Boletim 21
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SUMÁRIO
· Editorial
· O Terreiro de Vó Severa - Rosário Santos
· O Bumba-meu-boi e seu Simulacro - Adriano Sousa
· Folclore no Terceiro Milênio - Roberto Benjamim
· "Com Defeito de Fabricação": Tom Zé e a estética do plágio - Helen de Sousa
· Festa de São Gonçalo - Jacyara de Melo
· Iemanjá não era a rainha do mar: o culto a Iemanja no Maranhão - Mundicarmo Ferretti
· Para falar de sotaque de Bumba-meu-boi - Arinaldo de Sousa
· Mesa Branca e Tambor de Mina - Marilande Abreu
· Notícias
· Perfil Popular
Francisco Naiva - Márcia Mendes
DIRETORIA:
Presidente: Sérgio Figueiredo Ferretti
Vice-presidente: Carlos Orlando de Lima
Secretária: Izaurina Maria de Azevedo Nunes
Tesoureira: Maria Michol Pinho de Carvalho
CORRESPONDÊNCIA:
CENTRO DE CULTURA POPULAR DOMINGOS VIEIRA FILHO
Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande.
CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão
Fone: (098) 231-1557 / 231 9361
As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF.
CONSELHO EDITORIAL:
Sérgio Figueiredo Ferretti
Carlos Orlando de Lima
Izaurina Maria de Azevedo Nunes
Maria Michol Pinho de Carvalho
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti
Zelinda de Castro Lima
Roza Santos
EDIÇÃO:
Izaurina Maria de Azevedo Nunes
ENDEREÇO ELETRÔNICO:
www.cmfolclore.ufma.br
E-MAIL:
cmfolclore@ufma.br
Editorial
Chegamos ao final de 2001 e um balanço das nossas atividades nos aponta, sem dúvida, um saldo positivo de ações no processo de conservação e
dinamização da cultura popular maranhense para o qual contribuiu o apoio e incentivo aos festejos tradicionais. Nesse sentido, tiveram hora e vez o carnaval
de rua, os festejos juninos, que transformaram a cidade de São Luís num grande e palpitante arraial, e o ciclo natalino com sua beleza singela.
Dentro dessa importante dinâmica, a Comissão Maranhense de Folclore procurou colocar-se sempre numa posição de parceria, cerrando fileiras com o
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho/Fundação Cultural do Maranhão, sobretudo no trabalho de reforço junto às nossas manifestações/grupos. E há
de se considerar a diversidade desse rico universo que vem à tona a todo instante, revelando, inclusive, a força que tem o interior do Estado.
A Semana da Cultura Popular, que comemorou o 22 de agosto - Dia Internacional do Folclore - com o tema "Outras Danças Maranhenses", se constituiu
num significativo exemplo dessa nossa variedade, não só mostrada, mas ensinada ao vivo e em cores nas mini-oficinas e apresentações feitas pelos brincantes.
Aí, tivemos a grande oportunidade de mergulhar e beber na fonte de energia contagiante do saber criativo da nossa gente.
Este número 21 do Boletim sai em meio ao vigor do movimento dos Pastores e Reis, os quais vêm ganhando novo impulso nos últimos três anos, tendo a
sua arte veiculada no "Maranhão de Natal", que faz a sua homenagem especial ao Jesus-Menino que chega com sua mensagem de paz, esperança e
fraternidade. É nas asas do seu conteúdo promissor que queremos alçar vôo e saudar aqueles que nos acompanham nesta "missão folclórica".
Não podemos esquecer que o ano de 2002 nos traz o desafio de sediar o X Congresso Brasileiro de Folclore, recebendo de braços abertos, em plena
efervescência dos nossos festejos juninos, todos os que estejam dispostos a desenvolver um processo de reflexão-ação em torno do "Folclore-Turismo: tradição
modernidade". Sabemos que temos muito caminho ainda a percorrer nessa jornada e por isso precisamos da efetiva participação dos nossos aliados de missão
nos vários estados brasileiros. Vamos à luta então!...
O Terreiro de Vó Severa
Rosário Santos*
O Terreiro de Belém, de grande tradição em São Luís, era chefiado por Severa Soeiro, ou simplesmente Vó Severa, ou ainda Nhá Severa, africana de
nação, que veio para São Luís de Codó ou São Bento na companhia de seu senhor de escravos.
Não foi possível identificar a parte da África da qual pertencia a sua nação ou se ela pertenceu a um determinado grupo ou subgrupo. É provável que
tenha sido Cambinda e que tenha entrado no bojo do contrabando através do porto de Cururupu, considerado um dos maiores do comércio ilícito de escravos do
Maranhão.
Contou-nos Maria Raimunda Soeiro Martins, Dona Boneca, sobrinha de Vó Severa, que muitos comentavam ser o senhor de sua tia Severa um homem
muito bom e que um dia chamou-lhe e fez a seguinte promessa: se tudo desse certo com ele e se os protetores dela ajudassem-no a conseguir o cargo que
almejava, dava-lhe a alforria imediatamente.
Vó Severa, confiante nas suas entidades, ia para o campo aberto conversar com os seus santos, fazendo pedidos que beneficiariam o seu senhor e, em
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particular, a si própria, uma vez que alimentava o desejo de dançar em seu próprio terreiro. Não tardou para que a graça fosse alcançada. Sem demora o seu
senhor deu-lhe a liberdade.
Vó Severa teve o seu aprendizado na Casa de Nagô, onde teve suas entidades confirmadas. Depois de uma longa convivência, foi aconselhada a
procurar o seu espaço, dado a sua linhagem. E assim foi criado mais um dos terreiros de mina de São Luís fundado por uma africana.
Segundo algumas mineiras antigas, Vó Severa recebeu orientações de pessoas da Casa de Jêje. Talvez isso justifique a linha do Terreiro de Belém,
implantado por ela, receber entidades da linha Jêje e Nagô.
Os tambores de Vó Severa tiveram grande eco durante enquanto viveu a chefe do Terreiro. Segundo uma de nossas informantes, os tambores tinham
nomes de Badé e Bárbara Soeiro, que, acompanhados do xereque-xeque das cabaças e do dim-dim-dim do agogô, buscavam filhos na "Guma" e, por mais
distantes que estivessem, vinham fazer reverência na frente dos tambores mestre e guia.
Fomos informados que Vó Severa tinha como companheiro um português "arrimidiado", que parece haver desaparecido em 1915. Gozava de alta estima
e prestígio de toda a sociedade. Não nos foi possível identificar filhas-de-santo e amigos, que diziam ter ela em Belém, Manaus e Piauí. Falaram-nos, ainda, que
ela era uma preta velha boa. Falava com graça e com a língua meio arrastada. Era enérgica quando necessário, sempre com diplomacia, mas "não guardava
almoço pra janta", pois costumava resolver as coisas no "continente".
Com seu jeito de africana, fazia comida e docinhos, vendia na porta da igreja e ganhava amizade até dos padres. Contam que o padre Chaves lhe tinha
a maior estima e celebrava a missa das santas Bárbara e Conceição na igreja de Nossa Senhora da Conceição, onde hoje é o edifício Caiçara. Após a missa, o
cortejo saía acompanhado por banda de música entoando hinos religiosos até o bairro Apeadouro, na Casa de Vó Severa, em frente à então Escola Técnica
Federal do Maranhão. Após a reverência do público e festeiros em torno do mastro, era rezada uma ladainha em frente ao altar-mor.
Era uma festa de grande pompa, na qual matavam bois, porcos, galinhas e outras criações para servirem ao povo. À noite, havia toque de tambor com a
presença de algum terreiro visitante. Ela costumava tocar só três noites, sendo a primeira para os voduns, a segunda para os gentis e a última era dedicada
aos caboclos.
Contam que os policiais, até os mais temidos, eram amigos de Vó Severa, como o major Dias da Mota, que ia sempre ao Terreiro porque gostava de
olhar a dança. Certa vez, o major Dias chegou com um chapéu na cabeça e acomodou-se. Nhá Severa, olhando aquilo, disse-lhe: "Hei, hei! Meu branco, você
entra de chapéu na cabeça? Não faça isso. Sua cabeça coberta não recebe fluidos bons." Ele agradeceu, pediu desculpas e tirou o chapéu. Depois um tocador
disse-lhe: "A senhora sabia que o senhor de chapéu é delegado?". Ela respondeu: "Não sabia, mas seja até um rei, aqui não fica de chapéu na cabeça".
No terreiro não dançava homem, mas um dia foi necessário fazer um dançar para poder respeitar. Tratava-se de um senhor chamado Manoel Orí. Pelo
fato de trabalhar com ouro, não admitia que sua esposa dançasse. Ela carregava Badezinho, filho de Badé. A casa de Vó Severa estava em festa no mês de
junho e a mulher havia dançado a primeira noite, quando o marido ordenou-lhe que não dançasse mais. Ao tomar conhecimento do fato, disse Vó Severa à
dançante: "não te importas que eu já conversei com ele. Só vou dar a ele um "pano de amostra". Não te preocupas, que, na hora que tu vier, ele já vai tá
dormindo".
Assim foi feito. meia-noite, quando ele acordou, foi direto para o terreiro. Morava perto e, ao chegar, já foi se "tremilicando" e recebeu a entidade da
esposa. Badé, incorporado na guia do terreiro, Matilde Braga, pegou todos os colares do pescoço da mulher e colocou nele. Vó Severa, por sua vez, colocou-lhe
uma toalha sobre os seus ombros e ele dançou até terminar o tambor. Quando saiu do transe, ao ver-se naquele estado, chorou e pediu a Vó Severa que
livrasse ele das "coisas" e deixasse só na esposa que, a partir daquele dia, não mais se importaria. Passou então a tocar instrumentos na casa e fazia tudo pelas
entidades.
A nação de Vó Severa foi Jêje-Nagô, mas muitos não acreditavam que lá estivessem entidades de Jêje. Um dia ela foi visitada por Anéris e mais duas
dançantes da Casa das Minas em sua festa. Badé, que estava na guia do terreiro, cantou, saudou e as visitantes entreolharam-se em tom de desdém,
desconfiando da presença de vodum ali. A resposta foi dada pelo encantado em doutrina.
O terreiro de Vó Severa teve o seu período áureo até a última década de 35 com muitas dançantes e vigor.
Contam que Vó Severa foi acometida de um derrame, "em conseqüência de ter tomado café e logo depois comer melancia", entre 88 e 90 anos de idade.
Passou doente algum tempo e, em 14 de julho de 1937, ela não resistiu e "descansou".
O terreiro tentou se erguer, mas entrou em declínio. Foram morrendo as responsáveis maiores e, não tendo como segurar a crise, ele sobreviveu até o
fim da década de 60.
Vó Severa e outras mães-de-santo foram um marco na história da resistência de sua religião. Diziam as informantes: "Eram de tamanha grandeza
interior que se faziam respeitar como rainhas".
Calendário de Festas
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Instrumentos Usados
Instrumentos Tocadores
02 Tambores (Santa Bárbara e São Miguel) Nonoco, Três Jantar, Dionízio, Cizino e Antônio
Dançantes Chefes
07 Gimbinha Dandarinho
09 Ester Douçu
12 Teresa Abê
14 Teodora Sebastiãozinho
17 Chica Beijamim
18 Valquíria Badezinho
20 Marta Vó Missã
* Historiadora
Nota: Os dados foram fornecidos por Dona Maria Raimunda Soeiro Martins (Dona Boneca), vinculada à casa; Dona Viturino (Vituca), da Casa de Nagô;
Amélia Pinto Vieira, da Casa das Minas: e outras informantes ligadas a outros terreiros.
O simulacro é uma expressão freqüente em Semiologia e em filosofia. É utilizado contemporaneamente para falar que vivemos em um mundo sem
referência e que o simulacro teria, por assim dizer, destruído a noção de sistema de representação, muito conhecida por psicanalistas e antropólogos.
Por simulacro podemos entender a imagem pura e simples, tal que expresse a inexistência de uma verdade. Em outros termos, trata-se de entender a
imagem como autônoma, ela não esconde ou representa coisa alguma, pois o que ela representava não existe mais (ou, talvez, nunca tenha existido, foi
invenção de quem desejava formar uma ciência) e foi devorado pela imagem.
Exemplar dessa autonomia e perda de referência é a confusão que um doente dissimulado e um simulado podem nos causar. O dissimulado finge estar
doente, representa uma doença, é possível diferenciá-lo do "verdadeiro" doente. O simulado por sua vez, determina em si todos os sintomas da doença, sem
tê-la e sem permitir qualquer distinção entre ele e o "verdadeiro", do qual é uma cópia perfeita, um simulacro.
Esse papo todo sobre imagem, apesar de bastante europeu e acadêmico, serve para discutir, com as devidas ressalvas, o processo de estetização pelo
qual vem passando o bumba-meu-boi. A saber: o bumba-meu-boi "verdadeiro", tradicional, aquele com mais de cem anos de idade, tornou-se imagem
autônoma.
Isso implica em discussões sobre o bumba-meu-boi, que fujam de um moralismo e essencialismo quase sempre presentes em outras discussões,
tampouco, pretendemos lamentar alguma perda ou "salvar" o bumba-boi.
Normalmente, as lamúrias dizem respeito à velocidade e nível das alterações ocorridas nos grupos, que priorizam a performance, o puro espetáculo
efêmero sem relação com uma origem mítica.
Nesse sentido, uma manifestação folclórica merece bastante atenção, o chamado grupo "parafolclórico" que tornou-se uma espécie de indicador dessa
transformação sofrida pelo boi tradicional. Ninguém sabe o que são, mas estão aí, se proliferando pela cidade (alguns são chamados de boi, boizinho,
Companhia, grupo alternativo ou "parafolclórico"). Possuem um repertório em que o espetáculo é a palavra de ordem. Pirotecnia, fantasias cada vez mais
refinadas e coloridas, semelhante às escolas de samba, bois que possuem quadras de ensaio, alas, coreografia ensaiada, mestre-sala e adereços com grife (fato
relatado pelo pesquisador Carlos Lima). O boi parafolclórico transformou a brincadeira num show, desvinculou-a de uma relação histórica e antropológica com
uma tradição, não tem compromisso com o auto (apesar de termos notícia, ano passado, da apresentação do auto realizada por um desses grupos). Uma
brincadeira sem início, meio e fim, sem referência porque não remete, não representa o ritual.
Esse último ponto é bastante caro para todos nós que adoramos o bumba-meu-boi: isso porque, parece-me que o boi "verdadeiro", não os têm
representado. É isso mesmo, leitor. Se você tiver prestado atenção, os nossos bois tradicionais não têm tido tempo para apresentar o auto e tampouco para
morrer, "ele só desmaia", pois suas apresentações não se restringem ao período junino, coisas sobre as quais não me oponho de forma alguma, pelo contrário.
Percebe-se a necessidade de discutir o assunto sob a ótica da perda da nossa tradição, cada vez mais afetada pelo consumo do próprio boi, melhor
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Isso ocorre com o bumba-meu-boi da forma como é conhecido na capital, pelos intelectuais e pela população como aquilo que se convencionou classificar
nos cinco sotaques (Zabumba, Matraca ou da Ilha, Orquestra, Baixada e Costa-de-mão ou de Cururupu). Segundo Jandir Gonçalves, pesquisador do Centro de
Cultura Popular Domingos Vieira Filho, existe uma diversidade de estilos de bumba-meu-boi desconhecidos da capital. São bois como o do município de Caxias
que utiliza um instrumento chamado "palma", como os de Matões, Parnarama, Milagre do Maranhão, Mata Roma, Santa Quitéria e São Bernardo, só para citar
alguns. É uma diversidade que não conhece os termos sotaque ou auto. Eles não o representam, não sabem o que é. São grupos de uma tradição que não
constituiu uma imagem para ser vendida, vive como uma espécie de fantasma e está desaparecendo por falta de apoio. Acontece justamente o oposto com o da
capital que se esfacela na proliferação e venda de imagens. O boi virou um grande negócio, isso é ótimo!
Não se trata de Indústria Cultural, isso seria prendê-los ao mito da estupidez das "massas manipuladas pelo sistema" (coisa de intelectual); seria
supô-los sem desejo ou vontade própria. Tudo isso que está acontecendo é desejo dos grupos e das massas. Embora haja uma mercantilização da imagem, o
ponto a ser discutido parece-me ser o da exterminação alegre da tradição, de uma morte pelo simulacro, morte do boi enquanto objeto empírico do narcisismo
intelectual das "academias de louros e letras".
Existia algo que diferenciava simbolicamente o boi "verdadeiro" do "parafolclórico": a tradição, a representação do auto, enfim, o mínimo vínculo com
um mito ou ritual. Fato perfeitamente perceptível ao observador mais distraído era a ausência do auto nas apresentações realizadas durante o São João. Como
vamos diferenciá-los se esse vínculo não é relevante nas apresentações?
Ora, os estudiosos da cultura sempre afirmaram a relação dos grupos com sua tradição como sendo um elemento de preservação de identidade ou de
atestado desta mesma. Ocorre-me pensar onde está a identidade se não há mais tradição (ou nunca houve, como no casos dos grupos interioranos, é como se
ela já nascesse simulacro). Não se trata de pensar a tradição como algo estanque, imutável, nem de vê-la como o que produziria ressemantizações em sua
relação com o Moderno, mas de percebê-la num processo em que a Modernidade estetizou a realidade, tornou-a fictícia, impassível a verificações,
transformando a existência do bumba meu boi em midiática. Ele só existe através dos midia, tanto que é como se os grupos interioranos não existissem. Para
existir é necessário ter uma imagem para vender.
