus Novus dá as costas para o futuro
e olha na direção do passado e do presente. Ele ain-
da se move em direção ao futuro – mas de costas.
A filosofia é impossível sem esse tipo de metanoia,
sem a inversão do olhar. Assim, a questão filosófica
central era, e ainda é: como essa metanoia filosófica
é possível? Como o filósofo se torna capaz de virar
seu olhar do futuro para o passado e adotar uma
atitude reflexiva, verdadeiramente filosófica em re-
lação ao mundo? Antigamente a resposta era dada
pela religião: Deus (ou deuses) abria o espírito hu-
mano para a possibilidade de deixar o mundo físico
e refletir sobre ele a partir de uma posição metafísi-
ca. Mais tarde, a filosofia hegeliana ofereceu outro
caminho à metanoia: podia-se olhar para trás es-
tando presente no fim da história – o momento no
qual se tornara impossível o progresso do espírito
humano. Em nossa época pós-metafísica, a respos-
ta foi formulada na maioria das vezes em termos
vitalistas: damos as costas quando alcançamos os
limites de nossas próprias forças (Nietzsche), quan-
do nosso desejo é reprimido (Freud) ou quando ex-
perimentamos o medo da morte ou o extremo tédio
da existência (Heidegger).
22
Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte”. In: Gesammelte
Schriften, v. 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1974. [Ed. bras.: Sobre o conceito
de história. Org. e trad. Adalbero Müller e Márcio Seligman-Silva. São
Paulo: Alameda, 2020.]
67
Mas não há indicação dessa virada existencial e
pessoal no texto de Benjamin – apenas a referência
à arte moderna, a uma imagem de Paul Klee. O An-
gelus Novus de Benjamin dá as costas ao futuro sim-
plesmente porque sabe como fazê-lo. Ele sabe porque
aprendeu essa técnica com a arte moderna – e tam-
bém com Marinetti. Hoje, o filósofo não precisa de
nenhum ponto de virada subjetivo, nenhum evento
real, nenhum encontro com a morte nem com algo
ou alguém radicalmente outro. Desde a Revolução
Francesa, a arte desenvolveu técnicas para disfun-
cionalizar o status quo, habilmente descritas pelos
formalistas russos como redução, dispositivo zero e
desfamiliarização. Em nossa época, basta que o(a) fi-
lósofo(a) olhe para a arte moderna e ele(a) saberá o
que fazer. Foi precisamente isso que Benjamin fez. A
arte nos ensina a praticar a metanoia, um retorno na
estrada para o futuro, na estrada do progresso. Não
por acaso, Malevich escreveu no exemplar de seu li-
vro que deu ao poeta Daniil Kharms: “Vá e interrom-
pa o progresso”.
E a filosofia pode aprender não só a metanoia ho-
rizontal, o retorno na estrada do progresso, mas tam-
bém a metanoia vertical: o reverso da ascensão social.
Na tradição cristã, essa reversão chama-se kenosis.
Nesse sentido, a prática artística moderna e contem-
porânea pode ser chamada de kenótica.
Tradicionalmente associamos a arte a um movi-
mento que se dirige para a perfeição. O artista deve
ser criativo. E ser criativo significa, claro, trazer ao
68
mundo algo não só novo como também melhor –
que funcione melhor, tenha melhor aparência, seja
mais atraente. Todas essas expectativas fazem senti-
do, mas, como afirmei antes, no mundo atual, to-
das elas estão relacionadas ao design, e não à arte.
A arte moderna e contemporânea não quer tornar
as coisas melhores, mas piores, e não relativamente
piores, mas radicalmente piores: transformar coisas
funcionais em disfuncionais, trair expectativas, evi-
denciar a presença invisível da morte onde tendemos
a ver somente vida.
É por isso que a arte moderna e contemporânea
é impopular. Isso ocorre porque a arte vai contra
o modo normal como as coisas devem ser. Esta-
mos todos cientes do fato de que nossa civilização
se baseia na desigualdade, mas tendemos a pensar
que essa desigualdade pode ser corrigida pela as-
censão social, deixando as pessoas realizarem seus
talentos, seus dons. Em outras palavras, estamos
prontos para protestar contra a desigualdade ditada
pelos sistemas vigentes de poder, mas, ao mesmo
tempo, tendemos a aceitar a noção de distribuição
desigual de dons e talentos naturais. Contudo, é
óbvio que a crença em dons naturais e na criativi-
dade é a pior forma de darwinismo social, de bio-
logismo e, na verdade, de neoliberalismo, com sua
noção de capital humano. Numa série de palestras
publicadas em O nascimento da biopolítica, Michel
Foucault enfatiza que o conceito neoliberal de capi-
tal humano tem uma dimensão utópica – ele é, de
69
fato, o horizonte utópico do capitalismo contem-
porâneo.23
Como Foucault nos mostra, o ser humano indi-
vidual deixa aqui de ser visto só como um membro
da força de trabalho vendida no mercado capitalista.
Em vez disso, ele(a) se torna proprietário(a) de um
conjunto de qualidades, capacidades e habilidades
não alienadas que são parcialmente hereditárias, ina-
tas, e parcialmente produzidas pela educação e pelo
cuidado – sobretudo aquele prestado pelos pais. Em
outras palavras, estamos falando de um investimento
original feito pela própria natureza. A palavra “talen-
to” expressa suficientemente bem essa relação entre
natureza e investimento – talento significando um
dom da natureza e também certa quantia. Aqui, a
dimensão utópica do capital humano neoliberal se
torna clara o bastante: a participação na economia
perde seu caráter de trabalho alienado e alienante. O
ser humano se torna não só força de trabalho como
também um ativo. E o que é mais importante, a no-
ção de capital humano, como mostra Foucault, apaga
a oposição entre consumidor e produtor – oposição
que, sob a condição padrão do capitalismo, na qual o
homem é produtor e consumidor, ameaça despedaçar
o ser humano. Foucault aponta que, em termos de
capital humano, o consumidor se torna um produtor.
23
Michel Foucault. The Birth of Biopolitics: Lectures at the College de
France 1978-1979. Nova York: Palgrave Macmillan, 2008. pp. 215ss. [Ed.
bras.: Nascimento da biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2008.]
70
O(A) consumidor(a) produz sua própria satisfação. E,
dessa forma, o(a) consumidor(a) aumenta seu capital
humano.24
No início da década de 1970, Joseph Beuys inspi-
rou-se na ideia de capital humano. Nas célebres pa-
lestras em Achberger, publicadas sob o título Kunst =
Kapital (“Arte = capital”),25 Beuys argumentava que
qualquer atividade econômica deveria ser entendida
como prática criativa – de forma que todo mundo se
tornaria artista. Pois a noção expandida de arte (er-
weiterte Kunstbegriff ) coincidiria com a noção expan-
dida de economia (erweiterte Oekonomiebegriff ). Aqui
Beuys tenta superar a desigualdade que, para ele, é
simbolizada pela diferença entre trabalho criativo, ar-
tístico, e trabalho não criativo, alienado. Dizer que
todo mundo é artista significava, para Beuys, intro-
duzir a igualdade universal pela mobilização daqueles
aspectos e componentes de todo capital humano que
permanecem ocultos, inativos sob as condições pa-
drão do mercado. Porém, nos grandes debates que se
seguiram às palestras, ficava claro que a tentativa de
Beuys de basear a igualdade socioeconômica numa
igualdade entre atividade artística e não artística não
funcionaria de fato. A razão é bastante simples: se-
gundo Beuys, uma pessoa é criativa porque a nature-
za originalmente lhe conferiu capital humano – isto
24
Michel Foucault. The Birth of Biopolitics: Lectures at the College de
France 1978-1979. Op. cit., p. 226.
25
Joseph Beuys. Kunst = Kapital: Achberger Vortraege. Achberg: FIU, 1992.
71
é, a capacidade de ser criativo. Assim, a prática da arte
continua a depender da natureza – e, portanto, da
distribuição desigual dos dons naturais.
No entanto, muitos teóricos de esquerda, socia-
listas, acabaram enfeitiçados pela ideia de ascensão
social – seja ela individual ou coletiva. É ilustrativa
uma famosa citação do fim do livro de Leon Trótski,
Literatura e revolução:
26
Leon Trótski. Op. cit., p. 207.
72
mação genuinamente política não pode ser alcançada
segundo a lógica de talento, esforço e competição, na
qual a atual economia de mercado se baseia, mas so-
mente por intermédio da metanoia e da kenosis – o
retorno contra o movimento do progresso, o retor-
no contra o fluxo da ascensão social. Somente desse
modo podemos escapar da pressão de nossos dons e
talentos, que nos escravizam, nos exaurem, impelin-
do-nos a subir uma montanha após outra. Somente
se aprendermos a estetizar a falta de dons e também
a sua posse, não diferenciando sucesso de fracasso,
poderemos escapar do bloqueio teórico que ameaça o
ativismo artístico contemporâneo.
Não há dúvida de que vivemos numa época em
que tudo é estetizado. Muitas vezes isso é interpretado
como um sinal de que atingimos o estado de depois
do fim da história, ou o estado de total exaustão, que
torna qualquer ação histórica adicional impossível.
Porém, como tentei demonstrar, o nexo entre a esteti-
zação total, o fim da história e a exaustão das energias
vitais é ilusório. Recorrendo às lições da arte moderna
e contemporânea, somos capazes de estetizar comple-
tamente o mundo, isto é, enxergá-lo já como cadá-
ver, sem estarmos necessariamente situados no fim da
história ou de nossas forças vitais. Pode-se estetizar o
mundo e, ao mesmo tempo, agir nele. De fato, a este-
tização total não bloqueia, mas intensifica a ação po-
lítica. A estetização total significa que vemos o status
quo atual como algo já morto, já abolido. E significa
ainda que toda ação direcionada para a estabilização
73
do status quo se revelará, por fim, ineficaz – e que
toda ação direcionada para a destruição do status quo
será, no fim, bem-sucedida. Assim, a estetização total
não só não inviabiliza a ação política como cria um
horizonte ideal para o sucesso da ação política, caso
esta tenha uma perspectiva revolucionária.
74
Modernidade e
contemporaneidade: reprodução
mecânica versus digital27
27
“Modernity and Contemporaneity: Mechanical vs. Digital Reproduc-
tion”. Artigo publicado originalmente em In the Flow, cap. 9. Londres/
Nova York: Verso, 2016.
75
deixam em dia com eventos acontecendo em todos os
lugares do mundo, em tempo real, levam à sincroni-
zação de histórias regionais diferentes. Nossa contem-
poraneidade é um efeito dessa sincronização – um
efeito que produz em nós, o tempo todo, uma sensa-
ção de surpresa. Não é o futuro que nos surpreende.
Ficamos surpresos acima de tudo com nosso próprio
tempo, que de algum modo nos parece estranho e
esquisito. É a mesma sensação que experimentamos
quando vamos a um museu de arte contemporânea e
somos confrontados com mensagens, formas e atitu-
des extremamente heterogêneas que têm apenas uma
coisa em comum: acontecem aqui e agora, são nossas
contemporâneas. Essa experiência, de um presente
compartilhado desconhecido e estranho, é o que di-
ferencia nossa época do período da modernidade, no
qual o presente era vivenciado como um momento
de transição, de um passado familiar para um futu-
ro não familiar. Há diversas maneiras de descrever
e interpretar a diferença entre as épocas moderna e
contemporânea, mas eu quero analisar essa diferença
como um contraste entre dois modos de reprodução:
o mecânico e o digital. Segundo Walter Benjamin, o
original é simplesmente um outro nome para a pre-
sença do presente – algo que acontece aqui e agora.28
Assim, analisar nossos diferentes modos de reprodu-
ção do original significa analisar nossos diferentes
28
Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Repro-
duction”, cit.
76
modos de vivenciar a presença, a contemporaneidade,
de sermos copresentes, no fluxo do tempo, ao evento
original do tempo e no tempo e as técnicas que usa-
mos para produzir essa copresença.
A reprodução mecânica
29
Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Repro-
duction”, cit., pp. 214-215.
77
distinção visual entre o original e a cópia – ou, pelo
menos, seu potencial desaparecimento – não elimina
outra distinção invisível, mas nem por isso menos real:
o original possui uma aura que a cópia não tem.30 A
aura, para Benjamin, é a relação da obra de arte com
seu contexto externo. O original tem um lugar parti-
cular – e por esse lugar específico o original é inscrito
na história como esse objeto ímpar, único. A cópia,
em contraste, é virtual, sem lugar, a-histórica; desde o
princípio ela aparece como multiplicidade potencial.
Reproduzir algo é removê-lo do seu lugar, desterrito-
rializá-lo. A reprodução transpõe a obra de arte para
a rede de circulação topologicamente indeterminada.
As formulações de Benjamin são bem conhecidas:
30
Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Repro-
duction”, cit., p. 214.
78
fia e especialmente o cinema são as formas de arte
mais modernas, uma vez que, desde o início, foram
mecanicamente produzidas e destinadas à circulação
indeterminada do ponto de vista topológico. Dessa
perspectiva, a era da reprodução mecânica não pode
produzir nada de original, pode apenas apagar a origi-
nalidade dos originais, herdada das épocas anteriores.
Vista da distância histórica atual, essa reivindi-
cação de não originalidade essencial da moderni-
dade parece um pouco estranha, porque a noção
de originalidade parece estar bem no centro da
cultura moderna e da arte modernista – especial-
mente da arte de vanguarda. De fato, todo artista
sério da vanguarda insistiu na originalidade de sua
arte. A ausência de originalidade artística – entendi-
da como imitação do passado, incluindo o passado
mais recente – era totalmente desprezada nos meios
culturais modernistas e de vanguarda. No entanto,
a vanguarda artística usou essa noção de originali-
dade de um modo completamente diferente daquele
empregado por Benjamin.
O conceito de originalidade de Benjamin está
obviamente enraizado no conceito de natureza. Não
por acaso ele lança mão da experiência de estar no
meio de uma esplêndida paisagem italiana como
modelo de experiência aurática que não pode ser re-
produzida sem perder seu “aqui e agora”.31 Ser origi-
31
Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Repro-
duction”, cit., p. 217.
79
nal significa ser inimitável, irreproduzível, natural de
fato – porque a natureza é supostamente inimitável
e irreproduzível por meios técnicos. Assim, mesmo
que Benjamin esteja pronto a aceitar que a nature-
za é passível de reprodução técnica, e perfeitamente
simulada no plano de sua materialidade e forma vi-
sual, ele ainda insiste que é impossível reproduzir sua
aura, sua inscrição no aqui e no agora – seu evento, se
preferirem. A relação entre original e cópia é entendi-
da, aqui, como a relação entre natureza e técnica. E
a aura de originalidade funciona como um momento
de resistência contra a invasão em massa da natureza
pelos meios técnicos de reprodução.
Esse apelo à natureza como fonte de resistência à
moderna cultura comercial de massa é característico
de outros autores importantes do mesmo período –
por exemplo, Clement Greenberg, em “Vanguarda e
kitsch”,32 e posteriormente Theodor Adorno, em sua
análise da “indústria cultural”.33 Greenberg define a
vanguarda, principalmente, como mimética em últi-
ma instância: se a arte clássica era uma imitação da
natureza, a vanguarda é uma imitação dessa imitação.
Assim, segundo Greenberg, a vanguarda mantém sua
conexão interior com a natureza – mesmo que de for-
32
Clement Greenberg. “Avant-garde and Kitsch”. In: Art and Culture.
Nova York: Beacon Press, 1961. [Ed. bras.: Arte e cultura. Trad. Otacílio
Nunes. São Paulo: Cosac Naify, 2013.]
33
Theodor Adorno e Max Horkheimer. Dialectic of Enlightenment: Philo-
sophical Fragments. Stanford: Stanford University Press, 2002. [Ed. bras.:
Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1985.]
80
ma indireta e danificada – e salva essa conexão do
massacre do kitsch cultural tecnicamente produzido.
Adorno também acredita que se pode encontrar a
origem da arte autêntica na beschädigte Natur (“na-
tureza danificada”) e na nostalgia de uma unidade
harmoniosa, verdadeira e original entre homem e na-
tureza – ainda que, ao mesmo tempo, ele afirme que
essa unidade só pode ser ilusória, e a nostalgia, ne-
cessariamente enganadora. Ainda assim, Adorno fala
da mimese da natureza – mesmo que a mimese seja
apenas de sua Beschädigung, sua condição danificada.
Todas essas formulações também não são diferentes
daquelas usadas por Martin Heidegger em “Origem
da obra de arte”,34 quando ele define arte como uma
tékhne (“técnica”) que permite à physis (“natureza
oculta”) manifestar-se, apresentar-se, mas apresentar-
-se em sua auto-ocultação original, ou, para usar o
vocabulário adorniano, em sua forma originalmente
danificada. Isso significa que, segundo esses autores,
a modernidade poderia estar relacionada à origina-
lidade, isto é, à natureza, mas apenas de forma ne-
gativa, ao demonstrar sua perda de originalidade, de
aura, de harmonia natural ou de não ocultamento
original da natureza.
No entanto, para a vanguarda artística, ser ori-
ginal não significava estar relacionado à natureza.
Logo, também não significava ser inimitável ou irre-
34
Martin Heidegger. “The Origin of the Work of Art”. In: Off the Beaten
Track. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
81
produzível no futuro, mas apenas ser historicamente
novo. A ideia de original funcionava aqui como uma
noção expandida de direito autoral. De fato, a pro-
dução do novo pressupõe desde o início sua reprodu-
ção posterior. É por isso que a história da vanguarda
é, entre outras coisas, a história das intermináveis
disputas sobre quem foi o primeiro, quem criou algo
original e quem foi mero imitador. A vanguarda ra-
dical – de Marinetti a Malevich ou Mondrian – não
queria restabelecer uma relação, ainda que apenas
negativa, com a natureza (entendida como a perda
da aura por Benjamin, natureza beschädigte ou dani-
ficada por Adorno, ou ocultamento por Heidegger).
Em vez disso, ela queria romper completamente com
a natureza em nome de um novo mundo industrial,
e com a mimese da natureza em nome da invenção
de formas novas, não naturais, de arte e de vida. É
por isso que o principal artifício artístico da van-
guarda foi a operação de redução. A redução abre
uma perspectiva para a reprodução mais efetiva – é
sempre mais fácil reproduzir algo simplificado que
algo complicado.
No interior do paradigma da modernidade, que
é definido pela reprodução mecânica, a presença
do presente só pode ser experimentada em um mo-
mento – a saber, no momento revolucionário, o
momento aurático da redução que abre caminho
para a reprodução pós-revolucionária dos resulta-
dos dessa redução. É por isso que a modernidade é
um tempo de anseio permanente de revolução – do
82
momento revolucionário de pura presença entre o
passado histórico e o futuro repetitivo. Também
não é por acaso que esse anseio encontrou sua ex-
pressão final na teoria da revolução permanente –
na visão da reprodução mecânica do próprio mo-
mento revolucionário.
A reprodução digital
35
A tradução correta seria “artes cênicas” [performing arts], mas, como
em português esse termo deixa de fora a música, optou-se aqui por “artes
performativas”. [N. T.]
84
torna, ela mesma, um original. Sob as condições da
era digital, os usuários da internet são responsáveis
pelo aparecimento ou desaparecimento de imagens e
textos digitalizados em suas telas de computador. As
imagens digitalizadas não existem a não ser que nós,
como usuários, lhes confiramos certo “aqui e agora”.
Isso significa que cada cópia digital possui seu pró-
prio “aqui e agora” – uma aura de originalidade –,
que a cópia mecânica não possui. Assim, a relação
entre original e cópia foi radicalmente transformada
pela digitalização – transformação que pode ser des-
crita como um momento de ruptura entre a moderni-
dade e a contemporaneidade.
Conferimos presença aos dados digitais por meio
de nosso trabalho manual em um teclado de com-
putador. Esse ato envolve a natureza, porque envolve
nosso corpo natural; a cópia mecânica, ao contrário,
não é produzida manualmente. Ao clicar nos nomes
de arquivos e links diferentes, convocamos dados
que são invisíveis per se e damos a eles certa forma e
certo lugar na nossa tela. Pode-se falar aqui de uma
tékhne no sentido heideggeriano, que o usuário uti-
liza para fazer aparecer coisas que, de outra forma,
continuariam ocultas (physis). Nesse sentido, é pos-
sível falar de um retorno à natureza por meio da di-
gitalização, porque a operação de reprodução é reali-
zada manualmente. E uma cópia assim produzida é,
necessariamente, diferente, do ponto de vista visual,
de todas as outras cópias manualmente produzidas –
uma diferença que a reprodução mecânica pretendia
85
apagar. No entanto, eu argumentaria que a era digi-
tal não efetuou apenas um retorno à natureza, mas
também um retorno ao sobrenatural. Fazemos arqui-
vos digitais aparecerem ao clicarmos em seus nomes
– como outrora conjurávamos os espíritos chamando
seus nomes.
