Um Outro Olhar - Volume4
Um Outro Olhar - Volume4
Um Outro Olhar - Volume4
Volume IV
Organização:
Marta Martins de Aguiar
Maria Alice de Morais Fonseca
Regina Maria Melo Marinho Ferreira
2ª Edição
Contato:
Marta Martins
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Valéria
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APRESENTANDO...
P. Roberto Albuquerque, SJ
ÍNDICE
Pág. Pág.
01 - Deus Pai nos propõe 26 - Maria traz para a história
o ano da misericórdia................ 09 sementes de eternidade............. 72
02 - Batismo é compromisso 27 - Buscando força interior............ 74
com o futuro.............................. 11 28 - Dom Hélder:
03 - A beleza na diversidade............ 14 o mensageiro da esperança....... 77
04 - Gratuidade X reciprocidade...... 16 29 - Responsabilidade ética............. 80
05 - O invisível no visível................ 18 30 - O perdão que nos reconstrói..... 84
06 - O sentido do silêncio 31 - O privilégio do bem
messiânico................................ 20 não é exclusivo......................... 87
07 - Nós somos o limite de Deus..... 22 32 - O batismo nos faz profetas....... 89
08 - O Reino de Deus aqui e agora.. 25 33 - Deus nos convida ao
09 - A grande lição de banquete da vida plena............. 91
paciência e esperança................ 27 34 - Deus é contínua doação............ 94
10 - Nós não damos conta do amor.. 29 35 - Deus ouve o grito
11 - Nós temos sede de infinito........ 31 dos excluídos............................ 96
12 - Amar é desejar 36 - Somos iguais na radicalidade... 98
a vida para todos....................... 34 37 - O noivo do dia seguinte............ 101
13 - Jesus não deu conta................... 37 38 - A teologia nos descortina
14 - Jesus está sempre horizontes infinitos................... 104
em má companhia..................... 40 39 - Bem-aventuranças: a felicidade
15 - Ascensão é o mistério que ninguém nos tira................. 107
da ausência................................ 43 40 - Pontos de transcendência.......... 110
16 - Pentecostes cria comunidade.... 46 41 - A realeza que recebemos
17 - O símbolo traduz o amor.......... 49 no batismo................................. 113
18 - Lidando com as perdas............. 52 42 - Advento é tempo de confiança.. 116
19 - A outra margem........................ 55 43 - Atravessando o Rio Jordão....... 118
20 - Todas as leis se calam 44 - A transformação da história
diante do amor.......................... 57 começa no mistério do
21 - A acolhida do saber ouvir......... 60 coração de Deus........................ 120
22 - A semente de trigo que 45 - A arte de formar-se................... 123
guarda a nossa esperança.......... 62 46 - Espiritualidade inaciana............ 142
23 - Só descobrimos o 47 - Deus Pai.................................... 156
que já temos.............................. 65
24 - A grande rede que
procura bondade....................... 68
25 - Eucaristia é participar da
intimidade de Deus................... 70
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“Deus é aquele que modifica o nosso modo de olhar”
(Pe Libanio)
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DEUS PAI NOS PROPÕE O ANO DA
MISERICÓRDIA (Lc 2, 16-21)
Se olharmos para os astros, todos os dias são iguais. Os astros, serenos
pelos espaços siderais, não se perturbam em seus movimentos. Mas, se
olhamos os seres humanos, os dias são diferentes. Precisamos marcar os
dias com símbolos para que, de repente, acordemos e percebamos que a
nossa vida tem sentido, que muda e modifica-se, conforme a passagem do
tempo.
Hoje nós vivemos um dia marcante, um dia divisor. Um ano termina
e outro começa. Como dizia na celebração penitencial, os romanos já
tinham percebido isso. De tal maneira que, no mês de janeiro, cultuavam
o deus Janus, – daí vem janeiro – que tinha duas caras. Uma voltada
para o passado, o ano que terminava, e outra voltada para o futuro. Eles
precisavam disso. Os pagãos tinham muito medo e, quando olhavam para
o céu, viam aquele vazio imenso, viam os deuses ameaçando. Até que
veio esse Menino e mudou tudo.
Portanto, não é o primeiro de janeiro que mudou o mundo, mas
o vinte e cinco de dezembro. É ele que lança luz sobre o primeiro de
janeiro, que seria vazio se não houvesse vinte e cinco de dezembro. E,
para mostrar que primeiro de janeiro é a continuação do Natal de Jesus, a
liturgia coloca, para ocupar este dia, a figura maravilhosa da Santa Maria,
Mãe de Deus. Antes era a festa da circuncisão do Menino Jesus. Paulo VI
dizia para si mesmo que, se no Natal já se enfocava Jesus, como também
no dia primeiro, era hora de colocar um toque feminino para iniciar o ano.
Tirou a circuncisão de Jesus, apesar de ainda permanecer no Evangelho
que lemos agora, e deixou a festa da Virgem Maria, com este título tão
bonito que os portugueses tanto gostam – Santa Maria, Mãe de Deus! É
esta festa que vai iluminar este ano que começa.
Eu entendo o começo de um ano como se Deus chegasse aqui nesta
igreja e nos desse uma argila mole. Todos nós receberemos de Deus essa
argila e Ele nos dirá que ela nos é dada para que possamos, durante o ano,
moldar aquela figura que queremos. No final do ano teremos moldado
os nossos desejos. E neste ano especialmente, teremos um trinta e um de
dezembro tremendo, pois vamos atravessar não só o ano, mas o século e o
milênio. Temos todo o ano para trabalhar essa argila. O que vamos fazer
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com ela? Essa é a grande interrogação neste primeiro dia do ano, sobre a
qual vamos trabalhar.
O papa nos coloca neste ano a figura de Deus Pai Misericordioso,
para que possamos moldar essa argila com a misericórdia. Talvez seja
a virtude de que mais necessitamos. Misericórdia, em primeiro lugar,
com nós mesmos. Será que pensamos um dia que necessitamos desse
olhar misericordioso, não só de Deus, mas de nós para nós mesmos, para
reconciliarmos o que há de mais profundo dentro de nós? Muitas vezes é
essa fissura, essa ruptura, esse corte interior, essa esquizofrenia que nos
divide e que é causa de tanto sofrimento, de tanta dor.
Às vezes queremos ser felizes, alegres, mas parece que o lado direito
é alegre, o lado esquerdo é triste, e vice-versa. Talvez nunca consigamos
ser totais numa ação. Parece que fazemos uma coisa e queremos outra.
Estamos felizes, pensando que amanhã estaremos infelizes. Estamos no
domingo, já pensando na segunda-feira. Sempre há essa insatisfação, essa
divisão dentro de nós. E o Pai é que nos reconcilia. Por isso, o sacramento
ligado à celebração do Pai é a reconciliação. Tenho a impressão de que hoje
a Igreja acentua, não o sacramento da confissão, porque dá a impressão
de que o importante é a gente se confessar, falar para fora e ir embora. O
importante não é falar o pecado para o padre, mas nos reconciliar com a
raiz última do nosso ser, que é Deus. O Pai e a reconciliação são os dois
elementos que vão nos dar essa integração interior, a nossa imagem, a nossa
figura, a nossa Pietá. Seremos o grande Michelangelo (*), esculpindo essa
Pietá para, no fim do ano, tê-la diante de nossos olhos, com a beleza dessa
figura do Pai da Misericórdia.
Qual é a grande virtude que nos é pedida este ano? No primeiro
ano de preparação para a virada do milênio foi a fé. O facho que ilumina
a nossa estrada. A esperança veio logo a seguir e é o holofote que lança a
luz lá no futuro. A caridade é a que constrói, é a força maior. Este é um ano
belíssimo do Pai, da reconciliação e do amor. Se essas três forças da nossa
argamassa forem trabalhadas, teremos uma belíssima escultura. Amém.
(01.01.99)
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A BELEZA NA DIVERSIDADE
(1Cor 12, 4-11)
Apesar de o Evangelho ser muito bonito, a orientação da Igreja do
Brasil para esses próximos anos, é que preguemos sobre a segunda leitura,
que hoje é a primeira parte da epístola aos Coríntios e, depois, ao longo de
todo o ano, os Atos dos Apóstolos.
A Igreja do Brasil tinha preparado o projeto “Rumo ao Novo
Milênio”. Atravessamos o milênio, com tanto perigo, mas chegamos. Esse
projeto acabou e se pensa em outro: “Ser Igreja no Novo Milênio”, que
quer oferecer aos fiéis a reflexão, de modo especial, sobre os Atos dos
Apóstolos. Mas ainda não começamos a lê-los na liturgia, o que se dará
dentro em breve. Sobre eles, somos convidados a refletir. Neste ínterim,
ficamos agora com a epístola aos Coríntios. Vamos começar por localizá-
la, ver a sua importância e atualidade .
Corinto era uma cidade na Grécia, porto marítimo, uma espécie de
encruzilhada de culturas. Como em todo porto, pessoas de todos os países
passavam por lá. Uma cidade bastante devassa, perdida moralmente,
e dentro dela surge uma comunidade cristã muito fervorosa e muito
carismática. Paulo, de certa maneira, incentiva, dizendo que onde está
o Espírito está a liberdade, e realmente as pessoas se entregavam aos
delírios espirituais. Há uma grande efervescência de carismas. Paulo leva
um susto e tenta moderar os devotos.
É interessante notar a pedagogia da Igreja. É sempre uma pedagogia
da balança. Quando a balança pesa muito de um lado, força-se do outro,
para que ela chegue ao meio. E assim vamos nós de prato em prato,
subindo e descendo ao longo da história. Paulo viveu essa experiência de
dar incentivo aos carismas pessoais, como vimos agora. Cada um traga
o que tem, o que sabe, o que conhece, as suas qualidades. Faça aparecer,
realize os seus dons. Agora vem o problema. Lá havia uma divisão muito
grande. Até parece o Brasil! Havia classes. Os pobres passavam o dia
todo trabalhando e só podiam celebrar à tarde ou mais à noite, quando
voltavam para casa. Enquanto isso, os que não trabalhavam e que
viviam dos seus bens, podiam celebrar, comer, beber. Paulo percebeu
que havia essa desproporção e começa a ficar preocupado. De um lado,
incentivava os talentos, os dons, as qualidades, exatamente como faz o
14
sistema neoliberal. Incentivava ao máximo as qualidades das pessoas,
para que se desenvolvam e possam produzir com mais eficiência, com
mais competência. É a cultura, por excelência, da sanidade, do valor, das
qualidades, do triunfo, das elites, dos puros, dos melhores.
De repente, Paulo leva um susto. Isso nada tinha a ver com Jesus,
em sua experiência profunda. É certo que tenho que valorizar os talentos,
mas se isso se volta para o proveito pessoal, individual, para o meu gozo,
o meu prestígio, a minha fama, a minha honra, o meu poder, isso não é de
Jesus. De Jesus, é quando tudo isso é colocado a serviço da comunidade.
Nesse momento, Paulo encontra a chave que vai iluminar os dois mundos:
a chave interpretativa dos diferentes talentos das pessoas.
Poderíamos perguntar: se quem cria os talentos diferentes nas
pessoas é Deus, será que Ele quer a diferença? Será Ele a causa de haver
pessoas tão talentosas e outras tão pouco talentosas? Algumas tão ricas,
outras tão pobres. Umas nadando em felicidade e outras carregando cargas
pesadíssimas? Será Deus a fonte, a origem de tudo isso? Paulo vai nos
dizer que essa fé é alienante. Ela prestigia os poderosos, os glorificados, os
talentosos e despreza a plebe, as massas, os excluídos. Será isso que Jesus
vem nos ensinar? Paulo diz que não. Todo talento, toda qualidade, todo
bem é para o crescimento da comunidade. Se for um talento espiritual,
que seja para o crescimento espiritual da comunidade. Se for um talento
intelectual, que seja para o crescimento intelectual da comunidade. Se for
uma habilidade, que essa habilidade ajude a comunidade, para que todos
possam usufruir. Que as pessoas que tenham qualquer talento, sintam-
se convocadas a reparti-lo. Aí não haverá perigo, porque a diversidade
é a coisa mais linda que existe e seria terrível se o mundo fosse uma
pura igualdade. Todo mundo xerox de todo mundo. Seria uma monotonia
terrível! Tudo cinzento, sem as cores. O preto, o branco, até o azul, se
precisar dele (*). Cada cor tem o seu lugar, cada beleza tem o seu lugar,
cada diferença tem o seu lugar. Tudo isso para que o conjunto possa ser
mais rico. E o conjunto é a comunidade eclesial, é a comunidade municipal,
é a comunidade estadual, nacional, mundial e, como pretendemos agora, a
grande comunidade cósmica. Para isso, Paulo nos convoca. Coloquemos
os nossos talentos à disposição. Amém. (13.01.2001)
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GRATUIDADE x RECIPROCIDADE
(Lc 6, 27-36)
Esse é um processo muito longo. No começo, por um mal que
recebíamos, tínhamos que fazer dez, vinte ao outro. Matava-se um e
vingava-se em dez ou quinze. Hitler, mais recentemente, quando um
soldado alemão era morto, pegava dez civis inocentes e fuzilava. Israel
faz muitas vezes isso com os Palestinos. Os Estados Unidos fizeram com
Cuba. Um povo pobre e miserável que enfrentou o gigante, sofreu um
boicote que dura até hoje. Essa é a fase bruta e animal do ser humano.
Num segundo passo – ainda não chegamos lá, pois ainda há muito
bruto solto por aí – chegou a segunda lei: a lei de Talião – “olho por olho,
dente por dente”. Isso foi um progresso, um avanço porque antes eram
dez olhos para cada olho. Agora empatou – um por um. E essa lei valeu
para Israel, ainda no Antigo Testamento. Tratar bem os amigos e mal os
inimigos – 1 X 1 - sempre empate.
O último passo da história da humanidade foi dado por Jesus, e
estamos longe de chegar lá. Ele diz que não devemos nos vingar. Não
mais olho por olho, mas perdoar os que nos ofenderam. Esse é o ponto
próximo da humanidade, e ainda não chegamos lá. Está aí a recomendação
de Jesus. Talvez haja alguns heróicos que consigam, ao longo de sua vida,
viver essa experiência do perdão gratuito a quem o ofendeu, sem mais.
Sem vingança, sem cobrança, sem pedir nada em troca. Mas isso parece
coisa rara.
Quando eu lia esse Evangelho, pensei em como estamos longe
de viver o que Jesus nos propõe: a gratuidade no amor. O máximo que
conseguimos é a reciprocidade. O marido faz uma gentileza à sua esposa
e fica esperando a volta, e vice-versa. A mãe faz uma coisa para um
filho e logo fica esperando um presentinho, um beijinho de volta. É um
comerciozinho. Não é isso que Jesus quer, mas que a esposa faça um gesto
gratuito para o esposo, para o filho e feche a janela. Não espere volta não.
Nós buscamos o empate, e o amor não é empate. O amor é gratuidade. Se
alguma coisa vier do outro lado, é festa.
Se conseguíssemos viver isso, a vida seria uma felicidade
imensa. No dia em que descobrirmos a gratuidade do amor, faremos as
experiências mais lindas. Quem não descobriu ainda não viveu. Isso vale
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para os namorados, os amigos. Como é difícil! Estamos sempre cobrando,
querendo uma resposta. Vivemos em condicionamentos, esperando
sempre a resposta, como nos reflexos condicionados. Vivemos ligados aos
reflexos condicionados dos presentes, da amizade, do carinho e não da
gratuidade.
O Evangelho de hoje quer nos ensinar isso: a gratuidade livre,
fácil, tranqüila, como a água que escorre da fonte. Porque, se formos
gratuitos, receberemos de volta. Não receberemos pelo comércio, mas
pela gratuidade. Seremos gratificados, não pelas cobranças, mas pela
gratuidade. Quando as gratuidades se somam é uma maravilha, porque
não têm limites. A cobrança tem. Se você tem dez reais, pode comprar
uma mercadoria determinada. O dinheiro rende muito, mas a gratuidade é
infinita, não tem limite. Como custa-nos aprender! Ficamos pensando em
perdoar os inimigos e esquecemos de praticar esse Evangelho em casa,
no trabalho, na escola. A professora tem um espaço gigantesco para a
gratuidade diante dos alunos, que nunca irão agradecer porque, muitas
vezes, são broncos. Passamos o ano inteiro dando aulas e algum aluno se
dirige a nós para agradecer? E fazemos isso na gratuidade e na alegria.
Quando um aluno agradece, levamos um susto. Quando a gente recebe
é uma alegria enorme. Mas se tudo está contabilizado, não há surpresa
nenhuma. O rico é mais infeliz, porque sabe que recebe muita coisa, mas
que também há muita cobrança. Por isso o sorriso do político é todo ele de
matéria plástica, porque sabemos que é sempre em troca de voto. Não tem
nada de vida, porque é um sorriso e um voto, um voto e um sorriso. Não é
um sorriso limpo, que brota como água cristalina, que jorra para a vida.
Hoje é carnaval. Que seja um carnaval tranqüilo, e não na cobrança,
no jogo. Comércio é para as coisas materiais e a graça é gratuita, é para as
relações com as pessoas. Amém. (08/02/97)
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O INVISÍVEL NO VISÍVEL
(Mc 2, 1-12)
Esse milagre adquire uma importância toda especial porque reflete o
que chamaríamos, em termos um pouquinho mais sofisticados, a estrutura
sacramental da existência humana e da própria vida de Jesus.
Dizer que a nossa estrutura humana é sacramental significa que
nós, seres humanos, somos muito interessantes. Temos todo um mundo
interior: o que pensamos, o que queremos, o que desejamos. Ninguém
sabe o que passa pela nossa cabeça, pelo nosso coração. Temos todo
um mundo invisível, impenetrável, insondável. Aí está a nossa estrutura
sacramental. Manifestamos, mostramos para fora este interior, este
invisível, através dos sinais. Ora sinais conscientes, queridos, praticados;
ora sinais inconscientes.
Só para dar um exemplo, a Psicanálise percebe exatamente aqueles
sinais que refletem o nosso interior e que não queremos que reflitam. São
os famosos atos falhos, que acontecem com todos nós. Esquecemos datas,
trocamos nomes. Aí Freud (*) delira, porque estamos continuamente
soltando o nosso interior. Às vezes de modo explícito, outras vezes
inconscientemente. Pelos gestos, pelos sorrisos, pela maneira de andar.
Não sabemos, mas estamos nos manifestando. Nossa vida é totalmente
sacramental.
Uma das coisas importantes que aprendi na minha vida é observar, e
observar muito; olhar muito as pessoas e ver como cada rosto, cada olhar,
cada gesto, como certa timidez ou certa abertura vai refletindo aqueles
rancores do interior. Como se nosso interior fosse todo envolvido em
papel e fôssemos nos desenrolando numa série de gestos, de palavras, de
ritos e descobrindo o interior uns dos outros.
Hoje Jesus fez isso de modo explícito. Ele fez tantos milagres e
muitos não perceberam o sentido. Viam a exterioridade do milagre,
mas nunca foram fundo, no seu sentido maior. É difícil e hoje Ele quis
rasgar o véu do sinal, para que pudéssemos penetrar mais fundo, para que
soubéssemos que o Filho do Homem tem poder na Terra para perdoar os
pecados – olhe aí o invisível. Ninguém podia ver os pecados, ninguém
podia ver que Ele era Filho de Deus, ninguém podia ver a infinitude de seu
poder. Isso é invisível. E Ele diz para o paralítico: “Eu te ordeno: levanta-
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te, toma a tua cama e vai para a casa!” Isso é o visível. Ele se levantou,
tomou a cama e saiu. Ao verem esse gesto externo, todos puderam ir mais
fundo e perceber que, por trás, estava o poder de perdoar os pecados.
Em outras palavras, todos os milagres de Jesus querem ir mais fundo
do que o sinal visível. Assim, em Caná (**), transformou água em vinho.
Transformar água em vinho é bonito, é gostoso, mas é pouco demais para
Jesus. Água é cotidiano, vinho é vida, é festa. Água é batismo, vinho é
eucaristia. Aí João joga com todos os sinais de coisas profundas. Assim
Jesus faz com que a vida do cristão, que é água, que é batismo, seja também
eucaristia. Muda água em vinho. Todas as vezes que vocês sobem até aqui
para comungar, transformam a água do batismo, que os fez cristãos, no
vinho da eucaristia. Aí está o milagre de Caná.
Ele também andou sobre as águas (***). Água é símbolo da
mobilidade do mundo, símbolo da instabilidade da existência, símbolo do
perigo. Ele caminha sereno sobre as águas. Pedro afunda e Ele o segura
pelas mãos. Símbolo de todas as vezes que afundamos e precisamos da
mão do Senhor que nos levanta.
Cada milagre de Jesus é a visibilidade do fato, mas muito mais
profundo. É o mistério insondável do seu coração, que vai-se desvelando
para cada um de nós. Assim somos nós. Em cada dia, em cada gesto,
em cada palavra refletimos o que está dentro de nós. E assim vamos nos
deixando conhecer, somos também conhecidos por outros e os conhecemos
também. Vamos assim criando a nossa convivência humana e fraterna.
Amém. (19.02.2000)
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O SENTIDO DO SILÊNCIO MESSIÂNICO
(Lv 13, 1-2.44-46/Mc 1, 40-45)
A liturgia quer ser, além de celebração da vida, da morte e
ressurreição de Jesus, um momento de educação, de catequese, momento
de homilética, onde as próprias leituras nos ensinam. A escolha das leituras
não é arbitrária. Ela é pensada e dosada. A de hoje é muito interessante,
porque coloca um texto do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento,
falando do leproso, para que possamos entender alguma coisa bastante
difícil, sobretudo por causa de nossos irmãos evangélicos. Nós não
podemos entender a Escritura ao pé da letra, mas devemos vê-la como
um processo, aonde Deus vai tirando o véu e mostrando a realidade cada
vez mais clara. No início, Deus vai tirando o véu e aparece uma realidade
muito escura, porque o povo ainda não podia ver claro. Vai lentamente
tirando esse véu até aparecer mais claramente, quando Jesus chega.
Vejamos como o leproso era tratado no Antigo Testamento. Após
a leitura dizemos “Palavra do Senhor” e damos graças a Deus. Será
então Palavra de Deus essa maneira de tratar o leproso: obrigá-lo a ter
os cabelos desgrenhados, impedi-lo de aproximar-se da cidade, carregar
uma campainha para que todos se afastem? Quando as crianças viam um
leproso saiam disparadas de medo. Será isso palavra de Deus? É, mas
desde que a entendamos num processo. Ainda era um povo rude, que não
compreendia bem as coisas. Ainda era uma situação em que o processo
da medicina, da saúde, era muito primitivo. O que está por trás é aquela
grande idéia da revelação: Deus quer a vida! Naquele momento, querer a
vida era evitar que a doença se espalhasse. Jesus depois irá dizer qual o
grande projeto de Deus sobre a doença. Não é o afastamento, a exclusão,
mas a cura. Jesus vai tocar o leproso. No Antigo Testamento era proibido
tocar, e agora Jesus o toca. Ele não infringe a lei, mas revela o seu sentido
mais profundo, que é a vida. Lá, a ordem era não tocar, agora a vida é
tocar. Trocando de não tocar para tocar, Jesus se manteve fiel ao princípio
fundamental da revelação: Deus quer a vida de todos!
Outra coisa nos deixa perplexos: Jesus proíbe que ele fale e ele
desobedece. Parece brincadeira. Será que Jesus os proibia de falar, ou o
evangelista escreve esse texto depois da ressurreição de Jesus e, muito
mais inteligente do que nós, quer passar algo mais profundo? Certamente
20
não era uma proibição de Jesus para não divulgar o milagre. É o momento
da revelação que Marcos quer comparar com o antes e depois da
ressurreição. Antes da ressurreição é o segredo de Jesus. Ele ainda não
mostrara o que era e eles nunca perceberiam o alcance dos seus milagres,
nunca perceberiam quem era aquele que curara o leproso. Os olhos dos
discípulos, do povo de Israel ainda estavam vendados, porque o grande
acontecimento ainda não viera, que é a ressurreição de Jesus. Esse jogo de
silêncio e divulgação são dois momentos da revelação. O silêncio é antes
da ressurreição e a divulgação é depois.
Hoje somos chamados a proclamar o Evangelho, como diz o
próprio Mateus, sobre os telhados. Hoje temos obrigação de anunciar.
Naquele momento em que Jesus ia revelando lentamente quem Ele era,
os apóstolos foram aprendendo. Esse silêncio, esse segredo messiânico é
um segredo didático, pedagógico, para que, no momento em que o povo
estivesse maduro, a verdade aparecesse com clareza.
Isso vai acontecer também na nossa vida. Algumas vezes teremos
que calar a Palavra de Deus, teremos que omitir algum fato importante,
porque as pessoas não estão maduras para ouvir. Temos que esperar o
momento da graça para dizer aquela palavra. Muitas vezes os pais em
relação aos filhos querem ensinar tudo de uma vez, sem perceber que o
processo educativo é lento, que as verdades da Escritura, as verdades de
Jesus não são para serem ditas agora a todos ao mesmo tempo. Há um
canto muito bonito que diz: “a palavra certa, para a pessoa certa, na hora
certa”. O segredo messiânico é esse Jesus que espera a hora certa, para a
pessoa certa, com a palavra certa. Amém. (26.02.2000)
21
NÓS SOMOS O LIMITE DE DEUS (Lc 4, 1-13)
No início da Quaresma a liturgia nos apresenta este Evangelho que
foi, para os cristãos da Igreja primitiva, muito difícil de ser assimilado.
Eles, que conheceram Jesus ressuscitado, portanto, glorioso, em todo o seu
esplendor de Filho de Deus, tiveram que reconhecer que Ele foi tentado
pelo demônio. Realmente era algo espantoso! Se não fosse a insistência
dos três evangelistas, falando sobre isso, não acreditaríamos. Acharíamos
que Jesus teria passado pela história em brancas nuvens, como esses anjos
que flutuam por aí, sem que fosse tocado pelas lamas da terra e da história.
Pelo contrário, Ele quis participar da nossa condição humana.
Uma das categorias que a filosofia moderna trabalha muito é a
famosa condição humana. A palavra é muito profunda em filosofia. Quando
queremos falar de condição humana, queremos falar dessas realidades que
carregamos do nosso passado biológico e da nossa inserção na história.
São dois veios que se unem na nossa existência. Temos um passado que
explica muito o que somos. Tínhamos muita dificuldade de aceitar, mas
hoje é uma evidência científica: nós viemos do animal. Não viemos de
nenhum pó bonitinho que Deus pegou e soprou, uma argila de onde
saiu um Adão lindo, uma Eva ainda mais bonita. Viemos de um animal
muito próximo do macaco. Viemos grotescos, rudes, brutos; apenas com
uma pequena luz iluminando aquela brutalidade gigantesca, que era a
consciência e a liberdade. Esse animal foi-se desenvolvendo e até hoje é
muito forte em nós.
Hoje mesmo conversava com um jovem, nos seus vinte e poucos
anos, que foi brincar o carnaval em Porto Seguro, na Bahia. Ele me dizia
que ficou assustado com a violência. Em pleno carnaval, de folguedos
e alegria, tanta briga, tantos acidentes. É como se puséssemos alguns
ratinhos juntos e eles ficassem agressivos. Os seres humanos, quando
estão amontoados, adquirem uma agressividade tremenda. Essa é a nossa
raiz animal.
Daí para a tentação do demônio não precisa muita coisa não. Não
precisa vir demônio de fora. Basta a nossa animalidade que é feroz, que
é terrível, que quer destruir, acabar com o outro, que qualquer palavrinha
é capaz de fazer estourar. Não aconteceu lá em Brasília de alguns jovens
encontrarem um mendigo e colocarem fogo? Isso é mais do que animal.
E são filhos de gente importante, alunos do Colégio Marista. Não são
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jovens de nenhuma favela escondida, mas conheceram o berço dourado
da burguesia. São esses animais que pegam carros e motocicletas e saem
por aí voando, fazendo barulho em plena madrugada. As vacas mugem,
mas, em geral, em horas mais discretas. Os galos cantam e cantam bem,
nos agradam. Os homens fazem barulho, ruídos, pegas de carros. Tudo
isso é animal.
Quando falamos da tentação de Jesus, não precisamos imaginar
alguma coisa muito sofisticada. É essa natureza que temos. Agora, nesse
mês passado, foi julgado um grande criminoso de guerra. Já está velho,
porque a guerra acabou em 1945. Se foi criminoso em 45, já é um homem
provecto, com mais de oitenta anos. Descobriram-no agora e levaram-no
a julgamento. Era engenheiro, não um homem de uma cultura qualquer,
encarregado dos fornos para queimar os judeus. Ao ser perguntado se não
sentira nenhuma emoção ao mandar tantos homens, mulheres e crianças
para os fornos de cremação, ele responde que estava tão preocupado em
fazer funcionar os fornos, que não se preocupara com problemas éticos.
Um cavalo é incapaz de fazer isso, mas o ser humano é capaz.
Quando falamos em tentação, não precisamos pensar em diabo.
Basta pensar na nossa natureza e nos deter em Sigmund Freud (*). Ele
vasculhou um pouquinho os subúrbios da nossa existência, que ele
chamou de inconsciente, de porão, e disse que naquele porão todos os
animais estavam escondidos. De repente, colocam as cabecinhas de fora.
É o nosso inconsciente que nos leva a tanta violência e desrespeito.
A tentação é uma condição humana, é o nosso limite. Mas ao lado
desse animal que somos, Deus está o dia todo insistindo para que ele se
domestique. Ele não nos deixa um instante sequer. Por isso, estão sempre
nascendo umas nuvenzinhas na nossa consciência. Depois de um dia de
burradas, vamos para a cama, começamos a rolar de um lado para outro
e ouvimos Deus nos dizendo para acordarmos. Ele só quer uma coisa
– guardem isso – a nossa felicidade. Ele é o mais interessado.
E todas as vezes que fracassamos, o primeiro a sentir é Ele. O
Aurélio (**) de Deus tem dois verbos: amar e perdoar. Não conhece
julgar, vingar. Estes verbos não existem no Aurélio de Deus. Se Ele só
quer nos perdoar, nos ajudar, não somos melhores porque nós mesmos
impedimos. É como o coração que quer bater, mas está cheio de colesterol
nas veias, não deixando o sangue passar. É bebida demais, é chocolate
demais que impedem o sangue de circular, mas o coração continua. Deus
23
é esse coração forte, que está pulsando em cada um de nós. Se entupirmos
as veias, Ele não pode fazer nada. Mas se desentupirmos as veias o sangue
voltará a circular, nosso cérebro será iluminado e a nossa inteligência
ficará lúcida. Da parte de Deus nada faltará.
