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DEVOÇÃO, MÚSICA E DANÇA: Uma analise das festividades públicas do Ilê Axé Obá Izô, 23
Heriverto Nunes Mendonça Junior
Correspondência
COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira
CASA DE NHOZINHO responsabilidade de seus autores, não comprometendo a
Rua Portugal, 185 – Praia Grande Comissão Maranhense de Folclore.
CEP 65010-480 – São Luís-MA
Fone: (0xx98) 3218-9952; (0xx98) 3218-9951
2
1
Historiador. Dr. em História pelo IFICS; professor de Pós-graduação da UEMA.
2
DURKHEIM, Emile; MAUSS, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação: contribuição para o estudo das representações
coletivas. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
3
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo. Ed UNESP, 1991.
4
RETORNO às origens. O Imparcial, São Luís, 13 fev. 1994. Caderno Impar,
5
Ibid.
6
Ibid.
7
RETORNO..., op. cit.
8
WOODARD, R. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000. Cap. 1, p. 7-72.
9
SILVA, Ribamar. Quando o carnaval era o terceiro do país. O Imparcial, 13 fev. 1994. Geral.
3
brincantes da folia de momo em São Luís. Enquanto isso a passarela era o símbolo de um
carnaval que não passava de uma cópia do carnaval do Rio de Janeiro.
Desse modo, Hall10 afirma que a identidade cultural de um povo está imbricada na
busca da recuperação de uma verdade passada desse mesmo povo, tendo como característica
uma origem comum.
Todos esses discursos que valorizavam o passado do carnaval ludovicense, sua
importância e a necessidade de recuperação (como se isso fosse possível!) eram materializados
nos jornais locais. Outro discurso acompanhava essa primeira premissa: o discurso da
importação, da competição e da descaracterização, que era presentificado no carnaval de
passarela. O carnaval de rua, portanto, seria um carnaval puro, com construções de limites
culturais rígidos, transformando a cultura ludovicense em uma cultura fechada em si mesma,
isolada de um contexto maior, enquanto a passarela seria o espaço de importação, de outros
carnavais.
O que, então, contribuiu para que, mesmo com a elaboração de um discurso contrário ao
carnaval na passarela do samba, bem como uma política cultural de desvalorização desse
espaço, o mesmo permaneceu e permanece ainda nos dias atuais? Primeiro foi a elaboração de
outro discurso produzido pelos defensores do carnaval de passarela que passa a desconstruir as
arbitrariedades e os conceitos que foram dados a esse tipo de carnaval.
Assim, de acordo com Paulo11, mesmo sendo criticadas, as escolas de São Luís
mantinham sua singularidade, seu estilo próprio, com temas que valorizavam a cultura do
Estado. Além disso, o compositor acredita que a carioquização do carnaval de passarela não
passa de uma estratégia de alguns para tirar proveito do carnaval de rua, pois as agremiações
que desfilam nos circuitos oficiais recebem para isso. Ressalto que esse discurso nas décadas
anteriores era apresentado de outra forma, pois,
[...] Os responsáveis pelos blocos e escolas de samba andam mesmo a passos largos nesse
setor momesco. Variam todos os anos as fantasias, aprimoram-se nos ensaios de música e
movimentação, ampliam mesmo o número de seus participantes enchendo as ruas de alegria, tanto
como se faz em Recife e no Rio [...] o carnaval maranhense se salva por causa deles, que são na
verdade dignos de todo elogio [...].12
Mesmo sem o apoio dos órgãos oficiais, como Prefeitura e Estado, a passarela sempre
foi um local de descontração, algazarra, competição, o lugar onde os brincantes ficavam
esperando o bloco rival passar a fim de saber se teria condições de ser campeão e,
principalmente,
[...] ao contrário do que muitos esperavam e até torciam, o público prestigiou o espetáculo
oferecido pelos blocos. Ninguém se intimidou e foi pra passarela com muita garra. A empolgação
foi tal que pareciam até que estavam com todo apoio dos donos do poder. As fantasias eram de
primeira e mostraram que em São Luís ninguém consegue acabar com a alegria [...]. 13
A reportagem mostra que, em 1996, mais uma vez a passarela sofreu com a falta de
apoio do poder público. Saliento que, em 1994, ano em que a passarela foi construída na última
hora, a estratégia era tentar acabar com o carnaval de passarela e não ocorrer o desfile oficial.
Nesse ano de descaso com o carnaval, as escolas, blocos e tribos de índio que foram para a
passarela oneraram seus cofres, mesmo sabendo que nada iriam receber em troca. Essa postura
mostrou a força daqueles que compartilham com o carnaval na passarela do samba – o carnaval
que também valoriza as coisas do Maranhão.
Desse modo, lançando mão de mais uma estratégia para dar continuidade ao carnaval de
passarela, os blocos, as tribos e as escolas de samba, buscaram no próprio carnaval de rua a
receita para a continuidade do carnaval de passarela. Em outras palavras, como as apresentações
dos circuitos oficiais nas ruas de São Luís eram pagas, essas brincadeiras passaram a participar
dos carnavais de rua para angariar fundos e comprar suas fantasias, cobrir seus instrumentos e
participar do carnaval de passarela. Nos circuitos oficiais, os blocos tradicionais se apresentam
com as fantasias do carnaval anterior, enquanto os blocos organizados e as escolas de samba
10
HALL, S. A identidade cultural na pós modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
11
Aresovaldo Paulo Noguera, São Luís, 7 mar. 2008. Entrevista concedida a Fabio Henrique Monteiro Silva. Filmado e gravado em
DVD.
12
DIÁRIO DA MANHÃ, São Luís, 16 fev. 1961.
13
O IMPARCIAL, São Luís, 20 fev. 1996. Geral.
4
confeccionam uma camisa identificando a sua agremiação. O certo é que o próprio carnaval de
rua, mesmo se posicionando muitas vezes contra o carnaval na passarela do samba, foi utilizado
por essas agremiações, de maneira estratégica, para dar continuidade à competição na passarela
do samba.
Aproveito para discordar daqueles que afirmam ser o carnaval de rua um espaço onde
não há competição. Ao contrário, essa competição apenas não está institucionalizada. Os blocos,
como disse Seu Paulo14, descem em peso para mostrar que um é melhor do que o outro e para
mostrar, também, que têm uma bateria mais cadenciada, com um maior número de brincantes.
Portanto, concebo isso como competição. Além disso, tradicionalmente, o carnaval é
competitivo, pois como afirma Burke15, desde o carnaval romano havia disputa de cavalo entre
jovens rapazes.
Nessa perspectiva, a passarela continuou sobrevivendo e sobrevive até os dias atuais e
abriga o samba, a parte poética de todas as agremiações carnavalesca, a rainha da festa, a
sacerdotisa da folia. É o local onde a música carnavalesca continua sendo cantada pelos
apaixonados por carnaval, o espaço onde as baterias fazem tremer o chão. É o palco onde não
existem espectadores, pois, como lembra Araújo16, a plateia mesmo ao assistir aos desfiles,
participa dele intensamente, divertindo-se e emocionando-se. Quantos foliões não choram ao
ver a sua escola passar? Quantos ritmistas não se emocionam quando a sua bateria começa a
tocar? Quanta felicidade é vislumbrada nos olhos e nos rostos dos amantes do carnaval. Por
isso, como versa o samba da Flor do samba de 1979 “carnaval é a festa maior”. É de fato a
maior festa que a nação Brasil pratica, e, em São Luís, a passarela do samba tornou-se um
espaço de contestação, resistência, paixão e dizibilidade, no qual pude perceber as mudanças
pelas quais o carnaval passou.
Reitero que as mudanças das agremiações auferidas na festa momesca de São Luís só
podem ser compreendidas com o advento da passarela do samba. Defendo a ideia de que antes
as manifestações que faziam parte do carnaval desta cidade estavam em constante
transformação, por isso que o carnaval anterior à década de 1970 é o carnaval dos cordões.
Nesse sentido, cordões é a classificação dada a todas as manifestações que faziam parte do
carnaval até antes de 1974, quando foi instituída a passarela do samba.
Isso não significa afirmar que na passarela do samba não havia diversidade; ao
contrário, foi o espaço onde diversas manifestações se apresentavam a fim de conseguir o título
do carnaval da capital. Ao tentar alcançar o tão almejado título, destaco como mudança
significativa na festa momesca primeiro a transformação das turmas de samba em escola de
samba.
Até a década de 1970, as escolas de samba de São Luís mantinham um padrão de roupas
que representavam as cores de cada agremiação e também cantavam vários sambas. A partir de
1974, quando foi instituída a passarela com arquibancadas, as escolas começaram a desenvolver
um samba-enredo, dividindo o desfile em várias etapas e mostrando tal desenvolvimento com as
alas estilizadas.
A mudança no tamanho das escolas fez com que diminuísse o número de participantes.
Além dessa mudança, o horário de desfile fora alterado; se antes as agremiações saíam pela
tarde para brincar o carnaval, a partir da construção da passarela, começaram a chegar cada vez
mais tarde. O folião que desejasse contemplar os desfiles das escolas de samba em São Luís
deveria ficar até a madrugada e, muitas vezes, até o amanhecer do dia para apreciar o espetáculo
carnavalesco.
As escolas cresceram, as charangas transformaram-se em blocos organizados, as tribos
de índio preferem temas brasileiros – por isso não se chamam mais Sioux ou Apaches, e sim
Guarany, Tupi e Carajás. Os blocos tradicionais enriqueceram suas fantasias, agora luxuosas, e
surgiu uma nova categoria: a dos blocos alternativos, que se fazem presentes no folguedo de
São Luís somente a partir da década de 1990. Mas as grandes mudanças nas formas de os
14
NOGUEIRA, Aerosvaldo Paulo. Entrevista, São Luís, 8 nov. 2007. Entrevista concedida a Fábio Henrique Monteiro Silva.
Filmado e gravado em DVD.
15
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
16
ARAUJO, Eugênio. Não deixe o samba morrer: um estudo histórico e etnográfico sobre o carnaval de São Luís e a escola
Favela do Samba. São Luís: UFMA/PREXAE/DAC, 2001, p. 34.
5
foliões exercitarem sua arte de fazer no carnaval podem ser sentidas na estrutura da festa e no
espaço social da mesma.
A cidade mudou: dos tempos em que os mais velhos saíam às ruas sem medo da
violência aos dias dos receios da violência constantes da atualidade. Por a cidade não ser mais a
mesma, os espaços em que os foliões praticam a festa carnavalesca também mudaram. Aquele
carnaval brincado na Rua do Passeio, Deodoro e João Lisboa, cedeu espaço para novas
localidades, como Liberdade, Cohatrac, Vinhais, dentre outros bairros ludovicenses. Os velhos e
saudosos carnavais não voltam mais, tem-se outro tempo, outra história – mesmo que seja no
mesmo espaço físico cujos interesses sociais, culturais e políticos são outros.
Como mudanças estruturais, ressalto o reflexo do crescimento da cidade e do número da
população, elementos que contribuíram para o aumento do número das brincadeiras. A
passagem da passarela de um local menor (Praça Deodoro) para outro onde pudesse comportar
um maior número de simpatizantes (Anel Viário); os circuitos do carnaval de rua que se
estruturaram com som, iluminação, dando uma nova característica a essa forma de participar da
festa carnavalesca; e, principalmente, uma mudança brusca na folia de momo ludovicense, são
elementos contundentes que fizeram com que o carnaval deixasse de ser do povo e passasse a
ser para o povo.
Eu seria um romântico em afirmar que o povo teve o domínio maior sobre a feitura da
festa carnavalesca em São Luís, mas como a elaboração da festa carnavalesca – seja nas ruas,
clubes ou passarela do samba – passou a ser determinada pelos organizadores, evidentemente
que são estes que determinam onde, quando e como ela deve acontece. A partir da instância em
que determinam os espaços onde o folião pode brincar este não pode mais ser considerado um
produtor da festa carnavalesca.
Compartilho com Canclini17 quando este afirma que toda vez que os grupos populares
perdem o controle, a produção e elaboração da festa, esta já não merece ser adjetivada de festa
popular. Nessa perspectiva, a partir da organização do folguedo momesco por parte do poder
público, o carnaval passa a se tornar não do povo, mas para o povo.
Ao ser organizado pelo poder público e pela iniciativa privada, o carnaval passa a ser
uma festa planejada, com investimentos, negociações e, principalmente, controle da mesma.
Não quero estabelecer com isso, muito menos afirmar, que existe um controle social sobre o
folião. Diria que, quando é instituído o desfile na passarela ou mesmo nos circuitos de rua com
horário de entrada e saída dos participantes e os organizadores da folia controlam com uma lista
o bloco ou escola de samba que faltou, isso diferencia muito o carnaval atual do carnaval
passado. Faz parte das mudanças estruturais do carnaval.
Nessa perspectiva, o que muda na festa carnavalesca ludovicense são as estruturas, que
tentam normatizá-la através dos seus órgãos institucionais, tais como a MARATUR, que ao
venderem um discurso acerca da melhor forma de participar da festa carnavalesca seria essa ou
aquela. O que se percebe é que de um lado, estavam os saudosistas que afirmavam que o nosso
verdadeiro carnaval era o carnaval de rua, como se existisse um falso carnaval que seria o de
passarela. Na verdade, elabora-se aí uma luta clara na tentativa de exercer o domínio na festa
carnavalesca, entre os representantes do Estado e aqueles que não aceitavam tal domínio e
demonstraram isso quando, mesmo sem ter concurso oficial em 1996, foram à passarela do
samba participar do concurso promovido pela imprensa18.
Nesse sentido, elaborou-se capital intelectual19 que, uma vez instaurado, se reproduziu,
tentando impedir, no caso do carnaval ludovicense, a continuidade do carnaval de passarela. Em
São Luís, o carnaval na década de 1990 esteve atravessado pela complexa luta entre esses
capitais simbólicos: rua versus passarela.
As mudanças ocorridas na festa carnavalesca em São Luís, visíveis na década de 1990,
não podem ser compreendidas fora da relação de força que existe dentro desse contexto
17
CANCLINI, Nestor. As culturas populares no capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
18
O ESTADO DO MARANHÃO, São Luís, 24 fev. 1996. Geral, p. 5.
19
Segundo Bourdieu, o conhecimento da organização interna do campo simbólico – cuja eficácia reside justamente na possibilidade
de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a
estrutura real de relações sociais – a uma percepção de sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitraria em que se
funda o sistema de dominação vigente. BOURDIEU, 2003, p. 14.
6
simbólico. Essa relação se torna mais acentuada nesse período, principalmente pelas mudanças
estruturais pelas quais a cidade passou.