O boi "verdadeiro", tradicional, foi transformado em simulacro. Nesse acontecimento, os intelectuais ficaram a ver navios, perderam seu referencial e
precisam o tempo todo reafirmar sua existência, dizer que o boi existe e está cada vez mais forte. É-lhes, inclusive, uma coisa a estimular, pois, senão, perdem
seu posto de autoridade. O interessante é nos ligarmos na forma entusiasmada da desconstrução da tradição, realizada pelos brincantes em largos sorrisos, ao
som das matracas e pandeirões. Os intelectuais tentam a todo custo amordaçá-los. Isso é preciso denunciar! Faço-o de consciência tranqüila.
Há ainda os que acreditam que o simulacro é bonzinho, que a tradição pode ser inventada, desde que não se abandone o empirismo. Quero lembrá-los:
não falo em ressemantização, mas em aleatoriedade do simulacro. A imagem do boi está engolindo tudo num movimento orgiástico, sem dó algum. É o
processo temido pela professora Ester Marques, de uma estetização radical da experiência que ouso dizer está se processando com o boi "verdadeiro".
É tudo muito simples: tradição, ritual e identidade são coisas de intelectuais, em seu afã narcisista de enclausurar o bumba-meu-boi no torniquete da
representação. É tudo vaidade.
Haverá quem me acuse, não sem razão, de vaidade, eu também tenho: A de ser o Bin Laden de vocês.
Texto da palestra apresenta no IV Seminário de Ações Integradas em Folclore, em 31 de agosto de 2001, acrescido de observações resultantes das
intervenções do público.
Roberto Benjamin
A palavra "folclore" foi introduzida nas ciências sociais através de uma carta publicada em Londres em 1846. A proposta do seu criador – William John
Thoms – era a de substituir a denominação "antigüidades populares" atribuída à literatura popular, cuja pesquisa tinha o caráter de resgate do saber
tradicional. Era "tarefa de recolher as poucas espigas que ainda restam espalhadas no campo, no qual os nossos antepassados poderiam ter obtido uma boa
colheita", dizia John Thoms. O foco da sua preocupação era o que existia de curioso e interessante nas antigüidades populares, que ainda se poderia salvar com
"esforços oportunos". Prevalecia, então, a idéia de que o Folclore era constituído por sobrevivências exóticas de uma cultura em extinção. A essa cultura,
pesquisadores posteriores atribuíram o caráter de "rural" e "primitivo", atribuindo-se aos seus portadores o caráter de ágrafos e pré-lógicos, no dizer de
Lévy-Brühl.
Até mesmo Freud fixou a idéia de que a cultura folclórica correspondia à mentalidade dos aborígenes e das crianças, fugindo – por sua natureza mágica
– da concepção da lógica aristotélica vigente na mentalidade ocidental.
a) Anonimato - isto é, o fato folclórico não teria autor conhecido. Na conferência "Câmara Cascudo e os contos tradicionais" (Proferida na Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 1998.), Braulio do Nascimento destacou que Luís da Câmara Cascudo, que adotara o
anonimato como característica do folclore na coletânea Contos tradicionais do Brasil (1948) e em Literatura oral (1952), já em 1954 havia abandonado tal
característica, ao publicar o seu Dicionário do Folclore brasileiro. Essa característica colocada em termos absolutos tem sido progressivamente relativizada.
Deixava de fora, por exemplo, o artesanato e a poesia dos repentistas, cujos autores são identificados no ato da sua criação. Aliás, todos os fatos culturais têm
um autor na sua origem, embora no processo de aceitação coletiva possa haver despersonalização, perdendo-se a referência autoral. Renato Almeida, no livro
Inteligência do Folclore (1957), dizia que: "se recuarmos no tempo e conseguirmos chegar às origens, vamos encontrar sempre o indivíduo – o autor". Assim,
quando não se perdeu a referência autoral e houve aceitação coletiva, há que se considerar tal fato como folclórico.
b) Transmissão oral - no folclore, o aprendizado ocorreria, exclusivamente, por essa forma de transmissão. Tomada em termos absolutos, essa
característica também exclui o artesanato e as técnicas populares. Exclui ainda a literatura de cordel e outras manifestações escritas. Caso se refira somente à
fala, deixa de lado outros aspectos da cultura, onde o aprendizado se dá de outras formas, como através da observação e da iniciação ao trabalho. Por outro
lado, estudos no âmbito da literatura popular vêm redimensionando o conceito de oralidade, a partir da constatação da existência de matrizes escritas na
transmissão oral, isto é, o que se presumia que houvesse sido transmitido oralmente teve uma fase de transmissão através da escrita (como em alguns contos
populares) e até mesmo através do cinema (de que é exemplo a história de Cinderela). Luís da Câmara Cascudo demonstrou, pioneiramente, a existência de
matrizes escritas no estudo publicado sob a denominação de "Os cinco livros do povo".
c) Antiguidade - para alguns folcloristas, ser antigo era condição do fato folclórico. A sua significação era entendida ao pé da letra: velho, vetusto,
entrado em anos. Como lembra Paulo de Carvalho-Neto, "antigüidade" chegou a ser "sinônimo de ciência folclórica", negando-se o reconhecimento da criação
de novos fatos folclóricos - o chamado "folclore nascente", como as lendas e mitos urbanos, de que é exemplo, em Pernambuco, "a perna-cabeluda". Aceitar a
condição da antigüidade é negar – hoje - às pessoas do povo a capacidade criativa. Certamente, ninguém duvidará que um escritor erudito crie um conto ou um
poema novo. Ao criador popular se deveria negar tal possibilidade?
Estas concepções não foram substancialmente alteradas e ainda encontramos os seus resquícios em obras recentes de folcloristas brasileiros. Na
verdade, são concepções de natureza etnocêntrica, isto é: de pessoas que se consideram o centro do mundo e observam as idéias e as práticas alheias a partir
de suas próprias idéias e práticas, tomadas como absolutamente corretas e modelares, a serem impostas em termos universais. Mas, vale destacar, de logo,
que entre os folcloristas brasileiros, Câmara Cascudo, Renato Almeida e especialmente Edison Carneiro tiveram sempre posições opostas a essas propostas
etnocêntricas.
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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE http://www.cmfolclore.ufma.br/Htmls/Boletim%2021.htm
Foram os trabalhos destes e de outros folcloristas que fizeram evoluir, no Brasil, as concepções sobre o que é o Folclore. Reunidos, na cidade do Rio de
Janeiro, no I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, declaravam na Carta do Folclore Brasileiro (Congresso Brasileiro de Folclore (8. :1995: Salvador, BA).
Anais. Rio de Janeiro: UNESCO, Comissão Nacional de Folclore, 1999, 249 p. 223 e ss.) que
"constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação e que não sejam
diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano ou à
fixação de uma orientação religiosa e filosófica".
Considerava, também, que deviam ser reconhecidos como realidade folclórica os fatos sem o fundamento tradicional, bastando que apresentassem a
característica de aceitação coletiva e que fossem essencialmente populares, anônimos ou não, isto é: caíam os atributos de antigüidade, oralidade e anonimato,
ficando relativizada a condição de tradicionalidade, consagrando a aceitação coletiva como a característica marcante do fato folclórico. Na prática, porém,
muitos folcloristas continuaram apegados àquelas características rejeitadas no Congresso de 1951.
Já na re-leitura da Carta, realizada em 1995, no VIII Congresso Brasileiro de Folclore, reunido em Salvador (BA), os folcloristas brasileiros adotaram o
conceito de que Folclore é:
"o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua
identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade." (Id. ib.
p. 197.) .
Essa conceituação segue a orientação da recomendação da UNESCO sobre a Salvaguarda do Folclore, definida na reunião de Praga (República Checa),
em junho de 1995.
As características de aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade e funcionalidade têm sido entendidas da seguinte maneira:
a) Aceitação coletiva - isto é, que seja do gosto, do agrado coletivo, de prática generalizada. Essa característica tem sido usada na reinterpretação do
anonimato. Para alguns folcloristas, a criação de um autor conhecido passa a ser folclórica quando há aceitação coletiva, quando passa a ser considerada
patrimônio comum do grupo e ocorrem adições, variações e reinterpretações. É também a aceitação coletiva que torna possível considerar folclóricos os fatos
originários da cultura de elite, e da cultura de massa, que tenham sido aceitos e reinterpretados pelo povo. O nosso pastoril-religioso, que teve origem no
trabalho de catequese da hierarquia da Igreja Católica, ao longo do tempo, recebeu adições e desenvolveu variantes, algumas das quais se distanciaram
completamente do espírito catequético, vindo a apresentar, inclusive, obscenidades, como no chamado pastoril-profano e no pastoril-masculino de deboche.
b) Tradicionalidade - é talvez a característica básica dos fatos folclóricos, é a linha divisória que se coloca entre o popular urbano - como as canções
populares que tocam no rádio - e o folclórico. A tradição é a matriz do fato folclórico, à qual as recriações e renovação devem ser fiéis. Há que se considerar,
por outro lado, que há fatos tradicionais que não são folclóricos - como certas tradições cívicas, maçônicas, religiosas etc. A tradicionalidade é entendida hoje
como uma continuidade, onde os fatos novos se inserem sem uma ruptura com o passado, mas que se constróem sobre esse passado - são, por exemplo,
materiais novos com que se refazem peças de vestuário cuja matéria prima tornou-se escassa ou inacessível, como as penas de ema que compunham os
adereços dos caboclinhos, substituídas por plumas sintéticas; são gírias que se agregam a velhos contos; são lendas reinterpretadas; é o automóvel e o avião
substituindo o cavalo e a carruagem em narrativas tradicionais; é a fotografia substituindo a escultura do ex-voto etc.
c) Dinamicidade - a dinâmica cultural, a evolução constante a que todos os fatos culturais estão sujeitos, não permite a admissão do entendimento do
folclore meramente como uma sobrevivência do passado. Há fatos novos no folclore, pela criação contemporânea do povo e folclorização de fatos,
manifestações eruditas ou da cultura de massas, que estão sendo contemplados com a aceitação coletiva. Algumas das matrizes da dinâmica cultural têm sido,
entre nós, as migrações internas, a escolarização, a exposição à comunicação de massas e o acesso às novas tecnologias.
d) Funcionalidade - os fatos folclóricos integram sistemas culturais, exercendo funções e, portanto, não se constituindo em traços isolados. O fato
folclórico é vivenciado no contexto do social, do econômico, do político etc. As técnicas de cestaria e de cerâmica utilitária – que tiveram o seu mercado
tradicional reduzido pelo uso de objetos de alumínio e plástico – encontram a possibilidade da sua sobrevivência na mutação da função de utilitário para
decorativo.
A essas características poderia ser acrescentada a espontaneidade - os fatos e manifestações folclóricos nascem da comunidade, não surgem de decretos
e portarias; não se aprende nas escolas através de um exercício sistemático, mas com a convivência, de forma quase inconsciente e progressiva. Não se trata,
todavia, de se considerar o folclore como uma cultura espontânea, tal qual o empregado no sentido biológico - geração espontânea. Os fatos folclóricos surgem
da criação do povo, a partir da sua cultura tradicional ou da hibridização com elementos de outras culturas através da aceitação coletiva.
O folclore é universal e tradicional em seus temas e motivos, que devem ser considerados invariantes. É regional e atualizado na ocorrência das
variantes, que são o resultado da criatividade do portador do folclore e de sua comunidade, como tem sido demonstrado nos estudos comparativos do
romanceiro e do conto popular por Braulio do Nascimento. Daí deva ser considerada outra característica, que é a regionalidade. A manifestação folclórica é
localizada, é própria de uma comunidade, de uma localidade, de uma vila, de um povoado; às vezes, o mesmo tipo de manifestação pode ser encontrado em
localidades diferentes e distanciadas, mas a documentação e análise do fato vai mostrar que se trata de uma variante, isto é, manifestações que tiveram
origens comuns, mas que foram sendo recriadas e/ou reinterpretadas em cada lugar e se diferenciaram: na culinária brasileira, a moqueca é um cozido, mas no
Estado do Espírito Santo é preparada com azeite doce, na Bahia com azeite de dendê e, em Pernambuco, com leite de coco; no sertão, o munguzá é servido
salgado; no litoral e na região metropolitana do Recife é doce.
Os portadores da cultura folclórica não são, portanto, nem ágrafos, nem pré-lógicos e não vivem marginalizados em guetos, isolados do conjunto da
sociedade brasileira, ainda que o seu acesso a bens materiais e imateriais seja restrito.
Ainda que o popular esteja sendo definido contemporaneamente pelo consumo e por sua relação com as classes hegemônicas, para o estudo do Folclore
é indispensável prosseguir na recolha e documentação tanto da produção espontânea do povo, como da sua recriação de elementos da cultura erudita e de
massas, uma vez que a globalização está sendo e será mediatizada pelos valores e práticas do Folclore, a nível local e regional. Tal situação coloca os
estudiosos do Folclore defronte de novas realidades para as quais será necessário o implemento de reflexões e de metodologias – de caráter interdisciplinar - a
serem desenvolvidas.
A escolarização e o acesso às novas tecnologias colocam o folclorista diante de um portador da tradição capaz de realizar, ele próprio, a documentação e
a análise da sua performance e das performances dos grupos a que ele esteja vinculado. Os cantadores-de-viola do Nordeste providenciam, eles próprios, a
gravação de suas cantorias em fitas, compact-discs e vídeos que são vendidos em outras apresentações, deixando para trás a época em que a preservação da
sua criação dependia dos apologistas, que conservavam os melhores momentos da cantoria na memória e os repassavam na oralidade. Foi assim, aliás, que nos
chegou a centenária Peleja de Romano Caluête (Romano da Mãe-D’Água) com Inácio da Catingueira. Já os brincantes de um grupo de folias-de-reis vêm
gravando suas performances com a finalidade de avaliação do desempenho dos seus membros e de uso na iniciação de novos foliões (No Congresso da
INTERCOM, em 1997, realizado em Santos-SP, Célia Maria Cassiano, da Universidade Campinas, apresentou uma comunicação sobre a utilização do video-
cassete por grupos de folia-de-reis, que gravam as suas performances para uso em discussões de grupo e treinamento de novos membros.).
A reativação de manifestações folclóricas que se encontravam em desuso tem ocorrido em alguns casos pela ação das Comissões Estaduais de Folclore e
essa é, sem dúvida, uma tarefa a ser priorizada no trabalho dos folcloristas. Em alguns casos, a reativação ou simples revitalização tem ocorrido através de um
processo de refuncionalização, isto é, o grupo encontra uma nova função para uma manifestação ou processo de trabalho que se encontrava desprestigiado e
em via de desaparecimento.
Um dos fatos a ser observado é o do recrutamento de grupos folclóricos tradicionais para o exercício de atividades que seriam melhor atribuídas a grupos
parafolclóricos, ou seja, a apresentação de folguedos e até danças religiosas deslocados dos ambiente e do tempo que lhes são próprios, agenciados por órgãos
oficiais e empresas turísticas.
Casos extremos de recriação de manifestações folclóricas estão ocorrendo pelo acesso de populares a acervos documentais de natureza fílmica,
museológica ou de documentação de grupos parafolclóricos, com vistas à restauração de manifestações a que os mesmos não tiveram acesso. É o que
aconteceu com a cerâmica marajoara, nos arredores de Belém e outros municípios do estado do Pará, e com o retorno do carimbó e do lundu. É também o caso
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Finalmente, um outro processo a merecer atenção é o da espetacularização das manifestações folclóricas pela pressão dos meios de comunicação de
massa e do turismo. Algumas das manifestações tradicionais guardam a natureza de espetáculos, que têm sido levados à exacerbação, convertendo-se em
produto da cultura de massas. O exemplo mais evidente é o do boi-bumbá de Parintins. Preocupante, porém, é o caso de manifestações de natureza ritual,
reservadas aos membros de comunidades religiosas, que por seu exotismo estão sendo cooptadas para converter-se em eventos de massa. É o caso das
panelas-de-Iemanjá, convertidas em festivais para turistas.
Diante desse quadro, torna-se necessária uma nova postura liberada dos preconceitos etnocêntricos, a reciclagem das técnicas de pesquisa em trabalho
interdisciplinar com a incorporação das contribuições renovadas das ciências humanas e das ciências da linguagem, o uso de novas tecnologias e equipamentos
disponíveis.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Renato. Folclore. Inteligência do Folclore, Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957, 310 p.
BALDUS, Herbert & WILLEMS, Emílio. Dicionário de Etnologia e Sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. 245 p.
BARRETO, Luiz Antônio. Um novo entendimento do Folclore e outras abordagens culturais. Aracaju: Sociedade Editora de Sergipe, 1994, 259 p.
CARVALHO-NETO Paulo de. Diccionário de teoria folklórica. 2 ed. Quito-Ecuador: Abya-Yala, 1989. 247 p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, 2 ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, 795 p. 2 vol.
__________. Literatura Oral no Brasil, 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1984, 435 p.
Congresso Brasileiro de Folclore (8.: 1995: Salvador, BA). Anais. Rio de Janeiro: UNESCO, Comissão Nacional de Folclore, 1999, 249 p. 223 e ss.
Congresso da INTERCOM (1. :1997: Santos, SP). Anais. São Paulo: Intercom, 1998.
(O presente artigo é parte integrante da monografia – "Vaia de bebo não vale": as desventuras de Tom Zé no reino da tropicália – readaptado para se
adequar ao espaço desta publicação.)