Deus é muito inteligente, nós é que não entendemos. A lei mais
importante para nós é a lei da gravidade, e também a que mais nos causa
problemas. Sem ela estaríamos flutuando por aí afora. Ela faz com que
possamos estar sentados, andar. Mas vá tentar sair pela janela de um
quinto andar. A mesma lei da gravidade, que é a nossa força, é também o
desespero de muita gente. Pela mesma lei, podemos cair e morrer. Não por
culpa de Deus. Nós podemos usá-la bem ou mal.
Muitas vezes somos nós que vamos forçando o projeto de Deus, que
quer sempre o nosso bem, mas não nos damos conta. Sobretudo, os jovens
que pensam que Deus é um desmancha prazeres. Com os prazeres que
fazem bem, Deus é o primeiro a estar feliz. Mas com aqueles que fazem
mal, que fazem contrair doenças, morrer com vinte e poucos anos, é claro
que Ele não pode estar feliz. Ele não quer a morte de ninguém. Quando o
prazer destrói a saúde de alguém, quando um jovem entra na droga, Deus
pode ficar feliz? Ele não proíbe a droga, mas sofre ao ver um jovem acabar
sua vida aos vinte e poucos anos, como qualquer pai sofre ao ver o seu
filho acabando sua vida antes do tempo.
O coração de Deus é um pai e uma mãe muito maior do que os
nossos pais e mães aqui da Terra. A única tristeza dele é nos ver sofrer. Ele
nunca terá ciúmes do nosso amor, da nossa felicidade. Somos nós que nos
fazemos mal, no pecado, na tentação. No fundo, não machucamos, não
ofendemos a Deus. Nos ofendemos, ofendemos os nossos irmãos. Deus
está acima de tudo isso. Mas se machucamos um pobre, Ele fica triste por
nossa causa, não por si mesmo.
Que Deus diferente nós temos e tantos têm medo de vir à Igreja,
têm medo de encontrar Deus, fogem dele como se fosse inimigo. Ele é
o único que nos ama até o extremo, até o infinito. Os amigos só serão
amigos enquanto tivermos dinheiro e beleza. Mas Deus sempre estará ao
lado, mesmo quando estivermos no lixo da história. Quando todos nos
desprezarem, Ele não desprezará. Isso é Deus. O resto é brincadeira.
Amém. (28.02.98)
(*) médico austríaco, fundador da Psicanálise.
(**) referência ao Dicionário Aurélio
24
O REINO DE DEUS AQUI E AGORA
(Mc 1, 12-15)
Esse início do Evangelho de Marcos é bastante impactante. Tem
frases curtas e, sobretudo, o verbo escondido. Quer dizer que o tempo
chegou ao seu ponto máximo. É como se toda a história caminhasse para
chegar ao zênite, o ponto mais alto, e depois continuasse. Chegou esse
momento é o que podemos imaginar, hoje talvez com mais força ainda,
lendo o evangelista Marcos. Sabemos que essa história que preparou a
vinda de Jesus já levava mais de quinze bilhões de anos. É impressionante
a paciência infinita de Deus! É uma paciência gigantesca! Ele esperou
quinze bilhões de anos! Esperou mais de um milhão de anos de humanidade
para que o tempo chegasse à sua maturidade e aí o Verbo se encarnasse
e começasse a anunciar a Palavra. Completou-se o tempo! Chegou a
plenitude, o ponto último da história! E qual é o anúncio? O Reino de
Deus está próximo!
Esse próximo não é temporal, é geográfico, é espacial. Em português,
próximo tem dois sentidos: geográfico e temporal. Quer dizer, o Reino de
Deus está pertíssimo, está aí, já. Está junto de nós. Próximo é o mais perto
possível, é o superlativo de perto. Nós é que esquecemos a etimologia
das palavras. Jesus diz que o Reino de Deus está próximo. Para nós essa
expressão Reino de Deus é quase nada. Mas, para os judeus, significava
muito. Era a expressão mais forte que havia no vocabulário religioso de
Israel. Não poderia haver uma expressão mais carregada de sentido.
Reino de Deus não significa reino, como lugar territorial. Significa
a maneira como Deus entra na história e a conduz. A maneira como Ele
possui a história e, nela, se faz ativo. Quando Jesus disse que o Reino de
Deus estava próximo, os judeus abriram um olho imenso, pois era como
dizer que Deus agora estava aí. Mas Deus, aquele Javé que eles viram
no meio dos relâmpagos do Sinai, que fez os judeus atravessarem o Mar
Vermelho e entrarem na Terra Prometida? Aquele Javé, que para eles era
tudo?! Deus dos deuses, o Senhor absoluto da História, aquele que o povo
de Israel considerava gigantescamente distante de si?! O povo dizia: “não
fale Deus! Fale você, Moisés!” Eles temiam a voz de Deus. O povo tremia
diante de Javé. Chega Jesus e diz: “Ele está próximo!” Olhem que beleza!
Está juntinho de nós. “Sou eu. Eu sou a presença de Javé entre vocês”.
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Agora, o que podemos fazer? “Convertei-vos e crede no Evangelho”.
Outra palavra que foi esvaziada: conversão. Em grego, é uma palavra
bonita – é meta-noia. Significa uma mudança radical de mentalidade, da
maneira de pensar, de ver, uma nova maneira de compreender a realidade.
Isto é, a maneira de existir precisa ser mudada. Quando compreendemos
a realidade, a entendemos numa cosmovisão. Isso marca a nossa maneira
de falar, de andar, de dirigirmo-nos às pessoas. Tudo isso muda. Jesus diz
que temos que mudar a nossa maneira de conceber a história, as pessoas,
as relações com as pessoas e com o mundo. Não dá para continuar com a
mesma maneira de pensar a realidade.
Agora vem o mais bonito ainda: “Crede no Evangelho!” Crede que
agora vai chegar a grande notícia para todos nós. E qual é essa notícia?
Não estamos mais condenados, mas salvos. Não poderia haver notícia
maior. Não precisamos ter medo de inferno, de demônio, de exorcismos.
Talvez vocês estejam vendo no “Fantástico”, o Pe. Quevedo (*) falando
dessas coisas. Mas não precisam ter medo de macumba, de despachos.
Nada disso pode tocar o cristão. “Crede no Evangelho”, crede na boa
notícia! A boa notícia de que Deus está junto de nós. Se Ele está junto de
nós, de que teremos medo? Da morte, da distância, como diz São Paulo,
das forças da terra, de um desastre? Podemos ter medo, mas Deus está
ao lado. Estará ao lado do marido para consolar a esposa. Essa é a vida
humana. Enfrentamos riscos, temos dificuldades, mas com a certeza de
que, em todas essas situações, Deus está colado. É isso que nos dá garantia,
nos dá a segurança de continuar vivendo. Se não tivéssemos certeza
de que Deus está ao nosso lado seria terrível. Se não temos certeza das
coisas que acontecem aqui na terra, imaginem se não acreditássemos que
Deus está ao nosso lado? Em meio a tanta dificuldade, a tanto problema,
a tanto sofrimento, a tanta incerteza, esta certeza nós temos: “crede no
Evangelho, crede na boa nova, crede que Deus está próximo, crede no
Reino de Deus!” Esse agir de Deus na história, ao nosso lado, conosco,
para que construamos uma sociedade cada vez melhor. O Reino de Deus
acontece é em Vespasiano, com vocês participando da política, do serviço
social, da formação da realidade. Aqui é só o ensaio, porque a orquestra
final será ainda muito mais bonita. Amém. (11.03.2000)
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NÓS NÃO DAMOS CONTA DO AMOR
(Lc 22, 14-23.56)
Entramos nos umbrais da Semana Santa, essa solenidade que está
diante de nós e que a cada ano passamos com um olhar misturado. É um
olhar difícil! É difícil olhar para a paixão de Jesus porque, ao mesmo
tempo, vemos esse amor infinito de Deus, que entrega o seu Filho, num
gesto de generosidade e amor, mas também um gesto de dor. Entregar o
Filho não deixa de ser também uma paixão do Pai. Sempre imaginamos
que Deus Pai está feliz no céu e esquecemos que Ele também sofreu
a paixão de seu Filho. O Espírito também, de certa maneira, vive essa
semana de sofrimento.
Mas o que mais nos questiona é a razão do Senhor Jesus ter de assumir
essa humanidade. Será que Ele veio exatamente para sofrer? Será que
escolheu a humanidade para chegar até a cruz? Será que já, meninozinho,
brincava com a cruz, como tantos pregadores nos falavam? Não. Jesus é
como qualquer um de nós. Ele veio para estar conosco, para amar conosco,
ser feliz conosco, conviver conosco. Ele queria estar conosco! Fomos nós
que não o quisemos. Por isso celebrar a paixão é muito difícil.
Quantas vezes ouvimos tantas pessoas reclamando do quanto sofrem,
de quantos as odeiam, de quantos as discriminam?! Não fomos feitos nem
para odiar, nem para sermos odiados; nem para discriminar, nem para
sermos discriminados. Jesus quis conviver o dia-a-dia conosco, viver as
nossas alegrias, como viveu com Lázaro, com Maria, com Marta. Como
na festa de Caná, com tanta alegria, com tanto vinho e tantas amizades que
teve na Terra. Conheceu pessoas, amou homens, mulheres, crianças. Teve
sua afetividade exposta, entregue. O seu olhar era de ternura. Se pudesse,
teria vivido oitenta, cem anos.
Mas Ele tinha uma vocação, tinha uma missão e quis ser fiel a ela.
Quis dizer-nos algumas coisas, como os pais têm que dizer coisas pesadas
a seus filhos, e os esposos entre si. Jesus também teve que dizer, não para
o nosso mal, não para o nosso castigo, não para nos repreender. Muitas
repreensões no Evangelho são mais reflexos do amor do que da própria
vontade de Jesus. Uma das frases que mais me impressiona nos ditos de
Jesus é a proclamação das bem-aventuranças: “Felizes, felizes, felizes...”
Ele vai nos dizer o caminho da felicidade. Ele sentiu que a humanidade
29
seguia caminhos inversos, errados, que levavam à tristeza e à infelicidade
e teve pena de nós.
A humanidade, que já tinha mais de um milhão de anos, ainda não
aprendera a amar, vivia enroscada na sua animalidade. Os seres humanos
não tinham ainda aprendido o carinho, eram brutos, animais. Era preciso
que Ele viesse nos ensinar carinho, acolhida. Os apóstolos machucavam
as crianças. Ele veio nos dizer como devemos tratar uma prostituta com
o perdão. Ele veio nos ensinar como tratar um herege, alguém de outra
religião, de outra Igreja. A samaritana era uma herética, pertencia a uma
seita, e Jesus conversa com ela. Conversa sozinho com ela, o que, naquela
época, era quase um escândalo, de tal maneira que os apóstolos se espantam.
Ele continua tranqüilo, sereno, falando com ela. Ele foi fazendo estas
coisas e nós não demos conta do amor. Essa é a nossa grande derrota.
Li, certa vez, uma frase de um teólogo francês, que dizia: “A
humanidade fala tanto em amor, mas quando apareceu alguém que lhe
mostrou o que era amar, ela destruiu o amor”. Realmente, não damos conta
do amor. Preferimos a nossa animalidade. Olhem um pouco em volta, a
quantidade de violência, pelo simples gosto da violência, da brutalidade,
pelo gosto de ser animal.
Os fariseus não suportaram, Herodes não suportou e o Sinédrio
quis logo tirar Jesus da jogada, quando Ele começou a incomodar. Não
incomodava enquanto fazia milagrinhos que deixavam o povo admirado.
Mas Jesus simplesmente não disse uma palavra. Não criticou, não
xingou, não falou nada. Calou-se. Essa sua atitude mais e mais enfurecia
os poderosos. Curioso que o que mais incomodou as autoridades foi o
silêncio, o olhar que se deixava envolver pela força do Espírito, um olhar
de transparência infinita, que penetrava os corações. O olhar de Jesus
certamente destruía toda a realeza de Herodes.
Se quisermos aprender alguma coisa nesta Semana Santa, não será o
terrorismo, o sangue, mas o amor e a caridade. Amém. (04.04.98)
30
NÓS TEMOS SEDE DE INFINITO
(Jo 10, 1-10)
Cada vez que ouvimos um Evangelho pastoril e rural, mais sentimos
a distância cultural. Se eu perguntasse aqui quem já viu uma ovelha –
não na televisão – poucos levantariam o braço. Então, é mais uma coisa
que aprendemos no Evangelho. Mas hoje eu queria fazer uma reflexão
diferente, inspirada, é claro, pela leitura.
Vou começar com uma comparação. A história humana é como uma
grande correnteza. Imaginem o grande rio Amazonas. É como se, até o
século XVIII, as águas desse rio corressem lentamente, de tal maneira
que as pessoas, que nele navegavam, pudessem levantar a cabeça, olhar
em volta e conhecer as paisagens, porque dava tempo de ver. Iam todos e
podiam conversar mais tranqüilamente, porque a água ia muito devagar.
Olhavam, reconheciam as árvores, as casas, os portos porque as águas
eram lentas. A partir do século XVIII, houve uma reviravolta cultural
gigantesca. Quanto mais estudamos, mais nos espantamos. De repente,
o rio começa a se acelerar. Queremos olhar para as margens e já não
conseguimos enxergar. É como um trem em alta velocidade. As coisas
passam tão rapidamente, que não conseguimos ver. A partir das décadas
de 80/90, o rio adquiriu uma tal velocidade, que ficamos baratinados e
perdidos. Não conseguimos ver mais nada. É isso que a Filosofia chama
de pós-modernidade.
Quando a Filosofia fala de pós-modernidade, está falando da
consciência de que cada vez mais o movimento das mudanças é tão
acelerado que imaginamos que cada dia é diferente. Quando se liga uma
televisão, já esperamos surpresas. Se um jornalista repetisse notícias de
anteontem, já acharíamos sem graça. Um jornal de ontem já é velho, só
serve para o lixo. No domingo já queremos ver o de segunda-feira. Quem
tem internet já pode ler o jornal do dia seguinte. Vamos adquirindo uma
rapidez enorme. O que interessa para nossa reflexão é saber o que isso
provoca em nós.
Provoca uma quantidade imensa de efeitos. E como estamos na
corrente, temos uma dificuldade imensa de perceber. O filósofo é aquela
pessoa que consegue, de vez em quando, sair um pouco para a margem e
ver a correnteza passar com toda a velocidade. Pára e começa a analisar.
31
Estava lendo um livro de um filósofo francês sobre a família. Dizia
que até o século XVIII a família não se constituía por amor. Os casais
não se escolhiam mutuamente. As famílias é que decidiam, eram outros
interesses que decidiam: manter o patrimônio da família, a linhagem, a
tradição ou outra utilidade necessária, mas nunca o amor conjugal. Não
existia o que chamamos hoje de amor entre esposos. Poderia ser que
alguns casais acabassem se amando, mas outros, não.
Também entre pai e filho não havia amor. Um filósofo do século XVIII
diz que não se lembrava de quantos filhos teve e de quantos morreram. Dá
para imaginar um pai que não sabe quantos filhos teve? Os filhos não
tinham a mínima importância. Praticamente apenas o primogênito era
cuidado e os outros eram entregues às aias. O amor, o carinho entre pais
e filhos não existia. Uma coisa interessante é que eles não tinham medo
de morrer, porque não existia amor. Existia todo um senso de fatalidade,
de destino, que tornava a morte a coisa mais natural do mundo. Não havia
essa confusão de hoje: hospitais, UTI’s, velórios, nada disso.
Mas, na medida em que começamos a acelerar o processo histórico,
começamos a descobrir que cada um de nós é importante. Se eu não me
cuidar, se não cultivar minha identidade, serei levado, porque a correnteza
é muito forte. Começamos a criar cada vez mais essa consciência
individualista. Cada vez somos mais individuais positiva e negativamente.
Positivamente, escolhemos, decidimos, não queremos mais que outros
decidam por nós. Instâncias externas que decidiam sobre nossos destinos,
cada vez mais perdem força. A sociedade, a religião, o estado, a ideologia,
tudo isso vai mudando. Até o século XVI era a glória de Deus, depois veio
a pátria, a nação. E a última grande causa, que matou a autoridade e fez
com que tudo que viesse de fora não tivesse importância, foi a revolução
socialista que acabou em 1989.
De lá para cá, não há nada mais a não ser o individual. Não há
nenhuma grande causa que nos chame e atraia. Isso produz uma maior
consciência de nós mesmos, mas também não temos idealismos, não temos
coragem, não temos causa maior que nós mesmos e a vida fica muito cheia
de aborrecimentos. Queremos novidades atrás de novidades, mas nenhuma
delas nos satisfaz, porque são rápidas demais. É como se comêssemos
tanto doce e acabássemos enjoados. Estamos enjoados de TV Globo. Os
apresentadores ficam loucos em busca de novidades, ficam correndo o
mundo todo em busca de coisas raras, exóticas, porque só conseguimos
32
viver de surpresa em surpresa. Esse dia-a-dia normal nos aborrece, nos
cansa. Nos Estados Unidos já há tantos casos de assassinatos nas escolas,
e devemos pensar que os Estados Unidos é o Brasil de amanhã. Não se
assustem se nas nossas escolas, de repente, entrarem dois jovenzinhos
vestidos de preto e resolverem matar seus colegas.
É essa a realidade que nos cerca. Uma urgência de algo que não
sabemos definir, uma busca sequiosa de novidades, de surpresas, de sustos.
Deus nos criou para o infinito e, como não o encontramos, continuamos
buscando. Só que, sem introjetarmos valores verdadeiros, perderemos a
nossa identidade de seres humanos. Sem valorizarmos a ética, a beleza,
o bem que há em nós como seres humanos, a busca continuará e o vazio
jamais será preenchido por coisas, porque a nossa fome é de valores que
nos façam ser. Amém.(24.04.99)
33
AMAR É DESEJAR A VIDA PARA TODOS
(Jo 13, 31-35)
Só por essa página, valeu a pena Jesus ter vindo à Terra. Só que a
coisa é mais complicada do que a gente pensa. Talvez amor seja a palavra
mais falada, talvez o verbo mais sussurrado nos ouvidos dos amantes – eu
te amo, em todas as línguas do mundo. Mas talvez seja das realidades mais
difíceis de entendermos e, sobretudo, de vivermos. Como nós, que viemos
do amor, somos destinados ao amor, temos tanta dificuldade em amar?
Uma parte eu sei. Porque viemos do animal e esse é um problema sério.
Um dia fomos animais em cima das árvores. E acho que esse animalismo
ficou muito dentro de nós. É o cachorro que existe escondido e late de
vez em quando, que arreganha os dentes como essa fera que escondemos.
Apesar de um milhão e quinhentos mil anos de humanização, esse animal
ainda não está domesticado. Estamos vendo todos os dias nos jornais,
hoje mesmo no “Estado de Minas”, uma página inteirinha só de crimes,
e de crimes bárbaros, crimes de queimar crianças. Crimes horríveis,
desumanos, crimes de colocar seis milhões de judeus em fornos. E quem
praticou foram médicos, advogados, engenheiros, gente culta.
Hannah Arendt, uma socióloga conceituada, escreveu um artigo
sobre Eichmann, um famoso alemão nazista, que conduziu à morte
milhares e milhares de judeus. Depois da guerra ele fugiu, escondeu-se na
Argentina e, depois de muitos anos, os judeus descobriram-no, raptaram-
no e levaram-no para Israel. Condenado, foi executado porque havia
assassinado centenas de milhares de judeus. Hannah Arendt escreveu:
“Vocês pensam que esse é um monstro – como eu falava dos jovens de
Brasília – mas não é”. É um burocrata, um funcionário público como
qualquer um que está aí, nas nossas secretarias. Só que um funcionário
público que viveu naquele momento em que a Alemanha passava por toda
aquela loucura de assassinar judeus. Foi um eficiente burocrata do crime.
Um homem como nós, mas tinha um leão, um animal, uma fera dentro de
si e essa fera, de vez em quando, acorda.
É por isso que Jesus diz: “Eu vos dou um mandamento. Eu insisto
e dou ordem: amai-vos uns aos outros!” É interessante que quando
quiseram traduzir o Evangelho, notaram que o grego tinha várias palavras
para amor. E João não escolheu essas palavras. A mais comum era filia
34
– amigo, amizade. João não escolheu essa palavra. Outra palavra era eros,
que em português deu um sentido mais sexual, erótico. Mas eros em grego
significa amor, e João também não escolheu. Preferiu uma palavra nova
– agape, que depois deu, em português, uma palavra mais sofisticada.
Quando somos convidados para um banquete, dizemos agape, uma ceia,
uma refeição. Esta é a palavra que ele escolheu para amor.
Portanto, é preciso entender que só amamos quando nos reunimos
com as pessoas, quando criamos uma agape. Não é o eros, não é a filia, não
é a simpatia. Eu diria que nem a ternura, que eu considero a antecâmara do
amor. Eu mesmo me pergunto: o que é amar? É difícil definir isso. Mas eu
acho que a ternura é a experiência mais próxima do amor. Talvez a chave
seja nos perguntar se realmente amamos as pessoas, quando nos amamos
nelas. Olhem a questão da gramática em português: eu amo alguém quando
eu me amo em alguém? Provavelmente, sem fazer mau juízo de ninguém,
nós nos amamos muito mais nas pessoas do que amamos as pessoas. Sério
isso! É muito o problema de namorados, de noivos, de esposos, de pais
e filhos. De fatos eles não se amam entre si, mas a si no outro. Pensem
bem nisso! Muitas vezes, a mãe se ama na filha, mas não ama a filha. A
mesma coisa com o pai. Olhem o verbo: não ama o filho, mas se ama no
filho. Como eu sei que não amo a pessoa, mas me amo nessa pessoa? É a
pergunta mais difícil de responder e só a respondendo, saberei se amo.
Eu diria que eu só amo alguém quando o que eu lhe desejo é a vida
em qualquer situação. No momento em que desejo o mínimo de morte
para alguém, acaba o amor. O oposto do amor é a morte. Se eu vejo um
criminoso, por exemplo, e desejo que ele morra, eu não o amo. Quem
assistiu ao filme “Os últimos passos de um homem” pode ter percebido
o jogo da freira e dos pais das vítimas. Os pais das vítimas odiavam o
criminoso, queriam sua morte e assistiram a execução, porque nos Estados
Unidos existe a pena de morte em muitos estados. A freira manteve-se,
até o fim, amando, porque o que ela queria era a vida dele. Mesmo não
conseguindo salvar a vida física, porque ele estava condenado à morte,
lutou judicialmente até o fim. Não conseguiu, mas esteve ao seu lado até
o último instante para dar-lhe coragem. Isso é amar. Agora, estar lá para
assistir friamente à morte do outro é ódio, e ódio destrói.
Temos que nos perguntar realmente sobre essa questão. Como esse
crime de Brasília, desses adolescentes que queimaram o índio Galdino. É
que nunca ensinaram esses rapazes a amar. Provavelmente nunca tiveram
35
uma aula de amor. Tiveram muitas aulas de sexo, através da vida. Um
sociólogo escrevia que a geração jovem das décadas anteriores conhecia
o amor e tinha certo medo do sexo. Hoje, a geração jovem perdeu o medo
do sexo, mas tem medo de amar. Jovens, guardem essa frase, não dita por
um padre, mas por um sociólogo que estuda os fenômenos sociais. Do
sexo, ninguém mais tem medo. Sexo está banalizado, está exposto em
todos os lugares. Agora o amor, saber, desejar a vida a qualquer pessoa é
coisa rara. Quando vocês encontrarem um menino de rua, olharem-no e
não o espantarem como mosca, é sinal de que amam. Se eu quero que ele
viva eu amo.
Termino com um fato que nos toca no mais profundo. Teresa de
Calcutá talvez seja a mulher no mundo de hoje que mais deu exemplos de
amor, por isso causa um fascínio gigantesco. Velhinha, freira, mas quando
falava na televisão, fazia chorar os Estados Unidos inteiro. Aquela mulher
passava para todo o mundo o que é amar. Passando pelas ruas de Calcutá,
encontrava um miserável agonizando. Não podia fazer nada por ele porque,
já estava nos estertores da agonia. Ela recolhia esse homem, carregava-
o, dava-lhe banho, vestia-lhe uma roupa limpa, colocava-o num lençol
limpo. Não para salvar sua vida, mas para que ele morresse dignamente
numa cama. Isso é amar! O resto é outra coisa. Amém.(09.05.98)
36
JESUS NÃO DEU CONTA
(At 2, 1-11/Jo 20, 19-23)
Pentecostes, junto com a Páscoa, são as duas grandes festas da
Igreja. E, em certo sentido, a festa do Espírito Santo é mais importante
ainda que a Páscoa. Jesus não deu conta, como os monitores de crisma
também não dão conta. Inscrevem-se duzentos jovens e, depois de duas
semanas, reduz-se à metade. Jesus não deu conta, os ministros não dão
conta, nós, padres, muito menos, damos conta.
Por que Jesus não deu conta? Vocês viram o que relata a leitura. Jesus
entra na sala, e eles ficam alegres. Jesus sai, eles entram na fossa. Como os
adolescentes: num dia estão alegres, no outro estão deprimidos; num dia,
entusiasmados, no outro dia, lá embaixo. Assim eram os apóstolos. Jesus
foi embora e baixou a tristeza, fecharam as janelas. Na semana seguinte,
a mesma coisa: janelas e portas fechadas. Passaram a semana inteira
fechados. Não viam televisão, porque não havia. Ficaram lá, morrendo
de medo. Jesus vem uma segunda vez – é a alegria, a festa. Se não tivesse
vindo o Espírito Santo, virariam todos defuntos e o Cenáculo iria cheirar
tão mal, que a polícia os encontraria, já mortos.
Mas aconteceu o que ninguém esperava. Jesus tinha subido aos
céus, portanto, não o tinham mais. Eles sentiram um tremor, um barulho
gigantesco, um ruído, uma luz, um fogo, e se transformaram. Pedro, aquele
medroso, mandou abrir as portas e eles viram uma praça cheia. Imaginem
um homem caipira, da roça, falar para uma multidão! Pedro olhou para
aquela multidão e começou a falar. Uma multidão que poderia condená-
lo, matá-lo. O Espírito Santo já começara a atuar, e ninguém mais segurou
esta Igreja. Esses doze homens, e depois mais alguns, rodaram o mundo
inteiro. Foram até a Europa. Imaginem o pobre do Pedro, analfabeto
ou quase, pescador de um lagozinho, correndo para Roma, a capital do
Império, onde se falava grego e latim. É como se, de repente, pegassem
qualquer um de nós e jogassem em Times Square, em New York City.
Só saberíamos dizer OK. Ficaríamos totalmente desarvorados, porque
perderíamos toda a possibilidade de nos comunicar. Pedro vai pregar em
Roma. Hoje, sobre o seu túmulo, existe a maior igreja que já se construiu
no mundo – a Basílica de São Pedro, o símbolo do poder. E ninguém mais
esqueceu esse homem. Não por causa de Pedro, mas pelo Espírito Santo.
37
Vocês devem estar acompanhando esses bombardeios em Kosovo
(*). Mísseis bombardeando todas aquelas crianças, tiradas de suas casas.
Criaram um imenso acampamento onde, de repente, aparecem professores,
pedagogos, médicos. Quem os levou lá? Quem fez com que largassem
suas pátrias, seus comodismos e fossem trabalhar em acampamentos
de um país distante, para alegrar as crianças? Só pode ser o Espírito
Santo. Tantas vezes vocês viram na televisão, aquela velhinha – Teresa
de Calcutá – que, onde havia miséria, onde havia catástrofe, estava ela
para salvar, curar, alentar as vítimas. Carregava os moribundos, lá em
Calcutá, na Índia. Quem levou essa mulher a fazer tudo isso? O Espírito
Santo. E quando estamos desanimados, aborrecidos e, de repente, surge
uma coragem inexplicável? Nos tornamos capazes de agir, de participar,
reivindicar direitos. É a ação do Espírito Santo.
O grande problema dos adolescentes é encontrar a autonomia. Na
infância, vocês vivem sob uma lei muito forte – o pai e a mãe e, mais
tarde, a escola. Vocês assimilam essa lei, e isso é importante. Começam a
crescer e não querem mais aceitar a lei que vem de fora – a heteronomia.
E é bom que não queiram aceitar, porque, do contrário, não saem da
infância. Quando isso ocorre, pode acontecer de os adolescentes passarem
para o extremo oposto, que é a anomia, a anarquia e aí é o desastre.
São esses jovens sem lei, sem regra, sem norma. Como encontrar a
saída entre a heteronomia – a lei que vem de fora – e a anarquia – o não
aceitar nenhuma lei, mas criar a lei dentro de si?! Essa é a tarefa que
vocês cumprem agora, na adolescência. Se não a cumprirem, o perigo é
imenso. É preciso criar uma lei interior pelo que vocês construíram. Os
pais, a escola continuam sendo importantíssimos, mas não são mais uma
lei externa, e sim alguma coisa que vocês irão interiorizando. Por isso
é fundamental que vocês encontrem a objetividade e a verdade da vida,
para construírem interiormente a própria autonomia. Se não encontrarem,
serão anárquicos, fora de toda lei, e aí está o grande risco. É o que estamos
vendo continuamente nos jornais, e agora não é só nos Estados Unidos.
Também no Brasil, bem perto de nós. Matam brincando.
O Espírito Santo é aquele que consegue criar a lei dentro de nós.
Não precisamos receber de fora, mas construir no nosso interior, porque a
cada direito nosso, existe um dever. Se têm direito à escola, têm o dever de
estudar. Se têm direito a uma cidade limpa, têm o dever de deixá-la limpa.
