Boletim 32
Boletim 32
Boletim 32
SUMÁRIO
Editorial, 02
Cadê o Boi de Orquestra?
Deborah Baesse, 02
Semana da Cultura Popular comemora Dia Internacional do Folclore
Maria Michol P. de Carvalho, 03
Memórias Sociais de moradores do Desterro: a festa de Santo Antônio na casa de
Maria Brito
Ronald Clay dos S. Ericeira e Creudecy C. da Silva, 04
A maranhensidade ao ritmo do bumba-meu-boi
Antonio Evaldo Barros, 06
Vivencias emaranhadas: o requebro do cazumba
Juliana Bittencourt Manhães, 08
Badé no Tambor de Mina do Maranhão
Mundicarmo Ferretti, 10
Ocupação Pré-histórica na Ilha de São Luís: a ocorrência de grupos ceramistas
proto-tupi
Deusdédit C. Leite Filho e Eliane G. Leite, 12
O fogo (parte 2)
Carlos de Lima, 14
Janela do Tempo - São João maranhense
Josué Montello, 15
Resumos e resenhas
- Teses, dissertações e monografias sobre cultura popular do Maranhão, 16
Agenda de Cultura Popular
- Festejos do Divino - 20 de agosto a 19 de dezembro de 2005, 17
Notícias, 18
Perfil Popular
– Apolônio Melônio: homem inovador
Josimar Silva, 20
DIRETORIA
Presidente: Maria Michol P. de Carvalho
Vice-presidente: Mundicarmo M.R. Ferretti
Secretária: Roza Santos
Tesoureira: Lenir Pereira
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Orlando de Lima
Izaurina Maria de A. Nunes
Maria Michol P. de Carvalho
Mundicarmo M.R. Ferretti
Roza Santos
Sergio F. Ferreti
Zelinda de C. Lima
EDIÇÃO
Maria Michol P. de Carvalho
Mundicarmo M.R. Ferretti
Roza Santos
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CORRESPONDENCIA
COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho
Rua do Giz (28 de julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65075-680 – São Luís-Maranhão
Fone: (0xx98) 3235-1557
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Folha 2
EDITORIAL
A CMF tem nova diretoria, igualmente comprometida com a publicação
do Boletim, que continua sendo impresso e disponibilizado na INTERNET.
O número 32 dá um destaque especial às manifestações folclóricas do
ciclo junino, tendo o bumba-meu-boi como carro-chefe. Conclui a publicação do
artigo de Carlos Lima sobre o fogo, iniciado no número anterior; inclui uma
reflexão de Deborah Baesse sobre as mudanças sofridas pelo boi de orquestra; uma
análise da maranhensidade ao ritmo do bumba-meu-boi, de Evaldo Barros; e um
relato de vivências de Juliana Manhães, relacionadas com o Cazumbá; apresenta o
perfil de Apolônio Melônio (do Boi da Floresta), segundo Josimar Silva; as
memórias de moradores do Desterro sobre a Festa de Santo Antônio, recolhidas por
Ronald Ericeira e Creudecy Silva; e um comentário de Mundicarmo Ferretti sobre o
culto a Badé na capital maranhense e sua relação com o festejo de São Pedro. Em
“Janela do Tempo”, por sugestão de Zelinda Lima, um comentário de Josué
Montello sobre o São João maranhense no passado.
Como o ciclo junino não abarca todos os aspectos da cultura popular
maranhense, o Boletim 32 traz, também, um artigo sobre a Pré-história maranhense,
de Deusdedit Leite Filho e Eliane Leite; e Michol Carvalho fala da “Semana de
Cultura Popular 2005, organizada pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira
Filho, em parceria com esta Comissão, tendo como tema central: Coco, cabaça e
cuia.
O número 32 do Boletim da CMF retoma a sessão “Resumos e
Resenhas”, divulgando teses, dissertações e monografias defendidas sobre folclore
e cultura popular maranhense, desta vez a cargo do Grupo de Pesquisa Mina, da
UFMA, coordenado por Sergio Ferretti; e inicia a sessão “Agenda de Cultura
Popular”, com um levantamento realizado por Lenir Pereira, no cadastro do Centro
de Cultura Popular, de festejos programados para os próximos quatro meses.
Em “Notícias”, Roza Santos informa a eleição da nova diretoria da
Comissão Maranhense de Folclore; o lançamento do livro-CD “Caixeiras do Divino
Espírito Santo de São Luís do Maranhão”; a realização do “1º Encontro de religiões
afro-brasileiras e o uso de plantas medicinais nos terreiros”, ambos em 12 de
agosto; e a participação do Maranhão na “Festa dos Estados”, realizada em Brasília,
no mês de junho passado, a partir de relato de Michol Carvalho. Na mesma sessão,
dá notícia da instalação, no mês de julho, em São Luís, do “Fórum Cultura Cidadã”,
que visa contribuir para a elaboração de uma política pública sobre cultura para o
Maranhão, e da realização, por ele, de debates semanais intitulados “Diálogos
Interculturais”. E, ainda, expressa o pesar da comunidade maranhense e, em
especial, de todos os que atuam na área de cultura popular, pelo falecimento de
Leôncio Rodrigues Sobrinho, um apaixonado por bumba-meu-boi e batalhador pela
cultura popular maranhense.
O comitê Editorial agradece as colaborações recebidas e espera contar,
no próximo número, com o apoio dos membros da Comissão Maranhense de
Folclore e de outros pesquisadores e produtores de Cultura Popular e Folclore
maranhenses.
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Folha 2
CADÊ O BOI DE ORQUESTRA
Deborah Baesse*
O São João terminou e, talvez, motivada pelo clima de melancolia que seu
encerramento (pelo menos oficial) deixa em todos nós, fui tomada por uma vontade
enorme de compartilhar com o leitor minha indignação diante de algumas aberrações
com as quais cruzei neste junho de 2005. Como cidadã maranhense muito orgulhosa do
título, não pude assistir tranqüila ao franco processo de degradação pelo qual passam os
bois de orquestra do Maranhão. Nascida e criada no ambiente da cultura popular de meu
Estado, aprendi, desde muito cedo, o valor que temos.
