MCPereira
MCPereira
MCPereira
FACULDADE DE LETRAS
Rio de Janeiro
2022
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RIO DE JANEIRO
2022
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais Marco e Rosa por todo o apoio e o tempo dedicados à minha
formação desde o ensino básico até aqui. Agradeço também ao meu irmão Felipe, por toda a
irmandade que ele me ofereceu nestes anos. Sem eles, esta página de agradecimento de um
TCC não estaria sendo escrita.
Agradeço à Isadora por todo o apoio, companheirismo e afeto dado para mim durante
não só o processo deste TCC, mas durante a graduação e durante a organização de torneios
com nossas atléticas. Se sonho que se sonha junto vira realidade, então que sonhemos juntos.
Você também ajudou a construir este TCC. Obrigado, de verdade.
Aos meus avós Domingos. Maria Isabel, Ilda e Jorge, por todo o suporte dado nesta
caminhada, desde o Tauá até a Penha, passando pela Ribeira. Eles também seguraram minhas
mãos para eu escrever este TCC.
Aos meus tios e primos do Colégio Paranapuã, obrigado pelos carinhos e cuidados
durante os meus 9 anos na instituição. Todo o afeto ajudou a construir a pessoa que sou hoje.
Obrigado também a minha tia Mônica, por todo o carinho que me foi dado e pelos domingos
na Penha.
Aos professores, inspetores e demais funcionários do Colégio Paranapuã, por me darem
os materiais necessários para que minha graduação fosse construída. A educação vale a pena.
Que prossigamos construindo um mundo através dela e inspirando alunos.
Ao professor Paulo Tonani, que topou estar junto de mim desde o meu 2º período e
espero que prossigamos na caminhada acadêmica. Que toda a parceria dada pelo professor aos
seus alunos seja retribuída pela vida.
A todos do Tauá que me viram crescer e me foram parceiros. Não podemos esquecer
de onde viemos, para que possamos saber para onde iremos.
Aos colegas de faculdade e de escola, obrigado por todos os momentos, seja em sala de
aula, nos bosques ou nos sofás do CALET. Vocês tornaram tudo mais fácil
Aos meus animais de estimação, meu gato Kiko e meu cachorro Téo, que são meus
parceiros mesmo que não vocalizem isso. Não poderia os deixar de fora.
Para todos que, mesmo em outro plano, seguem me acompanhando. O que a ciência
não pode explicar, o sagrado e o metafísico explicam. E me sinto convencido de que nunca
estive sozinho.
Esta graduação foi difícil, mas foi com amor. Obrigado por tanto, Faculdade de Letras.
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RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise acerca do perfil de Gustavo Adolfo de Carvalho
Baeta Neves, conhecido popularmente como Didi, compositor histórico da G.R.E.S. União da
Ilha do Governador e do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. Autor de sambas como “É hoje”
e “O amanhã”, Didi ficou marcado por ser um sambista em trânsito entre classes sociais, já que
vivia uma vida de Procurador da República, fazendo parte da elite jurídica, ao mesmo tempo
que fazia parte da ala de compositores da tricolor insulana - onde também foi enredo em 1991,
com “De bar em bar, Didi, um poeta”. Dessa forma, pretende-se, através de uma análise
ensaística crítica e também comparativa dos sambas compostos por Didi, além de adentrar-se
nos estudos acerca do conceito de malandragem (Dealtry, 2009), construir uma jornada
analítica acerca do legado de Didi para o mundo do samba, de forma a compreender sua
importância para a história do carnaval carioca (Mussa e Simas, 2010) e das escolas de samba.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 6
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 24
6. REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS 25
1. INTRODUÇÃO
consolidaram a Ilha como uma das mais importantes agremiações do samba carioca.