É disso que nos esquecemos no Brasil. Perdemos a noção dessa relação
38
entre direito e dever. Os direitos são importantíssimos. Temos direito ao
silêncio, à limpeza, à saúde, à alimentação, a termos pais honestos. Mas
temos obrigação de sermos estudantes sérios, responsáveis, porque temos
direito a uma boa escola, a bons professores. É nesta idade que terão que
descobrir os seus direitos, porque não são mais crianças. As crianças
quase não têm deveres, mas se não tomam consciência dos seus direitos
e deveres correspondentes, não se formam. Serão eternas crianças e uma
criança de quarenta anos é um desastre. Amém. (23/05/99)
39
JESUS ESTÁ SEMPRE EM MÁ COMPANHIA
(Ex 34, 4-6.8-9/Jo 3, 16-18)
Esse Evangelho não deixa de ser impressionante, mesmo pequeno,
com poucas frases. Esses apóstolos conviveram com Jesus, viram-no,
tocaram-no, sentiram o seu hálito, dormiram juntos tantas vezes ao relento
e, depois de tanto convívio, no momento da ascensão, ainda duvidam. Não
é de estranhar que nós também tenhamos as nossas dúvidas, que passemos
por crises de fé. Aqueles homens, que eram os baluartes da Igreja, que
conviveram com o próprio Cristo até o final, ainda tinham dúvidas. Aí
Jesus mandou-lhes o Espírito Santo para lhes transformar o coração. De
fato, depois que o Espírito Santo veio, eles perderam todo o medo. Alguns
foram a Roma, outros à Espanha e morreram mártires pelo mundo afora.
Se nós estamos aqui, é porque aqueles doze homens palmilharam o mundo,
levando o Evangelho de Jesus.
Celebramos hoje a Festa da Trindade. A primeira leitura é muito
bonita. Às vezes a gente ouve distraído e não percebe a beleza, mas reparem
que cena maravilhosa. O velho Moisés – talvez um dos maiores líderes de
toda a história da humanidade – sozinho enfrentou o faraó, o símbolo do
maior poder daquela época. Pois bem, esse judeu desconhecido enfrentou
o faraó cara-a-cara. Discutiu corajosamente com ele, arrancou o seu povo
da escravidão e derrotou o exército. Esse homem se encontra diante do
povo e diz: “Vocês já viram algum Deus tão próximo do povo, como o
nosso?” Eles tinham vindo do Egito onde conheceram aquelas imensas
estátuas, que hoje podemos ver no Museu Britânico, e que eram adoradas
por aquele povo. Todos aqueles deuses terríveis! Mas foi o verdadeiro
Deus que conduziu o povo durante quarenta anos pelo deserto, que os
alimentou com o maná, que fez brotar água das pedras e os conduziu
à Terra Santa. Esse é o verdadeiro Deus. Moisés não conhecia Jesus,
não conhecia o Espírito Santo. Se Javé, aquele grande Deus, já estava
tão próximo, ainda mais para nós, que sabemos que o nosso Deus se fez
homem, se fez história, se fez suor, se fez dor, se fez cruz, se fez morte, se
fez ressurreição. Um Deus mais próximo não existe.
Jovens, não há religião tão bonita como a religião cristã, porque não
há religião em que um Deus se aproxime tanto. Ele nos revela o mistério
maior: a última raiz do nosso ser é ser amado. Guardem essa frase para
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os momentos tristes e de dor. A última raiz do ser não é o vazio, não
é a falta, como diz Lacan (*). A última raiz do nosso ser é ser amado.
Quando mergulharem no mais profundo do eu de vocês, mesmo que
sejam rejeitados por pais e por mães, mesmo que vivam na pior favela
do mundo, mesmo que não tenham conhecido nenhum amor e nenhum
carinho humano, mesmo que tenham visto os piores exemplos, olhem
para o interior de vocês e encontrarão a certeza de serem amados por um
Deus. Não há razão nenhuma para vivermos na fossa, na depressão, na
tristeza, vivendo de prozacs (**), de químicas, porque não somos capazes
de suportar o nosso ser. O nosso ser é marcado, plasmado pela Trindade.
Não sei se leram o “Estado de Minas” de hoje. Havia uma fotografia
belíssima, de cortar o coração. É o Sandrozinho, aquele menino de rua,
sendo abraçado por uma mulher maravilhosa, esposa de um empresário
riquíssimo, que dedica toda a sua vida aos meninos de rua. Ela abraça
aquele menino que seqüestrou um ônibus, no Rio de Janeiro, e matou
uma professora. Olhando o rosto daquele menininho, acolhido por aquela
mulher, devemos pensar o que passou pelo seu coração. Ela sabia quem
ele era, mas queria salvá-lo. Não conseguiu, porque ele foi assassinado
pela polícia. Nós não conseguimos tudo – isso é o terrível! Queríamos
salvar todos os jovens, queríamos que vocês fossem ótimos, queríamos
que depois do Crisma vocês continuassem, mas a maioria debanda por aí
afora. Somos incapazes de segurar as pessoas. Isso rasga o nosso coração.
A incapacidade humana é terrível!
São fatos como esses que estão acontecendo no Brasil. Não estão
acontecendo na Coréia, na Rússia, na Polônia. Estão acontecendo no
Brasil brasileiro. Talvez isso nos deixe insensíveis, porque é comum
vermos tudo isso nas páginas de nossos jornais. Outra página interessante
foi a entrevista de um psicólogo, não de um padre, embora bata muito
com o que eu digo para vocês. Ele diz que o próximo milênio não será o
milênio do sexo, mas do afeto. O sexo não faz ninguém feliz. Quem disse
isso foi um psicólogo, alguém que vive trabalhando com vocês, jovens,
mas vocês não acreditam. O que faz alguém feliz é amar e ser amado, é a
ternura, é o carinho. O sexo é o término de um processo e nunca ele, em si
mesmo. Talvez demore muito, mas eu tenho a certeza de que caminhamos
para lá. Não é possível que sejamos tão burros, que não descubramos isso.
É difícil, porque toda a mídia, toda a propaganda, toda a televisão, está
voltada para o erotismo sexual, genital e não para o afeto, a coisa mais
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linda que temos. Abraçar uma criança, beijar uma pessoa, sentir o calor
humano de alguém. Isso nos enche o coração. Dizem que isso realiza
qualquer pessoa, que nem precisa do ato sexual para sermos felizes.
Uma terceira coisinha que queria dizer-lhes. Moisés falou que o
nosso Deus é maravilhoso, e Jesus veio nos mostrar isso. O nosso Deus
não tem vergonha de ninguém. Às vezes os adolescentes têm vergonha
da mãe, porque ela não é nenhum modelo de beleza. Eles a escondem.
Mas Deus não tem vergonha de ninguém. Ele está colado a cada um de
nós, em qualquer situação de nossa vida. Há um escritor alemão que
procura estudar as marcas que o Cristianismo deixou na cultura. Ele diz
que uma das marcas mais fortes foi saber valorizar cada pessoa, mesmo
a menos digna da sua humanidade. Ele compara com a cultura grega, que
valorizava enormemente o bonito, o bom, o belo. Pessoas interessantes,
agradáveis. Mas os escravos, as pessoas largadas, marginalizadas eram
desprezadas. O nosso Deus se fez homem para estar ao lado dessas pessoas.
Olhem o Evangelho! Jesus se achega aos mancos, prostitutas, leprosos. O
Evangelho está cheio disso. Jesus está sempre em má companhia. Esse
é o nosso Deus, que não deixa ninguém de lado. Os ricos e bonitos não
precisam, mas os feios, os jogados, ninguém os quer.
Hoje eu celebrava no asilo e fiquei sentado, olhando para aquelas
pessoas – velhinhos, pobres, acabados – e pensei: aí está o meu Deus. Ter
um Deus assim é algo impressionante! É para que todos se amem, para que
construamos uma sociedade diferente, começando de baixo, da pobreza,
da miséria, transformando este país, para que não se multipliquem os
sandros, para que os sandros se convertam, para que os sandros sejam
diferentes. Amém.(30.05.99)
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ASCENSÃO É O MISTÉRIO DA AUSÊNCIA
(At 1, 1-11/Mc 16, 15-20)
Ascensão é uma grande porta que se fecha para algumas realidades
e se abre para outras. Ela se fecha para isso que acabamos de ouvir: uma
nuvem cobriu a humanidade física de Jesus. Quer dizer que nunca mais
veríamos a sua humanidade física. A nuvem é o símbolo da história que
passa, como nós nunca mais veremos fisicamente os nossos mortos. Com
esses olhos, não os veremos mais. É bom que tomemos consciência dessa
realidade. Ascensão quer dizer que não adianta ficarmos procurando
sinais para ver Jesus numa vidraça, numa cortina que aparece vez por
outra. “Eles não podiam mais ver!” Olhem que frase forte! O mistério da
ascensão é o mistério da ausência. Ausência dói, como dói a ausência de
todos os nossos mortos, de todos os amigos e parentes que estão ausentes
de alguma forma. Por isso dói à Igreja não ter Jesus visível entre nós. Essa
dor pertence à nossa condição humana. A porta está fechada.
Abre-se outra e essa é muito bonita. Abre-se essa porta que
construímos para celebrar a memória de Jesus. Se Ele estivesse aqui, não
precisaríamos pensar na sua memória. Memória é de quem já partiu, é
para o passado. Ele mesmo disse: “Fazei isso em memória de mim!” Se
Ele estivesse aqui, não precisaríamos estar reunidos. Se Ele estivesse na
Terra, pegaríamos um avião para irmos até onde pudéssemos encontrá-lo.
Quereriam até levá-lo para Nova York para que Ele enchesse de dólares
as Bolsas de Wall Street. Graças a Deus, essa porta se fechou. Ele disse
que estaria de uma maneira diferente. “Reúnam-se!” – olhem que palavra
bonita! Não se matem, não se digladiem, não se destruam. Reúnam-se! E
também disse para que, como Igreja, pegássemos um pouco de pão, um
pouco de vinho e Ele estaria ali. Essa é a porta que está aberta.
Quando Ele estava vivo, em corpo físico, podemos dizer que
alguns milhares de pessoas o viram. Não muito mais que isso. Quando os
Evangelhos falam em cinco mil pessoas, talvez exagerem. E mesmo essas
que viram Jesus, não o viram. Viram um homem passando por ali. Mas ver,
no sentido de reconhecer o que realmente Ele era, pouquíssimas pessoas
conseguiram. O corpo dele era local, era marcado por tempo e espaço.
Olhem como ganhamos ao fechar essa porta! Agora somos milhões que
podemos pensar nele, recordá-lo, festejar a sua memória, reunirmo-nos.
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Quantos hoje não se unem por todo o mundo em seu nome?! Seja em
Cingapura, em Atenas, no interior mais interior do Brasil, na Espanha,
estão cristãos celebrando a mesma Eucaristia. Com esse mesmo pão, esse
mesmo vinho e dizendo “isto é meu corpo, isto é meu sangue!” e ali Ele
está presente. Olhem quanto ganhamos com a ascensão! Ele se faz real
por quantas vezes quisermos.
Outro dia fiquei gratamente tocado. Celebrava num lugar pequeno
e fui convidado para almoçar. Um jovem médico começou a conversar
comigo. Ele me ouvia interessado e eu lhe perguntei se praticava alguma
religião. Ele me disse: “Sim, eu vou à missa todos os dias para participar
da Eucaristia!” Eu olhei para aquele médico e pensei em como é bom que
isso ainda exista. Porque o Senhor fez de si essa presença. Mas Ele quis
mais sinais, não só o da Eucaristia, que é o mais bonito. Mas também no
batismo, no crisma, no matrimônio bem vivido, está o Senhor presente.
Mas Ele abriu outra porta, que daqui a uma semana vamos
comemorar. Uma grande porta por onde o Espírito Santo vai passar. Ele
diz que o Espírito será abundante, e agora poderá deitar e rolar sobre
todas as nossas cabeças. Ele foi dado a cada um de nós que agora carrega
no seu interior, a marca e a presença da Trindade. É que não nos damos
conta disso. Quem dera soubéssemos que estamos carregando pela rua, o
dia todo, o mistério trinitário! Ele está lá dentro, talvez silencioso, porque
as nossas orelhas estão cheias de barulho, de buzina, de fumaça e não
conseguimos senti-lo. Mas Ele está lá. Não nos abandona nunca! De vez
em quando – como nesse jovem médico – ele fala e nós ouvimos.
Certa vez um grande católico – Alceu Amoroso Lima – foi visto
por um amigo. Ele ia encolhidinho, e o amigo mais tarde lhe perguntou
para onde ele teria ido tão cedo, já que estava casmurro, circunspecto.
Ele respondeu: “Eu devia estar com a cara séria e talvez um pouco triste
quando eu ia, mas não depois que voltava. Quando voltava, estava alegre,
porque voltava da Eucaristia”. Ele podia ir carregando seus problemas
mas, quando encontrava o mistério do Senhor, voltava novo, renovado para
enfrentar o dia de seu trabalho de intelectual, de professor universitário.
Quem dera descobríssemos esse mistério dessa nova presença de
Jesus, que agora é muito mais forte, muito mais abundante, muito mais
rica do que quando estava com o seu corpo físico na Terra. Aquele, poucas
pessoas captaram. Mesmo os apóstolos estavam confusos. Eram distraídos,
não entendiam muito. Um traiu, outro quase traiu, outros fugiram. O Jesus
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físico não mexeu muito com as pessoas. Mas o Cristo glorioso, este que
está presente, mexe muito mais. É muito mais poderoso, muito mais
forte.
Sabem mais o que Ele disse? Ele disse que, quando caminhássemos
pela vida e encontrássemos uma criança linda, acolhendo-a, o acolheríamos.
Nós podemos abraçar Cristo de muitas maneiras. Quando encontrarmos
uma pessoa sofrendo, precisando de uma palavra, se nos voltarmos para
ela e dissermos essa palavra, foi a Ele que dissemos. Nós podemos falar
com Ele o dia todo. Quando, no trabalho, vemos um colega que está mal,
podemos encorajá-lo. Conversamos com o colega, mas, mais que isso,
conversamos com o Cristo, que ali estará presente. Quando sentamos
na sarjeta, ao lado de um bêbado desfeito, sujo, malcheiroso, que nos
diz palavras sem sentido, que apenas escutamos, ouvimos a palavra do
Senhor. Ele resolveu nos dizer que é fácil encontrá-lo. Antes era muito
difícil, precisavam andar quilômetros para ver Jesus. Era difícil descobrir
que aquele homem de Nazaré era Ele. Hoje não. Hoje é facílimo encontrar
o Senhor. É que nós não o queremos encontrar. A ascensão abriu uma
porta gigantesca para Ele estar no nosso meio. Amém. (01/06/03)
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PENTECOSTES CRIA COMUNIDADE
(At 2, 1-11)
Talvez a maioria dos cristãos não sabe ou ainda não tomou
consciência de que Pentecostes é uma festa tão grande, tão importante
quanto a Páscoa. Não deve nada à festa da Páscoa. Como a Páscoa vem
depois de toda uma Semana Santa, vamos nos preparando, quase como
num crescendo. Pentecostes aparece de repente. Mas são as duas colunas
do nosso ano litúrgico.
É fundamental, porque, se não houvesse Pentecostes, não estaríamos
aqui. Se não houvesse essa grande ação do Espírito, ninguém estaria sentado
nesses bancos e nem eu estaria pregando, nem existiria o ministério, a
Eucaristia, a Igreja. Não existiria nada. O Cristo ressuscitado estaria feliz,
junto de Deus Pai e nós, nesse imenso deserto do anonimato, da frieza, do
vazio, da tristeza, do ódio, da vingança. Mas o Espírito Santo cobre tudo.
Agora mesmo, eu estava-me preparando para a missa, veio alguém
dizendo que um jovem foi assassinado por um tio. Com trinta e poucos
anos, leva um tiro e cai morto diante de todos. Falta Espírito Santo, falta
Pentecostes. Um tio que mata um sobrinho, como se a vida fosse vazia,
como se pudéssemos brincar com ela, arrancá-la a qualquer momento, por
qualquer pretexto.
Quando eu olho para esses dons do Espírito Santo, escritos nas faixas,
eu me pergunto: onde está a piedade que acolhe as pessoas? Será que o
Espírito Santo está dormindo em Vespasiano? Não há piedade, não há
perdão, não há misericórdia, não há carinho para as pessoas se acolherem,
em vez de se ferirem, de se matarem. Falta Pentecostes!
Quando eu olho para lá e leio fortaleza, penso em tanto católico
fraco, tíbio, que é incapaz de testemunhar sua fé. Quantos jovens que
não resistem a uma tentação! Uma primeira cantada desbanca toda a sua
segurança. À primeira solicitação, lá vão eles por caminhos e descaminhos.
Falta fortaleza!
Quando olho para alguns velhos de cabelos brancos, penso que,
ao invés de passarem para as novas gerações alguma coisa de vida, de
esperança, estão aí, traduzindo a sua velhice no descrédito, na tristeza, no
abandono, no vazio. Falta Pentecostes!
Quando olho para tantas inteligências que estão aqui, nesta igreja,
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lembro que ninguém pergunta nada sobre sua fé, ninguém questiona. Não
sabem que há um Deus que é Pai, que é Filho, que é Espírito Santo. Não
sabem o que é Pentecostes. Falta Pentecostes porque não há entendimento,
não há ciência.
Vejo tantos pais que não sabem conversar com seus filhos. Ficam
calados diante daquela maquinazinha cheia de cores e de imagens, que
se sucedem com rapidez e que chamamos de televisão. Não sabem dizer
uma palavra para o seu filho adolescente. Não sabem dizer uma palavra
de carinho.
Outro dia, eu conversava com um colega que está acompanhando um
caso muito difícil de um adolescente. Ele passara toda a tarde conversando
com esse jovem. De repente, chegam os pais e não abraçam, não beijam o
seu filho. Cumprimentam-se com um simples oi, como se um oi bastasse
para um filho que está precisando do calor de uma mãe, está precisando
de um abraço. Todas as noites esse jovem tem pesadelos. Falta conselho,
falta Espírito Santo para os pais.
A maioria dos descaminhos dos jovens começa na falta de um pai,
de uma mãe, que poderiam estar presentes passando ternura, esperança,
coragem. Os jovens estão totalmente perdidos neste mundo. Não sabem
como encontrar o caminho. E os pais, ao invés de ajudá-los, dizem
bobagens, perdem a paciência, não sabem comunicar uma palavra. Falta
Pentecostes!
Quando falamos em Pentecostes, não estamos celebrando aquele
fato de dois mil anos atrás, cuja narrativa acabamos de ouvir. Isso passou.
É história de ontem. Pentecostes é hoje. É Espírito Santo acontecendo
nesta comunidade. É olhar para o lado e encontrar uma pessoa que pensa
diferente de mim, que é de outro partido e, apesar disso, eu encontro. É
olhar para uma pessoa de raça diferente, de religião diferente, que torce
por outro time de futebol e, apesar disso, ser capaz de comungar com ela,
de caminhar com ela, ser capaz de construir uma sociedade nova, na paz.
Isto é Pentecostes!
O oposto de Pentecostes é divisão, é ódio, é raiva. Pentecostes
cria comunidade. Todos nós aqui somos diferentes. Viemos de famílias
diferentes, raças diferentes e, apesar disso, comungamos o amor do Cristo
como comunidade. Isso é Pentecostes!
Daqui a pouco vamos ter as disputas políticas. Que disputem, mas não
se odeiem. Que divirjam, mas não se rejeitem. Pentecostes não é proibição
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de divergências, nem da pluralidade. Cada um que estava lá, como diz a
leitura dos Atos, viera de um país diferente: Ponto, Síria, Mesopotâmia –
todos os países daquela época. Cada um trazia a sua cultura, a sua religião
e, de repente, todos se entendem. Não que os apóstolos falassem a língua
deles. Eles é que entendiam na sua própria língua, porque percebiam que
eram capazes de comungar com aqueles homens, de testemunhar um
Jesus, vivo e ressuscitado.
Essa certeza de que podemos comungar com os nossos irmãos é
a experiência de Pentecostes. É saber que, para além de todas as nossas
diversidades – de sexo, de raça, de cultura – existe alguma coisa mais
profunda que nos une. A primeira coisa é que somos seres humanos. É a
humanidade, a justiça, a bondade, a pureza, a grandeza, a coragem. São
qualidades humanas, cívicas que nos unem. E, além disso, nós aqui temos o
elo da fé, que nos une a todos. Devíamos sair hoje desta igreja felizes, com
o coração saltando de alegria, na certeza absoluta de que seremos capazes
de superar todas as contradições, todas as oposições, todos os ódios, todas
as feridas sentimentais. Começando naquele pequeno santuário que é a
nossa família, estendendo à escola, ao trabalho, encaminhando para a
economia e para a política, atingiremos a sociedade e a humanidade toda.
Amém. (01.06.96)
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O SÍMBOLO TRADUZ O AMOR
(Mt 9, 36-10,8)
O Evangelho é muito bonito e há certos elementos um pouco mais
simbólicos, que talvez não percebamos, à primeira vista. Por que doze
apóstolos? Terá sido fortuito? Poderiam ser treze, quatorze, quinze. Jesus
olhou para a história de seu povo, como se olhássemos para a história de
nosso povo. Somos formados pelos índios, que moravam aqui milhares de
anos antes da chegada dos portugueses. Somos formados pelos negros, que
vieram da África; pelos lusos, que vieram de Portugal e uma quantidade
de outros migrantes e imigrantes que vieram da Europa, do Japão. Esses
povos seriam como tribos que construíram o Brasil. Os judeus foram
construídos e constituídos por doze tribos, que vieram de vários lugares,
se reuniram e ocuparam a Palestina daquela época, que já estava ocupada.
Tiveram de lutar, expulsar os inimigos e constituir um país novo.
Jesus pensou: “Eu vou construir um povo novo, não velho”. O velho
foi construído com doze tribos. Ele escolhe doze apóstolos, um por cada
tribo. Cada um representa uma tribo, e os doze representam o povo de
Israel, para mostrar continuidade. E são doze, para mostrar a novidade.
Os apóstolos são a novidade, o doze, a continuidade. Esses doze apóstolos
foram tão trabalhadores, que nós estamos aqui hoje. Animem-se! A Igreja
começou com doze pessoas e hoje somos um bilhão no mundo. É um
espanto! E eram doze pessoas simples. Muitos não sabiam nem ler e
escrever. Eram pescadores. Apenas um deles era um pouquinho mais culto
– Mateus, um cobrador, que fazia cálculos de matemática, uma espécie
de contabilidade daquela época. Os outros eram bem mais simples.
Provavelmente, Pedro ditou as Cartas, porque não devia saber escrever.
Jesus também não aprendeu muito. E daí nasce toda essa fé, para mostrar-
nos que podemos ser pequenos, fracos, mas ainda assim ter uma força
gigantesca.
Vocês, jovens crismandos, são uma pequena minoria, comparando
com todos os jovens de Vespasiano. São milhares os jovens de nossa
cidade. E a maioria vai sempre seguindo a onda, a inércia da História.
São como barcos, jogados na correnteza dos rios. Às vezes, vocês são
chamados a remar contra a corrente e precisam ser mais lúcidos. Se
deixarem o barco rodar, ele vai embora e descerá correnteza abaixo. Mas
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se tomarem os remos na mão, poderão dar a direção que quiserem ao barco
de vocês. No curso de crisma é passada para vocês essa consciência de
que podem dar o destino que quiserem às suas vidas. A maioria da massa é
comandada, teleguiada. Vocês pensam que pensam, mas não pensam. São
pensados. Pensam que têm idéias, mas não têm. As idéias vêm de fora.
Ser jovem é exatamente criar um mundo novo, diferente, próprio. Se não
começarem a construir um mundo próprio, se não se libertarem do xerox
dos outros, nunca serão personalidades, nunca serão gente de valor. Serão,
simplesmente, amebas jogadas. Esses organismos pútridos da História.
Vocês são chamados a criarem um mundo novo.
E quando falamos da festa dos namorados, reparem bem que dentro
da palavra nAMORado existe uma palavrinha pequena: amor. Quando
falamos de amor, colocamos o ser humano em seu nível mais alto. O amor
não é lá de baixo. É o último andar de nossa história. Nós somos animais,
somos sentidos, somos inteligência, que já é muita coisa. Amor é mais
que inteligência. Temos dois grandes braços superiores: a verdade e o
amor. A verdade fala para a inteligência. O amor fala para a liberdade e
para a vontade. Enquanto livres, enquanto vontade, amamos. Enquanto
inteligentes, buscamos a verdade. São as duas grandezas do ser humano. É
o único ser que busca a verdade. Mesmo os pequenos adolescentes buscam
a verdade. Vocês perguntam aos professores, aos pais. As perguntas que
fazem é a busca da verdade. Os exames, para os quais se preparam, são
para testar um pouco de conhecimento e de verdade. Só que essas são
verdades menores. A geografia, a história são verdades menores. As
verdades maiores são a filosofia, a estética, a teologia e a religião – os
grandes andares da verdade. E acima da verdade está o grande edifício do
amor.
Ser namorado é cultivar tudo isso. Quando querem se alimentar,
vocês comem comida. Mas sabem de que se alimenta o amor? De símbolos.
O amor não se alimenta de arroz e feijão, não se alimenta de bebidas, de
drogas. O amor só se alimenta de símbolos. E porque os símbolos estão
desaparecendo, está acabando o amor. Quando um casal, após vinte anos de
casados, pensa que não precisa mostrar símbolos um para o outro, o amor
acaba, como qualquer realidade humana. E o que é símbolo? Primeiro,
tomemos aquela palavra grega, que é belíssima – sym+balein que, em
grego, significa unir-se.
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O símbolo nasceu de uma história. Imaginemos dois jovens que se
viram uma única vez. Tomaram um bastão, quebraram-no e cada um ficou
com uma metade. Separam-se e, quando se encontram, não sabem se são
os mesmos. Tomam os pedaços dos bastões. Se ligarem, são eles. Se não
ligarem, não são eles. Símbolo é, então, unir duas realidades que parecem
separadas. Por exemplo, uma rosa. A princípio, é uma planta. Mas quando
sai do canteiro, vira sinal do carinho do jovem para com a sua namorada
– vira símbolo. Uma pedra não significa nada. O geólogo analisa e vê uma
rocha antiqüíssima. Alguém toma a pedra, lapida-a, prepara um anelzinho
e vira símbolo. Não é o presente que vale, não é o ouro que vale, não é a
pedra que vale, mas o símbolo. Por isso o presente pode ser paupérrimo,
mas se é carregado de símbolo, é carregado de amor. Pode ser um presente
caríssimo, se é para despachar, não vale nada. Só é símbolo aquilo que
traduz o interior espiritual do mais profundo que temos e o torna visível.
Se vocês, jovens namorados, noivos, esposos, não querem perder
o amor, não querem deixar abalar o amor, guardem essa lição. Criem
símbolos: sorrisos, olhares, escritos, florezinhas, papeizinhos. Tudo
isso é lindo! Qualquer pedacinho de papel é cheio de símbolo. Não é o
papel que vale. Ele rasga, não vale nada bioquimicamente, não vale nada
economicamente, mas faz a menina derramar lágrimas, porque é carregado
de símbolo. O amor se alimenta de símbolos. Amém. (12.06.99)
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LIDANDO COM AS PERDAS
(Gl 3, 26-29/Lc 9, 18-24)
Hoje as duas leituras – Paulo e o Evangelho – têm uma importância
que só agora a Teologia está percebendo. Na época de Paulo havia três
antinomias: judeu/grego, livre/escravo, homem/mulher. Grego é a
contracultura, é o povo da sabedoria, era o povo que dominava. Inclusive
tinham a língua hegemônica. Os romanos dominavam os exércitos, mas
os gregos dominavam a cabeça. É o mundo da cultura, é o mundo de
Atenas. Do outro lado há o mundo dos judeus: o povo da Revelação, do
Livro Sagrado, enquanto o grego tinha Platão, Aristóteles, os grandes
filósofos. Paulo diz: “Depois que Cristo veio, nada disso tem valor”. Não
é importante ser americano, não é importante torcer por Camarões (*).
Tudo isso é secundário. Cristo trouxe para nós a igualdade.
Outra antinomia mais forte ainda: livre/escravo. Agora não há mais
escravos. Ninguém merece ser submetido a outrem e nem deve sê-lo.
Ninguém também tem direito de submeter outra pessoa. Isso na época de
Jesus. E a nossa tradição hegemônica foi escravagista, até a nossa Isabel
(**) resolver dar liberdade aos negros. Paulo já dizia: “Não há escravos.
Onde está o Espírito, aí está a liberdade”.
Homem/Mulher. Dizem que Paulo era machista. Em algumas
passagens, sim, mas nessa não. Nessa ele intuiu o que o movimento
feminista agora, com muita dificuldade, está descobrindo. Não há diferença
entre homem e mulher em sua estrutura radical. Vejam como esse homem,
no comecinho de nossa cultura ocidental, semita, grega, latina e depois
germânica, brasileira, já intuía. Esse homem conseguiu colocar os germes
do que chamaríamos depois “Libertas quae sera tamem”, que marca a
bandeira de Minas Gerais, que é um Estado para o qual a liberdade é
muito importante, onde tantos e tantos morreram por ela.
Paulo já dizia: “Onde está a liberdade, está o Espírito, onde está
o Espírito está a liberdade”. Liberdade quer dizer que não há mais essa
separação gigantesca. Até há pouco tempo vivíamos a dualidade Rússia
e Estados Unidos – Leste/Oeste. Agora a dualidade é outra: Norte/Sul.
Norte, rico/ sul, miserável. Norte, super desenvolvido/ sul, atrasado.
São essas grandes antinomias, realidades de nossa história, que Paulo já
anunciava. Estamos longe de viver a mensagem de Jesus!
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Em geral, esse projeto é pregado como se o Cristianismo fosse
uma coisa dura, crua. Não! Qualquer pessoa que venha de outra cultura,
qualquer psicanalista de primeiro ano sabe que a coisa mais difícil e mais
importante é saber lidar com a falta, com a perda. Quem não é capaz de
lidar com a perda é doente. O criminoso mesmo, o perverso é aquele que
é incapaz de lidar com a falta. Não pode faltar nada para ele. Se faltar, ele
mata ou suicida. Não é capaz de perder, não é capaz de identificar limites.
Já falei tantas vezes e volto a repetir: quando aqueles jovens, em Brasília,
queimaram o índio Galdino, o psicanalista Jurandyr Costa escreveu um
artigo dizendo que aqueles jovens não aprenderam a lidar com a falta. Era
uma noite meio tediosa, estavam sem graça. Não souberam lidar com o
sem graça e partiram para a aventura – vamos queimar o mendigo! Não
souberam lidar com a falta de sentido. É isso que Jesus diz. No momento
em que soubermos lidar com a perda, aí estaremos salvos. Lidar com a
perda é perceber que somos limitados, que não somos infinitos, que há
dias que estamos mal, que estamos sentindo falta. Não somos completos,
não somos perfeitos. Somos quebrados, fragmentados. Assumir isso e
construir uma identidade é o grande sinal de sanidade mental, psíquica e
humana.