Desse modo, não apenas tornamos os espíritos –
bons ou maus, Deus ou demônios – visíveis para nós,
mas nós mesmos nos tornamos visíveis para eles. É
exatamente isso o que acontece hoje, quando usa-
mos a internet e convocamos os dados invisíveis: nós
também nos tornamos visíveis, rastreáveis, para os
espíritos que conjuramos. A era digital, em primeiro
lugar – e acima de qualquer outra coisa –, é uma
era de vigilância digital em tempo real. Cada apre-
sentação de dados digitais, cada produção de uma
imagem-cópia digital é, ao mesmo tempo, a criação
de nossa própria imagem, um ato de autovisuali-
zação. Ao fazer uma cópia digital, faço uma cópia
de mim mesmo e a ofereço ao espectador invisível,
oculto por trás da superfície da tela do meu com-
putador pessoal. E essa é a diferença fundamental
entre a reprodução mecânica e a reprodução digital.
A reprodução mecânica também pressupunha certo
controle sobre seu uso pessoal. Mas esse controle era
um controle estatístico: podia-se retraçar o número
de cópias vendidas de um item, ou o comportamen-
to de certos grupos-alvo. Nesse caso, o observador
era o mercado. Mas, como observador, o mercado
é inespecífico demais – entre outras coisas pela di-
86
ficuldade de distinguir o original da cópia e as dife-
rentes cópias de um mesmo original.
Hoje voltamos não só ao reino da natureza, ou
physis, mas também ao da metafísica. Na verdade,
estamos quase de volta à condição medieval de to-
tal controle divino. No lugar da natureza e da teolo-
gia, temos a internet e a teoria da conspiração. Como
Nietzsche escreveu na célebre passagem “Deus está
morto”, perdemos o espectador de nossas almas e,
por essa razão, a própria alma. Depois de Nietzsche,
e durante toda a época da reprodução mecânica, ou-
vimos muito a respeito dessa perda de subjetividade.
Ouvimos de Heidegger que die Sprache spricht (“a
linguagem fala”), em lugar do indivíduo que utiliza
a linguagem. Ouvimos de Marshall McLuhan que a
mensagem do meio mina, subverte e altera toda men-
sagem individual transmitida por esse meio. Posterior-
mente, a desconstrução derridariana e as máquinas
deleuzianas do desejo nos livraram de nossas últimas
ilusões referentes à possibilidade de estabilizar uma
mensagem individual. A maestria sobre a comunica-
ção é revelada pela teoria moderna da mídia como
uma ilusão subjetiva. Essa incapacidade do sujeito de
formular, estabilizar e comunicar uma mensagem por
meio da mídia muitas vezes é caracterizada como a
morte do sujeito. No entanto, agora temos uma vez
mais um espectador universal, porque nossas almas
“virtuais” ou “digitais” são individualmente rastreá-
veis. Essas “almas virtuais” são reproduções digitais
do nosso comportamento off-line – reproduções que
87
podemos controlar apenas parcialmente. Nossa expe-
riência da contemporaneidade é definida não tanto
pela presença das coisas para nós, como espectadores,
mas, antes, pela presença de nossas almas virtuais pe-
rante o olhar do espectador oculto.
88
Marx por Duchamp, ou
Os dois corpos do artista 36
36
“Marx After Duchamps or The Artist’s Two Bodies”. Artigo original-
mente publicado em e-flux journal 19, out. 2010.
89
extensões do corpo do artista, evocando a presença
desse corpo mesmo após sua morte. Nesse sentido,
o trabalho do artista não era considerado “alienado”
– em contraste com o trabalho industrial, alienado,
que não pressupõe qualquer conexão identificável en-
tre o corpo do produtor e o produto industrial. Des-
de Duchamp e seu uso do ready-made, essa situação
mudou drasticamente. E a mudança principal não
está tanto na apresentação de objetos industrializados
como obras de arte, mas na nova possibilidade, aberta
para o artista, de não apenas produzir obras de forma
alienada, semi-industrial, mas também permitir que
elas mantenham a aparência de ter sido produzidas
industrialmente. E é aqui que artistas tão diferentes
quanto Andy Warhol e Donald Judd podem servir
como exemplos da arte pós-duchampiana. A conexão
direta entre o corpo do artista e o corpo das obras
de arte foi rompida. As obras deixaram de ser vistas
como retentoras do calor corporal do artista, mesmo
quando seu cadáver já esfriava. Ao contrário, o autor
(o artista) era proclamado morto ainda em vida, e o
caráter “orgânico” da obra de arte, interpretado como
ilusão ideológica. Por conseguinte, enquanto consi-
deramos criminoso o desmembramento violento de
um corpo orgânico vivo, a fragmentação de uma obra
de arte que já é um cadáver – ou melhor, um objeto
produzido industrialmente ou uma máquina – não
constitui crime; na verdade, é bem-vinda.
E é precisamente isso que centenas de milhões de
pessoas no mundo fazem todos os dias no contexto
90
da mídia contemporânea. À medida que massas de
pessoas se tornavam bem informadas sobre a produ-
ção de arte avançada, em bienais, trienais, Documen-
tas, e pela cobertura desses eventos, elas começaram
a usar a mídia da mesma forma que os artistas. Os
meios contemporâneos de comunicação e as redes so-
ciais como Facebook, YouTube e Twitter oferecem à
população global a capacidade de exibir suas fotos,
seus vídeos e textos sem que seja possível distingui-las
de qualquer obra de arte pós-conceitual. E o design
contemporâneo oferece às mesmas populações uma
forma de moldar e experienciar seus apartamentos
ou locais de trabalho como instalações artísticas. Ao
mesmo tempo, o “conteúdo” ou os “produtos” digi-
tais que essas milhões de pessoas apresentam diaria-
mente não têm qualquer relação direta com seus cor-
pos; são tão “alienados” deles quanto qualquer obra
de arte contemporânea, e isso significa que podem ser
facilmente fragmentados e reutilizados em diferentes
contextos. De fato, o sampleamento por meio do pro-
cesso de copiar e colar é a prática mais comum e dis-
seminada na internet. E é aqui que encontramos uma
conexão direta entre as práticas semi-industriais da
arte pós-duchampiana e as práticas contemporâneas
utilizadas na internet – um lugar no qual até aqueles
que não conhecem ou apreciam instalações artísticas
contemporâneas, performances ou ambientes empre-
gam as mesmas formas de sampleamento que essas
práticas artísticas tomam por base. (E aqui encontra-
mos uma analogia com a interpretação de Benjamin
91
sobre a predisposição do público para aceitar a mon-
tagem no cinema ao mesmo tempo que rejeitava a
mesma abordagem na pintura.)
Muitos consideraram esse apagamento do traba-
lho na prática artística contemporânea e através dela
uma libertação do trabalho em geral. O artista passa a
ser um portador e um protagonista de “ideias”, “con-
ceitos” ou “projetos”, em vez de um sujeito do traba-
lho árduo, seja este alienado ou não. Assim, o espaço
digitalizado, virtual da internet produziu conceitos
fantasmas de “trabalho imaterial” e “trabalhadores
imateriais” que teriam supostamente aberto caminho
para uma sociedade “pós-fordista” de criatividade
universal, livre do trabalho árduo e da exploração.
Além disso, a estratégia do ready-made duchampiano
parece abalar os direitos da propriedade privada inte-
lectual – abolindo o privilégio da autoria e levando a
arte e a cultura ao uso público irrestrito. A utilização
do ready-made por Duchamp pode ser compreendi-
da como uma revolução artística análoga à revolução
comunista na política. Ambas as revoluções almejam
o confisco e a coletivização da propriedade privada,
seja ela “real” ou simbólica. Nesse sentido, pode-se
dizer que certa arte contemporânea e certas práticas
da internet agora desempenham o papel (simbólico)
das coletivizações comunistas em meio à economia
capitalista. Encontramos uma situação reminiscente
daquela da arte romântica no início do século deze-
nove na Europa, quando reações ideológicas e restau-
rações políticas dominavam a vida política. Após a
92
Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas, a Eu-
ropa havia atingido um período de relativa estabilida-
de e paz, no qual a época da transformação política
e do conflito ideológico parecia finalmente superada.
A ordem política e econômica homogênea, baseada
no crescimento econômico, no progresso tecnológi-
co e na estagnação política, parecia anunciar o fim
da história, e o movimento artístico romântico, que
emergiu por todo o continente, tornou-se um movi-
mento no qual se sonharam utopias, se rememora-
ram traumas revolucionários e se propuseram formas
alternativas de vida. Hoje, a cena artística tornou-se
um lugar de projetos emancipatórios, práticas partici-
pativas e atitudes políticas radicais, mas também um
lugar no qual são lembradas as catástrofes sociais e
as decepções do revolucionário século vinte. Mas a
composição específica neorromântica e neocomunis-
ta da cultura contemporânea é, como acontece mui-
tas vezes, especialmente bem diagnosticada por seus
inimigos. Assim, o influente livro de Jaron Lanier
Você não é um aplicativo fala no “maoísmo digital” e
na “mentalidade de colmeia” que dominam o espa-
ço virtual contemporâneo, arruinando o princípio da
propriedade privada intelectual e, por fim, rebaixan-
do os padrões e levando à potencial morte da cultura
como tal.37
37
Jaron Lanier. You Are Not a Gadget: A Manifesto. Nova York: Alfred
A. Knopf, 2010. [Ed. bras.: Você não é um aplicativo: um manifesto sobre
como a tecnologia interage com nossa cultura. Trad. Cristina Yamagami.
São Paulo: Saraiva, 2000.]
93
Então, aqui não se trata de libertar-se por meio
do trabalho, mas de libertar-se do trabalho em si –
ao menos do seu aspecto manual, “opressivo”. Mas
até onde um projeto assim é realista? A libertação do
trabalho é realmente possível? De fato, a arte con-
temporânea confronta a teoria marxista tradicional
da produção de valor com uma difícil pergunta: se o
valor “original” de um produto reflete a acumulação
de trabalho neste produto, então, como pode um rea-
dy-made adquirir valor adicional como obra de arte,
não obstante o fato de o artista aparentemente não ter
investido qualquer trabalho adicional nele? É nesse
sentido que o conceito pós-duchampiano de arte para
além do trabalho parece constituir o contraexemplo
mais efetivo à teoria marxista do valor – como um
exemplo de criatividade “pura”, “imaterial”, transcen-
dendo todas as concepções tradicionais de produção
de valor resultante do trabalho manual. Se é esse o
caso, parece que a decisão do artista de oferecer deter-
minado objeto como obra de arte e a decisão de uma
instituição de arte de aceitar esse objeto como tal já
bastam para produzir um bem artístico de valor sem
envolver qualquer trabalho manual. Assim, a expan-
são dessa prática artística, aparentemente imaterial,
para toda a economia por meio da internet produziu
a ilusão de que a libertação pós-duchampiana do tra-
balho, por meio da criatividade “imaterial” – e não
a libertação marxista do trabalho –, abriria caminho
para uma nova utopia de multidões criativas. A única
precondição necessária para essa abertura, no entan-
94
to, parece ser criticar as instituições que cerceiam e
frustram a criatividade de multidões flutuantes, com
sua política seletiva de inclusão e exclusão.
Aqui devemos lidar, porém, com certa confusão
a respeito da noção de “instituição”. Especialmente
no âmbito da “crítica institucional”, as instituições de
arte são consideradas sobretudo estruturas de poder
que definem o que é incluído e excluído ao olhar do
público. Assim, as instituições de arte são analisadas
principalmente em termos “idealistas”, não materia-
listas, ao passo que em termos materialistas as insti-
tuições de arte se apresentam como edifícios, espaços,
áreas de armazenamento etc., que exigem trabalho
manual para ser construídos, mantidos e usados. En-
tão, pode-se dizer que a rejeição do trabalho “não
alienado” colocou o artista pós-duchampiano nova-
mente na posição de realizar trabalho manual, aliena-
do, para transferir certos objetos materiais do exterior
do espaço da arte para o seu interior, e vice-versa. A
criatividade imaterial pura revela-se aqui mera ficção,
na medida em que o antiquado trabalho artístico não
alienado é tão somente substituído pelo trabalho ma-
nual alienado de transportar objetos. E assim a arte
além do trabalho pós-duchampiana se revela, de fato,
o triunfo do trabalho “abstrato” alienado sobre o tra-
balho “criativo” não alienado. É esse trabalho alie-
nado de transportar objetos, combinado ao trabalho
investido na construção e manutenção dos espaços de
arte, que, em última instância, produz valor artístico
sob as condições da arte pós-duchampiana. A revolu-
95
ção duchampiana não leva à libertação do artista em
relação ao trabalho, mas a sua proletarização via tra-
balho alienado de construção e transporte. De fato,
as instituições de arte contemporânea não necessitam
mais do artista como produtor tradicional. Em vez
disso, na maioria dos casos, o artista é contratado
temporariamente como trabalhador, realizando este
ou aquele projeto institucional. Por sua vez, há muito
tempo artistas comercialmente bem-sucedidos, como
Jeff Koons e Damien Hirst, converteram-se em em-
preendedores.
A economia da internet evidencia essa economia
da arte pós-duchampiana até para um espectador
externo. O fato é que a internet não passa de uma
rede telefônica modificada, um meio de transportar
sinais elétricos. Como tal, ela não é “imaterial”, mas
totalmente material. Se certas linhas de comunicação
não forem instaladas, certos aparelhos não forem pro-
duzidos, ou se o acesso ao telefone não for instalado
e pago, simplesmente não haverá internet ou espaço
virtual. Em termos marxistas tradicionais, pode-se
dizer que as grandes corporações de comunicação e
tecnologia de informação controlam a base material
da internet e os meios de produção da realidade vir-
tual: seu hardware. Desse modo, a internet fornece
uma interessante combinação de hardware capitalista
e software comunista. Centenas de milhões dos cha-
mados “produtores de conteúdo” colocam seu con-
teúdo na internet sem receber qualquer remuneração,
e esse conteúdo é produzido menos pelo trabalho
96
intelectual de gerar ideias que pelo trabalho manual
de operar o teclado. Os lucros são apropriados pe-
las corporações que controlam os meios materiais de
produção virtual.
O passo decisivo para a proletarização e a explo-
ração do trabalho artístico e intelectual se deu, cla-
ro, com o surgimento do Google. O mecanismo de
busca do Google opera por meio da fragmentação de
textos individuais numa massa indiferenciada de lixo
verbal: todo texto individual que antes se mantinha
coeso pela intenção do autor é desmantelado e tem
suas frases individuais fisgadas e recombinadas com
outras frases flutuantes que, supostamente, teriam o
mesmo “tema”. O poder unificador da intenção au-
toral, claro, já tinha sido abalado na filosofia recente,
mais notadamente pela desconstrução derridariana.
E, de fato, essa desconstrução já efetuara o confisco
simbólico e a coletivização de textos individuais, re-
tirando-os de seu controle autoral e levando-os à lata
de lixo sem fundo da escrita “anônima”, sem sujeito.
Esse foi um gesto que a princípio parecia emancipató-
rio, por estar de certa forma sincronizado com certos
sonhos coletivistas, comunistas. Mas, como agora é
o Google que executa o programa desconstrutivista
de coletivização da escrita, este parece ser um pouco
mais que isso. Há, entretanto, uma diferença entre
a desconstrução e a busca no Google: a desconstru-
ção foi entendida por Derrida, em termos puramente
“idealistas”, como uma prática infinita e, portanto,
incontrolável, enquanto os algoritmos de busca do
97
Google não são infinitos, mas finitos e materiais –
sujeitos à apropriação, ao controle e à manipulação
por parte das corporações. A remoção do controle
autoral, intencional e ideológico sobre a escrita não
levou a sua libertação. Ao contrário, no contexto da
internet, a escrita ficou sujeita a um tipo diferente de
controle, por meio do hardware e do software corpo-
rativos, por meio das condições materiais de produ-
ção e distribuição da escrita. Em outras palavras, ao
eliminar por completo a possibilidade do trabalho ar-
tístico, cultural como trabalho autoral não alienado,
a internet completa o processo de proletarização do
trabalho iniciado no século dezenove. Aqui o artista
se torna um trabalhador alienado, igual a qualquer
outro, nos processos contemporâneos de produção.
Mas surge assim uma questão: o que aconteceu
com o corpo do artista quando o trabalho de produ-
ção de arte se tornou alienado? A resposta é simples:
o corpo do artista se tornou um ready-made. Foucault
já havia mostrado que o trabalho alienado produz o
corpo do trabalhador juntamente com os produtos
industriais; o corpo do trabalhador é disciplinado e
simultaneamente exposto à vigilância externa, fenô-
meno celebremente caracterizado por Foucault como
“panoptismo”.38 Como resultado, esse trabalho in-
dustrial alienado não pode ser entendido somente
38
Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Nova
York: Vintage, 1995. [Ed. bras.: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad.
Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.]
98
em termos da sua produtividade externa – deve-se
necessariamente levar em consideração o fato de que
esse trabalho também produz o corpo do trabalhador
como artefato confiável, instrumento “objetificado”
do trabalho industrializado, alienado. E isso pode ser
visto mesmo como a principal conquista da moderni-
dade, na medida em que esses corpos modernizados
agora povoam espaços burocráticos, administrativos
e culturais contemporâneos, nos quais, aparentemen-
te, nada de material é produzido além desses próprios
corpos. Pode-se então argumentar que é precisamen-
te esse corpo trabalhador modernizado, atualizado
que a arte contemporânea usa como ready-made. No
entanto, o artista contemporâneo não precisa entrar
numa fábrica ou num escritório administrativo para
encontrar esse corpo. Sob as atuais condições de tra-
balho artístico alienado, o(a) artista descobrirá que
esse corpo já é o seu.
Na verdade, na arte da performance, em vídeo,
fotografia etc., o corpo do artista tornou-se cada vez
mais o foco da arte contemporânea em décadas re-
centes. E pode-se dizer que hoje o(a) artista tem se
preocupado cada vez mais com a exposição de seu
corpo como um corpo trabalhador – recriando, atra-
vés do olhar do espectador ou da câmera, a exposição
panóptica à qual estão submetidos os corpos traba-
lhadores em uma fábrica ou escritório. Um exemplo
de exposição desse corpo trabalhador pôde ser visto
na exposição de Marina Abramović The Artist Is Pre-
sent, realizada no MoMA de Nova York em 2010. A
99
cada dia da exposição, durante as horas de funcio-
namento do museu, Abramović sentava-se no átrio
do MoMA mantendo a mesma pose. Dessa forma,
ela recriava a situação de um funcionário de escri-
tório, cuja ocupação primária é sentar-se no mesmo
lugar todos os dias a fim de ser observado por seus
superiores, independentemente do que faz além dis-
so. Podemos dizer também que a performance de
Abramović era uma ilustração perfeita da ideia de
Foucault de que a produção do corpo trabalhador
é o principal efeito do trabalho alienado, moderni-
zado. Precisamente por não realizar qualquer tarefa
durante o tempo em que estava presente, Abramović
tematizava a disciplina, a resistência e o esforço físico
incríveis necessários para simplesmente estar presen-
te em um local de trabalho do começo ao fim do
expediente. Ao mesmo tempo, o corpo de Abramo-
vić se sujeitava ao mesmo regime de exposição de
todas as obras de arte do MoMA – penduradas na
parede ou fixadas em seus lugares durante o horário
de funcionamento do museu. E assim como presu-
mimos que aquelas obras não mudam de lugar nem
desaparecem quando não estão expostas ao olhar do
visitante ou quando o museu está fechado, tendemos
a imaginar que o corpo imóvel de Abramović per-
manecerá para sempre no museu, imortalizado jun-
to com as demais obras de arte. Nesse sentido, The
Artist Is Present cria a imagem de um cadáver vivo
como a única perspectiva de imortalidade que nossa
civilização é capaz de oferecer aos seus cidadãos.
100
O efeito de imortalidade é apenas reforçado pelo
fato de que a performance é uma recriação/repetição
de outra performance que Abramović realizara com
Ulay quando eram mais jovens, na qual se sentavam
frente a frente durante o horário de funcionamento de
um espaço de exposição. Em The Artist Is Present, o
lugar de Ulay, oposto a Abramović, podia ser assumido
por qualquer visitante. Essa substituição demonstra-
va como o corpo trabalhador do artista se desconecta
– por meio do caráter alienado, abstrato do trabalho
moderno – de seu próprio corpo natural, mortal. O
corpo trabalhador do artista pode ser substituído por
qualquer outro corpo que esteja pronto e capacitado
para realizar o mesmo trabalho de autoexposição. As-
sim, na parte principal da exposição retrospectiva, as
performances mais antigas de Abramović e Ulay eram
repetidas/reproduzidas de duas maneiras distintas: por
meio da documentação em vídeo e por meio de corpos
nus de atores contratados. Aqui, novamente, a nudez
desses corpos era mais importante que suas formas par-
ticulares ou mesmo seu gênero (em um caso, por ques-
tões práticas, Ulay foi representado por uma mulher).