Vale mencionar ainda sambas importantes: Epopéia do Petróleo (1956); Ritual afro-
brasileiro (1971); Lendas e festas das iabás (1974); Nos confins de vila monte (1975);
Poema de máscara em sonhos (1976); Um herói, uma canção, um enredo (1985);
Festa Profana (1989); De Bar em Bar: Didi, um poeta (1991); e A viagem da pintada
encantada (1996).
Outro ponto importante na trajetória de Didi é a sua dualidade, convivendo, ao mesmo
tempo, entre o mundo de uma elite jurídica - já que o mesmo era Procurador da República - e
o mundo do carnaval, com suas dinâmicas particulares que compõem uma das principais festas
da cultura popular carioca.
A vivência nesses dois ambientes estritamente diferentes permitem com que Didi
estabeleça um trânsito entre a classe dominante que, historicamente, reprime e estigmatiza o
carnaval, e as classes populares, que, apesar da repressão e da tentativa de controle dos festejos
populares, mantêm o carnaval de pé conforme o jargão do mundo das escolas de samba,
“levando a escola para a avenida”.
Dessa forma, com essa dualidade e o trânsito entre a elite jurídica e as escolas de samba,
Didi já se tornaria um personagem digno de análise, tal qual Sinhô foi no início do século XX,
quando o samba começava a sair da Pequena África e se popularizar pela cidade (DEALTRY,
2009). Contudo, como artista, Didi foi um dos responsáveis pela presença da União da Ilha na
memória afetiva do carioca, graças às suas composições marcantes. Tais dinâmicas acerca da
autoria e da malandragem, assim como as análises das autorias, são parte de uma construção
de comunicações em jornadas acadêmicas na UFRJ ao longo da graduação, através de um
aprofundamento dos estudos acerca do legado de Didi.
Com isso, o presente trabalho se propõe, com o passar dos capítulos, a aprofundar o
perfil de Didi como um sambista - especificamente o malandro, figura importante da cultura
popular - e, também, as leituras dos seus sambas, que marcaram época no cancioneiro
carnavalesco, valendo-se de um exercício comparativo de dois sambas-enredos: “É hoje”,
samba de Didi e Mestrinho para o carnaval de 1982, e “Para tudo se acabar na quarta-feira”,
samba de Martinho da Vila para a Vila Isabel no carnaval de 1984. A abordagem partiu da
premissa de que o samba composto por Martinho da Vila, diferentemente de “É hoje”, trata da
melancolia do sambista ao término da quarta-feira de cinzas, quando a vida volta à rotina. A
partir da análise das duas letras, faz-se impossível entender como o sambista representa o dia
de desfile de carnaval e o fim da festa, da euforia à melancolia, o prazer que a efemeridade do
carnaval dá aos seus atores principais.
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Além disso, também fará parte da jornada investigativa deste trabalho o debate sobre
autoria dentro da escrita e como a polêmica envolvendo a autoria de “O Amanhã” contribui
para tal debate. Assim, será possível uma abordagem pertinente acerca da figura de Didi de
forma que explique a sua importância para o mundo do carnaval e, também, como o samba-
enredo nos permite entender a importância do carnaval para o sambista - desde a euforia do dia
do desfile até a quarta-feira de cinzas - e, também, a questão da autoria dentro da cultura do
samba.
O pesquisador Luiz Antônio Simas (2018), numa palestra no MAR, em 2018, para uma
turma do curso de extensão “Universidade das Quebradas”, conta que, após o samba ser
consagrado como vencedor, os componentes da escola o levaram ao terreiro para busca da
aprovação de Seu Zé - entidade religiosa ligada à malandragem carioca. Ao chegar lá, a
comitiva salgueirense ouviu a reclamação da entidade sobre o refrão, ao afirmar que o malandro
de verdade não batia de frente - ele “come pelos lados”, assegurou Seu Zé. Com isso, a escola
mudou o refrão, e a versão final levada para a Avenida ficou assim:
O malandro come pelos lados porque se ele bater de frente, mesmo ganhando, ainda sai
machucado. O verdadeiro malandro é aquele que atinge seu objetivo com o mínimo de esforço,
de preferência com nenhum. Na briga, ele não saca uma arma para atirar no adversário. Ele
passa a navalha no ponto certo, para derrubar logo, usando sua ginga para enfrentar o oponente.