O Maranhão é, sem dúvida, o melhor São João do Nordeste, embora nem
sempre a mídia nacional assim o posicione. Enquanto os demais estados da região
centram suas manifestações em apenas duas brincadeiras (o forró e a quadrilha), nós, no
Maranhão, temos mais de 10 variedades de danças a apresentar. Somente na categoria
Bumba-meu-boi já se vão pelo menos quatro sotaques principais, fora as suas variações,
quais sejam: zabumba, orquestra, sotaque da Baixada, matraca etc. Aos bois seguem-se
quadrilha, cacuriá, dança do coco, dança portuguesa, tambor de crioula, dança do
boiadeiro e dança do lelê, dentre outras.
Essa variedade expressa uma riqueza de ritmos, cores e passos de fato
inigualável. Nosso folclore é de tal sorte vultuoso, que o hoje tão famoso Boi de
Parintins originou-se do Bumba-meu-boi do Maranhão, com o enorme mérito de que
seus autores souberam adaptar a brincadeira às influências amazônicas, criando um
espetáculo inspirado no nosso Boi, mas completamente único e diferenciado, com as
feições daquele lugar, calcado nas lendas amazônicas.
Pois minha indignação deve-se ao fato de que vários grupos locais, em
especial os que se intitulam de orquestra, vêm copiando Parintins num movimento de
contra-influência estarrecedor. Aqui não vai nenhuma intenção purista de ver o folclore
paralisado, asséptico e livre das influências saudáveis que a modernidade traz a todos
nós. O folclore é uma instituição viva, feito por pessoas, e, como tal, precisa adaptar-se,
assimilar influências, aculturando-se. Entretanto, esse deve ser um processo natural,
fruto das mudanças sofridas pelas comunidades responsáveis pelas brincadeiras. O que
se tem visto no Maranhão, em especial nos grupos de orquestra, é uma comercialização
inescrupulosa dos grupos, que, de manifestações folclóricas, tornaram-se shows
comerciais. São índios e índias escolhidos a dedo, segundo o padrão de beleza da
“Malhação” e músicas frenéticas, num compasso enlouquecido que nem de longe
lembra a música tradicionalmente atribuída ao sotaque de orquestra.
Tal qual o boi de Parintins, alguns grupos chamam para entrar em cena os
personagens um a um, novamente descaracterizando a forma da dança em cordões
paralelos, típica do sotaque em questão. Outro aspecto a considerar é o número
impressionante de índias e índios que esses grupos têm apresentado. Vaqueiros, amo,
Chico, Catirina e o boi, antes personagem central, ficam reduzidos a quase nada,
espremidos lá no fim do mar de músculos, coxas e seios que fartamente se espalham no
terreiro. Aliás, esses grupos deviam propor a mudança do nome Bumba-meu-boi para
Bumba-minha-índia.
Para completar o verdadeiro “samba do crioulo doido” que apresentam, têm-
se cores unificadas nas indumentárias, via de regra em combinações de extremo mau
gosto e uma verdadeira miscelânea de elementos. Para quem não sabe, cada sotaque tem
suas especificidades. A primeira é a música, onde zabumbas, matracas e instrumentos
de sopro marcam a nítida diferenciação. Entretanto, esses não são os únicos diferenciais.
No sotaque zabumba, as golas e saiotes ricamente bordados são fartos e compridos, os
brincantes usam perneiras e as índias exibem uma linda cabeleira de ráfia branca,
apenas para citar os aspectos mais evidenciados.
Na categoria matraca ou Boi da Ilha, a marca registrada são os caboclos de
pena, com roupas pesadíssimas e evolução fantástica. Nos bois de matraca do sotaque
de Pindaré, de cadência mais lenta, temos os Cazumbás, figuras míticas que alegram e
encantam os arraiais por onde passam. Finalmente, no sotaque de orquestra,
predominavam os cordões paralelos de vaqueiros, com seus chapéus “gaiolas”,
indumentárias simples e, por isso mesmo, belas, requintadas em sua quase discrição e
uma música doce, orquestrada apenas por um banjo, um pistão e um cavaquinho.
Compare, então, o leitor, essas reminiscências do boi de orquestra com a
maioria dos atuais grupos. Há boi de orquestra com contra-baixo, matraca, pandeirão e
Cazumbá.
Na verdade, muito do que hoje se apresenta sob título de orquestra já é
mesmo uma nova dança que nada tem a ver com o referido sotaque. Nada contra as
novas danças; ao contrário, que surjam muitas manifestações e grupos. Agora, que
sejam criativos e corajosos o suficiente para batizar suas brincadeiras com nomes
específicos, deixando de se aproveitar do rótulo comercial no qual, infelizmente, foi
transformado o sotaque de orquestra. Como tenho dois filhos pequenos, andei o São
João todo, de arraial em arraial, na busca de um autêntico boi de orquestra, para que eles
tivessem a felicidade de conhecê-lo. Infelizmente não encontrei.
Pensei, talvez, que os arraiais oficiais, patrocinados pelo poder público,
tivessem sido mais criteriosos nas contratações, nada! Será impressão minha ou o boi de
orquestra é um sotaque em extinção? Ou estaria em metamorfose?
Cadê o boi de orquestra do Maranhão? Quem souber notícia por favor avise!
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* Deborah Baesse é mestre em Educação, pesquisadora em folclore e cultura popular e
membro da Comissão Maranhense de Folclore.
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Folha 3
SEMANA DA CULTURA POPULAR COMEMORA DIA
INTERNACIONAL DO FOLCLORE
Maria Michol P. de Carvalho*
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Folha 4-5
1
Moradoras do Desterro que freqüentaram assiduamente os festejos de Santo Antônio na casa de Maria
Brito
Eram 13 noites, havia nossa noite: a noite das moças, era dia 5. Havia,
também, a noite dos rapazes, a noite dos barqueiros, dos comerciários, dos
estivadores. Cada um tinha sua noite. (relato oral).
Era uma disputa, cada um queria fazer a noite melhor do que outro para
impressionar. A gente usava roupa nova, não se podia repetir o vestido do ano
anterior. (relato oral).
Uma vez, dois homens brigaram para dançar comigo. Minha mãe ficou
sabendo e me proibiu um ano de ir à festa. Não ficava bem para uma moça, homens
brigarem por causa dela. (relato oral).
Por fim, destacamos que a escrita deste ensaio foi inspirada em autores como
Ecléa Bosi (1994). Nesse sentido, a preocupação em examinar a veracidade dessas
memórias sociais sobre o referido festejo de Santo Antônio não foi nosso eixo principal,
posto que se tratavam de interpretações sujeitas a omissões e lapsos como quaisquer
outras, seja oficial, seja jornalística. Desse modo, nosso interesse esteve em demarcar o
que foi lembrado, o que foi escolhido por esse grupo de moradores para ser material
sócio-cultural a ser repassado às futuras gerações do bairro do Desterro.