Muitos falam da natureza espetacular da arte contem-
porânea, mas em certo sentido a arte contemporânea
efetua o reverso do espetáculo encontrado no teatro ou
no cinema, entre outros exemplos. No teatro, o corpo
do ator também se apresenta como imortal ao passar
por vários processos metamórficos, transformando-se
nos corpos de outros à medida que interpreta diferentes
papéis. Na arte contemporânea, ao contrário, o corpo
101
trabalhador do artista acumula diferentes papéis (como
no caso de Cindy Sherman), ou, no caso de Abramo-
vić, diferentes corpos vivos. O corpo trabalhador do ar-
tista é simultaneamente autoidêntico e intercambiável,
porque é um corpo de trabalho alienado, abstrato. Em
seu famoso livro Os dois corpos do rei: um estudo sobre
teologia política medieval, Ernst Kantorowicz ilustra o
problema histórico colocado pela figura do rei que as-
sume simultaneamente dois corpos: um corpo natural,
mortal, e outro oficial, institucional, intercambiável,
imortal. De modo análogo, pode-se dizer que, quando
o(a) artista expõe seu corpo, é o segundo corpo, o tra-
balhador, que está exposto. E no momento de sua ex-
posição esse corpo trabalhador também revela o valor
de trabalho acumulado na instituição de arte (segundo
Kantorowicz, os historiadores medievais falavam em
“corporações”).39 Em geral, quando visitamos um mu-
seu, não nos damos conta da quantidade de trabalho
necessária para manter as pinturas nas paredes ou as
esculturas em seus lugares. Mas esse esforço se faz ime-
diatamente visível quando o visitante é confrontado
com o corpo de Abramović; o esforço físico invisível
de manter o corpo humano na mesma posição por um
longo tempo produz uma “coisa” – um ready-made –
que prende a atenção dos visitantes e lhes permite con-
templar o corpo de Abramović por horas.
39
Ernst H. Kantorowicz. The King’s Two Bodies: A Study in Medieval
Political Theology. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 3. [Ed.
bras.: Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Trad.
Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.]
102
Pode-se pensar que apenas os corpos trabalhado-
res das celebridades são expostos ao olhar do público.
Agora, no entanto, mesmo as pessoas mais comuns,
“normais”, cotidianas documentam permanentemen-
te seus próprios corpos trabalhadores por meio de
fotografias, vídeos, websites etc. Além disso, a vida
cotidiana contemporânea é exposta não só à vigilân-
cia institucional, mas também a uma esfera em inces-
sante expansão de cobertura midiática. Inúmeros sit-
coms inundam as telas de televisão do mundo inteiro
expondo os corpos trabalhadores de médicos, cam-
poneses, pescadores, presidentes, estrelas de cinema,
operários de fábrica, assassinos da máfia, coveiros e
até de zumbis e vampiros. São precisamente a ubiqui-
dade e a universalidade do corpo trabalhador e de sua
representação que os tornam especialmente interes-
santes para a arte, mesmo que os corpos naturais, pri-
mários de nossos contemporâneos sejam diferentes, e
seus corpos secundários de trabalho, intercambiáveis.
E é precisamente essa permutabilidade que une o(a)
artista ao seu público. O(A) artista atual compartilha
a arte com o público, assim como certa vez a compar-
tilhou com a religião ou a política. Ser artista deixou
de ser um destino exclusivo; em vez disso, tornou-se
algo característico da sociedade como um todo, em
seu nível mais íntimo, cotidiano, corporal. E aqui
o(a) artista encontra outra oportunidade para avan-
çar uma reivindicação universalista – na forma de um
vislumbre da duplicidade e da ambiguidade dos dois
corpos do próprio artista.
103
Na mira da teoria40
104
ta perspectiva teórica que, muitas vezes, lhes parece
demasiado estreita, dogmática e até intimidadora. Os
artistas buscam públicos maiores, mas o número de
espectadores teoricamente informados é bem peque-
no – menor até que o público de arte contemporânea.
Assim, o discurso teórico revela-se uma forma con-
traproducente de publicidade: ele reduz o público, em
vez de aumentá-lo. Hoje isso é mais verdadeiro que
nunca. Desde o advento da modernidade, o grande
público fez suas pazes relutantes com a arte de seu
tempo. O público atual aceita a arte contemporânea,
embora nem sempre sinta que “entendeu” essa arte.
A necessidade de explicação teórica da arte parece,
portanto, definitivamente passé.
Ainda assim, a teoria nunca foi tão central para a
arte como agora. Surge, por conseguinte, a questão:
por que isso ocorre? Meu palpite é que hoje os artistas
necessitam da teoria para explicar o que estão fazen-
do, não para os outros, mas para si mesmos. Nesse
aspecto, não estão sozinhos. Toda pessoa contempo-
rânea se faz constantemente essas duas perguntas: “o
que deve ser feito?” e, ainda mais importante, “como
posso explicar a mim mesmo o que já estou fazendo?”.
A urgência dessas questões é um resultado do colapso
da tradição que hoje vivenciamos. Tomemos de novo
a arte como exemplo. Antigamente, fazer arte signifi-
cava praticar – de forma sempre modificada – o que
gerações anteriores de artistas haviam feito. No pe-
ríodo moderno, fazer arte significava protestar contra
o que as gerações anteriores haviam feito. Mas, em
105
ambos os casos, era mais ou menos claro com que
essa tradição se parecia – e, de acordo com isso, que
forma poderia assumir o protesto contra a tradição.
Hoje somos confrontados com milhares de tradições
flutuando ao redor do mundo – e com milhares de
formas diferentes de protestar contra elas. Assim,
quando agora alguém resolve se tornar artista e fazer
arte, não está imediatamente claro para ele ou ela o
que é de fato arte, ou o que um artista deve fazer. A
fim de começar a fazer arte, é necessária uma teoria
que explique o que a arte é. Essa teoria possibilita aos
artistas universalizar, globalizar sua arte. O recurso
à teoria os libera de suas identidades culturais – do
perigo de sua arte ser percebida somente como curio-
sidade local. Essa é a principal razão para o cresci-
mento da teoria em nosso mundo globalizado. Aqui,
a teoria – o discurso teórico, explicativo – precede a
arte em lugar de sucedê-la.
Entretanto, um problema continua sem solução.
Se vivemos num tempo em que toda atividade pre-
cisa começar por uma explicação teórica do que é
essa atividade, então é possível chegar à conclusão de
que vivemos depois do fim da arte, porque a arte era
tradicionalmente oposta à razão, à racionalidade, à
lógica – envolvendo, como se dizia, o domínio do ir-
racional, do emocional, do teoricamente imprevisível
e do inexplicável.
De fato, desde o início a filosofia ocidental foi
extremamente crítica em relação à arte, rejeitando-
-a totalmente como algo que não passava de uma
106
máquina de produção de ficções e ilusões. Para Pla-
tão, compreender o mundo – alcançar a verdade do
mundo – demandava seguir não a imaginação, mas
a razão. Entendia-se tradicionalmente que a esfera da
razão incluiria a lógica, a matemática, leis morais e
cívicas, ideias do bem e do mal, sistemas de governo
de Estado – o conjunto dos métodos e técnicas que
regulam e moldam a sociedade. Todas essas ideias
podiam ser entendidas pelo exercício da razão huma-
na, mas não podiam ser representadas por nenhuma
prática artística, pois eram abstratas e, portanto, in-
visíveis. Assim, esperava-se que o filósofo deslocasse
sua atenção do mundo exterior dos fenômenos para a
realidade interna do seu próprio pensamento – para
investigar esse pensamento, analisar a lógica do pro-
cesso de pensamento enquanto tal. Somente assim
o filósofo atingiria a condição da razão como modo
universal de pensamento que une todos os sujeitos
razoáveis, incluindo, como disse Edmund Husserl,
deuses, anjos, demônios e seres humanos. Portanto,
a rejeição à arte pode ser entendida como o gesto ori-
ginário que constitui a atitude filosófica. A oposição
entre filosofia (entendida como amor pela verdade)
e arte (interpretada como produção de mentiras e
ilusões) perpassa toda a história da cultura ociden-
tal. A atitude negativa em relação à arte foi mantida
também pela aliança tradicional entre arte e religião.
Por muito tempo a arte funcionou como um meio
didático pelo qual a autoridade transcendente, in-
compreensível e irracional da religião apresentava-se
107
aos seres humanos: a arte representava deuses e Deus,
tornando-os acessíveis ao olhar humano. A arte re-
ligiosa funcionava como um objeto de confiança:
acreditava-se que templos, estátuas, ícones, poemas
religiosos e performances rituais eram os espaços da
presença divina. Quando Hegel afirmou, na segun-
da década do século dezenove, que a arte era algo do
passado, ele queria dizer que a arte havia cessado de
ser um meio da verdade (religiosa). Depois do Ilumi-
nismo, ninguém mais deveria ou poderia ser enga-
nado pela arte, pois a evidência da razão finalmente
tomava o lugar da sedução artística. A filosofia nos
havia ensinado a desconfiar da religião e da arte e
confiar em nossa capacidade de pensar. O homem
do Iluminismo desprezava a arte, acreditando apenas
em si mesmo, na evidência de sua própria razão.
Contudo, a teoria crítica moderna e contemporâ-
nea não é senão uma crítica à razão, à racionalidade e
à lógica tradicional. Aqui me refiro não apenas a esta
ou aquela teoria em particular, mas ao pensamento
crítico em geral, tal como tem sido desenvolvido des-
de a segunda metade do século dezenove, após o de-
clínio da filosofia hegeliana.
Todos sabemos os nomes dos primeiros teóricos
paradigmáticos. Karl Marx deu início ao discurso
crítico moderno interpretando a autonomia da razão
como uma ilusão produzida pela estrutura de clas-
ses das sociedades tradicionais, incluindo a sociedade
burguesa. Marx concebia o impostor da razão como
um membro da classe dominante, liberado do traba-
108
lho manual e da necessidade de participar da ativida-
de econômica. Os filósofos, segundo Marx acredita-
va, podiam se manter imunes às seduções mundanas
apenas porque suas necessidades básicas já estavam
satisfeitas, ao passo que os trabalhadores braçais,
desfavorecidos, eram consumidos por uma luta pela
sobrevivência que não lhes dava nenhuma oportuni-
dade de praticar a contemplação filosófica desinteres-
sada, de personificar a razão pura.
Por outro lado, Nietzsche explicou o amor da fi-
losofia pela razão e a verdade como um sintoma da
posição desfavorecida do filósofo na vida real. Ele viu
na vontade da verdade uma tentativa, da parte do fi-
lósofo, de sobrecompensar sua falta de vitalidade e de
poder real fantasiando a respeito do poder universal
da razão. Nietzsche acreditava que os filósofos estão
imunes à sedução da arte simplesmente porque são
fracos demais, “decadentes” demais para seduzir ou
serem seduzidos. Ele negou a natureza pacífica, pura-
mente contemplativa da atitude filosófica. Para Niet-
zsche, essa atitude era somente um disfarce usado pe-
los fracos para obter sucesso na luta pelo poder e pela
dominação. Por trás da aparente ausência de interes-
ses vitais, o teórico descobre a presença oculta de uma
vontade de poder “decadente” ou “doentia”. Segundo
Nietzsche, a razão e seus supostos instrumentos são
projetados apenas para subjugar outros personagens
sem inclinação filosófica – isto é, passionais, vitais.
É esse o grande tema da filosofia nietzschiana, poste-
riormente desenvolvido por Michel Foucault.
109
Assim, o teórico começa a perceber a figura do fi-
lósofo contemplativo e sua posição no mundo da pers-
pectiva de um olhar normal, profano e externo. A teo-
ria vê o corpo vivo do filósofo a partir de pontos de
vista que não estão disponíveis para a autorreflexão do
filósofo. De fato, não podemos ver nosso próprio cor-
po, suas posições no mundo e os processos materiais
que ocorrem dentro e fora dele – físicos e químicos,
mas também econômicos, biopolíticos, sexuais etc.
Isso significa que não podemos verdadeiramente prati-
car a autorreflexão segundo o espírito do dito filosófico
“Conhece-te a ti mesmo”. Ainda mais importante, não
podemos ter uma experiência interior das limitações
de nossa existência espaçotemporal. Não estávamos
presentes no nosso nascimento – e não estaremos pre-
sentes na nossa morte. É por isso que todos os filósofos
que praticaram a autorreflexão chegaram à conclusão
de que o espírito, a alma e a razão eram todos imortais.
De fato, analisando meu próprio processo de pensa-
mento, nunca poderei encontrar qualquer evidência
de sua finitude. Para descobrir as limitações de minha
existência no espaço e no tempo, necessito do olhar do
Outro. Leio a minha morte nos olhos dos outros. Por
isso Lacan afirma que o olhar do Outro é sempre um
mau-olhado, e Sartre, que “o inferno são os outros”.
Apenas por meio do olhar profano dos outros posso
descobrir que não apenas penso e sinto, mas também
que nasci, que vivo e que morrerei.
É célebre a afirmação de Descartes: “Penso, logo
existo”. Mas um espectador de mentalidade crítica ou
110
teórica diria a respeito de Descartes: ele só pensa por-
que vive. Aqui, meu autoconhecimento é radicalmen-
te abalado. Talvez eu saiba, de fato, o que penso. Mas
não sei como vivo – nem mesmo sei que estou vivo.
Como nunca tive a experiência de estar morto, não
posso me experienciar como vivo. Preciso perguntar
aos outros se, e como, vivo – e isso significa que tam-
bém preciso perguntar o que de fato penso, porque
agora vejo meu pensamento como algo determina-
do pela minha vida. Viver é estar exposto como ser
vivo (e não como morto) ao olhar dos Outros. Assim,
torna-se irrelevante o que pensamos, planejamos ou
esperamos. O relevante é que nossos corpos se mo-
vem no espaço sob aquele olhar. É dessa forma que a
teoria me conhece melhor do que eu me conheço. O
sujeito orgulhoso, esclarecido da filosofia está morto.
Sou deixado com meu corpo – e entregue ao olhar do
Outro. Antes do Iluminismo, o homem estava sujeito
ao olhar de Deus. Mas aquela época se foi, e agora
estamos sujeitos ao olhar da teoria crítica.
À primeira vista, a reabilitação do olhar profano
parece também implicar a reabilitação da arte: na
arte, o ser humano se torna uma imagem que pode
ser vista e analisada pelo outro. Mas as coisas não
são tão simples. A teoria crítica não critica apenas a
contemplação filosófica, mas também qualquer outra
forma de contemplação, incluindo a contemplação
estética. Para o teórico crítico, pensar ou contemplar
é a mesma coisa que estar morto. Ao olhar do Outro,
um corpo imóvel só pode ser um cadáver. A filosofia
111
privilegia a contemplação. A teoria privilegia a ação
e a prática, ela detesta a passividade. Se eu paro de
me mover, desapareço do radar da teoria, e a teoria
não gosta disso. Toda teoria laica, pós-idealista, é um
chamado à ação. Toda teoria crítica cria um estado
de urgência – até mesmo de emergência. A teoria nos
diz que somos organismos materiais meramente mor-
tais, e que temos pouco tempo a nosso dispor. Não
podemos desperdiçar nosso tempo em contemplação.
Em vez disso, devemos agir aqui e agora. O tempo
não espera, e não temos tempo suficiente para mais
demora. Se é verdade que toda teoria oferece deter-
minada explicação e visão geral de mundo (ou uma
explicação sobre por que o mundo não pode ser ex-
plicado), essas descrições teóricas e esses panoramas
têm um papel apenas instrumental e transitório. O
verdadeiro objetivo de toda teoria é definir o campo
da ação que somos chamados a realizar.
É aqui que a teoria manifesta sua solidariedade ao
espírito geral dos nossos tempos. Antigamente, recrea-
ção significava contemplação passiva. Em seu tempo
livre as pessoas iam a teatros, cinemas ou museus, ou
ficavam em casa lendo livros ou assistindo à TV. Guy
Debord descreveu essa sociedade como a sociedade
do espetáculo – a sociedade em que a liberdade toma
a forma de um tempo livre associado à passividade e à
fuga das condições comuns da vida. Mas a sociedade
de hoje não se parece com essa sociedade do espetá-
culo. Em seu tempo livre, as pessoas trabalham – via-
jam, praticam esportes e se exercitam. Elas não leem
112
livros, mas escrevem no Facebook, no Twitter e em
outras mídias sociais. Não veem arte, em vez disso ti-
ram fotos ou gravam vídeos e os enviam a seus paren-
tes e amigos. As pessoas se tornaram, de fato, bastante
ativas. Elas planejam seu tempo livre fazendo vários
tipos de trabalho. Essa ativação dos corpos humanos
correlaciona-se com o mundo da mídia dominado
por imagens em movimento, em filme ou vídeo. Na
verdade, não é possível representar o movimento do
pensamento, ou o estado de contemplação, por esses
meios. Nem seria possível por meio das artes tradicio-
nais; a famosa estátua O pensador, de Rodin, na ver-
dade apresenta um homem descansando depois de se
exercitar na academia. O movimento do pensamento
é invisível. Assim, não pode ser representado por uma
cultura contemporânea orientada para a informação
visualmente transmissível. Pode-se dizer, então, que
o chamado à ação da teoria adéqua-se muito bem ao
ambiente de mídia contemporâneo.
Mas a teoria evidentemente não nos chama ape-
nas à ação. De modo mais preciso, a teoria nos cha-
ma a uma ação específica que visa realizar a própria
teoria. Toda teoria crítica é não só informativa como
também transformadora. A cena do discurso teórico
é uma cena de conversão, que excede os termos da co-
municação. Em si, o ato da comunicação não trans-
forma seus participantes: eu transmiti informação a
alguém, alguém me transmitiu informação. Ambos
os participantes mantêm sua identidade durante e
após essa troca. Mas o discurso teórico crítico não
113
é simplesmente um discurso informativo, pois não
transmite só certo conhecimento. Em vez disso, ele
faz perguntas que dizem respeito ao significado do
conhecimento. O que significa eu adotar determina-
da parcela nova de conhecimento? Como esse novo
conhecimento me transformou, como influenciou
minha atitude geral em relação ao mundo? Como
esse conhecimento mudou minha personalidade,
modificou meu modo de vida? Para responder a tais
perguntas, é preciso engajar-se com a teoria – mos-
trando como certos conhecimentos transformam o
comportamento de alguém. Nesse aspecto, o discur-
so teórico é similar aos discursos religioso e filosófico.
A religião descreve o mundo, mas não está satisfeita
apenas com esse papel descritivo. Ela igualmente nos
exorta a crer na descrição, manifestar essa fé e agir ba-
seados nela. A filosofia também nos pede não só que
acreditemos no poder da razão, mas que ajamos de
forma razoável, racionalmente. A teoria não só quer
que acreditemos que somos principalmente corpos vi-
vos, finitos, como também exige que manifestemos
essa crença. Sob o regime da teoria, viver não é sufi-
ciente: deve-se também mostrar que se vive, deve-se
“performar” esse estar vivo. E agora eu argumentaria
que, em nossa cultura, é a arte que performa esse co-
nhecimento de estar vivo.
Na verdade, o objetivo principal do artista é mos-
trar, expor, exibir modos de vida. Nesse sentido, a
arte com frequência tem desempenhado o papel de
performer do conhecimento, mostrando o que signi-
114
fica viver com, e por meio de, certo conhecimento.
Sabemos que Kandinsky explicava sua virada para a
arte abstrata referindo-se à conversão de massa em
energia na teoria da relatividade de Einstein. A deter-
minação econômica da existência humana, tematiza-
da pelo marxismo, refletiu-se na vanguarda russa. O
surrealismo articulou a descoberta do subconsciente.
Certo tempo depois, a arte conceitual reagiu às dife-
rentes teorias da linguagem.
Pode-se, claro, perguntar: quem é o sujeito dessa
performance artística do conhecimento? A essa al-
tura, já ouvimos falar das muitas mortes do sujeito,
do autor, do locutor e outros mais. Mas todos esses
obituários dizem respeito ao sujeito da reflexão e da
autorreflexão filosófica – ou, ainda, ao sujeito do de-
sejo e da energia vital. Em contraste, o sujeito perfor-
mativo é constituído pelo chamado à ação, à mani-
festação de si mesmo como vivo. Eu conheço a mim
mesmo como o destinatário desse chamado, que me
diz: transforme-se, mostre o seu conhecimento, ma-
nifeste sua vida, aja de forma transformadora, trans-
forme o mundo etc. Esse chamado é direcionado a
mim. É desse modo que eu sei que posso e devo res-
ponder a ele.
E, a propósito, esse chamado à ação não tem ori-
gem divina. O teórico é também um ser humano, e
eu não tenho razão para confiar totalmente na inten-
ção dele ou dela. O Iluminismo nos ensinou, como já
mencionei, a desconfiar do olhar do Outro – a suspei-
tar que os outros (padres etc.) agem perseguindo seus
115
próprios interesses, ocultos por trás de seus discursos
apelativos. E a teoria nos ensinou a não confiar em
nós mesmos ou nas evidências da nossa própria ra-
zão. Nesse sentido, toda performance de uma teoria é
ao mesmo tempo uma performance de desconfiança
em relação a essa teoria. Performamos a imagem da
vida para nos apresentarmos como seres vivos – mas
também para nos protegermos do mau-olhado do
teórico, para nos escondermos atrás de nossa própria
imagem. E de fato é precisamente isso que a teoria
quer de nós. Afinal, a teoria também desconfia de si
mesma. Como disse Theodor Adorno, o todo é falso,
e não há vida verdadeira no falso.42
Os artistas não devem, necessariamente, tomar
a posição daqueles que respondem a um apelo. Eles
podem não performar, mas, em vez disso, juntar-se
ao chamado transformador. Em lugar de se torna-
rem ativos, podem tentar ativar os outros. E podem
se tornar críticos de quem não responder ao chamado
da teoria. Aqui, a arte assume um papel ilustrativo,
didático – comparável ao papel didático do artista
na construção, digamos, da fé cristã. Em outras pala-
vras, esse artista moderno faz propaganda laica com-
parável à propaganda religiosa. Não sou crítico dessa
virada propagandística. Ela produziu muitos traba-
lhos interessantes ao longo do século vinte e continua
42
Theodor Adorno. Minima Moralia: Reflections from Damaged Life.