Os primeiros malandros tinham fama de brigões. Grandes figuras como Baiaco e
Brancura, oriundos do Estácio, faziam jus ao estereótipo e andavam de navalha para ferir
inimigos e seda para se proteger de navalhadas adversárias. Iam pro samba também com a
intenção de enfrentar rivais, o que fez com que as autoridades achassem que as rodas de samba
fossem basicamente para fomentar a violência entre pessoas de diversas regiões da cidade e
contribuía com a estigmatização de todo o mundo do samba (DEALTRY, 2009).
Além do mais, as fontes de rendas desses malandros estacianos também eram
consideradas imorais e ligadas à contravenção. Iam desde jogos manipulados com transeuntes,
onde sempre tinha o mesmo vencedor – os malandros -, até os famosos “cafetões” da região do
Mangue, atual Cidade Nova, faturando em cima da comercialização dos corpos das mulheres
de classes mais baixas.
Entretanto, muitos dos primeiros grandes sambistas renegam a fama de malandros. Em
“Batuque na Cozinha”, João da Baiana narra um episódio em que o próprio compositor é
conduzido à delegacia devido uma confusão com um desses malandros. No samba é produzida
uma advertência que busca explicitar ao delegado que ambos são do mesmo meio social, mas
ele, João, é músico, enquanto o outro é malandro (DEALTRY, 2009):
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Mesmo alçada como símbolo nacional e sendo usufruída por diversos membros das
classes mais altas (DEALTRY, 2009), os criadores dessa cultura marginal não elevavam o
patamar da vida. Continuavam vivendo em cortiços, enquanto uma elite intelectual desfrutava
de sua produção artística. Dealtry (2009, p.70) diz:
mudou para o subúrbio1, na Ilha do Governador. Lá, conheceu a escola tricolor e se apaixonou.
Venceu seguidas disputas de samba quando a escola ainda só desfilava no seu bairro.
Um dos membros mais marcantes da Ala dos Compositores da tricolor insulana, Didi
estava pronto para ver seus sambas serem cantados na principal passarela do carnaval carioca.
Porém, a família enxergava a vida sambista de Didi com maus olhos. Não acreditavam que
uma família daquele porte poderia ter um membro que vivesse na boemia e no samba. Por isso,
em 1978, Didi escreve o famoso samba-enredo “O Amanhã” mas não consegue assinar seu
nome. Quem assina é o diretor de bateria da escola, João Sérgio.
Por causa da pressão da família, um dos maiores vencedores de disputas de samba do
carnaval é obrigado a viver sua dupla função. Para recuperar o status da família, se forma em
Direito e se torna Procurador da República. Porém, quando chegava a noite, o Doutor Gustavo
Adolfo de Carvalho Baeta Neves se tornava Didi e ia para o samba ou na União da Ilha ou no
Salgueiro.
Se é possível aplicar alguma definição de malandragem a Didi, podemos afirmar que
ele personifica o ideal de malandro roseano (DEALTRY, 2009). Não andava com navalha no
bolso e seda no pescoço. Só queria saber do prazer de escrever seus sambas, sua poesia e curtir
sua bebida. Não ia pro samba pra enfrentar nenhum adversário. Tamanha elegância e respeito
que o sambista imprimia que, quando foi enredo, foi saudado na letra escrita pelo seu maior
oponente nas finais de disputa de samba da tricolor insulana, o sambista Franco: “poeta enredo
da canção, cartilha que eu aprendi, canta a Ilha de emoção, saudades de você Didi” (Anexo 3).