Essas manifestações sentem o reflexo das mudanças sentidas na cidade de São Luís,
uma vez que o carnaval não pode estar dissociado dessas elaborações. Mudanças são inerentes
ao tempo, registrá-las é o papel do historiador, guardião das memórias de um povo, para que
estas não se percam no vazio da existência. Resgatar as memórias da história do carnaval de São
Luís é meu papel como historiador e folião de um tempo de belezas do carnaval – tanto do de
outrora como o do momento vivido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, Eugênio. Não deixe o samba morrer: um estudo histórico e etnográfico sobre o
carnaval de São Luís e a escola Favela do Samba. São Luís: UFMA/PREXAE/DAC, 2001.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
CANCLINI, Nestor. As culturas populares no capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983.
DURKHEIM, Emile; MAUSS, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação:
contribuição para o estudo das representações coletivas. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de
Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo. Ed UNESP, 1991.
HALL, S. A identidade cultural na pós modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
WOODARD, R. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T.
(Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2000.
Entrevistas
NOGUEIRA, Aerosvaldo Paulo. Entrevista, São Luís, 8 nov. 2007. Entrevista concedida a
Fábio Henrique Monteiro Silva. Filmado e gravado em DVD.
Artigos em jornais
RETORNO às origens. O Imparcial, São Luís, 13 fev. 1994. Caderno Impar.
SILVA, Ribamar. Quando o carnaval era o terceiro do país. O Imparcial, 13 fev. 1994. Geral.
Periódicos
DIÁRIO DA MANHÃ, São Luís, 16 fev. 1961.
O ESTADO DO MARANHÃO, São Luís, 24 fev. 1996. Geral, p. 5.
O IMPARCIAL, São Luís, 20 fev. 1996, Geral, p. 4
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APROPRIAÇÕES E TRADIÇÕES:
O BUMBA MEU BOI DO LITORAL DO PIAUÍ20
20
Retoma texto publicado em parceria com Priscila de M. Souza, no Boletim 60 da CMF - Junho de 2016.
21
Professor de História e pesquisador de cultura popular, com ênfase sobre Bumba Meu Boi do Piauí.
7
Acrisio, que baseado em fontes memoriais afirma a existência de Bois na ilha de Santa Isabel
desde o início da década. O octogenário Raimundo Bandeira, Amo do “Boi Igaraçu”, é da
mesma opinião. Carlos Penna Botto, no livro “Meu exílio no Piauí”, é o registro mais antigo
sobre a existência de bois em Parnaíba, no final dos anos 20. Penna Botto chegou a Parnaíba em
novembro de 1929, vindo do Rio de Janeiro para exercer a função de capitão dos Portos do
Estado do Piauí, retornando ao Rio de Janeiro em agosto de 1930, passando o período junino em
Parnaíba. É um livro comprometido com os ideais da revolução de 30, no que tange à crítica as
oligarquias. Foi escrito antes da revolução de 1930, e publicado em 1931, nas oficinas do novo
governo. Ele nos confirma as fontes orais coletadas por Pedrazani (2010) em relação às datas de
existência do Bumba Meu Boi, se não no estado, pelo menos na cidade de Parnaíba. Num relato
onde o tom é tão mal-humorado e conservador quanto o do padre Lopes Gama, em Pernambuco,
apontado como o primeiro relato conhecido sobre Bumba Meu Boi no Brasil, em 1840,
portanto, 90 anos antes do de Parnaíba, Botto afirma que:
Outra cousa chocante em Parnaíba e que está a chamar a ação policial é a bacanal conhecida pela
denominação de: “o boi”. Tratar-se de grupos de caboclos e pretos, homens e mulheres, todos
indivíduos desclassificados, que percorrem as ruas da cidade, de dia e á noite, desde S. João (24
de junho) até S. Pedro (29 de junho), as vezes até mesmo 1 de julho. A frente de cada grupo váe,
aos pinotes, um robusto negralhão fantasiado de “boi”; ao “boi” segue-se o tocador de um
instrumento sonoro africano, uma espécie de tambor que emite sons mistos e plangentes, e atrás,
aos saltos e gritos, uma quarentena de maltrapilhos, seminus, arquejantes, ébrios... E uma cena
verdadeiramente africana, de uma selvageria impressionante! Por mais de uma vez foi despertado,
alta madrugada, pela passagem barulhenta do “Boi” pela porta das Capitania. No ultimo dia cada
grupo “mata o Boi”, simbolicamente, no meio de uma orgia pandemônica!... (BOTTO, 1931, p.
214-215).
Do relato de Botto (1931) se pode afirmar que existiam pelo menos 02 bois em Parnaíba
em 1930, provavelmente 03, pela forma como o autor estrutura o parágrafo. Seriam,
provavelmente, os três celeiros tradicionais, São José, Catanduvas e Ilha Grande de Santa
Isabel? O Boi já era brincado no mês de junho. Não sabemos quando esse auto do ciclo natalino
se tornou uma festa do período junino no Maranhão, no Piauí e na Amazônia. As lendas
maranhenses sobre dom Sebastião parecem sugerir que foi no Maranhão que o boi se tornou
uma brincadeira junina. Benjamin Santos, editor do jornal memorialista “O BEMBEM”, afirma
que os bois de Parnaíba eram dedicados a São João, e que talvez isso “venha do tempo em que o
lugar se chamava Vila de São João da Parnaíba”. Atualmente, a primeira noite dos Bois não é
mais a véspera do São João, e sim, na noite em que cada Batalhão se apresenta no arraial da
prefeitura.
A brincadeira já possuía o caráter dionisíaco em que a cachaça era um dos elementos
vitais, como na fala de Benjamin Santos, no jornal “O BEMBÉM” sobre o Boi, do início dos
anos 50, através de suas fontes memoriais. A quantidade de brincantes do relato de Botto, nos
anos 30, é próxima à que Benjamin Santos conseguiu resgatar nos artigos que vem publicando
no seu jornal mensal: “40 maltrapilhos”, mas Botto nada nos informa sobre a Catrevagem, pois
só aparece o boi.
Seu Bandeira (2014) diz que menino, nos anos 40, viu um Bumba Meu Boi de Parnaíba
embalado apenas pelo maracá e pelo apito. Ele lembra que foi um maranhense, Luís Maranhão,
que no final da década de 40 introduziu o tambor de “Caixa” no Boi de Parnaíba. O Boi visto
por Penna Botto nos anos 30 é tocado por uma “espécie de tambor”. Que tipo de tambor seria?
Leôncio Rodrigues Sobrinho defende que o boi mais antigo do Maranhão é o de sotaque
“caixa”, em Humberto de Campos, Tutoia e Barreirinha (FERRETTI, 2015, p. 486). Seria o
mesmo sotaque do boi que existiu até recentemente em Amarante, no Piauí, intitulado boi de
“CAIXA”? Entrevistamos o último Amo e proprietário da brincadeira, que não sobreviveu à
atual administração municipal, isso numa cidade que sempre se orgulhou de suas “Semanas
Culturais”. Seu Bandeira nos afirmou que ainda menino viu, na década de 40, um Boi de
orquestra tocar na colônia do Carpina. (BANDEIRA, 2014).
Ferretti (2015) nos informa que na obra literária “Jacy – Lenda Maranhense”, de Sobbas
de Castra, publicada em São Luís em 1667, no Jornal “Semanário Maranhense” há a descrição
8
de uma dança do tambor, realizada com o consentimento do senhor na fazenda Coroatá (MA),
nas noites de sábado, com uma grande variedade de tambores.
Para Ferretti (2015), as danças de tambor descritas em jornais e outros documentos do
século XIX parecem mais relacionadas ao divertimento do que ao culto, mas a parte profana das
festas, era necessário solicitar licença na polícia para realizar uma brincadeira com tambor.
Examinando outros documentos nos quais o tambor era associado a uma atividade mais
diretamente religiosa e terapêutica denominada “maracá”, observa-se que a descriminação e a
perseguição pela polícia era maior. No Maranhão, desde a segunda década do século XIX o
tambor tem um lugar de destaque na vida do negro, apresentado junto a danças em brincadeiras
profanas e religiosas. O maracá aparece na documentação maranhense somente em 1892,
associado à pajelança (FERRETTI, 2015).
Nesse intervalo do início dos anos 30, os saberes ligados ao uso do tambor parecem ter
desaparecido de Parnaíba. Sebastião Caracas (2015), que morou em Parnaíba nos anos 40, entra
em conflito com as afirmações de seu Bandeira, quanto à existência de bois na década de 40.
Enquanto Caracas fala do início dos anos 40, Bandeira se refere ao final da década.
Provavelmente nessa época, início dos anos 40, os bois ficavam restritos à Ilha de Santa Isabel,
onde seu Bandeira viu o tambor sendo (Re)introduzido na brincadeira (BANDEIRA, 2014).
Quanto ao tamanho dos bois, essa é uma história polêmica. A maioria dos entrevistados
afirma que o boi parnaibano sempre foi grande. Chiquinho Reis (2015) “Folharal”, antigo
proprietário e tio do atual proprietário, confirmou nossas suspeitas, contando outra história. Na
sua época, o Boi era menor do que é hoje. Na “Casa Odilon Nunes”, em Amarante,
conseguimos uma prova material de que o antigo Boi Fazendinha tinha dimensões menores,
fotografando o boi comprado pelo Governador Dirceu Arcoverde, na década de 70, e doado ao
museu. Seu Bandeira e o dono do “Novo Fazendinha”, que brincou no boi menino, não aceitam
que a foto tirada em Amarante seja do antigo Fazendinha. O regulamento do campeonato da
prefeitura é citado hoje pelos boieiros como uma necessidade de o boi ser grande. O
regulamento, ao qual não tivemos acesso, fala, segundo nossos entrevistados, em imponência do
boi. Bandeira também nos fala do gosto do público parnaibano por bois maiores. Nossas
pesquisas apontam que pelo menos em dois dos três celeiros tradicionais – “Catanduvas” e “Ilha
de Santa Isabel”, o Boi possuía outro tamanho, com dimensões menores.
Para Penna Botto (1931), o boi brincava de dia e de noite. A presença de mulheres, nos
anos 30, é precoce em Parnaíba. Nos anos 50, Benjamim só fala na presença de homens. Teria
se enganado o capitão que vira por duas vezes o boi passar na porta da sua Capitania? Ou o que
teria feito as mulheres abandonarem o boi nos anos 50? As mulheres só acompanham os Bois,
como nas fontes citadas nos trabalhos acadêmicos do Maranhão? Os brincantes são pobres,
desclassificados, maltrapilhos, seminus. Caráter africano (BOTTO, 1931). “Eram todos homens
feitos, de uns trinta anos pra mais: estivadores, magarefes, cortadores de carnaúba... cada um
pagava o custo de sua própria roupa” (O BEMBÉM, 2013, jul. p. 6). Mais uma vez, as fontes
parnaibanas coincidem com a literatura acadêmica maranhense.
A polícia parece não ter perseguido os Bois, como em São Luís. Nos anos 50, o dono do
Boi em Parnaíba se responsabilizava, na polícia, pelo comportamento do seu Boi (BEMBEM,
2013, jul.). Batista também nos lembra de que como em outras partes do Brasil, a brincadeira de
Boi em Parnaíba era precedida pela licença pedida na delegacia, na época em que seu pai era o
Amo da brincadeira. Seu Bandeira, com seus 80 anos, foi várias vezes tirar licença para o boi
poder “botar o Boi para brincar” (BANDEIRA, 2014), fazendo com o boi o tradicional
movimento da meia lua em frente à delegacia. O memorialista Benjamin Santos (BEMBEM,
2013) também nos fala da obrigatoriedade da licença. O conjunto da produção acadêmica do
Maranhão sobre boi também nos aponta na mesma direção, utilizando para isso, não só as fontes
memorialísticas como fontes escritas (FERRETTI, 2015).
Nada encontramos sobre perseguições ao Bumba meu Boi no livro “Centenário da
Parnaíba”. Ali, cultura é sinônimo de alta cultura, representada pela poesia. Os autores do
capítulo “Segurança Pública e Criminalidade”, só nos informam que “as medidas de saneamento
tomadas pelas autoridades policiais têm conseguido bom êxito na repressão à prática do
curandeirismo e baixo espiritismo” (CORREIA, 1944), nada que nos fale diretamente sobre o
boi. Foi nessa época que Caracas morou em Parnaíba e nos afirma não ter visto nenhum rastro
9
de Boi na cidade. Teria a repressão ao “curandeirismo e baixo espiritismo” respingado nos bois
dos Tucuns, bairro próximo ao Centro, onde morava Caracas? Nos currais da Ilha e do
Catanduvas os bois persistiram, como nos mostram as entrevistas com Batista (2014), neto e
filho de Amos do bairro Catanduvas, e pelo menos com matracas e apitos na Ilha de Santa
Isabel, na memória dos octogenários João Ribeiro (2015) e Raimundo Bandeira.
Quanto aos memorialistas da cidade, Carlos Arakem (199?), em seu livro “Estórias de
uma cidade muito amada”, também nada nos informa sobre o Bumba Meu Boi, mesmo tendo
um capítulo de um dos seus livros, intitulado “As festas populares estão morrendo?”, no qual o
autor trata das novenas, das quermesses, dos leilões. No “Almanaque da Parnaíba”, também
nada encontramos. Em contraponto, a autora Elenita ao tratar das sociabilidades, apresenta o
Bumba Meu Boi (ARAUJO, 2002). A ausência de relatos sobre boi trouxe algumas
inquietações. Não era de bom tom falar sobre boi nos anos 50, mesmo amando a cultura
popular? Seria a composição social suficiente para explicar a ausência de registros sobre bois no
Piauí? Só um militar anglófono como Penna Botto, exercendo um trabalho transitório na cidade,
teria liberdade para tratar do tema? O relato de Penna Botto (1931), nos anos 30, reforça a ideia
de associar o boi às camadas mais pobres da sociedade. O silêncio sobre os bois estaria
relacionado ao Ritual da Morte dos bois, “uma orgia pandêmica que nos fala Botto (1931)?
No livro “Centenário da Parnaíba”, ficamos sabendo que a cultura negra era alvo de
perseguição policial (CORREIA, 1944). Em Parnaíba, a crítica contra a pajelança continuava
dura. É o que se vê no poema intitulado PARNAYBA; Pagelança, editado no jornal “O Paiz”,
que associa a pajelança ao espiritismo, pratica de bruxaria, tentativa criar uma seita, fanatismo,
liderado por uma mulher e sua família, “cobrando os 80 em dinheiro” (FERRETTI, 2015, p.
214-215).
Na Parnaíba de hoje, não é frequente o uso do termo terreiro para se referir à sede do
boi; nossos entrevistados parecem sugerir que ele foi mais utilizado no passado. Na Bahia, a
primeira notícia que se tem do uso da palavra terreiro com candomblé data de 1807: “presidente
do terreiro dos candambles (sic.)”, é como foi descrito o escravo angolano Antonio, por um
capitão de milícias (REIS, 2005).