Helen de Sousa
(Graduado em História pela Universidade Federal do Maranhão )*
Nascido em 1936, em Irará (BA), Antônio José Santana Martins (Tom Zé) surge no cenário musical brasileiro no torvelinho do tempo proclamado pelo
abecedário tropi-pós-qualquer-coisa. Revela-se surpreendendo a todos "não por ser exótico/ Mas pelo fato de poder ter sempre/ Estado oculto quando terá sido
o óbvio". Morre algumas vezes, porém, renasce "mais avexado", com todos os "Defeitos de fabricação", cultuando nas vísceras do retrotropicalismo todos os
traumas da verdade tropicaetaniana, as imagens de um passado "que relampeja irreversivelmente no momento que é reconhecido", "Ah, puta que pariu" esse
complexo "bicho que imita a raça humana".
Rastejando no fio da navalha, entre a morte e a loucura, num dos momentos mais críticos de sua trajetória artística e pessoal, sofrendo (no ostracismo
de quase duas décadas) desiludidamente com a carreira musical, ou melhor, com a não carreira, Tom Zé, há anos sem gravar, estava na eminência de largar
tudo e retornar à sua terra natal. Todavia, o inesperado ocorreu 11 anos após o lançamento do pouco conhecido LP "Estudando o Samba" (1975) e, Tom Zé
jamais imaginara (bem, de resto, ninguém imaginou) que tal disco pudesse desempenhar em sua vida "a mesma função de uma garrafa jogada ao mar por um
náufrago". Noutras palavras, quero dizer que tal resgate do náufrago, deu-se por volta de 1986, graças ao popstar norte-americano David Byrne que, farejando
num desses lixos que por aqui chamamos de sebo, (re)descobriu Tom Zé no disco acima citado. Pois é, "arte é sempre assim: o embrião da coisa artística está
sempre no limbo, entre o ridículo e o brilhante".
Assim, gostando do que ouviu, pouco tempo depois, Byrne retorna ao Brasil à procura do nosso ilustre desconhecido com o firme propósito de regravar
suas composições polifônicas, ou seja, queria levá-las para os Estados Unidos, para americano ver, ou melhor, para gringo ouvir. Nesse sentido, portanto, é
preciso ressaltar que desse novo casamento, desse fértil relacionamento artístico intercultural, nascerão três filhos bilíngües (Explica Tom Zé: "eu estava pra
largar a música naquela ocasião, não dava mais dinheiro, tinha passado por decepções. Aí o Byrne aparece. Fiquei desorientado: ‘o que eu faço agora?’ Eu tinha
combinado de ir para Irará, trabalhar no posto de gasolina do meu sobrinho Dega, e aí me aconselharam: ‘deixe esse negócio de Irará por enquanto, fique por
aqui’. Então eu fiquei em São Paulo, eu e Neusa (sua esposa), nós telefonamos para algumas pessoas e, quando o Caetano foi consultado, disse: ‘Tom Zé, acho
que é Tuzé de Abreu, porque ele é muito amigo do Tuzé de Abreu". Sonegação de informação?) : The Best of Tom Zé, The Hips of Tradition e Fabrication
Defect.
Com efeito, há que se observar que o grande boom de popularidade do artista se dará com o nascimento do terceiro filho bilíngüe: "Fabrication Defect"
(Com Defeito de Fabricação, 1998), quando Tom Zé, visualizando as rugas herdadas pelo tempo e, inesperadamente, passa a viver um (re)encontro com o
grande público e o mercado de maneira a despertar a atenção dos "patrões do primeiro mundo" e, então, passa a circular com desembaraço pelo "circuito das
college rádios, ou seja, as emissoras universitárias norte-americanas".
Pois bem. Sem ter que abrir mão do tropicalismo de protesto, recheado de irreverência, prazer criativo, humor, sátira, com a fuça na tradição e o
semblante no mundo, o reconhecimento de Tom Zé (sobretudo no Brasil) só veio acontecer com três décadas de atraso (aliás, estamos sempre atrasados), ou
seja, já completamente atolado na lama letárgica da "pasmaceira mãe", onde a criatividade rodopia afogada na "gruta sem-vergonha" das "cachorras", das
"poposudas", das "preparadas", enfim, moças que, quase sempre de quatro, dão lancinantes solavancos em seus glúteos carnudos, seduzem as cabeças
entorpecidas dos telespectadores na mesma velocidade, superficialidade, profundidade dos excitantes movimentos provindos de seus quadris.
Salienta-se, aqui, que os embriões onde afloraram os "defeitos de fabricação", aqueles que compõem e dão os sustentáculos musicais à persona do
artista, "são os mesmos que eram atribuíveis ao momento coletivo tropicalista". No entanto, revelam-se sob o substrato neológico poético que condensa o cerne
da obra do artista e escarnece a percepção do ouvinte, que "fica obnubilada pelo arranjo e não vê que a composição é a mesma", conta Tom Zé.
Especulando sobre a obra do artista, pode-se dizer que o vanguardismo ocorrerá nesse disco a partir da contracapa, apresentado numa pequena carta-
manifesto: "Estética do Plágio", recheada de novas/velhas intenções. O sátiro, "à beira do fim dos tempos, no último suspiro do evangelho". Pretende, ainda
que em vão, estabelecer as regras do jogo no tabuleiro da MPB (Mediocrização Popular Brasileira). Sendo assim, deixemos que o próprio autor da proeza se
explique. Diga lá seu Zé: "a estética de ‘com defeito de fabricação’ re-utiliza a sinfonia cotidiana do lixo civilizado, orquestrada por instrumentos convencionais
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ou não: brinquedos, carros, apitos, serras, orquestra de hertz, ruídos das ruas etc., unidos a um alfabeto sonoro de emoções, contidas nas canções e símbolos
musicais que marcaram cada passo da nossa vida afetiva (...) esta prática desencadeia, sobre o universo da música tradicional, uma estética do plágio, uma
estética do arrastão". Como se vê, na gangorra do tempo e em plena farsa da pós-modernidade, o sátiro quer proclamar o aniquilamento da era do compositor,
da era dos direitos autorais, "inaugurando-se a era do plagicombinador", processando-se, assim, a fusão da "entropia acelerada".
Trocando em miúdos, o recado quer dizer que hoje, nesse exato momento, o conceito de autoria convive com o esgotamento, com a impossibilidade de
combinação da escala diatônica ocidental, de sete notas, ou sete graus. Nesse sentido, ou não, tal atitude flerta com a caduca história de Jean Baudrillard, que
advoga que para a simulação, o original se faz desnecessário. Entretanto, o rumo ele não deixa de apontar, é a inauguração da era do já era, a era do arrastão
autoral. Cuide-se quem puder, ou não. De todo modo, não é preciso ser um mago da razão "cientificolóide", amante da lógica aristotélica e/ou cartesiana e,
muito menos, endossar a fileira dos devotos que, ao longo dos tempos, têm "cultivado o Deus de Abraão e o ego de Beethoven" para sacar, observar, ou sei lá,
que não há mais o que inventar. Estamos profundamente vivendo atolados na era do plágio; o real, o original, a raiz submergiram às profundezas oceânicas da
simulação, da hiper-realidade, da cópia, tudo é cópia. Nesse sentido, conta Tom Zé que o que ele fez agora, nesse disco, "que foi considerado pessoal, personal,
novidade, foi um estilo de arranjo, que combina o ostinato do baixo em contraponto com o cavaquinho, o desarranjo gradual da bateria – a novidade não é a
música, é o estilo"; alarde, ainda, que era isso que ele "estava procurando", era essa sua "pretensão", a busca da sua "vaidade", de um "protótipo" que,
segundo ele, seria um "tipo de inteligência ... que é uma inteligência que não é cartesiana, nem mede nível de QI".
Portanto, pode-se dizer que outra pista do ego perdido encontra-se "velada" no encarte do disco, soberbamente intitulado "Com Defeito de Fabricação".
Num escracho/realista, conta Tom Zé que "o terceiro mundo tem uma crescente população" que, aos seus olhos, "se transforma em uma espécie de ‘andróide’,
quase sempre analfabeto e com escassa especialização para o trabalho".
Todavia, há que se observar que isso acontece com a plácida benevolência dos nossos falsos mecenas - "FHC2" e o departamento de "filosoporria" da
USP - que assim como eles - os "patrões do primeiro mundo" - entendem que quando tentamos praticar "essas coisas por aqui, somos ‘andróides’ com defeitos
de fabricação". Ou seja, mais uma vez tudo se revela "no umbral da história" que vê que o "projeto de juntar fibras vegetais e criar a arte de tecer foi uma
grande ousadia, pensar sempre será". Não obstante, através dos seus escritos, Tom Zé parece sempre querer nos provar, com seu faro investigativo,
acidamente crítico, que ele está a todo momento labutando, "mergulhado em excelente humor" e querendo revelar-se num inquieto observador das mazelas
sociais, culturais e musicais, contidas nas vísceras de um processo modernoso, degenerado no ventre pútrido da pós-modernidade.
É rastejando na corda bamba do humanismo que o sátiro denuncia, por meio de uma preocupação social - coisa fora de moda - que a grande maioria da
população do terceiro mundo - se é que ainda existe isso - está cada vez mais transformando-se em andróides analfabetos. Bisbilhotando pelas entranhas
marxistas do autor, isso seria uma impiedosa negação da insubstituível e crescente necessidade da mão-de-obra humana. Agora chegara a vez dos verdadeiros
homens máquinas, "robôs operário fabricados em Alemanha e Japão" e que custam bem menos que o óleo que lubrifica as velhas e enferrujadas engrenagens
humanas. Adverte, ainda, em consonância com Deleuze, que entre essas duas realidades opostas e distantes "o que há por toda parte são mas é máquinas,
sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com suas ligações e conexões..." Assim sendo, o que há por todos os lados são "máquinas produtoras ou
desejantes, máquinas esquizofrênicas (...) isto funciona por toda parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira (...) isto come, isto caga,
isto fode".
De fato, não há como deixar de perceber que vivemos como minúsculas máquinas de uma grande engrenagem. Basta lembrar que os robôs – antigos
homens de lata – são construídos hoje com material genético humano. Valei-me Deus! será que eles também vão poder comer, cagar, fuder? Ou seja, será que
isso vai poder pensar, criar, dançar, sonhar, amar, sem corroer o "umbral da história"? Será que o pensar sempre é afronta?
Dessa forma, "com defeito de fabricação" passeia na "fronteira do desconhecido", fronteira que está contida tanto nas suas melodias, com suas inusuais
vestimentas, como, também, na migração poética das canções cacopédicas. Como se pode ver nos versos de Defeito 1: O Gene - Arrastão de Santo Agostinho -
que abre o disco: "A gente já mente no gene/ A mente do gene da gente/ Faça suas orações/ Uma vez por dia/ Depois mande a consciência/ Junto com os
lençóis/ Pra lavanderia".
A construção poética dos versos da canção instiga o leitor a juntar peças, pedaços e intuir várias outras possibilidades de interpretação. Ou seja, os
versos "a gente já mente no gene" fala do Brasil, do mundo como uma grande invenção, melhor dizendo, uma grande mentira incutida na "mente do gene da
gente". Brasil, jorro de imundícies que há 500 anos desce pelo ralo da mentira. Tropicalismo, quem sabe tu sejas apenas mais um a compor a grande e fabulosa
História do Gigante Adormecido, "deitado eternamente em berço esplêndido". Será que desse "gigante pela própria natureza" restou algo mais que um
esqueleto ou, quem sabe, um fantasma de um pútrido cadáver corroído por vorazes vermes, vozes veladas.
Emblematicamente, nesse disco, todos os "defeitos" são subintitulados de "Arrastão". Termo polissêmico, pode conotar "esforço violento para arrastar
algo; vara que nasce junto do pé da videira; técnica de pescaria onde a rede é jogada nas águas que, quando puxada arrasta os peixes presos em suas
malhas", ou como é mais conhecido popularmente - mesma definição que Tom Zé dá no encarte - "arrastão: técnica de roubo urbano, inaugurado nas praias do
Rio de Janeiro, um pequeno grupo corre violentamente através de uma multidão e ‘varre’ dinheiro, anéis, bolsas, às vezes até roupas das pessoas".
Nesse sentido, "Com Defeito de Fabricação" pode ser interpretado como fusão, hibridação, apropriação - ou coisa que o valha - de todas as referências
musicais disponíveis (definição de voz, notadamente, percebida no arrastão de aliteração dos versos cacoépicos que evocam temas populares do sertão
nordestino, como se percebe em Defeito 14: "XiqueXique", parceria com José Miguel Wisnik). Arrastão do fole da sanfona de Osvaldinho do Acordeom e de
todos os sanfoneiros do nordeste: "...Eu vi a lua na cacunda do cometa/ Vi o zabumba e o fole a zabumbá/... E o triângulo engolindo faiscá/ Vi a galactea
branca na galactea preta/ Eu vi o dia e a noite se encontra/ Eu vi o pai eu vi a mão eu vi a filha/ Vi a novilha que é filha da novilhá/ Eu vi réplica da réplica da
bíblia/ Na invenção do cantador de ciençá/.../ Eu vi o cego lendo a corda da viola/ Cego com cego no duelo do sertão..." Com arranjos dionisíacos, a canção
aglutina sons de instrumentos tradicionais (violão, acordeom, zabumba e triângulos), ruídos de instrumentos não convencionais (bochechado e bexiguinha no
dente) além de efeitos sonoros produzidos a partir de fontes eletrônicas. Tudo isso ludibria a percepção do ouvinte de baião/forró.
Mas o defeito que dá cara ao disco é o Defeito 11: "Tangolomango". Arrastão do estilo musical latino e da Reductio Ad Absurdum do sermão do Padre
Antônio Vieira para São Benedito, autoreferência, autoparódia de "Glória", "Curso Intensivo de Boas Maneiras", "Sabor de Burrice" (Músicas contidas no
primeiro LP do artista, intitulado de Grande Liquidação, Rozenblit, 1968.). Enfim, é aí que a veia satírica de Tom Zé investe, implacavelmente, contra vários
alvos. Junta, desordenadamente, crítica social ("Rico chega na dança/ De braço dado/ O diabo enche a pança de braço dado"); com capitalismo selvagem ("O
olho grande e a ganância/ De braço dado/ Ao dólar reverência/ Todo arriba-saiado. Aos juros, esconjuros/ Todo calça-arriado"); com a burguesia acuada pela
sua própria segurança/insegura ("O rico hoje, coitado,/ É preso, todo cercado/ Arrodeado de grades/ Porteiro, guarda e alarme/ Arranje, senhor, um porto/ Que
ele não esteja acuado/ Com um pouco de conforto/ Pra ele estar sossegado"); com a falência da utopia e o depauperamento da filosofia ("Mas a verbá, a verbé,
a verbi/ A verborrologia dessa polimerdia/ É o tangolomango/ É a cárdio-filosoporria (Diz Tom Zé que "...Procedemos assim porque não temos em
disponibilidade outra estrutura de pensamento, estamos falidos de utopia e depauperados de filosofia, somos na verdade governados pela USP e por um
professor chamado Fernando, que dirigiu o departamento de filosofia e agora usa o nome artístico de feagacê...quer dizer, eu sou feagacê, eu falo contra a
pobreza e provoco a miséria. Isso não é mais feagacê, isso é feagacê ao quadrado. a tradução de FHC2 é Fernando Henrique Cachorra no Cio", pois.)/ É o
tangomango").
Resta-me ainda dizer que, imerso nas provocações ambíguas de todos os defeitos que a mim oferece, de bandeja, o autor, mastigo a comiseração dos
"defeitos de fabricação", sempre inspirado na satírica resignação de Tom Zé; rumino minha ignorância com inveja e alegria, sempre mirando o seu cândido
semblante e, pretensiosamente, tento em vão emulá-las com a gula da minha vaidade. No entanto, engasgo-me e cuspo meus próprios "defeitos" no afã de
concluir - se é que podemos pensar em conclusão quando se trata desse artista - que Tom Zé é o retrato fidedigno de sua obra, ser empanturrado de
irreverência, sátira, humor corrosivo, paródia, religiosidade - também dogmática -, forte, integro, lúdico, sarcástico. Assim, sua música "expressa o caráter e
amplifica o gênio do dono da voz, criador popular".
No balanço final de todos os "defeitos", tem-se como resultante a provocação que desencadeia uma tremenda dor de barriga moral, política, social,
cultural, intelectual. Ao mesmo tempo, apresenta seu antídoto contra esse iníquo sistema, agraciado pela "esclerose de saber", agarrado às suas pomposas
"regras", "regulamentos", "escritórios" e "gravatas", esforçando-se em suas "sessões solenes" para a manutenção/perpetuação do glorioso status quo
intelectual. Sarcasticamente, o sátiro apresenta seu antídoto antiintelectual: "Meta sua grandeza/ No banco da esquina/ Vá tomar no verbo/ Seu filho da letra/
Meta sua usura/ Na multinacional/ Vá tomar na virgem/ Seu filho da cruz/ Meta sua moral/ Regras e regulamentos/ Escritório e gravatas/ Sua sessão solene/
Pegue junte tudo/ Passe vaselina/ Enfie, soque, meta/ No tanque de gasolina" (em Defeito 3: Politicar – Arrastão de Rimsky Korsakov, de Saba - Zimbo Trio - e
do músico anônimo que toca na noite paulistana).