Aprofundando-se no debate acerca da definição do “malandro”, faz-se pertinente a
apresentação da abordagem de Antonio Candido (1970, p.71), onde se diz que:
Didi não queria lesar ninguém com sua malandragem. Só queria curtir sua vida na
boemia e escrever a sua poesia. Exatamente como Noel Rosa e sua relação romântica com a
vida noturna e artística da Vila da década de 1920, assim como mesmo canta em “Palpite
Infeliz”: “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”.
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Não se pretende, aqui, debater o conceito de subúrbio dentro do Rio de Janeiro. Tratemos aqui a Ilha como
pertencente ao subúrbio por ter uma infraestrutura muito aquém das regiões nobres da cidade.
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tem como objetivo analisar, por meio das duas letras, como o sambista representa o dia de
desfile de carnaval e o fim da festa, da euforia à melancolia, o prazer que a efemeridade do
carnaval dá aos seus atores principais. Nosso estudo utiliza como referência teórica os trabalhos
de Mussa e Simas (2010), Cabral (2011) e Lopes e Simas (2017).
O primeiro aspecto a ser ressaltado no exercício comparativo é que ambas as letras são
o que podemos nomear como metalinguísticas, ou seja, tratam do sambista como protagonista
do evento narrado e, nos casos analisados, são faces diferentes do desfile. Ou seja, ambos os
sambas realizam o mesmo exercício metalinguístico provocado pelo portelense Zé Keti em “Eu
sou o samba”. Neste, o compositor afirma a sua relação com o universo do samba ao afirmar
que falar do samba é falar de uma rotina e uma cultura criada pelos sambistas e seus ancestrais
da Pequena África e que, a todo momento, se reinventa. Segundo Mussa e Simas (2010, p.92),
as escolas já vêm, desde os anos 1960, fazendo estes enredos metalinguísticos:
O próprio carnaval, o samba e os desfiles das escolas também viravam
enredo. O Salgueiro teve, em 1965 o clássico História do carnaval carioca. Na época
de ouro, as escolas lembravam suas próprias histórias (Mangueira em 1978, com Dos
carroceiros do imperador ao Palácio do Samba); recordavam seus melhores desfiles
(União da Ilha em 1980 com Bom, bonito e barato); homenageavam as coirmãs
(Salgueiro em 1972 com Mangueira, minha madrinha querida); ou prestavam
homenagem aos grandes sambistas (Imperatriz Leopoldinense em 1974 com Requiém
por um sambista: Silas de Oliveira). Mas o desenvolvimento mais importante era o
próprio carnaval e o desfile como aspecto da cultura popular.
Entretanto, em 1984, quando a Vila Isabel levou este enredo para a Sapucaí, a lógica
dos desfiles já era outra. Com a inauguração do sambódromo - antes, os desfiles chegaram a
ocorrer na Praça XI, na Rio Branco, na Presidente Vargas e na mesma Marquês de Sapucaí,
sempre com arquibancadas temporárias - era o primeiro ano das escolas nesta grande obra com
a assinatura de Oscar Niemeyer. Com arquibancadas altas e camarotes badalados, as
agremiações precisavam agradar gostos diferentes dos que as assistiam antes desta construção.
O desfile passou a se verticalizar, com muito luxo e destaques nas partes mais altas dos carros,
a mão de obra comunitária e artesanal já não era mais tão valorizada quanto nos carnavais
passados. Era preciso, agora, uma mão de obra qualificada e profissional que atendessem
alguns padrões de qualidade e garantissem o gigantismo do espetáculo. Isso fez com que o
envolvimento da comunidade passasse a se restringir à quadra da escola, não se estendendo até
o barracão, como foi idealizado na composição do samba de Martinho da Vila. A gente
empenhada em construir essa ilusão, agora, não era mais em mutirão, como canta-se na estrofe.