Jesus, que nunca tinha estudado Freud, nunca tinha lido Lacan, já
dizia que quem é capaz de lidar com a perda é feliz, esse é capaz de viver!
Porque temos perdas a todo o momento. Temos que saber lidar com a
perda pela morte – perda de pai, perda de mãe, perda de filho, perda de
irmão, perda de amigos, perda de mitos. Vocês repararam que quando
morre um ídolo da música ou do esporte toda a nossa cultura entra em
depressão? Lembrem vocês da morte de Ayrton Senna. Aquela comoção
imensa, porque não sabemos lidar com a perda. Nós perdemos muito e
podemos também perder a Copa (*) – não quero prenunciar não. Mas
temos que aprender a lidar com a perda. Parece que a perda para nós é
das coisas mais difíceis. Não sabemos sequer lidar com notas baixas. E
quem não sabe perder não sabe existir, não sabe viver. Não temos que
ganhar sempre. Os pais que não ensinam seus filhos a lidarem com a perda
preparam-lhes o desequilíbrio mental e até o suicídio. É isso que Jesus
quer dizer. Não é apenas masoquismo não. É da nossa condição humana.
Todos nós defrontamos com fracassos e temos que crescer neles e não
abaixar a cabeça, alquebrados.
O Senhor quer nos salvar. Ele não quer falar de culpas, mas de vida.
53
Não quer nos deixar abatidos. Quer que sejamos livres, que levantemos
a cabeça e enfrentemos perdas e derrotas, porque perdas e derrotas
pertencem à nossa história. Amém (20/06/98)
54
A OUTRA MARGEM
(Mc 4, 35-41)
Seria muito pouco para Marcos, esse evangelista tão inteligente, nos
contar uma história. Ele fala em três níveis. Vamos ver se chegamos lá.
Olhem bem. Cada palavrinha desse Evangelho é como um xadrez.
Jesus vai para a outra margem. Quantas vezes na vida, nós vamos para a
outra margem? Da infância para a adolescência, da adolescência para a
juventude, da juventude para a idade adulta, depois para a terceira, quarta,
quinta, nona idade. Cada vez, vamos passando de margem. Aí vem a
pergunta de Marcos: “Será que levamos Jesus junto?” É a sua primeira
brincadeira. Todas as vezes que passamos de uma margem para outra –
pode ser de uma cidade para outra, de um emprego para outro – mudamos
toda a nossa vida. No Brasil, há muita mobilidade social. Muitas pessoas
vão de cidade em cidade e alguns vão até para o exterior. Eu me lembro
quando saí, pela primeira vez, do Brasil para estudar no estrangeiro. Era
bem jovem. Tomei o navio para uma outra margem distante. Será que
levamos o Senhor conosco?
Segunda brincadeira de Marcos. Ele brinca conosco. Quantas
vezes, na nossa vida, acontece uma ventania tremenda? Há ventanias, há
mares encapelados nos namoros, nos noivados. Vejo esses casaizinhos
sussurrando entre si aqui na igreja, em vez de ouvirem a Palavra de Deus,
e eles não percebem que o mar está encapelado. Quanta ventania, quantos
mares dividem as pessoas! E Jesus, dormindo. Os apóstolos tiveram
medo – terrível medo. Jesus dorme, isto é, desaparece do nosso horizonte.
Marcos brinca conosco. Ele está lá, mas para os apóstolos, não está. Parece
que se não estiver acordado, se não estiver bem visível aos nossos olhos,
não acreditamos na sua presença. Ele está dormindo ao nosso lado. E aí
só existe uma coisa: medo. Eles o acordam. E quando é que Ele acorda?
Para muitos, é o acordar de uma queda forte, para outros é o acordar
num acidente. Para muitos, Jesus acorda à custa de muita dor, de muito
sofrimento. Para outros, Jesus acorda só depois da morte.
Marcos continua. Jesus acorda e estende os braços. Serena as
ventanias, os mares. Se encontrarmos esse momento de fé, seremos
capazes de ultrapassar vários momentos difíceis. Mas, se não tivermos
isso, será difícil ultrapassar. Hoje eu falava para os noivos e comparava
55
a caminhada deles com o aproximar-se de um grande castelo. O castelo
da vida matrimonial, da construção da família, aquele castelo atraente e
sedutor. Comparava com aqueles castelos medievais que, quando entramos,
existe uma ponte levadiça. Atravessando-a, ela se levanta e aí não se pode
mais sair, porque a ponte está erguida. Quantas vezes não temos coragem
de atravessar essa ponte?! Essa ponte significa que realmente quebramos
com o passado para uma vida nova, corajosa, comprometida. Muitas
pessoas são como mineiro: nunca põem o pé em pinguela podre. Ficam
sempre com um pé atrás. Só construiremos história se colocarmos os dois
pés para dar apoio ao corpo.
Que o Senhor acorde e serene os nossos mares e que saibamos
que Ele, dormindo, não está dormindo, mas sempre acordado. Amém.
(21.06.97)
56
TODAS AS LEIS SE CALAM DIANTE DO AMOR
(Lc 10, 25-37)
Essa parábola do Senhor Jesus é muito mais revolucionária e
profunda do que pode parecer à primeira vista. Jesus escolheu cada
personagem e não fez uma parábola de qualquer maneira. Esses
personagens foram escolhidos conforme o contexto cultural do judeu. Por
isso, é profundamente chocante e, de certa maneira, inverte os valores e a
mentalidade daquela época. Em primeiro lugar, temos que compreender
a relação entre o judeu e o samaritano. Samaritano é como o francês no
dia da Copa (*) e o judeu seria o brasileiro. Era o grande adversário. O
samaritano era considerado uma espécie de herege, de alguém afastado,
porque vinha de outra dinastia. Eles não tinham o culto a Javé no Templo,
mas o cultuavam no monte Garizim. Era alguém que não seguia os ritos.
Seria, para nós, como uma pessoa de outra seita, de outra religião. Pois
bem, nós temos aí uma vítima.
O primeiro a passar por ela é o símbolo do sacrifício: um homem
dedicado ao Templo, que era o sacerdote. Ele passa ao lado e afasta-se.
Ele não faz isso por ser mau. Havia um rito que dizia que o sacerdote que
tocasse o sangue de qualquer vítima não poderia mais ir ao altar sacrificar-
se. Ficaria impuro e não poderia participar do sacrifício no Templo. Havia
uma lei e o sacerdote a obedeceu, simplesmente.
O levita era o teólogo daquela época. Aquele que conhecia a
Escritura, que passava o tempo estudando. Como poderia cuidar de uma
vítima, se ele precisava estudar e, provavelmente, preparar a explicação
da Palavra de Deus naquela celebração que eles tinham todos os sábados?
Ele não tinha tempo e passou à margem.
O samaritano é o desempregado. Não tinha compromisso com
nada. Ele passa e acolhe. Com isso, Jesus quer nos ensinar que a lei está
abaixo do amor. Isso é revolucionário! O sacerdote cumpriu a lei e ela era
sagrada. Mesmo a lei sagrada é inferior ao amor. Todas as leis da Igreja,
as mais rígidas, as mais sagradas, se calam diante do amor. Que os juristas
tremam, que os advogados levem um susto, mas para o cristão a única
e suprema lei é o amor. Quando alguém está possuído pelo amor, para
ele não existe lei, porque ele paira acima dela. Não que ele vá praticar
libertinagem. É que o amor é tão profundo, tão penetrante, vai tão ao cerne
57
da realidade, que alguém, impulsionado pelo amor, cumpre muito mais do
que todas as leis pedem.
A lei que proibia ao sacerdote não tocar no sangue, era para que ele
pudesse se recolher, se preparar, purificar-se para o altar. E deveria fazê-lo
normalmente. Mas quando essa lei entrou em conflito com a caridade, o
sacerdote foi curto de cabeça. Demonstrou que não entendia nada. Jesus
afirma que aquele que prescrevera aquela lei, o fez para que a seguissem
no normal da nossa vida. Mas ela cessa no momento em que entra em
confronto com a radicalidade do amor. A mesma coisa com o estudo.
O estudo é a Escritura. Isso quer dizer que se nós estivéssemos lendo a
Escritura e alguém batesse à porta, precisando de nós, deveríamos fechar
o Livro e atender à pessoa. Isso é mais importante que ler a Bíblia.
Jesus revolucionou todo o mundo religioso daquela época. Essa
parábola talvez seja a coisa mais profunda e revolucionária do mundo
e que até hoje não aceitamos. Porque até hoje as leis que funcionam em
nosso país não se preocupam com o outro, com a caridade. A caridade e o
amor estão acima de qualquer lei. No momento em que alguém necessita,
que está morrendo de fome, não há lei nenhuma; a única lei que existe é
o amor. Santo Agostinho tem uma frase, muito profunda, que diz: dilige,
et quod vic fac – ama e faze o que queres. Se amarmos mesmo, podemos
fazer o que quisermos, que o amor vai prevalecer. Mas que tipo de amor?
Aí está o problema.
Livros e livros foram escritos sobre o amor. Já citei aqui um livro
de um escritor francês – André Comte-Sponville – que nem é cristão:
“Pequeno tratado das grandes virtudes”. No seu último capítulo ele
escreve sobre o amor, uma das coisas mais lindas que já li. Lá ele fala
sobre os três níveis do amor – eros, filia e agape. Eros é o amor da falta.
É o nível mais baixo do amor. É aquele amor que completa a nós mesmos.
É um amor muito voltado para nós. Nós sentimos faltas e queremos
encher os nossos buracos, as nossas faltas, os nossos vazios. A gente ama
muito para se encher por dentro. Quando vamos torcer, ninguém gosta
de torcer sozinho. Precisamos ficar juntos de frente à televisão, gritando.
Para sentirmos juntos o vazio de perder um gol. Os jogadores brasileiros
entram de mãos dadas no campo. Isso é a falta. Precisamos sentir a mão
do outro. É amor, mas no grau mais baixo, no primeiro andar, o porão.
E paramos aí. A maioria dos seres humanos pára no primeiro andar, não
chega nem ao segundo.
58
Filia já é o amor na alegria do outro. Não é mais a falta, é a presença
que me faz feliz. Quando encontro um amigo, eu não sinto falta dele. Eu
me alegro por ele estar ali. Quando eu sinto falta, estou no primeiro andar,
quando eu me alegro com uma presença, cheguei ao segundo. É a alegria,
a vontade de estar junto. Jesus fala do terceiro andar. É o amor que sai
fora. A falta vem de fora para dentro. A filia é o encontro. Agape é o amor
que transborda. É o copo cheio que derrama.
Eu gosto dos povos antigos, pois eles sabem mais que nós. Santo
Tomás diz que o amor é beatitude e, quando define a beatitude da felicidade,
o faz muito bem. E diz uma frase linda: bonnum est diffusivum suiipsi – o
bem é difusivo em si mesmo. O amor é difusivo, ele esparrama, faz com
que a coisa decorra. Enquanto que a falta é o amor fusional, quer puxar o
outro para si.
O samaritano não sentiu falta da vítima, nem tampouco se alegrou
com ela. Ele, simplesmente, derramou sobre a vítima todo o seu cuidado,
todo o seu amor. Isso é realmente muito difícil. O primeiro e segundo andar
vemos todos os dias. Pais, filhos, namorados, esposos, amigos vivem se
beijando, se abraçando. É tão fusional que ficam quase parecendo um só.
O amor fusional é sempre falta e sempre acaba na primeira frustração. É
como água salgada, que deixa sempre um pouco mais de sede. O encontro,
a filia, já satisfaz um pouco mais.
Mas se atingirmos agape, podemos fazer o que quisermos, porque
aí saberemos amar e só veremos beleza, bondade. Amém. (11/07/98)
59
A ACOLHIDA PELO SABER OUVIR
(Gn 18, 1-10a/Lc 10, 38-42)
A primeira leitura e o Evangelho refletem muito bem a mentalidade
semita. Para a sociedade semita era fundamental receber um hóspede em
casa. Era a maior alegria, a maior festa. Vejam esse fato ocorrido com
Abraão, que nem casa tinha, mas apenas uma tenda. De repente, três
pessoas se aproximam. Sua preocupação é correr ao encontro dos três
e oferecer tudo o que tem. Ele não sabia que esses três, mais tarde, à
luz do Novo Testamento, seriam interpretados como sendo a Santíssima
Trindade. Uma espécie de símbolo, imagem, sinal da Trindade. É uma
presença divina, na forma de três pessoas, de tal maneira que deixam o
recado do mistério. Aquela mulher estéril, velha, vai dar à luz. Só Deus
é fonte de vida. Precisamos descobrir que, ao acolher alguém em nossa
vida, ao receber alguém em nossa casa, acolhemos a vida, acolhemos o
Mistério Trinitário, acolhemos a presença do próprio Deus – isso já no
Antigo Testamento.
Mais bonito ainda é a cena do Evangelho. Tem vários lados. É
um Evangelho muito estudado, muito interpretado, simbólico. Marta e
Maria eram irmãs de Lázaro, esses três tão amigos de Jesus. Era a casa
onde Jesus viveu mais tempo. Era bem acolhido, se sentia bem. Ia com o
coração alegre, como quem vai para a casa de uma pessoa amiga. Podemos
imaginá-lo aproximando-se, com o coração ardendo de ternura, porque
sabia que seria bem acolhido.
Marta é o símbolo da tradição patrística, da vida religiosa ativa.
Maria representa a vida religiosa contemplativa. Marta, símbolo do leigo
que trabalha na Igreja. Maria, símbolo de todas as pessoas que rezam,
estão enfermas, não podem trabalhar. Mas eu acho que, mais profundo
ainda é o simbolismo de que Marta e Maria somos nós. Cada um de nós
é Marta e Maria. São dimensões de nossa existência. Todos somos Marta,
porque todos somos pessoas disponíveis. Queremos fazer, queremos
trabalhar. Também as contemplativas pensam no mundo, rezam, trabalham,
produzem. Estão inseridas na sociedade, a seu modo. São Marta também.
Somos Marta quando acolhemos. É a coisa mais difícil no mundo de
hoje. Somos muito surdos aos nossos irmãos. Tem muita gente querendo
falar, mas ninguém ouve. Tem muita gente querendo abrir o coração.
60
Sabem o que eles fazem? Pagam psicólogos. Pagam caro para serem
ouvidos. Quando ouvimos de graça, quando ouvimos com carinho e amor,
tem muito mais força do que qualquer psicologia. Há pais que não ouvem
os filhos, filhos que não ouvem os pais, namorados que não sabem falar.
O único gesto que conhecem é o gesto corporal. Faltam palavras. Parece
que o nosso vocabulário diminuiu, as pessoas não têm palavras. Só fazem
ruídos, mais próximas do animal que do ser humano. Nós criamos a palavra
– essa grande descoberta humana! Repararam que os animais não falam?!
Só nas histórias que eu conto para as crianças na missa de domingo. O
papagaio repete sons sem saber o que representam. Nós criamos símbolos
para exprimir o que há de mais profundo em nós.
Muitas vezes ficamos parados, calados, casmurros, fechados, sem
palavras. Hoje, o Evangelho mostra um Jesus que fala e uma Maria que
ouve. Uma Maria que ouve e uma Marta que fala. Isso é gente que sabe se
comunicar. Esse é o nosso lado Marta. Também somos chamados a saber
ouvir. Ouvir os outros, ouvir as palavras, ouvir um olhar, ouvir suspiros,
ouvir a dor. O poeta não diz que ouve estrelas? Nós temos que ouvir as
estrelas dos corações das pessoas. Ouvir tudo o que elas querem dizer.
Como precisamos ter ouvidos hoje! Sentimos uma falta enorme. Quantas
vezes, na minha vida de sacerdote, recebo pessoas que falam horas
seguidas?! Às vezes não digo uma palavra sequer, e elas agradecem a
conversa. Ela não precisava que eu falasse, queria que eu ouvisse. Bastava
o meu olhar estar aberto para dizer que eu estava ali para ouvi-la. Ela
volta renovada, porque precisava dizer alguma coisa. Precisava de alguém
realmente presente.
Conheci uma pessoa que tinha contato com um grande filósofo
francês – Teilhard de Chardin – e ela me disse que a coisa mais fascinante
naquele homem, de uma inteligência extraordinária, era que, quando
ele conversava, tinhámos a impressão de que éramos os únicos para ele.
Ficava inteiro nos ouvindo, como se nada mais existisse.
Sejamos assim para cada pessoa que se aproximar de nós. Fechemos
todas as janelas e nos abramos só para ela, para que sinta que, naquele
momento, nós somos todo dela, todo para ela. Aí seremos como Marta e
Maria ouvindo Jesus. Amém. (18.07.98)
61
A SEMENTE DE TRIGO QUE GUARDA A NOSSA
ESPERANÇA (Mt 13, 24-43)
As parábolas do Senhor são comparações. Há um provérbio muito
simples que diz que “a comparação é uma mesa de três pés: se apertar
muito, ela cai”. Não podemos exigir da comparação que ela dê conta da
explicação. Ela é sempre imperfeita. Muitas vezes, quando a entendemos
ao pé da letra, parece que Jesus fala que há pessoas que são joio e outras
que são trigo. Que no dia do juízo, Ele irá separar os bons dos maus.
Os bons – o trigo – serão guardados no celeiro, que é a eternidade. E os
maus – o joio – serão queimados no inferno. Essa é a leitura normal que
se faz. Mas eu acho que o Senhor quer dizer-nos coisas mais profundas
e que, portanto, sirvam para nós aqui e agora. Não precisamos esperar o
último dia, porque, do contrário, estaremos esperando até o juízo final,
para vermos se a parábola se realizará ou não.
O que é joio e o que é trigo? Naturalmente, na linguagem da
experiência agrícola de Israel, joio seria a nossa pequenez que, a qualquer
tentação, cai. Quem trabalha no campo sabe que, muitas vezes, a plantação
pode estar muito boa, mas o mato pode vir e acabar liquidando com ela.
O trigo é a planta que foi cuidada. Temos que olhar para cada um de
nós. Somos, simultaneamente, trigo e joio, essa é a realidade. Houve um
momento em que o Senhor plantou em nós um trigo maravilhoso. Foi ali,
naquela pia batismal. Naquele momento em que recebemos no batismo
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em nosso coração só havia trigo, e do
melhor, porque foi o próprio Criador que o colocou lá, com a presença
de seu Espírito. Mas a criança vai crescer, e vai crescer no meio de tanto
joio que existe na história: na família, na escola, nos colegas, nos amigos,
no trabalho, no lazer, em todas as televisões, nos rádios. É o joio que vai
penetrando, infiltrando dentro do trigo, plantado pelo próprio Senhor.
Aí começa o nosso trabalho pedagógico, catequético, educativo. O
que vamos fazer para que o trigo germine mais, cresça melhor e evite
que o joio abafe o bem que foi plantado? Nos primeiros anos é quando o
joio mais aparece, e sem culpa da criança. Ele entra pela nossa inércia,
pela nossa incapacidade. Ainda outro dia conversava com uma jovem
psicanalista, muito lúcida, que está trabalhando na Pastoral da Criança. Ela
está tentando passar às mães que têm filhos pequenos, que o fundamental
62
é que elas acolham a criança com o olhar de ternura. Ela ainda disse uma
coisa, com a qual me espantei: que algumas mães, nos primeiros meses,
não têm coragem de olhar a criança, que acaba mergulhando num terrível
abandono e aí se planta o primeiro joio, que dificilmente será arrancado.
A criança já nasce fazendo a experiência do abandono. Ela, que estava
tão bem no seio materno – aquele lugarzinho escuro, envolvido em água,
quentinho. Toda ela vivendo da mãe, da comida da mãe, sem risco nenhum.
Só, de vez em quando, um exame atrapalhava o seu sossego. Ela estava
toda protegida e, de repente, é jogada para fora e se sente absolutamente
abandonada e desprotegida. Não podemos imaginar o choque para uma
criança que acaba de nascer. Ela só se reencontra nos braços, no seio, no
olhar da mãe que acolhe.
Mães, a responsabilidade que vocês têm para com as crianças nos
primeiros meses, nos primeiros anos, é imensa! O olhar da mãe é o mais
importante, mas também existe o olhar do pai. Ele também olha. E como
os homens têm medo de olhar com ternura! Que grande equívoco! Que
erro estupendo de antropologia, de psicologia, pensar que ser homem é
ser durão, é ser machão, é ser estúpido! Cocheira não é lugar de homem,
é lugar de cavalo. O homem também é capaz de olhar com carinho e
ternura para o seu filho, para estruturar essa criança. E aí começa a
germinar aquele trigo que Deus colocou antes mesmo do batismo, porque
Ele foi o Criador. Desde o momento de sua concepção, a criança já tem
Deus trabalhando, tecendo no seio materno, os fios que vão constituir a
sua vida. Mas, sobretudo, no momento do batismo, a presença de Deus é
muito maior.
Se os pais não ajudam, e a criança vai para a escola, começa a
responsabilidade dos professores. Eles serão aqueles que colocarão na
criança o joio ou farão o trigo crescer. Os professores talvez não saibam
medir a importância que têm na história da criança. Medimos as pessoas
pelos seus salários. Um executivo de uma transnacional, o qual só faz
jogadas econômicas horrorosas, ganha uma fortuna, enquanto um professor
do ensino fundamental no Brasil tem um salário miserável. Mas é na mão
desse professor que está um bem muito mais valioso que o de muitos
executivos. Ele está construindo um ser humano, enquanto outros estão
construindo rios de dinheiro, ou talvez corrompendo ainda mais, como
estamos vendo no atual cenário político.
63
Professores, não quero de forma nenhuma justificar o salário baixo
de vocês, mas quero dizer que a vocação do professor, sobretudo do curso
primário, maternal, é de uma importância única. E este país tem tanto
criminoso, tanto assalto, tanta violência crescendo, porque nos primeiros
anos a criança não é cercada de carinho. Porque nos primeiros anos a
criança não tem aquela presença acolhedora. Falta aconchego. Aí são
jogadas na rua. O que podemos esperar de uma criança que vive rodando
nas ruas a qualquer hora? Podemos esperar que elas se tornem um São
Tomás de Aquino, um São Luis Gonzaga? Naturalmente, é muito mais
provável que sejam criminosos.
Temos que começar a acordar, porque não é possível que essa
violência continue crescendo. Agora, nas menores cidades do interior, já
há assaltos em ônibus. Quase não há pessoas que não tenham passado
por experiências de violência. Depende muito desse joio e desse trigo
que é cultivado nos primeiros anos. É um longo processo, que tem que
começar logo. Quanto mais tarde começar, mais tarde também veremos os
efeitos. É preciso que a criança cresça bem, para ser um cidadão digno da
nossa sociedade. A humanidade é convivência, é convívio. E hoje é difícil
crer no ser humano, tal é o descrédito que temos, vendo tanta maldade,
tanta corrupção. Toca-nos ser os últimos a descrer no ser humano.
Devemos confiar que, mesmo quando o joio crescer gigantescamente,
alguma sementinha de trigo ainda existirá. É nela que apostamos. Amém.
(17.07.05)
64
SÓ DESCOBRIMOS O QUE JÁ TEMOS
(1Rs 3, 5.7-12/Mt. 13, 44-46)
A primeira leitura é muito bonita e eu não queria deixá-la passar
sem uma palavrinha.
Vocês têm que imaginar o que significou para Salomão vir depois
de Davi. Davi foi aquele grande rei que Deus havia escolhido. Foi
praticamente quem constituiu o povo de Israel e lhe deu uma certa solidez
como povo. De repente, vem um adolescente, chamado Salomão, para
substituí-lo. Pesava-lhe uma enorme responsabilidade. Quando ele olha
para aquele imenso povo – era grande embora, comparado com o Brasil,
não fosse nada – e tem um sonho. Sonho não é só o sonho da noite, mas os
desejos profundos. Sonhos, nós temos acordados ou dormindo porque o
desejo nos move sempre. Os psicanalistas gostam muito de trabalhar essa
categoria. Somos mexidos por dentro pelos desejos.
O que pode imaginar um jovem que, de repente, se sente com tanto
poder, ao ser sagrado rei de Israel, cujo nome vai se perpetuar ao longo
dos milênios? Até hoje falamos nele. Ele tem um sonho de encontrar
Deus, esbarrar com a sua grandeza. E ele fala a Deus. Não pede poder
para destruir os outros, como tantos que estão agora no comando e querem
fazer guerras, preparam armas, pagam fortunas aos pesquisadores de armas
mortíferas. Salomão não quer destruir. Também não pensa em aproveitar
o pouco tempo para enriquecer-se. Quantos fazem isso?! Sabendo que
têm pouco tempo no poder, tentam ganhar o máximo de mensalões.
Salomão não pensa nisso. Ele não pensa em glória. Só quer uma coisa:
ser compreensivo com o povo. Quer receber a graça mais importante para
um homem que dirige, que governa, para um pai, uma mãe, um professor,
e que nós chamamos de discernimento. Ser capaz de separar, de perceber
onde está o trigo, onde está o joio, onde está o bom, onde está o mau.
Nenhuma realidade humana é pura. Nenhuma também é só perversa.
Os dois elementos estão sempre misturados, mas não na mesma medida.
Varia muito. Ele pede esse dom do discernimento, da sabedoria – sofia.
Sabedoria, saber, sabor, todas têm a mesma raiz. Aquele sabor da realidade,
aquele tato, aquele gosto, aquele paladar que descobre e sabe perceber
onde está o melhor, onde está o pior. E ele vai tentar. Depois vai se desviar,
vai se perder em meio a todas aquelas mulheres que virão do estrangeiro e
65
lhe trarão outros deuses. Mas, enquanto esteve fiel a Javé, ele foi sábio. A
sabedoria salomônica foi famosa. Que cada um de nós se coloque no seu
lugar, no seu trabalho e procure esse senso de distinguir as coisas. Todos
somos jogados nessa realidade ambígua. Todos, sem exceção. E é lá que
temos que nos mover.
A palavra de Jesus vem completar Salomão. Jesus diz que havia um
terreno com um tesouro. A primeira coisa que temos que fazer é descobrir,
achar o tesouro. Parece óbvio, mas não é. E se formos mais profundos
ainda, só descobrimos aquilo que já temos. Guardem essa frase, que é de
Agostinho. Se vocês descobrem uma gotícula de amor, vocês têm amor
dentro de si. Se descobrem um pouquinho de pureza, é porque são puros.
Se descobrem um toque de justiça, é porque têm justiça dentro de si. Os
impuros, os maus, passam ao lado do bem, ao lado dos tesouros, e não
vêem. Os tesouros estão aí. Falta-nos olhar, porque falta dentro de nós
aquilo que São Tomás chama de co-naturalidade. Falta-nos ser conaturais,
ser sym+pathein, isto é, ter uma simpatia. Quando dizemos simpatia, em
português, atribuímos uma coisa muito superficial. Alguém é simpático
porque ri, toma Prozac(*), faz uma maquiagem bonita. Então é simpático.
Mas não é este o sentido etimológico. Por isso eu gosto de etimologia.
Ela diz que simpatia é sym+pathein – participar da vida interior do outro,
entrar dentro. Não é por fora não. Só há simpatia por dentro. Eu preciso
ter simpatia com a justiça, com a beleza, com a paz, com a pureza, com
a bondade. Eu só posso ter essa simpatia se entrar dentro, captar essa
realidade. Aquele que passa no terreno onde está o tesouro deve ter uma
espécie de olhar geológico, que atravessa as camadas. Vai fundo e descobre.
Isso que hoje os geólogos fazem com seus aparelhos, nós fazemos com a
nossa afetividade, com a nossa simpatia: ir aprofundando e descobrindo.
Agora vem o segundo passo. Depois que descobrirmos, o que
faremos? Jesus fala em ir e vender tudo. O que significa ir e vender tudo?
Se dispor para encontrar e arrancar este tesouro. Para isso precisamos
nos despojar. Se estivermos fechados, presos em nós mesmos, ainda que
passemos e percebamos um bem, não seremos capazes de captá-lo, porque
estaremos fechados. Precisamos nos abrir para que o bem penetre dentro
de nós. É isso que é ir e vender todas as coisas. Não é nada de material que
temos que vender. Vender é limpar-se, purificar-se, abrir-se, acolher, ter o
coração aberto para receber a realidade e a justiça que vem de Deus.
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Jesus continua dizendo que é preciso comprar. Estamos acostumados
por demais a comprar a toda hora, nos supermercados, nos shoppings.
Mas não é isso, não é essa compra de comerciante. Comprar é tornar
própria uma outra realidade. Eu trago para dentro de mim uma realidade
que era de outro. A coisa pertencia à loja e agora é minha. Não importa
se é comprar com dinheiro, nem se é uma simples troca. É trazer novas
relações, novas compreensões, novas visões de mundo, novas percepções,
que se tornarão minhas.
Aí Jesus poderá dizer: “o Reino de Deus é isso”. Se quisermos
entrar no Reino de Deus, ser este Reino, precisamos trabalhar todas essas
fases da descoberta. Mas a mais importante é já ter plantado dentro de si
estes pequenos sinais de bondade, que irão captar os outros sinais. Essa
sensibilidade, essa possibilidade, essa simpatia com o bem, com a justiça,
com a beleza, com o amor. Amém. (24.07.05)
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A GRANDE REDE QUE PROCURA BONDADE
(Mt 13, 44-52)
As palavras de Jesus têm duas faces. Elas revelam quem é Deus para
nós e quem somos nós para Ele. Nas últimas parábolas eu interpretei mais
quem somos nós para Deus. Mas nessas vamos tentar encontrar um retrato
do próprio Deus. Será possível isso?
Quando Jesus diz que o Reino de Deus é semelhante Ele está dizendo
que Deus atua dessa maneira. Podemos interpretar que o Reino de Deus é
a sua maneira de agir, de atuar na história. Portanto, uma maneira de Jesus
nos revelar um pouco o mistério escondido na ação de Deus. Olhando
os acontecimentos, olhando nossa vida, com os nossos olhos normais,
não o vemos, a não ser que alguém queira vê-lo naquelas vidraças que
apareceram em São Paulo, como se fosse possível ver Nossa Senhora em
vidraças (*). Mas Deus não age assim. Deus não age demonstrando ser, na
sua visibilidade, como Ele é e nem pode fazê-lo, porque é infinito. Nossos
olhos são pequenos. Não somos capazes de captar o infinito. Deus só pode
revelar-se escondidamente. É a maneira de Ele se mostrar. Ele se mostra
escondidamente como um tesouro ou uma pérola escondidos.