Referências
2
Van Gennep (1977) classifica de rituais de comensalidade, as ocasiões em que há a oferta de comidas e
bebidas com o objetivo de agregar as pessoais.
AMARAL, Rita. Festa à brasileira - sentidos do festejar no país que não é sério.
Tese de doutorado (Doutorado em Antropologia) – São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1998.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica: Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia
das Letras,1994.
DURKHEIM, Émile. Formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.
VAINFAS, Ronaldo. SOUZA, Juliana Beatriz. Brasil de todos os santos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2000.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.
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* Ronald Clay dos Santos Ericeira é psicólogo e mestre em Ciências Sociais.
**Creudercy Costa da Silva é arquiteta e mestranda em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão.
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Folha 6-7
∗
Graduado em História pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA e aluno do Programa de Pós-
Graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos, da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Membro do GPRCP (Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular).
3
Categoria que tomamos emprestada de Ferretti (2003).
Embora, no período recortado, os grupos de bumba-meu-boi ainda sejam
lidos como “zoada” e “barafunda” numa terra que era significada como límpida e
branca por mitos como a Atenas Brasileira e a fundação francesa de São Luís, capital do
Estado, 4 e continuam a ser proibidos e disciplinados pela força policial, 5 já começavam
a ser sentidos como produtores de sons harmônicos e levados ao texto que definia a
maranhensidade. São precisamente breves lances desse último movimento que
pretendemos mostrar neste texto.
Se, hoje, o bumba-meu-boi é apresentado como a principal manifestação de
cultura popular maranhense, fazendo parte do texto que define a singularidade da
região, em meados do século XX, tal movimento de apropriação do popular identificado
com os bumbas já começa a se processar. Nessa nova teatralização do auto da
singularidade maranhense, além dos imortais poetas atenienses e dos sonhos franceses,
começarão a participar Pai Francisco e Mãe Catirina.
Em meados do século XX, as mesmas fontes que lêem as festas juninas
como uma tradição que nos teria sido legada “pelos nossos avoengos lusitanos”
apontam, também, para o caráter predominantemente popular, com forte marca negra e
indígena dessas festas (CRUZEIRO, 28/06/1947). Desse modo, ao mesmo tempo em
que as festas juninas sugerem uma identidade européia, apontam, também, para um
mundo lido como popular.
O bumba-meu-boi vinha sendo proibido por estas glebas, desde meados do
século XIX (ASSUNÇÃO, 1999, p. 53-57). Brincar bumba-meu-boi era, para os
brincantes, uma vadiagem que se atualizava num contexto de contínua violência: “o
pessoal era vadio pelo boi [...] gostava de vadiar o boi”. Famílias inteiras se envolviam
nas brigas de bois. “A família toda saía”, e as mulheres acompanhavam seus respectivos
maridos e filhos. E, na hora da briga, elas “só faziam gritar, chamando seu fulano, seu
beltrano”. Elas “viravam a saia, a saia comprida, pegava aqui, naquele colchete e botava
pedra. Aí, bajugavam pedra, quando elas não bajugavam, dava prós filho, dava prós
marido [...]: ‘Mete uma pedrada nele!’”. Um Boi “não podia passar por outro, qualquer
um que passasse, brigava” (Marciano Vieira Passos. In.: MEMÓRIA DE VELHOS,
1997, p. 78) 6.
Eram diversas as formas de violência nos encontros de bois. Ora, estamos
num momento em que a palavra “batucar”, lida como um termo da linguagem popular,
significa “vencer na briga ou no jôgo; infligir derrota a outrem”; o termo “cu-de-boi”,
4
No período em estudo, a maranhensidade tem seus temas extraídos (sobretudo) dos mitos da Atenas
Brasileira e da fundação francesa de São Luís (cidade que é reinventada como única capital das Américas
fundada por franceses), construções imaginárias que buscam seus sentidos num mundo branco, europeu.
De acordo com Corrêa (1993, p. 102-104), “a sociedade maranhense [...] ao definir-se como Atenas
[...] colocou-se na selvagem América, protegida pela cultura clássica da Europa. [...] A louvação dos
méritos, que foram reais, em um complexo de intelectuais, foi transposta à condição de essência
particular de todos os maranhenses [...] Atenas Brasileira –– provincianismo mais refinado do que
o nacionalismo [...] Maranhenses, nascidos na Atenas Brasileira. Atenas Brasileira, nascida dos
maranhenses”.
5
Por diversas vezes, entre as décadas de 40 e 50 do século XX, os grupos de bumba-meu-boi foram
proibidos de serem realizados, foram lidos como sinais da decadência do Estado e de sua gente pelas
letras atenienses. Quando isso acontecia, os populares que lhes levavam a cabo resistiam e, não raro,
realizavam suas festas. Algumas vezes a proibição aos bumbas se limitava a não permitir que os mesmos
fossem ao Centro da cidade, como ocorreu, por exemplo, em 1947, em São Luís (O GLOBO,
17/06/1947). Outras vezes, a proibição vetava que os festejos se realizassem em qualquer lugar, como
aconteceu no ano seguinte, também na capital (O GLOBO, 24/06/1948). De maneira geral, a brincadeira,
pelo menos oficialmente, deveria pedir licença para ser realizada. Fato é que não serão poucas as
proibições ao bumba-meu-boi por essas glebas, bem como seu afastamento do Centro da cidade: a
barbárie deveria afastar-se da civilização. Tal festa freqüentemente apresentava-se fora da ordem e dos
padrões da sociedade ideal pretendida pelas elites locais.
6
Marciano Vieira Passos (nasceu em 1907, pescador, operário, compositor, amo do Boi da Madre Deus).
outra “obra do povo”, significa “conflito, arruaça” (Domingos Vieira Filho. A
linguagem popular do Maranhão. In.: REVISTA DE GEOGRAFIA E HISTÓRIA DO
MARANHÃO – RGHM, 1953, p. 76; 85). Contudo, apesar de toda aquela propagada
violência (uma das justificativas da repressão), já em 1940, as festas juninas e os grupos
de bumba-meu-boi são pintados em páginas e descritos em poemas que definem a
maranhensidade, são instituídos como uma magnífica poesia que se constrói por ocasião
de sua realização, um tempo de “fogueiras crepitantes”, estrelas faiscando no céu, a
terra plena de cantares, de ruídos e de danças: “S. João domina plenamente a alma do
nosso povo” (REVISTA ATHENAS, 06/1941, capa) 7.