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Além disso, Mussa e Simas (2010) chamam o período de 1969 – 1989 como a época
de ouro do gênero, quando as composições param de ter o estilo chamado “lençol”, com
estrofes longas e apenas um refrão. Tanto “É hoje” quanto “Para tudo se acabar na quarta-feira"
estão nessa época dourada (no caso da tricolor insulana, o desfile é de 1982 enquanto na branca
e azul da Grande Tijuca, 1984). Ambos autores apontam como um dos dados para a mudança
de estilo, que conversa com o dado supracitado no parágrafo anterior, conforme (MUSSA e
SIMAS, 2010, p.72):
Essa necessidade de agradar um público cada vez maior e não diretamente
ligado às escolas de samba, somado ao fato de que os sambas agora deviam integrar
um disco com gravações originais – disco esse que tinha limites de tempo para cada
escola – foi forçando os sambas a deixarem a forma lençol e adotarem uma extensão
intermediária, ou ficarem tão curtos.
Nos versos, temos a representação do trabalhador que, após passar quatro dias
brincando e fora do cenário cotidiano dele, vê-se de volta a realidade. A ilusão construída pelos
membros do barracão da escola de samba se acaba na quarta-feira de cinzas, ao fim da festa.
Se é necessário criar uma ilusão para fugir da rotina, é de se entender também que essa rotina
é fatigante e, por vezes, precisa-se de um escapismo. Com isso, a escola de samba se mostra
sendo, além de reconstrutora de laços afetivos e identitários, um meio para o lazer das
comunidades que constroem essas agremiações. A ilusão, no entanto, se tornava realidade
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nesses quatro dias e, por isso, é tão aguardada pelo sambista como Didi e Mestrinho nos
mostraram em “É Hoje”.
A quarta-feira de cinzas e o consequente fim do carnaval significa, também, o fim dessa
ilusão criada nos quatro dias de festa. Com isso, a melancolia surge pelo fim da festa que só
acontece por força maior. A ilusão, para o sujeito carnavalesco, é melhor do que o dia-dia
cansativo e real, sendo necessária essa fugacidade. O encantamento com as alegorias, as
fantasias e as brincadeiras acabam-se e o mundo real nos lembra que o prazer é efêmero e, no
seu fim, chega a melancolia que é uma forma de demonstrar a saudade desses momentos
prazerosos.
Porém, a mesma gente que constrói essa ilusão, conforme citado na estrofe, não tem o
mesmo destaque que outros agentes participantes do mesmo processo tem. O carnavalesco, por
exemplo, pode ser eleito como grande responsável pelo sucesso ou pelo fracasso de uma escola,
colocando no mesmo todo o mérito do impacto do desfile, enquanto os operários de barracões
não usufruam da mesma exposição - por mais que, muitas vezes, em condições questionáveis,
participam do processo mais por amor ao pavilhão do que pela remuneração em si. No samba,
vemos o destaque que se dá a algumas dessas profissões e setores de uma escola que muitas
vezes são ofuscadas pelo carnavalesco, por uma celebridade no desfile ou por uma alegoria de
proporções colossais.
Martinho da Vila também retrata o peso que uma escola pode ter na comunidade e o
envolvimento que ambas podem ter. Podemos ver no verso:
Neles, pode ser visto que a baiana, setor da escola responsável pela valorização e
enaltecimento da raiz baiana do samba nos tempos do surgimento do mesmo na região portuária
carioca, muitas vezes uma ala constituída por mulheres de mais idade, já estava presente
naquela agremiação desde quando era passista, o setor constituído por mulheres e homens
jovens que sambam no ritmo do samba, obrigatório no desfile desde a década de 30. Além
disso, uma romantização é feita da passista junto com o mestre-sala, responsável por uma das
funções de mais nobreza na escola de samba que é o de cortejar o pavilhão, mostrando que a
escola de samba é um local afetivo que proporciona ao compositor a idealização romântica de
personagens marcantes de um desfile e de grande valor na comunidade.