Trad. E. N. Jephcott. Londres/Nova York: Verso, 1974, pp. 50 e 39. [Ed.
bras.: Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Trad. Gabriel
Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.]
116
produtiva hoje. Entretanto, os artistas que praticam
esse tipo de propaganda frequentemente falam sobre
a ineficácia da arte – como se todo mundo pudesse e
devesse ser persuadido pela arte, mesmo que não seja
persuadido pela própria teoria. A arte de propaganda
não é particularmente ineficaz; ela apenas comparti-
lha os sucessos e fracassos da teoria que propaga.
Essas duas atitudes artísticas, a performance da
teoria e a teoria como propaganda, não são apenas
interpretações diferentes, mas também conflitantes e
até incompatíveis, do “chamado” da teoria. Essa in-
compatibilidade produziu muitos conflitos, até mes-
mo tragédias, dentro da arte de esquerda – e de direi-
ta também, é verdade – no decurso do século vinte.
Desde os seus primórdios, nos trabalhos de Marx e
Nietzsche, a teoria crítica tem visto o ser humano
como um corpo material, finito, desprovido de acesso
ontológico ao eterno ou ao metafísico. Isso significa
que não há nenhuma garantia metafísica, ontológica
de sucesso para qualquer ação humana, assim como
também não há qualquer garantia de fracasso. Qual-
quer ação humana pode ser, a todo momento, inter-
rompida pela morte. O evento da morte é radical-
mente heterogêneo em relação a qualquer construção
teleológica da história. Da perspectiva da teoria vita-
lista, a morte não tem de coincidir com a satisfação.
O fim do mundo não tem de ser apocalíptico e reve-
lar a verdade da existência humana. Antes, conhece-
mos a vida como não teleológica, sem um plano uni-
ficador histórico ou divino que possamos contemplar
117
e no qual pudéssemos nos fiar. Sabemos que estamos
envolvidos num jogo incontrolável de forças materiais
que torna toda ação contingente. Assistimos à mu-
dança permanente de modas. Assistimos ao avanço
irreversível da tecnologia, que eventualmente tornará
qualquer forma de vida obsoleta. Assim, somos cha-
mados continuamente a abandonar nossas habilida-
des, nosso conhecimento e nossos planos, como se
fossem ultrapassados. Não importa o que vejamos,
esperamos seu desaparecimento mais cedo ou mais
tarde. Não importa o que planejamos fazer hoje, es-
peramos mudar amanhã.
Em outras palavras, a teoria nos confronta com o
paradoxo da urgência. A imagem básica que a teoria
nos oferece é a imagem da nossa própria morte – uma
imagem da nossa mortalidade, da finitude radical e
da falta de tempo. Ao oferecer-nos essa imagem, a
teoria produz em nós a sensação de urgência – sen-
sação que nos impele a responder ao seu chamado à
ação agora, e não depois. Mas, ao mesmo tempo, esse
sentimento de urgência e de falta de tempo nos im-
pede de conceber projetos em longo prazo, de basear
nossas ações em planos de longo prazo; de ter grandes
expectativas pessoais e históricas a respeito dos resul-
tados de nossas ações.
Um bom exemplo dessa performance de urgência
pode ser visto no filme Melancolia (2011), de Lars
von Trier. Duas irmãs veem sua morte próxima na
forma do planeta Melancolia, à medida que este se
aproxima da Terra, prestes a aniquilá-la. O plane-
118
ta Melancolia olha as irmãs, que leem sua própria
morte no olhar neutro, objetificador do planeta.
Essa é uma boa metáfora para o olhar da teoria, e as
duas irmãs são instadas por esse olhar a reagir. Aqui
encontramos um típico caso moderno, secular, de
urgência extrema – inescapável e, ao mesmo tem-
po, puramente contingente. A aproximação lenta de
Melancolia é um chamado à ação. Mas que tipo de
ação? Uma das irmãs tenta escapar a essa imagem da
morte – salvar a si mesma e ao filho. Essa é uma re-
ferência ao típico filme apocalíptico de Hollywood,
em que uma tentativa de escapar a uma catástrofe
mundial sempre dá certo. Mas a outra irmã é sedu-
zida pela imagem da morte até o ponto do orgasmo.
Em vez de passar o resto da vida evitando a morte,
ela performa um ritual de boas-vindas – um ritual
que a ativa e excita. Aqui, encontramos um bom
modelo de duas formas opostas de reação ao senti-
mento de urgência e falta de tempo.
De fato, a mesma urgência, a mesma falta de tem-
po que nos impulsiona a agir, sugere que nossas ações
provavelmente não alcançarão nenhum objetivo, ou
que não produzirão nenhum resultado. Esse insight
foi bem descrito por Walter Benjamin em sua famosa
parábola sobre o Angelus Novus de Paul Klee: olhan-
do na direção do futuro vemos somente promessas,
enquanto olhando para o passado vemos somente
ruínas de promessas.43 Essa imagem foi comumen-
43
Walter Benjamin. On the Concept of History. In: Howard Eiland e
119
te interpretada pelos leitores de Benjamin como pes-
simista. Mas, na verdade, ela é otimista – de certo
modo, essa imagem reproduz a temática de um en-
saio muito anterior, no qual Benjamin distingue en-
tre dois tipos de violência: a divina e a mítica.44 A
violência mítica produz uma destruição que leva de
uma antiga ordem a novas ordens. A violência divi-
na apenas destrói, sem estabelecer nenhuma nova or-
dem. Essa destruição divina é permanente (similar à
ideia de Trótski de revolução permanente). Mas hoje
um leitor do ensaio de Benjamin sobre a violência
inevitavelmente se pergunta como a violência divina
pode ser eternamente infligida, se é apenas destru-
tiva. Em algum momento tudo seria destruído e a
própria violência divina se tornaria impossível. Real-
mente, se Deus criou o mundo do nada, ele também
pode destruí-lo completamente, sem deixar traços.
Mas o ponto é precisamente este: Benjamin usa a
imagem do Angelus Novus no contexto de seu concei-
to materialista da história, no qual a violência divina
se torna violência material. Assim, fica claro por que
Benjamin não acredita na possibilidade de destruição
total. De fato, se Deus está morto, o mundo material
se torna indestrutível. No mundo laico, puramente
material, a destruição pode ser apenas a destruição
120
material produzida por forças materiais, e qualquer
destruição material é apenas parcialmente bem-suce-
dida. Ela sempre deixa ruínas, traços, vestígios – exa-
tamente como Benjamin descreveu em sua parábola.
Em outras palavras, se não podemos destruir total-
mente o mundo, o mundo também não pode nos
destruir totalmente. O sucesso total é impossível, e o
fracasso total também. A visão materialista do mun-
do abre uma zona para além de sucesso e fracasso,
conservação e aniquilamento, aquisição e perda. Ora,
essa é rigorosamente a zona na qual a arte opera se de-
seja performar seu conhecimento acerca da materiali-
dade do mundo – e da vida como processo material.
Embora a arte das vanguardas históricas também te-
nha sido acusada de niilista e destrutiva, sua destru-
tividade era motivada pela crença na impossibilidade
da destruição total. Podemos dizer que a vanguarda
viu, olhando na direção do futuro, a mesma imagem
que o Angelus Novus de Benjamin viu, olhando para
o passado.
Desde o princípio, a arte moderna e contemporâ-
nea incorporou as possibilidades do fracasso, da ir-
relevância histórica e da destruição em suas próprias
atividades. Assim, a arte não pode se chocar com o
que vê pela janela traseira do progresso. O Angelus
Novus da vanguarda sempre vê a mesma coisa, olhan-
do para o futuro ou para o passado. Aqui a vida é en-
tendida como um processo puramente material, não
teleológico. Praticar a vida significa estar consciente
da possibilidade de sua interrupção a qualquer mo-
121
mento pela morte – e, portanto, significa evitar atin-
gir qualquer meta e objetivo definidos, porque essas
buscas também podem ser interrompidas pela morte
a qualquer momento. Nesse sentido, a vida é radical-
mente heterogênea em relação a qualquer conceito de
história narrado apenas como instâncias disparatadas
de sucesso e fracasso.
Por muito tempo, o homem esteve ontologicamen-
te situado entre Deus e os animais. Parecia mais presti-
gioso ser colocado mais perto de Deus e mais distante
dos animais. Em tempos modernos e hoje, tendemos a
situar o homem entre os animais e as máquinas. Nessa
nova ordem, parece melhor ser animal que máquina.
Durante os séculos dezenove e vinte – e agora tam-
bém –, havia uma tendência a apresentar a vida como
o desvio de certo programa, como a diferença entre
um corpo vivo e uma máquina. Entretanto, à medi-
da que o paradigma da máquina era assimilado, o ser
humano contemporâneo passou a ser visto cada vez
mais como um animal agindo como máquina – uma
máquina industrial ou um computador. Se aceitarmos
essa perspectiva foucaultiana, o corpo humano vivo
– a animalidade humana – se manifesta, de fato, no
desvio do programa, no erro, na loucura, no caos e
na imprevisibilidade. É por isso que a arte contempo-
rânea com frequência tende a tematizar o desvio e o
erro, isto é, tudo o que rompe com a norma e perturba
o programa social estabelecido.
Aqui é importante observar que a vanguarda clás-
sica se situou mais do lado da máquina que do ani-
122
mal humano. Vanguardistas radicais, de Malevich e
Mondrian a Sol LeWitt e Donald Judd, praticaram
sua arte de acordo com programas semelhantes a má-
quinas, nos quais o desvio e a variação eram conti-
dos pelas leis geradoras de seus respectivos projetos.
Entretanto, esses programas eram internamente dife-
rentes de qualquer programa “real”, porque não eram
utilitários nem instrumentais. Nossos programas
sociais, políticos e técnicos reais são orientados para
certa meta – e julgados de acordo com sua eficácia ou
habilidade para atingi-la. Programas de arte e máqui-
nas, no entanto, não são teleologicamente orientados.
Eles não possuem meta definida, apenas seguem sem
parar. Ao mesmo tempo, esses programas incluem a
possibilidade de ser interrompidos a qualquer mo-
mento sem perder a integridade. Aqui a arte reage ao
paradoxo da urgência produzido pela teoria materia-
lista e seu chamado à ação. Por um lado, nossa fini-
tude, nossa falta de tempo ontológica, nos compele a
abandonar o estado de contemplação e passividade e
começar a agir. Contudo, essa mesma falta de tempo
dita uma forma de ação que não se dirige a um objeti-
vo específico e que pode ser interrompida a qualquer
momento. Essa ação é concebida desde o início como
algo sem fim específico – ao contrário de uma ação
que termina quando seu objetivo é atingido. Logo,
a ação artística se torna infinitamente passível de
continuação e/ou repetição. Aqui, a falta de tempo
é transformada em superávit de tempo – de fato, em
superávit infinito de tempo.
123
É característico que a operação da chamada este-
tização da realidade se efetue precisamente por essa
mudança de uma interpretação teleológica da ação
histórica para uma interpretação não teleológica. Por
exemplo, não é por acaso que Che Guevara se tornou
o símbolo estético do movimento revolucionário: to-
dos os seus empreendimentos revolucionários fracas-
saram. Mas é por essa razão que o espectador se desvia
do objetivo da ação revolucionária para a vida de um
herói revolucionário que fracassou na busca dos seus
objetivos. Essa vida se autorrevela radiosa e fascinan-
te, sem preocupação com resultados práticos. Esses
exemplos, claro, podem se multiplicar.
Da mesma forma, pode-se argumentar que a per-
formance da teoria pela arte também implica a esteti-
zação da teoria. O surrealismo pode ser interpretado
como a estetização da psicanálise. No primeiro Mani-
festo do surrealismo, André Breton propôs, sabidamen-
te, a técnica da escrita automática. A ideia era escrever
tão depressa que nem o consciente nem o inconsciente
pudessem acompanhar o processo de escrita. Imita-se
aqui a prática psicanalítica da associação livre, mas
libertada de seu objetivo normativo. Mais tarde, após
ter lido Marx, Breton exortou os leitores do Segundo
manifesto a sacar um revólver e atirar aleatoriamente
na multidão; novamente a ação revolucionária se tor-
na algo sem propósito. Mesmo antes os dadaístas já
praticavam o discurso para além do significado e da
coerência – um discurso que poderia ser interrompi-
do a qualquer momento sem perder sua consistência.
124
O mesmo pode ser dito sobre os discursos de Jose-
ph Beuys, eram excessivamente longos, mas podiam
ser interrompidos a qualquer momento, já que não
estavam submetidos ao objetivo de desenvolver um
argumento. O mesmo pode ser dito de muitas práti-
cas artísticas contemporâneas: elas podem ser inter-
rompidas ou reativadas a qualquer momento. Assim,
o fracasso se torna impossível, já que o critério para o
sucesso está ausente. Ora, muitas pessoas do mundo
da arte deploram o fato de esse tipo de arte não ser
e não poder ser bem-sucedido na “vida real”. Aqui
a vida real é entendida como história, e o sucesso,
como sucesso histórico. Já mostrei que a noção de
história não coincide com a noção de vida – em par-
ticular com a noção de “vida real” – porque a história
é uma construção ideológica baseada no conceito de
movimento progressivo em direção a certo télos. Esse
modelo teleológico de história progressiva tem raízes
na teologia cristã. Ele não corresponde à visão pós-
-cristã, pós-filosófica, materialista do mundo. A arte
é emancipatória. A arte transforma o mundo e nos
liberta. Mas faz isso, precisamente, ao nos libertar da
história – ao libertar a vida da história.
A filosofia clássica era emancipatória porque pro-
testava contra a regra militar aristocrática e religiosa
que suprimia a razão – e o ser humano individual,
portador da razão. O Iluminismo queria transformar
o mundo libertando a razão. Hoje, depois de Nietzs-
che, Deleuze e muitos outros, tendemos a acreditar
que a razão não nos liberta, mas nos suprime. Ago-
125
ra queremos mudar o mundo para libertar a vida –
que tem sido encarada, progressivamente, como uma
condição mais fundamental de existência que a razão.
De fato, a vida nos parece subjugada e oprimida pelas
mesmas instituições que se autoproclamam mode-
los de progresso racional, tendo a promoção da vida
como seu objetivo. Libertar a nós mesmos do poder
dessas instituições significa rejeitar suas reivindica-
ções universais, baseadas nos preceitos da razão.
A teoria nos chama a mudar não meramente este
ou aquele aspecto do mundo, mas o mundo como
um todo. Contudo, aqui se impõe a questão: é possí-
vel essa mudança total, revolucionária, e não apenas
gradual, particular e evolutiva? A teoria acredita que
toda ação transformadora pode ser efetuada porque
não há garantia metafísica e ontológica para o status
quo, para uma ordem dominante, para as realidades
existentes. Mas, ao mesmo tempo, tampouco há ga-
rantia ontológica para o sucesso da mudança total
– nenhuma divina providência, nenhum poder da
natureza ou razão, direção da história ou outro resul-
tado determinável. O marxismo clássico proclamou
sua fé numa garantia de mudança total (na forma de
forças produtivas que fariam as estruturas sociais ex-
plodirem), e Nietzsche acreditava no poder do desejo
de explodir todas as convenções civilizadoras, mas
hoje temos dificuldade de acreditar na colaboração
desses poderes infinitos. Uma vez rejeitada a infini-
tude do espírito, faz pouco sentido substituí-la por
uma teologia da produção ou do desejo. Mas então,
126
se somos mortais e finitos, como conseguiremos mu-
dar o mundo? Como já sugeri, os critérios de sucesso
e fracasso são precisamente o que define o mundo em
sua totalidade. Assim, se mudarmos – melhor ainda,
se abolirmos – esses critérios, nós de fato transforma-
remos o mundo em sua totalidade. E, como tentei
mostrar, a arte pode fazê-lo, e de fato já o fez.
Claro que alguém ainda poderia perguntar: qual
a relevância social desse tipo de performance artís-
tica não instrumental, não teleológica da vida? Eu
sugiro que a relevância é a produção do social en-
quanto tal. Realmente, não devemos pensar que o
social está sempre entre nós. A sociedade é uma área
de igualdade e similaridade: na origem, a sociedade,
ou politeia, surgiu em Atenas como uma sociedade
de iguais e similares. As sociedades gregas antigas
– modelo de todas as sociedades modernas – eram
baseadas em semelhanças tais como formação, gosto
estético, linguagem. Seus membros eram efetivamen-
te intercambiáveis por meio de uma orientação física
e cultural direcionada para valores compartilhados.
Cada membro de uma sociedade grega podia fazer o
que os demais faziam nas áreas de esporte, retórica ou
guerra. Mas as sociedades tradicionais baseadas em
semelhanças não existem mais.
Hoje não vivemos numa sociedade da similari-
dade, mas numa sociedade da diferença. E a socie-
dade da diferença não é uma politeia, mas sim uma
economia de mercado. Se vivo numa sociedade em
que todos são especializados e possuem sua iden-
127
tidade cultural específica, eu ofereço aos outros o
que tenho e o que posso fazer, recebendo deles o
que têm e o que podem fazer. Essas redes de troca
também funcionam como redes de comunicação,
como rizomas. A liberdade de comunicação é ape-
nas um caso especial do livre mercado. No entan-
to, a teoria e a arte que performa teoria produzem
similaridade para além das diferenças induzidas
pela economia de mercado, e assim teoria e arte
compensam a ausência das semelhanças tradicio-
nais. Não por acaso, hoje o apelo à solidariedade
humana quase nunca é acompanhado de um apelo
às origens comuns, ao bom senso e à razão, ou à
natureza humana compartilhada, mas ao perigo da
morte comum – por exemplo, por meio de uma
guerra nuclear ou do aquecimento global. Somos
diferentes em nossos modos de existência, mas si-
milares em nossa mortalidade.
Antigamente, filósofos e artistas queriam ser (e en-
tendiam a si mesmos como) seres humanos excepcio-
nais, capazes de criar ideias e coisas extraordinárias.
Mas hoje teóricos e artistas não desejam ser excepcionais
– ao contrário, querem ser como qualquer outra pessoa.
Seu tópico preferido é a vida cotidiana. Eles querem
ser típicos, inespecíficos, inidentificáveis, irreconhecí-
veis na multidão. E querem fazer o que todo mundo
faz: preparar comida (Rirkrit Tiravanija) ou chutar um
cubo de gelo ao longo de uma estrada (Francis Alÿs).
Kant já afirmava que a arte não é algo da ordem da
verdade, mas do gosto, e que podia e devia ser debatida
128
por todos. A discussão sobre a arte está aberta a todos
porque, por definição, ninguém pode ser especialista
em arte, mas apenas um diletante. Isso significa que
desde o começo a arte foi social e se torna democrática
se as fronteiras da alta sociedade são abolidas (ainda um
modelo de sociedade para Kant). Entretanto, da época
da vanguarda em diante, a arte tornou-se não apenas
objeto de discussão, liberta do conceito de verdade,
mas uma atividade universal, inespecífica, improduti-
va, geralmente acessível e livre de qualquer critério de
sucesso. A arte contemporânea avançada é basicamen-
te produção de arte sem produto. É uma atividade na
qual todos podem participar, uma atividade totalmente
inclusiva e verdadeiramente igualitária.
Ao fazer essas afirmações, não tenho em mente
algo como a estética relacional. Também não acre-
dito que, compreendida dessa forma, a arte possa ser
verdadeiramente participativa ou democrática. Ten-
tarei agora explicar por quê. Nosso entendimento de
democracia é baseado na concepção do Estado na-
cional. Não possuímos uma estrutura de democra-
cia universal, transcendendo fronteiras nacionais, e
nunca tivemos esse tipo de democracia no passado.
Não podemos dizer, portanto, como seria de fato
uma democracia universal e igualitária. Além disso,
a democracia é tradicionalmente entendida como o
governo da maioria, e é claro que podemos imagi-
nar uma democracia que não exclua nenhuma mino-
ria e que opere por consenso, mas, ainda assim, esse
consenso necessariamente incluirá somente pessoas
129
“normais e razoáveis”. Nunca incluirá os “loucos”, as
crianças etc.