No interior da Ilha de São Luís, já nas “ante-vesperas desse folguedo
campesino, tão popular entre nós, vae se notando que a ilha passa por uma
transformação social”. Tudo muda: “As casas mudam de aspecto. Os cercados de pau-a-
pique soffrem reformas. Todo mundo trabalha cantando, na remodelação dos casebres
[...] Todos se alegram. Ha sorrisos de satisfação emoldurando os lábios das caboclas
bonitas” (Fulgêncio Pinto. Festa de S. João. In.: REVISTA ATHENAS, 06/1940, p. 10)
8
.
O “povo” derruba “velhos Cajueiros” que depois levantarão “grossas
labaredas” alegrando “a noite decantada de S. João”, uma “festa de arte decorativa que
seduz” e deslumbra “os forasteiros” com tantos “contrastes de luz e epopéas de côres”.
Esse povo e suas festas dão condições de possibilidade para a manifestação de
forças que hão de gerar uma arte verdadeiramente nacional, para guiar o Brasil,
atravez do sentimento da belleza dos seus esthétas, á finalidade de uma literatura
própria, curiosa, de imaginação e realidade, que assombrará pela sua originalidade
as élites intellectuaes do velho mundo. E em torrentes impetuosas de imagens
phantasticas, a luz se lança em projecções magneticas sobre o rendilhado das
ramagens, para ascultar a alma dos deuses selvagens que celebram o ritual da sua
liturgia tellurica no seio uberrimo daquella selva povoada de divindades pagãs
(Fulgêncio... p. 10).
7
A Revista Athenas traz na capa de sua edição de 06/1941 uma foto representando uma noite de São
João, com fogueiras, pessoas dançando, homens batendo tambor... Essa revista (no contexto do Estado
Novo, quando aqui era Interventor Paulo Ramos / 1936-1945) pretendia relembrar as tradições
maranhenses que o seu próprio nome indica, mas também já começa a tecer a maranhensidade a partir de
linhas populares.
8
Fulgencio Pinto (“foi um grande folclorista, falou em folclore, era com ele mesmo, depois, muito depois
é que vieram os outros [...] Não foi da Academia [AML] porque não quis, falou-se muito [...] Trabalhou
em um órgão ligado à Justiça [...]”. Informações obtidas com Nascimento Moraes Filho).
deixarem os cabras moles de cansaço, sujos de poeira, derreados de somno”. Sob a
sombra de pequizeiros, “raparigas travessas”, de dedal e agulha em mãos “vão
desenhando signos de Salomão, meias-luas, estrellas mal ageitadas, crivando de
lantejoulas douradas, fios de aljôfares e contas de malacacheta, os mantos vermelhos de
pelucia dos namorados paixólas, amos, primeiro rapaz e vaqueiro do bumba-meu-boi”
(Fulgêncio... p. 11).
E quando chega a noite de São João, “ardem as fogueiras avermelhadas nos
arraiaes”. O sinal do começo da fuzarca é o estouro de foguetões “prô lado das baixadas
e dos alagadiços”. O mastro “já está plantado em frente de uma palhoça enfeitada”. E,
“no altar iluminado, repousa o santo da devoção”. Depois de cantarem ladainhas,
Fontes e Referências
Informantes
Marciano Vieira Passos. In.: Memória de Velhos. Depoimentos: Uma contribuição à
memória oral da cultura popular maranhense. São Luís: LITHOGRAF, 1997, v. 5.
Nascimento Moraes Filho. Informações obtidas em 23 de junho de 2005. São Luís/MA,
2005.
Instituição e Periódico
BIBLIOTECA PÚBLICA BENEDITO LEITE: Cruzeiro – Semanário de Orientação
Católica. Caxias/MA. (1947-1950 – BPBL); O Globo. São Luís/MA. (1945-1950)
Revista Athenas. São Luís. (1939-1943); Revista de Geografia e História do Maranhão
(1946-1956). São Luís. Ano IV, 12/1953, n. 4.
Referências Bibliográficas
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Nordeste e outras artes. Campinas, 1994. Tese de Doutorado em História Social pelo
IFCH-UNICAMP.
ASSUNÇÃO, Matthias Rohring. Cultura popular e sociedade regional no Maranhão do
século XIX. In.: Revista de Políticas Públicas. São Luís: EDUFMA, 1995, pp. 29-67.
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Antropos-
Homem. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. V. 5. pp. 296-332.
BAKTHIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UNB, 1987.
BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Entre o maranhense-ateniense e o Maranhão
de tambores e bumbas: Estudo sobre um momento do processo de reinvenção da
maranhensidade. Relatório final de pesquisa apresentado à Pró-Reitoria de Pesquisa e
Desenvolvimento Tecnológico, PIBIC/CNPQ/UFMA. São Luís, 2005a, 170p.
________ . Renegociando identidades e tradições: Cultura e religiosidade popular
ressignificadas na maranhensidade ateniense (1940-1960). Monografia de conclusão de
curso em História, Centro de Ciências Humanas, UFMA. São Luís, 2005b. 157 p.
CERTEAU, Michel de. A beleza do Morto. In.: CERTEAU, Michel de. A Cultura no
Plural. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1995.
CORRÊA, Rossini. Formação social do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1993.
COSTA, Wagner Cabral da. Ruínas Verdes: Tradição e Decadência nos Imaginários
Sociais. In: Revista Cadernos de Pesquisa. Pró-Reitoria de Pesquisa e
Desenvolvimento Tecnológico da UFMA. São Luís: Ed. da Universidade Federal do
Maranhão, 2001. pp. 79-105.
FERRETTI, Sérgio F. Identidade Cultural Maranhense na Perspectiva da Antropologia.
In: Boletim da Comissão Maranhense de Folclore. São Luís, boletim 27, 2003.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio: LTC, 1989.
GINZBURG, Carlo. Il formaggio e i vermi. Torino: Einaudi, 1999.
LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A Fundação Francesa de São Luís e seus
Mitos. São Luís: EDUFMA, 2000.
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Folha 8-9
9
Apresentado originalmente no 10° Congresso Brasileiro de Folclore – São Luís, 18-22/06/2002.