No Maranhão, pelo menos a perseguição ao Bumba Meu Boi não ficou só no papel, o
boi foi proibido de brincar no perímetro urbano, não podendo percorrer as ruas da cidade, só
permitindo suas demonstrações no perímetro suburbano. No entanto, são mais flexíveis com o
carnaval. Desconhecemos a origem do secretário de polícia. Os jornalistas, provavelmente
advogados, foram formados no Recife? Suas preocupações civilizatórias se dirigem contra as
brincadeiras do “Ciclo Junino”, sendo mais tolerantes com os três dias em que se brinca o
carnaval. O apoio da imprensa é incondicional, como se pode ler na edição do “A Tarde”, de 30
de junho de 1915, que critica o boi por ter percorrido as principais ruas da capital. Tanta
perseguição à cultura popular teria que deixar sequelas. No artigo intitulado FOLK-LORE da
“PACOTILHA”, de 3 de julho de 1915, o autor lamenta que o melhor da cultura popular
estivesse desaparecendo de São Luís.
A imprensa parece mais agressiva do que a polícia, pois a pajelança não era crime, no
Código Penal da República Velha (FERRETTI, 2015, p. 85). Até o presente momento da
pesquisa, não tivemos acesso ao código de postura de Parnaíba, que era publicado nos Jornais
piauienses. Em São Luís, um novo código de postura foi publicado no Diário Oficial do Estado,
em meados de 1936, até agosto de 1937. Em São Luís, as religiões de origem negra se
distanciaram do Centro, onde eram perseguidas e onde ocorria uma forte valorização
imobiliária. A repressão policial se manteve mais ou menos estável durante as décadas de 1930
e 1940, e nas manifestações culturais, os bois tinham dificuldades para brincar no Centro da
cidade. A campanha contra o Bumba Meu Boi, na imprensa de São Luís, vinha através de uma
notícia que atribuía ao próprio povo da Villa Operária reclamações contra a “zoadenta”
brincadeira. Reclamações sobre barulho também são encontradas na Edição do “PACOTILHA”,
da capital maranhense, de 7 de junho de 1902. Sobre perseguição, no Maranhão, as atividades
relacionadas à cura, levaram à prisão de muitos pajés, e é possível que muitos deles tenham
migrado para a periferia, “iniciando-se na mina ou associando-se às velhas mineiras, tenham
passado a realizar rituais de mina em seus salões, como “reza” a tradição oral” (FERRETTI,
2015, p. 27). Ferretti (2015) não nos informa se algum desses perseguidos foi para o Bumba
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Meu Boi. Em Parnaíba, em outro momento histórico, seu Bandeira, Amo do Boi Igaraçu,
segundo seu filho “Gordinho”, que brinca de “Catirina” no Boi, só abandonou suas atividades
como “Macumbeiro” por recomendação médica, após um infarto.
A integração de Parnaíba à economia é recente. Acostumada a resolver praticamente
sozinha seus problemas, a cidade teve dificuldade com a crise provocada pele retração do
mercado da Carnaúba, nos anos 50, em dialogar com o governo estadual. Foi no governo do
parnaibano Alberto Silva, no início dos anos 70, que Parnaíba começa o processo de integração
no estado do piauiense. No Piauí, data dos anos 70 a preocupação do Estado em fortalecer os
grupos de Bumba Meu Boi. Os Bois de Teresina, Pedrazanni (2010) mesmo indica, foram
reerguidos nos anos 70, com a ajuda do governo, incentivado por migrantes da região central do
Piauí, que migram para a capital nos momentos de crise da economia piauiense, levando
consigo seus saberes. Hoje, o São João da cidade de Parnaíba é considerado um dos maiores
Brasil.
As grandes modificações na brincadeira de boi em Parnaíba ocorreram mais
intensamente nos últimos 20 anos. Aqui tem uma liga, chamada de “Sociedade de Bois”, que
chegou até mesmo a recomendar aos seus membros não participarem do “São João da Parnaíba
de 2014”, pela falta de apoio do Poder Executivo municipal, principal responsável, nas últimas
duas décadas, pelo financiamento da brincadeira do Boi, que acabou sendo a mais esvaziada da
história. Apenas três bois adultos foram para o “Quadrilhódromo”. Mesmo os personagens
centrais se modificam de uma região para outra. Além do Boi, a chamada “Catrevagem”
parnaibana conta com o “Pai Francisco”, a “Catirina” o “Folharal”, o “Cabeça de lata” e a
“Burrinha”. A cunhagem de um termo específico e a maior quantidade de personagens dá ideia
da importância dos mesmos na brincadeira. Atualmente, o auto do Boi em si está
desaparecendo, para cumprir o cronograma da “Secretaria de Cultura” da prefeitura.
O tempo de apresentação é de apenas 20 minutos para cada Boi, limitando a
apresentação a três ou quatro toadas. Tradicionalmente, a cidade tem três grandes currais: o
Catanduva, perto do aeroporto; os Tucuns (São José), na beira do Rio Igaraçu; e a ilha de Santa
Isabel. A brincadeira de boi parnaibana não está isolada dos vizinhos, nossas pesquisas apontam
que o nosso boi versa com pelo menos duas tradições. A “primeira tradição” é representada pelo
“Rei da Boiada” e pelo “Igaraçu”, Bois viajados e acostumados a participar de festivais fora de
Parnaíba. O “Igaraçú” foi, por mais de uma década, uma das principais atrações dos festejos
juninos de Teresina; e o “Rei da Boiada” ganhou o campeonato de toadas da capital.
Atualmente, a brincadeira sofre influência dos estilistas carnavalescos que atuam no Bumba
Meu Boi, como exemplo temos o Ednilson, no “Flor do Lírio”, e o “João da Guia” e o “Rafael
da Guia”, no “Rei da Boiada”, que são estilistas tanto de carnaval como de Bumba Meu Boi.
Outra influência é a do Boi-Bumbá, essa teve início na década de 90, com a introdução
de personagens oriundas do Boi-Bumbá de Parintins, na Amazônia, com o qual percebemos
maior liberdade e diálogo do que em relação ao Maranhão, daí nos questionamos a respeito do
porque da aceitação de Parintins e do carnaval, e a vigilância quanto ao Maranhão. Oficial é a
sinhazinha importada do Boi-Bumbá de Parintins pelos donos de Bumba Meu Boi que
contratam estilistas envolvidos na estética do carnaval e do Boi-Bumbá. Daí nos questionamos
se há preconceito, por ser no Maranhão, mais explícito, à religiosidade afro ou o que se pretende
é fugir da associação com um estado cujos índices sociais são próximos aos do Piauí.
A influência do Maranhão chega através da migração de brincantes e Amos, como por
exemplo seu João Rodrigues, pai do “Canarinho”, ambos Amos do Boi “Novo Fazendinha”, que
brincou Boi a primeira vez no Delta maranhense. Seu Raimundo Bandeira que viu, em São
Luís, o Boi de Viana, e o começo da profissionalização da brincadeira no governo Sarney. A
relação Parnaíba e Delta é de mão dupla, a exemplo temos o Amo “Mano”, que foi Amo do Boi
“Flor do Campo”, do Dr. Helio, em Parnaíba, e atualmente é Amo na cidade de Araioses, no
Delta, que também sofre influência do boi de Parintins, assim como Tutoia, nas suas danças
folclóricas.
O “Rei da Boiada”, do bairro Catanduvas, foi fundado em 1963, pelas três famílias mais
tradicionais do bairro: os Neres (Morenos), os Reis e os Santos, superando rivalidades seculares.
No passado, eram dois bois contrários, o “Rei da Boiada” e o dos “Morenos”. Com o processo
de modernização dos Bois de Parnaíba, o “Boi dos Morenos” foi incorporado ao “Rei da
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Boiada” (O BEMBÉM, jul., 2009). O atual proprietário, João Batista Filho, é o Amo principal
do Boi, além de ser filho (João Peinha) e neto (Sebastião Gerônimo) de Amos. A tradição oral
faz do “Rei da Boiada” um Boi quase octogenário. Já passou por várias denominações no
decorrer de sua história. Só como “Rei da Boiada” ele já existe há 53 anos.
O Boi mais antigo, de Parnaíba, em atividade, não incorporou apenas os brincantes e
saberes dos Bois extintos do seu bairro Catanduva. No sotaque, seus Tambores se aproximam
dos Bois de Teresina, que são mais impactados pelos bois de Sotaque de “Matraca” e ”Baixada”
do Maranhão. Mesmo em Parnaíba, o boi conversa com outros currais. Nos Tucuns, é forte a
presença de escolas de samba; e também ali, a modernização dos bois acabou com o boi mirim
Prateado, de onde Batista buscou Rafael da Guia, e seu pai, João da Guia, para cuidarem dos
adereços do boi. E foi mais ousado ainda, ao buscar nas Quadrilhas o bailarino Sharles para ser
o Pajé do Boi. O processo de modernização de bois é antigo e se intensificou nas últimas
décadas, com a premiação do concurso de bois, pela prefeitura. Hoje, é praticamente impossível
um boi pequeno, e mesmo médio, pensar em título. Os custos são altos, e os donos de bois, de
origem humilde, em sua maioria. Cada boi faz o Ritual de Morte do seu jeito, e a do “Rei da
Boiada” tem características dionisíacas. Impressiona o trajeto do “Rei da Boiada”, a caminhada
começa na sede do boi às 13h30min, e retorna ao campo do Botafogo, em frente à sede, às 17
horas, depois de percorrer vários bairros da cidade, acompanhado inclusive por alguns
integrantes do seu boi mirim “Garantido”, na faixa etária de 14 a 15 anos, numa espécie de
Ritual de iniciação para o Boi adulto (“Rei da Boiada”). Para Batista (2016), nunca houve
batizado de boi em Parnaíba. Foi o mesmo que ouvimos do Seu Bandeira (2014), bem como de
todos os outros entrevistados e lemos nas fontes consultadas. É uma característica Parnaibana a
existência de Bois mirins, inclusive com a prefeitura organizando um campeonato com disputa
de prêmios financeiros.
Localizado num dos três celeiros de Bois, a ilha é sede do vitorioso “Novo Fazendinha”.
Aqui estamos diante de outra tradição, que denominamos de “Tradição do Delta”, que são Bois
influenciados pelos Bois de outras cidades do delta do Parnaíba, fato reconhecido por Seu
Bandeira, que se diz influenciado pela batida do Tambor de Tutoia, depois que viu um de seus
bois se apresentar em Parnaíba. Tanto em Tutoia quanto em Parnaíba, é lugar comum entre os
brincantes de Boi que a batida dos Tambores das duas cidades é parecida (BANDEIRA, 2014).
A “Tradição Delta” troca figurinha com Tutoia, localizada na outra extremidade do Delta do
Parnaíba, e reconhecida como um dos principais viveiros de cultura popular no Maranhão, e
também com várias pequenas cidades entre Tutoia e Parnaíba, cuja população há muitos anos
tem migrado para Parnaíba (BOTTO, 1931). Essa tradição parece dialogar bastante com os bois
da Ilha Grande de Santa Isabel, onde se localizam os bois “Novo Fazendinha” e seu “contrário”
“Brilho da ilha”, bem como outros pequenos grupos. A linguagem usual entre os boieiros de se
referir ao grupo rival como “contrário” era usada na segunda metade do século XIX para se
referir à pessoa que estava com o diabo no corpo (FERRETTI, 2015).
Seu Bandeira, que passou quase dez anos em São Luís, viu algumas apresentações,
como a do Boi de Viana e do Boi de Rosário. Se os brincantes de hoje, em Parnaíba, gostam de
afirmar as particularidades do Boi local, relacionando a batida do Boi do Piauí à tradição e
zelando pela sua manutenção, numa espécie de “Rien du Chartier”, seu Bandeira é mais aberto
ao que viu e estudou, o que ficou demonstrado na sua entrevista. Quanto à batida do tambor,
Ednilson, o Loirinho, figurinista do boi “Flor do Lírio”, dos Tucuns, e do carnaval da cidade,
tambozeiro, é zeloso na defesa das tradições do Boi local: “Se mudar a batida, acaba o boi do
Piauí” (EDNILSON, 2014). Seu Bandeira é muito mais flexível. Seria um caso a parte? Não.
Batista (2014) nos diz que colocou índias e instrumentos de corda, cavaquinho e banjo, no seu
Boi, depois de ver uma apresentação do Boi “Pirilampo”, de São Luís, em Parnaíba. O único boi
do Piauí, atualmente, que é de orquestra, é o de Joca Marques, cidade próxima de Luzilândia, no
norte do estado, de propriedade de uma deputada estadual. O boi tem feito apresentações
sistemáticas, tanto no Piauí como no Maranhão, e sido razoavelmente remunerado para os
padrões piauienses. Recentemente, o boi se apresentou em Luís Correia, cidade vizinha a
Parnaíba. O Boi vive uma realidade diferente da dos bois de Parnaíba, frequentemente
abandonados na ajuda de custo por parte da Prefeitura. Os Bois do Piauí não são convidados
para apresentações em outros estados, não sabendo explorar os canais abertos pelo “Festival de
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Folguedos de Teresina”, que atrai brincadeiras de Boi, quadrilha e similares de vários pontos do
Brasil. Enquanto convivem com problemas de financiamento, observam os Bois de Parintins se
fortalecerem estruturalmente, levando, por tabela, o turismo da cidade; e a razoável estrutura de
alguns bois de São Luís, que participam de festivais nacionais e internacionais.
Apropriações acontecem em todos os níveis. Estudantes piauienses pegavam o vapor e
iam estudar em São Luís, e muitos publicavam nos jornais, a exemplo do oeirense Justino
Moura, no poema bem-humorado “Canções da Vida”. A imprensa de Codó, no Maranhão, que
difamava as religiões afro-brasileiras no final do século XIX, mantinha correspondência com os
jornais da capital e com jornais dos estados do Piauí e do Pará (FERRETTI, 2015, p. 76).
CONCLUSÃO
As respostas dos brincantes são difusas e talvez reflitam as mudanças na forma como é
entendida a cultura do mestiço. As políticas públicas do “Lulismo” resgataram a autoestima dos
descendentes dos índios do Piauí, a ponto de se tornarem novamente visíveis nos censos. Talvez
o Boi seja formado por vários mitos, refletindo sua formação mestiça de negros e brancos e,
posteriormente, de índios.
Concluimos que a brincadeira de Boi em Parnaíba, não tem o caráter estático pregado
por alguns tradicionalistas. Mesmo nos bois apontados como “verdadeiramente” parnaibanos,
como os da ilha de Santa Isabel, tanto no gigante e premiado “Novo Fazendinha” quanto no Boi
de porte médio “Brilho da Ilha”, notamos a existência de traços culturais presentes também na
parte maranhense do Delta, inclusive nos próprios brincantes, e até mesmos nos Amos, como é
o caso do Seu Rodrigues, o primeiro “Canarinho” do “Boi Novo Fazendinha”, migrante
Maranhense.