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Nesse viés, a partir da comparação com o samba composto por Martinho da Vila e o
samba de Didi - assinado junto de Mestrinho -, uma análise mais profunda da escrita de Didi
se é possível, já que, desta forma, é possível analisar os atravessamentos que os versos de “É
Hoje” possuem e, desta forma, auxiliar na investigação da figura de Didi e porque seu nome
está marcado na história do carnaval carioca.
meio da Baía de Guanabara, nunca teve o protagonismo dentro da dinâmica da cidade que
bairros como Tijuca, Lapa ou Copacabana possuem, sendo, por décadas, uma bucólica região
de veraneio, com pontuais áreas urbanizadas. Contudo, desde que esta região da zona norte
carioca viu sua maior escola ascender pela primeira vez ao grupo especial, cuja estreia foi no
carnaval 1975 com “Nos confins de Vila Monte”, sua imagem perante a cidade mudou. Isso
pode se explicar pelo fato da União da Ilha ser dona de diversos sambas marcantes, como “É
hoje”, “O amanhã”, “Festa profana” e “De bar em bar, Didi um poeta”.
De todos estes sambas-enredos listados, apenas um (Festa Profana) não tem ligação ao
compositor Didi, um dos sambistas mais marcantes da história da escola insulana e objeto
central de uma pesquisa construída desde 2018 com o professor Paulo Tonani. Neste capítulo,
a investigação tem como foco “O Amanhã”, outro samba-enredo marcante do carnaval da
tricolor insulana e que faz parte do cancioneiro popular brasileiro. O enredo, considerado
abstrato (MUSSA e SIMAS, 2010), foi idealizado e assinado pela carnavalesca Maria Augusta
Rodrigues, aluna de Fernando Pamplona e que também foi responsável pelo histórico desfile
“Domingo”. Contudo, no carnaval de 1978, a União da Ilha fez um passeio sobre todo o
conteúdo imagético que nos retoma a ideia de amanhã. A cigana que projeta nosso destino, as
perguntas seculares sobre “como será o amanhã?”, tudo isso transformado em alegorias,
fantasias e, acima de tudo, em samba.
Antes de iniciar a análise do samba-enredo é necessário discutir um aspecto que envolve
a autoria do mesmo. Didi entrou para a Ala dos Compositores da União nos anos 50, mas, por
não conseguir mais se dedicar ao mundo do samba, saiu da ala. O mesmo quis retornar para o
carnaval de 1978, mas existia uma regra que impedia novos ingressantes de colocarem samba
na disputa no mesmo ano em que entravam. Por isso, Didi escreve a letra de “O Amanhã” e
entrega para o mestre de bateria João Sérgio, que assinava o samba e era quem defendia o
samba na disputa. Por ter assinado a obra para a disputa, criou-se a polêmica de quem tinha
sido o verdadeiro autor da obra-prima que se tornou a música. Alberto Mussa, sobrinho de
Didi, garante que inclusive presenciou o tio compondo o samba-enredo; também podemos
encontrar matérias do O Globo Ilha que corroboram o argumento de Mussa, assim como a
própria União da Ilha, no carnaval de 1991, quando a escola o homenageou com o enredo “De
bar em bar, Didi, um poeta”, também colocou o advogado como autor do samba.
A questão da autoria sempre foi motivo de polêmicas no mundo do samba. Sinhô,
primeiro sambista a ganhar popularidade fora da Pequena África, chegou a cunhar a célebre
frase “Samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro”. Tal frase foi cunhada no
contexto dos sambas que eram gravados a partir de improvisações que aconteciam nos festejos
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das casas das tias baianas, onde, na maioria das vezes, as gravações não levavam o nome de
quem realmente a tinha escrito nos terreiros.
Com isso, evidencia-se como a questão da autoria é, historicamente, pertinente no
mundo do samba. A disputa pública que houve entre Didi e João Sérgio encontra referências
históricas no próprio meio, onde o reconhecimento como compositor de determinada obra era
de um valor social inestimável, pois permitia que a pessoa fosse considerado um “bamba”.