10
Juliana Manhães é atriz, dançarina, educadora licenciada em Artes Cênicas na Uni-Rio, integrante da
CASA - Cooperativa de Artistas Autônomos, coordenadora e brincante d`As Três Marias - Núcleo de
Folguedos Brasileiros.
Quero fazer um agradecimento especial ao meu mestre Sr. Abel11, cazumba do
boi da floresta de Sr. Apolônio, que, desde o momento da confecção da careta, já ia me
introduzindo na brincadeira, através de sua peculiar maneira de direcionar o
conhecimento do brinquedo. Foram três meses de encontros para bordar, costurar, traçar
pontos e dar nós, escutando histórias e tecendo laços de afetividade.
O desejo de escrever despertou em mim uma necessidade de exprimir aquele
suor em palavras escritas. E foi no último dia de brincada do boi (2 de julho do ano de
2001), quando todos já estavam muito cansados, mas segurando “o esqueleto e o
chapéu”, e eu sentia uma mistura de tristeza com esgotamento por ser o dia derradeiro,
mas também um enorme entusiasmo e arrebatamento da brincadeira, e, nessa euforia,
que eu disse para Sr. Abel, durante uma toada cantada: “Eu, um dia vou te contar como
foi para mim brincar de cazumba no boi.” E ele me respondeu: “Ah, eu quero é por
escrito, porque depois eu vou mostrar para minha mulher.” (Abel, 2001). E assim ele
conseguiu quebrar os meus sentidos, trazendo a necessidade de colocar em palavras
escritas esse molejo e requebro único.
Minhas observações circulam com dois olhares: um de estrangeiro, no sentido de
que eu mesma, sendo maranhense, não nasci dentro da brincadeira do boi e não convivi
com os entrelaçamentos da manifestação ao longo desses anos; o outro olhar se lança na
vivência de quem está dentro da roda do boi, momento íntimo, sendo um brincante,
vivendo os entremeados dizeres do guarnicê, escutando o apito tocar e percebendo a
comunicação do olhar atento de um coletivo, antes da apresentação começar, durante a
roda de brincadeira e na despedida, quando troca-se a roupa para ir embora ou continua
para outra brincada.
Muitos brincantes, quando conversamos e fazemos perguntas, respondem: -“Ah,
não sei não, quando eu mi intindi já era assim...” Sem muita preocupação em achar
respostas!! Como diz Sr. Abel: “Se quisermos muita explicação perdemos a noção da
coisa.” (Abel, 2001).
É o mistério do cazumba que me interessa burilar e navegar nesse caminho
obscuro e enigmático, através da representação de minha memória remota e alguns
textos que li, falando sobre esse personagem mascarado do boi.
O cazumba é um personagem do bumba-meu-boi, do sotaque da Baixada ou de
Pindaré. Dizem que cazumba não é homem, nem mulher e nem animal, que está entre a
magia e o lúdico; fusão dos espíritos dos homens e animais, cercado de magia e
responsabilidades com o boi. Por ser um personagem muito solto, não possui uma
performance definida e gosta de andar em bandos.
Ele vem na frente, é o que puxa o boi, é o primeiro a entrar na brincadeira,
abrindo o caminho. Durante a brincada, o cazumba fica no meio da roda, junto com o
boi, o vaqueiro, a burrinha, a oncinha, a Catirina e o Pai Francisco, mas tendo total
liberdade de movimentação, se diferenciando dos movimentos marcados das índias e
caciques, e não tendo compromisso com a meia lua ou a roda que os baiantes de
chapéus formam.
Ele cria um estranhamento, “o Cazumbá, por não ser decifrável, tem na sua
estranheza sua potência. Potência de representar imagens, de colocar em cena uma
cena” (Bittencourt, 2000 p.2).
É um sujeito que provoca e, para isso, cria muitas brincadeiras com as figuras do
boi ou com quem está assistindo. Sua presença surpreende, intriga, intimida, causa
espanto, trazendo admiração, medo e um enigma, onde a brincadeira é um jogo gestual
de comunicação em um momento extraordinário e particular - o tempo presente.
11
Abel Teixeira nasceu em 19 de novembro de 1939, em Viana, artista que faz “careta de pano ou de
pau” do Cazumba.
Esse personagem tem um estilo muito particular de dançar e brincar dentro da
roda do boi. E, por isso, traz uma individualidade muito marcante, onde cada um tem
maneiras diferentes de bailar. “O cazumba é independente, pode dançar onde quiser, só
tem que ter noção do que vai fazer, ser um cazumba, fazer graça para os outros rir!”
(Abel, 2001).
O figurino é chamado de bata ou farda, tendo o corpo todo coberto, só
aparecendo as mãos e sapatos. Um cofo, feito de folha de carnaúba, no lugar da bunda,
trazendo uma protuberância enorme, que balança de acordo com o movimento que o
cazumba faz; inclusive, alguns cazumbas colocam dentro do cofo pedras, garrafas de
bebida, e até mesmo a sua própria roupa, para pesar e, assim, poder mexer mais forte,
com precisão! Sr. Abel chama farda e diz que “o cofo era usado pelo Pai Francisco nas
costas.” (Abel, 2001).
A bata do cazumba traz em si uma significação pintada nas costas, um
agradecimento, uma imagem, algo de valor que o brincante queira revelar. Na mão, um
chocalho ou badalo, tipo sino de boi, que está sempre a badalar, marcando seu ritmo.
No rosto, utiliza uma máscara, chamada de careta, podendo ser de madeira ou
tecido, toda enfeitada de canutilhos e miçangas, e o que der vontade do cazumba
colocar. Antigamente os cazumbas carregavam vários objetos como o chicote e o funil,
usado para falar alto. Um cazumba do interior, que dança no boi da floresta, chamado
“cai na piscina”, carrega uma espingarda e tem um relógio enorme em cima da careta.
A careta que confeccionei, junto com Sr. Abel, tinha pontos muito difíceis de
fazer, como o olho, que é bordado com diferentes pontos, um pequeno orifício, por onde
o olhar passa. Possui orelhas enormes e o nariz desproporcional. “A careta do cazumba
a gente faz é no olho mesmo. E a boca tem que ficar meio errada, se ficar muito
certinho, não é cazumba. Tem que carcar, apertar, para não ficar frouxo o nariz, e cortar
o rabo da linha.” (Abel, 2001).