Ficou evidente, também, o impacto que a estética carnavalesca do bairro São José tem
provocado nos Bois, não só do seu bairro, com o segundo maior vencedor da década, o boi
“Flor do Lírio”, como no próprio “Rei da Boiada”, no outro extremo da cidade. É forte
igualmente a absorção de personagens de outra brincadeira, a do Boi-Bumbá, pelos nossos bois.
Além da introdução da “Sinhazinha” e da transformação do “Pajé” parnaibano num amazônico,
o próprio “Boi” tomou outras dimensões e formato, tornando-se similar ao “imponente” Boi-
Bumbá. Mesmo com essas transformações a brincadeira não se descaracterizou. Estamos
esperando a sua visita boieiro. Saudações Joaninas.
REFERÊNCIAS
ABRÃO, Calil Felipe e SOUZA, Priscila de Moura. O MEU BOI MORREU: O Ritual de Morte
do “Rei da Boiada”. São Luís: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, 2016.
ARAÙJO, Maria Elenita Santos. Parnaíba o espaço e o tempo. Parnaíba Piauí: [s.e.], 2002, p.
122.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Rio de
Janeiro: Bertrand/DIFEL, 1988.
CORREIA, Benedicto Jonas; LIMA, Benedicto dos Santos. O livro do centenário de
Parnaíba. Parnaíba: Gráfica Americana, 1944.
FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha (Org.). Um caso de polícia! Pajelança e religiões afro-
brasileiras no Maranhão 1876-1977. São Luis: EDUFMA, 2015.
OLIVEIRA, Nóe Mendes. Folclore Brasileiro: Teresina: FCMC, 1999.
PEDRAZANI, Viviane. No “miolo” da festa: um estudo sobre o bumba-meu-boi do Piauí.
Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2010.
PENNA BOTTO, Carlos. Meu exílio no Piauí. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931, p. 89.
FONTES HEMEROGRAFICAS
BOLETIN DA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE (consulta a coleção completa).
O BEMBÉM (consulta a coleção completa).
13
ENTREVISTAS
BANDEIRA, Raimundo. Parnaíba, 2014.
BATISTA FILHO, João. Parnaíba, 2014.
CARACAS, Sebastião Correia. São Luís, 2014.
GUIMARAES, Marcio. Florianópolis, 2015.
REIS, Francisco (CHIQUINHO FOLHARAL). Parnaíba, 2014.
RODRIGUES, João Batista. Parnaíba, 2015.
SANTOS, Antônio Honório. Parnaíba, 2016.
SANTOS, Acrisio João dos. Parnaíba, 2015.
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22
Este texto é parte da dissertação de Mestrado do Programa de Desenvolvimento Sócio-Espacial e Regional (UEMA) de Autoria de
Rosilene Martins de Lima orientada por Marcelo Cheche Galves. (2013).
23
Mestre em Desenvolvimento Sócio-espacial e regional/UEMA; membro do GP-Mina/UFMA.
14
24
No sentido do eu entendido reflexivamente pelo indivíduo em termos de sua biografia (GIDDENS, 2002).
15
emprego, não só como fonte salarial, mas também como lugar na hierarquia de uma
sociedade feita de classes e de grupo de status. (BOSI, 1994, p. 471, grifo do autor).
Compreender a natureza do trabalho do artesão/oleiro no seu dia-a-dia e a forma como
isso é marcado pelas dificuldades em manter-se na profissão não é tarefa das mais fáceis. Sua
sobrevivência envolve dimensões sociais, econômicas e culturais arraigadas a um sistema de
conhecimento local. Compreender aqui significa pensar como se dedicam a construir objetos
que garantam sua subsistência para além de suas necessidades materiais, objetos cujo empenho
a eles, alteram a sua vida cotidiana nos aspectos de sua existência.
Ao adentrar no espaço da pesquisa, as olarias propriamente ditas, chamou atenção a
recepção que o artesão dispensou ao abrir o seu dia de trabalho para conversar sobre o que faz
com o barro ou o que é o seu trabalho. Ao ouvir suas palavras, sente-se que “a recordação é tão
viva quanto presente, que se transforma no desejo de repetir o gesto e ensinar a arte a quem o
escuta” (BOSI, 1994, p. 474). Nenhum parou para ser entrevistado, enquanto trabalhavam,
narravam suas experiências.
Observo que durante a fala apontam um conhecimento da importância do trabalho que
executam e uma felicidade em saber que alguém mais pode reconhecer isto. Há algo de especial
na atmosfera do lugar e estava acontecendo naquele local e os artesãos não querem só falar, é
preciso que o pesquisador veja a feitura das coisas. Por diversas vezes fui indagada – a Senhora
já viu? A senhora conhece? E assim iam mostrando e relatando. A beleza do ofício cobria como
uma espécie de véu as dificuldades, elas existem, todos sabemos, não podiam ficar de fora, mas
pareciam que eram menores naquele momento, quando se tinha algo maior nas mãos.
Quando os artesãos contavam como aprenderam o ofício, sempre ressaltavam a
grandeza de criar algo com as próprias mãos. Essa associação logo me remeteu à história da arte
na antiguidade, quando o “artista”, pessoa da comunidade, era imbuída de poder mágico, algo
sobrenatural capaz de lhe permitir iconografar saberes criando objetos, em que o valor remetia a
contemplação, ou a ocasiões especiais. Mais significativo ainda foi perceber que ao mostrar as
olarias e o trabalho ali realizado, me dei conta de que toda a família, mesmo os membros que
não participavam da rotina da atividade, estavam ali, queriam mostrar algo que considerava
importante.
Abro um hiato para refletir o que acabo de relatar acima – não se trata de uma
contradição a respeito da presença de membros da família envolvidos na atividade ceramista, de
fato não foram localizados aprendizes da mesma raiz familiar em processo, o que
hipoteticamente sugere a preocupação com a erradicação, sobretudo das raízes culturais, se essa
fosse a única forma de repasse de conhecimento.
Há em alguns lugares e época o costume de ser da família a responsabilidade de
transmissão de saberes aos mais jovens, quando isso ocorre ela é a guardiã e cultua o costume,
preserva e repassa o conhecimento através de suas gerações zelando para que ele nunca se perca
e como garantia de que os membros sempre teriam uma profissão.
Esses legados soam como tesouros, heranças que foram repassadas ao longo das
gerações. Mesmo a evolução histórica das sociedades demonstra que houve uma melhoria na
qualidade de vida de sua população atravessando os tempos e transformando o imaginário de
todos. Todos querem prosperar em seu tempo, isto é tácito, embora se precise ainda perguntar:
por que manter na família saberes tão rudimentares, qual o valor desse saberes e para que eles
sirvam? Ou ainda, pode se ir mais longe e querer saber quem irá utilizá-los no futuro, a quem
interessa sua manutenção.
A história da cerâmica artesanal encontrada hoje em Rosário faz pouca referência da
época em que as famílias estavam envolvidas com cerâmicas artesanais, os mestres em atividade
relatam que aprenderam com um parente ou trabalhando como ajudante na olaria de terceiros.
Mas quando fui entrevistá-los, os artesãos, chamou-me atenção o fatos de ser acompanhado o
tempo todo por membros das famílias, que ouviam atento a resposta do mestre, num claro
silêncio de compreensão e respeito, e por vezes complementavam as falam que por ventura ele
esquecesse.
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O espaço/olaria também sofreu mudanças, embora não tenham sido tão rápidas. Conta o
artesão que normalmente se começa trabalhar em casa de moradia, senta-se a frente e começa a
feitura dos objetos. É dali que os outros os vizinhos e quem passa pelo caminho toma
conhecimento de suas atividades, olham, admiram, compram ou encomendam. Aos poucos, a
casa de moradia vai ganhando quintal e a oficina vai surgindo no meio da casa, o coração do
lugar, porque à frente ficam as peças prontas, em exposição para serem compradas.
Em outro aspecto observo que poucos artesãos já não moram no local de trabalho, mais
a maioria ainda mora. A família está presente no dia-a-dia. Mesmo que não esteja diretamente
envolvida nas atividades diárias, conhecem de perto as atividades e o orgulho do costume vai se
mantendo.
O trabalho do artesão implica uma série de competências que o desafia, ele tem ser
capaz de se manter na profissão com os poucos recursos que possui: frente ao mercado, deve
perceber nas dificuldades as oportunidades que surgem; na hora de produzir: definir que
produtos possuem maior potencial de venda. Segundo Grande et al. (2012) “trabalho dos
mestres vai além da produção, contemplando a comercialização e a relação com a comunidade e
seus consumidores”.
Ademais, deve se lidar com outras questões como as que têm surgido com o
crescimento e desenvolvimento da cidade. Nos últimos anos, a presença das olarias próximas às
residências tem sido motivo de intensas reclamações dos vizinhos sobre a fumaça oriunda da
queima no forno.
Segundo os artesãos até o momento as reclamações não questionam o desmatamento ou
algum dano ambiental, pois para produzir a queima utilizam-se sobras de podas de árvores e
madeira de demolição de casas residenciais. O foco está na produção de fumaça que causa um
mal estar nas proximidades.
Aos poucos, estas reclamações vão se intensificando e chamam a atenção para uma
problemática que não tarda a chegar, provocando reflexões sobre a continuação das olarias na
cidade. Já há casos em que o oleiro mudou de atividade devido à inviabilidade de manter a
olaria no centro urbano, por não conseguir conter tais conseqüências/implicações.
Não será possível, portanto, ver as questões sucumbirem sem respostas – os locais onde
se encontram hoje as olarias em Rosário estão rodeados de vizinhos, quase todos incomodados
com a fumaça produzida na queima dos objetos. Cabe ao artesão mais esta preocupação. Seu
Antonio/oleiro diz que nem sempre foi assim, mas se a cidade continuar se desenvolvendo, vai
ficar difícil trabalhar dentro dela. Ele próprio está em processo de mudança, diz que já era para
ter ido, está apenas aguardando terminar algumas coisas que está fazendo no novo endereço.
Resolver problemas não é a única condição para ser artesão/oleiro, mas é preciso refletir
sobre eles e debatê-los. Tratar cada questão a seu tempo aponta para a necessidade do coletivo, a
troca de ideias entre pares. A vivência das problemáticas permite examinar as condições
necessárias para o encaminhamento das discussões, algumas ausências são sentidas no discurso
do coletivo de artesão, isolado em seu labor.
O artesão reclama de sua Associação25, ausente do debate dos principais problemas que
o afligem. O fato de a Associação existir e ser deficiente nas suas questões administrativas,
deixar de realizar aquilo minimamente esperado pelos associados, configura-se como lugar de
ausência, desencadeando o imaginário daqueles que esperavam por algo que não veio. De
acordo com Grande (2012, p. 27):
A atividade artesanal hoje traz impactos para a economia, o que depende de vários
aspectos, como a disponibilidade de mão de obra, as políticas governamentais, os incentivos à
atividade, o mercado, o valor dado às tradições entre outros (BENTON, 1998). O Brasil
reconhece a importância econômica e cultural do artesanato - estima-se que essa atividade
corresponda a 3% do PIB (Produto Interno Bruto) -, mas vem implementando políticas de
incentivos à atividade lentamente. Duas dessas ações são o Programa Brasileiro de Artesanato
(PBA), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e o
Programa SEBRAE de Artesanato.
25
Os entrevistados demonstram claramente que conhecem a importância da Associação para pensar os interesses coletivos, para
reduzir custos e promover a cultura local, por isso expressam indignação.
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Garantir apoio ainda é uma meta importante dos artesãos para melhorar sua condição de
trabalho. Não é uma euforia do momento da entrevista, as angústias se repetem a cada
entrevistado. O relato das dificuldades que têm na hora de comercializar a produção fora da
cidade - despesas com aluguel de carro, combustível e motorista, além de passar uma semana ou
quinze dias na estrada. Quando as vendas acontecem logo é um alívio, duro mesmo é voltar com
a mercadoria e a despesa.
Outro sentimento desta memória coletiva é a ausência de saudosismos. De maneira
geral, o passado não é ressentido. Os artesãos relatam as mudanças como própria dos tempos e
das sociedades. Parece clara a ideia de que é preciso seguir em frente, sem a percepção de que
os tempos bons já passaram. A atividade ceramista é tida sempre como algo bom, possui suas
dificuldades, ainda assim, ajudou a criar os filhos, que hoje podem traçar novos caminhos. As
lembranças de tempos ceramistas aparecem sempre serenas.
Ao ver as mãos da artesã moldando o barro, nos vem à mente a sensação vivida na
infância de tocar o barro com as mãos e de criar formas imperfeitas, mas que traziam a imensa
satisfação de ver algo disforme ganhar contornos de animais e de pequenos objetos.
Apesar de levar em consideração as formas e condições de vida do artesão, não se pode
ignorar as condições de sua base produtiva, de onde advém as determinações materiais
expressas nas condições rudimentares de trabalho. Em essência, as novas organizações do
trabalho foram ampliadas de forma generalizada para todos os segmentos do mundo do trabalho
que estejam inseridos no sistema econômico vigente, o que faz com que a produção seja
motivada pelo fluxo do crescimento.
Essa dinâmica não é alheia à produção de cerâmicas artesanal em Rosário: o
artesão/oleiro enche as olarias com a produção, o cliente aparece, confere produto/qualidade,
certifica-se das condições de comercialização, e negocia a compra, que pode ser na hora ou pelo
sistema de encomenda.
Para compreender melhor essa realidade e as mudanças desencadeadas no mundo, que
atingem vigorosamente até mesmo culturas domésticas em que o costume e a transmissão de
conhecimento acontecem de geração a geração iniciadas por algum parente, como é o caso desta
produção de cerâmica, é necessário trazer à luz as diferentes perspectivas, as contradições e os
sujeitos envolvidos.
A exploração da terra para obtenção da argila utilizada na produção de cerâmica
artesanal em Rosário estabeleceu-se como um desses saberes pertencentes ao núcleo familiar.
Para Lipietz (1988, p. 37) a atividade desenvolvida no seio das famílias, dentro mesmo das
casas de moradia com pequenas extensões para o quintal, merece ser vista com muita atenção,
pois:
Nesse modo, o trabalhador direto é proprietário e possuidor de seus meios de produção
(escolhe sua destinação e os emprega ele próprio), e a finalidade (a lógica) da produção e da
reprodução simples da unidade de exploração. Entre os meios de produção figura a terra. A forma
de existência espacial deste modo é a superposição figura de um espaço econômico e de um
espaço jurídico parcelário, compostos por uma justaposição de unidades de exploração familiar,
organizadas em torno de cidades mercados.
Nesse âmbito, a figura central da olaria é o mestre oleiro, a figura masculina, ele é quem
mobiliza a família: esposa, filhos e parentes, pessoas que saem dos seus afazeres para ajudar na
tarefa de produção. Porém, poucas são as olarias hoje em Rosário que consistem unicamente no
núcleo familiar, aos poucos está ficando mais rara, por isso a luta pela melhoria das condições
econômicas que garantam a dispersão dos membros familiares.