Com efeito, pode-se dizer que "a assimilação do (pós)moderno parece haver se consumado no imaginário do artista", ainda que ele, quotidianamente,
tenha pelejado por manter viva na memória as nesgas medievais – herança quem sabe dos seus avós, seus ancestrais – fritando na chapa de aço sobre o fogo
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ardente do eterno presente, labutando nas trincheiras de um universo em que "nada mais ameaça o sistema. Não há fronteira, não há mais nada".
E fim de papo.
Bibliografia
CALADO, Carlos. Tropicália – a história de uma revolução musical. São Paulo, Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio & Alvim, 1966.
SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo, Editorial Boitempo, 2000.
"O gênio de Irará". In. Caros Amigos, n. 3, abril de 2001, pp. 37-46.
"MPB é sinônimo de modernidade nos EUA". In. O Estado de São Paulo, Caderno 2/Cultura, 09-05-99. pp. 8.
"MPB endeusada virou periferia no Brasil". In. O Estado de São Paulo, Caderno 2/Cultura, 09-05-99. Pp.11.
A festa começa, segundo Heers (1987), por ser um divertimento, pois, por toda parte as cores, as decorações colocam o dia da festa à margem da rotina
e do cotidiano. A festa, conforme o autor, é reflexo duma civilização, símbolo, veículo de mitos e lendas. Além disso, pode servir para manter determinada
ordem social ou reforçar a idéia de comunidade ou pode ser uma inversão social de valores. A festa está sempre associada a um contexto social que a segrega e
impõe "...seus impulsos e as suas máscaras." ( HEERS, 1987.p. 26).
A festa de São Gonçalo nasceu de um divertimento. São Gonçalo, segundo Câmara Cascudo (1988), era um santo português que faleceu em 1259, em
Amarante. Tocava viola e era padroeiro das meninas que desejavam casar. Consoante Dantas, "... ele quando jovem era farrista e gostava de tocar viola e
dançar com as prostitutas para impedi-las de pecar." (1976, p.4).
A festa chegou ao Brasil com seus fiéis. Em 1940, conforme Cascudo (1988), existiam muitos municípios com o nome de São Gonçalo, no Ceará, no Rio
Grande do Norte, em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Piauí. São Gonçalo, de acordo com Dantas (1976), teria sido marinheiro, o que explica
certos traços integrantes do ritual, tais como: o uso de chapéus que lembram o formato daqueles usados pelos marinheiros.
O baile de São Gonçalo acontece por promessa de pessoas que desejam receber uma graça do Santo para serem curadas de alguma enfermidade, por
exemplo. Portanto, dança-se somente por promessa. A partir de 1939, a festa de São Gonçalo, consoante Cascudo (1988), retira-se gradativamente das
cidades para o interior devido às perseguições da igreja católica aos praticantes do baile. A dança de São Gonçalo, segundo Dantas (1976), ocorria no interior
das igrejas; todavia, foi proibida pelas autoridades católicas. O professor Dr. Sérgio Ferretti, da UFMA, informou-nos que Dom Felipe C. Pacheco (1969) relata,
em sua obra, "História Eclesiástica do Maranhão", a visita do Bispo Dom Manoel da Silveira ao vale do Mearim, em 1858, condenando a realização dos Bailes de
São Gonçalo na região, como coisa do diabo.
Geralmente escolhe-se o sábado para realização do baile. A festa de São Gonçalo pode ser realizada em terreiros, em praças públicas ou ruas de bairro.
Conforme Dantas (1976), o baile era chamado de função, em Minas Gerais, e acontecia em terreiro. Para a autora, na dança de São Gonçalo é nítida a
influência africana nas vestes, que são brancas para os dançantes; nas músicas, que apresentavam temas africanos, como " Mamãe Zambi". Entretanto, no
Baile de São Gonçalo, que assistimos, todos os cânticos possuíam temas cristãos. A festa é realizada durante toda a noite. Uma parte é o baile e a outra a
distribuição de comida e seresta.
Ao lado de um esquema básico fundamental, que faz da dança de São Gonçalo um ritual religioso destinado a pagar promessas, registram-se, consoante
Dantas (1976), variações em cada lugar. Isso resulta da dinamicidade da cultura; esta se reveste da particularidade de cada região. Assistimos à realização de
dois Bailes de São Gonçalo ocorridos em São Luís: um na Vila Bacanga, que descreveremos abaixo, e um no bairro da Coréia (10/11/2001), visando a
comparação entre os dois. Ainda no mês de novembro e em dezembro, soubemos que serão realizados outros bailes para o Santo.
O baile de São Gonçalo, que se realizou em 08 de setembro de 2001, na Vila Bacanga, tinha um grupo formado por um patrão ou chefe (o guia), que
tira e comanda a dança através de sinais convencionais tocados pelos instrumentistas. Os tocadores são dois homens: um tocando violão e outro um violino.
Oito dançantes, formando quatro casais, sendo um deles os contra-guias, os primeiros da fila mais o guia. Cada passo da dança é iniciado com o guia e os
contra-guias. Para a execução da dança os participantes se dispõem em duas fileiras voltadas para o altar, encabeçada pelo guia diante do altar, que comanda
os cânticos e os versos recitados em vários momentos do ritual.
Esse baile ocorreu em cumprimento à promessa de uma pessoa falecida (no caso, um homem) que - em uma roda de amigos e parentes, onde falava-se
sobre São Gonçalo - havia prometido realizar um baile em homenagem ao Santo, se este o ajudasse a construir sua casa. Segundo os familiares daquele
homem, a graça foi recebida, porém a promessa ainda não havia sido cumprida devido à sua morte prematura. Conforme Dantas (1976), se o promesseiro
falecer, os parentes devem responsabilizar-se em pagar a promessa para que não haja conseqüências negativas para o morto e seus familiares vivos. Assim, a
família resolveu cumprir a promessa de acordo com o desejo do falecido, ou seja, a realização do baile na rua onde morava e feito pelo grupo do senhor Pedro,
de São Bento. O baile de São Gonçalo foi organizado pelo filho do falecido. A família contratou o grupo do Sr. Pedro há um ano. Existe um pagamento para o
grupo e a comida distribuída depois do baile é custeada pelos parentes do promesseiro.
No dia 06 de setembro, realizou-se o primeiro ensaio para o baile de São Gonçalo, que ocorreria dois dias depois. Chegamos à casa de Dona Aninha,
esposa do falecido promesseiro, às 18:30hs. Conversamos com ela e sua filha Eliete, que dançaria pela primeira vez. Segundo elas, a maioria dos participantes
do grupo era de São Bento. A partir das 19:40hs, começaram a arrumar um bar, ao lado da casa de Dona Aninha, para a realização de primeiro ensaio. O
estabelecimento comercial pertence a uma irmã do falecido. O guia ou chefe, um senhor negro com aproximadamente 70 anos, chegou com alguns integrantes.
Mais três ensaios foram realizados, um no dia 07 de setembro e dois no dia 08 do mesmo mês.
Dentro do bar foram colocadas cadeiras, em círculo, para o público assistir ao ensaio e uma mesa, servindo como altar para o Santo. Este foi trazido por
uma senhora negra vestida de branco que o deixou na mesa e também trouxe toalhas – que servem para apoiar os joelhos dos dançantes na parte em que se
ajoelham durante a dança - de tamanho pequeno, com as cores amarelo, rosa, azul e verde; as mesmas cores das fitas que estão sobre São Gonçalo. Um
dançante explicou-nos que durante os ensaios as mulheres não devem usar roupas decotadas e todos têm de estar com roupas brancas. Além disso, exige-se,
segundo ela, muita atenção para não cometer erros durante a realização do baile, pois o Santo não gosta e pode-se ter que realizar outra festa. Uma vela foi
posta ao lado de São Gonçalo e, em baixo da mesa, um prato com água e sal grosso, colocado sempre no baile de promesseiro falecido, segundo o guia.
Assistem ao ensaio pessoas de todas as idades, a maior parte, reside na Vila Bacanga, negros, principalmente. Um pouco antes do ensaio, continuaram
vendendo bebida, porém não mais dentro do bar, apenas na parte externa deste último. Os demais ensaios ocorreram na rua. Muitos foguetes foram
estourados durante cada ensaio e no dia do baile.
Segundo o Sr. Pedro (guia do grupo que se apresentou na Vila Bacanga, São Gonçalo dançava com prostitutas, era casamenteiro e curador de doenças.
O baile do Santo realiza-se sempre no período do verão, pois, afirmou Sr. Pedro, nessa estação pouco chove, não comprometendo a festa. Segundo ele, há o
dono da festa, a pessoa que organiza o baile, faz a promessa e chama o grupo; o patrão ou chefe ou guia, que organiza os participantes ou dançantes e
músicos, que no grupo de Sr. Pedro são dois instrumentistas e oito dançantes (quatro homens e quatro mulheres, sendo um casal os contra-guias). Consoante
o guia, o grupo se constitui uma irmandade, durante o período de realização da festa, pela qual todos se mantém em unidade e obediência a ele, sendo todos
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católicos. Na hora do baile, os integrantes do grupo não podem beber, afirmou Sr. Pedro.
A primeira parte do Baile de São Gonçalo começa com Sr. Pedro declamando os seguintes versos:
Cada flor é representada por um dançante. Este tem consigo uma flor – feita de papel colorido e com forma respectiva ao seu nome - para entregar ao
Santo, depositando-a no altar num ato denominado de Oferecimento da Flor. Além disso, segundo Sr. Pedro, essa dança de São Gonçalo é composta de oito
cânticos:
1. "Entramos na santa casa em alta vozes cantando louvores a São Gonçalo e junto a Deus soberano";
2. "Nós de joelhos, cantamos louvores a São Gonçalo. Assim cantaram os anjos na capela do sacrário";
3. "Minha voz ainda me ajuda a cantar os vossos louvores. Os anjos cantam no céu, na terra os pecadores";
4. "Adeus meu São Gonçalo e também meu Redentor. Lembrai vós sempre de nós quando desse mundo for";
No dia da festa, a rua onde residia o falecido promesseiro estava enfeitada com bandeirinhas de cores diversas, um altar para São Gonçalo, onde havia
duas imagens do Santo, uma pertencente ao guia do grupo e a outra a uma pessoa da família do falecido. O altar estava no centro da rua, do seu lado esquerdo
e direito estavam cadeiras, formando um círculo. Em frente ao altar havia três lençóis pendurados por cordas, representando "as cortinas – as nuvens - da
camarinha", segundo Sr. Pedro. No início da rua havia mesas, cadeiras, uma mesa de som e uma caixa de som. Antes do baile começar muitas pessoas bebiam
e conversavam.
Às 18:50hs, foi colocada um mesa com onze cadeiras para o grupo de São Gonçalo jantar. O guia sentou em uma das extremidades da mesa, os
contra-guias ao seu lado, um a direita e outro a esquerda; os demais dançantes e os músicos sentaram-se aleatoriamente. O primeiro a ser servido foi o
mandante, em seguida, todos os outros. Antes de começarem a jantar, um homem trouxe uma bacia com água para que o grupo lavasse as mãos. Carregando
a bacia de água e uma toalha na mão, iniciando pelo chefe, passou por cada participante até deixá-la ao lado daquele para, no término do jantar, lavarem-se
novamente. Observa-se, portanto, que todo o ritual do baile, desde o jantar até a realização da festa, obedece a uma hierarquia constituída pelo próprio grupo.
Nesse baile, todos os dançantes saíram de uma mesma casa. As mulheres estavam de vestido branco com coroa na cabeça, com uma flor no ombro
esquerdo e fitas. Os homens de terno branco, gravata preta e chapéus nas cores preto ou azul marinho com desenhos feitos de miçangas. Os músicos já estão
preparados ao lado do altar com os seus instrumentos, violão e violino. Segundo um deles, o toque da música em festa realizada para promesseiro falecido é
diferente daquele para devoto vivo. E noutro lado do altar, estavam sentadas a viúva do promesseiro, filhas e irmãs- uma delas chorou no fim do baile. Um
defumador foi aceso na casa do falecido e mais velas foram acesas no altar. Cada dançante recebeu confetes enrolados em guardanapos que seriam lançados ao
chão no ato chamado " Flores no Campo". Às 20:30hs teve início o Baile de São Gonçalo. O guia e os contra-guias estavam posicionados entre a primeira e a
segunda cortina (lençol), enquanto os outros estavam parados em fila atrás do terceiro lençol. Quando o Sr. Pedro disse: "Estou na camarinha começando a
falar. Pedindo silêncio a todos para um baile representar. Corro as nuvenzinhas destinadas a seu norte. Apareça São Gonçalo, o varão justo e forte." O primeiro
lençol ou cortina foi retirado.
Em seguida, o guia e os contra-guias ficaram entre a segunda e terceira cortinas, os demais permaneceram no mesmo lugar. O guia pediu: "Mandai
correr a cortina ao lado. Apareça São Gonçalo em seu altar colocado". Retiraram-se mais um lençol e juntaram aos demais dançantes. Agora todos atrás da
última cortina, sob as ordens do guia que ordena: "Rompa-se o véu do templo. Apreça o lindo altar. Apareça São Gonçalo, é quem viemos festejar".
Nesse momento, todos juntos cantaram e dirigiram-se para frente, próximo ao altar. Todos estavam voltados para o altar, o guia na frente e os quatro
pares de casal dispostos em duas filas, encabeçadas pelos contra-guias. Todos os passos foram iniciados por esses últimos e pelo guia. No primeiro ato, cada
contra-guia saiu de sua fila e posicionou-se ao meio, do lado do guia, e, trocando de fila, ficando os últimos na fila. Em seguida, cada casal repetiu o mesmo, de
maneira que todos ficaram de costa para o altar. Logo após, o último casal de dançante, o guia foi para o lado dos contra-guias e repetiu-se o movimento em
sentido contrário, assim retornaram todos para frente do altar em seus respectivos lugares.
No terceiro momento, todos se ajoelharam e cantaram, cada um com uma toalhinha debaixo dos joelhos. É importante ressaltar que todos ficaram com
as mãos postas uma na outra. O guia é o primeiro a levantar, falando: "Peço licença São Gonçalo para dançar. Chegou a hora de pagar a promessa." Ordenou
aos dançantes que se levantassem. Em seguida, ao lado de cada dançante, o guia lhe fez uma pergunta que foi imediatamente respondida. Muitos momentos
foram marcados por perguntas e respostas. Além disso, percebemos que o ritmo da música se alterou diversas vezes, isto é, em alguns atos foi mais lenta,
noutros acelerada. No primeiro caso, os passos dos dançantes eram mais devagar; enquanto, no segundo dançavam rápido. Sempre para frente e para trás,
para esquerda e para direita, voltando-se para o guia que vai dançando do primeiro casal ao último nos mesmos passos. O quarto momento é marcado pela
derrubada dos confetes no chão, das "flores no campo".
No momento do oferecimento das rosas, no qual cada dançante falou o nome da rosa que representa e trouxe para o Santo, todos afastaram-se um
pouco do altar e o guia ofereceu flores ao Santo: "Fizeste de mim reparo o que disse São Miguel de vê Santa Isabel dinheiro em rosa tornar. Mas vós de mim
queira aceitar essa grinalda de flor que no jardim foi amante. Aceitai meu São Gonçalo ricas flores de Amarante..." A partir disso, chamou a primeira flor, que
era o contra-guia. Este a flor da contra-guia, esta a outra flor que é do segundo homem atrás do contra-guia. Assim sucessivamente, de maneira que,
alternaram-se entre um homem e mulher - flores - de cada fila. Á medida em que íam oferendo as flores posicionavam-se um ao lado do outro formando um
cordão de frente para o altar. Em seguida, todos juntos dançaram para frente e para trás, até que lentamente as duas filas se refaziam e o guia ía para frente.
Outro momento importante é um ato denominado de "Serra Grande"- o nome serra significa, segundo o guia, o encostar dos ombros que acontece
durante esse passo entre os dançantes entre si e com ele. O primeiro casal, os contra-guias, são levados pelo guia até o altar, onde cantam para São Gonçalo.
Os demais ficam parados em seus lugares. Em seguida, retornam e o segundo casal junto com o primeiro entrelaçam seus braços formando uma cruz girando.
Depois, cada dançante desses casais largam as mãos e ficam um pouco distante um do outro, mas permanecem fazendo uma cruz. O guia se posiciona no meio
desses dois casais, cada um de mão dada com o mesmo sexo, encostam-se os ombros dos contra-guias com o guia, este está de frente para o altar, enquanto
aqueles e os dois outros dançantes estão de costa para o Santo. O primeiro casal, os contra-guias, fica no final da fila de costa para o altar. O casal que
dançava com eles é levado até o altar e repete-se o movimento, porém este casal dança com o terceiro. Isto até o último casal. Quando todos, então,
encontram-se de costa para o Santo, o guia vai até os contra-guias e entrelaçando seus braços em cada um deles coloca as duas filas novamente para frente do
altar.
Em seguida, todos fazem um círculo, ao redor do guia, e giram para direita e esquerda, fechando-o em certos momentos nele. Voltam para seus
respectivos lugares na fila recebendo as flores que representam para entregarem no altar para São Gonçalo, cada casal vai até o Santo pondo sua flor ao lado
da imagem. Logo depois, os casais dão aos mãos e seguem o guia que faz uma volta no sentido contrário do relógio e retornam para a mesma formação das
fileiras. Além desses passos, antes do término do baile, aproximadamente quatro ou cinco passos são executados. No presente artigo descrevemos apenas
alguns deles.