A careta do cazumba se impõe, nada precisa ser dito, quem usa percebe que é
uma troca constante com cada pessoa que vê. Seu olhar provoca uma necessidade do
corpo enxergar por inteiro e, para isso, é preciso estar presente, com o corpo vivo e
disposto para o que der e vier. O olho vê com o corpo todo. Não existe a possibilidade
de só o olho se mexer, pois o cazumba não tem um olhar lateral.
O olhar do cazumba produz um estado, um tipo, com personalidade própria, que
faz o corpo dançar estimulado pelo que vê. E, pela relação que ele estabelece ou propõe
aos outros, cada um reage de uma maneira na brincadeira e o importante é o “jogo de
cintura”. É a relação da presença de estados de arrebatamento e excitação, pelo ritmo na
roda da dança, estado irônico e zombeteiro com os outros cazumbas ou adultos e
crianças que aparecem na roda do boi.
Existe uma pulsação contínua, onde o olhar brinca, esse pulso é um gerador
interno que propicia o vigor e a energia para esse corpo que palpita. E, nessa palpitação,
o olhar traz as relações que se estabelecem, traz o espírito da brincadeira e do jogo.
O passo da dança é simples, porém ágil, e não tem uma forma fixa. Possibilita
diferentes maneiras de caminhar, marcando o ritmo, que pode ser no “miudinho”, no
acelerado ou ir na base do boi, junto com o tambor onça. É pela vivência da pulsação
que vamos descobrindo o nosso molejo.
O importante é preservar a surpresa e deixar o corpo quebrar o movimento,
trazer o “caqueado”, ou seja, flexibilizar a maneira como o corpo se coloca no espaço.
Essa transferência de peso permite diversas maneiras do pé pisar e provoca uma relação
de equilíbrio do pé com o chão. A desenvoltura do passo vai depender do estado em que
o brincante se encontre naquele momento.
Os pés marcam o ritmo, uma mão toca e a outra acompanha o corpo, trazendo
um desequilíbrio corporal. Os ombros acompanham o movimento da coluna vertebral e,
principalmente, do quadril, gerador dos impulsos dos movimentos. A bunda mexe de
um lado para o outro, com um gesto rápido e pequeno, ou com um gesto sutil cheio de
leveza.
É raro ver mulher cazumba, mas o espaço se abriu para elas, como no boi da
Floresta, que já tem cinco cazumbas balançando o badalo. Não posso negar que mulher
mexe diferente do homem e, por isso, traz um molejo, que vem do quadril. Já o homem
mexe com os ombros e a coluna e, assim, ela balança de outra forma. Ou como enfatiza
Sr. Abel: “Não precisa ficar remexendo muito o corpo, que o cofo se movimenta
sozinho.” (Abel, 2001).
O cazumba fala sutilmente com seu corpo grotesco. Ele está no reino do entre, é
um personagem híbrido, que gosta de andar em bando. “Os que usam careta
experimentam uma irmandade, um sentimento de integração, que respeita e valoriza as
singularidades, marcadas sobretudo na autoria das máscaras e batas.” (LODY, 1999,
p.18).
Seu corpo desproporcional marca e aponta a figura desconforme, que apronta e
se permite ser ridículo e cômico. Como diz maranhense “é saliente e danado hein!”
O mais interessante é perceber as relações que um cazumba estabelece dentro e
fora da brincadeira. “Cazumba com cazumba se comunica através do aceno12, sem dizer
nada. Conversam, mas não sabem o que estão dizendo, é um aceno.” (Abel, 2001).
E fico nesse ponto, nesse movimento atento ao chamamento dos mestres, “vou
caminhar que o mundo gira”13, permitindo navegar nesse emaranhado de fios.
E na próxima outros nós: “é preciso, então, circular, fazer circular, inventar novas
conexões, a brincadeira quebra as distâncias, os limites e as fronteiras que existem na
vida real.”14
Referências
12
Dicionário Novo Aurélio: Movimento da cabeça, dos olhos ou das mãos, para exprimir idéias; gesto,
sinal. Chamamento, apelo, convite.
13
Letra de Jongo
14
Hermano Viana: “Textos risonhos” - sobre o espaço da brincadeira no Brasil -, enviado por e–mail a
Márcio Libar, em 23/03/2003.
SALLES, Vicente. Vocabulário Crioulo - Contribuição do negro ao falar regional
Amazônico. Belém: IAP/Programa Raízes, 2003.
Entrevistas
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Folha 10-11
Mundicarmo Ferretti16
15
Baseado em textos apresentados em 2003 no V Congresso de Umbanda e Candomblé de Diadema e
Grande São Paulo (Diadema, 25/05/2003) e na Semana de herança africana (Salvador, 27 a 31/8/2003).
16
Mundicarmo Ferretti é doutora em Antropologia, pesquisadora de Religião Afro-brasileira e membro
da Comissão Maranhense de Folclore.
entidades espirituais africanas cultuadas nos terreiros são, geralmente, denominadas
voduns e quem entra em transe com elas costuma ser denominado “vodunsi”.
Mas, apesar da importância das “nações” jeje e nagô, a mina maranhense
recebeu influência de outras tradições africanas. Embora nem todas as tradições
religiosas africanas da mina tenham chegado aos nossos dias tão completas e
diferenciadas como a jeje e a nagô, outras também contribuíram para a configuração do
que hoje se reconhece como mina. Existiram, no passado, terreiros que se tornaram
conhecidos como de “nação” taipa ou tapa (como o da Turquia); cambinda ou cabinda;
e caxeu ou Caxias (como o do Cutim, em São Luís, e como um terreiro do povoado de
Cangumbá, em Codó), para citar apenas os mais conhecidos.
Apesar de existir uma ligação estreita entre as Casas das Minas e de Nagô e
muitas entidades espirituais africanas serem cultuadas nas duas, elas são diferentes e
autônomas. Vários voduns são recebidos nas duas Casas ou têm tanta afinidade com
entidades recebidas na outra Casa, que essas são consideradas seus representantes, como
ocorre com Abe e Iemanjá, entidades que controlam as águas. Na Casa de Nagô, o orixá
Xangô é mais conhecido como Badé, que, na Casa das Minas, é também denominado
Queviossô. Alguns voduns da Casa das Minas são apresentados como nagô, como é o
caso de Averequete, Abê, Sobô, Badé e outros da família de Queviossô. Mas existem,
também, entidades recebidas em uma Casa que não são em outra, como ocorre com
Zomadonu e outros da família real do Dahomé, que só vêm na Casa Jeje, e de voduns
gentis, como Dom Luís, recebidos na Casa de Nagô, que não vêm na Casa das Minas.