O artesão/oleiro Roselias Gonçalves confirma a preocupação dos demais entrevistados,
pois acredita que se morrerem os mestres, os oleiros mais velhos, a produção vai acabar por que
não há aprendizes em número suficiente. Foi recorrente ouvir de todos os entrevistados que os
seus filhos não demonstram maior interesse e que eles mesmos não quiseram inserir os filhos
nessa atividade e acabam por migrarem para outros polos de trabalho: “Os meus filhos eu não
quis botar nenhum. Tem um que ta em Macapá e uma que ta em Tucuruí, é cabeleireira, o outro
é montador, dois que é formado na escola agrícola, técnicos agrícolas, e outro que mora aqui, a
classificação – dele e na área de concretagem”.
Os filhos desses artesãos/oleiros parecem não se interessar pela atividade dos pais. Nada
contra a atividade em si, mas muitos foram embora de Rosário em busca de melhores condições
de vida. Por outro lado, na própria cidade, outros jovens justamente porque não têm
oportunidades de trabalho ou porque não se constitue como mão de obra qualificada, chega às
olarias em busca de trabalho e tornam-se ajudantes. Novamente observa-se que é o peso das
suas condições sociais e econômicas que os empurra rumo ao trabalho artesanal com o barro.
Dentro de cada uma das olarias visitadas durante a pesquisa, sucede exatamente a
mesma coisa. A geração mais velha continua a comandar as olarias, mas a perpetuação do
núcleo familiar à frente da atividade está comprometida. Junto com ela, percebo que o repasse
de saberes agrega valores simbólicos, muito mais do que um simples repasse de conhecimento
como forma de representação social destes sujeitos, que ao longo de suas vidas demonstraram
interesse em seguir ou não o ofício.
É o caso dos que hoje são mestres, e que demonstra não ser necessário ter nascido em
uma família de oleiro para tomar para si tal responsabilidade. Adentraram as olarias como
ajudantes, aprendizes, cresceram em importância, executaram tarefas26, levantaram peças27, e
dinamizaram o cotidiano das olarias. Atualmente, a presença dos ajudantes está condicionada
diretamente as encomendas e ao volume de trabalho existente nas olarias. Quando há uma
encomenda grande, por exemplo, o dono da olaria precisa de muitos ajudantes para atendê-la.
Nesse processo, de resistência e de instabilidade, o ajudante também é uma categoria de
trabalhador que está escassa em Rosário. São chamados por ocasião da encomenda, portanto
precisam ter experiência no oficio, mas as condições de trabalho não são atrativas e não lhes
oferecem garantias; ganham pela produção, de maneira temporária.
Saber lidar com o barro é uma das profissões mais comuns em Rosário. De alguma
forma foi aprendida, seja ainda na infância/adolescência ou em outro momento da vida do
trabalhador. Embora para a maioria a atividade nas olarias ocupa uma posição secundária, nem
todos vivam desse conhecimento, a maioria dos ajudantes intercala o oficio com o trabalho em
firmas, ou alguma outra prestação de serviços, chamada de “bico”, como: pintura de paredes;
ajuda em obras; fabricação de tijolos na indústria de construção civil, entre outras.
Em contrapartida, a relação dos ajudantes com a olaria é fruto das condições de vida que
o município oferece aos seus habitantes, expressão da ausência de políticas públicas que
garantam qualidade de vida e melhores condições de trabalho. É possível reconhecer nestes
trabalhadores que eles estão excluídos do mercado formal de trabalho e suas condições os
denunciam através da baixa escolarização e desemprego. A frágil condição social desses
trabalhadores o mantém ligado às olarias, garantia, provisória ou não, de seu precário sustento.
26
Acordos tratados na contratação da mão-de-obra em que o oleiro/ajudante combina realizar determinada tarefa que corresponde a
um número X de produtos.
27
“Levantar uma peça” – expressão usada dentro das olarias com referencia ao torno seja elétrico ou pedal, devido ser no torno que
as peças ganham forma dos objetos.
19
Ao comparar o número de olarias que existiam há dez anos (cerca de 50) com o número
das mesmas olarias em funcionamento no período da pesquisa (total de 15), vê-se claramente
que houve uma redução do ponto de vista quantitativo expresso nos números. Entretanto, as
condições funcionais da atividade chamam a atenção para a mensuração das informações, daí
passou-se analisar itens como a qualidade, o ritmo e a dinâmica funcional destas olarias em suas
especificidades.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa: Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3.ed. – Companhia das letras, 1994.
São Paulo/SP.
GRANDE, Márcia Mazzeo. et al. Da Tradição à Modernidade: O Savoir-faire do Mestre de
Ofício na Produção da Cerveja e da Cachaça Artesanais Contribuição. Revista Interdisciplinar
de Gestão Social. Universidade Federal da Bahia, Escola de Administração Centro
Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão v.1 n.3(set./dez. 2012). Salvador: EADUFBA,
2012. Disponível em www.rigs.ufba.br acessado em 20/7/2013 às 17h.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. 12 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LIPIETZ, Alain. O Capital e seu Espaço. São Paulo: Nobel, 1988.
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O Terecô é uma prática religiosa comum na região central do maranhão, mas que
também se difundiu por outros estados (Ferretti,2003). O presente artigo contém algumas notas
sobre os primeiros terreiros “oficiais” da cidade de Bacabal(Ma). Esse estudo só tem sido
possível com auxílio dos estudos de memória.
Quando iniciei, em 2011, a realizar o mapeamento de terreiros do município através do
Projeto “Afros e Étnicos em Cena”30, procurei a Secretaria Municipal de Cultura, mas não
obtive informações sobre os terreiros. Desde 2013, representando grupos vinculados à cultura
negra, sou membro desse Conselho, que costuma não considerar as religiões afro-brasileiras
como algo legítimo no quadro cultural local. Existe, claramente, um processo de silenciamento
não só do Terecô, mas também das comunidades quilombolas que surgiram antes da
emancipação do município.
Continuei a mapear os terreiros e casas de Umbanda e Terecô através do Projeto
Memórias e Culturas Negras (FAPEMA, 2012-3), tendo encontrado terreiros bem antigos
funcionando no centro da cidade. Importante salientar que a Secretaria de Cultura negava a
existência dessas casas, afirmando desconhecê-las, exigindo documentos ditos “oficiais” para
comprovar sua existência.
Era uma manhã de terça-feira, quando iniciei, em 2012, pelo centro da cidade de
Bacabal, o mapeamento de terreiros, acompanhado pela colega de turma Larissa Lago. O
primeiro terreiro visitado fica próximo à Rua Magalhães de Almeida, uma das mais
movimentadas da cidade, aproximadamente quatro quilômetros de distância da Secretaria de
Cultura. Fomos recebidos por Dona Raimunda da Conceição, uma senhora de cabelos brancos
de sessenta anos de idade.
28
Esse material faz parte do trabalho de campo realizado entre 2011 –2015.
29
Mestrando em Antropologia Social (UFG); bolsista CAPES; membro do Grupo de Pesquisa GPMINA e do Núcleo de Estudos
NEÁFRICA.
30
2 O Projeto Afros e Étnicos em Cena (PROEXT-MEC/SEPPIR) foi coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Evaldo Almeida Barros e
consistiu na realização de oficinas de Estudos Africanos e Afro-brasileiros destinadas a professores da rede pública e alunos dos
Ensinos Básico e Superior de Bacabal. Paralelamente, realizava-se o mapeamento dos terreiros do município.
20
Dona Raimunda nos convidou para tomar café e durante o bate-papo conversava sobre
sua vida, o quanto é difícil continuar a labuta e como a saúde é algo que pesa na velhice. Foi
quando mencionou o nome do falecido marido, apontando para a parede do terreiro, e
mostrando os documentos da Federação de Umbanda. Sua fala era sempre marcada pelo
saudosismo aos tempos de prosperidade que o marido conseguiu para família.
O falecido senhor Catarino Cardoso Silva, conhecido como seu Cantor, ainda é
relembrado como um grande homem e figura central para as tradições religiosas afro-brasileiras
da cidade: homem negro de voz imponente, que sempre alegrava os brincantes nos dias de festa.
Seu Cantor deixou muitos filhos de santo espalhados por todo o Brasil. Era um homem de força,
com doutrinas fortes e muito carismáticas.
Seu Cantor tinha orgulho dos diplomas que possuía. O seu terreiro foi um dos
primeiros da cidade de Bacabal a ser cadastrado junto à Federação de Umbanda. Faleceu no ano
de 1994. Dona Raimunda deu continuidade às obrigações do terreiro. Atualmente a maior festa
ocorre na data festejada pelos católicos a São Francisco, esse mesmo santo é reverenciado no
nome social do terreiro.
Dona Raimunda é a segunda esposa de Seu Cantor. Ela relatou que o marido manifestou
sua mediunidade ainda na infância, casou-se e foi morar no bairro conhecido como Trizidela, na
periferia da cidade de Bacabal. Foi nesse período que fundou o seu primeiro terreiro, Depois ele
se separou da primeira companheira e foi morar com ela. Disse que antes de fundar o atual
terreiro em Bacabal já existiam outros grandes terreiros no município, mas que ninguém possuía
documentos, pois não era obrigatório no período. Foi quando iniciaram as perseguições aos
centros religiosos por volta dos anos 1940-60, que então o marido para São Luís e conseguiu o
documento que autorizava bater os tambores.
É importante ressaltar que o Estado do Maranhão foi permeado por perseguições as
religiões afro e também outras expressões da cultura popular. No livro organizado pela
pesquisadora M. Ferretti (2015), consta casos de perseguições policiais e outros tipos de
violência, o marco temporal é 1876 – 1977, o livro além de artigos de pesquisadores, tem na
segunda parte, transcrições documentais das matérias de jornais que circularam no presente
período.
Sabe-se que antes do momento de oficialização da Umbanda, os cultos afro-brasileiros
eram constantemente reprimidos pelos agentes policiais, que consideravam tal prática como um
desvio, elementos causadores de danos aos códigos de moralidade da época. Era comum a
prisão de brincantes: muitos dos sujeitos entrevistados durante a pesquisa de campo falam de
momentos difíceis enfrentados pelos familiares no tempo da perseguição policial aos terreiros.
As práticas sociais de grupos negros [Terecô, Tambor de Mina, Bumba meu Boi,
Tambor de crioula e etc] a exemplo das festividades e costumes populares foram, portanto,
controlados com rigor desde os tempos coloniais até fins do império e durante a primeira
metade do século XX. Os escravos, índios e mestiços eram cerceados em suas atividades por
inúmeras prescrições. Membros da irmandade da Casa das Minas [São luís- MA] relataram
casos de perseguições religiosas que sobrevivem na memória do grupo (FERRETTI, 1995).
Na parede do terreiro, dois documentos comprovam a existência da Tenda de Umbanda
São Francisco: o primeiro documento é de 07/08/1948, expedido pela Secretaria de Segurança
21
Esse é um dos poucos terreiros mais antigos da cidade que possui documentação oficial
de sua existência. Importante salientar que não havia intenção direta de recolher tais
documentos. Como a maioria dos terreiros antigos hoje está fechada ou sendo chefiada por
outros sujeitos, ter acesso a esse tipo de material requer tempo, ou então em alguns casos esses
documentos aparecerem sem nenhum motivo aparente. As pessoas os apresentavam como que
para comprovar sua existência e para mostrar a que lugar pertencem.
O segundo terreiro é datado do mesmo período que o terreiro de seu Cantor, segundo o
relato de muitos chefes de terreiro, era comum o contato entre as casas de santo nas festas da
região do Mearim. Foi na casa de seu Zé Urú que iniciou a história da minha avó e
consequentemente minha mãe no santo, seu Zé Urú era conhecido como um homem de grandes
poderes espirituais, as informações que obtive sobre ele estavam em meus cadernos de campo
de 2013, foi quando passei a me interessar pela história das primeiras casas da cidade.
É difícil conseguir material sobre as casas de santo antigas em Bacabal, muitas já não
existem mais, os mais velhos já faleceram e em muitos casos é a nova geração de brincantes que
acaba fornecendo as informações, “memórias de momentos vividos por tabela” Pollak(1992).
Quando fui ao local onde funcionava o terreiro, encontrei a ex-mulher de seu Zé Urú, conhecida
por carmina, ela deu poucas informações sobre o falecido esposo. Atualmente, nesse mesmo
lugar funciona um “novo” terreiro desde 2004, “Tenda Espírita de Umbanda Nossa Senhora do
Carmo”, ao qual dona Carmina afirma não ter nenhum vínculo com o terreiro anterior.
Para obter mais informações fui ao meu caderno de campo de 2014, quando comecei a
conversar com minha família sobre a existência dessa casa. Maria de Lourdes Pacheco, nasceu
22
no ano de 1925, faleceu aos 75 anos na cidade de Bacabal-MA. Em sua casa ela rezava em
crianças, era parteira, realizava diversas obrigações, trabalhava de mesa, era considerada uma
pajoa. Foi uma das primeiras filhas de santo de seu Zé Urú. Segundo Angela, minha mãe, O
terreiro era conhecido como Tenda do Capitão da Jurema, entidade de seu Zé Urú, ficava
localizada na rua Artur Azevedo n° 584, Bairro da Esperança.
Vale ressaltar que a ênfase metodológica recai sobre o diário de campo. Como sugere
Malinowski (1978), “o diário etnográfico, feito sistematicamente no curso dos trabalhos num
distrito, é o instrumento ideal para esse tipo de estudo” (p.35). Segundo Fonseca (1998), uma
maneira de fazer um bom trabalho de campo é estudando a subjetividade, ritos sociais e a
educação sentimental dos envolvidos, tendo o diário de campo a função sistematizadora, mas
sem esquecer que os nossos modelos sempre serão simplificações grosseiras da realidade
Minha mãe foi preparada e batizada pelo pai de santo Zé Urú. O primeiro contato dela
com o mundo do Terecô ocorreu na infância. Sua mãe, todos os domingos, a levava para as
sessões, ela ficava sentada no banquinho observando o ato religioso, enquanto Maria de Lourdes
resolvia suas pendências no terreiro.
A primeira vez que recebeu sua entidade foi aos sete anos. Segundo minha mãe, havia
um poço na casa onde ela morava e esse local a arrastava, ela residia na rua Tavares de Moura,
uma quadra do terreiro: “é como se tivesse um imã entre o poço e eu, a primeira vez eu tinha
apenas sete anos”. Em um desses momentos de manifestação a entidade incorporou, depois
subiu em cima da casa onde ela residia, então começou a ameaçar jogar-se no chão. Foi nesse
momento que Maria de Lourdes foi ao terreiro que frequentava, solicitou ajuda ao pai de santo
do terreiro. Então, Zé Urú resolveu o problema naquela tarde, mas que voltou constantemente a
repetir-se. Foi quando a mãe de Angela resolveu leva-la para realizar o trabalho de afirmação,
logo mais tarde ele realizou o seu batismo no Terecô.