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Por último, o guia canta os seguintes versos: "Espero que o finado agora alcance a salvação, depois de se pagar a promessa", e, então, cada dançante
troca de lugar com outro, dando uma volta para dentro, posicionando-se ao lado do guia, que permanece parado até que formam um cordão. Os dançantes das
extremidades deslocam-se para frente e fazem as fileiras, de modo que os contra-guias são os últimos de ambas as filas. Em seguida, outra troca de lugares é
realizada e novo cordão se faz já com os contra-guias em suas posições de origem. Todos formando um cordão batem palmas e vão dançando até o altar,
despedindo-se do Santo e abraçando os familiares do falecido, começando pelo guia, depois pelos contra-guias até o último dançante. Quando todos já se
despediram, os participantes da festa de São Gonçalo dançam valsa entre si ou com pessoas que estão assistindo o baile. O baile teve uma duração de
aproximadamente duas horas.
O baile de São Gonçalo realizado no bairro da Coréia, no dia 10 de novembro de 2001, era o cumprimento de uma promessa de saúde. A maior parte
dos dançantes reside no bairro - alguns deles participaram como dançantes noutros bailes - e são formados de um guia, quatro casais, sendo um deles os
contra-guias, e dois instrumentistas: um com violão e outro com violino. A festa ocorreu numa rua daquele bairro, decorada com bandeirinhas coloridas. O
altar esteve preparado com duas imagens do Santo, numa delas São Gonçalo tem um violão. Na frente das imagens havia dois pires com velas que eram
trocadas quando terminavam. Vimos apenas duas cortinas ou lençóis pendurados representando a camarinha, como acima mencionado.
A duração do baile foi aproximadamente uma hora. Notamos que, durante a dança, muitos passos eram diferentes daqueles do baile da Vila Bacanga.
Além disso, o grupo da Coréia passava um maior tempo dançando que cantando ou falando, ao contrário do grupo do Sr Pedro que equilibrava ambos, as
danças e as falas. E, ainda, o ritmo da música na Coréia era o mesmo em todo o baile. Entretanto, muitas semelhanças foram percebidas, tais como: o
oferecimento das flores ao Santo, a despedida a São Gonçalo, a valsa, o dobrar dos joelhos, as flores no campo, ou seja, jogar os confetes, as roupas eram
brancas, tinham fitas coloridas no ombro esquerdo, faixas de "Viva a São Gonçalo" e chapéus tipo marinheiro com miçangas.
A principal motivação, portanto, do Baile de São Gonçalo é o pagamento de promessa. Essa finalidade, segundo Dantas (1976), faz dele um ritual
religioso. O cumprimento da promessa é a condição indispensável para a manutenção da relação estabelecida entre Santo e devoto, à medida que "...o devoto
encontra na promessa a contraparte dos benefícios que espera...", ou seja , mantém uma relação contratual com o sobrenatural, segundo o princípio de dar,
receber e retribuir, na concepção de Mauss (1974).
Uma festa, consoante Rita Amaral (1998), começa a ser preparada muito antes do dia marcado para sua realização. Ela mobiliza recursos econômicos,
humanos e simbólicos. As festas têm a capacidade de agrupar fiéis em torno de objetivos comuns e de confraternização. É, portanto, uma forma de manutenção
da coesão e da conservação de mitos e ritos religiosos específicos. A festa, afirma Duvignaud (1983), foi incorporada ao sagrado, é um período peculiar, através
do qual a vida coletiva é mais intensa.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Rita de C. Awon Xirê! A festa de Candomblé como elemento estruturante da religião. In: MOURA, Carlos E. M. Leopardo dos olhos de fogo- escritos
sobre a religião dos orixás. São Paulo. Ateliê Editora. 1998.
CASCUDO, Luís da Camara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo. EDUSP. 1988.
DANTAS, Beatriz G. Dança de São Gonçalo. In: Cadernos de Folclore. Rio de Janeiro. Gráfica Olimpíca. Editora LTDA. 1976.
HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais. Lisboa. Publicações Dom Quixote. 1987.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva.- forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo. Vol. II. EPU.1974.
PACHÊCO, Felipe Conduru. História Eclesiástica do Maranhão. Maranhão. Departamento de Cultura do Estado do Maranhão. 1969.
(Apresentado no Seminário Iemanjá nas Américas - religião, cultura e sociedade: Recife, 4-6 de dezembro de 2001 - CCAFRO - Centro Cultural Afro Pai
Adão. )
Mundicarmo Ferretti
(Antropóloga, profa. titular da Universidade Estadual do Maranhão; secretária administrativa do INTECAB-MA.)
O Maranhão é um dos estados brasileiros com maior contingente populacional negro e, como era de se esperar, maior número de terreiros. As
denominações religiosas afro-brasileiras mais antigas no estado são o Tambor de Mina (predominante na capital), o Terecô (predominante no interior) e a Cura
(pajelança de negros, muito encontrada em São Luís e em cidades do litoral). Grande número de terreiros maranhenses se define como Umbanda,
denominação que já existia no estado no inicio da década de 50 (REIS, s.d.) e se expandiu após a fundação da Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros
do Maranhão, no ano de 1960. A penetração do Candomblé ocorreu depois e só teve maior visibilidade cerca de 20 anos mais tarde, quando Pai Euclides
aproximou-se de terreiros pernambucanos e passou a realizar, na Casa Fanti-Ashanti, rituais de Candomblé ketu e o Samba Angola (para boiadeiros) (A Casa
Fanti-Ashanti iniciou suas atividades em 1954, com o nome de "Tenda de São Jorge Jardim de Ueira", realizando anualmente um ritual denominado Canjerê
(para entidades caboclas), e rituais de Cura (pajelança). Seu 1º baracão de Mina foi construído em 1958, no sítio do Igapara. Posteriormente transferiu-se para
o bairro do Cruzeiro do Anil, tornando-se conhecida por Casa Fanti-Ashanti e passando a se dedicar especialmente ao Tambor de Mina. Na década de 70, após o
falecimento de sua mãe-de-santo, Pai Euclides, aproximou-se de terreiros pernambucanos (de Recife e de Olinda) e passou a incrementar em sua Casa
elementos de outras tradições religiosas afro-brasileiras. Em 1981, oficializou o Candomblé na Casa Fanti-Ashanti, passando a se dedicar principalmente ao
culto aos orixás jeje-nagô. ).
O Tambor de Mina, denominação religiosa afro-brasileira típica do Maranhão e hegemônica em São Luís, foi profundamente influenciado por dois
terreiros fundados na capital em meados do século XIX: a Casa das Minas (Jeje), consagrada ao vodum Zomadonu, e a Casa de Nagô, ao orixá Xangô. Apesar
da influência exercida pela primeira, os demais terreiros de Mina reproduzem principalmente o modelo da Casa de Nagô e neles são cultuadas entidades
africanas (voduns e orixás), gentis (nobres europeus a eles associados) e entidades caboclas.
O Tambor de Mina, embora respeitado pela preservação de fundamentos africanos, apresenta muitas diferenças do Candomblé jeje-nagô da Bahia,
denominação religiosa afro-brasileira hoje conhecida em todos os estados. Nas casas mais antigas de Tambor de Mina do Maranhão não se costuma anunciar
publicamente a relação de uma pessoa com o seu vodum ou orixá ou revelar o nome do "dono da cabeça" de um médium. Assim, embora a maioria das pessoas
que se aproximaram da Casa de Nagô ou que ouviram falar nela saiba que a Casa é de Xangô, que a sua chefe atual é de Xapanã e que a anterior era de
Iemanjá, nem sempre as pessoas ligadas à Casa sabem a que orixá pertence cada uma das nagoenses e podem reconhecer as entidades recebidas durante um
toque, pois, além de não se costumar falar ali a quem pertence cada "vodunsi", as filhas da Casa podem entrar em transe com mais de uma entidade; na Casa
não se paramenta orixás e seus nomes não aparecem claramente nas letras das músicas cantadas nos toques; os orixás dançam na mesma roda com caboclos e
gentis (fidalgos) e, como estes, se comunicam pela palavra com a assistência e "permanecem em Terra" até o fim do toque.
Iemanjá é possivelmente o orixá mais conhecido no Maranhão. Além de ser uma das entidades africanas mais importantes da Casa de Nagô, foi recebida
ali durante cerca de 70 anos por Mãe Dudu (1916-1988), que chefiou aquela Casa por mais de 20 anos (entre 1967 e 1988) (Maria do Rosário Carvalho
publicou recentemente uma biografia de Mãe Dudu (SANTOS, 2001) e, no próximo ano, deve ser publicado um trabalho de Sergio Ferretti sobre duas grandes
mães-de-santo do Maranhão: Mãe Andresa, da Casa das Minas, e Mãe Dudu, da Casa de Nagô, em coletânea organizada por Vagner Gonçaves. ). E, embora não
seja recebida pelas vodunsis da Casa das Minas (Jeje), fala-se que ela, quando incorporada em Dudu, dançou ali várias vezes, nas visitas que os voduns da
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Casa de Nagô costumavam fazer aos jeje ou "fugindo" para lá, quando as duas casas estavam realizando toques (Atualmente, os Jeje costumam visitar os Nagô
na última noite da festa de São Sebastião, em 21 de janeiro, mas a visita dos nagô não tem sido realizada há muitos anos. Como a visita não ocorre todos os
anos e as duas casas ficam muito próximas, alguém da Casa de Nagô costuma assistir ao toque da Casa das Minas para saber se a visita vai acontecer e, em
caso positivo, avisar a Casa de Nagô para preparar a recepção.). Iemanjá é muito cultuada em outros terreiros maranhenses: na Mina, na Umbanda, no
Candomblé e atualmente também nos salões de terecozeiros e curadores.
Embora as entidades espirituais africanas e caboclas do Tambor de Mina e do Terecô não costumem ser representadas de forma figurativa em esculturas
e desenhos nos terreiros mais antigos do Maranhão, no barracão da Casa de Nagô e na sala grande da Casa das Minas (Jeje) há um quadro de Iemanjá
semelhante ao encontrado em casas de Umbanda. Nele Iemanjá é representada como uma mulher jovem, de pele clara, cabelos longos e lisos, vestida de azul,
que parece mais com uma Nossa Senhora (com a "vírgem mãe" de Jesus) do que com a grande mãe Iemanjá de antigas estátuas africanas e afro-brasileiras, de
ventre e seios volumosos (SALUM, 1999). Em Cuba, como Iemanjá é associada a uma Nossa Senhora negra, tal como a Nossa Senhora Aparecida do Brasil, é
sempre representada como uma mulher negra. Embora Iemanjá seja, às vezes, representada como uma sereia, metade peixe e metade mulher, como aparece
na arte de Caribé (SALUM, 1999, p.189), nos terreiros maranhenses ela nunca é representada como sereia, talvez por causa da Mãe d´Água, entidade da linha
de pajelança recebida em muitos terreiros de Mina e de Umbanda.
Devido à influência do catolicismo na religião afro-brasileira e à associação de Iemanjá com a Mãe de Jesus, ela é festejada nos terreiros em datas em
que a Igreja Católica homenageia Nossa Senhora: 1º de janeiro (Mãe de Deus), 2 de fevereiro (Nossa Senhora das Candeias, do Bom Parto, da Purificação), 31
de maio (encerramento do mês de Maria), 15 de agosto (Nossa Senhora da Glória) e 8 de dezembro (Nossa Senhora da Conceição).
Na Casa de Nagô, Iemanjá é festejada no dia 2 de fevereiro, data em que são queimadas, na Casa, as palhinhas do presépio, o que confere ao festejo
um ar mais solene (FERRETTI, M. 1999). A festa inclui reza de ladainha, toque de Mina e distribuição de doces. Como temos pouca intimidade na Casa e ela foi
pouco pesquisada, não podemos falar a respeito das obrigações e ritos privados realizados ali naquela data.
A Casa Fanti-Ashanti realiza sua homenagem a Iemanjá no dia 2 de fevereiro ou no sábado mais próximo a essa data, com um toque de Candomblé e
entrega, na praia, de uma oferenda: a "panela de Iemanjá" (FERRETTI, M. 1999). Mas em vários terreiros da capital, como nos de Dona Elzita e de Pai Jorge
Itaci, a festa de Iemanjá é realizada no dia 8 de dezembro (FERRETTI, M. 1997).
O festejo de Iemanjá no Centro de Tambor de Mina Iemanjá, de Pai Jorge Itaci, que é filho daquele orixá, é iniciado no dia 7 de dezembro, com ladainha
e toque de Mina. Na manhã do dia 8, após um banho de ervas, as vodunsis assistem à missa na igreja do bairro e, voltando ao terreiro, antes de entrarem no
barracão e de receberem suas entidades femininas (voduns e orixás, princesas, sereias e outras), são purificadas na porta com água, trazida pelo pai-de-santo,
e com defumador e são recepcionadas com um toque de tambor. As entidades chegam, dançam um pouco e saem para serem paramentadas, prática não usual
na Mina tradicional. Voltando ao salão, trazendo nas mãos bonecas, leques etc, cantam, dançam e tomam refrigerante. Ao meio dia, o toque é encerrado e é
servida uma obrigação a 12 crianças, na presença das entidades femininas (OLIVEIRA, 1989). Naquele dia, Pai Jorge recebe Iemanjá jovem, mas ela é também
recebida por ele como velha, no dia 2 de fevereiro (FERRETTI, M. 1997).
Na casa de Dona Elzita - Terreiro Fé em Deus - a festa de Iemanjá é realizada com grande pompa, pois ela é a "patrona" do terreiro, que foi inaugurado
no dia 8 de dezembro de 1967. Nesse dia, a Casa realiza, no final da tarde, procissão, acompanhada por banda de música; faz mesa de obrigação para um
grupo de meninas e a "mesa de Iemanjá" para as crianças que saíram na procissão vestidas de anjo e de Nossa Senhora (com "manjar do céu" - creme de
maizena com coco ou maracujá - e chá de erva doce ou canela). À noite, realiza ladainha e toque de Mina, com "descida" das senhoras, quando são cantadas
várias "doutrinas" de Iemanjá e de entidades associadas a ela e se oferecem doces e refrigerantes aos amigos (FERRETTI, M. 1997; SANTOS, 1989).
E, desde 1961, vem sendo realizada em São Luís, na noite de 31 de dezembro, uma entrega de presentes no mar a Iemanjá, organizada pela Federação
de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros do Maranhão, à semelhança da que ocorre naquela data no Rio de Janeiro e em Santos-SP. Nos últimos anos, essa
oferenda é realizada em meio a grande festa, participada por muitos terreiros e por inúmeros devotos (FERRETTI, M. 1999). É preciso lembrar que, apesar de
alguns terreiros da capital maranhenses realizarem obrigação no mar para diversas entidades recebidas na Mina e na Cura (Pajelança), a tradição de festas
reunindo muitos terreiros e entrega de presentes no mar para Iemanjá surgiu, no Maranhão, com a expansão da Umbanda e com a vinculação de Pai Euclides
(da Casa Fanti-Ashanti) a terreiros de Xangô de Pernambuco, não tendo, portanto, origem na tradição nagô do Tambor de Mina.( Vários terreiros de São Luís
realizam reservadamente uma obrigação no mar para entidades caboclas ou ameríndias (antes do Tambor de Índio, da Cura/pajelança ou de outro ritual ligado
a elas.))
Em Codó, cidade do interior do Maranhão, na Tenda Espírita de Umbanda Rainha de Iemanjá, do pai-de-santo Wilson Nonato de Souza, conhecido por
Bita do Barão, Iemanjá representa Nossa Senhora da Glória e se confunde com a mãe de Jesus, que ali é considerado o mesmo "Pai Oxalá". Invocada a
interceder a Deus/Zambi por nós, em prece distribuída anualmente no convite da festa grande do terreiro, que ocorre em agosto, Iemanjá é chamada ali de
"virgem santa" e "imaculada Iemanjá". Em dezembro, a Casa faz uma homenagem a entidades espirituais femininas, começando por Santa Bárbara, no dia 4, e
prolongando-se até Nossa Senhora da Conceição, no dia 8, quando é "arreada" uma obrigação para Iemanjá, nas águas do rio Itapecuru, em cujas margens
localiza-se a cidade de Codó.
Embora na religião afro-brasileira Iemanjá seja geralmente cultuada como a mãe de quase todos os orixás de origem iorubá (FERREIRA, 1984, p.50), e
em alguns terreiros de Mina ela seja conhecida como Abê - vodum da água salgada (OLIVEIRA, 1989, p.41), para Dona Deni, atual chefe da Casa das Minas,
Iemanjá não é mãe de outros orixás e nem deve ser confundida com o vodum Abê. Na mitologia da Mina Jeje, Abê é um vodum da família de Badé Queviossô. É
a jovem irmã de Averequete (que, em Cuba, é também um vodum do mar) que, como ele, foi criada por sua irmã mais velha, Nochê Sobô, que adora Santa
Bárbara (FERRETTI, S. 1996)( Dona Deni tem atualmente 77 anos. Veio para a Casa das Minas ainda criança, no tempo de Mãe Andresa (chefe da Casa entre
1911 e 1954)).
Como falamos anteriormente, o costume de fazer oferendas na praia para Iemanjá é relativamente novo no Maranhão, não foi introduzido pela Casa de
Nagô, nem pelos terreiros abertos por pessoas preparadas por ela, daí porque muitos terreiros de Mina da capital não participam do ritual promovido em sua
homenagem, no dia 31 de dezembro, pela Federação de Umbanda.