Quando dizemos tesouro ou uma pedra de grande valor, o que
queremos dizer? Os tesouros estão sempre escondidos para que os ladrões
não os roubem, para que a traça não os estrague. A maneira de Deus
trabalhar na história é no escondimento, sem alarde, sem grito. Por isso,
precisamos ter um olhar bem perspicaz para discernir a sua maneira de
atuar. Jesus diz tesouro, e o que faz um tesouro? Um tesouro atrai. Se
dissessem agora para vocês que em tal lugar há um tesouro escondido,
imaginem a quantidade de enxadas que iriam aparecer, todas cavando
para ver se o encontravam.
Por que não cavamos o nosso coração para encontrar lá, Deus
presente? Por que a esposa não cava o coração do esposo para encontrar
Deus lá dentro? Por que os pais não cavam o coração de seu filho
adolescente para encontrar Deus lá dentro? Porque é lá que Ele está,
escondido no coração de cada um de nós. Naqueles traços de bondade, de
compaixão, de ternura, de compreensão que temos. Toda vez que aflora em
nosso interior um traçozinho mínimo de bondade, um sorriso de perdão é
o tesouro que mostra um pouquinho a sua face. Podemos cavar mais ainda
68
e vamos encontrar mais tesouros. Estamos muito mais habituados a ver
os defeitos, as falhas, os limites, os pecados, que são muitos e devem ser
punidos com tridentes, com fogo. Sempre imaginamos essa face de um
Deus que pune e castiga.
Jesus nos fala hoje que Ele é como a pérola que os mergulhadores,
aqueles que gostam de vasculhar os oceanos, encontram lá embaixo. Uma
pérola que precisou de anos, séculos para se formar, gotícula por gotícula.
Aquela maravilha se forma nas profundidades dos mares. É na profundidade
dos mares de nossos corações que se formam as pérolas e não sabemos
ver. Essa é a tristeza. Quanta pérola escondida nas profundezas do coração
de vocês! Quantas belezas, quantos momentos, quantos sonhos, quantos
desejos, quantas utopias, quantas buscas! Agostinho, quando estava
totalmente desvairado na sua vida de jovem perdido, mesmo lá, ele dizia:
“Inquieto está o meu coração!” Essa inquietude do coração é a presença
da pérola em nós. Muitas vezes a dor, a tristeza, a mágoa que a gente
pensa que é algo negativo, é um sinal de que Deus está acordando nossa
consciência que dormia eternamente em berço esplêndido. Muitas vezes
deixamos as nossas partes boas, nossas partes melhores adormecidas, e de
vez em quando o Senhor as acorda. São as pérolas que aparecem. Esses
são os tesouros que descobrimos.
E o que é essa rede? Por que Deus está continuamente jogando essa
rede? Para Ele pescar, catar aqueles peixezinhos de bondade que temos
dentro de nós para fazer esse imenso banquete. Ele mesmo quis ser e
chamar-se peixe. Os cristãos quando queriam desenhar Jesus, desenhavam
um peixe, porque, em grego, peixe é Cristo. As letras gregas de peixe
formam Jesus Salvador Filho de Deus. O próprio nome de peixe já revela
o nome de Jesus. E como os cristãos viam o peixe como símbolo de
Cristo, também podemos ver os peixes destas redes. O pescador quando
pega esse peixe fica feliz, aumenta e aumenta, e o peixe fica maior ainda.
Nós devemos ser como os pescadores e fazermos crescer, até exagerar,
os peixes de bondade dos outros. Esses exageros são felizes exageros.
Quanto mais os nossos olhos virem bondade nos outros, melhores seremos.
A bondade dos outros torna-nos bons e a nossa bondade torna os outros
bons. Amém. (27.07.02)
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BUSCANDO FORÇA INTERIOR
(Js 24, 1-2.15-18/Jo 6, 60-69)
Josué recorda ao povo: “Vós éreis escravos no Egito!” Portanto, uma
experiência de escravidão, de quem estava atado, amarrado. De repente,
por uma profunda força interior, conduzidos por Moisés, esse povo sai da
escravidão. É uma experiência de libertação. Quantas vezes nos sentimos
atados, amarrados, até fisicamente. Não precisamos ir ao Egito não.
Podemos ficar no egito de nossa casa, da nossa escola, de nosso trabalho.
De repente, surge dentro de nós, uma força, uma energia e começamos a
caminhar. São situações difíceis que acontecem na nossa vida e que nos
levam a assumir algumas atitudes um pouco mais corajosas.
Conheci um casal que levava uma vida um pouco burguesa.
Trabalhavam na Embaixada do Brasil, em Roma. Ele era cônsul e levavam
uma vida de festa e recepções. Parecia um casal normal, que não tinha
nenhuma energia especial. Acontece de serem transferidos para o Uruguai
e esse cônsul brasileiro foi seqüestrado pelos Tupamaros, um grupo
clandestino uruguaio que combatia o governo militar naquela época. Para
pressionar o governo, seqüestraram o cônsul. Diante dessa situação, vocês
não podem imaginar a mudança dessa jovem esposa! Era uma moça frágil,
sensível, delicada. Pois bem, quando viu o seu esposo seqüestrado, muitas
vezes ela se camuflava e ia conversar com os guerrilheiros. Atravessou
várias vezes a fronteira, clandestinamente. Conseguiu arranjar todo o
dinheiro para o resgate de seu marido. Lutando e se esforçando com uma
coragem gigantesca, enfrentando a morte, nos bairros mais perigosos de
Montevidéu. Parecia uma leoa. Quem diria que aquela mulher tão frágil,
tão afetiva, tão simples, tão burguesa, de repente, diante de uma situação
limite, acorda e encontra uma energia profunda?!
É isso que Josué pergunta ao povo. Muitas vezes, estamos parados,
tranqüilos. De repente, acontece uma situação difícil, um desemprego,
uma doença. Isso é descobrir Javé. Nós talvez precisemos passar por
situações mais difíceis para perceber e descobrir, dentro de nós, energias
maiores que, muitas vezes, passam toda a vida dormindo, se não tivermos
essas ocasiões. O povo de Israel conheceu esse momento e os apóstolos
também conheceram esse momento.
Imaginem, eu falando para vocês aqui e, de repente, todo mundo vai
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embora e só ficam doze pessoas aqui na igreja! Aí eu perguntaria, como
também no curso de Teologia: “Vocês também não querem ir embora?”
Mas Pedro diz: “Não, quero continuar!” Quantas vezes nós – sobretudo
vocês, jovens, adolescentes que começam a freqüentar a Igreja – de
repente vêem seus colegas partindo, saindo? Não se lembram que há
um, dois meses houve uma enorme celebração do Crisma, com mais de
duzentos crismandos? Onde estão eles hoje? Escafederam-se, sumiram. E
porque sumiram, os colegas ficam tentados a sumirem também. Cada um
que sai, de certa maneira, quase que arrasta o outro. É como dizer: você
também quer ir? A mesma coisa com a primeira comunhão. Levas e levas
de crianças que desaparecem. Como aquela frase que dizia o bispo: “Se
queres mandar embora os morcegos, dê para eles o diploma do Crisma”.
Mas se continuam a vir a cada domingo, a participar, a estudar, isso é força,
é coragem. Isso é duro, é difícil. O normal é não vir. O normal é irmos
levando na onda, na inércia. A lei básica da física é a inércia. Pois bem,
essa lei também é da psicologia humana. Nós somos terrivelmente inertes.
Somos um barco que vai seguindo a correnteza. Que barqueiro quer remar
contra a correnteza? Nenhum. Todos só querem descer. Assumir as nossas
energias, a nossa vida em nossas mãos e dar um destino a ela, poucas
pessoas são capazes disso. A maioria segue o arroz-com-feijão normal do
cotidiano. Não é capaz de tomar uma decisão mais firme, mais forte.
Haverá uma ocasião, da qual ninguém escapa: quando esbarrarmos
com a morte ou quando a morte bater na nossa família. Aí somos
sacudidos. E, sobretudo, quando morre um jovem, uma criança, os pais
ficam realmente desfeitos, principalmente em casos de suicídio, que são
cada vez mais freqüentes. Não dá para continuar inerte, é preciso acordar,
refazer, recriar toda uma vida.
É claro que não devemos esperar isso. O ideal é que possamos
acordar antes que aconteça isso em nossa vida. Mas a história humana
é dura e muitas vezes nos coloca diante desses fatos. Por exemplo, uma
separação. Tudo que ia bem precisa ser reestruturado. A quantidade de
famílias que têm somente a mãe para sustentá-las é muito grande. Seja por
ser mãe solteira, ou porque o marido a deixou. Aí vemos coisas belíssimas.
É que nossos olhos não conseguem penetrar a beleza da história.
Hoje mesmo, um colega me contava de uma família alemã, família
burguesa, vivendo num país rico. Acolheram um negro do Zaire, que
não pôde voltar para a sua terra. Aquela senhora, já aposentada, voltou
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a trabalhar para, com o dinheiro de um segundo salário, sustentar esse
zairense. Uma pessoa aposentada, já garantida em sua vida, na inércia
de sua existência, de repente volta a trabalhar, somente para ajudar um
estrangeiro. É muita energia, é muita coragem!
“A quem iremos, Senhor? Vós tendes palavras de vida eterna!”
Amém (23.08.97)
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DOM HELDER: O MENSAGEIRO DA
ESPERANÇA (Mt 16, 21-27)
Ontem se apagou uma das lâmpadas mais brilhantes da nossa Igreja
no Brasil. Faleceu, em Recife, Dom Helder Câmara. Vou pedir licença a
Jesus para falar sobre ele, ao invés de comentar o Evangelho, pois muitos
de vocês são jovens e não se lembram.
Dom Helder foi uma das consciências mais lúcidas deste país, e
também das mais corajosas nos momentos escuros da repressão. Para
vocês terem uma idéia, era um homem franzino, fraquinho, magro,
nordestino, cearense subdesenvolvido. E o governo militar, com tropas,
canhões, tanques, galardões, temiam esse homem. De tal maneira
que, secretamente, houve um decreto, que depois veio a público, que
determinava que o seu nome não poderia ser citado em nenhum jornal
do país, em nenhum canal de televisão. Decretaram, o que chamavam,
naquela época, a sua morte civil, tal era o medo que tinham desse homem
franzino. Pequenino, mas de uma coragem de atravessar oceanos. Era
talvez o brasileiro mais conhecido no estrangeiro. Quando ia a Paris,
aos Estados Unidos, os auditórios se enchiam para ouvir aquela pessoa
pequenina. Tinha coragem, tinha clareza de visão e amava o país, o povo
brasileiro. Amava o mundo, amava a humanidade.
Ele nos mostrou a esperança, despertou a consciência desse povo,
para que pudesse abrir os seus olhos para horizontes maiores. Nunca perdeu
a esperança, nunca perdeu o otimismo, nem nos momentos mais difíceis.
O seu secretário foi assassinado violentamente pelas forças militares.
Chegaram investigadores, dizendo-lhe que iriam investigar quem fora o
assassino. Ele respondeu: “Não precisam investigar. Procurem entre vocês
mesmos!” Não tinha medo de ninguém, enfrentava a todos. Armaram-lhe
muitas armadilhas. Certa vez uma moça chegou para conversar com ele.
Era uma espiã do governo militar. Ele olha para ela e diz: “Minha filha,
que tristeza! Você, cumprindo este papel. Você, uma pessoa tão bonita, tão
jovem, querer trair os seus amigos”. Era um homem de nitidez, de total
transparência, com uma coragem enorme.
Foi candidato ao prêmio Nobel e não o recebeu, porque o nosso
governo pressionou o júri da Suécia, para que não votasse no seu nome.
O prêmio Nobel envolve política também. Milhares e milhares de cartas
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chegavam à Suécia pedindo que lhe conferissem o Prêmio Nobel da
Paz. Mas, para não enfrentarem o governo militar brasileiro, criaram um
prêmio especial para ele. Ele recebeu todo o dinheiro, que era muito, fez
uma pequena reforma na casa paroquial, comprou uma grande fazenda e
dividiu entre os posseiros. Não ficou com nenhum tostão sequer.
Quando era arcebispo de Recife, deixou o palácio episcopal e foi
morar na sacristia de uma igreja. Não tinha nem casa para morar. Eu conheci
o seu quartinho, ao lado de uma igreja. E era o arcebispo de Recife! Não
tinha motorista, não tinha carro, não tinha segurança. Saía pelas ruas de
ônibus. Foi um homem que ficou conhecido por todo o mundo, pela sua
caridade, pela sua grandeza. É bom que guardemos esta memória, porque
tivemos um grande homem neste país.
Cada vez que olharmos os nossos políticos, tão corruptos, tão
perdidos em tanta sem-vergonhice, é bom saber que o Brasil – o Ceará,
do sofrido Nordeste – teve a glória de gerar a coragem, a grandeza desse
homem. Noventa anos de idade. Morreu na sua velhice, mas no seu
esplendor.
Quando João Paulo II veio pela primeira vez ao Brasil, em 1980
- naquela época estava bem lúcido e forte –, levantou, o abraçou e disse:
“Meu amigo Helder!” Era um homem que realmente vivia o mundo, no
meio do povo. Quis identificar-se com Jesus, deixando todas as glórias,
todas as pompas. Não usava uma insígnia sequer.
Eu tive a alegria imensa de pregar um retiro para ele. Uma vez,
convidou-me para ir a Recife. Dormia no quarto ao lado do dele e percebi
uma coisa. Durante a noite, umas cinco, seis vezes, o despertador tocou.
Depois eu soube que ele levantava-se várias vezes durante a noite para
rezar. Era um místico. Rezava durante a noite, porque o seu dia era tomado
por outras atividades. Passava grande parte das noites em oração. Dormia
pouco, porque vivia mais do Espírito.
E agora, aos noventa anos, um pouquinho antes de morrer, um grupo
de amigos escreveu um livro sobre ele, que acabou de sair. Eu mesmo tive a
alegria de participar. Ainda deu tempo de ele ver amigos do mundo inteiro
prestando-lhe essa homenagem. Para mostrar que o mundo estava grato a
essa pessoa grandiosa, com quem tivemos a felicidade de conviver.
Vamos agradecer a Deus por ter existido esse homem, por ter vivido,
sobretudo naquela época difícil. Quando o Recife estava todo cercado pelo
Exército, enfrentava, defendia os presos políticos, ia às delegacias arrancar
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as pessoas que estavam sob a tortura. Não tinha medo de nada. Nem de
metralhadora, nem de canhão! Mas também ninguém tinha coragem de
tocá-lo, porque sabiam que tocavam num santo. E as pessoas, por piores
que sejam, por mais criminosas que sejam, quando encontram um santo,
estremecem.
Um santo é coisa tão rara que, quando nos aproximamos dele,
sentimos alguma coisa diferente. Vinham muitas pessoas de fora, de
outros países, só para vê-lo, nada mais. Chegavam, olhavam e diziam:
“Eu encontrei um santo, encontrei alguém que é grande. Eu vi o olhar
de alguém que atravessa horizontes!” Ele pensava mil anos à frente. Não
cabia na pequenez. Usando a imagem de Leonardo Boff, ele era águia. E
quantas vezes somos essas galinhazinhas, ciscando nos nossos terreiros?!
Ele era águia e suas asas abriam-se para céus de brigadeiro.
Saber que a Igreja do Brasil, saber que o Brasil gerou e albergou
este homem, é uma alegria. Rezemos mais a ele do que por ele. Amém.
(28.08.99)
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RESPONSABILIDADE ÉTICA
(Ez 33, 7-9/Mt 18, 15-20)
Numa linguagem da época, seja de Ezequiel, seja do Novo Testamento,
as leituras de hoje falam de um dos problemas mais graves da atualidade.
Falam da responsabilidade ética. Há um grande filósofo alemão, Hans
Jonas, que escreveu um livro monumental sobre a responsabilidade. E
hoje é um dos temas mais discutidos na ONU (*), nas grandes assembléias
mundiais. As pessoas se perguntam sobre quem é responsável.
Por exemplo, quando vaza um segredo – como quando o real foi
desvalorizado – e aí alguém ganha uma fortuna. Alguém pode ter sabido
dias antes, comprado dólares e, no dia seguinte, ganhado o dobro. Quem
é responsável por essa jogada econômica? Essa é a pergunta. E é uma
pergunta muito séria, muito grave. Vale a pena começarmos a refletir
sobre ela.
Em primeiro lugar, diante de quem somos responsáveis? Eu faria
uma comparação muito simples. Imaginemos um lago tranqüilo. Eu jogo
uma pedrazinha no meio do lago e formam-se círculos concêntricos,
que vão-se afastando. Lentamente, esses círculos vão-se apagando, até
chegarem à margem, onde se dissolvem. Onde caiu a pedra, o círculo é
mais forte, porque houve o choque da pedra. Pois bem, nós somos mais
responsáveis pelas coisas e pessoas que estão mais próximas do nosso
círculo.
A responsabilidade maior é para com a nossa família. É o
primeiro círculo, onde nascemos, onde fomos criados, onde vivemos. A
responsabilidade maior é entre esposos, entre pais e filhos, entre filhos e
pais. Essa é a primeira grande responsabilidade histórica que todos temos.
Aí não podemos nunca ser omissos. Também o filho tem obrigação de
advertir seus pais, quando estes se desviam. Adultos e até anciãos também
se perdem. Muitas vezes há pais que entram por caminhos errados e os
filhos têm obrigação de também ajudá-los. Assim como os pais também
têm obrigação de ajudar os filhos. Da família nasce a sociedade. É o germe
da sociedade, sua primeira célula.
Para as crianças eu contei a historinha de um menino. A professora
pediu, na escola, que cada um trouxesse um símbolo da família. Uma
das crianças trouxe uma grande rede de pesca. A professora estranhou
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que uma rede pudesse ser símbolo da família. Rede é para pescar peixe.
A criança pegou uma tesoura e cortou um nozinho que estava no meio
da rede e ela toda se desfez. E ela disse: “esse nó central é a família. Se
eu cortá-lo, a sociedade, o país se desfaz”. Nós estamos vivendo agora
essa crise ministerial, com as dificuldades no mundo da economia, falta
de orientação sobre qual caminho a tomar. O que vai sustentar este país
são vocês, na família. Disso não há dúvida. Essa é a primeira grande
responsabilidade.
O segundo círculo é o da escola, para quem estuda; o círculo do
trabalho, para quem trabalha; o círculo da amizade, para quem tem
amigos, que somos todos nós. Vou tomar a amizade, porque é muito pouco
trabalhada. Quando falamos de amizade, em geral falamos de carinho, de
afeto, de estar junto, de gostar um do outro. Mas esquecemos um ponto
fundamental da amizade, que é a responsabilidade pelo amigo. Há um
genial pensador francês – Exupéry, que, aliás, esteve várias vezes no
Brasil. Em Florianópolis, há até um hangar, onde ele deixava seu pequeno
avião. Morreu num acidente, quando seu avião caiu no mar. Ele diz que
nós somos responsáveis por aqueles que cativamos (**). Isto é, quando
criamos um elo de amizade, começamos a ser responsáveis pelos nossos
amigos. Muitas vezes, amizade tem sido, para muita gente, caminho de
perdição. Quantos jovens entraram no mundo da droga e do sexo através
de seus amigos? Aí a amizade vira o inverso. Vira descaminho, e não
caminho. Vamos pensar naquele amigo que temos na escola, em todas
as nossas relações. E perguntemos se um dia nos preocupamos, se nos
sentimos responsáveis por ele, quando estava triste, desnorteado. Será
que me sinto responsável por aquela jovenzinha que está andando por
caminhos escusos? Será que parei e pensei em dizer-lhe alguma coisa?
Eu acho que os jovens se esquecem de que eles têm uma força enorme
para com os seus colegas. Eu li um livro de um dos maiores terapeutas
europeus, e ele dizia que, quando um jovem começa a sair da infância, na
sua adolescência, o lugar onde ele é mais influenciado são nos grupos, e
não mais na família. Ele começa a sair da família e cria o seu mundo de
grupos, do qual recebe sua maior influência. Muito mais do que de um
pai, de uma mãe. Estes começam a perder influência na medida em que o
jovem vai deixando a infância e entrando na puberdade, na adolescência,
na juventude, até chegar na idade adulta. Nessa passagem, nesse interstício
de tempo, de formação, são os colegas que têm maior peso sobre eles.
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Vocês se influenciam muito, vestem-se, falam como os outros! É tipo isso,
tipo aquilo. É massa. Basta um começar a falar, daí a pouco está toda a
patota repetindo as mesmas expressões. Vestem as mesmas grifes, têm os
mesmos cacoetes. Gostam das mesmas músicas, da mesma barulheira, das
mesmas festas, dos mesmos grupos. É um contágio geral, às vezes bom,
às vezes ruim.
É hora de parar e se perguntar: será que, neste circuito da amizade
juvenil, eu faço também passar algo de positivo? Será que sou capaz
de influenciar os meus colegas no caminho do bem, da verdade e da
beleza – essa famosa tríade que eu sempre repito? Será que eu os ajudo e
influencio?
Essa maneira que o Evangelho falou é arcaica. Hoje é muito mais
direto. A gente se enfrenta, conversa diretamente com as pessoas. E
devemos ter coragem de dizer aos nossos colegas: “Jovem, você está
estragando o seu pulmão, com essa fumaceira toda. Deixem as fumaças
das fábricas, que já estragam tanto. Está estragando a sua saúde, a sua
beleza!” Se nós adultos dizemos, eles acham que somos caretas. Mas se
um jovem diz, o colega começa a pensar. Sobretudo, se fazem, agem e
atuam com coerência, essa palavra pesa.
Ezequiel dizia: “se dissermos para o ímpio que ele está errado e ele
se perder, já não somos mais responsáveis. Mas se não dissermos e ele se
perder, seremos culpados”. E, muitas vezes, somos culpados, porque não
chegamos a tempo para salvar alguma pessoa que está no descaminho. É
esse o senso de ética e responsabilidade.
Vou pegar mais um circulozinho: família, amizade, escola. Escola
em todos os níveis, desde o maternal até a universidade. A escola também
tem um papel importante de responsabilidade dos professores em relação
a seus alunos. Há muito professor que esquece que não é apenas um
transmissor de matérias. Ele não pode ensinar só física, química, biologia,
matemática. Isso, talvez um vídeo possa fazer. Nos Estados Unidos,
quando começaram a substituir muitos professores por vídeos, perceberam
que os alunos aprendiam menos. Mesmo que o professor não tivesse
aquele sotaque especial, a presença física é mais importante que toda a
quantidade de vídeos que são projetados nas escolas. O vídeo é morto, é
virtual, é imagem. O professor é olho, é carne, é sangue, é respiração, é
carinho, é transmissão. E ele é responsável por cada aluno e talvez mais
por aquele aluno mais aborrecido, aquele que mais atrapalha a aula. É
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por ele que somos mais responsáveis. Aquele desatento, aquele que nos
provoca, que faz perguntas indiscretas, aquele que muitas vezes é pedra
no nosso sapato. Temos que parar e nos perguntar porque não alcançamos
este jovem, porque não conseguimos dizer uma palavra que o toque.
Também os alunos são responsáveis pelos professores. Vocês,
alunos, têm muito mais influência do que podem imaginar. Os professores
são sensíveis. Eles estão à cata e à espera de uma palavra de estímulo.
Querem ouvir elogios, incentivos, que nunca ouvem. Quando um aluno é
atento, é carinhoso, passa energia para o professor. Sobretudo quando está
azedo, chega na sala, encontra crianças e jovens alegres, felizes. Começa
a melhorar o humor e pode ser que os alunos até salvem um matrimônio,
que estava ameaçado de ir a pique.
Este Evangelho é muito mais bonito do que podemos imaginar.
Ninguém que está aqui nesta igreja está isento de ser responsável na
família, na escola, com todos os amigos. Amém. (05.09.99)
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O PERDÃO QUE NOS RECONSTRÓI
(Mt 18, 21-35)
Já no domingo passado, começávamos a falar sobre perdão. Eu
continuava a refletir e perguntava por que o perdão é tão difícil? O perdão
cura a nossa dimensão animal. Todos nós somos animais e entre os
animais há esse grande processo primitivo. Lá atrás, há dois, três milhões
de anos eram símios que andavam por essas árvores e carregamos essa
tradição animal. O animal não conhece perdão. Açulado, provocado, reage
violentamente. Com esse um milhão e quinhentos mil anos de humanidade,
ainda não domamos suficientemente a nossa natureza animal. Ainda
somos muito animais. Aí está porque não perdoamos. Primeira simples,
direta, escancarada, vergonhosa razão. O animal não perdoa. Quanto mais
animais formos, menos perdoaremos. Precisamos guardar isso na cabeça
para não começarmos a andar de quatro por aí. Muita gente não perdoa
nada e isso é próprio do animal. Guardemos isso! Se quisermos sair um
pouco dessa nossa condição e abrirmo-nos para horizontes mais humanos,
vamos entender mais o perdão. Mas mesmo assim é difícil, mesmo para
seres inteligentes e racionais que somos.
Por que é difícil? Primeiro, porque nós somos cultura. O que quer
dizer isso? Nós somos soma do que vivemos, do que vemos e ouvimos.
A cultura nos envolve como o oxigênio, e não nos damos conta dela, a
menos que paremos e reflitamos. Do contrário, não nos damos conta.
Vocês vão ao supermercado vêm as coisas e pagam depois, compram
um carro e começam a pagar alguns meses depois. Já pensaram o que
realmente significa isso? Eu faço alguma coisa, e parece que no futuro
não haverá cobrança. Depois eu me arrumo. Há entre nós uma divisão
de irresponsabilidades. Isso passa todo dia pelos programas, pelas
propagandas, pelas casas comerciais. Nós fazemos e não precisamos
pensar no amanhã. Ora, o perdão só existe se eu tenho visão de amanhã.
Quem não pensa no amanhã, não precisa perdoar. Para que perdoar se
não existe o amanhã? Por isso não perdoamos. Lentamente, perdemos a
dimensão das conseqüências dos nossos atos. O perdão é refazer alguma
coisa que, de fato, escapou da nossa mão, já não é nosso. Ora, se tudo é
nosso, não precisamos perdoar. Mas nem tudo é nosso.
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Mais ainda. Olhem o que passa em nossa vida. Nós temos mais e
menos. Muitas vezes preferimos esse mais imediato, mesmo que mais
tarde venha o menos. Isso vai mudando a nossa capacidade de reflexão
sobre a realidade. Para ficar mais completo, vou dar outro exemplo.
Um problema conjugal. Há uma briga, onde um quer dominar. Fecha a
cara e fica fazendo aquela guerrinha toda para vencer. O que é vencer?
Vencer é querer agora, é não pensar na conseqüência disso amanhã. É
por isso que não se perdoa. Perdoar é ter que pensar que alguma coisa
virá depois. Quando alguém se entrega a um prazer imediato, de fumar,
por exemplo, o câncer virá daqui a vinte anos. Quando ele chegar... que
importância tem? Então fumamos, sabendo que amanhã pagaremos um
preço. Bebemos muito, apesar de sabermos que amanhã poderemos ter
uma cirrose. Preferimos o mais do prazer, mesmo prevendo o menos
gravíssimo. Só que esse menos é amanhã e o amanhã não existe no nosso
horizonte moderno. Já não dizia o Renato Russo que devemos amar como
se não houvesse amanhã? E se nos pusermos a refletir, de fato não existe
amanhã. Vocês não cantam isso russamente? Se não temos amanhã, então
para que perdoar? Vamos brigar porque só existe o agora. Mas se existe
amanhã, as coisas mudam muito.
Vamos imaginar que eu tenho um fio e eu dou um nó nesse fio.
O barbante está com um nó. Eu posso desatar o nó e o barbante volta
exatamente como estava. As nossas ações não são assim. As nossas
ações, quando desfeitas, não voltam a ser como eram. Eu posso desatar
o nó que eu fiz, mas as ações escapam das minhas mãos. Quando eu
dirijo a palavra a uma pessoa, essa palavra já saiu de mim. Eu já não
sou mais dono dela. Não posso refazer, destruir, voltar exatamente ao que
eu fiz. Se eu pudesse fazer isso, não precisaria de perdão. Eu te roubei
dez, te devolvo dez. Estamos quites. Para que perdão se eu te devolvi
exatamente a mesma coisa? Não há perdão – elas por elas. Mas quando
eu ofendo alguém, nunca mais eu conseguirei reconstruir, refazer, porque
eu não posso arrancar a dor, o sofrimento do outro. Não posso arrancar a
humilhação. Estou acompanhando agora um casal que está vivendo uma
situação dificílima. Viveram uma situação de violência terrível e a mulher
está destruída. O marido não poderá refazer a situação porque a destruiu.
A única realidade capaz de reconstruir é o outro perdoar. Se o outro não
perdoar, nunca me redimirei, porque eu não sou dono dele. Por isso,
precisamos de perdão. Porque nossos atos são maiores que nós mesmos.
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É como a água que escorre da minha mão. Quando ela cai, eu já não
sou dono dessa água. Pensamos que somos donos de tudo e não somos.
Qualquer ato que fazemos escapa de nossas mãos. Entra na história, nesse
grande movimento, e já não podemos dominá-lo. Quando fazemos o mal,
só podemos pedir perdão, porque não temos outra maneira de refazer o
mal que fizemos. Se ofendermos alguma pessoa, será o seu perdão que
poderá nos dar o consolo, a alegria, a paz. Mas se essa pessoa não quiser
dar, podemos ter certeza absoluta de que o Senhor Absoluto poderá nos
dar o perdão. Precisamos de perdão porque muitos males que fazemos não
conseguimos desfazê-los. Os nós que damos, não somos mais capazes de
desatá-los. Só o perdão de Deus desfaz o que não somos capazes de desfazer.
É o perdão do qual necessitamos. Do contrário ficaremos enrugados a
vida toda. Podemos ir ao psicanalista que quisermos, deitarmos em todo e
qualquer divã do mundo. Nunca encontraremos o perdão, porque não há
analista que tenha força de perdoar. Ele usará sua técnica. Perdão é dom, é
gratuidade, é amor. É dele que precisamos, é ele que nos refaz, nos recria
até do pecado maior que cometemos.
Quando Pedro traiu Jesus, bastou aquele olhar simples de Jesus.
Pedro se reconstruiu e se tornou esse grande santo. Se não houvesse o
perdão, Pedro estaria enforcado como Judas. Judas não procurou o perdão,
enforcou-se. Pedro acolheu o perdão, é santo. Amém. (14.09.02)
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O PRIVILÉGIO DO BEM NÃO É EXCLUSIVO
(Nm 11, 25-29/Mc 9, 38-48)
Esse Evangelho parece forte e é, mas, talvez, não ao pé da letra.