Angela conseguiu estudar até o Ensino Médio, ganhou uma bolsa de estudos na Escola
Governador Sarney em Bacabal. Nesse período disse ter sofrido muito preconceito. A mãe dona
Lourdes tinha uma mesa de santo em casa, fazia consultas e frequentava a casa do pai de santo,
“eles me chamavam de feiticeira, filha de macumbeira, meu Deus eu sofria, o povo me chamava
de feiticeira, macumbeira, eu ficava calada, nunca fui de brigar, a mãe falava pra eu não dizer
nada, seu Zé dizia que não era pra ligar, às vezes eu andava umas quadras de casa para não
escutar essas coisas” (Pesquisa de Campo 22/01/2013).
Francisco José, meu pai, chefe do Terreiro de São Raimundo, constantemente
participava dos toques no terreiro de seu Zé Urú, algumas vezes ele foi acompanhado da minha
avó e minha mãe: Quando já estava quase chegando aos 23 anos apareceram uns problemas de
saúde, questões que os médicos não encontravam soluções, em uma noite na casa do Pai de
Santo Zé Urú dancei a noite toda e não senti nenhum problema de saúde, foi nesse dia que
constatei que o problema era espiritual, foi ai que depois coloquei meu terreiro.
De certa forma, O terreiro de São Raimundo Nonato, situado na Rua da esperança, em
Bacabal(Ma), com vinte e quatro anos, carrega traços do terreiro de seu Zé Urú, através da força
da mãe pequena, segunda pessoa na hierarquia do terreiro.
REFERÊNCIAS
FERRETTI, Mundicarmo. Formas sincréticas das religiões afro americanas: o terecô de Codó
(MA). Cadernos de Pesquisa. São Luv.14, n.2, jul./dez. 2003, p.95-108
______. Um caso de polícia! Pajelança e religiões afro-brasileiras no Maranhão 1876-1977 /
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (Organizadora). – São Luís: EDUFMA, 2015.
FERRETTI, Sergio Figueiredo. Folclore e cultura popular. Boletim da Comissão Maranhense
de Folclore. N. 11, 1998. Acesso em: 26/04/05.
FERRETTI, Sérgio F. Querebantan de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas. São Luís:
EDUFMA, 1985;
______. Repensando o Sincretismo. São Paulo: Editora USP / São Luís: FAPEMA, 1995.
FONSECA, Claudia. Quando cada caso Não é um caso. XXI Reunião Anual da ANPEd,
Caxambu, setembro de 1998.
23
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Ferretti, M. (1985, p. 37) analisa a matriz afro Tambor de Mina como uma religião de
descendência africana desenvolvida no Estado e praticada em locais especializados e específicos
para essa finalidade Casas de Mina sendo estática e iniciática, a partir da incorporação de
entidades espirituais (Voduns, Orixás e Caboclos).
As entidades cultuadas pelo Tambor de Mina são recebidas, em transe, pelos vodunsis,
também chamados de “filhos de santo”.
Segundo Mundicarmo Ferretti as entidades do Tambor de Mina podem ser classificadas
e descritas como:
a) divindades africanas: voduns (entidades dahomeanas) e orixás (entidades iorubanas).
Entre os voduns cultuados nas casas pesquisadas, os mais conhecidos são: Doçú, Averequete,
Badé, Sogbô e Abê. Entre os orixás mais cultuados são: Ogum, Oxóssi, Xangô, Iansã, Nanã e
Iemanjá. Neste terreiro, o termo vodun também é usado para designar tanto as entidades
Dahomeanas como as Iorubanas;
31
Com base em um conceito de “festas” veiculado na internet apresentamos uma analise do ciclo festivo do terreiro de Tambor de
Mina Ilê Axé Obá Izô. O vocábulo latino festum é o plural de festa, daí derivar a palavra “festa”. Trata-se de um rito social,
partilhado entre um grupo de pessoas, para marcar um certo acontecimento em forma de celebração. Os aniversários e as bodas de
casamento são dois exemplos de ocasiões que se festejam. Para que uma festa seja considerada um rito, os participantes devem
adoptar um papel para a ocasião, em geral descontraído e desinibido. A festa pode incluir música, dança, disfarces e comida. Cada
festa tem os seus próprios ritos: nos aniversários, por exemplo, o aniversariante costuma soprar velas que se encontram em cima do
bolo. Aqueles que assistem à festa, por sua vez, oferecem prendas ao aniversariante. A quantidade de pessoas envolvidas na festa
varia consoante o evento. Uma festa de aniversário pode incluir umas poucas pessoas do mesmo grupo familiar; em contrapartida,
há festas que são nacionais e que envolvem toda uma nação. Neste último tipo de festas pode incluir-se a comemoração do Dia da
Independência de cada país. Dá-se o nome de festa oficial a qualquer festa em que o Estado se envolva na organização. Desta forma,
o governo decreta feriado para que a população não tenha de cumprir com as obrigações laborais e se possa juntar aos festejos.
Convém destacar que o conceito de festa está associado à diversão e ao regozijo independentemente do evento em si. Por isso,
existem frases como “Não vamos estragar a festa” (quando se pede a alguém para não causar distúrbios ou problemas), que se utiliza
mesmo quando não se esteja no meio de um festejo. (CONCEITO.DE, 2017).
32
Arte Educador, Graduado pela Universidade Federal do Maranhão, Pesquisador de cultura Afro-Brasileira, Cantor e Compositor,
atua como professor de Arte em redes particulares de ensino.
24
Foto 1: Pai Wender em transe com Xangô, principal entidade africana do Ilê Axé Obá Izô
Foto 3: Pai Wender em transe com Jariodama, principal entidade turca do Ilê Axé Obá Izô
d) caboclos: os caboclos da mina não são considerados nem índios nem espíritos de
mortos (eguns), embora tenham tido vida terrena e, às vezes, tem ligações com grupos
indígenas. Apesar de muitos serem de origem nobres, geralmente são associados a aldeias e
conhecidos como de fora do palácio.
Os encantados recebidos nos terreiros diferem dos voduns e orixás, porque não
pertencem ao panteon africano, logo não podem ser incluídos na categoria de voduns e orixás.
São diferentes dos orixás devido não serem forças cósmicas e dos voduns por não fazerem parte
da família real do Dahomé, divinizadas no culto Mina Jeje, e por não serem grupos africanos
vindo para o Brasil (FERRETTI, M. 1994, p. 116).
Foto 4: Seu Cravinho, entidade da Mata de Codó (Maciodá), um dos principais encantados e o mais
presente no Ilê Axé Obá Izô
Fonte: do autor
e) índios: entidades, que não falam bem o português, nem pautam sua conduta pelas
normas de bom comportamento. Geralmente não vem ao terreiro em dia de toque. Para essas
entidades realizam festas especiais como o Tambor de Índio ou Borá.
f) meninas ou tobossis: entidades femininas infantis para quais também são realizadas
festas especiais ou junto com Iemanjá, Oxum ou Navé.
Segundo Sebastião Cardoso (2003), são muitas as entidade cultuadas no Tambor de
Mina, como os Orixás Nagôs, Xangôs, o deus da Justiça e Iemanjá, sua mãe, deusa das águas
salgadas, Oxum, deusa das águas doces e do ouro, Iansã, deusa do raio e do vento, Ogum, deus
do ferro e da guerra, Oxossi, deus das matas e da caça, Obaluaiê, deus das doenças e da saúde,
Nanã, deusa da lama e Exú, que não possui culto específico, mas é referenciado. Os Voduns são
geralmente agrupados em famílias, como as de Badé Quevioçô, Davice e Dambirá.
Existem também entidades, nobres e caboclas, muitas delas oriundas da cura ou
pajelança. Os nobres são entidades com nomes europeus, relacionados com Voduns e Orixás.
Como exemplo, o Rei Sebastião, que reinou em Portugal. Após a sua morte, em 1578, surgiu a
lenda de que seria encantado durante a batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos. No Maranhão,
talvez devido à influência de sermões do Pe. Antonio Vieira, considerados sebastianistas, o Rei
apareceu como encantado, na praia dos Lençóis, próximo ao Parcel de Manoel Luís, no
município de Cururupu. Ali, ele teria formado sua corte, sendo o Palácio de Queluz transferido
para lá, com toda sua riqueza de tesouros. O Rei teria se encantando em um touro negro, que
soltava fogo pelas narinas, e o seu encantamento só acabaria se a estrela que possuía na testa
fosse perfurada. Então, o Rei voltaria em sua glória e esplendor para a corte de Queluz,
enquanto a ilha de São Luis afundaria. No Maranhão, o Rei Sebastião é um nobre que é
reverenciado como Xapanã. Outros nobres importantes são: D. Luís, Rei de França, ; D, Pedro
26
Angasso; D. José Floriano; D. João das Minas; D. Miguel da Gama; Maria Bárbara Soeira ;
Rainha Rosa; Rainha Madalena; Princesa Luiza; Princesa Linda e outras.
Os fidalgos ou gentilheiros são representados por famílias, como a família da Turquia,
família da Bandeira e família de João de Lima, e não são reverenciados como Orixás. Os
caboclos são entidades relacionadas como indígenas, pescadores, caçadores, vaqueiros ou
boiadeiros, agrupadas também em famílias, como as de Bahia, de Seu Baiano Grande, e a
família de Codó, de seu Légua Bugi Buá, que, para alguns, é um vodun cambinda, um príncipe
guerreiro ou um misto de Légba e Poliboji.
Percebe-se que os terreiros de Tambor de Mina são detentores de uma certa autonomia
de culto, podendo realizar formas e rituais diferentes para as entidades cultuadas. O terreiro Ilê
Axé Obá Izô é detentor desta autonomia, que são elementos encontrados em seus rituais que se
diferem de outros terreiros.
O Ilê Axé Obá Izô é um terreiro de Tambor de Mina localizado no bairro da Liberdade
em São Luís- MA, durante todo ano a casa apresenta uma vasta programação de festas e
ladainhas em homenagens a santos, orixás e encantados.
Este terreiro foi fundado pelo sacerdote afro religioso Wender Pinheiro e tem 13 anos de
funcionamento, suas principais divindades são: Xangô (orixá que segundo a cultura iorubana
domina o fogo, os raios e trovões) e Sogbô (Vodun feminino da cultura nagô que tem como
domínio o vento). Ambas entidades recebidas em transe por Pai Wender.
Ao abordar o tema “festas” do Tambor de Mina, não pode-se esquecer que não é
somente o momento em que envolve filhos e filhas de santo e suas divindades, mas também,
27
acontece uma relação “espetacular” com a comunidade, curiosos, pesquisadores e demais que
assistem esse momento de celebração.
O culto às entidades africanas e também a encantados (entidades brasileiras ou não)
requer uma série de obrigações que são feitas de forma individuais ou coletivas, públicas ou
privadas. Este trabalho analisa elementos que compõem as festividades de caráter público, pois
as festividades e obrigações privadas são de caráter fechado pertencendo apenas para Ilê Axé
Obá Izô.
Os toques públicos e as festas realizadas no Ilê Axé Obá Izô seguem um calendário
programado acontecendo anualmente e tem como obrigação celebrar os orixás, voduns e
encantados pertencentes a este terreiro. Dentre as festas públicas encontramos: Festa de Xangô
(06 de janeiro), Festa de Xapanã (19 e 20 de janeiro), Festa de Oxossi (21 de janeiro), Festa de
Iemanjá e das Princesas (02 de fevereiro), Festa de Ogun (26 de abril), Ladainha em
homenagem a Seu Légua e Pretos Velhos (13 de maio), Festa em homenagem ao João de Lima
e povo das águas (24 de junho), Festa ao Encantado Ubirajara (29 de junho), Festa para Nochê
Nanã (26 de julho), Festa em Homenagem ao Encantado Jariodama (1º sábado de agosto), Festa
para Dã (24 de agosto), Festa para Don Luís e sua corte (25 de agosto), Festa para as Princesas
(30 de agosto), Festa para seu Légua e encantado José Raimundo (31 de agosto), Festa de
abertura do calendário Litúrgico do Tambor de Mina (03 de dezembro), Festa para Nochê
Sogbô Oyá Barbasueira e Princesas (04 de dezembro), Festa para Nochê Oxun (08 de
dezembro), Festa para Nochê Ewá e Navê (13 de dezembro), Tambor de Borá – Festa em
Homenagem a Surrupira (14 de dezembro).
Neste trabalho não se apresenta de forma densa cada festa descrita acima, pois há uma
dinâmica diferenciada em cada uma. Cada toque realizado tem uma ‘“liturgia” diferenciada,
porém, podemos pontuar a presença de danças e cânticos já pré definidos em cada uma
(Imbarabô).
Danças Rituais
Durante as festas públicas do Obá Izô existe uma variante muito grande de danças,
coreografias, gestos e músicas encontradas neste terreiro de mina. Consideramos que a dança e a
música são elementos de interação social presente nos terreiros e que constituem suas
performances rituais.
A dança do Tambor de Mina tem como princípio básico a interação de todo o corpo
com a força da gravidade. Observa-se que os dançantes usam chinelos para dançar, eles mantém
os pés espalmados; a pelves sempre apontada para baixo, como se o assoalho pélvico, tal qual as
solas dos pés, se comunicassem diretamente com a terra. Durante os passos de dança, o corpo
tem o peso acentuado para o chão, e momentos em que empurra o chão, mas em nenhum
momento há em que se desliga do chão, nem enfatiza, nem por atração, nem por rejeição.
A energia que parece nascer dessa mecânica ação e reação em relação à terra vai
percorrer o corpo da sola dos pés à cabeça, passando pela bacia e tomando o tronco através da
coluna vertebral atingindo os braços depois de passear pelas articulações e subir para a cabeça,
comunicando-se com o espaço.
Durante as danças os corpos dos vodunsis parecem navegáveis, o fluxo de energia pode
ser comparado a um barco que adentra o corpo pela sola dos pés e vai navegar o corpo todo.
Este barco/energia pode percorrer todas as articulações do corpo.
O Tambor de Mina contém a forma de estar do corpo que permeia diversas linguagens
de danças brasileiras, em concordância com a “anatomia simbólica” proposta por Graziela
Rodrigues (1997), no entanto contém traços exclusivos da linguagem do Tambor de Mina.
De acordo com essa pesquisa, pode-se dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que
se mantém viva no Tambor de Mina, devido as peculiaridades que cada divindade imprime ao
gesto. Há uma variação em aspectos performáticos nas religiões de matriz africana que se pode
observar como: as vestimentas; as musicas; doutrina no caso do Tambor de Mina e o próprio
espaço onde ocorre o ritual. Mas quase sempre a dança aparece de uma maneira capaz de
envolver em um balé catártico os adeptos deste rito.