Em janeiro de 2001, conversando, na Casa das Minas, com Dona Deni sobre a ausência de muitos terreiros de Mina no ritual ocorrido na praia na noite
de 31 de dezembro, recebemos dela a explicação de que os terreiros antigos do Maranhão não "arreavam obrigação" na praia para Iemanjá porque ela,
originalmente, não era um vodum do mar. E, reforçando sua afirmação, narrou um mito que era contado pelas antigas vodunsis das casas das Minas e de Nagô,
qualificando-o como a "verdadeira estória de Iemanjá". Como se costuma dizer que os terreiros maranhenses "de raiz" não conhecem mais a mitologia das
entidades africanas cultuadas, essa narrativa foi ouvida por nós com um interesse muito especial (Em 1943/1944 o pesquisador Octávio da Costa Eduardo
recolheu na Casa de Nagô um mito de Xangô (EDUARDO, 1948, p.82 ) e, em 1997, Sergio Ferretti ouviu de Pai Jorge Itaci um mito de Navezuarina ou Navê,
que foi publicado em (PRANDI, 2001, p.326)). O conhecimento, por Dona Deni, do mito de Iemanjá, aqui reproduzido, aponta para a possibilidade de
preservação de outros transmitidos pelas fundadoras das casas das Minas e de Nagô e para a necessidade de recuperação da tradição afro-brasileira do
Maranhão.
"Há muito tempo atrás, a iniciação de um sacerdote africano exigia grande sacrifício e muitas provas. Havia uma prova que poucos conseguiam vencer e
que era muito temida: a da travessia do deserto, pois os riscos de morte eram enormes. Além do perigo de assalto, os noviços tinham que suportar a sede e
corriam o risco do suprimento de água ser insuficiente, pois às vezes erravam o caminho.
Uma vez um grupo de noviços que estava no deserto se perdeu e ficou sem água. Em meio a grande desespero, o sacerdote que estava com ele invocou
a senhora Iemanjá. Ela não se fez de rogada. Apareceu e, levando-o para perto de um monte, mandou que enfiasse na terra o bastão que trazia consigo. A
água jorrou com tanta abundância que surgiu no local um grande rio. Os noviços, vendo a senhora que trouxera água para o deserto, exclamaram: ´é manjá, a
deusa das águas´.
Os que foram salvos por ela prometeram voltar anualmente ao rio que surgiu no deserto, para oferecer a Iemanjá os frutos do seu trabalho. E, com a
continuação, ela foi ficando muito conhecida, muito cultuada" e passou a receber numerosas oferendas". (Recolhido em 28/01/2001).
Embora Iemanjá seja atualmente mais associada ao mar (OLIVEIRA, W. e outros, 1986), no mito narrado por Dona Deni não há referência a água
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salgada. Nele, Iemanjá é a poderosa "deusa das águas" e é associada a um rio do continente africano, que nem se esclarece se corre para o mar. É possível que
esse mito se refira ao surgimento do rio "Yemoja", que fica na Nigéria, entre a região de Ifé e Ibadan, onde, segundo Pierre Verger, ela começou a ser cultuada,
bem antes do seu culto ser levado para Abeokutá (VERGER, 1981, p.190). É também possível que entre as fundadoras da Casa de Nagô existisse alguém
daquela cidade, o que justificaria a importância de Iemanjá naquele terreiro, pois Nina Rodrigues encontrou, em 1896, nas imediações do bairro de São
Pantaleão, onde foram instaladas as casas de Nagô e das Minas (Jeje), duas africanas, uma Jeje e uma Nagô, de Abeokutá (RODRIGUES, 1932, p.164;
PEREIRA,1979,p.14). A análise de mitos de Iemanjá conhecidos na África, no Brasil e em Cuba, reunidos por Reginaldo Prandi, mostra que ela ora é associada
ao mar, ora ao rio e ora aos dois e que não é só nos antigos terreiros de Mina do Maranhão que ela é a rainha das águas (PRANDI, 2001, p.382).
É interessante observar que Iemanjá é apresentada no mito reproduzido anteriormente como protetora de um sacerdote africano, quando, tanto na Casa
das Minas como na de Nagô, o culto a voduns e orixás é realizado por mulheres. Mas, nos outros elementos, o mito apresenta-se coerente com o modelo
adotado pelas duas casas: apresenta a iniciação completa na religião como algo acessível a poucos; fala em obrigações anuais (e não em realizadas
freqüentemente), sem enfatizar a realização de sacrifício de animais. Assim sendo, o mito não reflete apenas os valores da Mina, mas também reforça esses
valores e justifica o sistema adotado no Maranhão nas duas casas de Mina fundadas por africanas. No mito, Iemanjá é apresentada como poderosa, protetora,
muito cultuada, e os sacerdotes são representados como corajosos e capazes de enfrentar grandes sacrifícios.
A análise do mito de Iemanjá, narrado por Dona Deni, mostra também a existência de elementos encontrados na história de Moisés, o que possibilita a
comparação do "povo de santo" com o "povo eleito" de que fala a Bíblia e permite a colocação da tradição africana no patamar em que se encontra a judaico-
cristã. No mito, Iemanjá realiza, no deserto, para os noviços, um milagre semelhante ao realizado pelo Senhor no monte Hereb, através de Moisés, salvando o
povo da morte pela sede (Êxodo, 17), que pode ser assim resumido:
Saindo do Egito, onde os israelitas haviam sido escravizados, Moisés conduzia o povo pelo deserto, em busca da terra que lhes fora prometida por Deus
e quando este, privado de água e devorado pela sede, ele começou a murmurar: "Por que nos fizeste sair do Egito? Para morrermos de sede com nossos
filhinhos e rebanhos?". Ouvindo aquele murmúrio, Moisés dirigiu uma prece ao Senhor e este ordenou que tomasse na mão a vara com que tocara no rio Nilo e
afastara suas águas para que o povo passasse a pés, e fosse até o monte Horeb. Chegando ali, tocasse o rochedo com ela que a água jorraria dele com
abundância e o povo teria sua sede saciada...
Conclusão
Iemanjá é um dos principais orixás do Tambor de Mina, um dos mais cultuados em terreiros de São Luís, e, talvez, o mais conhecido no Maranhão. Além
de ser muito importante na centenária Casa de Nagô e de ser muito querida na Casa das Minas (Jeje), é recebida ou homenageada em numerosos terreiros, em
rituais de Mina, Umbanda, Candomblé, Terecô e em tambor de curadores. A popularidade de Iemanjá aumentou na Casa de Nagô na chefia de Mãe Dudu
(1916-1988), que tinha grande orgulho de ser filha de Iemanjá, mas ela tornou-se também muito conhecida no Maranhão depois da abertura de dois terreiros
consagrados a ela: o de Jorge Itaci, na capital (em 1956), e o de Bita do Barão, em Codó (em 1954). Mas, Iemanjá só se tornou mais amplamente conhecida
em São Luís depois que a "Federação de Umbanda e cultos afro-brasileiros do Maranhão" passou a realizar para ela uma festa na praia, na entrada do ano
novo. A popularidade de Iemanjá na capital maranhense tem também crescido nos últimos anos com a entrega a ela, no mar, pela Casa Fanti-Ashanti, da que
já se tornou tradicional "panela de Iemanjá". A Casa Fanti-Ashanti, embora não seja uma das casas de Mina mais antigas do Maranhão, é, sem dúvida alguma,
o terreiro maranhense de maior visibilidade na mídia, o que foi objeto de maior número de teses de doutorado, e um dos mais conhecidos na literatura
afro-brasileira.
Bibliografia
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VERGER, Pierre. Orixás, Deuses Yorubanos na África e no Novo Mundo. Corrupio: Salvador, 1981.
(Arinaldo Sousa é estagiário de Ciências Sociais no CCPDVF e foi membro da Comissão Especial que elaborou, coordenou e avaliou as Rodas de Conversa
por Sotaques com os Grupos de Bumba-meu-boi, promovidas pela CMF em parceria com o Centro de Cultura Popular. É também colaborador do Museu Nacional
do Folclore e Cultura Popular no Inventário Nacional de Referências Culturais realizado pelo órgão).*
Acho que isso é um dos motivos que a brincadeira do Boi de Zabumba, tá vendo?Então, tá se apagando. Por que hoje a brincadeira é do boi de matraca
que tem 20 pessoa pronto e tem 500, 600 a paisano, só tocando matraca, tá vendo? E o boi de sotaque de Guimarães é um boi que tem despesa, o grupo de
Guimarães (Grifos meus.) é um boi que tem muita despesa. Você vê que é tudo no canutilho: desde o boi, vaqueiro, pandeireiro, tudo é no brilho, é só no
canutilho puro.
Eu sou o dono do Boi Costa de Mão da Vila Conceição, sotaque de Cururupu. Nós somo, todos somo artistas, que gosta da brincadeira, gosta de fazer o
bumba-meu-boi, mas eu..., sou artista porque faço o boi, eu gosto e..., mas não é nessa empresa que é meu boi, meu sotaque, meu sotaque é diferente. Nós
somos misto de Guimarães com Cururupu, mas o sotaque de lá é diferente do Boi de Zabumba, é o Costa de Mão, tá aqui como Costa de Mão.
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Peço licença aos experts para falar de um assunto que tem sido alvo de inúmeros debates entre os estudiosos que se preocupam com o Bumba-meu-boi,
o conceito de sotaque e a divergência sotaques originários/sotaques derivados versus sotaques realidades per si. É lugar comum ouvir-se, seja em debates de
estudiosos, seja em publicações, a questão de se dever classificar o sotaque de Pindaré como um sotaque distinto ou como um sotaque derivado do sotaque da
Ilha. O mesmo ocorre com o sotaque de Cururupu, tido por alguns como um derivado do sotaque de Guimarães.
O ponto concordante entre todos é a existência dessa classificação dos diferentes Bumbas em sotaques. A maioria dos estudos (não digo todos para não
ser genérico) a respeito do Bumba-meu-boi assim o classificam. Não há concordância a respeito. Alguns distinguem três sotaques originários (matraca,
zabumba, orquestra) sendo os outros derivações; outros preferem entender cada sotaque como uma realidade per si, não distinguindo se foi ou não derivado
de outro. Sou propenso a aceitar a segunda proposição, pois, ela prova ser menos evolucionista e parece pressupor que cada sotaque é fruto de uma escolha
social, portanto, um artefato cultural. No entanto, pretendo esboçar algumas de minhas inquietações a respeito do assunto.
Sabemos que o desejo de classificar é inerente a qualquer trabalho que se propõe a conhecer determinada situação. Nesse sentido, somos
frequentemente tentados a classificar os fenômenos e enquadrá-los em conceitos para melhor entendê-los. O sociólogo Max Weber, no começo do Século XX, já
apontava que os sociólogos devem criar conceitos, mas, devem sempre levar em consideração que são eles frutos de uma escolha do pesquisador, escolha que
melhor se adequa aos propósitos de seu estudo. Tais escolhas levam em consideração apenas uma fração limitada da situação em questão e se ligam a um
contexto histórico específico, não à generalidade. Trata-se de conceitos ideais, criados pelo pesquisador como um arquétipo, um artifício para melhor entender
o mundo social. Assim foram criados, por exemplo, os tipos ideais weberianos do espírito do capitalismo e dos tipos de dominação.
Tal perspectiva, interessante para o entendimento de que os fenômenos fogem do desejo vaidoso de classificar, aponta que nem sempre se consegue
visualizar todas as nuanças do objeto em questão, mas apenas uma limitada fração do mesmo. Assim acontece com o conceito de sotaque, e pretendo dizer
como, comentando uma das mais famosas classificações, que pressupõe a existência de matrizes culturais a partir das quais diversos grupos de bumba-meu-boi
surgiram.
De acordo com AZEVEDO NETO (1983), na primeira edição de um de seus mais importantes trabalhos, temos, no Bumba-meu-boi do Maranhão, três
vertentes originárias, frutos da miscigenação que no Brasil se deu. São as vertentes indígena, negra e branca. Segundo ele, a vertente indígena foi a
responsável pela produção de um tipo de Bumba-boi que abusa do uso de penas e tem como instrumento preponderante as matracas (Instrumento que se
constitui basicamente de dois pedaços de madeira de mesmo tamanho que produz um som agudo e um ritmo cadenciado, bastante numeroso nos Bumbas que
se radicaram na Ilha de São Luís. Atualmente, podemos encontrar matracas de todos os tipos e tamanhos, de madeira ou de alumínio, pequenas ou tão grandes
a ponto de serem tocadas com auxílio dos ombros para servir de apoio). Esse tipo de Bumba-boi foi classificado pelo autor como grupo indígena,
compreendendo os subgrupos da Ilha, da Baixada e de Penalva. Além dos grupos e dos subgrupos, tem-se também os sotaques, que, no dizer do autor,
representa cada um dos Bumbas que compõem um subgrupo. Neste sentido, cada Bumba representa um sotaque e, sendo assim, o autor não afirma que em
um sotaque existam vários grupos, como preferem outros.
Dentro desta perspectiva, Bois como o de Maracanã e o da Maioba, constituem sotaques distintos, mas estão classificados dentro do subgrupo de matraca
ou da Ilha, pois, para o autor, cada Bumba possui um jeito diferente de dançar, de tocar matraca, indumentária e ritmo.
Embora não estabeleça claramente quais as diferenças entre um e outro, ele afirma:
"O surgimento de um novo boi pode determinar o aparecimento de novo sotaque, como foi o caso do Sotaque de Pindaré, surgido do Sotaque de Viana.
No entanto, na maioria dos casos, os conjuntos recém-formados copiam um conjunto já existente, conceituado e famoso, assimilando, também, as
características de seu sotaque. As alterações, se alterações houver, acontecerão com o passar do tempo." (op. cit., p. 39).
Pelo que se pode inferir, um novo sotaque surge quando, por ocorrência de desentendimentos, causando cisões, ou por outros motivos, um novo Bumba
surge de dentro de outro, ou mesmo quando alguém resolve criar um tomando elementos de outro que já existia. Nesse caso, poderíamos dizer, baseado nessa
proposição, que um novo sotaque surgiu na Madre Deus quando os membros do Bumba que representava aquela comunidade desentenderam-se entre si e
resolveram fundar o "Boi de cima", passando, então, a existir naquela localidade, o "Boi de Cima" e o "Boi de Baixo".
Em outra ocasião ele comenta que, por vezes, pode haver confusão entre subgrupo e sotaque, mas, a sua perspectiva é de que a cada novo Bumba
corresponde um novo sotaque. Essa classificação complexa parece bastante interessante, na medida em que há sinais de grupos no interior do Estado (Jandir
Gonçalves, funcionário do CCPDVF viaja constantemente ao interior e descobre diferentes manifestações do Bumba-meu-boi. Uma de suas descobertas foram
vários grupos que utilizam um tipo de tambor que eles denominam V8) que não se enquadram nos chamados sotaques. No entanto, parece que essa
perspectiva não foi aceita e se tem preferido classificar diferentes grupos em determinados sotaques, não se fazendo referência a grupos e a subgrupos. Além
disso, ela carece de informações que comprovem as afirmações feitas pelo autor. Grosso modo, os gestores das políticas, estudiosos do assunto e a população
de um modo geral aceitam a existência de pelo menos 5 sotaques: matraca ou ilha, orquestra, pandeirões ou Baixada, zabumba ou Guimarães, costa de mão
ou Cururupu.
ASSUNÇÃO (1999), comentando o trabalho do autor acima citado, refere-se ao mesmo como "um dos melhores e mais competentes estudos" sobre o
Bumba-meu-boi. No entanto, critica de forma viva a insistência do autor em entender que existam três matrizes originais das quais todos os grupos derivaram.
Com relação a isso, Assunção afirma serem os pandeirões uma influência dos mouros da África do Norte e isso, por si só, já faz cair por terra a idéia de
matrizes originárias, sendo a origem da manifestação mais diversa do que isso. Segundo ele, torna-se necessário o entendimento de como se processou
historicamente o jogo de apropriação dos elementos componentes das manifestações culturais e não ficar elegendo uma matriz originária da qual teria derivado
os Bumbas. Em edição recente do "Bumba meu-boi no Maranhão", Américo reafirma sua concepção de sotaque e a idéia das matrizes originárias.
Há que se concordar que uma manifestação cultural é um produto social e, como tal, realizado por distintas pessoas em distintos lugares. Nesse sentido,
as escolhas são feitas dos mais diferentes modos, mesclando os mais variados elementos. Um conceito como o de sotaque torna-se impraticável se leva em
conta os elementos externos, como instrumentos musicais, indumentária ou o uso de determinados materiais. Tornar-se-ia mais aplicável se levasse em
consideração a origem social, em que sociedade está inserida a manifestação, não importando as variações entre os grupos. De qualquer forma, é um tanto
difícil trabalhar com ele. É preciso encontrar formas de utilizá-lo.
Com relação a uma possível origem dos sotaques, fica complicado determiná-la no contexto do Maranhão. Talvez se pudesse precisar tal origem
falando-se em termos de São Luís, onde se pode ter elementos para determinar o aparecimento destes grupos aqui (talvez nem isso se possa precisar). No
interior do Estado, é afirmação sujeita a dúvida dizer que o Boi de Zabumba surgiu no começo do século XX, por exemplo, quando o Bumba-meu-boi resulta de
um processo de criação que remonta ao contexto europeu, sendo aqui incorporado à cultura dos negros escravos e índios com a catequese jesuítica, estando
ligado também ao ciclo do gado.