Referências
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Folha 12-13
Referências
* Deusdédit Carneiro Leite Filho e Eliane Gaspar Leite são arqueólogos do Centro de
Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão.
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Folha 14-15
Continuação do número 31
O FOGO
Carlos de Lima*
17
Abraham demonstrou psicanaliticamente a simbólica sexual do fogo numa equivalência do esperma.
Freud, analisando uma sua paciente encontrou nos seus sonhos a substituição do fogo pela urina. (Câmara
Cascudo)
e este o calor; a luz provém do fogo, mas o fogo é doloroso, enquanto a luz é fecunda e
doce. O sol espiritual é o verdadeiro coração do mundo, diz Guénon; o conhecimento
traz a luz onde há as trevas da ignorância, ensinam a Bíblia, o Alcorão, o Rig-Veda
(Agni, tu és a vida, tu és o protetor dos homens!), opinam também taoistas e budistas.
No panteão japonês a deusa principal é Amaterásu-o-Micâmi, a Grande Deusa que
Brilha no Céu, a qual, ocultando-se numa gruta, mergulhou o Universo nas trevas. Só a
curiosidade, mola do mundo, fê-la sair e novamente brilhar pela amplidão.
Luz e trevas exprimem a dualidade Bem-Mal em todas as religiões: Ormus e
Arimã, no Masdeismo iraniano; influências terrestres e celestes, yang-yin dos chineses:
fogo e água; Deva e Asura, na Índia; anjos e demônios do Ocidente; correspondentes
aos modernos in e out. Luz e trevas são duas cousas diferentes, escreve Huei-meng, o
patriarca, mas os homens sábios sabem que elas são da mesma natureza.
Deus é Luz! Toda aparição vem cercada de uma auréola de luz, o sinal do
sagrado; todo santo tem seu resplendor. A luz da graça fecunda o coração do homem e
a luz do céu é sua salvação, criam os egípcios e por isso os mortos levavam sobre o
peito um amuleto em forma de sol. O deus Seth, simbolizava a luz das trevas, terrível e
maligna, e Anúbis, a vivificante luz benigna, de onde saiu o Universo, a que guia as
almas ao outro mundo. A mulher dá à luz um novo ser.
Com o fogo nasceu o culto aos mortos, os deuses larários, penates, os
antepassados. Na luz solar, que morre todas as tardes para renascer todas as manhãs,
identifica o homem o seu próprio destino e dela tira a esperança da vida eterna. A luz é
vida, felicidade, salvação, enquanto a treva é o mal, o castigo, a perdição, a morte. Jesus
é a luz do mundo (João, 8:12; 9:5) e os crentes, o reflexo da luz de Cristo (II Coríntios,
4:6). Segundo São Bernardo, as almas, separadas dos corpos, serão lançadas num
oceano de eternidade luminosa... a intensidade luminosa do face a face com Deus! O
Alcorão diz: Deus é a luz e sua luz é como um nicho num muro, onde está uma lâmpada
e ela brilha sem que o fogo tenha sido nele colocado. É luz sobre luz.
Além de simbólico, o fogo tem seu caráter utilitário. Índios, portugueses,
africanos, cultuaram o fogo e dele se serviram cotidianamente, na preparação dos
alimentos, contra o frio, ou como facho para espancar os fantasmas noturnos. Ao redor
do fogo nasceu a família, a comunidade. A conversa ao pé do fogo propiciou aos
antigos a transmissão dos ensinamentos, a preservação das tradições.
No folclore, o fogo fátuo é o boitatá, a cobra de fogo, enquanto o fogo de
Santelmo brilha nos mastros dos navios que partem em busca do desconhecido. Os
olhos da Cobra Grande são como os de Anhangá, duas tochas de fogo, garante o
caboclo.
Nossa conhecida fogueira de São João originou-se daquelas que os povos
antigos acendiam para agradecer aos deuses a boa colheita e comemorar o solstício18.
Assim herdamos o costume das fogueiras nas noites juninas, reminiscências de velhos
rituais.
Melo Morais Filho desmerece um tanto esta analogia para aferrá-la tão
somente às tradições portuguesas, às cavalhadas de São João com sina e besta19, nas
ilhas dos Açores, conforme referia Viterbo, em 1464. As festas joaninas foram trazidas
18
O sol descreve em seu movimento aparente, e sobre a esfera celeste, um grande círculo, cujo plano não
coincide com o do equador terrestre, mas forma com este um ângulo de aproximadamente 24º. Os pontos
de contato da elíptica solar com os trópicos de Câncer e de Capricórnio chamam-se solstícios: o primeiro,
naturalmente no hemisfério Norte, e o outro, no Sul. Opostos, quando no Norte ocorre o solstício de
inverno (21 e 22 de dezembro) no Sul verifica-se o de verão (21/22 de junho); e vice-versa: de inverno no
Norte, de verão no Sul (Mérito). Herdamos, através dos portugueses, as festas de junho, as quais, todavia,
remontam a tempos muito mais antigos.
19
Sina - bandeira militar, estandarte; besta - arma portátil para arremessar flechas curtas, balas, pelouros.
Balesta.
pelos portugueses, e frei Vicente do Salvador e Fernão de Cardim descrevem a alegria
dos silvícolas com as fogueiras e as palmas pela época junina. “O Brasil – conclui
Morais – aceitando o legado na sua castidade primitiva, criou-lhe uma lenda,
acrescentou-a na parte mítica, e o ampliou em relação ao concurso de novas raças e
diversos meios.” À porta das casas armavam-se as fogueiras, tiravam-se sortes,
soltavam-se foguetes, chuveiros de ouro, estrelinhas, pistolas de vários tiros, fogo de
lágrimas, traques e bombas. Os buscapés perseguiam os transeuntes e nas brincadeiras e
no passar fogueira cultivavam-se as relações sociais, iniciavam-se os namoros, quando
não se marcavam os casamentos... Era um tempo de lírica inocência, de doce conviver.
Uma fogueira de amor, não de justiça. E como isto faz falta no mundo de hoje... de tanta
desconfiança e prevenção!