Logo no começo dos toques os “filhos e filhas de santos” estão em um processo que
pode ser observado como preparação para o ritual, ele está se inserindo no toque que geralmente
segue um ciclo festivo, o mesmo deve ser oferecido para algum orixá, vodun ou encantado. A
necessidade de se inserir dentro de um ciclo festivo faz com que este grupo participe de distintas
manifestações durante o ano. Dessa forma, dá-se uma composição de linguagem que são
enriquecidas pela integração de diferentes elementos como: toalhas; bengalas (cetros); lenços;
rosários etc.
Alguns elementos são re-significados como o lenço, que a priori pensa-se que serve
somente para enxugar o rosto com o suor, mas no decorrer do ritual este objeto ganha outros
significados como, por exemplo, imitar as ondas do mar. Observa-se, também, a gestualidade
das pessoas que estão em transe com voduns e das pessoas que estão em transe com outros
encantados. Os voduns dançam de forma mais contida, discreta, já os caboclos dançam de forma
mais leve, mais acentuada, com alguns sons (brados) emitidos por alguns deles.
Atentamos que a dança começa no íntimo do corpo dos vodunsis e aos poucos vai
tomando todo o espaço interno, projeta-se nas abóbodas das saias e riscam o espaço com giros,
retas, círculos, pausas, fremidos e cantos. Os vodunsis são as figuras centrais do ritual, porque
através do seu corpo que se faz o contato com as entidades. No entanto a ação ritual,
denominada “toque”, completa-se com os que fazem a música, com as mulheres que servem as
toalhas para os voduns e encantados que já estão incorporados, e com os que assistem ao ritual
sentados ou em pé.
A relação entre música e religião é uma realidade presente nas expressões culturais dos
distintos contextos do mundo. Manifestações religiosas de diferentes naturezas fizeram e fazem
uso da música para cumprir e expressar suas crenças e seus ritos.
Estudos de etnomusicologia, da antropologia, da lingüística e de outros campos do
conhecimento humano que lidam com perspectivas relacionadas a prática musical em contexto,
29
tem demonstrado a forte presença da música dos “mundos”, religiosos e as funções que ela
cumpre em diversos cultos e rituais.
Nos universos que a música serve a princípios religiosos, a tênue relação que a
expressão musical estabelece com as manifestações de religiosidades faz destes dois fenômenos
um corpus de conhecimentos, costumes, princípios e ações praticamente indissociáveis. Assim,
nesses contextos, é possível conceber a crença e a prática (ritos) religiosa como um dos aspectos
caracterizadores (constituintes) da performance musical como um todo.
Essa é a realidade da performance do Tambor de Mina da casa descrita nesse trabalho.
A música, que pode e tem outras funções, pode ser concebida fundamentalmente para festejar e
cultuar as divindades. O ritual é composto por músicas diretamente relacionadas aos orixás,
voduns, e encantados envocados. A complexidade do toque de “Mina” e as distintas situações
que a envolvem cria uma prática repleta de possibilidades expressivas, que, somadas aos
aspectos religiosos, determinam características fundamentais da performance do Tambor de
Mina.
Ao observar os toques chega-se a conclusão que é a sequência ritual através do qual a
dança e a música dos vodunsis é que trás a “eira” (salão de dança dos terreiros) as entidades da
“Mina” para baiar (dançar). Com isso se analisa que o chamamento das entidades é feito com a
interação de percussão, canto e dança.
A percussão do Ilê Axé Obá Izô é feita por dois abatas, tambores de duas peles; ferro
(gã) acompanhado com uma baqueta de madeira e cabaças grandes e pequenas, revestidas de
malha de contas.
Foto 7: Abatas, ferro (gã) e cabaças
O canto começa com o solo do “Pai de Santo” que é respondido pelos instrumentos e
pelo coro formado pelos dançantes, tocadores de cabaça, outras pessoas da casa e algumas
pessoas da assistência. Algumas entidades como orixás, voduns e encantados também cantam e
são respondidas pelo coro, seus cantos falam de suas histórias,seus enredos, histórias das suas
famílias ou fazem referência a outras entidades.
Pode-se afirmar que o Tambor de Mina do Ilê Axé Obá Izô carrega uma identidade rica
gestual, musical e de objetos que representam suas divindades representadas durantes as festas
públicas.
Orixá,
encantado, Perfil Valor Considerações
vodum
Orixá Guerreiro dono Força, guerra, vitalidade, Durante os cânticos para Ogun os adeptos dançam com
Ogun
do ferro abertura de caminho. o dedo indicador apontado para frente em linha reta.
Entidade que tem muitos filhos na comunidade. Sua
festa acontece no dia 23 de Janeiro.
Orixá da Caça Fartura, prosperidade, Durante alguns cânticos em homenagem a essa
Oxóssi
Movimento Riqueza, dinamismo. Sua festa pública acontece no dia 24 de agosto. Suas
danças rituais nesta comunidade acontecem com
movimento circulares dos dois indicadores direito e
Dã
liderança, raios e trovões. transe com essa entidade dança com uma bengala que a
ponta é em forma de um machado. Sua festa acontece
dia 06 de janeiro, e é uma das entidades mais queridas e
respeitadas da comunidade.
Dona dos ventos Representa a guerra, o Na comunidade essa entidade tem muitos filhos e
Iansã
fogo, o vento, os raios e acontece uma certa catarse coletiva durante seus
os trovões. cânticos e danças, pois são muito envolventes.
Iemanjá Oxum Sogbô
Vodun feminino Representa os ventos Essa divindade também é recebida em transe por Pai
Nagô Wender e é festejada no dia 04 de dezembro junto com
Iansã.
Água doce Representa o feminino, o Divindade que tem bastante filhos na comunidade e é
amor, a doçura e a muito festejada. Sua festa acontece no dia 08 de
vaidade. dezembro.
Água salgada Mãe, maternidade, Divindade muito querida na comunidade. Suas danças
equilíbrio. rituais rementem ao balançar das ondas do mar e sua
festa acontece dia 02 de fevereiro.
________ Guardião do tesouro de Uma das principais entidades de Pai Wender. Sua festa
Rei da Turquia acontece no primeiro sábado de agosto. É um dos chefes
do terreiro.
Maracu Luís Cravinh
________ Encantado codoense Entidade mais querida da comunidade. Sua festa não
o Roxo
do
________ Rei da França Entidade gentil de Pai Wender. Sua festa acontece no
m
dia 25 de agosto.
________ Filha do Rei da Bandeira Entidade infantil de Pai Wender sendo festeja em uma
festa pequena chamada de “Salva” no dia 27 de agosto,
do
já
________ Chefe da Mata de Codó. Entidade muito querida na comunidade, tendo durante o
Seu
As insígnias e objetos que são utilizados durante as festas públicas no Ilê Axé Obá Izô
são apresentadas da seguinte forma:
É utilizado por algumas entidades velhas, mas Xapanã, Nanã; Oxálufan; Seu Légua;
Bengala
também, em alguns casos, não é utilizada como Obaluaê; Dom Luís; Gentilheiros.
um objeto de apoio para o idoso, mas como um
cajado, demonstrando um sinal de nobreza da
entidade.
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>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
Entre 1992 e 94 realizamos três viagens de estudos a Cururupú, cidade que dista 500
kms de São Luís, no Litoral Norte, em direção do Pará, que pode ser atingida por estrada
asfaltada ou utilizando-se o ferry-boat para atravessar a baia, o que torna mais rápida a viagem.
O Município possui população com cerca de 41.000 habitantes e a zona urbana 17.000, sendo
uma das cidades médias do Maranhão. A região foi habitada por indígenas, tendo sido
colonizada a partir de Alcântara e Guimarães em inícios do século XIX. Por sua localização em
litoral recortado de ilhas, tanto Cururupú quanto Turiaçu, foram importantes portos de entrada
de escravos de contrabando para o Pará e o Maranhão (Vicente Salles, 1971). Possui hoje,
33
Apresentado na XXI Reunião da ABA no GT Diversidade Religiosa Afro-Brasileira, Vitória, ES, 05 a 09/04/1998.
34
Antropólogo; membro da CMF.
33
Existem também em Cururupú, rituais de mesa branca, que se aproximam da Umbanda de mesa
e também das seções de mesa branca inspiradas no Espiritismo Kardecista.
Conforme informações da falecida mãe de santo dona Isabel Mineira, a linha de tambor
de mina foi introduzida por ela em Cururupú em meados da década de 1930. Seu terreiro
localizava-se em frente à sua residência e tem a forma de um navio, como é comum no
Maranhão, trazendo na proa, próximo a âncora, a inscrição: “Viva Pingo d’Água” (nome de um
de seus encantados). Ela foi preparada em São Luís no terreiro da Turquia. Sua senhora era a
princesa Rosinha, filha de Rainha Rosa. Além dela e de Pingo d’Água, que é filho de Légua, ela
possuía entre outros encantados: Mãe Maria, Seu Légua e Rainha Dina. Dona Isabel preparou
diversas pessoas na mina, como dona Nazaré e dona Dozinha. Em sua casa só dançavam
mulheres, como ocorre nos terreiros de mina tradicionais de São Luís. A festa grande em seu
terreiro era feita em homenagem à princesa Rosinha, no dia de Santa Rosa de Lima, entre 29 de
agosto e 2 de setembro. Também fazia festa para Santa Bárbara a 4 de dezembro e festa de reis
em janeiro. Assistimos tambor de mina na casa de dona Isabel na festa de seus 91 anos nos dias
11 e 12 de novembro de 1994, que descrevemos adiante. No Maranhão o tambor de mina é
chamado de “linha da água salgada” pois muitas de suas divindades atravessaram o Atlântico,
embora haja divindades “nascidas” aqui. Os pajés costumam dizer que a o tambor de mina é
mais “pesado”, no sentido de possuir obrigações mais numerosas e estritas.
Pelas informações que dispomos, a umbanda penetrou no Maranhão em meados da
década de 1950, intensificando-se a partir da década de 60 com a organização da Federação de
Umbanda, organizada e dirigida por Zé Cupertino, que foi sucedido por Jorge Itací, por Zé
Pinheiro e atualmente dirigida por Astro. Aos poucos a umbanda foi se difundido no interior do
Maranhão e muitos curadores possuem diploma de registro na Federação. Entre outras entidades
a umbanda introduziu o culto a Exus, Pomba-Giras e Pretos Velhos. No Maranhão se diz que a
umbanda é cruzada com a mina, uma vez que os instrumentos usados são os mesmos e muitas
entidades, cânticos e outros costumes são comuns às duas manifestações. No Maranhão, a mina,
a cura e a umbanda são às vezes difíceis de delimitar pois muitos de seus líderes trabalham em
várias delas e também realizam a chamada mesa branca Kardecista.
Instrumentos Musicais:
O tambor de mina costuma ser acompanhado por dois ou três tambores denominados
abatás, construídos em madeira ou metal com couro nas duas bocas e colocados horizontalmente
sobre cavalete. Muitas vezes a mina também se acompanha de um tambor longo de couro numa
só boca (que em São Luís é chamado tambor da mata), tocado transversalmente e que pode
permanecer amarrado à cintura do tocador . Existem ainda o ferro ou agogô e diversas cabaças
de tamanho variado, revestidas de contas. Estes são os instrumentos básicos usados nos terreiros
de mina e em muitos terreiros de umbanda cruzada com mina no Maranhão. Em Cururupú os
abatás localizam-se diante do altar e, a esquerda de quem entra ficam o tambor da mata e as
cabaças. O ferro fica no centro ou entre as cabaças. Algumas vezes, em diferentes rituais, ou de
acordo com a região, são introduzidos outros instrumentos, como o berimbau, chamado
marimba, usado nos rituais de terecô, denominação da variante da religião afro-brasileira de
Codó (mais próxima do Piauí). A introdução de outros instrumentos serve para dar mais vida e
dinamismo aos toques. Os tambores costumam ser tocados por homens, o ferro por mulher e as
cabaças por mulheres e crianças ou rapazes. Em Cururupú como em outros locais, costuma
haver várias velas acesas no chão, perto da entrada e diante dos instrumentos principais.
Taboca é um gomo de bambu grande. Além dos outros instrumentos musicais, o tambor
de taboca utiliza duas tabocas medindo cerca de 30 a 50 cm de cumprimento. São tocadas
geralmente por mulher sentada num banquinho e são percutidas sobre pedra de cantaria lisa
medindo 30 x 60 x 10 cm. Nos rituais de mina e de cura em Cururupú as taboca ficam no centro
35
do salão, entre os dois abatás, diante do altar que contem imagens de santos católicos. Em São
Luís temos visto algumas vezes toques festivos de taboca, acompanhando cânticos e danças do
tambor de crioula, fora de rituais especificamente religiosos. O pai de santo Euclides Ferreira da
Casa Fanti-Ashanti realizava apresentações públicas com este tipo de tambor de taboca, mas
nunca vimos este instrumento usado nos rituais do tambor de mina ou de cura em seu terreiro ou
em outro da capital maranhense. Assistimos em Cururupú em 1992 e em 1994, tambor com
taboca tanto em rituais de cura quanto em festas de mina, que passamos a descrever e comentar.
O tambor de taboca em Cururupu: Festa na casa de Betinho:
Humberto Franco Ribeiro, conhecido como Betinho, trabalha com linha de cura e de
mina. Assumiu este encargo desde os quinze anos, como herança de seu pai. Tem 45 anos de
idade e abriu seu terreiro em 1974. Sua festa principal é realizada de 10 e 14 de dezembro. No
dia 11 realiza cura, dia 12 comemora Santa Bárbara, dia 13 Santa Luzia, com procissão e jantar
e no dia 14 a derrubada do mastro. No dia 2 de fevereiro faz festa de bancada para fechar o
terreiro no período da quaresma, só reabrindo no sábado após a pascoela. A 12 de outubro
festeja o caboclo Ubirajara. Conhece vários pais-de-santo de São Luís, como Ribamar Castro e é
amigo e freqüentador da Casa das Minas. Considera uma das vodunsis de lá, dona Roxinha,
como sua mãe-de-santo, pois ela teria realizado alguns trabalhos de firmeza nele.
Betinho trabalha também como pedreiro e é assíduo freqüentador da igreja católica.
Participa da brincadeira folclórica de tambor de crioula, na festa de São Benedito, e, ativamente,
do Bumba-Meu-Boi organizado na matriz da cidade. Também trabalha como parteiro e contou-
nos já haver feito uns 50 partos, sempre incorporado com Mãe Maria. Disse-nos que tem umas
10 filhas-de-santo e em seus terreiro dançam homens e mulheres. Seu guia é o caboclo
Aracanguira, que é um vaqueiro do rio Maracassumé, que ajuda a encontrar gado perdido. É da
família de Légua e trabalha com linha de cura. Betinho brinca de boi para agradar a ele. No seu
terreiro recebe Badé Sorogama, caboclos turcos, Surrupira e outras entidades das linhas de mina
e de cura. Betinho é muito atencioso e foi conosco visitar outros pais-de-santo em Cururupú e
na vizinha cidade de Guimarães. Tem um irmão que é curador, que não chegamos a conhecer.