Também não incluirá os animais. Não incluirá
os pássaros, embora, como sabemos, são Francisco
tenha pregado sermões para os pássaros e os ani-
mais. Também não incluirá as pedras, e, no entanto,
aprendemos com Freud que há uma pulsão que nos
compele ao estado de pedra. Também não incluirá
as máquinas, ainda que muitos artistas e teóricos te-
nham desejado se tornar máquinas. Em outras pala-
vras, o artista é alguém que não é apenas social, mas
supersocial, para usar o termo cunhado por Gabriel
Tarde ao construir sua teoria da imitação.45 O artista
imita e se estabelece como similar e igual a inúmeros
organismos, figuras, objetos e fenômenos que nun-
ca serão parte de um processo democrático. Usando
uma frase bastante precisa de George Orwell, alguns
artistas, de fato, são mais iguais que outros. Enquan-
to a arte contemporânea é frequentemente criticada
por ser elitista demais e não social o bastante, a ver-
dade é o contrário: arte e artistas são supersociais. E,
como observa acertadamente Gabriel Tarde, para se
tornar verdadeiramente supersocial é preciso isolar-se
da sociedade.
45
Gabriel Tarde. The Laws of Imitation. Nova York: Henry Holt and Co.,
1903, p. 88.
130
Entrando no fluxo:
o museu entre o arquivo e
a obra de arte total 46
46
“Entering the Flow: Museum between Archive and Gesamtkunstwerk”.
Artigo originalmente apresentado em palestra no Museu Reina Sophia,
Madri, 8 nov. 2013, e publicado em e-flux journal 50, dez. 2013.
131
tornando-se o meio da memória histórica, operando
como testemunhas de eventos, tragédias, esperanças e
projetos que de outro modo seriam esquecidos. Nesse
sentido, artistas e instituições de arte compartilharam
um projeto fundamental de resistir à destruição mate-
rial e ao esquecimento histórico.
Os museus de arte, em seu formato tradicional,
baseavam-se no conceito de uma história da arte uni-
versal. Assim, seus curadores selecionavam obras de
arte que pareciam ter relevância e valor universais.
Essas práticas seletivas e especialmente suas reivindi-
cações universalistas têm sido criticadas, em décadas
recentes, em nome das identidades culturais específi-
cas que elas ignoravam e até suprimiam. Não acredi-
tamos mais em perspectivas e identidades universalis-
tas, idealistas ou trans-históricas. A forma antiga de
pensamento, materialista, nos concede apenas papéis
enraizados nas condições materiais de nossa exis-
tência: identidades culturais nacionais e regionais,
ou identidades baseadas em raça, classe e gênero. E
há um número potencialmente infinito desses tipos
específicos de identidade, uma vez que as condições
materiais da existência humana são muito diversas
e estão em permanente transformação. Entretanto,
nesse caso, a missão inicial do museu de arte, de re-
sistir ao tempo e tornar-se um meio da memória da
humanidade, chega a um impasse: se há um número
potencialmente infinito de identidades e memórias,
o museu se desmonta, já que é incapaz de guardar
todas elas.
132
Embora tenha surgido como um tipo de substi-
tuto laico para a memória divina, durante o Ilumi-
nismo e a Revolução Francesa, o museu é apenas
um objeto material finito – ao contrário da memória
divina, que, como sabemos, pode guardar todas as
identidades de todas as pessoas que viveram no pas-
sado, vivem agora e viverão no futuro.
Mas essa visão de um número infinito de identi-
dades específicas será ela mesma correta, verdadeira-
mente materialista? Eu sugiro que não. O discurso
materialista, do modo como foi inicialmente desen-
volvido por Marx e Nietzsche, descreve o mundo em
movimento permanente, em fluxo – seja o fluxo da
dinâmica das forças produtivas, seja o do impulso
dionisíaco. Segundo essa tradição materialista, todas
as coisas são finitas, mas todas estão envolvidas no
fluxo material infinito. Então, existe uma universali-
dade materialista, a universalidade do fluxo.
No entanto, é possível para o ser humano entrar
nesse fluxo, obter acesso a essa totalidade? Num cer-
to nível muito banal, a resposta, claro, é sim: corpos
humanos são coisas entre outras coisas no mundo e,
portanto, estão sujeitos ao mesmo fluxo universal.
Eles adoecem, envelhecem e morrem. No entanto,
mesmo que os corpos humanos estejam sujeitos ao
envelhecimento, à morte e à dissolução no fluxo dos
processos materiais, isso não quer dizer que suas ins-
crições nos arquivos culturais também estejam em
fluxo. Pode-se nascer, viver e morrer com o mesmo
nome, tendo a mesma cidadania, o mesmo curricu-
133
lum vitae e o mesmo website – o que significa perma-
necer a mesma pessoa. Nossos corpos, assim, não são
os únicos suportes materiais da nossa pessoa. Desde
o momento em que nascemos estamos inscritos em
certas ordens sociais – sem o nosso consentimento e
muitas vezes até sem o nosso conhecimento. Os su-
portes materiais de nossas personalidades são arqui-
vos do Estado, registros médicos, senhas para certos
sites da internet etc. Claro que em algum momento
esses arquivos também serão destruídos pelo fluxo
material. Mas essa destruição leva um tempo que não
é comensurável em relação ao de nossas próprias vi-
das. Então, existe uma tensão entre nosso modo de
existência material, físico e corporal – temporário
e sujeito ao tempo – e nossa inscrição nos arquivos
culturais, que, embora também materiais, são muito
mais estáveis que nossos próprios corpos.
Museus tradicionais de arte são parte desses arqui-
vos culturais – mesmo quando reivindicam represen-
tar a subjetividade, personalidade e individualidade
dos artistas de forma mais imediata e mais rica que em
outros arquivos culturais. Museus de arte, como todos
os demais arquivos culturais, operam por meio da res-
tauração e da conservação. Novamente: obras de arte,
sendo objetos materiais específicos – corpos de arte,
por assim dizer –, são perecíveis. Mas o mesmo não
pode ser dito sobre eles como formas visíveis, publi-
camente acessíveis. Enquanto seu suporte material se
deteriora e se desfaz, a forma de uma obra de arte pode
ser restaurada ou copiada, e posta numa base material
134
diferente. A história da arte manifesta os dois tipos
de substituição: tanto de antigos suportes por novos
quanto os esforços de restauração e reconstrução. Pois
a forma individual de uma obra de arte permanece
intacta na medida em que se inscreve nos arquivos da
história da arte – sendo apenas marginalmente afe-
tada pelo fluxo material, se ainda for este o caso. E
acreditamos que é precisamente essa forma que, após
a morte do(a) artista, manifesta de algum modo sua
alma – ou, ao menos, certo Zeitgeist ou identidade
cultural que desapareceu.
Podemos então afirmar que o sistema tradicio-
nal de arte está baseado na dessincronização entre
o tempo da existência humana material, individual,
e o tempo de sua representação cultural. No entan-
to, os artistas da vanguarda histórica e, mais tarde,
alguns artistas das décadas de 1960 e 1970 já tenta-
vam ressincronizar o destino do corpo humano com
seu modo de representação histórico – abraçando a
precariedade, a instabilidade e a finitude de nossa
existência material. Não para resistir ao fluxo do
tempo, mas para deixá-lo definir a própria obra em
busca de certa fluidez autoimpulsionada, em vez de
tentar tornar a obra, ou a si mesmo, um ser autoe-
ternizante. A ideia era tornar fluida a forma em si.
No entanto, surge a seguinte questão: qual é o efei-
to dessa precariedade radicalizada, dessa vontade de
ressincronizar o corpo vivo com sua representação
cultural, dentro da relação entre artistas e institui-
ções de arte?
135
Eu sugeriria que a relação entre essas entidades
passou por dois períodos diferentes: o primeiro é a
inimizade da parte do artista contra o sistema de arte
e, especialmente, os museus de arte, culminando em
tentativas de destruí-los em nome da arte viva. O
segundo abrange a lenta metamorfose dos próprios
museus em palcos nos quais o fluxo do tempo é ence-
nado. Se nos perguntarmos que forma institucional a
vanguarda clássica propunha como substituta para o
museu tradicional, a resposta é clara: a Gesamtkunst-
werk. Em outras palavras, o evento de arte total, en-
volvendo tudo e todos – substituto de um espaço to-
talizante para a representação artística transtemporal
de tudo e todos.
Wagner introduziu a noção de Gesamtkunstwerk
em seu tratado programático A obra de arte do fu-
turo (1849-1850). Ele escreveu o livro no exílio, em
Zurique, após o fim dos levantes revolucionários na
Alemanha em 1848. No texto, ele desenvolve o pro-
jeto para uma obra de arte (do futuro) fortemente
influenciado pela filosofia materialista de Ludwig
Feuerbach. No começo de seu tratado, Wagner afir-
ma que o artista típico de seu tempo é um egoís-
ta que, em completo isolamento da vida do povo,
pratica sua arte exclusivamente para deleite dos ri-
cos; assim fazendo, ele segue os ditames da moda.
O artista do futuro, Wagner afirma, deve tornar-se
radicalmente diferente: “Ele agora só pode desejar o
universal, o verdadeiro e o incondicional; ele se ren-
de não ao amor por este ou aquele objeto particular,
136
mas ao próprio vasto Amor. Assim, o egoísta torna-se
um comunista”.47
Então, é possível tornar-se comunista apenas pela
autorrenúncia – pela autodissolução no coletivo. Wag-
ner define seu pretendido herói da seguinte forma:
47
Richard Wagner. The Art-Work of the Future and Other Works. Trad. W.
Ashton Ellis. Lincoln, NE: Bison Books, 1993, p. 94. [Ed. port.: A obra
de arte do futuro. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Antígona Editores
Refractários, 2003.]
48
Ibidem, p. 199.
137
personalidade, que ele também, em sua ação artísti-
ca, obedece a uma ordem da necessidade que consome
toda a individualidade do seu ser.49
49
Richard Wagner. The Art-Work of the Future and Other WorksI,
cit., p. 201.
138
cionista Internacional de Guy Debord. Mas o nome
contemporâneo dessa ditadura temporária e suicida é
diferente: ela se chama “projeto curatorial”.
Harald Szeemann, que iniciou a virada curatorial
na arte contemporânea, era tão fascinado pela ideia
da Gesamtkunstwerk que organizou uma exposição
intitulada Hang zum Gesamtkunstwerk [“Tendên-
cia à Gesamtkunstwerk”] (1984). Considerando esse
show histórico, baseado na ideia da Gesamtkunstwerk,
torna-se necessário perguntar: qual é a principal di-
ferença entre a exposição tradicional e um projeto
curatorial moderno? A exposição tradicional trata seu
espaço como anônimo e neutro. Apenas as obras de
arte expostas são importantes, não o espaço em que
são exibidas. Assim, as obras de arte são percebidas e
tratadas como potencialmente eternas – e o espaço da
exposição, como uma estação acidental, contingente,
onde as obras imortais desfrutam um descanso tem-
porário de suas perambulações pelo mundo material.
Em contraste, a instalação – seja ela artística ou cura-
torial – inscreve no espaço material contingente as
obras de arte exibidas. (Aqui se pode ver uma analo-
gia entre essa mudança e a mudança do ator de teatro
ou de cinema para o diretor de teatro e de cinema.)
Então é o projeto curatorial, e não a exposição, que
é a Gesamtkunstwerk, porque instrumentaliza todas
as obras de arte exibidas, fazendo que sirvam a um
propósito comum, formulado pelo curador. Ao mes-
mo tempo, a instalação curatorial ou artística é capaz
de incluir todos os tipos de objeto: obras de arte ou
139
processos duracionais, objetos cotidianos, documen-
tos, textos, e assim por diante. Todos esses elementos,
bem como a arquitetura do espaço, o som ou a luz,
perdem sua respectiva autonomia e começam a servir
à criação de um todo no qual os visitantes e especta-
dores também estão incluídos. Dessa forma, obras de
arte estacionárias do tipo tradicional tornam-se tem-
porais, sujeitas a determinado cenário que transforma
o modo como elas são percebidas durante o tempo
da instalação, porque esse modo depende do contex-
to em que as obras são apresentadas – e o contexto
começa a fluir. Portanto, em última instância, todo
projeto curatorial demonstra esse caráter acidental,
contingente, dinâmico e finito. Em outras palavras,
ele encena sua própria precariedade.
De fato, todo projeto curatorial mira necessaria-
mente a contradizer a narrativa histórica tradicional,
normativa, corporificada pela coleção permanente
do museu. Se tal contradição não acontece, o projeto
curatorial perde sua legitimidade. Pela mesma razão,
o próximo projeto curatorial deve contradizer o ante-
rior. Um novo curador é um novo ditador que apaga
os traços da ditadura anterior. Dessa forma, os museus
contemporâneos continuamente metamorfoseiam-se
de espaços para coleções permanentes em palcos para
projetos curatoriais temporários – Gesamtkunstwerke
temporárias. E o principal objetivo dessas ditaduras
curatoriais temporárias é colocar as coleções de arte
em fluxo – tornar a arte fluida, a fim de sincronizá-la
com o fluxo do tempo.
140
Como já foi mencionado, no início desse processo
de sincronização os artistas queriam destruir os mu-
seus de arte. Malevich oferece um bom exemplo dis-
so em seu curto mas importante texto “On the Mu-
seum”, de 1919. Na época, o novo governo soviético
temia que os velhos museus russos e suas coleções de
arte fossem destruídos pela guerra civil e o colapso
generalizado das instituições do Estado e da econo-
mia. O Partido Comunista reagiu tentando proteger
e salvar essas coleções. Em seu texto, Malevich pro-
testa contra essa política pró-museu, pedindo que o
Estado soviético não interviesse em favor daquelas
antigas coleções de arte, porque sua destruição pode-
ria abrir caminho para uma arte verdadeira, viva. Ele
escreve, em especial:
50
Kazimir Malevich. “On the Museum”, cit.
142
claro que, no caso da internet, os espectadores perdem
o acesso direto às obras de arte originais – e com isso a
aura de autenticidade desaparece. Assim, os visitantes
de museus são convidados a fazer uma peregrinação
aos museus de arte em busca do santo graal da origi-
nalidade e da autenticidade.
Nesse ponto, no entanto, devemos recordar que,
para Walter Benjamin, que introduziu originalmente
a noção de aura, as obras de arte perdem sua aura
precisamente pela musealização. O museu já retira os
objetos de arte dos locais originais de inscrição para
o seu histórico aqui e agora. Portanto, para Benja-
min, obras de arte exibidas em museus já são cópias
de si mesmas – destituídas de sua aura original de au-
tenticidade. Nesse sentido, a internet e seus websites
especializados em arte apenas continuam o processo
de desauratização da arte iniciado pelos museus de
arte. Muitos críticos culturais, por isso, achavam – e
ainda acham –, que os museus de arte públicos aca-
bariam desaparecendo, incapazes de competir eco-
nomicamente com colecionadores particulares ope-
rando em um mercado de arte cada vez mais caro,
sendo substituídos por arquivos digitais, mais bara-
tos e acessíveis.
No entanto, a relação entre a internet e o museu
muda radicalmente se começamos a entender o museu
não como um depósito de obras de arte, mas como
um palco para o fluxo de eventos de arte. De fato, o
museu hoje deixou de ser um espaço para a contem-
plação de coisas imóveis. Em vez disso, tornou-se um
143
lugar onde coisas acontecem. Eventos realizados pelo
museu hoje incluem não só projetos curatoriais como
também palestras, conferências, leituras, projeções,
concertos, visitas guiadas etc. Hoje, o fluxo de eventos
dentro do museu é frequentemente mais rápido que
fora de suas paredes. Nesse meio-tempo, nos acos-
tumamos a indagar: o que estará acontecendo nes-
te ou naquele museu? E, para encontrar as informa-
ções relevantes, buscamos nos websites dos museus,
e também em blogs, páginas de mídias sociais como
Twitter etc. Visitamos os museus com muito menos
frequência do que visitamos seus websites e seguimos
suas atividades na internet. E, na internet, o museu
funciona como um blog. Assim, o museu contempo-
râneo não apresenta a história da arte universal, mas
sua própria história – como uma cadeia de eventos
realizados pelo próprio museu. Mas principalmente:
a internet se relaciona com o museu no modo de do-
cumentação, não no modo de reprodução. Claro, as
coleções permanentes do museu podem ser reprodu-
zidas na internet, mas as atividades do museu podem
apenas ser registradas.
De fato, não se pode reproduzir um projeto cura-
torial, apenas documentá-lo. A razão para isso é du-
pla. Primeiro, o projeto curatorial é um evento, e não
é possível reproduzir um evento porque este não pode
ser isolado do fluxo do tempo. Uma obra de arte
pode ser reproduzida porque tem um status atempo-
ral desde o princípio, mas o processo de produção e
exposição dessa obra pode apenas ser documentado.
144
Segundo, uma instalação curatorial e artística é uma
Gesamtkunstwerk que só pode ser experimentada de
dentro. A obra de arte tradicional é percebida a par-
tir de uma posição externa, mas um evento artístico
é experimentado de uma posição interna ao espaço
no qual o evento acontece. Consequentemente, os
visitantes de uma instalação curatorial ou artísti-
ca entram no espaço da instalação e começam a se
posicionar dentro desse espaço para experimentá-lo
de dentro, não de fora. No entanto, o movimento de
uma câmera jamais coincide completamente com o
movimento do olhar individual de um visitante –en-
quanto a posição de um pintor, ou de um fotógrafo
reproduzindo uma pintura, coincide com o olhar de
um espectador mediano. E quando alguma forma de
documentação tenta reconstruir a visão interna e a
experiência de um evento de arte a partir de posições
diferentes, ela necessariamente se torna fragmentária.
É por isso que podemos re-conhecer a reprodução
tradicional de uma obra de arte, mas nunca somos
capazes de reconhecer totalmente a documentação de
um evento de arte.
Atualmente, fala-se o tempo todo de teatra-
lização do museu. Hoje em dia as pessoas vão às
aberturas das exposições como no passado iam a
uma estreia na ópera ou no teatro. Essa teatraliza-
ção do museu muitas vezes é criticada, já que pode
ser vista como sinal do envolvimento do museu na
indústria contemporânea do entretenimento. Há,
entretanto, uma diferença crucial entre o espaço
145
de instalação e o espaço teatral. No teatro os es-
pectadores permanecem posicionados fora e diante
do palco, mas no museu eles entram no palco e se
veem dentro do espetáculo.
Assim, o museu contemporâneo realiza o sonho
modernista que o próprio teatro nunca foi capaz de
realizar completamente: o de um teatro no qual não
há limite claro entre palco e plateia. Embora Wagner
fale da Gesamtkunstwerk como um evento que apa-
ga os limites entre palco e plateia, a Festspielhaus de
Bayreuth, construída sob sua direção, não eliminou
essa fronteira, mas a radicalizou. O teatro contem-
porâneo, incluindo Bayreuth, usa cada vez mais arte
no palco, especialmente arte contemporânea – mas
ainda não apaga a diferença entre palco e plateia. A
inclusão da instalação de arte contemporânea perma-
nece inscrita na cenografia tradicional. No entanto,
no contexto da instalação artística e curatorial, o pú-
blico é integrado ao espaço da instalação e se torna
parte dele.
O mesmo pode ser dito da diversão em massa.
Um concerto pop ou uma projeção de filme cria
comunidades entre os presentes. Porém, a cultura
de massa, em si, não pode tornar essas comunida-
des autorreflexivas, não pode tematizar o evento de
construção dessas comunidades transitórias, precá-
rias, contingentes. A perspectiva dos espectadores
durante um concerto pop ou uma projeção de filme
é demasiadamente frontal – em direção ao palco ou
à tela – para que eles percebam e reflitam adequada-
146
mente sobre o espaço em que se encontram, ou sobre
as comunidades às quais temporariamente perten-
cem. Esse é o tipo de reflexão que instalações de arte
avançadas nos propiciam. Tomando emprestado o
vocabulário de Marshall McLuhan, o meio da insta-
lação é um meio frio – ao contrário da internet, que
obviamente é um meio quente, já que demanda que
os usuários estejam espacialmente separados e com a
atenção focada numa tela. Resfriando todas as outras
mídias, a instalação de arte contemporânea oferece
aos visitantes a possibilidade de autorreflexão – e de
uma reflexão sobre o evento imediato da sua coexis-
tência com outros visitantes e objetos expostos – que
outras mídias são incapazes de oferecer no mesmo
grau. Aqui, seres humanos individuais são confron-
tados com seu destino comum – com suas condições
de existência radicalmente contingentes, transitórias
e precárias.
Na realidade, o museu tradicional, como lugar de
coisas, e não de eventos, pode ser igualmente acusado
de funcionar como parte do mercado de arte. Esse
tipo de crítica é fácil de formular – e é universal o
suficiente para ser aplicada a qualquer estratégia ar-
tística possível. Mas, como sabemos, o museu tradi-
cional não apenas exibia certas coisas e imagens; ele
também permitia a reflexão teórica e a análise por
meio da comparação histórica. A arte moderna não
produziu apenas coisas e imagens, ela também ana-
lisou a coisidade das coisas e a estrutura da imagem.