O próprio chamado "ciclo de vida" do Bumba-meu-boi, presente em todos eles, é uma marca africana, onde a circularidade está sempre presente nas
manifestações culturais (logo, em todos os Bumbas há uma forte marca da africanidade). Ademais, é preciso atentar-se para o fato de que danças dramáticas,
ou folguedos (Há uma distinção, por parte de folcloristas, entre dança e folguedo. A primeira não possui entrecho dramático, enquanto o outro possui (FONTES,
1982: p. 166)), envolvendo o tema da morte e ressurreição de um boi, foram disseminadas em todo o território nacional, não somente no Maranhão, a ponto
de Mário de Andrade considerar o Boi o animal nacional por excelência.
Na Bahia, Piauí, Rio Grande do Norte, Alagoas, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul e em todo nordeste, só a efeito de exemplos, existem, ou existiram,
alguma espécie de Bumba-meu-boi, e muitos deles possuem a Catirina e o Pai Francisco (ou Mateus, ou ainda Vaqueiro Chico), tal como o nosso Bumba-
meu-boi. No Rio Grande do Norte, o folguedo é chamado Boi-calemba e é representado durante o Natal (por sinal, é assim em alguns dos outros Estados
citados e há sinais de que existem grupos que tradicionalmente fogem do ciclo junino, preferindo o natalino, também no interior do Estado do Maranhão).
Possui como personagens: a Burrinha, o Cavalo-Marinho, o Jaraguá, Caipora, Catirina, Rosa e, como figuras centrais, o Boi, os vaqueiros Mateus e Birico,
Damas e Galantes (MELO, 1977). No Piauí é muito forte, havendo até a classificação em sotaques, tal como aqui ocorre. Lá temos a presença de Catirina e
Chico Vaqueiro. O enredo do Auto conta a estória de Catirina que, grávida, desejou comer a língua do Boi mais querido da fazenda. Também envolve o modo de
ser de um povo e reflete as condições sócio-econômicas da colonização piauiense (OLIVEIRA, 1995).
Nesse sentido, os diferentes estilos de Bumba-meu-boi existentes em São Luís e classificados em sotaques não poderiam ser melhor entendidos como
variações regionais do Bumba-meu-boi, a forma como cada comunidade realizou o jogo de apropriação dos elementos? É bom atentar que em muitos
municípios maranhenses existem diversas comunidades, muitas delas territórios de pertença étnica, remanescentes de quilombos e terras de santo e de pretos.
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Já há quase meio século que se abandonou o entendimento de cultura popular como mera coleção de curiosidades e se procurou adotar uma forma que
enfocasse muito mais o aspecto étnico e social dessa cultura. É um tanto temeroso constatar que no Maranhão ainda existam intelectuais que reivindicam o
caduco uso do conceito de cultura popular como coleção de curiosidades, recorrendo a fatores externos (instrumentos musicais, indumentária e ritmo) para
classificar os diferentes Bumba-bois existentes no Maranhão em sotaques.
Como estudante de Ciências Sociais, ainda não tenho os anos de pesquisa e tampouco o reconhecimento que muitos pesquisadores possuem, inclusive
autores de livros sobre o tema. Talvez por esse motivo o leitor se pergunte que autoridade tenho para falar sobre um assunto já bastante discutido e que
recebe o endosso da população de um modo geral. No entanto, se este artigo servir para suscitar o debate e "levantar a poeira" das certezas estabelecidas, pelo
menos um passo consegui dar. Vivemos um tempo em que se fala em patrimônio imaterial (UNESCO; MEC.: 1997), justamente o patrimônio que está ligado a
uma pertença étnica, a um engajamento social, onde os estilos ou sotaques de Bumba-meu-boi são entendidos como frutos de processo de escolhas sociais,
estão ligados às comunidades que os geraram (O Museu Nacional do Folclore e da Cultura Popular está realizando em todo o Brasil um inventário de
referências culturais, onde o Bumba-meu-boi do Maranhão foi uma das manifestações culturais contempladas com um levantamento e com o entendimento de
que ele se trata de uma celebração e de um patrimônio imaterial de todo o Brasil e do nosso Estado). Nesse sentido, não importa o fato do tamanho do
pandeiro do Boi de Pindaré ser igual ao pandeiro do Boi da Maioba, por exemplo, ou se todos os instrumentos que eles usam são iguais. O importante é que os
dois grupos foram criados por duas comunidades distintas, por pessoas com pertença social em comunidades separadas geograficamente e que puderam se
encontrar aqui em São Luís e fazer parte de um mesmo fenômeno. Pode ser que um tenha copiado os instrumentos do outro, mas, isso não autoriza dizer que
o Bumba-meu-boi de influência social da baixada é uma derivação do Bumba-meu-boi de influência social da Ilha.
Se perguntarmos a um brincante de Boi quando foi que o Bumba-meu-boi entrou na sua vida, ele vai dizer que desde criança lá na sua cidade natal seu
pai lhe ensinou assim, ou um brincante mais velho do Boi da localidade sempre lhe incentivava e, com isso, ele foi aprendendo. Isto revela a origem social do
grupo, ou, como se quiser dizer, do sotaque.
Eu sou de sete meses e, depois de sete anos, até agora ainda não teve ano que Leonardo não brinca boi. Agora, nunca sentei em banco de colégio,
aprendi com o A, E, I, O, U, foi o que aprendi, nunca sentei em banco de colégio, mas, pode fazer qualquer pergunta que ... pra mim que Leonardo responde.
Vou falar do meu procedimento: nunca fumei, nunca fui no futebol, nunca fui numa praia, não como criação, não tomo café; três esportes, boi, tambor de
crioula e caçando, só isso. Agora, eu era pequeno, mas, com 7 anos, a gente era grande, não é de tamanho, agora, só tem uma coisa, que andava nuzinho. É
sério, é sério, é sério. Andava nuzinho. Ia pra quitanda, qualquer lugar. Então ele me levava, ele me levava porque eles cantavam, perdiam a toada. Taí Seu
João Branco ainda aqui, que nós ia nós dois. Chegava lá na hora, ele dizia ..., chegava na quitanda eu pegava a cantar, "mas rapaz, que preto danado!". Com
sete ano, sete ano. Depois, eu passei pra tocar zabumba.
(Leonardo: 17//05/01).
No Maranhão, existe um enredo para o Auto tido como o autêntico, e existem variações, talvez de região para região, ou de Bumba para Bumba. Tal
enredo envolve a captura do negro Chico e a ressurreição do boi com o auxílio da pajelança que, na minha opinião, reflete a estrutura escravocrata vigente no
período da colonização. A dicotomia entre senhor e escravo, presente na relação entre o amo e Chico, lembra o regime de castas étnicas que, segundo Roger
Bastide, vigorou no Brasil sobretudo na escravidão do tipo rural. Roger Bastide faz uma diferenciação entre a escravidão urbana e a rural (BASTIDE: 1985), e o
interessante é que, segundo depoimentos orais (Marciano Veira Passos in MARANHÃO, 1997), até aproximadamente a década de 20 do século XX, os locais em
que existiam bois em São Luís eram, ou em zonas de pescadores ou em zona rural (Maracanã, Maioba, Apicum, Madre Deus, etc.). A população urbana sequer
suportava os Bois e muito menos os seus encontros. Somente depois é que começaram a entrar outras pessoas, operários, etc., no Bumba-meu-boi e este
passou por um processo de melhor apreciação.
Alguns dizem que o Bumba-boi tem enredo branco, indumentária indígena e ritmo negro. Eu não ficaria tão seguro para afirmar isso. O recurso a esse
enredo e aos personagens fidalgos pode ser uma caricatura da sociedade escravocrata, uma subversão dos valores vigentes. Ademais, sabemos que no século
XIX os batalhões de Bumba-meu-boi eram intoleráveis justamente pelo seu caráter crítico e satírico da sociedade e estas reuniões de negros eram entendidas
como uma turba de negros (ou índios) desordeiros, armados de pedaços de pau que procuravam atacar a elite com palavras de ordem ou em tom jocoso,
assumindo o caráter de um violento Bumba-meu-boi. Para obter informações sobre isto basta ler ASSUNÇÃO (op. cit.), que ele cita alguns recortes de jornais
daquele século.
Toda esta discussão é para tentar mostrar que o que poderíamos chamar de a aparência externa de uma manifestação cultural não é mais do que o fruto
de um processo de escolhas socialmente determinadas, escolhas que, no caso do nosso Bumba-meu-boi, podem se dar diferentemente de um Bumba para
outro. A esse respeito não são poucos os folcloristas a concordar, tal como DUARTE (1974), que afirma:
"É oportuno referir, (...), as características, os aspectos, as cores, as nuanças, que os fatos folclóricos tomam em cada região. De uma região para outra,
de uma área ou zona para outra, assumem inegavelmente os fatos folclóricos posições diferentes, diga-se mesmo sem rebuços, aspectos regionais, senão
locais." (p. 19).
"Os exemplos se sucedem, inequivocamente, mostrando que, dentro da região nordestina brasileira, o fato folclórico se modifica e se transforma de um
para outro Estado. Eis porque o pesquisador atento ou o observador percuciente do nosso Folclore apreende depressa os aspectos díspares que um mesmo fato
oferece dentro dessa grande área. Por exemplo: - O ‘Coco’ alagoano não se apresenta com a mesma vivacidade e a mesma impetuosidade aqui ou no Ceará,
(...); o ‘Bumba-meu-boi’ do Nordeste não é o mesmo do Sul; ou do extremo Norte do país – de Belém do Pará; (...)." (p. 19-20).
Os sotaques, já que se quer classificar, ficariam muito bem entendidos se fossem resgatadas as regiões em que eles surgiram. Adotando essa
perspectiva, fica fácil entender como e por que os grupos mudam, são frutos de interações sociais, portanto, perfeitamente mutáveis; o ser humano, pelo
menos até o presente momento, não permanece estático. Acredito que tal perspectiva pode colocar novas luzes no que diz respeito a dever-se considerar
alguns "sotaques" derivações de outros ou não. Se se aceita os "sotaques" como frutos de interações sociais, então não importa se um veio de outro ou não,
importa apenas que aquela comunidade escolheu assim, constituindo-se aquela forma, que, segundo alguns, seria "derivada", um "sotaque" ou um Bumba-
meu-boi distinto do anterior. Ademais, os elementos a que se reivindica geralmente para suscitar esta discussão são sempre os instrumentos musicais,
indumentária etc., que, no caso do Bumba-meu-boi sotaque da Baixada e o Bumba-meu-boi sotaque da Ilha, usam matracas e pandeirões, com a diferença no
ritmo, na indumentária, nos personagens e na forma de tocar os instrumentos. Isso, fora o fato conhecido por todos da trupiada do Bumba-meu-boi da Ilha ser
mais pesada que o acompanhamento musical dos bumbas do sotaque de Pindaré.
Instrumentos musicais são fatores externos, podendo ser usados por qualquer um. Não constituem, portanto, razão para se acreditar na perspectiva de
derivação, difusão cultural, modificação, ou matriz cultural comum. Todos possuem, é certo, uma matriz comum, que seria o próprio fato de serem Bumba-bois,
mas, isso não quer dizer que havia um original do qual derivou outros. As coisas, simplesmente, foram acontecendo de forma diferente de lugar para lugar. A
cultura é uma teia de significados tecida pelos homens e sua interpretação (GEERTZ: 1978). Cada cultura é uma teia diferente, pois, nenhum homem tece
exatamente igual a outro. O que mais nos identifica como iguais (seres humanos) é a nossa capacidade de sermos diferentes.
Mas, o debate está na mesa, e cada qual pode dizer o que quiser. Afinal, também somos produtores da cultura popular. O que dizemos e o que fazemos
influi de forma direta no que os Bumbas fazem, evidenciando o que CANCLINI (1998) frisa: o popular é o produto multi-determinado de amplos setores da
sociedade, constituindo-se numa criação tanto subalterna quanto hegemônica, tanto da sociedade civil quanto do Estado. O nosso Bumba-meu-boi, além de ser
criação dos brincantes, é também da imprensa, dos órgãos gestores de políticas públicas e da sociedade maranhense e até mundial (me refiro aos turistas)
como um todo, cada um dando a sua parcela de contribuição na construção do fenômeno.
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OLIVEIRA, Noé Mendes de. Folclore Brasileiro: Piauí. Teresina: EDUFPI. 2a Ed, 1995.
UNESCO; MEC. Nossa Diversidade Criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Org.: Javier Pérez de Cuéllar. Campinas, SP:
Papirus, Brasília: UNESCO, 1997.
A casa de tambor de mina "Deus é Quem Guia" foi fundada em 1946 por Margarida Mota, já falecida, e atualmente è chefiado por Dona Vicência. Nos
últimos anos, essa casa vem passando por algumas dificuldades, pois não foram iniciadas novas filhas-de-santo. As senhoras estão com idade avançada, saúde
frágil e são em número reduzido. Apesar dessas dificuldades, o grupo não tem medido esforços para continuar realizando suas atividades. A casa tem um
calendário de festas, onde cultuam voduns, orixás e recebem caboclos.
Além desse calendário de festas, realiza também um ritual denominado ‘’sessão de mesa branca’’, no qual as filhas-de-santo recebem espíritos de
mortos. No espiritismo kardecista, os mediuns costumam realizar sessões em que são invocados e doutrinados espíritos de mortos. Quando Margarida Mota, era
viva a "mesa branca" era realizada quinzenalmente às sextas-feiras, inclusive na Sexta-feira Santa, e a 02 de novembro, Dia de Finados. Hoje a casa não
realiza Mesa Branca com a mesma freqüência, pois as vezes não há número suficiente de filhas. Todo ano, na sexta-feira da semana santa e no dia 02 de
novembro, data de nascimento da fundadora da casa, realiza-se o ritual com qualquer número de filhas-de-santo.
Nos dias em que são realizadas as "mesas brancas", o altar do terreiro permanece coberto por uma toalha branca e, na sua frente, é montado um
pequeno altar, feito com uma pedra grande, também coberto com toalha branca. Em cima desse segundo altar são colocados os colares das filhas. Atrás dele,
coloca-se uma cuia com água, ao seu redor, velas em número correspondente ao de senhoras participantes do ritual.
A "sessão de mesa branca" começa geralmente em torno de meio-dia. À que estamos descrevendo, estavam presentes seis senhoras, incluindo a chefe
da casa. Dona Vicência chamou Rosa Maria, sua filha, para que completasse o número de sete mulheres participantes, pois já estavam colocadas sete velas ao
redor do segundo altar. Dona Vicência pediu a Rosa Maria que não se concentrasse, pois não é iniciada, e estava ali apenas para ajudá-las. Todas estavam
vestidas de branco, exceto Rosa Maria, que usava vestido azul.
Quatro filhas da casa e Rosa Maria sentaram-se no chão em cima de uma "meaçaba" (Meaçaba: é uma esteira retangular feita com folhas de palmeiras.)
e duas senhoras sentaram em bancos de madeira, perto das que estavam sobre a meaçaba, pois tinham dificuldades para sentar no chão.
A chefe convidou um senhor da assistência para que se concentrasse com elas durante o ritual. Pediu-lhe que tirasse os sapatos e o relógio e sentasse
num banco de madeira, próximo às outras senhoras. Soubemos, mais tarde, que esse senhor tem um terreiro em outro bairro de São Luís e é amigo da Casa
há muitos anos, antes mesmo dele abrir seu terreiro.
Dona Vicência deu início à sessão, invocando o nome de Deus. Ela ficou de pé entre as filhas que estavam sentadas no chão e colocou as mãos na cabeça
de cada uma, durante alguns segundos. Depois, pediu a Paulo, um rapaz que costuma ajudá-las nas atividades da casa, que fosse à casa dela, próxima ao
terreiro, apanhar seu livro de "Cáritas", que ela havia esquecido de trazer.
Quando Paulo retornou, Dona Vicência pediu que ele abrisse em uma determinada página e lesse em voz alta. Enquanto lia, a chefe se dirigiu à porta da
cozinha que dá para o quintal, olhou para o céu, colocou as mãos para cima e disse algo em voz baixa. Depois da sessão, quando conversávamos, nos disse que
estava pedindo permissão a Deus para realizar a "mesa branca".
Quando retornou ao salão, colocou as mãos na cabeça de Dona Socorro, uma das senhoras que estava sentada no chão. Esta começou a tremer, como se
fosse entrar em transe, e Dona Vicência disse: "Deus esteja contigo". Dona Socorro tremeu com mais intensidade, bateu as pernas, que estavam estiradas, no
chão com uma força enorme.
A chefe da casa foi ao quarto ao lado da cozinha, onde são guardados alguns objetos do terreiro, e retornou com uma garrafa. Despejou o líquido nas
suas mãos, colocou na testa de uma das senhoras que estava sentada num banco (Dona Joana) e esfregou sua testa na dela. Nesse instante, Dona Joana
começou a tremer como se fosse entrar em transe.
Dona Socorro recomeçou a tremer com muita intensidade. Batia-se no chão, batia-se com as mãos em todo o corpo e jogando-se no chão disse: "eu te
mato, eu te mato". Dona Vicência, que já estava ao seu lado tentando acalmá-la, levantou-a do chão pelo cabelo e disse: "Quem que tu mata? Quem? Tu não
mata ninguém, pois tu já morreu’’. Dona Socorro agitou-se mais, debatia-se deitada no chão. Dona Vicência então pegou a vela que estava mais próxima de
Dona Socorro, apagou e quebrou ao meio. Acendeu novamente a vela e colocou no mesmo lugar, só que agora deitada. Como por encanto, Dona Socorro ficou
quieta, como se estivesse acabando de acordar de um sono profundo.