O que o Senhor nos quer dizer? Ele quer nos colocar diante de
dois extremos que considera equivocados. Em geral os extremos são
equivocados, os fanáticos são equivocados, aqueles que se agarram a uma
idéia e dela não abrem mão nunca, em geral, são equivocados Aqueles
que se agarram ao óbvio, ao que parece a pura verdade que não pode ser
questionada, em geral, estão equivocados. Jesus nos pede que evitemos os
dois extremos.
O primeiro extremo é pensar que só nós temos a verdade. Ninguém
pode falar, a não ser nós. Vocês viram os dois exemplos do Antigo e Novo
Testamento. No Antigo Testamento, Moisés pediu que o espírito de profecia
baixasse sobre setenta homens, porque naquela época as mulheres nunca
entravam na jogada. De repente, dois, que não eram dos setenta, começam
a profetizar. Vem um garoto e fala primeiro com o secretário de Moisés,
Josué: “Diga que aqueles dois, que não são do nosso time, estão torcendo
por nós. Mande que eles se calem!” Moisés diz: “Vocês não entendem
nada. Se eu dei a setenta o dom da profecia e ainda vieram mais dois, é
muito melhor. São setenta e dois. Oxalá, todos fossem profetas!” É isso
que Deus espera de nós. Aqui na nossa Paróquia temos um pároco. Oxalá,
todos fôssemos párocos; oxalá, todos fôssemos teólogos; oxalá, todos
fossem da equipe da catequese! Não é privilégio de ninguém segurar a
verdade. Ela está esparramada, diluída, jogada, como semente, por todos
os lados. Só que as sementes caem em terrenos diferentes. Mas, da parte
de Deus, o grande semeador, a semente é lançada para todos. Todos têm
migalhas de verdade, chispas de luz, intuições boas. Devemos aproveitar
de tudo. Nossa comunidade cresceria muito mais se cada um desse aquilo
que tem de verdade, de beleza, de bem, de ética, de compromisso, de
luta pela harmonia da sociedade. Se todos fizessem alguma coisa, seria
muito melhor do que se apenas três ou quatro o fizessem. Essa é a idéia.
O poder centralizado é pior. Os fascistas e nazistas já foram derrotados
definitivamente. Vivemos num mundo democrático, num mundo onde a
comunidade detém a força, o poder. Poder não para dominar, mas para
espargir dons e graças.
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A mesma coisa acontece agora com os apóstolos. Também eles são
ciumentos. Receberam o poder de expulsar demônios quando, de repente,
outros começam a fazê-lo e eles proíbem. Proibir alguém de fazer o bem?
Nunca! Que façam os espíritas, os evangélicos, os que não crêem. Bem
sempre é bem! A justiça sempre é justiça. O amor sempre é amor, feito
por qualquer pessoa que seja. Se ajudarmos a sociedade a melhorar, os
pobres a saírem da miséria, a criar uma nova sociedade, ótimo! Que todos
ajudem, que não haja discriminação, que não haja separações! Tenhamos
o coração aberto! O ciúme é doença, não só das mulheres, mas também
dos homens. Dores de cotovelo produzem inflamações. Precisamos ter
essa abertura de ver a luz que brilha nos olhos das pessoas, do bem e da
justiça.
Agora Jesus retoma o sermão e diz que não é qualquer coisa que
é bem, que é justiça, que é ética. Quando vocês atuam em causa do mal,
aí é severidade. Claro que não é arrancar fisicamente o olho. É tomar
uma atitude radical, forte, de oposição contra a corrupção, contra a droga,
contra a perversão, contra o escândalo, contra a destruição da inocência da
criança. Aí não há complacência. Existe o mundo jurídico para condenar.
Devemos defender a sociedade, defender o futuro das crianças, que têm
direito de viver a pureza, a beleza, de não serem estragadas. É neste
momento que Jesus diz que se o teu olho te escandaliza, se tua mão te
escandaliza, arranca-a, corta-a, porque é melhor que andemos claudicantes
na história do que caminharmos perversamente por ela. De que adianta
esses homens que roubam milhões de reais e têm que ficar escondidos
como raposas nas tocas da história? Essas raposas ficam em suas tocas
porque não podem caminhar na praça, porque estão corrompidas. De que
adianta esse dinheiro? Morre o cidadão e não poderá ter um caixão de
ouro.
O Evangelho é ótimo. De um lado, o bem, para todos que o quiserem.
Bem-vindos! O mal, sempre mal-vindo. Diante dele, a radicalidade, a
oposição, a luta, a coragem, a tenacidade. Amém.(23.09.2000)
88
O BATISMO NOS FAZ PROFETAS
(Nm 11, 25-29/Mc 9, 38-43. 45. 47-48)
Com essas frasezinhas soltas Marcos teceu e fez um único conjunto.
Cada frase tem um significado próprio, um contexto diferente. O primeiro
contexto está relacionado com a primeira leitura. É muito simples. Tem
a ver com aquela pedra (*). Dali recebemos a água sobre a nossa cabeça
e depois o celebrante nos marcou com o óleo sobre a testa e disse que
passamos a fazer parte do povo de Deus, portanto, sacerdote, profeta e rei.
Todos nós somos profetas, todos os batizados são profetas. Não como no
Antigo Testamento. Lá eram apenas aqueles sobre os quais o Espírito caía.
Mas sobre nós, não. Ele desceu sobre todos. Nenhum de nós está excluído
do dom da profecia. Será então que podemos anunciar quando o mundo
vai acabar, quem vai vencer as eleições no próximo ano, quem vai ganhar
o campeonato nacional? Não é por aí que vai a profecia. Profecia não é
anunciar o que virá. Isso fazem os búzios, as cartomantes.
Ser profeta é muito mais profundo. É saber ler o que está acontecendo,
aqui onde estamos vivendo, em 2003. Não somos profetas para 2004,
mas para setembro de 2003. Profeta é aquele que tem o olhar diferente.
Profeta é a mãe que olha nos olhos da filha que chega em casa às três da
madrugada e diz: Minha filha, este caminho não te levará à felicidade! A
mãe foi profetiza nesse momento. Profeta é o pai que coloca a mão no
ombro de seu filho adolescente e diz: Filho, por este caminho você não
encontra a felicidade. Você perderá a sua saúde, sua juventude, sua beleza,
sua transparência! Neste momento, o pai foi profeta. Uma criança, em
sua transparência, também pode ser profeta. Ela nos mostra a beleza dos
pássaros, o deslumbramento de tudo aquilo que nos passa desapercebido.
Quantas vezes um filho induz uma mãe a comungar, simplesmente
porque ele observa que a mãe não se levanta e vai para a fila, como todos
os outros?! E vocês, mães e pais, podem perceber como as crianças
pequenas nos dizem coisas muito importantes. Gosto muito de repetir a
pergunta que me fez o Samuel (**): Padre, quem fez Deus?, ou aquele
que me perguntou: O que faremos no céu? São perguntas de crianças, mas
são perguntas proféticas. Tantas crianças me perguntam de onde elas vêm!
É a pergunta mais filosófica, do início da Filosofia. Quando uma criança
de sete, dez anos me faz essas perguntas, eu fico pasmo. De onde brotam
89
essas dúvidas? Brotam daquela água que foi jogada em suas cabeças. É o
Espírito que mora nessas crianças.
Não pensem que profeta é quem vai anunciar o mistério lá fora. Ele
está questionando cada um de nós em nossa vida. E Jesus responde a todos
nós, com uma frase muito simples: “Aquele que escandalizar um desses
pequeninos, é melhor que coloque uma mó no seu pescoço e se jogue
ao mar, para que nunca mais aflore” Essa frasezinha tão simples Jesus
disse para que não percamos as inocências deste mundo! Eu sempre me
vejo fascinado pela beleza das crianças. No meu quarto está aquela folha
cheia de coraçõezinhos desenhados que o Pedro (**) me deu e ali eu vejo
inocência.
No Brasil não há mó suficiente para colocar nos pescoços de tantos
por aí, nas televisões, nos vídeos, nas internets, nas músicas. Sabem que
agora na Alemanha está surgindo uma onda de pedófilos, que estão surgindo
milhões de sites eróticos? Precisaríamos de milhares e milhares de mós
para colocar nos pescoços de todos esses que semeiam imoralidades, que
as crianças e adolescentes irão ver, porque a curiosidade existe. Quem
semeia tudo isso não são demônios, mas seres humanos. São inteligências
tecnológicas, são doutores com cursos em grandes universidades.
Jesus nos abre a porta da eternidade dizendo que é melhor que
lá entremos com um braço, uma perna a menos, do que mergulhar a
integridade do nosso ser na escuridão de uma existência sem sentido.
É claro que o fogo é metáfora. O inferno de que Jesus fala não é para
ameaçar-nos. É para dizer do inferno que existe em nossos corações,
quando não sabemos abri-los para a inocência. O inferno não está fora, se
estivesse, não haveria perigo e não faria mal a ninguém. O inferno, nós o
levamos dentro de nós, porque nos dilacera e é terrível. Sartre (***) dizia
que o inferno são os outros, porque nos fazem perceber a nossa maldade.
Conviver com certas pessoas não é realmente um inferno? O Senhor nos
quer íntegros e transparentes. Amém. (28.09.03)
90
DEUS NOS CONVIDA AO BANQUETE DA VIDA
PLENA (Mt 22, 1-10)
Essa parábola é muito bonita e também muito profunda. Os ouvintes
de Jesus, certamente, entenderam muito menos que nós. Eles não sabiam
quem era esse Filho do Rei, não sabiam de que casamento se tratava.
Imaginavam que era uma historinha de Jesus, falando de algum casamento.
O pai, o rei, é Deus Pai. O filho é Ele, Jesus. O casamento é a encarnação.
É o Verbo que assume a história humana, assume a humanidade em três
momentos. Portanto, nós recebemos três convites e há três possibilidades
de respostas negativas. Assim diz o Evangelho. Há o convite para a vida,
para o Reino de Deus e para esta Eucaristia. Vou me deter no grande
primeiro convite e deixarei os outros dois para uma outra oportunidade.
Nós somos convidados à existência. Já repararam que fomos
convidados a existir? Podíamos não existir, se os nossos pais não tivessem
se conhecido, ou se tivesse acontecido qualquer outra coisa, como um
descuido médico. Cada um de nós foi chamado a existir. Achamos que isso
é banal, mas não é. Estamos aqui, enquanto milhões e milhões de crianças
morrem nos primeiros anos de vida. Nós não somos essas crianças. Milhões
não estão aqui, porque morreram – por miséria, fome, doença, epidemias,
crimes. De tudo isso morrem as crianças em quantidades gigantescas, seja
na África, na Índia, no Nordeste brasileiro. E nós estamos aqui, fortes,
bonitos, bem alimentados, iogurtados. Existir já é um grande convite.
E como respondemos a esse convite? Uns dizem que foram para o
campo. Que coisa é ir para o campo? Fiquei pensando e fui buscar uma
categoria, em Hegel e Marx. Os dois filósofos falam de alienação. Eu
acho que “ir para o campo” é alienar-se da existência. É uma palavra forte
de Marx. Alienado é aquele que é outro do que realmente é. Em vez de
sermos uma pessoa colocada na história, vivendo num determinado lugar,
vivemos num outro mundo. Nem sabemos, por exemplo, que haverá um
plebiscito para decidirmos se queremos ou não a comercialização livre das
armas. Não sabemos que houve um terremoto no Paquistão. Não sabemos
que há tanta coisa acontecendo na Índia, na China, no Japão, no Iraque,
nos Estados Unidos. Não sabemos que milhões de pessoas morrem de
fome. Não sabemos de nada. Estamos no campo, alienados, com outra
cabeça.
91
Para Marx, essa era a coisa mais trágica. Uma pessoa vazia de
si mesma não é ela, vive de outra cabeça. A maior fonte de alienação
que temos chama-se mídia. Se fôssemos desenhar algumas cabeças,
desenharíamos como visores de televisão, onde passariam as imagens.
Imagens que não vêm da pessoa, mas de fora. Uma menininha vê a Xuxa
e fica enxuxadinha. Os rapazes só vêm rock and roll. Tudo isso rodando
pelas cabeças. Nada vem de dentro deles. Tudo vem de fora, made in
States – comprado, importado e enlatado.
Se algum dia tiverem oportunidade, leiam o prefácio que Chico
Buarque e Paulo Pontes escreveram para a peça “Gota d’água”. Era a
época da repressão militar e, ao lermos aquilo hoje, nos impressionamos,
principalmente se pensarmos que Chico Buarque tinha pouco mais de
vinte anos. Eles falavam exatamente dos enlatados que faziam a cabeça
do brasileiro. E as músicas de Chico Buarque – não sei se ainda conseguem
ouvi-las em meio a tanto barulho – são densas de consciência crítica. É
alguém que ajudava a juventude a tomar consciência, a ser ela mesma, a
viver e entender o seu momento.
Triste alienação de quem vai para o campo! É como uma árvore
que nem sabe que dá jabuticaba. Vêm as crianças, arrancam as frutas e
a árvore permanece tranqüila. São pessoas que vegetam. Ou são como
pequenos cachorrinhos que lambem a mão do seu dono. Não pensem que
é carinho ou amor. É puro instinto cachorral. Não passa disso. Não chega
ao nível da consciência, da liberdade, da percepção de si. Estão no campo
da alienação.
Outros – diz o Evangelho – mergulham nos seus negócios. Estão
sempre ocupadíssimos e não têm tempo para nada. Um celular em cada
ouvido. Ficam celularmente enlouquecidos, de tão ocupados que estão.
Os adolescentes já saem da escola teclando todo o tempo. Pura alienação!
Estão enredados no barulho, nos sons. Não podem viver. Não respondem
ao convite da existência.
Nós vivemos quando existimos. Existir é um verbo forte na filosofia.
É saber que eu sou um ser livre, consciente, relacional. É saber que eu
me ligo com os outros e começo a ser eu mesmo no momento em que
encontro uma outra liberdade, tão livre quanto a minha. No encontro com
ela, começo a traçar a minha existência. A criancinha ainda vegeta muito,
mas já busca, no olhar da mãe, um pouquinho de liberdade. A criança fixa
o olhar buscando um pouco de vida, de originalidade e assim vai formando
92
a sua consciência de gente. Para nós, que já passamos dos primeiros meses
de vida, já sabemos andar, falar, existir é relacionarmos. Quem não se
relaciona com outra liberdade não existe.
O mais trágico é a terceira resposta. Rejeitamos aquele que veio nos
acordar para o convite da vida. Apedrejamos, espancamos e matamos.
Claro que era alusão à crucifixão de Jesus, pois é sempre bom lembrar que
os evangelhos são escritos pós-pascais. Quando Jesus veio ensinar aos
judeus que a única realidade que dá sentido à nossa vida é o dom de si, os
homens e mulheres de seu tempo não agüentaram e o crucificaram.
Eu já citei esta frase de um teólogo francês, que nunca mais esqueci.
Ele diz que no momento em que aparece o amor mais puro da Terra, nós
o matamos. Falamos do amor em quantidades de poesias, em músicas
e canções, vemos amores coloridos em todas as novelas, mas quando
aparece o amor que é dom e entrega de si, o crucificamos. Não agüentamos
o amor.
Jovens, saibam disso! Saibam que é difícil suportar o amor. O
carinho, o afeto, a sensibilidade são fáceis de aceitar. Os animais também
têm isso. Mas o amor, que é liberdade, que é dom de si, que é singularidade,
que é originalidade, que é respeito ao outro, que é valorizar a liberdade do
outro, que é se alegrar com a diferença e com a alteridade, é difícil. Tantos
casais brigam, se separam porque nunca conheceram o amor, nunca se
relacionaram. O convite da vida não foi aceito.
Volto a lembrar das três respostas que nos afastam do convite de
Deus. A alienação, o enredamento nos nossos afazeres e a incapacidade
de receber o outro que nos questiona, que nos arranca de nós mesmos,
para que saiamos. Se um dia experimentarem isso, de ver alguém crescer
diante de vocês, talvez façam a experiência humana mais bonita. Quando
alguém estiver quebrado diante de vocês, arrasado, sem conseguir viver, e
com sua palavra, com seu carinho, com seu olhar, com sua força interior,
vocês ressuscitam essa pessoa, talvez estejam fazendo uma das coisas
mais lindas da humanidade. Amém. (09.10.05)
93
DEUS É CONTÍNUA DOAÇÃO
(Lc 18, 1-8)
A leitura do Evangelho de hoje é intrigante. Há uma conversão
imediata para várias passagens do Evangelho, em que Jesus insiste para
que persistamos em nossos pedidos, isto é, nas nossas orações. A maioria
das pessoas entende que Deus está lá no céu e não pretende nos conceder
graça nenhuma. Quando a gente pede, aí Ele concede. Se não pedirmos,
não concede. Comparamos Deus com esses pais um pouco tacanhos, que
ficam esperando o filho pedir e insistir. Depois de muito tempo pedindo e
aborrecendo toda a família, aí o pai atende. Será que Deus é assim? Uma
imagem muito feia para Deus. Não pode ser isso que Jesus ensina. É óbvio
que Jesus não se refere a Deus, mas a nós.
Deus não precisa ser interpelado. Não precisamos pedir nada para
nós. Ele já sabe de que precisamos e já está dando-nos tudo, continuamente.
Essa é a primeira coisa. Ele está dando tudo o que pode dar, sem que
precisemos pedir. O pedido, então, não é para Deus. E se não é para Deus,
para quem será? Só pode ser para nós. O que significa pedir? É isso que
precisamos aprofundar um pouquinho.
Vamos usar uma imagem muito simples. Se atravesso uma chuva,
eu molho. Chego em casa, troco a roupa e fico enxuto, mesmo que a
chuva continue caindo. Se eu levo uma vasilha, ela enche e eu levo a
água para casa. Pedir, da nossa parte é abrir o coração, como se fôssemos
uma vasilha aberta para receber graças e dons que Deus já está dando. Se
não tivermos nenhuma vasilha, os dons cairão e passarão. O problema é
nosso e não de Deus. As nossas comunhões, nossas orações insistentes, as
nossas devoções de virar santo para cá ou para lá, colocar de cabeça para
baixo não têm sentido nenhum. Temos é que dispor nosso coração para
acolher os dons, as provocações, as graças de Deus que, muitas vezes,
ultrapassam de longe a nossa capacidade de percepção. O que talvez não
entendemos muitas vezes são os dons que Deus nos dá e que não vemos
como dons.
É difícil entendermos que uma doença é dom e até uma morte é
dom. Deus nos enche de dons a vida toda. E quando acontece aquilo
que chamamos de desgraça? Será que vem de Deus? Certamente, não.
Deus nunca vai permitir uma desgraça. E por que acontece? Porque ela
94
pertence ao mundo criado, do finito, do possível e Deus não pode fazer
o impossível. Uma vez que entramos na história, a história está aí. Uma
vez que vivemos, vamos morrer. Não há outro jeito. Deus não pode, ao
mesmo tempo, introduzir-nos na vida e concedê-la sempre, porque seria
contradição. Entrar na vida humana é entrar na vida para a morte. A morte
pertence à história. E o que faz Deus, então? Está sempre ao nosso lado,
apoiando, animando, dando coragem, iluminando a nossa inteligência
para encontrarmos soluções, dando-nos iniciativas. Mesmo nos momentos
mais difíceis, Deus não vai fazer uma mágica, mas vai despertar em
nosso coração a força, a tenacidade, a paciência, a luta, a busca para que
encontremos a solução. Essa é a graça de Deus.
Conheço um psicólogo, especialista em doentes terminais. Ele
visitava todos os dias uma senhora que sofria de um câncer já avançado,
que lhe dizia que estava rezando pela própria cura. Um dia, chega e a
senhora diz ter conseguido a graça. Ele espanta-se e pergunta se ela ficara
curada. Ela responde: “Não, aceitei a morte!” Essa foi a graça. Não a cura,
mas a aceitação. Assim é a presença de Deus. Essa a palavra misteriosa
do Senhor.
Claro que nenhum de nós sabe explicar, mas eu acho que Jesus quis
deixar uma interrogação na nossa cabeça. Se essa leitura fosse feita na
Idade Média, eles entenderiam porque a fé era comum a todos. Só havia
uma possibilidade de ser cristão – sendo católico. Hoje talvez comecemos
a entender. Países profundamente cristãos, como França, Holanda, estão
altamente descristianizados. O Cristianismo está desaparecendo. A
quantidade de adolescentes que nunca ouviu falar de Jesus Cristo é imensa.
Num país como a França, cheio de catedrais e de igrejas, muitos jovens
nem sabem quem é Jesus. Mesmo em Cuba, na nossa América Latina,
um rapaz foi comprar um crucifixo e o vendedor perguntou se ele queria
com bonequinho ou sem bonequinho. O bonequinho era Jesus, só que ele
não tinha a mínima idéia disso. Essa frase começa a ser questionadora.
No Brasil, ainda não. Mas, quem sabe? Lentamente, as gerações vão-
se afastando e vem o Senhor anunciar o fim dos tempos. Daqui a pouco
podemos entrar nesta igreja e encontrar apenas algumas velhinhas do
Apostolado da Oração, apagando a última vela de uma adoração perpétua.
Amém. (20.10.01)
95
DEUS OUVE O GRITO DOS EXCLUÍDOS
(Ex 22, 20-26)
A primeira leitura é extremamente emocionante. Talvez por
não estarmos acostumados, não damos tanta importância, mas é algo
absolutamente inédito na história da cultura, algo espetacular em todo
o processo da história humana. São mais de mil anos antes de Cristo.
Um povo, através de seu profeta, sobretudo Moisés e outros profetas,
inspirados por Deus, dita essa lei, que ainda não funciona no Brasil. Isto
é que é terrível! Não funciona e já foi dita há mais de três mil anos: “Não
trates mal o estrangeiro!”
Quantos estrangeiros sentem-se maltratados?! Na Europa – Europa
dos santos, tão culta – vive-se um xenofobismo terrível. A França quer
expulsar os africanos, a Alemanha detesta os estrangeiros, Hitler matou
seis milhões de judeus, perseguiu os eslavos. Tudo isso três mil anos depois
que o profeta Moisés e outros disseram: “Não trates mal o estrangeiro!”
Muitos nordestinos que vão para São Paulo são discriminados. Quando
o papa esteve nos Estados Unidos sussurrou no ouvido de Clinton (*):
“Lembra-te que foste estrangeiro nesta terra e não trates mal os mexicanos,
os porto-riquenhos. Tua família veio de Paris. Tu foste estrangeiro e como
tratas mal os estrangeiros, como os latinos, aqui nos Estados Unidos!”
João Paulo II não fazia nada mais que repetir a voz de Moisés.
“Não trates mal a viúva!”, diz o profeta. Sobretudo num país onde
o homem era o único esteio da família. A mulher era discriminada, não
trabalhava. Imaginem uma viúva, sem apoio do marido, numa sociedade
onde não havia trabalho para ela. Era condenada à miséria. E Deus diz:
“Eu ouvirei o grito da viúva, se não a tratares bem. Ela vai gritar para mim
e eu, Deus, a ouvirei!” Olhem que coisa bonita! Quanta força! É Deus que
diz que ouvirá o grito da viúva.
“Não trates mal o órfão!” Essa criança abandonada. Deus diria:
“Não trates mal o menino de rua, as crianças que estão na FEBEM (**),
porque, se elas gritarem, eu as ouvirei. Eu, Javé, as ouvirei”. Olhem que
força! É Deus que fala isso. É Deus que diz que ouve o grito da criança;
é Deus que ouve o grito da viúva; é Deus que ouve o grito do estrangeiro.
“Se pedires emprestada a túnica para um pobre, devolva-a antes que se
faça noite, porque é a única coberta que ele tem. Se não devolveres, ele
passará frio à noite, ele gritará e eu o ouvirei. Eu, Javé, o ouvirei”.
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Imaginem se Deus ouvir o grito dos brasileiros, desses dez, quinze
milhões de brasileiros que vivem metidos na mais terrível miséria!
Imaginem a gritaria que deve estar chegando aos céus e como Deus deve
estar olhando o Brasil e dizendo: “Mas como é possível que esse povo tão
rico possa tratar tão mal os seus pobres, tão mal as suas crianças, jogarem
tantas crianças nas ruas?!” Tantas crianças sem escola, sem vacina, sem
saúde! Na semana passada, estive no Nordeste ouvindo tantos falarem da
miséria, da seca terrível. E sabemos que a seca existe, não porque Pedro
fechou as torneiras do céu, mas porque os políticos enriqueceram-se com
o dinheiro destinado aos poços e os fizeram em suas fazendas e não para
o povo. É isso que Deus ouve. Esse grito imenso dos brasileiros.
E se falarmos da África? E se a África desse um grande grito? Toda
ela está metida na miséria, porque não interessa aos Estados Unidos,
não interessa à Europa. A África é o continente deixado, o continente
excluído.
Como é possível que, três mil anos depois, essa frase seja tão atual,
como era na época de Jesus, na época do povo de Israel? Talvez mais atual
hoje que outrora. Porque o povo de Israel tinha o famoso ano sabático. A
cada sete anos eles faziam uma redistribuição, uma reforma agrária para
que aquelas pessoas que acumularam muito pudessem devolver os seus
bens. Imaginem se esses fazendeiros, esses grileiros que tomaram esse
território todo, a cada sete anos devolvessem aos pobres, aos sem-terra?!
Não teríamos esse exército de famintos, essas favelas amontoando-se em
Belo Horizonte, São Paulo e outras grandes cidades. Isso Israel fazia e
nós, depois de três mil anos, não conseguimos.
Eu fico espantado com o atraso da nossa cultura. Esta frase está
escrita há três mil anos. Parece que entra e bate como água no mármore,
escorrega e não penetra. Será possível que não ouvimos ainda essas
palavras? Será que é uma língua que não é a nossa? Ou para nós não é
Palavra de Deus? É como se lhe disséssemos: “Você está longe, você não
existe, você é uma brincadeira, você não é importante”. Se Deus fosse
importante, não haveria miséria no Brasil, porque a coisa mais clara na
Bíblia é a opção radical de Deus, desde o início, pelo menor do povo de
Israel. Nunca optou por Salomão, nem por Davi. Apenas os colocou, para
que cuidassem do menor, da viúva e do estrangeiro. Amém. (23.10.99)
(*) referência a Bill Clinton, então Presidente dos Estados Unidos
(**) Fundação Estadual do Bem Estar do Menor
97
SOMOS IGUAIS NA RADICALIDADE
(Lc 18, 9-14)
Esse Evangelho é profundo e até diria, socialmente revolucionário.
Primeiramente, temos que localizar o momento cultural de Jesus e depois
transferir para o nosso momento. Não é um Evangelho moralista, que dá
um bom conselho. É um Evangelho que quer mudar a consciência social.
Ele pretende uma mudança mais profunda na maneira de ver a realidade.
Primeiro: na época de Jesus, qual era a consciência social, a cultura
daquela época? Qual era a visão social daquele momento cultural em
que Jesus vivia? A sociedade era dividida praticamente em dois grandes
grupos: os puros, os honestos, os cumpridores dos deveres e o povão
simples, pobre, os que não conseguiam cumprir as leis. Uma distância
gigantesca! Os fariseus eram aqueles que tinham condições econômicas,
culturais de poder observar uma quantidade enorme de leis e regras. O
farisaísmo chegou a criar mais de seiscentas pequenas normas para cada
dia. Precisavam de uma memória muito boa. Precisavam de condições, até
econômicas para as cumprir: lavar as mãos, tomar banhos e tantas outras
coisas, que era impossível que as pessoas pobres pudessem cumprir a lei.
É como quando os impostos são muito pesados e os microempresários
precisam sonegar impostos, porque se pagarem, irão à ruína. Era uma
exigência tão grande, que poucas pessoas podiam cumprir e esse fariseu
era um desses poucos. Pagava o INPS (*) direitinho, pagava Imposto de
Renda no dia certo, descontava tudo, nunca falsificava nenhum documento.
Pagava IPVA, IPTU e tudo o mais. Era perfeito. Aquela pessoa que o
governo adora. Se todos os brasileiros fossem assim, já teríamos pagado
as dívidas interna e externa.
Mas a maioria é como o publicano. Esconde pra cá, duplicata pra lá,
notas frias e todas essas coisas que já conhecemos e que também existiam
na época de Jesus. Um desses comerciantes, no caso, era funcionário
público, que fazia muitas jogadas por fora. Mas era humilde, coitadinho!
Chegou no Templo, que era um só e ficou na porta, arrependido de não ter
pagado todos os impostos. E o fariseu, lá na frente, vangloriando-se de toda
a sua possibilidade. Qualquer judeu daquela época, que fosse perguntado
sobre qual era o justo, responderia que era o fariseu. Quem voltou para
casa justificado, isto é, reconciliado com Deus? O fariseu. O publicano era
98
o pecador, sem salvação. Essa era a resposta normal da época. Por isso a
frase de Jesus foi revolucionária. Ele inverte e diz: “esse não é justificado.
Aquele sim”. Não porque esse cumprira o seu dever, mas porque ele, em
cumprindo o seu dever, despreza os outros. Esse é o problema. Se apenas
cumprisse o seu dever, ótimo, estaria justificado. Mas não. Ele, cumprindo
o seu dever, desprezava todo o mundo.
Passemos agora para a cultura brasileira. Uma vez, eu participava
de uma mesa redonda – como já contei para vocês – e estava presente um
dos maiores antropólogos brasileiros: Roberto Da Matta. Na palestra, ele
disse essa frase que me impressionou muito: “A cultura brasileira cria em
nós uma consciência de que há dois tipos de brasileiros: os superiores e os
inferiores. Em qualquer situação em que estivermos”. O brasileiro nunca
se pensa igual ao outro. Ele sempre se pensa ou inferior ou superior. Por
qualquer razão que seja: cultural, econômica, profissional. Mesmo que a
pessoa seja um mequetrefe qualquer. Se ele alcança um postozinho, já se
sente superior. Coloca uma fardinha, fica na porta de um hotel, se passa
um mendigo, já o manda retirar-se. Por que ele toma conta do hotel, se
sente superior ao mendigo. Isso em qualquer cargo, mesmo que não tenha
nada. Essa é a cultura brasileira. Pensem um pouquinho nisso. Reflitam
sobre isso e comecem a trabalhar na sua realidade.