Da mesma forma, o museu de arte não encena ape-
147
nas eventos, ele é também um meio para investigar
o evento, seus limites e estrutura. Se a arte moderna
clássica investigou e analisou a coisidade das coisas,
a arte contemporânea começa a fazer o mesmo em
relação aos eventos: passou a analisar criticamente a
“eventidade” dos eventos. Essa investigação toma for-
mas diferentes, mas me parece que seu ponto focal
é a reflexão sobre a relação entre um evento e sua
documentação – análoga à reflexão sobre a relação
entre um original e sua reprodução, central à arte do
modernismo e do pós-modernismo. Hoje o número
de documentações de arte não para de crescer. Come-
çam-se também a documentar performances, ações,
exposições, palestras, concertos e projetos artísticos,
que se tornam cada vez mais importantes na consti-
tuição da arte contemporânea.
Passam-se a documentar, também, trabalhos de
artistas que produzem obras de arte de modo mais
convencional, já que usam cada vez mais a internet
ou pelo menos um computador pessoal durante seu
processo de trabalho. Isso nos oferece a possibilidade
de acompanhar o processo de produção de arte do
começo ao fim, já que o uso das técnicas digitais é
observável. Aqui, o limite tradicional entre a produ-
ção e a exposição de arte começa a se apagar. Tradi-
cionalmente, o(a) artista produzia uma obra em seu
estúdio, escondido(a) do público, e depois expunha
o resultado, o produto – uma obra que acumulou e
recuperou o tempo de ausência. Esse tempo de ausên-
cia temporária é constitutivo daquilo que chamamos
148
de processo criativo – de fato, é precisamente o que
chamamos de processo criativo.
André Breton conta a história de um poeta fran-
cês que, quando ia dormir, colocava em sua porta
um cartaz que dizia: “Silêncio, por favor – o poeta
está trabalhando”. Essa anedota resume a percepção
tradicional do trabalho criativo: o trabalho criativo
é criativo porque tem lugar fora do controle públi-
co – e mesmo fora do controle consciente do autor.
Esse tempo de ausência pode durar dias, meses, anos
– até uma vida inteira. Apenas no final desse perío-
do de ausência esperava-se que o autor apresentasse
um trabalho (talvez encontrado postumamente entre
seus papéis), que seria então aceito como criativo jus-
tamente porque parecia surgir do nada.
A internet e o computador, no entanto, geralmen-
te são locais de trabalho coletivos, visíveis, que po-
dem ser observados e vigiados. Tendemos a falar da
internet em termos de um fluxo infinito de dados
que transcende os limites do nosso controle. Mas, na
realidade, a internet é uma máquina de interrupção e
reversão do fluxo de dados. A inobservabilidade da in-
ternet é um mito. O meio da internet é a eletricidade,
e o suprimento da eletricidade é finito. Assim, a inter-
net não pode suportar um fluxo infinito de dados. A
internet está baseada em um número finito de cabos,
terminais, computadores, telefones celulares e outros
equipamentos. Sua eficiência é baseada precisamente
na sua finitude e, portanto, na sua observabilidade.
Ferramentas de busca como o Google demonstram
149
isso. Hoje se ouve muito a respeito do crescente grau
de vigilância, especialmente on-line. Mas a vigilância
não é algo externo à internet nem meramente um uso
técnico específico de seus serviços. A internet é essen-
cialmente uma máquina de vigilância. Ela divide o
fluxo de dados em operações pequenas, reversíveis e
passíveis de rastreamento, expondo assim todo usuá-
rio à vigilância – real ou potencial. A internet cria um
campo de visibilidade, acessibilidade e transparência
absolutas.
Se o público acompanha minha atividade o tempo
todo, então não preciso apresentar produto nenhum.
O processo já é o produto. O artista desconhecido de
Balzac, que nunca conseguia terminar sua obra-pri-
ma, não teria problema nenhum nessas novas condi-
ções: a documentação dos seus esforços constituiria
sua obra-prima e ele se tornaria famoso. A documen-
tação do ato de trabalhar em uma obra de arte já é
uma obra de arte. Com a internet, o tempo se torna
espaço de fato – o espaço visível da vigilância perma-
nente. Se a arte se tornou um fluxo, ela flui em modo
de autodocumentação. Aqui a ação é simultânea a
sua documentação, a sua inscrição, e essa inscrição,
simultaneamente, torna-se informação disseminada
pela internet, instantaneamente acessível a todos. Isso
significa que o trabalho de arte contemporânea pode
não produzir um produto e ainda assim permanecer
produtivo. Mas novamente: se a internet assume o
papel do museu como lugar de memória – já que a
internet registra e documenta as atividades do(da) ar-
150
tista, antes mesmo de a obra chegar ao museu –, qual
é o objetivo do museu hoje?
As exposições contemporâneas nos museus estão
repletas de documentação de eventos artísticos passa-
dos, exposta em conjunto com obras de arte tradicio-
nais. Assim, o museu transforma a documentação de
um evento antigo em elemento de um evento novo.
Ele atribui a essa documentação um novo aqui e ago-
ra – e lhe confere, assim, uma nova aura. Mas, ao
contrário da reprodução, a documentação não pode
ser facilmente integrada à contemporaneidade. A do-
cumentação de um evento sempre produz a nostal-
gia de uma presença perdida, de uma oportunidade
perdida. Ela não apaga a diferença entre passado e
presente, como a reprodução tende a fazer; em vez
disso, torna óbvia a lacuna entre passado e presente
– e, dessa forma, tematiza o fluxo do tempo. Hei-
degger descreveu a totalidade do processo do mundo
como um evento encenado pelo Ser. Ele acreditava
que só podemos ter acesso à eventidade desse evento
se o próprio Ser nos oferecer essa possibilidade – por
meio de uma liberação do ser (Lichtung des Seins). O
museu de hoje é um lugar onde a liberação do ser é
artificialmente encenada.
Num mundo em que o objetivo de interromper
o fluxo do tempo é assumido pela internet, a função
do museu torna-se a de encenar o fluxo, realizando
eventos que estão sincronizados com as existências
dos espectadores. Isso muda a topologia da nossa re-
lação com a arte. A posição hermenêutica tradicional
151
em relação à arte requeria o olhar externo do espec-
tador para penetrar a obra de arte, descobrir as in-
tenções artísticas, as forças sociais ou energias vitais
que davam à obra sua forma – do exterior da obra
em direção ao seu interior. O olhar do visitante con-
temporâneo do museu é, no entanto e em contraste,
direcionado de dentro do evento artístico para o seu
exterior: em direção à possível vigilância externa do
evento e seu processo de documentação, em direção
ao posicionamento eventual dessa documentação no
espaço midiático e nos arquivos culturais – em ou-
tras palavras, em direção aos limites espaciais desse
evento. E também em direção aos limites temporais
desse evento – porque, quando somos inseridos em
um evento, não podemos saber quando ele começou
ou quando terminará.
O sistema da arte geralmente é caracterizado por
uma relação assimétrica entre os olhares do produtor
de arte e do espectador de arte. Esses dois olhares
quase nunca se cruzam. No passado, os artistas per-
diam o controle sobre o olhar do espectador ao expor
suas obras de arte: independentemente do que alguns
teóricos de arte afirmam, a obra de arte é apenas uma
coisa, e não pode encontrar o olhar do espectador.
Assim, nas condições do museu tradicional, o olhar
do espectador se encontrava numa posição de con-
trole soberano – embora essa soberania pudesse ser
indiretamente manipulada pelos curadores do mu-
seu, através de certas estratégias de pré-seleção, posi-
cionamento, justaposição, iluminação etc. No entan-
152
to, quando o museu começa a funcionar como uma
cadeia de eventos, a configuração dos olhares muda.
O(A) visitante perde sua soberania de uma forma ób-
via demais. O(A) visitante é posto(a) dentro de um
evento e não pode conhecer o olhar da câmera que
documenta esse evento – nem o olhar secundário do
editor que faz o trabalho de pós-produção desse do-
cumento, nem o olhar de um posterior espectador
desse documento.
É por isso que, ao visitar exposições de museu
contemporâneas, somos confrontados com a irrever-
sibilidade do tempo – sabemos que essas exposições
são meramente temporárias. Se visitarmos o mesmo
museu após certo tempo, as únicas coisas que terão
permanecido serão os documentos: um catálogo, um
filme, um website. Mas o que essas coisas nos ofe-
recem é necessariamente incomensurável em relação
a nossa própria experiência, já que nossa perspecti-
va, nosso olhar, é assimétrica em relação ao olhar da
câmera – esses olhares não podem coincidir, como
poderiam no caso da documentação de uma ópera
ou de um balé. Essa é uma das razões de certo tipo
de nostalgia que necessariamente sentimos quando
somos confrontados com documentos de eventos ar-
tísticos passados, sejam exposições ou performances.
Essa nostalgia provoca o desejo de revisitar o evento
“como realmente foi”.
Recentemente, em Veneza, a exposição When
Attitudes Become Form foi remontada na Fondazio-
ne Prada. Foi uma remontagem muito profissional
153
– provocando uma nova onda, ainda mais forte, de
nostalgia. Algumas pessoas pensaram: “Ah, como
seria bom voltar aos anos 1960 e respirar a atmosfe-
ra maravilhosa daquele tempo”. E também: “Como
tudo na própria Bienal é horrível, e esse rebuliço que
ela gera, em comparação com a ascese sublime de
When Attitudes Become Form”. (Ao mesmo tempo, os
visitantes de uma geração mais jovem achavam a ex-
posição inexpressiva – só gostavam dos lindos guias
vestindo Prada.)
A sensação nostálgica que a documentação de
arte inevitavelmente traz me faz lembrar da antiga
nostalgia romântica da natureza. A arte era vista
como a documentação das belas ou sublimes expe-
riências estéticas oferecidas pela natureza. A docu-
mentação dessas experiências pela pintura parecia
mais frustrante que autêntica. Em outras palavras, se
a irreversibilidade do tempo e o sentimento de estar
dentro e não fora de um evento uma vez foram as ex-
periências privilegiadas oferecidas pela natureza, eles
agora se tornaram experiências privilegiadas da arte
contemporânea. E isso significa, precisamente, que
a arte contemporânea se tornou o meio para inves-
tigar a eventidade dos eventos: os diferentes modos
de uma experiência imediata dos eventos, sua relação
com a documentação e a prática do arquivo, os mo-
dos intelectuais e emocionais da nossa relação com a
documentação e assim por diante. Ora, se a temati-
zação da eventidade do evento se tornou, de fato, a
preocupação principal da arte contemporânea em ge-
154
ral e do museu de arte contemporânea em particular,
não faz sentido condenar o museu por realizar even-
tos de arte. Pelo contrário, hoje o museu se tornou a
principal ferramenta analítica para realizar e anali-
sar o evento como radicalmente contingente e irre-
versível – em meio a nossa civilização digitalmente
controlada, baseada em rastrear e proteger os traços
de nossa existência individual na esperança de tornar
tudo controlável e reversível. O museu é o lugar onde
a guerra assimétrica entre o olhar humano ordinário
e o olhar tecnologicamente armado tem lugar, mas
também onde essa guerra se revela – para que possa
ser tematizada e criticamente teorizada.
155
Sobre o novo51
51
“On the new”. Artigo originalmente publicado em Art Power. Cam-
bridge, Londres: The MIT Press, 2008, pp. 23-41.
156
de tudo, pelo modo como ela é representada em nos-
sos museus, a libertação do novo, entendida como li-
bertação da história da arte – e, quanto a esse aspecto,
da história como tal –, é experimentada pelo mundo
artístico, em primeiro lugar, como uma oportunida-
de de escapar do museu. Escapar do museu significa
tornar-se popular, vivo e presente fora do círculo fe-
chado do mundo estabelecido da arte, fora das pare-
des do museu. Portanto, me parece que o entusiasmo
pelo fim do novo na arte está ligado, em princípio, a
essa promessa de trazer a arte para a vida – para além
de todas as construções e considerações históricas,
para além da oposição entre o antigo e o novo.
Tanto artistas quanto teóricos da arte estão con-
tentes por finalmente se livrar do fardo da história,
da necessidade de dar o próximo passo e da obrigação
de se conformar às leis históricas e às exigências da-
quilo que é historicamente novo. Em vez disso, esses
artistas e teóricos querem ser política e culturalmente
engajados na realidade social; querem refletir sobre
suas próprias identidades culturais, exprimir seus de-
sejos individuais etc. Mas, acima de tudo, querem
mostrar-se genuinamente vivos e reais – em oposição
às construções abstratas e mortas representadas pelo
sistema de museus e pelo mercado de arte. Eviden-
temente, esse é um desejo completamente legítimo.
Mas, para sermos capazes de satisfazer esse desejo, de
uma arte verdadeiramente viva, temos que responder
à seguinte questão: quando e em que condições a arte
parece estar mais viva?
157
Há na modernidade uma tradição profunda-
mente enraizada de atacar a história, os museus,
as bibliotecas ou, de modo geral, os arquivos, em
nome da verdadeira vida. A biblioteca e o museu
são objetos preferenciais de ódio intenso para uma
maioria de autores e artistas modernos. Rousseau
admirava a destruição da famosa e antiga Biblioteca
de Alexandria; o Fausto de Goethe estava disposto
a fazer um pacto com o diabo se pudesse escapar à
biblioteca (e à obrigação de ler os seus livros). Nos
textos de artistas e teóricos modernos, o museu é
repetidamente descrito como um cemitério da arte,
e os curadores de museu, como coveiros. Segundo
essa tradição, a morte do museu – e da história da
arte corporificada pelo museu – deve ser interpre-
tada como a ressurreição de uma arte verdadeira,
viva, um desvio rumo à realidade verdadeira, à vida,
ao grande outro: se o museu morre, é a própria mor-
te que morre. Nós nos tornamos subitamente livres,
como se houvéssemos escapado de um tipo de es-
cravidão egípcia e estivéssemos prontos para viajar
à Terra Prometida da vida verdadeira. Tudo isso é
bastante compreensível, mesmo não sendo tão ób-
vio assim por que motivo o cativeiro egípcio da arte
acabaria só agora.
Seja como for, a questão que mais me interessa
nesse momento é outra, como eu disse: por que a arte
quer estar viva, e não morta? E o que significa para a
arte estar viva, ou parecer estar viva? Tentarei mostrar
que a própria lógica interna de coleção dos museus
158
compele o artista a entrar na realidade – na vida – e
a produzir uma arte que pareça estar viva. Tentarei
também mostrar que “estar vivo” significa, na reali-
dade, nada mais nada menos que ser novo.
Parece-me que os inúmeros discursos sobre a me-
mória histórica e sua representação frequentemente
negligenciam a relação complementar que existe en-
tre a realidade e o museu. O museu não é secundá-
rio à história “real”, tampouco é apenas um reflexo e
documentação do que “realmente” aconteceu fora de
suas paredes, segundo as leis autônomas do desenvol-
vimento histórico. O contrário é verdade: a própria
realidade é secundária em relação ao museu – o “real”
só pode ser definido em comparação com a coleção
do museu. Isso significa que qualquer mudança na
coleção do museu provoca uma mudança na nossa
percepção da própria realidade – afinal, a realidade
pode ser definida, nesse contexto, como a soma de
todas as coisas ainda não colecionadas. Logo, a his-
tória não pode ser compreendida como um processo
totalmente autônomo ocorrendo fora das paredes do
museu. Nossa imagem da realidade é determinada
pelo nosso conhecimento do museu.
Um caso exemplifica claramente como a relação
entre a realidade e os museus é recíproca: o caso do
museu de arte. Artistas modernos trabalhando após
o surgimento do museu moderno sabem (a despei-
to de todos os seus protestos e ressentimentos) que
trabalham principalmente para as coleções dos mu-
seus – pelo menos quando trabalham no contexto da
159
“grande arte”. Esses artistas sabem desde o princípio
que serão colecionados – e de fato querem ser cole-
cionados. Embora os dinossauros não soubessem que
eventualmente seriam representados em museus de
história natural, os artistas sabem que eventualmente
podem vir a ser representados em museus de história
da arte. Na mesma medida em que o comportamento
dos dinossauros não foi afetado – ao menos em cer-
to sentido – por sua futura representação no museu
moderno, o comportamento do artista moderno é
afetado pela consciência dessa possibilidade, e de for-
ma muito substancial. É óbvio que o museu só aceita
coisas que retira da vida real exterior às suas coleções,
e isso explica por que o(a) artista quer fazer sua arte
parecer viva e real.
O que está exposto no museu já é automatica-
mente considerado parte do passado, como algo já
morto. Se fora do museu encontramos algo que nos
faz pensar nas formas, posições e enfoques já repre-
sentados no museu, não vemos esse algo como real
ou vivo, mas como cópia morta do passado morto.
Então, se um(a) artista diz – como a maioria dos(as)
artistas diz – que quer escapar do museu, entrar pro-
priamente na vida, ser real, fazer uma arte verdadei-
ramente viva, isso só pode significar que o(a) artista
quer ser colecionado(a). Porque a única possibilidade
de ser colecionado(a) é transcendendo o museu e en-
trando na vida, criando algo diferente daquilo que
já foi colecionado. Mais uma vez: só o novo pode ser
reconhecido pelo olhar treinado no museu como real,
160
presente e vivo. Se você repete a arte já colecionada,
sua arte é qualificada pelo museu como meramente
kitsch e é rejeitada. Aqueles dinossauros virtuais, me-
ras cópias mortas de dinossauros já museografados,
podem ser mostrados, como sabemos, no contexto de
Parque dos Dinossauros (Jurassic Park) – no contexto
da diversão, do entretenimento –, mas não no museu.
O museu, nesse aspecto, é como uma igreja: primei-
ro você precisa ser pecador para se tornar um santo
– do contrário, continua a ser uma pessoa comum,
decente, sem nenhuma chance de fazer carreira nos
arquivos da memória de Deus. É por essa razão que,
paradoxalmente, quanto mais você tenta se libertar
do museu, mais é subjugado, do modo mais radical,
pela lógica de coleção do museu, e vice-versa.
É evidente que essa interpretação do que é novo,
real e vivo contradiz certa convicção arraigada, en-
contrada em muitos textos da vanguarda mais antiga
– a saber, a convicção de que o caminho para a vida
pode ser aberto apenas pela destruição do museu e
por um apagamento radical e extático do passado,
que se ergue entre nós e o nosso presente. Essa visão
do novo é poderosamente expressa, por exemplo, em
um texto curto, porém importante, de Kazimir Ma-
levich: “On the Museum”, de 1919. Na época, o novo
governo soviético temia que os velhos museus russos
e suas coleções de arte fossem destruídos pela guer-
ra civil e o colapso generalizado das instituições do
Estado e da economia. O Partido Comunista reagiu
tentando proteger e salvar essas coleções. Em seu tex-
161
to, Malevich protesta contra essa política pró-museu,
pedindo que o Estado soviético não interviesse em
favor daquelas antigas coleções de arte, porque sua
destruição poderia abrir caminho para uma arte ver-
dadeira, viva. Ele escreve, em especial:
52
Kazimir Malevich. “On the Museum”, cit.
162
tornado um dos símbolos mais reconhecidos do novo
na arte da época –, que não há nenhuma chance de “o
doce sorriso de Psiquê aparecer no meu quadrado pre-
to”, e que ele – o Quadrado preto – “nunca poderá ser
usado como cama (colchão) para fazer amor”.53 Ma-
levich detestava os monótonos rituais de fazer amor,
tanto quanto detestava as monótonas coleções dos
museus. Contudo, o mais importante é a convicção –
por trás dessa sua afirmação – de que uma arte nova,
original e inovadora seria inaceitável para coleções de
museus governadas pelas convenções do passado. Na
verdade, a situação era oposta na época de Malevich,
e de fato tem sido assim desde o surgimento do museu
como instituição moderna, no fim do século dezoito.
As coleções dos museus são governadas, na moderni-
dade, não por um gosto normativo, definido e bem
estabelecido, cuja origem está no passado. Ao contrá-
rio, é a ideia de representação histórica que obriga o
sistema de museus a colecionar, em primeiro lugar,
todos aqueles objetos característicos de certas épocas
históricas – incluindo a contemporânea. Essa noção
de representação histórica jamais foi questionada –
nem mesmo pela bibliografia pós-moderna recente,
que, por sua vez, se empenha em ser historicamente
nova, verdadeiramente contemporânea e atualizada.
Não se vai além da pergunta: quem, e o que, é novo o
suficiente para representar nossa própria época?
53
Kazimir Malevich. “Letter from Malevich to Benoit”. In: Essays on Art,
v. 1. Nova York: G. Wittenborn, 1971, p. 48.
163
Somente se o passado não for colecionado, se a arte
do passado não for protegida pelo museu, fará senti-
do – e se tornará até mesmo uma forma de obrigação
moral – permanecer fiel ao antigo, seguir tradições e
resistir ao trabalho destrutivo do tempo. As culturas
sem museu são “culturas frias”, como Lévi-Strauss as
definiu, e tentam preservar intactas suas identidades
por meio da constante reprodução do passado. Fa-
zem isso porque sentem a ameaça do esquecimento,
de uma perda total da memória histórica. No entan-
to, se o passado é colecionado e preservado nos mu-
seus, a reprodução de estilos, formas, convenções e
tradições antigas se torna desnecessária. Mais ainda,
a reprodução do antigo e do tradicional se torna uma
prática socialmente proibida ou, pelo menos, ingrata.