Podemos recorrer a Foucault para entendermos o porquê da questão da autoria ser tão
importante não só no samba como em todo o mundo moderno:
Essas diferenças talvez se relacionem com o seguinte fato: um nome de autor
não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou
complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce um certo
papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite
reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a
outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si; Hermes Trismegisto não
existia, Hipócrates, tampouco - no sentido em que se poderia dizer que Balzac existe
-, mas o fato de que vários textos tenham sido colocados sob um mesmo nome indica
que se estabelecia entre eles uma relação de homogeneidade ou de filiação, ou de
autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou de utilização
concomitante (FOUCAULT, 1969, p.13).
A partir dessa fala de Foucault, podemos estabelecer que a presença do nome do autor
em sua obra se torna pertinente pelo fato dela ser sua propriedade intelectual, sendo assim uma
partícula de um espaço amostral cuja autoria nos permite delimitar a partir de determinadas
características. Ou seja, assim como uma escola literária nos permite tipificar alguns livros
produzidos durante todo um período temporal, os sambas de autoria de Didi nos permitem
definir suas características – como seu estilo mais despojado, diferente do estilo mais de
“narrativa” que a maioria dos sambas-enredos apresentam. Nesse sentido, temos em Foucault
(1969, p.10):
O nome do autor é um nome próprio; apresenta os mesmos problemas que
ele. (Refiro-me aqui, entre diferentes análises, as de Searle.) Não é possível fazer do
nome próprio, evidentemente, uma referência pura e simples. O nome próprio (e, da
mesma forma, o nome do autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais
do que uma indicação, um gesto, um dedo apontado para alguém; em uma certa
medida, é o equivalente a uma descrição. Quando se diz "Aristóteles", emprega-se
uma palavra que é equivalente a uma descrição ou a uma serie de descrições definidas,
do gênero de: "o autor das Analíticas" ou: "o fundador da ontologia" etc.
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Outro teórico que nos vai trazer uma abordagem sobre a questão da autoria é Giorgio
Agamben (2007), onde se aborda sobre como o nome do autor transcende a formalidade de ser
apenas um registro:
O nome de autor não se refere simplesmente ao estado civil, não “vai, como
acontece com o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e
exterior que o produziu”: ele se situa, antes, “nos limites dos textos”, cujo estatuto e
regime de circulação no interior de uma determinada sociedade ele define
Com isso, podemos ver que a presença do nome de Didi na autoria se mostra pertinente
não só pela questão da propriedade intelectual, mas pelo fato do samba compor todo um
repertório construído pelo legado do compositor. Ou seja, “O Amanhã” só é “O Amanhã” por
ser, também, do catálogo de Didi, que ajuda a singularizar a obra do compositor e traçar
comparações sobre as similaridades entre seus sambas, como o estilo despojado de se narrar a
história que vamos ver no samba-enredo desta comunicação e no outro clássico, “É Hoje”,
diferente da estrutura prototípica de narrativa com início, meio e fim.
Na trajetória investigativa de entender o porquê de “O Amanhã” ser tão marcante, faz-
se pertinente analisar a letra do samba-enredo – que tem a missão de materializar um enredo
abstrato, onde a carnavalesca Maria Augusta carnavalizava a vontade humana de querer saber
sobre o futuro e todas as perguntas e mistérios que este pensamento nos traz. Este tema
contrasta significativamente com o que era apresentado no carnaval carioca nas últimas
décadas, até aparecer Fernando Pamplona, com quem Maria Augusta inclusive trabalhou.