Às 12:50hs, a chefe da casa disse que estava na hora de encerrar, agradeceu a Deus, Oxalá, Padre Antônio Vieira e Manoel da Conceição, dizendo:
"com a força de Oxalá, Padre Antônio Vieira, Manoel da Conceição, São Francisco de Assis e Canindé. Neste momento de luz com a chave de São Pedro
eu fecho esta mesa. Obrigado senhor por esta força. Eis minha mãe criação e criatura. A força do Oriente agradece este momento de luz".
Dona Vicência pediu a Paulo que lesse novamente o livro de "Cáritas" para encerrar. Ele leu o trecho indicado por ela, ela ficou novamente entre as
senhoras que estavam sentadas no chão. Pediu a todos que ficássemos de pé e rezássemos juntos um Pai Nosso e uma Ave-Maria. Enquanto rezávamos, ela se
dirigiu novamente à porta que dá acesso ao quintal. Estendeu aos mãos para o céu e disse algo novamente. Depois nos contou que assim como se pede
permissão para abrir a mesa é necessário pedir permissão para fechá-la.
Quando retornou, as senhoras levantaram-se e Dona Vicência convidou as seis pessoas que estavam assistindo para irmos à cozinha comer a obrigação,
que era uma papa feita de fubá de arroz e coco, sem sal, que se come com as mãos, sem deixar nada no prato.
Quando voltamos para o salão, Dona Vicência estava benzendo o rapaz que foi convidado no início do ritual a se concentrar com elas durante a sessão
Das seis senhoras, duas estavam incorporadas. Dona Vicência, com seu caboclo Tombasse, que é corajoso e guerreiro, e Dona Joanita, que recebeu uma
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entidade criança, por isso falava com voz infantil e sorria muito.
Depois de uns 10 minutos, Dona Joanita deu um grito e desincorporou. Logo a seguir aconteceu o mesmo com Dona Vicência. As 13:10hs as pessoas
começaram a se retirar, o que também fizemos às 13:30, quando a chefe da casa também se preparava para ir embora.
Nas sessões de Mesa Branca da Casa "Deus é Quem Guia", as filhas recebem espíritos de mortos, como no Espiritismo, diferentemente dos outros rituais
da casa, quando cultuam orixás e voduns e recebem caboclos.
O sincretismo das religiões afro-brasileiras é mais visível com o catolicismo, pois quando os negros aqui chegaram vindos da África foram obrigados a
camuflar seus rituais com rituais dessa religião. Alguns estudiosos não concordam com a existência do sincretismo nas religiões de matriz africana, no entanto
não podemos negá-lo como disse Ferretti:
"Alguns consideram que o sincretismo é incompatível com as exigências do pensamento civilizado. Ao mesmo tempo constata - se que o fenômeno está
presente em todas as religiões, sendo comum na sociedade brasileira, não existindo apenas no pensamento antropológico, necessitando portanto ser mais bem
examinado’ (FERRETTI. 1995, p. 111).
Na Casa "Deus é Quem Guia", o sincretismo entre o Tambor de Mina e o catolicismo é visível. Uma de suas festas mais importantes acontece no mês de
dezembro, para Santa Luzia, Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara. Entretanto, o sincretismo com o Espiritismo pode também existir, como nos disse
Dona Vicência:
"Nestas sessões a gente recebe espírito de morto, igual no espiritismo, qualquer um que deseja se comunicar pode descer, tanto espírito de luz como
espírito das trevas. Mas é só neste ritual que eles descem, é feito especialmente para eles.... Ha! Minha filha, a gente faz sessão desde quando minha mãe
(Margarida Mota) abriu este terreiro, Porque? Não sei, minha mãe sempre fez e nós vamos continuar fazendo como ela sempre quis".
Práticas espíritas foram adotadas por religiões de matriz africana como uma forma de embranquecer essas religiões, pois o Espiritismo se propõe a ser
uma religião baseada em ciência, filosofia e estudo. Seus praticantes são, na sua maioria, brancos e da classe média. Por outro lado as religiões afro-brasileiras
sempre eram vistas como "feitiçaria feita por negros fetichistas". Parece-nos que a existência em terreiros de tambor de mina de práticas do Espiritismo como
uma religião que tem como base o transe e a mediunidade possibilita ao negro no tambor de mina mostrar que seus rituais constituem também uma religião.
O sincretismo na Casa "Deus é Quem Guia" com rituais do Espiritismo pode ter surgido das relações sociais de seus praticantes com pessoas ligadas à
religião Espírita ou mesmo alguém da casa pode ter sido oriundo do Espiritismo.
Na sociedade, os grupos estão sempre em contato com outros grupos e isso faz com que as pessoas interajam e troquem informações e experiências de
vida. Isso leva pessoas de diferentes religiões a manterem contatos entre si e conhecerem outras práticas religiosas. Soma-se a isso o fato de que no Brasil há
uma forte migração religiosa, ou seja, pessoas circulam de uma religião a outra sem que se veja nisso algo de errado, o que amplia um maior contato entre
diferentes religiões.
Vale ressaltar também que o Espiritismo, assim como as religiões afro-brasileiras, sempre sofreu preconceitos e foi bastante perseguido ao longo da
história, o que o torna mais próximo da religião dos negros. Sabe-se, é lógico, que proximidade não que dizer igualdade, mas esta também não surge do acaso.
BIBLIOGRAFIA
DURKEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. Tradução Paulo Naves. São Paulo: Martins Fontes. 1996.
________________ .Querebentã de Zomadônu: Etnografia da Casa das Minas. São Luís: Edufma. 1996.P
Notícias
A Comissão Maranhense de Folclore repudia os abusos praticados pela Polícia, insuflada por evangélicos, na madrugada de 09 de dezembro, contra o
Terreiro do Justino, na Vila Embratel, quando, durante o toque realizado para Nossa Senhora da Conceição, policiais vasculharam a casa e os veículos
estacionados na área do terreiro, em busca de uma criança de 18 meses, desaparecida de sua residência enquanto seus pais participavam de culto da
Assembléia de Deus.
Os policiais, depois de importunar por três vezes o esposo de Dona Mundica Estrela - mãe-de-santo, foram por ele convidados a entrar e verificar como a
criança não se encontrava ali e, sem ordem judicial e abusando de sua compreensão, vasculharam toda a casa, inclusive o peji, profanando lugares sagrados e
procurando a criança até mesmo em baixo da cama da mãe-de-santo e dentro do congelador. Como a criança, que havia sido raptada e levada para Pinheiro, já
foi devolvida, está na hora do terreiro registrar a ocorrência e divulgar que, apesar de se encontrar na área há 104 anos, está sendo pressionado por
evangélicos residentes no bairro a se transferir dali, sob a acusação de prática de magia negra e suspeita de realização de sacrifício humano.
O terreiro do Justino, que é uma das mais respeitadas casas de Mina, na noite do incidente contava com a presença dos pesquisadores Sergio Ferretti
(UFMA) e Mundicarmo Ferretti (UEMA) e do padre Camboniano José Manuel Gonzalez, que podem testemunhar a seu favor. O incidente é uma ameaça à
liberdade religiosa e um exemplo de intolerância que precisa ser urgentemente banida da sociedade maranhense, que costuma colaborar e participar de festas
realizadas nos terreiros, como a do Espírito Santo, e sabe que a religião afro-brasileira não realiza sacrifício humano, não representa nenhuma ameaça à
ordem pública, e é responsável pela preservação de parcela significativa da cultura popular do Maranhão. O próximo número do Boletim de Folclore deverá
trazer um histórico do terreiro e uma descrição de rituais por ele realizados. Axé para o terreiro e que Deus ilumine seus opositores.
Será realizado, em São Luís, no período de 18 a 22 de junho de 2002, o X Congresso Brasileiro de Folclore, cujo tema central será "Folclore e Turismo".
No evento, estão previstos, pela manhã, a realização de um Curso de Folclore e de seis oficinas de trabalho, destinadas a estudantes e professores de segundo
grau. No mesmo período, serão apresentadas comunicações em grupos de trabalho sobre os temas: religião e cultura popular, música e cultura popular, danças
e festas populares, culinária e medicina popular, artesanato e cultura popular, folclore e turismo, comunicação e cultura popular, folclore nas práticas
pedagógicas, oralidade e transmissão do saber, gestão cultural, novas políticas de bens imateriais e comunicações livres.
Os interessados poderão se inscrever encaminhando resumo para os grupos, que serão recebidos até 15 de abril. Cada participante terá de 15 a 20
minutos para expor sua comunicação. Estamos convidando todos a apresentarem trabalhos nesses grupos.
No horário vespertino, haverá, cada dia, mesa redonda com três debatedores, com duas horas e meia para exposições e debates. No fim das tardes,
haverá conferências de 01 hora e 30 minutos de debates. Serão organizadas diversas exposições, mostras de vídeos, discos, artesanato, fotos e apresentações
de grupos folclóricos. À noite, os interessados poderão visitar os diversos arraiais juninos que, nesse período, funcionam na cidade.
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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE http://www.cmfolclore.ufma.br/Htmls/Boletim%2021.htm
O evento está sendo programado pela Comissão Maranhense de Folclore, com a colaboração da Comissão Nacional de Folclore e apoio do Governo do
Estado do Maranhão. A comissão organizadora está programando os temas e autores das mesas, conferências, cursos e oficinas. Brevemente realizaremos
ampla divulgação do evento, que já está anunciado desde agosto passado.
Dia da Criança
O Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, em parceria com a Biblioteca Pública Benedito Leite e apoio da CMF, promoveu, no dia 11 de
outubro, uma intensa programação do Dia da Criança. Durante todo dia participaram da programação cerca de 1.500 pessoas.
A programação constou de distribuição de lanches e pirulitos, funcionamento do carro-bilbioteca, com atividade de leitura, desenho, pintura e outras
ações educativas; animação cultural, com brincadeiras tradicionais, jogos, distribuição de brindes e sorteios com a palhaça Queké; exposição de brinquedos em
buriti, de Arlindo e Erlindo, e peças da indumentária do bumba-meu-boi, resultantes de um curso de bordado realizado com adolescentes; oficina relâmpago de
brinquedos em buriti, com Arlindo e Erlindo, de Boa Vista/Santo Amaro do Maranhão; espetáculo "Circo Penico Sem Tampa", com a Companhia Circense de
Teatro de Bonecos; apresentação do tambor de crioula mirim "Prazer de São Benedito", da Floresta; e do boizinho "Brilho Reciclado", da Associação Melhor
Viver, das palafitas da Liberdade; show musical "Cantigas de Roda", com o grupo Laraiá; e espetáculo teatral "Maria Minhoca", com o grupo Teatro
Experimental do Maranhão.
CD Maranhão de Natal
A Fundação Cultural do Maranhão, com o apoio da Comissão Maranhense de Folclore lança neste fim de ano, o CD Maranhão de Natal, como parte do
programa de mesmo nome, patrocinado pelo Governo do Estado. O CD, com 12 faixas, é um registro de músicas natalinas de grupos tradicionais de São Luís e
do município de Caxias. Gravaram o CD os grupos "Pastoral Filhas de Belém", "Pastor Estrela do Oriente", "Pastor do Menino Deus" e "Reis do Alecrim", de São
Luís; e Reisado "Careta", de Caxias.
Programação de Natal
O final do ano 2001, no Centro de Cultura Popular será de intensa atividade. Como vem ocorrendo em anos anteriores, a programação natalina será
aberta, no dia 14 de dezembro, com a exposição "IV Arvoredo: dê árvores à sua imaginação", resultado de um concurso de árvores de Natal alternativas,
confeccionadas com materiais não convencionais.
No dia 22, dez grupos de canto coral enfeitarão as ruas do Centro Histórico de São Luís, com a III Cantata Natalina, que consistirá em concertos em 07
igrejas do Centro da Cidade e Praia Grande, seguidos de cortejo dos grupos pelas ruas, animados pela Banda de Música do Bom Menino. No dia 23 será a vez
de oito grupos de Pastores e Reis saírem em cortejo pelas ruas do Desterro e Praia Grande, terminando com pequenas apresentações dos grupos na recém-
inaugurada praça Nauro Machado, na Praia Grande. Participarão do cortejo a Pastoral Filhas de Belém, o Pastor do Menino Deus, o Reis do Alecrim, Reis das
Nuvens, Reis Sempre Viva, Reis do Oriente, Reis das Flores (Tajaçoaba) e Reis das Flores (Porto Grande).
A programação terá continuidade com o Natal do Interior, no dia 29, com o cortejos dos grupos de Pastores dos municípios de Guimarães e Penalva,
Reisado careta, do município de Caxias, Reis da Lapa Mocidade, do município de Primeira Cruz e Reis da Paz, do município de São Benedito do Rio Preto. O
cortejo também saiu do Largo da Igreja do Desterro, seguindo pelas ruas do bairro até a Praia Grande, onde, na praça Nauro Machado houve pequenas
apresentações dos grupos.
Queimação de Palhinhas
No mês de janeiro, o Centro de Cultura Popular vai abrir sua programação de atividades com o tradicional ritual de queimação de palhinhas, com a
participação da Pastoral Filhas de Belém, de Dona Maria das Dores Pereira, do bairro Rio Anil, e do Reis do Oriente, de Domingos Tourinho, do bairro Cruzeiro
do Anil, no dia 10. No dia 11, haverá uma ladainha cantada por Dona Teté e a cantora Rosa Reis, com acompanhamento de músicos tradicionais, seguida da
queimação de palhinhas. Após o ritual será servido um coquetel típico com chocolate, doces e bolos da culinária maranhense.
Perfil Popular:
Francisco Naiva
Márcia Mendes*
Considerado um dos grandes ícones da cultura popular do Maranhão, Francisco Naiva, ou Seu Naiva, como é mais conhecido, destaca-se como
divulgador do bumba-meu-boi de orquestra do Maranhão.
Nasceu no dia 01 de março de 1932, no povoado de Santa Maria, no município de Axixá-MA. Menino pobre, filho de pais separados, que trabalhou,
muito cedo para sua sobrevivência, com sua mãe, na roça. À tarde, juntava andiroba para fabricar sabão. Em decorrência dessa atividade, estudou até a 4ª
série do ensino fundamental. Muitas vezes freqüentava a escola somente no 2o semestre, período em que não dava andiroba. Na sua adolescência foi morar
com seus pais, onde passou a trabalhar com pedras de calçamento.
Aos 18 anos, já morando com seu pai em Monte Alegre, casou-se com a senhora Maria José Gomes, onde nasceu a sua primeira filha. Nunca foi de
freqüentar muitas festas, porém a sua paixão pela música e o bumba-meu-boi manifestaram-se muito cedo. Seu Naiva nos revela que a sua paixão pelo piston
foi aos 22 anos, quando, pela primeira, vez viu o seu mestre José Linhares tocando. A partir daí, pediu ao seu pai que comprasse o instrumento e que aos
poucos lhe pagaria. Em seguida, procurou o senhor José Linhares para pedir que lhe ensinasse. Durante o dia trabalhava, e à noite ia religiosamente tomar a
sua lição. Enfrentou muitas dificuldades, mas a sua grande vontade de aprender fez com que em seis meses começasse a tocar.
O bumba-meu-boi começou a fazer parte da sua vida em 1956 no grupo de Genésio Gomes, de Santa Rosa-Axixá. Nos anos seguintes participou de
outros grupos, pois os bois de interior costumavam ser organizados por pessoas que faziam promessas, ou porque gostavam e realizavam-se nos mais diversos
povoados da região do Munim.
Em 1959, seu Naiva organiza o seu grupo, com recursos próprios e com a denominação de bumba-meu-boi de orquestra de Axixá. E a partir daí inicia
sua trajetória como organizador e músico do grupo. Nesse mesmo ano, fez apresentações em São Luís e participou de concursos realizados no João Paulo e
Bairro de Fátima, nos quais foi classificado.
Em 1960, Seu Naiva veio morar em São Luís, ocasião em que também entrou para o quartel, onde descobriu sua terceira paixão, a banda da polícia
militar; pois recorda o Seu Naiva que, ao desembarcar da lancha vinda de Axixá, próximo ao Convento das Mercês, perdia horas ouvindo o batalhão de músicos
da Polícia Militar. Com isso o seu desejo de compor esse grupo logo surgiu, levando-o a fazer os testes para ingressar na Polícia Militar. A partir daí, Seu Naiva,
além de comandar o bumba-meu-boi de Axixá, passou a tocar em orquestras que animavam festas de São Luís e interior a exemplo do Lítero, SESC e festas em
São José de Ribamar e Morros, onde os contratos geralmente eram melhores.
Em dezembro de 1977, um natal triste para o Seu Naiva, pois ao fazer exames para subir de posto na sua carreira militar, constatou-se, nos seus
exames, que sofria de problemas no coração, o que o impossibilitava de realizar esforços físicos. Esse fato levou a ser proibido de tocar os seus instrumentos de
sopro, acontecimento que marcou sua vida e lhe fez chorar muito.
Hoje o grupo permanece comandado por esse guerreiro, que não só o organiza como também ainda coordena musicalmente, acompanhado do seu
pandeirinho. O bumba-meu-boi de Axixá, vai além das fronteiras do Maranhão, pois tornou-se referência na Cultura popular do Brasil. Possui um total de 13
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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE http://www.cmfolclore.ufma.br/Htmls/Boletim%2021.htm
LPs gravados e 8 CD's. Suas toadas ecoam não só nas vozes dos seus cantadores famosos, como também em artistas conhecidos nacionalmente. Por esse
trabalho incansável Axixá hoje possui um espaço (Viva Axixá) que visa abrilhantar mais ainda a sua manifestação e o seu povo dentro de sua cultura mais
autêntica.
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