A fórmula mais geral da arte moderna não é “agora
sou livre para fazer algo novo”, e sim que já não é
mais possível continuar fazendo o velho. Como diz
Malevich, tornou-se impossível pintar a bunda gorda
da Vênus. Mas tornou-se impossível apenas porque o
museu existe. Se as obras de Rubens fossem realmen-
te queimadas, como Malevich sugeriu, isso de fato
abriria caminho para pintarmos novamente a bunda
gorda da Vênus. A estratégia da vanguarda não co-
meça com a abertura para maior liberdade, mas com
o surgimento de um novo tabu – o “tabu do museu”,
que proíbe a repetição do antigo, uma vez que o anti-
go já não desaparece, mas permanece exposto.
O museu não dita como o novo deve ser, ele apenas
mostra como este não deve ser, operando como um
164
demônio de Sócrates, que lhe dizia apenas o que não
fazer, nunca o que fazer. Podemos chamar essa voz
demoníaca, ou presença, de “curador interno”. Todo
artista moderno tem um curador interno lhe dizendo
o que não é mais possível fazer, ou seja, o que não
está sendo mais colecionado. O museu nos dá uma
definição bem clara do que significa para a arte pa-
recer viva, real, presente – a saber, não parecer como
a arte já colecionada, museografada. Aqui, a presença
não é definida somente em oposição à ausência. Para
ser presente, a arte também precisa parecer presente. E
isso significa que não pode parecer com a arte velha e
morta do passado, tal como é apresentada no museu.
Podemos até dizer que, sob as condições do museu
moderno, a novidade da arte recentemente produzida
não é estabelecida post factum – como resultado de
uma comparação com a velha arte. Em vez disso, a
comparação ocorre antes do surgimento de uma nova
obra de arte – e produz virtualmente essa nova obra.
A moderna obra de arte é colecionada antes mesmo
de ser produzida. A arte de vanguarda é uma arte
do pensamento elitista de uma minoria, não porque
expresse algum gosto burguês específico (como Bour-
dieu, por exemplo, afirma), já que de certa forma a
arte de vanguarda não expressa gosto nenhum – nem
público, nem pessoal, nem mesmo o gosto dos pró-
prios artistas. A arte de vanguarda é elitista simples-
mente porque se origina de uma restrição à qual o
grande público não está submetido. Para o grande
público, todas as coisas – ou pelo menos a maioria
165
das coisas – podem ser novas apenas por serem des-
conhecidas, mesmo que já colecionadas nos museus.
Essa observação abre caminho para fazermos a dis-
tinção central, necessária para alcançarmos uma me-
lhor compreensão do fenômeno do novo: a distinção
entre novo e outro, ou entre o novo e o diferente.
Ser novo é com frequência compreendido como
uma combinação entre ser diferente e ter sido produ-
zido recentemente. Dizemos que um carro é novo se é
diferente de outros carros e, ao mesmo tempo, se é o
último modelo, o mais recente produzido pela indús-
tria automobilística. Mas, como Søren Kierkegaard
observou – especialmente em Migalhas filosóficas –,
ser novo não é de forma alguma o mesmo que ser di-
ferente. Kierkegaard, inclusive, opõe rigorosamente
a noção de novo à noção de diferença, e seu princi-
pal argumento é que certa diferença é reconhecida
como tal somente porque já temos a capacidade de
reconhecê-la e identificá-la como diferença. Daí que
uma diferença jamais possa ser nova – porque se fos-
se realmente nova não poderia ser reconhecida como
diferença. Reconhecer significa, sempre, lembrar.
Mas uma diferença reconhecida, lembrada, obvia-
mente não é uma nova diferença.54 Não há, portan-
to, segundo Kierkegaard, algo como um carro novo.
Mesmo quando um carro é bem recente, a diferença
54
Søren Kierkegaard. Philosophische Brocken. Düsseldorf/Colônia: Eugen
Dietrichs, 1960, pp. 34ss. [Ed. bras.: Migalhas filosóficas. Trad. João Fer-
reira de Almeida. Petrópolis: Vozes, 2011.]
166
entre este carro e os produzidos anteriormente não
é “nova”, porque essa diferença pode ser reconheci-
da por um espectador. Isso torna compreensível por
que a noção do novo foi de certa forma suprimida
do discurso teórico sobre a arte nas últimas décadas,
ainda que tenha mantido sua relevância para a prá-
tica artística. Tal supressão é fruto da preocupação
com a Diferença e a Alteridade no contexto dos mo-
dos de pensar estruturalista e pós-estruturalista, que
têm dominado a teoria cultural recente. Mas, para
Kierkegaard, o novo é a diferença sem diferença, ou
a diferença para além da diferença – uma diferença
que somos incapazes de reconhecer porque não está
relacionada a nenhum código estrutural previamen-
te dado.
Para exemplificar essa diferença, Kierkegaard usa
a figura de Jesus Cristo. Ele afirma que a figura de
Cristo inicialmente se parecia com a de qualquer ou-
tro ser humano comum daquele período histórico.
Em outras palavras, um espectador objetivo daquele
tempo, confrontado com a figura de Cristo, seria in-
capaz de encontrar qualquer diferença visível, con-
creta entre Cristo e um ser humano comum – algu-
ma diferença visível que pudesse sugerir que Cristo
não era simplesmente um homem, mas também o
filho de Deus. Assim, para Kierkegaard o cristianis-
mo se baseia na impossibilidade de reconhecer Cristo
como Deus – na impossibilidade de reconhecer Cris-
to como diferente. E mais: isso implica que Cristo
é realmente novo, e não apenas diferente – e que o
167
cristianismo é uma manifestação da diferença sem
diferença, ou da diferença para além da diferença.
Segundo Kierkegaard, portanto, o único meio para
um possível surgimento do novo é o comum, o “não
diferente”, o idêntico – não o Outro, mas o Mesmo.
Contudo, surge a questão de como lidar com essa
diferença para além da diferença. Como o novo pode
se manifestar?
Se olharmos mais de perto a figura de Jesus Cristo
da maneira como é descrita por Kierkegaard, é sur-
preendente como ele parece similar àquilo que atual-
mente chamamos de ready-made. Para Kierkegaard, a
diferença entre Deus e o homem não é uma diferença
que possa ser estabelecida objetivamente ou descrita
em termos visuais. Colocamos a figura de Cristo no
contexto divino sem reconhecê-la como divina – e
isso é o que a torna genuinamente nova. Mas o mes-
mo pode ser dito dos ready-mades de Duchamp. Aqui
também estamos lidando com a diferença para além
da diferença – agora entendida como diferença entre
a obra de arte e a coisa comum, profana. Assim, po-
demos dizer que a Fonte de Duchamp é um tipo de
Cristo entre as coisas, e a arte do ready-made, um tipo
de cristianismo do mundo da arte. O cristianismo
toma a figura de um ser humano e a coloca, inaltera-
da, no contexto da religião, o panteão dos deuses pa-
gãos. O museu – um espaço de arte ou todo o sistema
de arte – também funciona como um lugar onde a
diferença para além da diferença entre a obra de arte
e a mera coisa pode ser produzida ou encenada.
168
Como já mencionei, uma nova obra de arte não
pode repetir as formas da arte antiga, tradicional, já
colecionada. Mas hoje, para ser realmente nova, uma
obra de arte não pode nem mesmo repetir as velhas
diferenças entre objetos de arte e coisas comuns. Por
meio da repetição dessas diferenças, é possível criar
apenas uma obra de arte diferente, não uma obra de
arte nova. Uma obra de arte nova só vai parecer de
fato nova e viva se se assemelhar, num certo sentido,
a qualquer coisa comum, profana, ou a qualquer pro-
duto comum da cultura popular. Apenas nesse caso
a obra de arte nova pode funcionar como um signifi-
cante para o mundo exterior às paredes do museu. O
novo só pode ser experimentado como tal se produ-
zir um efeito de infinitude fora do alcance – se abrir
uma visão infinita da realidade exterior ao museu. E
esse efeito de infinitude pode ser produzido, ou me-
lhor, encenado, apenas dentro do museu: no contexto
próprio da realidade, podemos apenas experienciar o
real como finito, porque nós mesmos somos finitos.
O espaço do museu, pequeno e controlável, permite
ao espectador imaginar o mundo exterior às paredes
do museu como esplêndido, infinito, extático. Essa
é, de fato, a principal função do museu: permitir que
imaginemos o que é exterior ao museu como infini-
to. Obras de arte novas funcionam no museu como
janelas simbólicas, abrindo uma nova vista para o
exterior infinito. Mas obras de arte novas só podem,
claro, cumprir essa função por um período relativa-
mente curto, antes de se tornarem só diferentes, e
169
não mais novas, e de sua distância das coisas comuns
se tornar, com o tempo, mais que óbvia. Surge então
a necessidade de substituir o antigo novo pelo novo
novo, a fim de restaurar o sentimento romântico do
real infinito.
Nesse aspecto, o museu não é tanto um espaço
para a representação da história da arte quanto uma
máquina de produzir e encenar a nova arte de hoje
– em outras palavras, aquela que produz o “hoje”
enquanto tal. Nesse sentido, o museu produz, pela
primeira vez, o efeito de presença, de parecer vivo.
A vida só parece realmente viva se a vemos da pers-
pectiva do museu, porque, novamente, apenas no
museu somos capazes de produzir novas diferenças
– diferenças para além das diferenças –, diferenças
que estão surgindo aqui e agora. Essa possibilidade
de produzir novas diferenças não existe na realidade,
porque na realidade encontramos apenas velhas dife-
renças – diferenças que somos capazes de reconhecer.
Para produzir novas diferenças, precisamos de um es-
paço de “não realidade” culturalmente reconhecido e
codificado. A diferença entre a vida e a morte é, de
fato, da mesma ordem que a diferença entre Deus e o
ser humano comum, ou entre a obra de arte e a mera
coisa – uma diferença para além da diferença que só
pode ser experimentada, como eu disse, no museu
ou no arquivo como um espaço socialmente reconhe-
cido do “não real”. Novamente: a vida hoje parece
viva, e está viva, apenas quando é vista da perspecti-
va do arquivo, do museu, da biblioteca. Na realidade
170
propriamente dita, somos confrontados apenas com
diferenças mortas – como a diferença entre um carro
novo e um velho.
Até pouco tempo atrás, esperava-se amplamen-
te que a técnica do ready-made, em conjunto com o
avanço da fotografia e da videoarte, levasse à erosão
e por fim à morte do museu tal como ele se estabe-
leceu na modernidade. Parecia que o espaço fechado
do museu estava diante de uma ameaça iminente de
inundação pela produção em série de ready-mades, fo-
tografias e imagens de mídia que levariam a sua even-
tual dissolução. É certo que esse prognóstico devia sua
plausibilidade a certa noção específica do museu – a
de que coleções de museu desfrutam seu status ex-
cepcional, socialmente privilegiado, porque contêm
coisas muito especiais, sobretudo obras de arte, que
são diferentes das coisas normais e profanas da vida.
Se os museus foram criados para receber e abrigar coi-
sas tão especiais e maravilhosas, então, de fato, parece
plausível que elas enfrentariam a morte certa caso essa
reivindicação algum dia se provasse enganosa. E são
justamente as práticas dos ready-mades, da fotografia
e da videoarte que dão provas claras de que as reivin-
dicações tradicionais da museografia e da história da
arte são ilusórias, ao tornar evidente que a produção
de imagens não é um processo misterioso que requeira
um artista genial.
Foi isso que Douglas Crimp argumentou em seu
conhecido ensaio Sobre as ruínas do museu, fazendo
referência a Walter Benjamin: “Através da tecnologia
171
reprodutiva, a arte pós-moderna prescinde de aura.
A ficção do sujeito criador dá lugar ao franco con-
fisco, citação, fragmentação, acumulação e repetição
de imagens já existentes. Noções de originalidade,
autenticidade e presença, essenciais ao discurso orde-
nado do museu, são abaladas”.55 As novas técnicas de
produção artística desmancham as molduras concei-
tuais do museu – construídas como são sobre a ficção
da criatividade individual, subjetiva –, desorganizan-
do-as com sua prática reprodutiva e finalmente levan-
do o museu à ruína. E com razão, deve-se acrescentar,
porque as molduras conceituais do museu são ilusó-
rias: sugerem uma representação do histórico, com-
preendido como uma epifania temporal da subjetivi-
dade criativa, num lugar onde, de fato, não há nada
mais que um emaranhado incoerente de artefatos,
afirma Crimp, fazendo referência a Foucault. Crimp,
portanto, como muitos outros autores da sua geração,
considera toda crítica à concepção romântica de arte
como uma crítica à arte como instituição, incluindo
a instituição do museu, que busca legitimar-se, prin-
cipalmente, com base nessa concepção exagerada e ao
mesmo tempo ultrapassada de arte.
É indiscutível que a retórica da singularidade –
e da diferença –, que legitima a arte enaltecendo
obras-primas famosas, determinou por muito tem-
55
Douglas Crimp. On the Museum’s Ruins. Cambridge, MA: MIT Press,
1993, p. 58. [Ed. bras.: Sobre as ruínas do museu. Trad. Fernando Santos.
São Paulo: Martins Fontes, 2015.]
172
po o discurso histórico da arte. Entretanto, é ques-
tionável se esse discurso de fato proporciona uma
legitimação decisiva para a musealização da arte, de
forma que sua análise crítica pode, ao mesmo tem-
po, funcionar como uma crítica do museu como
instituição. Se a obra de arte individual pode se co-
locar à parte de todas as outras coisas em virtude
da sua qualidade artística, ou, dito de outra forma,
como manifestação do gênio artístico de seu autor,
o museu não se tornará então completamente supér-
fluo? Podemos reconhecer e apreciar devidamente
uma pintura magistral, se tal coisa de fato existe,
mesmo – e mais efetivamente ainda – em um espaço
completamente profano.
No entanto, o desenvolvimento acelerado da
instituição do museu, que presenciamos em déca-
das recentes, sobretudo do museu de arte contem-
porânea, tem se dado em paralelo ao apagamento
acelerado das diferenças visíveis entre obra de arte
e objeto profano – um apagamento perpetrado de
forma sistemática pelas vanguardas do século vinte,
especialmente desde os anos 1960. Quanto menos
uma obra de arte difere visualmente de um objeto
profano, mais necessário se torna estabelecer uma
distinção clara entre o contexto de arte e o contexto
profano, cotidiano, não museológico de sua existên-
cia. É quando uma obra de arte parece uma “coisa
normal” que ela requer a contextualização e a prote-
ção do museu. Certamente a função de salvaguarda
do museu também é importante para a arte tradicio-
173
nal que se sobressairia em um ambiente cotidiano, já
que protege tal arte da destruição física ao longo do
tempo. No tocante à recepção dessa arte, no entanto,
o museu é supérfluo, se não prejudicial: o contraste
entre o trabalho individual e o ambiente cotidiano,
profano – contraste por meio do qual a obra de arte
se afirma como tal – é perdido, em sua maior parte,
no museu. Por outro lado, a obra de arte que não se
destaca de seu ambiente por um caráter visual sufi-
cientemente distinto só pode ser realmente percebi-
da no museu. As estratégias da vanguarda artística,
entendidas como a eliminação da diferença visual
entre obra de arte e coisa profana, levaram, por isso,
diretamente à consolidação dos museus, que assegura
essa diferença institucionalmente.
Longe de subverter e deslegitimar o museu como
instituição, a crítica à concepção enfática da arte for-
nece, na verdade, o fundamento teórico para a insti-
tucionalização e a musealização da arte contempo-
rânea. No museu, aos objetos comuns é prometida
a diferença que eles não desfrutam na realidade – a
diferença para além da diferença. Essa promessa será
tão mais válida e crível quanto menos esses objetos
“merecerem” essa promessa, isto é, quanto menos
espetaculares e extraordinários eles forem. O museu
moderno prega seu novo evangelho não para o traba-
lho exclusivo de gênios, marcado pela aura, mas para
o insignificante, o trivial e o cotidiano, que de outra
forma logo desapareceriam na realidade exterior às
paredes do museu. Se o museu realmente se desinte-
174
grasse, estaria perdida a verdadeira oportunidade para
a arte mostrar o normal, o cotidiano e o trivial como
novo e verdadeiramente vivo. A fim de afirmar-se de
maneira bem-sucedida “na vida”, a arte precisa tor-
nar-se diferente – incomum, surpreendente, exclusiva
–, e a história nos mostra que a arte só consegue fazer
isso recorrendo às tradições clássicas, mitológicas e
religiosas, e rompendo suas conexões com a banalida-
de da experiência cotidiana. A (merecidamente) bem-
-sucedida produção de imagens culturais de massa do
nosso tempo preocupa-se com ataques de alienígenas,
mitos de apocalipse e redenção, heróis dotados de su-
perpoderes etc. Tudo isso decerto é fascinante e ins-
trutivo. De vez em quando, porém, gostaríamos de
ser capazes de contemplar e desfrutar algo normal,
algo comum, algo até banal. Em nossa cultura, esse
desejo pode ser satisfeito apenas no museu. Na vida,
por outro lado, apenas o extraordinário nos é apre-
sentado como possível objeto de admiração.
Mas isso também significa que o novo ainda é
possível, porque o museu ainda está lá, mesmo de-
pois do suposto fim da história da arte, do sujeito
etc. A relação do museu com o que é exterior não é
principalmente temporal, mas espacial. E, de fato, a
inovação não ocorre no tempo, mas no espaço: do
outro lado dos limites físicos entre a coleção do mu-
seu e o mundo exterior. Somos capazes de atraves-
sar esses limites literal e metaforicamente a qualquer
momento, em diferentes pontos e em direções muito
distintas. Portanto, isso significa que podemos – e
175
de fato devemos – dissociar o conceito do novo do
conceito de história e o conceito de inovação de sua
associação com a linearidade do tempo histórico. A
crítica pós-moderna à noção de progresso ou às uto-
pias da modernidade torna-se irrelevante quando a
inovação artística não é mais pensada em termos de
linearidade temporal, mas como relação espacial en-
tre o espaço do museu e seu exterior. O novo surge
não na própria vida histórica, a partir de alguma fon-
te escondida, e tampouco como promessa de um télos
histórico oculto. A produção do novo é meramente o
resultado da mudança dos limites entre itens colecio-
nados e itens não colecionados, os objetos profanos
exteriores à coleção, sendo sobretudo uma operação
física, material: alguns objetos são incorporados ao
sistema do museu, enquanto outros são jogados fora
e aterrissam, digamos, no lixo. Tal mudança produz
continuamente o efeito de novidade, abertura, infi-
nitude, usando significantes que fazem que os obje-
tos de arte pareçam diferentes daqueles do passado
musealizado e idênticos a meras coisas e imagens
culturais populares, que circulam no espaço exterior
ao museu. É nesse sentido que podemos manter o
conceito do novo muito além do suposto fim da nar-
rativa histórica da arte, através da produção, como já
mencionei, de novas diferenças para além de todas as
diferenças historicamente reconhecíveis.
A materialidade do museu é uma garantia de que
a produção do novo na arte possa transcender todos
os fins históricos, precisamente porque mostra que o
176
ideal moderno de um espaço de museu universal e
transparente (representando a história da arte univer-
sal) é irrealizável e puramente ideológico. A arte da
modernidade se desenvolveu sob a ideia reguladora
do museu universal representando toda a história da
arte e criando um espaço universal e homogêneo, que
permite a comparação de todas as possíveis obras de
arte e a determinação de suas diferenças visuais. Essa
visão universalista foi muito bem captada por André
Malraux em seu famoso conceito de musée imaginai-
re. Essa visão de museu universal é hegeliana em sua
origem teórica, já que incorpora uma noção de au-
toconsciência histórica capaz de reconhecer todas as
diferenças historicamente determinadas. A lógica da
relação entre a arte e o museu universal segue a lógica
do Espírito Absoluto hegeliano: o sujeito do conhe-
cimento e da memória é motivado, ao longo de toda
a história de seu desenvolvimento dialético, por seu
desejo pelo outro, pelo diferente, pelo novo – mas no
final dessa história ele deve descobrir e aceitar que a
alteridade como tal é produzida pelo movimento do
próprio desejo. Nesse desfecho da história, o sujei-
to reconhece no Outro sua própria imagem. Assim,
podemos dizer que, no momento em que o museu
universal é compreendido como a verdadeira origem
do Outro, porque o Outro do museu é por definição
o objeto do desejo do colecionador ou do curador do
museu, ele se torna, digamos assim, o Museu Absolu-
to e atinge o fim de sua história possível. Além disso,
pode-se interpretar o procedimento do ready-made de
177
Duchamp em termos hegelianos, como um ato de
autorreflexão do museu universal, que põe um fim a
seu posterior desenvolvimento histórico.