Enquanto os enredos, nas décadas passadas, focavam nos grandes feitos e nomes da história do
Brasil, a União da Ilha, em 1978, pega um caminho totalmente inverso, mais próximo da
realidade cotidiana do brasileiro. Nestas décadas anteriores, predominava-se o samba lençol,
como “Aquarela Brasileira”, que continha muitos versos que narravam detalhadamente o
acontecido, conforme (MUSSA e SIMAS, 2010, p.57):
Os sambistas vinham de uma experiência de exaltação nacional desde os
carnavais de guerra e da vitória. Quando os enredos passaram a tratar de personagens
e datas históricas do Brasil, o tom laudatório e ufanista não desapareceu. Pelo
contrário, até se intensificou.
Em “O Amanhã” (Anexo 5), com um enredo de fácil assimilação e por conter signos
corriqueiros – inclusive por ser um tema que norteia a religião e a fé popular, não vamos ter
um samba denso e repleto de palavras difíceis. Pelo contrário, o fácil linguajar e a oportuna
condução do enredo pela carnavalesca proporcionam boas condições para o compositor e sua
obra.
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Tais signos rotineiros podem ser vistos logo na primeira estrofe do samba, onde o eu
lírico invoca diversos meios oraculares muito usados. Além de tudo, tais invocações encontram
nas esferas metafísicas o embasamento para justificar seus serviços. Alguns desses signos
inclusive são elementos de religiões de matriz africana, com o jogo de búzios e a cigana.
A cigana leu o meu destino, eu sonhei
Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante
Eu sempre perguntei
Com isso, podemos ver que o samba-enredo de Didi é um retorno à memória afetiva
coletiva sobre os meios mais populares para responder sobre o futuro. Tais lugares-comuns são
meios metafísicos que a humanidade criou para conduzir perguntas que nos afligem desde o
nascimento da filosofia: como será o amanhã? De forma lúdica e leve, Didi passeou por um
tema tão abstrato para nos mostrar que tal pergunta está impregnada no nosso pensamento e
que recorremos a diversas frentes para poder sanar esta dúvida.
Dito isso, podemos delimitar que Didi se mostrou com uma facilidade ímpar para
compor em cima de enredos abstratos, conforme também pode ser visto em sambas como “O
que será?” para o carnaval de 1979 e “É hoje” para o carnaval de 1982. São esses enredos que
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ajudam a carnavalizar a festa frente aos enredos ufanistas que dominavam os desfiles até a
década de 60 (MUSSA e SIMAS, 2010). Por isso, Didi pode ser colocado como um compositor
único na história do samba por ter inaugurado o jeito despojado e simples de se falar do que
não pode ser visto, apenas sentido.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
como a questão da autoria -, entender Didi é também entender uma parte da história do samba
e do carnaval, junto de todos os elementos que constroem historicamente festejos e
manifestações marcantes da cultura popular carioca.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MUSSA, Alberto e SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Civilização
Brasileira, 2010.
ANEXO - SAMBAS-ENREDO
(Marcelo Motta, Fred Camacho, Guinga, Getúlio Coelho, Ricardo Fernandes e Francisco
Aquino: samba-enredo do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro de 2016. )
Anexo 2 - É hoje
Garçom! Garçom!
Bota uma cerva bem gelada
Aqui na mesa
Que bom! Que bom!
Minha alegria deu um porre na tristeza
Poeta enredo da canção
Cartilha que eu aprendi
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A grande paixão
Que foi inspiração
Do poeta é o enredo
Que emociona a velha-guarda
Lá na comissão de frente
Como a diretoria
Glória a quem trabalha o ano inteiro
Em mutirão
São escultores, são pintores, bordadeiras,
São carpinteiros, vidraceiros, costureiras,
Figurinista, desenhista e artesão
Gente empenhada em construir a ilusão
E que tem sonhos
Como a velha baiana
O sambista é um artista
E o nosso Tom é o diretor de harmonia
Os foliões são embalados pelo pessoal da bateria
Sonhos de rei, de pirata e jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira
Mas a quaresma lá no morro é colorida
Com fantasias já usadas na avenida
Que são cortinas, que são bandeiras
Razão pra vida tão real da quarta-feira
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Anexo 5 - O amanhã