Nós bebemos isso desde crianças. Chega um padre, é importante,
nos sentimos por baixo. Eu falo daqui de cima e vocês estão embaixo. Um
juiz chega, é um deus nos acuda. Os advogados e funcionários beijam
o chão. Chega um prefeito, todos desmaiam. Um vereador, nem se fala.
O presidente, o papa, a gente vira pó de pirlimpimpim (**). Nós sempre
nos vemos assim. Será que Deus nos criou assim? E o que diria Jesus se
contasse essa parábola para nós? Você não é superior nem inferior, você
é igual. O superior não desce para ficar inferior, nem o inferior sobe para
ficar superior. O importante é que um subindo e o outro descendo, se
encontrem em nível de igualdade.
A revolução francesa, no século XVIII, proclamou como direito
humano a igualdade e nós estamos longe de chegar a isso. Já se passaram
dois séculos desde que foi formulada a trilogia da revolução francesa
– liberdade, igualdade e fraternidade – e até hoje o brasileiro pensa a
si próprio e pensa os outros divididos em níveis diferentes. Precisamos
acabar com essa idéia. Temos uma igualdade radical e fundamental.
99
Em primeiro lugar, somos todos seres humanos. Todos saímos da
noite do animal. Todos, uns mais, outros menos. Chegamos ao patamar da
racionalidade, da consciência, da responsabilidade e por aí somos iguais.
Prosseguindo, somos iguais pelo batismo, que nos fez todos cristãos. Essas
as duas igualdades radicais. De ser humano para ser humano. E para os
cristãos, a força do batismo deveria arrancar da nossa cabeça essa idéia
de superioridade em qualquer coisa. Inteligência, beleza, cultura não são
sinais de superioridade. Nada disso faz ninguém superior a outro. Porque
há o momento radical da igualdade – o momento da morte. Aí seremos
absolutamente iguais.
Viemos de uma igualdade radical quando nascemos. Todos nascemos
pequenos, carentes, chorando, mamando. Todos temos essa igualdade
radical, humana, cristã. Mas colocamos essa diferença na cabeça, por
cultura e uma cultura terrível, que começa lá na casa grande e na senzala,
com os senhores fazendeiros e os escravos, depois os donatários nas
Capitanias, os coronéis do interior, os políticos que arrotam poder sem
ser nada. Temos que terminar radicalmente com isso e redescobrir o que
Jesus colocou hoje no Evangelho: aquele miserável que está lá atrás volta
justificado. Ele é grande diante de Deus. Amém. (24.10.98)
100
O NOIVO DO DIA SEGUINTE
(Mt 25, 1-13)
Se estivéssemos no primeiro século, na época em que a comunidade
de Mateus escreveu esse Evangelho, entenderíamos que o fim do mundo
estaria próximo. Ficaríamos aguardando o momento em que o Senhor viria
gloriosamente a julgar os vivos e os mortos. Eles viviam na iminência,
na expectativa do fim do mundo. Era um pouco o clima desse primeiro
século. Lentamente foram mudando de mentalidade.
Nós não estamos no primeiro século, mas no século XXI. Quem é
esse noivo que vem? E que vem à meia-noite? Quem são essas jovens que
carregam óleo e as que não carregam? É claro que o noivo é a história. É
ela que está chegando a cada minuto. Hoje, dois de novembro, amanhã
três. O noivo está sempre chegando e dando um grito. Cada vez que o
relógio bate doze badaladas, começa um novo dia. É o noivo chegando.
É o noivo do dia seguinte! Já pensaram que noivo bonito é esse – sempre
do dia seguinte?! Não sabemos como será o dia seguinte. Eu conheço
os noivos de agora, os que estão acontecendo neste instante. Mas como
será o noivo do dia seguinte? Não sabemos. Mesmo que faltem apenas
algumas horas. Entre essa hora em que estamos até a meia-noite, pode
acontecer tanta coisa. Quantas pessoas poderão passar desta vida para a
outra? Quantos poderão sofrer alguma coisa ou alegrar-se com outra? É
sempre o noivo que está chegando, é a história que vai despontando.
Para nós, a história não é vazia, mas está carregada de Deus. Por
isso, Jesus a chama de noivo. Pois praticamente o cristão identifica essa
pessoa do noivo como o próprio Jesus. Não que Ele venha em pessoa, mas
nos acontecimentos, nos fatos, nas horas, nos minutos, nos instantes, no
fluir do tempo que está sempre chegando.
Talvez o que mais nos preocupe sejam as jovens. Cinco trazendo
óleo e outras cinco não trazendo. Aí está todo o grilo da parábola. Quem
traz o óleo e quem é que não traz? Vamos logo pensando que quem
traz o óleo são os prudentes, os previdentes. Não! Isso está escrito, não
precisa ser dito. Eu acho que quem traz o óleo é quem tem esperança.
Quem não traz o óleo é aquela pessoa que só vive o minuto e o instante,
agora e nada mais. Viver com a lâmpada acesa sem óleo é viver só o
presente. Não sabem o que vem depois porque o óleo não dá para depois.
101
É uma lâmpada que acende somente naquela hora. Passada aquela hora,
a lâmpada se apaga porque ela não tem futuro, não tem perspectiva, não
tem utopia. E eu lhes pergunto: como vocês podem viver sem esperança?
Como podem viver sem utopia? Como podem viver com uma lâmpada
sem óleo? Como alguém pode querer viver apenas com esse pouquinho de
óleo do instante, do presente, do aqui, do agora, dos prazeres imediatos,
dessas alegriazinhas novélicas, como se a vida fosse um fluir de imagens
vazias? Como poderemos viver assim? São as imprevidentes. Não têm
esperança, não têm luz, não têm óleo para amanhã. Não têm nada dentro
que construa um mundo mais amplo, um horizonte mais vasto. Esse óleo
é o da utopia, da esperança.
Para mim, a esperança é o elemento mais sedutor, mais maravilhoso
do Cristianismo. Diria até que é mais que a caridade. Teria a coragem de
dizer que a esperança é mais importante que o amor. São João vai ficar
bravo comigo, mas não faz mal, porque depois eu me arranjo com ele, no
céu. A esperança é crer no amor. Pode ser que eu ame e não creia no amor.
Esperar é muito mais! É acreditar que o amor é a maior força que existe.
Há pessoas que dizem que amam e se acham felizes, mas não acreditam
no amor. Esperar é crer no amor. É lançar uma ponte. É saber que o amor
triunfa, que é maior que o tempo. Por isso os nossos mortos, que morreram
no amor, vazaram todas as escuridões, ultrapassaram todos os horizontes
sombrios, entraram e mergulharam na luz infinita. A esperança é essa
certeza de que nos espera, após a morte, uma luz muito maior. Este é o
óleo que carregamos! Como poderemos caminhar sem ele?
Eu diria mais ainda. A esperança supõe que nos voltemos para
dentro de nós e nos perguntemos sobre o que há de mais profundo no
nosso coração. Na verdade, o que é que nós somos? Será que sabemos a
estrutura fundante da nossa existência? Será que já percebemos e entramos
um pouco dentro do nosso interior e nos perguntamos se podemos nos
satisfazer apenas com a luz deste instante? Já tomamos consciência de
que somos seres de desejo, princípio-esperança, seres que buscam, que
caminham, sempre vasculhando horizontes mais amplos? Se somos isso,
como podemos ter uma lâmpada sem óleo? Mas somos alguém que nunca
está satisfeito consigo, e Deus não permite que fiquemos satisfeitos.
Quando ouço alguém dizer que é plenamente feliz, eu fico triste.
Ou ele mente ou é um animal. Não é possível que um ser humano diga
que o instante o faça plenamente feliz. Apenas o animal é plenamente
102
feliz. Podem reparar. Eu sempre cito a vaca como símbolo da felicidade.
Aquele olhar bonito, tranqüilo, sereno, engolindo todo o verde de todos
os pastos. Mas ela não ultrapassa a sua vacacidade. Nós somos espírito,
somos inteligência, somos liberdade, somos capacidade de amar o mundo
inteiro. Não podemos ficar contentes apenas com um pasto verde. Ou
somos animais, ou mentimos. Se não mentimos e nem somos animais,
somos seres que caminham, seres que têm consciência de que sofrem, mas
sabem que esse sofrimento é anúncio de uma felicidade.
Dói-nos existir, doem-nos as mortes, doem-nos as pessoas que
partem, doem-nos ver os outros sofrerem, doem-nos a dor de tanta gente
que está carregando sua vida pesada. Quem é feliz diante de tudo isso
só pode ser como um cachorro que late no fundo do quintal, ou aquele
luluzinho das madames. Mas se somos realmente seres humanos, vivemos
esse jogo da felicidade, da alegria, mas também da busca, da dor, da
caminhada.
Quando experimentamos os pequenos gozos e felicidades, podemos
dizer que nos espera a eternidade dessa felicidade. Amém. (02.11.05)
103
A TEOLOGIA NOS DESCORTINA HORIZONTES
INFINITOS (2Mc 7,1-2.9-14/Lc 20,27-38) (#)
Já que os meus companheiros do Curso de Teologia me provocaram,
vou falar um pouquinho sobre a Teologia. Mas, antes, falarei sobre o
Evangelho.
Para entender o Evangelho é preciso entrar um pouco a tradição de
Israel. A Bíblia é como se fosse um grande tapete que vai-se desenrolando
aos poucos. Os primeiros desenhos não são os últimos. Deus não nos revela
o último desenho. Começa pelos primeiros, e o tapete vai-se desenrolando
até chegar ao fim. Quando chega Jesus, aí todo o desenho está revelado.
Durante milênios, não se sabia, não se tinha clareza sobre a vida
depois da morte. No primeiro desenho, acreditava-se que todos morreriam
e a vida continuaria nos filhos e netos. Daí a importância de se ter filhos
e netos, para se viver mais tempo, não em si, mas nos outros. Depois,
acreditou-se que haveria um lugar escuro, uma espécie de grande porão,
chamado sheol, para onde as pessoas, morrendo, desceriam, misturando-
se bons e maus. É o segundo desenho. Vem depois um terceiro desenho,
mais perfeito. Perceberam que aquele lugar escuro era separado: os bons
de um lado e os maus de outro.
Somente duzentos anos antes de Jesus – portanto, alguma coisa
relativamente recente – aparece este livro: Macabeus. Só aí fica claro
que um dia Deus ressuscitaria homens e mulheres. Nesses duzentos anos,
esse ensinamento começou a ser explicado. Quase todo o povo de Israel
aceitou isso, exceto estes senhores, chamados saduceus, que continuaram
com aquela teoria antiga. Sempre há conservadores, que preferem ficar
com o passado. Esqueceram que o tapete já estava desenrolado, e ficaram
com os primeiros desenhos, esquecendo os seguintes.
Jesus quer dizer que eles não entendem nada e que Ele, o Filho de
Deus, sabe que o Pai irá ressuscitar a todos. Esse é um pouco o sentido do
Evangelho.
Agora, um pouco sobre a Teologia. Desde 1958, é a única coisa que
eu faço. Portanto, há quarenta anos, eu só estudo Teologia. E é uma coisa
tão bonita, que eu nunca me arrependi. Arrependi-me de muita coisa que
fiz na vida, mas não de me dedicar à Teologia. É a minha maior alegria, a
maior festa, o meu maior prazer, pois é algo realmente fascinante.
104
Às vezes fico até triste, mas triste mesmo, quando vejo tanta beleza,
tanta maravilha que tantas pessoas não conseguem ver. E sofro com isso.
É como alguém que viu uma paisagem bonita, que um dia chegou diante
do mar, viu aquela maravilha, enquanto outros só conhecem tiriricazinhas
pequenas do seu quintal.
Eu tive essa graça – é graça, porque o Senhor me ofereceu a chance
de mergulhar neste mistério. E eu não sei nada, porque é tão grande este
mistério da Teologia, que sempre nos sentiremos pequeninos. Agora o
papa (*) escreve uma encíclica tão bonita, chamada “Fé e Razão”, em que
ele volta a dizer isso.
Homens e mulheres do mundo de hoje, toda vez que a razão humana
se afasta da fé, da Teologia, ela anda por desertos terríveis. Ela ensina
tanta coisa que só faz mal à humanidade. Entristece-me ver a quantidade
de horas que as pessoas passam absorvendo a vacuidade de um Faustão,
de todos esses programas de domingo, vazios de tudo. Dá tristeza pensar
neste Brasil, nesta cultura que temos. É a cultura dos fantásticos, das
televisões, de uma superficialidade espantosa, que não acrescentam nada.
Terminando um dia de domingo, pare e se pergunte: o que eu aprendi,
que valor eu vi, que coisa iluminou a minha vida, deu-me existência,
alegria de viver, coragem para que eu ande? Nada. É a vacuidade total. É
irreverência, é crime, é sexo, é tudo misturado num amálgama terrível. E
nós, com todos estes mistérios belíssimos: toda a Bíblia, toda a Patrística
(**), todos os grandes teólogos, todas as reflexões. São dois mil anos em
que se pensa a fé cristã. São dois mil anos! Não um fantasticozinho, uma
globozinha, não. São dois mil anos de pessoas sérias, como Agostinho.
Gênios que passaram toda a vida pensando. Um Tomás de Aquino, jovem
ainda, tranca-se num mosteiro dominicano e escreve aquela obra belíssima
– “Suma Teológica” – palavra por palavra, à mão, porque naquela época
não havia computador, nem caneta. Era à mão, com uma penazinha de
pássaro, com a letra quase ininteligível e ilegível. E todos copiavam os
seus textos para serem lidos nas universidades. Não havia tipografia e,
ainda assim, esses textos chegaram até nós. São lidos, relidos, copiados,
coletados. São obras gigantescas. Só no ISI (***), temos mais de cento e
vinte mil livros de Teologia. Só na minha casa. Claro que não os li todos,
nem poderia. Mas estão lá, para iluminar a nossa inteligência, para nos
lembrar que há algo maravilhoso.
105
Entristece-me também sentir tão pouco interesse em Vespasiano. Eu
fui a Caxias do Sul dar um curso de Teologia para mil e duzentas pessoas.
Cheguei lá, num ambiente desconhecido. De repente, entro no auditório e
me deparo com mil e duzentas pessoas sequiosas. Durante cinco manhãs,
cansados, pagando para ouvir. Depois, à noite, todos cantando teologia,
numa festa gigantesca, como nunca vira na minha vida. Tanta alegria
diante de uma simples teologia! Simplesmente falei de Deus para eles.
Tudo isso numa cidade menor que Belo Horizonte, menor que tudo isso
aqui. E lá eu senti toda essa sede de Teologia, como vejo em tantos outros
lugares. Aqui, vejo sede talvez de outras coisas. Realmente dá tristeza.
Não por eu ser teólogo, mas pelas águas cristalinas que não se bebe, pelo
que há de bonito, pela beleza que não se vê, pelo prazer, pelo encanto que
não se sente.
Podemos morrer sem ver, sem fazer coisas bonitas, mas se
conseguirmos vê-las, será muito mais bonito. Amém. (07.11.98)
106
BEM-AVENTURANÇAS: A FELICIDADE QUE
NINGUÉM NOS TIRA (Mt 5, 1-12a)
Quantas vezes, irmãos, vocês ouviram essas bem-aventuranças?
Ora de Mateus, ora de Lucas – cada um com seu gênero literário próprio.
Mateus mais sapiencial, um pouco mais longo, com mais propostas de
bem-aventuranças.
Eu me perguntava por que essas bem-aventuranças? A palavra bem-
aventuranças é uma palavra um pouco sofisticada para dizer felizes, nada
mais do que isso. Jesus escolhe umas coisas raras para indicar o caminho
da felicidade. Será que Ele não quis dizer que outras coisas não nos fazem
felizes? É claro que não, porque Jesus não quer falar o óbvio. De alguém,
por exemplo, num dia de festa, numa reunião com amigos. Todos alegres,
todos conversam, naquela paz e serenidade. Que todos estejam felizes, é
claro! Não era preciso Jesus dizer, nós experimentamos. Quando uma mãe
dá à luz sua criancinha ou a carrega no colo, não precisa Jesus que essa
mãe está feliz, as mães sabem disso. Quando a noiva entra na igreja, toda
bonita, esparramando sorrisos, com o pai ao seu lado, sorrindo também,
não precisa dizer que eles estão felizes. A experiência mostra. Jesus não
quis falar daquelas felicidades que nós conhecemos. Um jovem passa no
vestibular. Ele fica todo feliz e sai espalhando alegria pela rua. É claro que
ele está feliz! Lembrem-se daquelas fotografias que se tiram no princípio
do ano, quando saem os resultados dos vestibulares. Aquelas pessoas
pulando, gritando, chorando de alegria. É claro que eles estão felizes. Não
precisa Jesus dizer. É óbvio, nós sabemos.
Jesus escolheu aquelas felicidades que nunca pensávamos que
nos fossem tocar. É essa a dialética de Jesus. Até nós, quando falamos,
dizemos “pobrezinhos, coitados deles”. Jesus não diz coitado, diz feliz! É
diferente. Por que Jesus diz que o pobre em espírito é feliz? Em Lucas é
pobre, sem mais. Não faz mal, são apenas matizes diferentes. Nós diríamos
coitadinho, pobrezinho. Imaginem um Bill Gates (*), olhando para esse
país e imaginando como somos pobres e miseráveis. Com os seus sessenta
bilhões de dólares, ele pode calar a boca de qualquer político desse país.
Ele nem vai-se dignar olhar para nós. E Jesus diz que nós somos felizes
porque somos mais pobres. Aí eu fico perguntando: por quê?
107
Procurei conversar com um grande filósofo, pedindo inspiração para
ele. Tentei conversar com Santo Agostinho, mas como ele já morreu no
quinto século, não pude conversar com ele. Mas, antes de morrer, deixou-
nos um livrinho que se chama “Vida Feliz”.
Interessante, Santo Agostinho escreveu um livro sobre a vida
feliz, onde imaginou uma conversa durante uma refeição. Convida para
um banquete a sua mãe, que nós sabemos que é Mônica, que ele chama
Mater, sem mais – minha mãe. Convida seu filho, seus colegas de reflexão
filosófica e, claro, ele inventa um diálogo. Vai perguntando e as pessoas
respondendo. A primeira pergunta que fez foi: “Vocês são felizes quando
não têm o que querem?” Todos disseram: “Não, se queremos uma coisa e
não a obtemos, ficamos infelizes”. Talvez fosse essa a nossa respostinha.
Quando uma pessoa obtém uma coisa que é ruim, é feliz? Aí a Mãe disse:
“Não. A gente só é feliz quando obtemos coisas boas e somos infelizes
quando obtemos coisas ruins”. Agostinho diz, então: “Minha mãe, você
é sábia!”
Imaginem vocês que algum jovem quer obter o que está querendo:
uma dose de cocaína. Obtém, fica feliz. Vem o transe, depois aquela cara
de sexta-feira santa de tarde, aqueles olhos escuros, a cara amarga, o
estômago revolto. Onde está a felicidade? Obteve o que quis, mas não é
feliz. Felicidade é saber valorizar o que não temos.
Agostinho continua: “Mas se obtemos alguma coisa boa, sabendo
que podemos perdê-la e por isso temos medo, seremos felizes?” Se
a gente tem medo de perder, já se perde a felicidade. Pensem bem: eu
comprei um carro zero km. Não sou feliz, porque a cada momento eu
fico imaginando que ele poderá ser roubado. Sabemos que os ricaços das
grandes cidades já não saem mais com seus carros. São felicíssimos em
vê-los na garagem. A garagem fica feliz, porque o dono tem medo de ser
assaltado. O senhor como Bill Gates, com sessenta bilhões de dólares terá
sempre medo que apareça outro concorrente, com um programa melhor
que lhe leve a fortuna. Não dorme, fica com úlcera, infarto aos quarenta
anos. Que felicidade é essa? Agostinho torna a perguntar: “Quando então
poderemos ser felizes?” Um casal vive feliz, mas e se alguém rouba a sua
esposa, o seu esposo? O pai tem um filho e esse filho vai trabalhar longe e
nunca mais volta? Todas as realidades humanas nós podemos perder. Por
isso, nossa felicidade é minada.
108
Daí Jesus diz: “Bem-aventurados os pobres, que vosso é o Reino de
Deus!” É a presença de Deus e essa ninguém nos pode tirar. Todas aquelas
experiências que Jesus descreve nessas bem-aventuranças são aquelas
que ninguém pode nos roubar. Quem pode nos roubar a misericórdia?
Ninguém. Quem pode nos roubar a mansidão? Ninguém. Quem pode nos
roubar a sede pela justiça? Ninguém. Quem pode nos roubar a pureza do
olhar? Ninguém. Podem cegar-nos, tirar-nos a visão física. Mas ninguém
pode tirar a visão da transparência no coração de uma pessoa. Mesmo
cega, ela vê com o coração. Ninguém pode tirar a presença de Deus
na hora em que estamos aflitos. Ninguém pode tirar a presença do Pai
quando Jesus estava na cruz. O centurião pode abrir-lhe o peito, rasgar-
lhe o coração morto, mas não pode tirar-lhe o Pai. Os fariseus puderam
xingar, blasfemar, zombar de Jesus, mas não puderam tirar o amor infinito
de Deus Pai, que o envolvia naquela sexta-feira santa. Ninguém pode
roubar-lhe a ressurreição. E ninguém poderá roubar-nos a eternidade que
Deus nos promete e realizará. Ninguém poderá roubar-nos a ressurreição.
Podem matar o nosso corpo, estraçalhar-nos, mas não podem impedir que
esse corpo um dia seja glorioso e triunfante.
Somos fortes, porque grande é a nossa recompensa no Reino dos
Céus. Amém. (07.11.04)
109
PONTOS DE TRANSCENDÊNCIA (Mt 25, 14-30)
É uma história. E a grande pergunta é esta: o que o Senhor quer
nos dizer? Claro que não é uma aula de economia, não é Jesus falando
para empresários: “vocês têm muito dinheiro, multipliquem este dinheiro
porque eu vou lhes fazer feliz”. Jesus não era professor de economia. Não
veio da Escola de Economia de Londres, mas da pobreza de Nazaré. Que
coisa é ser mais e que coisa é enterrar os talentos? Essas são as grandes
perguntas que o Evangelho não responde e sobre as quais temos que
pensar. Jesus deixou em suspenso a pergunta e a resposta.
Eu diria que enterra os talentos aquele que se conforma com aquilo
que é e não quer ser nada mais. Em qualquer aspecto da sua vida. É
aquele que pára. Interessante que na mitologia esse problema foi muito
conhecido. Também nas histórias infantis. Peter Pan era aquele menino
que não queria crescer. Temos a história do menino do tambor, que ficava
numa bolha porque não queria crescer. Parece que existe no ser humano
o medo de crescer. Jesus diz que enterrar o talento é não querer crescer.
Claro que não se refere a crescer fisicamente, mas interiormente.
Mas será que não podemos chegar a um momento – aos quarenta,
cinqüenta, e eu, aos setenta anos – e dizer que agora estamos cansados,
já trabalhamos muito e queremos nos aposentar para o bem? Negativo.
Nunca poderemos nos aposentar para o bem. As aposentadorias são para
o INSS (*), não para a virtude, para o trabalho interior, para crescer,
esperar, sonhar, desejar. Até o último instante, ou se quiserem, enquanto
funcionarem os neurônios. Enquanto os nossos neurônios fizerem
as sinapses e conseguirmos pensar, querer, amar, somos chamados,
convidados, impelidos pelo Senhor para crescer. Portanto, não podemos
nunca enterrar o nosso talento.
Há uma frase que repetimos muitas vezes e que mais ainda numa
vida matrimonial, familiar, se repete: eu sou assim mesmo. Enterrar o
talento é dizer exatamente essa frase. Nem o animal é assim mesmo. Até
um cachorro pode ser domesticado, pode ser melhorado. Será que somos
menos que um cachorro? Será que não poderemos trabalhar os nossos
defeitos, desenvolver as nossas qualidades, cuidar das nossas arestas,
cortar os nossos espinhos? Há pessoas em quem apenas nos encostamos
e já saímos sangrando. Será que não podem tomar uma tesoura e cortar
110
os seus defeitos, seus limites e tentar melhorar? Enterrar o talento é não
querer trabalhar a si mesmo, não querer crescer interiormente. É não
ambicionar, não no sentido econômico, mas no sentido espiritual.
A segunda pergunta é: como nós podemos crescer? Eu diria que há
três grandes correntes culturais atualmente que respondem a essa pergunta.
Deixarei para que vocês escolham a que quiserem, desde que assumam a
responsabilidade.
A primeira corrente, a mais forte, vai dizer-nos que seremos mais
todas as vezes que alguma coisa de fora nos valorizar. Quando vestimos
uma roupa de grife e achamos que somos mais. Quando saímos da garagem
com um carro bonito e achamos que somos mais. E se conseguirmos uma
Ferrari vermelha, como a do Ronaldinho, aí seremos muito mais ainda,
porque toda cidade vai parar. Não serão cinco, mas milhares de talentos. É
isso que o capitalismo, que a sociedade de consumo nos oferece. Vejam as
propagandas: você é mais porque veste isto, é mais porque bebe Coca-cola,
é mais porque prefere Skol e tantos outros mais. E, na nossa ingenuidade
de crianças pequeninas, embarcamos nestes mais, como se fossem um
grande transatlântico que nos conduzisse às praias eternas da felicidade.
Outra corrente oposta afeta apenas uma elite da elite intelectual,
sofisticadíssima, principalmente no Rio e São Paulo e uma meia dúzia de
belorizontinos. É o Budismo, que está crescendo muito no Brasil, como
já cresceu na Europa. O Budismo diz exatamente o contrário. Devemos
nos despojar totalmente dos nossos desejos, de tudo o que ambicionamos.
Vamos para o alto contemplar, rezar, tentar ser feliz, perdendo até a
nossa identidade. Apenas desaparecer num imenso nirvana, no imenso
cosmo, beber da natureza. Se pudéssemos viver apenas de oxigênio seria
o ideal, mas no máximo de algumas ervas. Vamo-nos tornando fininhos,
enquanto outros malham nas academias, tornam-se musculosos. Saímos
espiritualizados e podemos até sair voando, tanta é a leveza espiritual.
Entre as duas correntes está o Cristianismo, que vai dizer que não
devemos desprezar as coisas terrestres, nem tampouco viver só de coisas
espirituais. Foi Deus quem criou todas as coisas materiais. Portanto, elas
são boas. Ele nos deu inteligência para criarmos toda esta microeletrônica
que nos facilita tanto nas comunicações. Um simples e pequeno aparelho
pode carregar tudo o que pensamos, desejamos, sonhamos. Tudo isso foi
criado pela nossa inteligência, que nos foi dada por Deus. Portanto, tudo
isso não é mau.
111
Mas é importante tomarmos consciência de que todas as coisas
materiais são símbolos de uma realidade maior que nós. Aquele que não
consegue ver assim é um materialista, um consumista. Devemos olhar as
coisas materiais e nos perguntar o que elas significam, que pontes elas
nos lançam? As coisas materiais servem para que possamos voar alto. É
a imanência, são as coisas terrestres como instrumento para que o nosso
corpo se perca no azul da transcendência. Para isso elas existem. São
reflexos da face infinita de Deus. E se não conseguirmos ver a face infinita
de Deus nas coisas, estaremos nos perdendo nelas. Aí elas nos fazem
mal, não por serem materiais, mas porque, ao invés de revelar-nos a face
transcendente de Deus, a escondem e nos perdemos na sua materialidade.
Ficamos materiais, com o olhar perdido, a esmo, carregados de baixezas
que nenhuma presença de espírito consegue acender. Nos tornamos noites
escuras.
O Senhor nos lembra que nas noites escuras Ele acende as estrelas
para nos nortear e, durante o dia, acende o sol para nos orientar. Com
as estrelas e com o sol podemos caminhar e cada estrela é um ponto
de transcendência que Deus imerge nas coisas para que, olhando-as,
descubramos luz e caminhemos um pouco mais felizes.
Vou dar mais um exemplo: comer e beber são fundamentais para a
existência humana. Por isso lutamos contra a fome. É importante comer,
beber. Queremos isso para todos. Mas comemos como seres humanos,
como quem convive. Não apenas para viver, mas para conviver. Quanta
diferença! O animal come para viver, nós comemos para conviver, para
conversar, para olhar, para trocar idéias, para sonhar, para desejar, para
amar. O que mais nos destrói é transformarmos os atos da natureza em
elementos que reduzem a nossa espiritualidade, a nossa mística. O que
nos faz místicos não é acumular coisas, mas descobrir a presença da
transcendência em todas elas.
Na mais escura noite brilha a estrela de Deus. Amém. (13.11.05)
112
A REALEZA QUE RECEBEMOS NO BATISMO
(Jo 18, 33-37)
A festa de Cristo Rei é relativamente recente na liturgia. Sabemos
que a liturgia não é algo que se constrói de ontem para hoje, mas por
séculos e séculos. Há textos rezados na missa que existem há mais de mil
e quinhentos anos. Festas que se celebram desde o quarto século. Portanto,
a liturgia tem uma longa tradição. Mais precisamente, esta festa foi criada
por Pio XI, o papa que morreu no início da segunda grande guerra, em
1939. É uma festa recente para a liturgia.
Mas o que interessa é perguntarmo-nos: o que significa esta palavra
rei, aqui nesta festa? Eu acho que todos nós, aqui nesta igreja, devemos ter
visto, ou pelo menos ouvido falar, que morreu aquela princesa inglesa, a
Diane. Talvez alguns tenham visto na televisão, inclusive o grande palácio
de Buckingham, onde vive a rainha. Também há palácios reais na Bélgica,
na Espanha, na Suécia, onde há reis e os palácios podem ser visitados
pelos turistas. Na Europa, alguns países ainda conservam a realeza, um
pouco mais simbólica que real, mas há reis e rainhas que conservam as
pompas, os trajes, os tronos. Esse é o conceito de rei da nossa sociedade.
Jesus nada tem a ver com isso. Este título vem da Bíblia. O primeiro
documento importante da história da humanidade pertence ao mundo
jurídico e chama-se Código de Hamurabi. É um texto de mil e oitocentos
anos antes de Cristo. Antes de Moisés, antes de Abraão, já existia esse
texto, em que esse rei dizia – há três mil e oitocentos anos – que a função
do rei não é proteger os poderosos, os grandes, os banqueiros. Esses não
precisam, porque se defendem. Não é preciso defender os empresários, os
grandes banqueiros, os grupos econômicos, os especuladores, porque eles
se defendem. Eles sabem fazer as suas jogadas de bilhões de dólares. Isso
me deixa pasmo com o atraso da humanidade. Há três mil e oitocentos
anos esse rei dizia que temos que defender o órfão, a viúva, o estrangeiro,
o que chamaríamos, em português moderno, o excluído, o marginalizado.