Assistimos a festa de Betinho entre 11 e 14 de dezembro de 1992. O barracão é
comprido medindo cerca de 3 x 9 metros, com piso de terra, paredes de meia altura de um lado,
cobertura de palha e duas portas na frente. Atrás há um quarto dividido ao meio onde, na parte
da frente, Betinho atende clientes de cura. No fundo, ao centro, está o altar com imagens de
santos católicos como Santa Bárbara, Santa Luzia, São Sebastião, Cosme e Damião e outros. As
paredes e o altar são enfeitadas com papel laminado colorido. O teto estava todo revestido de
bandeirinhas de plástico coloridas, que foram renovadas para a festa.
Nos toques que assistimos dançaram uma a quatro mulheres e dois a três homens. As
mulheres usaram saia longa rodada colorida e blusa branca ou da cor da saia. Usaram muito
talco no pescoço e vários rosários. Usaram também no pescoço, um longo lenço colorido ou
branco e numa das mãos outro lenço menor, que serve pare enxugar suor durante as danças. O
lenço grande é usado para ampliar o movimento do corpo durante as danças. Em São Luís este
lenço denomina-se pana ou espada e serve para dar destaque a divindade no transe. Dançam de
chinelo, sandálias ou descalço. Em Cururupú as dançantes dançam balançando o corpo e
movimentando bastante os braços com movimentos ampliados pelo lenço grande do pescoço.
Os homens usaram roupas variadas, branca ou colorida, com predomínio de vermelho e
branco (talvez relacionadas aos santos festejados). Costumam usar um gorro colorido (Betinho)
ou chapéu amplo com formas estranhas. Homens também usam no pescoço o mesmo lenço
longo e na mão lenço menor. Os que são curadores, usam faixas na cintura, como é costume
entre os pajés. Betinho geralmente usa roupas amplas, feito um pijama leve de cores claras ou
branco, com mangas compridas. Usa guias longas (colares) atravessadas em “X” sobre o peito e
36
costas e faixas com a mesma disposição. Betinho cura segurando na mão uma chave de fenda e
uma régua. Diz que a chave serve para “abrir para o bem e fechar para o mal” e a régua para
medir o caminho reto”, mostrando sua grande preocupação com o bem e o mal.
Os dançantes dançam balançando o corpo e movimentando bastante os braços, com
movimentos ampliados pelo lenço longo usado sobre os ombros no pescoço. Algumas vezes
balançam encurvando o corpo para frente e para trás. Outras vezes dão várias rodadas diante dos
tambores e dançam em roda do salão no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O ritmo
das músicas é alternadamente lento e corrido. Muitos toques lembram ritmos do Bumba-Meu-
Boi do sotaque de zabumba, típico da região. Alguns lembram outros ritmos negros, até mesmo
o samba. Os dançantes vão diante dos tambores e entoam cânticos, sempre em português, com
algumas palavras pouco conhecidas. Os cânticos são repetidos em coro pelos dançantes como
ocorre na mina. Falam em Santa Bárbara, Maria Bárbara, São João, dom João, Mina de Ouro,
Marinheiro, Mãe d’Água, etc.
No dia 11 de dezembro no terreiro de Betinho houve ladainha que começou pelas 20
horas durando cerca de uma hora. A ladainha foi participada por catequistas e teve várias
leituras em livros da igreja católica, com comentários e rezas de dezenas do terço. Depois o
salão foi defumado, soltaram-se foguetes e foi servido um café com bolo. A seguir começaram
os toques que inicialmente foram dançados por três senhoras. Na casa de Betinho o ferro é uma
ferramenta usada para quebrar pedra que fica pendurado na parede do salão e que é percutido
por mulher com outro objeto de metal. Ao centro, entre os dois tambores abatás fica a mulher
que toca as tabocas, sentada em um banquinho diante e abaixo do altar.
A cura que assistimos realizou-se dentro de um toque de mina. No início cantaram para
Santa Bárbara e para Badé. Betinho entrou mais tarde, já em transe e dançou algum tempo.
Depois começou a atender clientes. Primeiro atendeu a um rapaz que permaneceu sentado num
banco no centro do salão e que foi levado ali por parentes. Fez vários movimentos em torno
dele, botando fogo em aguardente derramada na mão, passando no rapaz e defumando-o com
cigarro. Deu muitos conselhos a ele, mandou-o ir para casa e ficar em repouso e deu um
remédio para a mãe dele levar para casa. Depois atendeu a outros clientes no quarto atrás do
altar. Algumas vezes o curador fumou cigarro, chupou o local em que a pessoa sentia alguma
dor e cuspiu um besouro morto ou outra coisa num prato branco.35 Depois benzeu o paciente.
Dizem que a presença do besouro no corpo do cliente é conseqüência da flechada de outro pajé.
O curador depois de falar e dar conselhos, reclamou que a polícia só deixa ele curar até 3 horas
da madrugada, por causa dos vizinhos.
Diante do terreiro havia um mastro feito com tronco grade de árvore cortada, não muito
alto erguido no centro do pátio em frente ao salão. O mastro, simbolizando que a casa estava em
festa, era revestido com murta tendo pendurado vários cocos, bananas, bebidas e encimado por
bandeira branca. Em alguns momentos diversas crianças ficavam brincando diante do mastro,
imitando as danças dos encantados no salão.
No dia 12 a reza foi iniciada pelas 20:30 h e foi seguida de toque, como na noite
anterior, contando com a presença de 4 senhoras, e três homens, incluindo Betinho, que mais
tarde fez algumas curas. Por volta da meia noite, fomos assistir uma parte do toque na casa de
dona Dozinha. O salão é maior, havia mais gente e a música tocada com muita animação.
Dançavam 4 homens e duas mulheres “fardados”, numa roda próximo aos tambores. No fundo
do salão diversas senhoras com roupas comuns, acompanhavam os toques dançando e batendo
palmas ou fazendo movimentos com o corpo no ritmo da música. Algumas músicas pareciam de
bumba-meu-boi ou sambas. A taboca era tocada ao centro, com uma vela acesa na frente. O
35
Segundo Evans-Pritchard (1978: 112), a extração de objetos do corpo dos pacientes é realizada por curandeiros em toda a África,
como entre os Azande que ele estudou no Sudão.
37
toque era feito por uma mulher e por um homem alternadamente e o som das tabocas se
destacava nitidamente no conjunto dos instrumentos.
Na manhã do dia 13 houve uma missa rezada no terreiro celebrada por um padre
canadense com paramentos brancos e auxiliado por Betinho paramentado de curador, com roupa
branca e com seus rosários. Os cânticos da missa foram acompanhados por alguns instrumentos
da casa, como cabaças, ferro e por palmas. Houve muitas comunhões. Na tarde do dia 13
Betinho organizou uma procissão levando pequena imagem de Santa Luzia , acompanhada
principalmente por mulheres e crianças e que percorreu longo trajeto, saudada por fogos de
artifício. Depois da procissão foi servido jantar aos participantes.
Na manhã do dia 14 ocorreu a derrubada do mastro. Antes de ser derrubado houve
várias brincadeiras como a dança do balaio grande, em que moças dançam rebolando e se
abaixando até o chão. Betinho e uma senhora com caboclo também acompanharam a dança. Os
instrumentos do terreiro vêm para o pátio junto com bandeira grande do Divino, outras
bandeirinhas, a pomba do Divino e a imagem de Santa Luzia. Durante a derrubada todos tocam
e cantam. As frutas são retiradas do mastro e dizem que servem para serem usadas como
remédio. O mastro foi levado para dentro do salão e o toque continuou com os dançantes usando
roupas comuns. No fim da manhã Betinho recebeu uma entidade que é cobra e arrastando-se no
chão, sugou ovos que foram quebrados diante dele. Saímos após este toque para a viagem de
regresso a São Luís.
Como o culto da jurema e do catimbó(Carvalho, 1995), a cura em Cururupú é um ritual
relacionado ao culto de seres da floresta. É um culto afro-brasileiro sincrético com elementos da
pajelança indígena e uma forma de cura. Diferentemente da Jurema descrita por Jorge Carvalho
(1990), não constatamos na cura tanto em Cururupú quanto em São Luís, comportamentos de
licenciosidade, erotismo e palavras obscenas, que Carvalho encontrou na Jurema em Recife.
Festa no terreiro de dona Isabel mineira:
Em 11 e 12 de novembro de 1994 assistimos em Cururupú a festa de tambor de mina
em homenagem aos 91 anos de dona Isabel mineira. Dona Isabel que faleceu em 1996 com 93
anos, nasceu em Cururupú em 1903. Ainda criança mudou-se com os pais para São Luís. “Caiu
no santo” em 1913, com dez anos de idade e permaneceu freqüentando o famoso Terreiro da
Turquia dirigido por dona Anastácia de quem foi filha-de-santo. Residiu em São Luís até 1934,
quando retornou à Cururupú. Dona Isabel foi parteira e nos disse ter feito mais de 6.000 partos.
Quando chegamos fomos visitar dona Isabel que estava com filhas e netos na porta de
sua casa consertando uma cabaça grande. Ela nos contou que quando nova gostava muito de
festas e parou de dançar em clubes quando abriu seu terreiro, entre 1937 e 38. Contou-nos que
estava preparando vestido novo para uma festa quando a senhora dela apareceu em sonho e
disse que estava no tempo dela começar a trabalhar na mina. Disse que o pai dela foi delegado
de polícia em Cururupú e prendia muitos curadores quando havia reclamação. A noite cantaram
os parabéns para dona Isabel diante de um grande bolo cor de rosa.
O toque no barracão, em forma de navio e com muro baixo, localizado em frente à sua
casa, durou de meia-noite até 3:30 h. Dona Isabel usava saia rosa longa, blusa branca rendada de
mangas compridas e dois rosários longos cruzados no peito. Na cabeça usava bonito arranjo de
rosas naturais e dois palitos orientais como adorno, pois era muito vaidosa. Nas mãos segurava
pequeno lenço e um leque. Embora idosa e frágil era muito elegante. Dançou toda a noite
acompanhada de uma ajudante ou guia que usava vestido longo verde, vermelho, amarelo e
blusa branca. Usava também um pano vermelho grande que algumas vezes amarrava na cintura
ou dançava fazendo grandes movimentos do pano com os braços. No meio da festa uma filha
mais velha de dona Isabel recebeu uma entidade e dançou algum tempo, mas usando roupa
38
comum. Percebemos que Dona Isabel recebeu seu Légua, Princesa Rosinha, Rainha Dina e não
sabemos se outras entidades, pois o transe era muito discreto.
Dona Isabel sempre teve fama de muito rígida. Em seu salão pessoas com encantado
não podem sentar, só se for no chão, como ela fez uma vez na primeira noite. Quando ela queria
descansar, colocava um pé em cima do banco ou saia do salão e ia por algum tempo para a sua
casa, em frente. Em seu terreiro só dançam mulheres, como ocorre em terreiros tradicionais do
Maranhão. Na segunda noite havia seis outras senhoras dançando com roupas de cores variadas.
Dona Isabel usava saia longa de veludo escura com bordados prateados e muitos colares sobre a
blusa branca rendada. Dançava com os mesmos enfeites e flores naturais na cabeça. Algumas
vezes dona Isabel dançava balançando o corpo e movimentando os braços, quase sem sair do
lugar. Na maioria das vezes rodava em torno do salão no sentido contrário ao dos ponteiros do
relógio. Apesar da idade e da fragilidade, dona Isabel demonstrava grande animação e de vez
em quando cumprimentava pessoas da assistência.
No seu barracão havia três tambores abatás sobre cavaletes. Não vimos tambor da mata.
Betinho, Vicentinho e outros curadores conhecidos da cidade estavam presentes e tocaram
instrumentos na sua festa. Havia cerca de 10 cabaças de tamanho médio, tocadas ao longo da
parede da esquerda, por senhoras, moças, crianças e rapazes. O ferro foi tocado por senhora
sentada numa cadeira ao lado da tocadora de taboca que, sentada num banco baixo, ao centro,
na frente do altar, segurava as tabocas pela extremidade superior. Elas e o ferro, marcavam e
acentuavam o ritmo dos tambores e das cabaças. Notamos revezamento da tocadora de tabocas
pois devido a posição, o toque por muito tempo deve ser cansativo. Os cânticos são em
português e alguns com palavras supostamente em nagô. Cantaram para Iemanjá, Mineiro,
Vaqueiro Cearense, Verequete, Pombo Roxo, Pombo do Ar, Mina de Ouro, Dina, Dinorá,
Rainha Rosa e para outras entidades espirituais.
CONCLUSÕES:
Verificamos nos terreiros de Cururupú a presença do sincretismo com junção de
elementos de procedências diversas. O processo de sincretismo que foi implantado nas religiões
afro-brasileiras desde suas origens, continua se intensificando com a introdução da umbanda,
(de suas entidades e rituais), e de outros elementos. No Maranhão é comum a junção do tambor
de mina com a cura, embora em São Luís os dois rituais sejam feitos em dias distintos.
Em Cururupú a taboca é um instrumento que se agrega tanto ao tambor de mina quanto
do tambor de cura, certamente para dar mais vida e dinamismo aos rituais, o que pode ser
considerado como uma soma de forças, como costuma acontecer com a religião dos grupos
subalternos.
O efeito sonoro das tabocas contribui para o equilíbrio do conjunto. Sabemos que o
ferro ou agogô é um instrumento que não pode faltar no tambor de mina, pois marca o ritmo
dobrado ou corrido dos toques. No tambor de taboca é um complemento e atua ao seu lado. As
batidas alternadas e compassadas das tabocas ampliam a função dos tambores de atrair as
entidades e induzir o transe. Vimos o uso das tabocas em todos os toques que assistimos em
Cururupú e nos disseram que é sempre utilizado em todas as casas em toques de mina e de cura,
o que não ocorre nos terreiros de mina ou nos toques de cura em São Luís.
Temos necessidade de realizar novas viagens de estudo a Cururupú para conhecer
melhor tanto a cura (pajelança) e a mina, quanto as funções da taboca nos seus rituais.
Constatamos a presença de grande contingente populacional negro na região e a presença de
indígenas no passado. Não sabemos se as tabocas foram introduzidas por tradição indígena ou
africana. O uso das tabocas em rituais religiosos em Cururupú é diferente do uso festivo que
vimos algumas vezes na capital. O tambor de taboca de Cururupú faz parte de rituais religiosos
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praticados por populações negras com elementos de origens diversas. Ressalta a diversidade
religiosa afro-brasileira, que é ainda pouco conhecida e estudada.
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Aluno do Curso de Licenciatura em Educação - UFMA
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