Então, não por acaso os recentes discursos pro-
clamando o fim da arte apontam para o advento do
ready-made como o desfecho da história da arte. O
exemplo favorito de Arthur Danto, quando argumen-
ta que a arte atingiu o fim de sua história há algum
tempo, são as Brillo Boxes, de Warhol.56 E Thierry
de Duve fala em “Kant após Duchamp”, referindo-se
ao retorno do gosto pessoal após o fim da história
da arte, ocasionado pelo ready-made.57 Na verdade,
para o próprio Hegel, o fim da arte, como argumenta
em suas conferências sobre estética, deu-se num mo-
mento muito anterior: ele coincide com o surgimen-
to do novo Estado moderno, que confere sua própria
forma, sua própria lei à vida de seus cidadãos, de
maneira que a arte perde sua função genuína de dar
forma.58 O Estado moderno hegeliano codifica todas
as diferenças visíveis e experienciais – reconhece-as,
aceita-as e concede-lhes seu lugar apropriado dentro
56
Arthur Danto. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of
History. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 13. [Ed. bras.:
Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. Trad. Saulo
Krieger. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006.]
57
Thierry de Duve. Kant after Duchamp. Cambridge: MIT Press, 1998,
pp. 132ss.
58
Georg W. F. Hegel. Vorlesungen über die Äesthetik, v. 1. Frankfurt:
Suhrkamp, 1970. [Ed. bras.: Cursos de estética, v. 1. Trad. Marco Aurélio
Werle. São Paulo: Edusp, 2001.] “Em todas essas relações, a arte é e conti-
nua a ser um passado para nós, de acordo com seu destino mais elevado”
(p. 25).
178
de um sistema geral de direito. Depois desse ato de
reconhecimento jurídico e político do Outro pela lei
moderna, a arte parece perder sua função histórica de
manifestar a alteridade do Outro, de lhe dar forma e
inscrevê-la em um sistema de representação histórica.
Assim, no momento em que a lei triunfa, a arte se tor-
na impossível: a lei já representa todas as diferenças
existentes, tornando supérflua tal representação pela
arte. Certamente se pode argumentar que algumas
diferenças permanecerão sempre não representadas
ou, pelo menos, sub-representadas pela lei, de forma
que a arte mantém pelo menos algo de sua função de
representar o Outro não codificado. Mas, nesse caso,
a arte cumpre apenas o papel secundário de servir à
lei: o papel genuíno da arte, que para Hegel consiste
em ser o modo como as próprias diferenças se mani-
festam originalmente e criam formas, sob o efeito da
lei moderna é, em todo caso, passé.
Mas, como afirmei, Kierkegaard pode nos mos-
trar, por implicação, como uma instituição que tem a
missão de representar diferenças pode também criar
diferenças – além de todas as diferenças preexistentes.
A essa altura já posso formular de maneira mais pre-
cisa o que é essa nova diferença – essa diferença para
além da diferença – da qual falei anteriormente. É
uma diferença não de forma, mas de tempo – especi-
ficamente, é uma diferença na expectativa de vida das
coisas individuais, bem como na sua atribuição histó-
rica. Lembremos da “nova diferença” tal como descri-
ta por Kierkegaard: para ele, a diferença entre Cristo
179
e um ser humano comum de sua época não era uma
diferença na forma, que poderia ser representada pela
arte e pela lei, mas uma diferença imperceptível entre
o breve tempo da vida humana ordinária e a eternida-
de da existência divina. Se transfiro determinada coi-
sa ordinária, como um ready-made, do espaço exterior
ao museu para seu espaço interior, eu não transformo
a forma dessa coisa, eu mudo sua expectativa de vida
e confiro a esse objeto certa data histórica. A obra de
arte vive mais tempo e preserva sua forma original
por mais tempo no museu do que um objeto comum
o faz na “realidade”. É por isso que um objeto comum
parece mais “vivo” e mais “real” dentro do museu do
que na própria realidade. Se vejo determinada coisa
comum na realidade, eu imediatamente antecipo sua
morte – como quando está quebrada e é jogada fora.
Uma expectativa de vida curta é, na verdade, a defini-
ção da vida comum. Então, se altero a expectativa de
vida de uma coisa comum, mudo tudo, sem de certa
forma mudar nada.
Essa diferença imperceptível da expectativa de vida
entre um item de museu e uma “coisa real” direcio-
na nossa imaginação, das imagens externas das coisas
para os mecanismos de manutenção, restauração e,
geralmente, suporte material – o cerne dos itens de
museu. A questão da expectativa relativa de vida tam-
bém chama nossa atenção para as condições sociais e
políticas sob as quais esses itens são colecionados no
museu e têm sua longevidade garantida. Ao mesmo
tempo, porém, o sistema de regras de conduta e tabus
180
do museu torna o amparo e a proteção do objeto invi-
síveis e não experienciáveis. Essa invisibilidade é irre-
dutível. Como se sabe, a arte moderna tem tentado de
todas as maneiras possíveis tornar transparente o lado
interno, material, do trabalho. Mas ainda é apenas
a superfície da obra de arte que podemos ver como
espectadores do museu: por trás dessa superfície, algo
permanece para sempre escondido pelas condições de
visita do museu. Como espectador, sempre é necessá-
rio submeter-se às restrições que, fundamentalmen-
te, funcionam para manter a substância material das
obras de arte inacessível e intacta, de modo que pos-
sam ser exibidas “para sempre”. Temos aqui um caso
interessante do “exterior no interior”. O suporte ma-
terial da obra de arte está “no museu”, mas ao mesmo
tempo não é visualizado – nem visualizável. O supor-
te material, ou o meio de suporte, assim como todo
o sistema de conservação do museu, deve permanecer
obscuro, invisível, escondido do espectador. De certo
modo, dentro das paredes do museu, somos confron-
tados com uma infinitude ainda mais radicalmente
inacessível do que o infinito mundo exterior às pare-
des do museu.
Mas, se o suporte material da obra musealizada
não pode se tornar transparente, é possível, não obs-
tante, tematizá-lo explicitamente como algo obscu-
ro, escondido, invisível. Tomemos o trabalho de dois
artistas suíços, Peter Fischli e David Weiss, como
exemplo do modo como essa estratégia funciona no
contexto da arte contemporânea. Para o meu propó-
181
sito, uma breve descrição é suficiente: Fischli e Weiss
exibem objetos que se parecem bastante com ready-
-mades – objetos cotidianos como são vistos em qual-
quer lugar.59 Na verdade, esses objetos não são ready-
-mades “reais”, mas simulações: foram esculpidos em
poliuretano – um material plástico leve –, mas com
tal precisão (uma exímia precisão suíça) que, se você
os vir num museu, no contexto de uma exposição,
terá grande dificuldade de distinguir os objetos fei-
tos por Fischli e Weiss de ready-mades reais. Se visse
esses objetos, digamos, no ateliê de Fischli e Weiss,
você poderia pegá-los nas mãos e sentir o peso – ex-
periência impossível de ser realizada no museu, já que
é proibido tocar nos objetos exibidos. Fazer isso ime-
diatamente dispararia o sistema de alarme, alertando
os funcionários do museu e depois a polícia. Nesse
sentido, podemos dizer que é a polícia, em última
instância, que garante a oposição entre a arte e a não
arte – a polícia que ainda não está a par do fim da
história da arte.
Fischli e Weiss mostram que os ready-mades, ao
manifestarem sua forma dentro do espaço do museu,
estão simultaneamente obscurecendo ou escondendo
sua própria materialidade. Não obstante, essa obscu-
ridade – a não visualidade do suporte material como
tal – é exibida no museu através do trabalho de Fischli
e Weiss, por meio da evocação explícita de sua obra
59
Boris Groys. “Simulated Ready-mades by Fischli/Weiss”. Parkett 40-
41, Zurique/Nova York, 1994, pp. 25-39.
182
da diferença invisível entre o “real” e o “simulado”.
O espectador do museu é informado, pela inscrição
que acompanha o trabalho, que os objetos exibidos
por Fischli e Weiss não são ready-mades “reais”, mas
“simulados”. Mas, ao mesmo tempo, o espectador do
museu não pode testar essa informação, porque ela
diz respeito ao cerne oculto, ao suporte material dos
itens exibidos – e não à sua forma visível. Isso signi-
fica que a diferença recentemente introduzida entre
o “real” e o “simulado” não representa qualquer di-
ferença visual preestabelecida entre as coisas no nível
de sua forma. O suporte material não pode ser reve-
lado na obra de arte individual – mesmo que muitos
artistas e teóricos da vanguarda histórica quisessem
fazê-lo. Em vez disso, essa diferença só pode ser expli-
citamente tematizada no museu como obscura e irre-
presentável. Ao simular a técnica do ready-made, Fis-
chli e Weiss direcionam nossa atenção para o suporte
material sem revelá-lo, sem torná-lo visível, sem re-
presentá-lo. A diferença entre o “real” e o “simulado”
não pode ser “reconhecida”, mas apenas produzida,
porque todos os objetos no mundo podem ser vistos
simultaneamente como “reais” e “simulados”. Pode-
mos produzir a diferença entre o real e o simulado
pondo determinada coisa, ou determinada imagem,
sob suspeita de não ser “real”, mas apenas “simulada”.
E pôr determinada coisa comum no contexto do mu-
seu significa precisamente pôr o meio de suporte, o
suporte material, as condições materiais de existência
dessa coisa sob suspeita permanente. O trabalho de
183
Fischli e Weiss demonstra que há uma obscuridade
infinita no próprio museu: a dúvida infinita, a suspei-
ta infinita de que todas as coisas exibidas são simu-
ladas, são falsas, possuem um cerne material diverso
daquele sugerido por sua forma exterior. Também
significa que não é possível transferir “toda a realida-
de visível” para dentro do museu – mesmo na ima-
ginação. Tampouco é possível realizar o velho sonho
nietzschiano de estetizar o mundo em sua totalidade,
a fim de alcançar a identificação da realidade com o
museu. O museu produz suas próprias obscuridades,
invisibilidades, diferenças; produz seu próprio exte-
rior escondido no interior. E o museu pode apenas
criar o clima de suspeita, incerteza e angústia a res-
peito do suporte oculto das obras de arte que exibe;
e, ao mesmo tempo que garante sua longevidade, ele
põe em risco sua autenticidade.
A longevidade artificial garantida às coisas cole-
cionadas no interior do museu é sempre uma simu-
lação: essa longevidade é obtida apenas por meio da
manipulação técnica do cerne material oculto da
coisa exibida, assegurando sua durabilidade. Toda
conservação é uma manipulação técnica que tam-
bém é, necessariamente, uma simulação. Contudo, a
longevidade artificial de uma obra de arte só pode
ser relativa. Chega o momento em que toda obra de
arte morre, é quebrada, desfeita, desconstruída – não
necessariamente de forma teórica, mas no plano ma-
terial. A visão hegeliana do museu universal é uma
visão na qual a eternidade corporal é substituída
184
pela eternidade da alma na memória de Deus. Mas
a eternidade corporal, claro, é uma ilusão. O pró-
prio museu é algo temporal, mesmo que as obras de
arte colecionadas no museu tenham sido retiradas
do perigo da existência cotidiana e da troca geral a
fim de serem preservadas. Essa preservação não pode
ser bem-sucedida, ou pode sê-lo apenas temporaria-
mente. Objetos de arte são destruídos regularmente
por guerras, catástrofes, acidentes e pelo tempo. Esse
destino material, essa temporalidade irredutível dos
objetos de arte como coisas materiais, põe um limite
em qualquer história da arte possível – mas um limite
que funciona, ao mesmo tempo, como o oposto do
fim da história da arte. Em um nível puramente ma-
terial, o contexto da arte muda permanentemente, de
uma forma que não podemos controlar, refletir sobre
ou prever totalmente, e assim essa mudança material
sempre chega como uma surpresa. A autorreflexão
histórica depende da materialidade oculta, imponde-
rável dos objetos do museu. E, precisamente porque o
destino material da arte é irredutível e imponderável,
a história da arte deve ser revisitada, reconsiderada e
reescrita sempre de modo novo.
Mesmo que a existência material de uma obra de
arte individual seja garantida por certo período, o
status dessa obra como obra de arte depende sem-
pre do contexto de sua apresentação como parte de
uma coleção de museu. Mas é extremamente difícil
– na verdade, impossível – estabilizar esse contexto
por um longo período. Esse talvez seja o verdadeiro
185
paradoxo do museu: a coleção do museu serve à pre-
servação dos artefatos, mas a própria coleção é sempre
extremamente instável, mudando constantemente,
ela está em fluxo. Colecionar é um evento temporal
por excelência – mesmo quando é uma tentativa de
escapar ao tempo. A exposição do museu flui perma-
nentemente: ela não apenas cresce ou progride como
também se transforma de muitas maneiras diferen-
tes. Consequentemente, os critérios para distinguir o
antigo e o novo, e para conferir às coisas o status de
obra de arte, também mudam o tempo todo. Artistas
como Mike Bidlo ou Sherrie Levine demonstram, por
exemplo – através da técnica de apropriação –, a pos-
sibilidade de alterar a atribuição histórica de formas
de arte dadas mudando seu suporte material. A cópia
ou repetição de trabalhos famosos desorganiza todo
o ordenamento da memória histórica. É impossível
para o espectador mediano distinguir, por exemplo,
o trabalho original de Picasso e o trabalho de Picas-
so apropriado por Mike Bidlo. Então, aqui, como no
caso do ready-made de Duchamp ou dos ready-ma-
des simulados de Fischli e Weiss, somos confrontados
com uma diferença não visual e, nesse sentido, com
uma diferença recém-produzida – a diferença entre
um trabalho de Picasso e uma cópia de seu trabalho
produzida por Bidlo. Essa diferença, novamente, só
pode ser encenada no museu – dentro de certa ordem
de representação histórica.
Dessa forma, ao colocar obras de arte já existen-
tes em novos contextos, as mudanças na sua exibi-
186
ção podem provocar uma diferença na sua recepção,
sem que tenha havido qualquer mudança na forma
visual da obra. Nos últimos tempos, o status do mu-
seu como lugar de uma coleção permanente vem se
alterando, gradualmente, para o do museu como
teatro de exposições itinerantes de larga escala, or-
ganizadas por curadores internacionais, e de instala-
ções de larga escala, criadas por artistas individuais.
Toda grande instalação ou exposição desse tipo é
feita com a intenção de desenhar uma nova ordem
de memórias históricas, propor novos critérios de
coleção por meio da reconstrução da história. Essas
exposições e instalações itinerantes são museus tem-
porais que exibem abertamente sua temporalidade.
A diferença entre as estratégias da arte modernista
tradicional e as da arte contemporânea é, portanto,
relativamente fácil de descrever. Na tradição mo-
dernista, o contexto da arte era considerado estável
– era o contexto idealizado do museu universal. A
inovação consistia em pôr uma forma nova, uma
coisa nova nesse contexto estável. Em nossa época,
o contexto é visto como algo em transformação e
instável. Assim, a estratégia da arte contemporânea
consiste em criar um contexto específico que pos-
sa fazer certa forma ou coisa parecer outra, nova e
interessante – mesmo que essa forma já tenha sido
colecionada antes. A arte tradicional trabalhava no
nível da forma. A arte contemporânea trabalha no
nível do contexto, da estrutura, do background ou
de uma nova interpretação teórica. Mas o objetivo é
187
o mesmo: criar um contraste entre a forma e o back-
ground histórico, fazer a forma parecer outra e nova.
Fischli e Weiss podem, agora, exibir ready-mades
que parecem completamente familiares ao observa-
dor contemporâneo. A diferença entre estes e os rea-
dy-mades padrão, como eu disse, não pode ser vis-
ta, porque a materialidade interna dos trabalhos não
pode ser vista, apenas descrita: precisamos ouvir uma
narrativa, uma história da feitura desses pseudo-rea-
dy-mades a fim de perceber a diferença, ou melhor,
imaginar a diferença. Na verdade, não é nem mesmo
necessário que esses trabalhos de Fischli e Weiss se-
jam realmente “feitos”, basta que se conte a história
que nos permita olhar os “modelos” desses trabalhos
de forma diferente. As exposições em constante trans-
formação dos museus nos levam a imaginar o fluxo
de Heráclito, que desconstrói todas as identidades e
abala todas as ordens e taxonomias históricas, final-
mente destruindo todos os arquivos a partir do seu
interior. Mas tal visão heraclitiana só é possível den-
tro do museu, dentro dos arquivos, porque só ali há
ordens de arquivo, identidades e taxonomias estabe-
lecidas em um grau que nos permite imaginar como
sublime sua possível destruição. Essa visão sublime
é impossível no contexto próprio da “realidade”, que
nos oferece diferenças perceptuais, mas não diferen-
ças no que diz respeito à ordem histórica. Além disso,
por meio de mudanças contínuas em suas exposições,
o museu pode apresentar sua materialidade oculta,
obscura – sem revelá-la.
188
Não é por acaso que agora podemos assistir ao
crescente sucesso de formas de arte narrativas, como
instalações de vídeo e cinema, no contexto do museu.
Instalações de vídeo trazem a “grande noite” ao mu-
seu – talvez sua função mais importante. O espaço
do museu perde sua própria luz “institucional”, que
funcionava tradicionalmente como uma propriedade
simbólica do espectador, do colecionador, do cura-
dor. O museu se torna obscuro, escuro e dependen-
te da luz que emana da imagem de vídeo, isto é, do
cerne oculto da obra de arte, da tecnologia elétrica e
informática oculta em sua forma. Não é o objeto de
arte exibido no museu que deve ser iluminado, exa-
minado e julgado pelo museu, como antigamente;
mas essa imagem tecnologicamente produzida traz
sua própria luz para dentro da escuridão do espaço
do museu – e apenas por certo período. Também é
interessante notar que, caso o espectador tente intro-
meter-se no cerne, material, da instalação de vídeo
enquanto ela “funciona”, ele será eletrocutado, o que
é ainda mais efetivo que a intervenção da polícia. Da
mesma forma, um intruso indesejado no espaço inte-
rior, proibido, de um templo grego era supostamente
atingido por um raio de Zeus.
E mais que isso: não é apenas o controle sobre a
luz; também o controle sobre o tempo de contem-
plação é transferido do visitante para a obra de arte.
No museu clássico, o visitante exerce quase total
controle sobre o tempo de contemplação. Pode in-
terromper a contemplação a qualquer momento, vol-
189
tar e ir embora novamente. A pintura continua onde
está, sem qualquer tentativa de escapar ao olhar do
observador. Com imagens em movimento, isso não
é mais possível – elas escapam ao controle do obser-
vador. Quando damos as costas a um vídeo, geral-
mente perdemos algo. O museu – antes um lugar
de completa visibilidade – agora se torna um lugar
onde não podemos compensar uma oportunidade
perdida de contemplação – onde não podemos vol-
tar ao mesmo lugar para ver a mesma coisa que vi-
mos antes. E isso mais ainda do que na chamada
“vida real”, porque nas condições padrão de visita a
uma exposição, o espectador é, na maioria dos casos,
fisicamente incapaz de ver todos os vídeos em exi-
bição, pois sua duração acumulada excede o tempo
de uma visita ao museu. Dessa forma, a instalação
de vídeo e cinema no museu manifesta a finitude do
tempo e revela também a distância da fonte de luz,
que permanece oculta nas condições normais de cir-
culação de vídeo e filme em nossa cultura popular.
Ou melhor: o filme se torna incerto, invisível, obs-
curo para o espectador pela sua inserção no museu
– a duração do filme, em geral, é mais longa que o
tempo médio de uma visita ao museu. Aqui, mais
uma vez, uma nova diferença na recepção dos filmes
surge como resultado da substituição do museu por
uma sala de cinema comum.
Resumindo o argumento que venho tentando
construir: o museu moderno é capaz de introduzir
uma nova diferença entre coisas colecionadas e não
190
colecionadas. Essa diferença é nova porque não repre-
senta qualquer diferença visual já existente. A escolha
dos objetos para musealização só é interessante e rele-
vante para nós se não simplesmente reconhece e reite-
ra as diferenças existentes, mas apresenta a si mesma
como infundada, inexplicável, ilegítima. Para o es-
pectador, essa escolha abre uma visão da infinitude
do mundo. E mais que isso: ao introduzir a diferença,
o museu redireciona a atenção do espectador da for-
ma visual das coisas para seu suporte material oculto
e sua expectativa de vida. O novo funciona aqui não
como representação do Outro, ou como o próximo
passo em direção a um esclarecimento progressivo do
obscuro, mas antes como um novo lembrete de que
o obscuro continua obscuro, de que a diferença entre
o real e o simulado continua ambígua, de que a lon-
gevidade das coisas está sempre em perigo, de que a
dúvida infinita sobre a natureza interior das coisas é
intransponível. Ou, dito de outro modo: o museu nos
dá a possibilidade de introduzir o sublime no banal.
Na Bíblia podemos encontrar a famosa afirmação de
que não há nada de novo sob o sol. Isso certamente é
verdade. Mas não há sol dentro do museu. Talvez por
isso o museu tenha sido sempre– e continue a ser – o
único lugar de inovação possível.
191
BORIS GROYS (Berlim Oriental, 1947) é professor eméri-
to de estudos globais russos e eslavos na Universidade de
Nova York, senior research fellow na Universidade de Karl-
sruhe de Artes e Design, na Alemanha, e professor de fi-
losofia na European Graduate School. Seus últimos livros
são Russian Cosmism (MIT Press, 2018), In the Flow (Verso
Books, 2016), On the New (Verso, 2014), Introduction to An-
tiphilosophy (Verso Books, 2012) e Under Suspicion: A Phe-
nomenology of Media (Columbia University Press, 2012).
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