Com a fogueira surgiram as superstições e as sortes: nas cinzas buscava-se o
perfil do futuro marido, ou esposa. Riscava-se um fósforo dentro da xícara de café;
cobria-se rapidamente e depois ia-se adivinhar o rosto do noivo ou noiva, ou a igreja das
núpcias, ou o navio da viagem, ou o caixão funéreo. Se nada aparecesse, era sinal certo
de que não se estaria vivo no próximo São João. “Salta-se a fogueira três vezes em cruz
com um bochecho de água na boca, que se conservava até ouvir alguém pronunciar o
nome de uma pessoa do outro sexo, que será o nome do futuro noivo ou noiva”, é
costume que recebemos de Portugal.
“A ortodoxia da lenda era respeitada e seguida em quase todo o norte,
derradeiro refúgio dos nossos costumes e das nossas tradições”, regozijava-se o
folclorista. Bons tempos! Bons tempos!
A cada bilhetinho de sorte revelado, as gargalhadas estrugiam:
Sarna e sarampelo
para o Padre de Arcozelo,
ensina Ernesto Oliveira, acrescentando que possuem virtudes casamenteiras pelo que
são muito freqüentadas por rapazes e moças. E “quanto mais alto pularem as raparigas,
mais certo é o casamento. Ainda hoje se vêem no Porto, em Coimbra e em Lisboa”,
conclui.
Nas festas do São João antigo passava-se fogueira recitando
20
Giesta -denominação comum a vários arbustos da família das leguminosas, usada por suas
propriedades medicinais e para o fabrico de vassouras.
São Pedro, São Paulo,
São Filipe e São João
sejam testemunhas
que fulano é meu compadre.
Capelinha de melão
é de São João,
é de cravo, é de rosa,
é de manjericão!
21
Esta culinária especial cremos ser criação brasileira, pois, Ernesto Oliveira diz claramente que o S.
João em Portugal, sob o ponto de vista alimentar, é uma quadra pobre e pouco caracterizada, sendo
mesmo raras as áreas em que se assinala qualquer manjar específico. Preferia-se a fartura à
especificidade.
22
Quentão - bebida preparada com cachaça fervida com açúcar, canela e gengibre.
passar para a fabricação das armas de fogo e à criação da muito lucrativa indústria da
guerra.
A mera observação de um pedaço de metal por acaso caído na fogueira deu
ao homem a intuição da fundição dos metais e em conseqüência o conhecimento dos
materiais fúseis, o nascimento da indústria siderúrgica.
Muito mais haveria a relatar acerca do fogo. Procuramos neste trabalho
traçar um sucinto painel da sua história e descoberta de sua utilização na vida dos
povos, seu simbolismo e sua influência no desenvolvimento do gênero humano.
Referências
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Folha 16
JANELA DO TEMPO
Josué Montello24
23
Publicado originalmente no jornal Diário de São Luís - 1°.jul. 1946.
24
Membro das Academias Maranhense e Brasileira de Letras e dos Institutos Histórico e Geográfico
Brasileiro e do Maranhão.
Exatamente dez anos depois de ter saído de São Luís, torno a encontrar,
numa noite de 1946, a mesma alegria, a mesma animação, a mesma riqueza de ritmos,
de cores e de movimentos, nas festas que se realizam no João Paulo, nos arredores da
cidade.
Parece-me até que a festa se desenvolveu, ganhando em animação e
colorido, sem nada perder de seu sabor regional.
Ainda cedo, antes de cair a noite, no caminho enfeitado de bandeirolas, vai-
se dificultando o trânsito - até que, noite alta, torna-se quase impossível passar pela
estrada que vai de São Luís ao Anil.
De longe, entre a zoada dos pandeirinhos e das matracas, ouvem-se as
cantigas típicas da festa. São os bois que descem da Maioba para o João Paulo e vêm
cantar, com a sua policromia e a sua alacridade, nos arraiais iluminados. Dificilmente se
poderá encontrar maior entusiasmo coletivo.
O bumba-meu-boi da tradição maranhense conserva o sabor de uma farsa
que o tempo não conseguiu diluir. O boi é uma armação de madeira, coberto de veludo,
espelhos, miçangas e pontas de fitas, em cujo bojo mergulham a cabeça e o tronco de
um homem, que faz o “bicho” dançar. Incansavelmente rodopia no terreiro enquanto
estrondam as matracas e os pandeiros e estralejam os busca-pés, os besouros, as
estrelinhas e os foguetes. O colorido mais rico está no cocar e na tanga dos “índios” de
penas de cores variegadas, riquíssimas, de uma beleza bizarra. Há ainda o Pai Francisco,
a Mãe Catirina, os vaqueiros, que animadamente volteiam e pulam em torno do boi.
Esse boi morre e ressuscita, por entre cantigas que têm toadas melancólicas, vestígio
rítmico da tristeza da raça.
Freqüentemente muitos bois dançam no mesmo largo da matriz. Não raro
estoiram as rixas e os desafios, decorrentes de uma rivalidade natural, que nasceu do
empenho normal em cada grupo, de que o boi mais rico, mais bonito é o seu.
Antigamente as festas de São João se faziam em arrabaldes distantes da
cidade: Anil, Maioba, Turu e São José. Ultimamente, a animação maior é nos arredores
de São Luís, no bairro proletário do João Paulo, onde existem um ou outro dos velhos
sítios e das velhas chácaras, que nos vieram do tempo do Império e do começo da
República. O casario, que era quase todo de palha, mudou muito, de uns tempos para cá.
Mas a festa ainda é a mesma. O que prova que, na alma do povo, as mutações são mais
lentas e às vezes impossíveis. Não é apenas nas estradas e ruas que se engalanam de
bandeirolas que se faz, em São Luís, a festa de São João e São Pedro. Também nas
casas e no céu ela se processa. A amplidão se constela de balões, que se perdem dentro
da noite. Nos alpendres fazem as sortes, que entremostram o futuro às donzelas e às
solteironas desoladas. Na bacia de água, um pingo de vela conta o futuro, com as suas
grinaldas de seda, os seus véus e até mesmo, os seus esquifes. As orquestras e charangas
regionais tocam a noite inteira, confundindo os seus ritmos modernos com o ritmo
primitivo que sobe das ruas e dos largos, na cantiga cabocla do bumba-meu-boi.
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FOLHA 16-17
RESUMOS E RESENHAS
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Folha 17
AGENDA DE CULTURA POPULAR
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Folha 18-19
NOTICIAS
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Folha 20
PERFIL POPULAR
Josimar Silva*
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*Josimar Silva – Licenciada em História e pesquisadora da Cultura Popular
Maranhense..