Exatamente o que não fazemos.
Os escritores da Bíblia tomaram essa imagem de rei nas primeiras
culturas da humanidade e se perguntaram quem seria o nosso rei. Só
poderia ser Javé. Javé, o Deus do Antigo Testamento, fazia isso: protegia
os pobres, estava ao lado do órfão, da viúva. Imaginem uma sociedade
113
antiga, patriarcal! A viúva não tinha nada, o órfão era um desamparado,
o estrangeiro era um rejeitado. Naquela época era terrível, e Javé era
pensado assim. Esse era o conceito de rei. Por isso, Israel não queria ter
um rei terreno. Para que Salomão e Davi fossem reis, houve uma luta
tremenda, pois o povo temia que os reis da Terra despissem essa imensa
e maravilhosa imagem de rei que tinha Javé. Mas houve uma imensidade
de reis na cultura judaica, que não seguiram a tradição. Construíram seus
palácios, foram dominadores, opressores, tudo aquilo que não deveria ser
um rei, segundo Israel.
Vem Jesus, e na sua vida há dois momentos em que o quiseram fazer
rei. Uma vez, quando fez o grande milagre da multiplicação dos pães.
Imaginem aquela multidão enorme, todos animados, querendo fazê-lo rei.
Seria a hora de Jesus fazer a sua campanha eleitoral. Depois de um milagre
daquele seria eleito rei de Israel na mesma hora! Mas o Evangelho diz que
Ele fugiu. Imaginem um candidato eleito, sendo aclamado, escondendo-se
e fugindo! Não acharam mais Jesus e não o fizeram rei. No dia seguinte,
encontram-no e Ele diz: “Vocês quiseram me fazer rei, mas não pensem
que vou ser rei para fazer milagre. Não é essa a minha realeza. Eu vim
para trazer bondade. Eu vim ensiná-los a encontrar a verdade. A verdade
de si mesmos, da cultura, da história, da sociedade. É esse reinado que eu
quero”.
Quando Ele está totalmente sem poder nenhum, quando tem na
cabeça uma coroa de espinhos, quando carrega um manto de púrpura, cor
de seu próprio sangue, e tem como cetro um pedaço de cana, aí Ele aceita
ser rei. Quando não haveria nenhum perigo de alguém pensar que Ele era
rei como Pilatos, como um imperador romano. Daquele jeito, humilhado,
massacrado, flagelado, coroado de espinhos, Ele diz diante de Pilatos: “Eu
sou rei!” Ninguém poderia imaginar. Pilatos não iria perguntar quantos
exércitos Ele tinha, como Stalin (*) perguntou certa vez.
Não sei se vocês sabem desse fato da vida de Stálin. Ele perseguia
a Igreja Católica e seus conselheiros lhe disseram que isso lhe causaria
muito mal, porque o papa tinha muito poder. Stálin pergunta: “Quantas
divisões de tanques ele tem?” Responderam: “Nenhuma”. E ele conclui
que não havia nenhum perigo. E esse comunismo caiu alguns anos depois.
É esse o tipo de reinado que conhecemos.
Mas o verdadeiro reinado nós o recebemos na pia batismal. Quando
somos batizados, o sacerdote unge a nossa testa com o óleo do crisma
114
e diz: “Tu pertences ao Povo de Deus, sacerdote, profeta e rei!” Cada
um de nós – homens e mulheres, desde as menores criancinhas – somos
sacerdotes, profetas e reis. Essa realeza ninguém nos tira. Não é a realeza
dos palácios europeus, britânicos. Essa não vale nada, porque desmorona
e acaba. Num instante, o melhor carro do mundo espatifa e lá se vai a
princesa, com toda a sua realeza (**), para o outro lado. Mas a nossa
realeza ninguém ameaça. Ela é marcada pelo batismo. É a marca indelével
que carregaremos sempre. É uma realeza de mãos abertas, não fechadas.
Essa festa é também nossa! Amém. (22.11.97)
115
ADVENTO É TEMPO DE CONFIANÇA
(Lc 3, 1-6)
A nossa liturgia parece brincar conosco. Ela mistura as chegadas
de Jesus. No domingo passado, ela nos falava da segunda vinda de Jesus,
dessa chegada ainda não chegada. Daqui a pouco, falará da chegada pelo
nascimento, e hoje fala da chegada de Jesus adulto, quando inicia a sua
vida pública. São três adventos. O último, que ainda não aconteceu, o
advento do nascimento e, agora, o advento da sua chegada como homem
adulto que vai pregar. Antes dele, a liturgia apresenta João Batista.
Várias coisas são importantes nesse Evangelho. Primeiramente,
Lucas faz questão, como historiador que era, de situar Jesus na história.
Jesus não é um ser que andou pairando por aí, um ET. Ele veio ao nosso
mundo, num dado momento histórico: quando havia um imperador –
Tibério; quando havia um governador na Judéia – Pôncio Pilatos; quando
havia um rei na Galiléia – Herodes; quando havia, naquelas regiões
circunvizinhas, governadores – Filipe e outros; quando havia dois sumos
sacerdotes – Anás e Caifás. Lucas coloca todos esses dados para dizer que
Jesus entrou na nossa história. Hoje eu diria: sendo Presidente do Brasil
Fernando Henrique Cardoso; sendo governador de Minas Gerais, sendo
prefeito e assim por diante. Diria todos os dados da história, para dizer
que estamos vivendo na real realidade concreta. Jesus veio para o povo,
situado no tempo e no espaço. Portanto, a encarnação é bem concreta.
Ele viveu numa cultura, num tempo. Por isso, temos que, continuamente,
tentar captar a mensagem de Jesus daquele tempo para o tempo de hoje.
A segunda idéia fundamental de Lucas é tirada de um texto muito
bonito do Antigo Testamento. Ele o coloca na boca de João Batista,
interpretando-o. Em primeiro lugar, a palavra de Deus vai buscar João
Batista no deserto. Deserto para Israel é um lugar privilegiado. Não é
como o nosso sentido de deserto – só areia, escorpiões, serpentes. Esse é
o nosso conceito moderno, pobre, não simbólico de deserto. Para Israel,
deserto é o lugar da intimidade, da proximidade com Deus. O povo morou
quarenta anos, isto é, um tempo longo, no deserto. Lá assistiu as grandes
aparições de Javé, recebeu a Lei. Lá Moisés falou face a face com Deus.
Lá os relâmpagos anunciaram a vinda de Deus. Lá Deus fez os milagres e
se aproximou do povo. Deserto é, portanto, o lugar de encontrar a Deus,
116
estar perto dele. Lá estava João Batista, o homem carregado de Deus. Mas
deserto é também o lugar de teste, de provação. Lugar das dificuldades,
porque lá foram tentados, passaram fome e sede, protestaram, tiveram que
esperar que Deus realizasse o milagre. Não na hora, mas na paciência, na
busca, na espera.
Assim é nossa vida. Somos deserto porque lá está Deus falando, mas
também é um teste da nossa vida. Sempre queremos soluções imediatas
que não vêm. Procuramos emprego e não achamos. Um, dois anos. É
deserto, o lugar da prova, do teste, lugar da esperança, lugar de acreditar
que Deus não vai falhar, como não falhou.
Depois vêm três imagens, também elas belíssimas. As montanhas
e colinas, isto é, os orgulhosos e poderosos, aqueles que querem estar
em cima. Diante de Deus não há colina, não há montanha. Subam o
quanto quiserem e continuarão na baixura mais baixa diante de Deus – as
montanhas serão aplainadas, os vales serão levantados. Essa é a jogada
infinita de Deus. Ele tem uma paixão imensa pelos pequenos. Esses, Ele
toma no seu colo, nos seus braços e levanta – os vales serão levantados,
enquanto as montanhas serão abaixadas. E nós que andamos, muitas vezes,
por caminhos tortuosos? Tantos jovens perdidos!
Tenham confiança, o Advento é o momento de endireitar os caminhos.
Aqueles que estão perdidos por aí, sem eira nem beira, acreditem, esperem,
saibam que é o momento do Senhor endireitar, arrumar os nossos caminhos.
Quantos pais, quantas mães choram lágrimas de preocupação pelos seus
filhos?! Bate meia-noite, batem duas, três horas da madrugada e nada de
eles chegarem. Os corações sentem e sofrem nesses momentos em que
os jovens querem encontrar seus caminhos contrapondo-se. É nessa hora
que devemos lembrar dessa profecia, da força de Deus para endireitar os
caminhos.
E uma última mensagem é de imensa confiança: todos verão a
salvação. Mas será que todos irão acolhê-la? Será que todos irão aceitá-
la? Será que todos irão querê-la? Essa é a grande interrogação que ficará
suspensa até o último dia da história. Amém. (06.12.97)
117
ATRAVESSANDO O RIO JORDÃO
(Mt 3, 13-17)(#)
Imaginem que vocês estão do outro lado do Jordão, e por isso eu
tenho pena de vocês. Estão do lado da escravidão, das cebolas do Egito,
daquele faraó dominador que transformava os escravos em alicerces de
suas construções, que se julgava um deus soberano, que podia dispor da
vida dos outros.
Corre aqui o Jordão, um rio inspirador. Um riozinho pequeno que
nos assusta pelo seu tamanho, mas que é carregado de simbolismos, de
belezas. É do outro lado que também estava Josué, estava Moisés, que
também não passou, porque morreu antes. Josué, ainda na escravidão,
se encoraja e atravessa o rio e cerca Jericó e, com suas trombetas, faz
desabar a Jericó dos deuses, das falsidades, das mentiras. E ele entra na
liberdade.
Se soubéssemos a beleza desse sacramento que vamos receber, se
os olhos físicos conseguissem ver o invisível do sacramento, o nosso
rosto se iluminaria. Mas o sacramento se vela. Se Moisés, que era apenas
Moisés, ao descer do alto da montanha, teve que cobrir o rosto porque os
judeus não eram capazes de olhar para a sua face, tamanho era o brilho,
imaginem que quem está nesse rio não é Moisés. Quem está nesse rio
é o logos, o Verbo Eterno, é o Filho Unigênito de Deus. Desde toda a
eternidade é Ele quem está nesse rio Jordão. Mas também Ele sabia que
éramos e somos frágeis. Vestiu sua liberdade de uma humanidade direta e
imediata que chamamos corpo. O corpo é o maior sacramento que temos
da nossa interioridade.
Uma coisa que me ensinaram desde pequeno, e que procurei
aprender ao longo de toda a minha vida, é ler os corpos dos outros. Ler
o rosto das pessoas, ler a dor, o sofrimento. Ler também o vício quando
encontro rostos empapuçados e feios. Não da feiúra física, mas do vício,
da sensualidade. É terrível! E há os corpos das criancinhas que choram,
gritam, ocupam todos os espaços com sua absoluta inocência. É o maior
sacramento que temos. Por mais que queiramos maquiar, por mais que os
pitanguys (*) trabalhem o corpo das mulheres, ele não mente.
Por isso, o corpo passa pelo batismo. Por isso, também o corpo de
Jesus passou pelas águas. Por isso, quando aqueles soldados tremendos
118
viram a água do Jordão se transformaram. Precisaríamos de um Jordão
imenso neste Brasil, para nele mergulhar toda a Câmara dos Deputados,
Senado, Ministros, Tribunais. Precisamos de muitos jordões neste país.
Que cada um de nós pense nisso. Nós também precisamos passar
neste Jordão, para que toda a sujeira, todo o mal, toda a perversidade saia
de nossa vida e cheguemos à pátria da liberdade, simbolizada por esta
mesa, na qual o Senhor será pão e vinho. Amém. (24.12.05)
(*) referência ao cirurgião plástico Ivo Pitanguy
119
A TRANSFORMAÇÃO DA HISTÓRIA COMEÇA
NO MISTÉRIO DO CORAÇÃO DE DEUS
(Lc 2, 1-14)
Aquela noite em que Jesus nasceu foi bem diferente desta noite que
celebramos hoje. Naquela noite, só os céus, Jesus, Maria, José e outras
pouquíssimas pessoas souberam do fato. O grande Império Romano dormia
a noite dos seus deuses. Não tinha olhos para perceber que lá, naquele
recanto, longe daquele império, numa cidade pequena e desconhecida,
chamada Belém, nascia o próprio Filho de Deus. Só os céus sabiam.
Maria, a mãe; José, o pai que foi dado a Jesus aqui na Terra; e, segundo a
narração de Lucas, os anjos avisaram aos pastores.
Lucas quer mostrar o nascimento de Jesus como um grande mistério
que está acontecendo. Se ele narrasse como narram os livros de história,
quebraria essa beleza enorme do mistério. A nossa maneira de narrar as
coisas é muito objetiva e fria. Imaginem se ele dissesse que Maria estava
num hospital e chegara um médico para ajudar no parto?! Nada disso.
Lucas nos conta esse fato vestido pela sacralidade e profundidade do que
estava acontecendo. Deus Pai não quis que Maria tivesse sequer os vizinhos
junto dela. No mistério de Deus, Jesus foi levado para um lugar onde era
totalmente desconhecido. Se Ele tivesse nascido em Nazaré, as famílias
vizinhas os conheceriam. Era uma cidade pequena. Maria certamente era
uma menina conhecida pela sua beleza, pela sua transparência, pela sua
simplicidade. O nascimento de Jesus em Nazaré seria uma festa. Mas Deus
quis mudar a história humana. Ele quis inverter a nossa maneira de pensar.
Quis provocar a revolução maior, que jamais aconteceu na história. Até
então, a história era pensada a partir dos grandes e poderosos, daqueles que
constavam nos livros. Deus quis mostrar que a realidade mais profunda
começa no silêncio, na pobreza, na simplicidade, no amor carinhoso de
Maria.
Ele não quis que seu Filho nascesse na sede do Império Romano,
não quis que nascesse na sede da cultura, que era Atenas. Não quis que
nascesse nem em Jerusalém, a capital religiosa do povo de Israel. Nem
sequer na sua própria cidade, onde trabalhavam seus pais. Fez Jesus
caminhar, fez Maria e José caminharem quilômetros e quilômetros, para
um recanto desconhecido, sem que ninguém soubesse nem o dia, nem a
120
hora. Até hoje não sabemos o dia em que Jesus nasceu. Celebramos no
dia vinte e cinco de dezembro, mas não sabemos. Não consta em nenhum
documento deste mundo, a não ser nos registros eternos de Deus, o lugar,
a hora, o minuto em que nasceu Jesus. Isso é um mistério que um dia
poderemos lhe perguntar, mas quando foi, se fazia frio, se chovia, se
havia estrelas, se era noite, nunca saberemos. A história jamais conheceu
qualquer dado do nascimento mais importante.
Só para uma pequena informação, esta festa de natal começou a ser
celebrada no dia vinte e cinco de dezembro, a partir do quarto século, isto
é, quatrocentos anos depois. E hoje, para nós, este dia é importante. Mas,
na profundidade do mistério de Deus, essa data ficou escondida porque
Ele quis começar a transformação da história humana no escondimento do
seu coração.
Isso é uma lição muito profunda, porque hoje qualquer pessoa, que
se julgar a menor, a mais pecadora, a mais marginalizada, a mais excluída,
pode dizer a si mesmo que Deus está a seu lado. Ninguém mais pode se
julgar excluído, porque Ele escolheu exatamente o último lugar para se
colocar e daí criar toda a história humana. Ele cria de baixo. Não vem de
cima. É nesse mistério que Deus escolheu traçar a história. Bem de baixo,
dos pequenos, não dos poderosos, mas dos humildes, de uma mulher
desconhecida, de uma jovem, uma virgem que não podia ainda dar a luz.
Ele escolheu o mistério, a profundidade do silêncio.
Essa música que cantamos, “Noite Feliz”, numa versão bem
brasileira, em seu original foi composta por um simples organista de
uma igrejinha do interior da Alemanha. Começou a tocar numa noite
inspiradora e essa música se universalizou. Mas, em alemão, ele não diz
noite feliz, diz stille nacht, heilige nacht – noite santa, noite silenciosa.
É no silêncio, é na calma, é na tranqüilidade que nasce o Verbo de Deus.
Ele não nasce no barulho, não nasce nas luzes, no foguetório. Nasce num
recanto desconhecido, para começar a tecer a história.
Os Santos Padres têm uma imagem muito bonita para o mistério
da encarnação. Eles dizem que nós éramos como um barco que andava à
deriva, por lugares muito perigosos, onde havia muitos rochedos. Se os
barcos vão andando em meio aos rochedos, em pouco tempo se estraçalham,
e todos que estão dentro naufragam. Deus, em sua sabedoria, escolheu
um barcozinho pequeno, como um guia, que fosse conduzindo todos os
outros, para que nenhum barco rasgasse a sua quilha nas rochas. Esse
121
pequeno barco chama-se Jesus. Ele vai à frente. Se não quisermos segui-
lo, podemos novamente nos perder. Mas se seguirmos esse barco, podemos
ter certeza de que sairemos do ponto em que estamos e esbarraremos na
terceira margem, ao encontro da eternidade. Amém. (24.12.97)
122
A ARTE DE FORMAR-SE (#)
Naturalmente, fazer uma palestra sempre é desafiante, mas falar
em Vespasiano é um prazer. Ontem mesmo eu estava num ambiente bem
diferente. Na PUC, está começando um grande seminário internacional
sobre a sociedade inclusiva, que é um tema muito interessante, e coube a
mim fazer a palestra inaugural. Era um ambiente bem mais solene. Aqui
eu me sinto em casa, diante de algumas pessoas que eu conheço de rosto
e outras, mais que de rosto.
É um tema do qual não costumo falar muito, porque está fora do
âmbito da Teologia, mas com o qual venho trabalhando desde muitos anos.
Na década de sessenta, tornei-me orientador de estudantes brasileiros que
estavam em Roma. Como eles chegavam lá muito despreparados para
enfrentar uma grande universidade européia, eu funcionava como uma
espécie de tutor. Introduzia-os na vida intelectual. A partir daí, sempre me
interessei e fazia-me essa pergunta: como é que podemos nos ajudar, para
que nós mesmos nos formemos?
Vocês sabem que a etimologia é muito importante para marcar
uma palavra. Se tomarmos a palavra formar, encontraremos dentro dela a
palavra “fôrma” ou “forma”. É interessante que, em português, cabem as
duas palavras. A arte de formar-se é a arte de se dar uma forma e se dar
uma fôrma.
Quando olhamos a questão da formação, percebemos que, na história
da cultura, três grandes tendências se manifestaram. A mais tradicional
de todas – com a qual os mais antigos sofreram, e, graças a Deus, esta
geração jovem já não sofre – é esta idéia de que o educador tem a fôrma
e a impinge sobre o educando. A idéia de que o mestre sabe, e o discípulo
não sabe. O professor sabe, o aluno não sabe. O professor vai ensinar, vai
passar os seus conhecimentos para os seus alunos. Vai passar-lhes essa
fôrma que eles devem colocar sobre si mesmos.
Até a década de sessenta, essa era praticamente a pedagogia
dominante. Aí apareceu um brasileiro que começou a questionar seriamente
isso. Todos vocês já devem ter ouvido falar de Paulo Freire. Ele começa a
se questionar, porque inicia um trabalho com analfabetos no Nordeste. Ele
pensa se ensinaria: “Pedro tem uma bola”. “Maria brinca com boneca. Lili
com Lulu. Lalá com Lelé”, como aprendíamos na escola primária. Seria
123
válida essa forma de ensinar para homens barbados, com uma experiência
enorme, que podiam ser pais dele, uma vez que era jovem naquela época?
Chega à conclusão de que não poderia passar uma educação bancária,
como se os alunos fossem a um banco, pedissem dinheiro e levassem
o dinheiro para casa. A cultura bancária não lhe satisfazia. E ele forja a
palavra conscientização. Começa a usar o que a pessoa já tem dentro de
si. Ela só precisa tomar consciência do que já é. Formar-se não é impingir
uma forma que o educador tem, mas acordar na pessoa aquilo que ela
já tem naturalmente, ajudada por um educador. Ele introduz essa grande
idéia da conscientização.
Mas é bom saber que Paulo Freire não descobriu nada. Há mais de
dois mil anos, lá na Grécia, houve um grande pensador, que não escreveu
nada, mas deixou o nome – Sócrates –, e se fez conhecimento através
dos escritos de Platão. Ele introduziu e criou um método, dizendo que a
educação é maiêutica. E tirou essa idéia de vocês, mulheres. Maiêutica é
parto. O maieuta é aquele que faz nascer a criança que já está no ventre
da mulher. E ele diz que “o educador é o parteiro ou a parteira”. Essa é
a idéia de Sócrates. Ele achava que cada criança já carrega dentro de si
o adulto que ela será amanhã. Caberia a nós ajudá-la a nascer. Formar-
se é fazer nascer a criança que já existe em nós. Por isso eu não falo em
arte de formar, mas em arte de formar-se. Coloquei um pronominal muito
importante. Isto é, como vou fazer nascer a criança que existe dentro de
mim?
É claro que a razão socrática já não serve mais para nós, porque
não pensamos mais como ele. Sócrates imaginava que tínhamos uma
alma imortal e divina. Que, antes de assumir o nosso corpo, ela tinha
contemplado todas as idéias puras – da beleza, do bem, da verdade – e,
ao encarnar-se no corpo, esqueceu. Teve uma amnésia, mas já tinha tudo
dentro. Caberia a nós ir acordando essas idéias no seu inconsciente, nessa
grande memória que ela já trazia para a Terra.
Prescindindo da idéia de Platão, e mudando a sua concepção, porque
a maioria dos filósofos já não acredita que haja uma alma que anteceda a
nossa existência, podemos acreditar e aprender de Sócrates que a maiêutica
é válida também. Isto é, uma criança com sete, doze anos, e nós, adultos,
carregamos sempre uma série de elementos. Hoje a etologia, a psicologia
profunda, a biologia, as biociências, os que estudam a decodificação do
genoma sabem que carregamos uma carga hereditária enorme. Leonardo
124
Boff está trabalhando muito isso e diz mais. Nós carregamos quinze
bilhões de anos de memória. E aprendemos agora uma coisa genial: que
a matéria inanimada, o próton guarda e passa informação. As próprias
substâncias químicas carregam informação. Nós somos muito mais que
um conjunto de substâncias químicas. Temos uma quantidade imensa de
informação. Antes de ligarmos qualquer computador para nos informar, já
temos todas as informações que carregamos na nossa genética, no nosso
inconsciente, que trouxemos de nossos pais, de nossa infância. Podemos
dizer que formar-se é acordar muita coisa que já existe dentro de nós. E
eu acrescento um novo elemento: uma relação dialética entre o formando
e o formador. Não basta incutir, não basta acordar. É preciso uma relação
com quem acorda. Como é preciso a parteira para fazer nascer a criança, é
preciso o educador para fazer nascer a criança que existe em nós.
Não vou falar de formação de criança, mas sim para todos nós,
adultos. Eu me inspirei num grande pedagogo francês, J. Delors, que tem
um famoso relatório. A UNESCO, isto é, o departamento da ONU que se
dedica à educação, pediu-lhe, no final do século passado, que pensasse
seriamente, consultasse o mundo inteiro e dissesse quais seriam os pilares
da educação do próximo milênio, no qual já estamos. E eu formulei quatro
frases, que tomei do seu relatório e elaborei a partir da minha própria
experiência: aprender a pensar, aprender a fazer, aprender a conviver,
aprender a ser. Depois, no meu livrinho, eu coloquei mais uma: aprender
a descobrir a própria vocação.
Aprender a pensar, aprender a conhecer. Não é pensar, mas
aprender a pensar. É diferente. Pensar, todos nós pensamos. Mas aprender
a pensar é entrar numa mecânica, numa dinâmica, que coloca a nossa
inteligência para funcionar numa linha organizada. Como se aprende a
pensar, como se aprende a conhecer? É a primeira pergunta.
A dificuldade que temos para pensar hoje é que vivemos num mundo
fragmentado culturalmente. A fragmentação cultural impede o pensar. Um
pensador francês, que numa época foi até guerrilheiro – Régis Debray
– escreveu um livro sobre Mediologia. Não tem nada a ver com médiuns
e espiritismo, mas sim com a ciência da comunicação. Ele introduz uma
distinção muito interessante entre transmitir e informar, que não são a
mesma coisa. Informar é fazer circular informações horizontalmente. Por
exemplo: “os Estados Unidos bombardearam um hospital em Cabul”. Vem
a notícia e roda o mundo inteiro. Isso é informar. Amanhã se fala de um
125
desastre, depois de uma catástrofe da natureza. Tudo fragmentado. Que
relação tem a catástrofe, com o atentado, com os problemas do governo
brasileiro? Recebemos uma quantidade gigantesca de informações que
vão circulando pelo mundo inteiro. Pode acontecer na Austrália, pode ser
em Cingapura, agora nossas atenções se voltam para o Afeganistão, em
outra ocasião é o problema da droga, na Colômbia, e assim por diante.
Tudo isso é informação, não transmissão. Não leva a pensar. Quem se
informa não pensa, informa-se. Não vamos confundir as coisas. Não
precisamos pensar, porque podemos gravar e a maquinazinha não pensa.
Pensar pertence ao mundo da transmissão.
Transmissão supõe, primeiramente, um sujeito social. Por exemplo,
a escola, a universidade, um grupo humano. Recebem uma tradição do
passado, elaboram-na e a levam adiante. Pensar é contextualizar as idéias.
A fragmentação corta-as, separa-as. É como se tivéssemos um imenso
mosaico e, com a tempestade que houve, ele se quebrasse em pedacinhos.
Ficaria tudo solto por aí. Isso é informação. Pensar é pegar esses
pedacinhos, colá-los de tal maneira que, no final, aparece a face daquela
pessoa que o mosaico mostrava. Isso é pensar. Eu só penso quando sei
que uma idéia que tenho hoje, teve um ontem, tem um hoje e se projeta
para o amanhã. É só no contexto que eu posso localizá-la no tempo e no
espaço. Uma coisa é uma idéia dita em Atenas, outra coisa é a mesma
idéia dita numa tribo indígena. Eu tenho que conhecer o lugar geográfico
onde nasceu essa idéia e a época de onde ela se originou. Se não sou capaz
de localizar as idéias, não sou capaz de pensar. Só consigo entender uma
realidade quando eu compreendo de onde veio. A coisa menos pensada e
pensante é citar frases isoladas. Posso dizer “Platão disse”. Mas quem é
Platão? É jogador do Vasco? Tenho que saber que Platão foi um filósofo
grego que viveu antes de Cristo. Eu localizo e vou saber que viveu na
Grécia, quando estava começando a grande Filosofia.
Se eu digo Marx, terei que saber que era um alemão que viveu no
século XIX, no momento de uma forte crise econômica e conheceu o
capitalismo manchesteriano (1). Aí eu posso entendê-lo. Se tomar uma
frase de Marx, não poderei entender, se não souber de onde lhe veio essa
idéia, o que lhe provocou essa idéia. Se não sei que ele estava em Londres,
estudando o violento capitalismo inglês, em suas piores fases, não posso
entender “O capital”. Posso tomar qualquer poeta brasileiro. Posso tomar a
literatura. Se eu não sei localizar um poeta romântico, vou achar tudo água
126
com açúcar. Se eu tiro uma poesia de seu contexto, nunca vou entender
que o autor vinha de um país tropical e estava exilado em Portugal, como
no caso de Gonçalves Dias, em “Canção do Exílio” – “Minha terra tem
palmeiras, onde canta o sabiá...”
Eu só posso entender os poetas, os literatos, os pensadores, as pessoas,
dentro do seu contexto. Até pelo diálogo dos adolescentes com os seus
pais, se eu não tiver a localização geográfica e histórica, eu não consigo
pensar. Como posso falar-lhes de moinhos e fazendas, se não viveram
essa realidade? Pensar é contextualizar, é situar a história, conhecendo o
passado, sabendo que existe um presente e que essa idéia se projeta para o
futuro. Ela é semente do futuro.
Pensar é saber relacionar. Hoje, uma das categorias mais importantes
do pensamento é a relação. Antes era essência. Quando perguntamos: “o
que é isto?” Todos podem dizer: é um microfone. Hoje a pergunta mais
importante é para que serve este microfone, que relação ele estabelece?
Vejam a diferença! Ele faz com que eu me comunique melhor com vocês,
aumenta o som de minha voz, permitindo que eu atinja um auditório mais
amplo. Nós caminhamos para um pensar cada vez mais relacional. E
começamos a perceber que todas as coisas se relacionam com todas as
coisas. Essa foi das intuições mais profundas da metodologia moderna. E
vou dar um exemplo simples.
Um cientista, chamado Foucault, chegou em Roma e dependurou
um pêndulo enorme no Pantheon. O pêndulo começou a se movimentar.
Evidentemente, como bom cientista que era, disse que era claro que a
Terra gira em torno do sol em dois movimentos, de translação e rotação, e,
combinados, esses dois movimentos fazem com que o pêndulo desenvolva
determinada oscilação. Imaginem: a Terra girando fazia o pêndulo mover-
se! Ele começa a estudar o movimento do pêndulo e percebe que não era
assim. Translação e rotação não explicavam o movimento do pêndulo.
Levantou então a hipótese de que o movimento de duzentos bilhões de
galáxias que se deslocam é que faz o pêndulo se movimentar. Quer dizer
que um pêndulo na Terra é influenciado por todas as galáxias que existem
neste cosmo gigantesco. É essa a conclusão a que ele chegou e hoje é
aceita pelos cientistas.
Quer dizer, nós que estamos aqui e as bombas que estão caindo
em Cabul (2), influenciamo-nos. Não sabemos como, mas influenciamos.
Não porque vemos as imagens, mas somos influenciados fisicamente.
127
Mexem com as moléculas, prótons, agitam e chegam até nós. Tem ainda
o “efeito borboleta”. Uma borboleta bate as asas em Cingapura e aquele
bater de asas move átomos e moléculas. Vão agitando e chega a entrar em
conexão com o grande furacão, com essa grande chuva em Vespasiano. A
tempestade desta tarde foi influenciada pelo bater de asas das mariposas
em Cingapura. Tudo está em relação com tudo.
Saber pensar é relacionar ao máximo. Vou tomar um exemplo para
vocês, que são professores. Imaginem o caso de um aluno com problemas:
pensamento vazio, atrasado, antigo, pobre; a sua mãe está mal, o pai
desempregado. Quantas outras coisas influenciam essa criança? Todas as
relações que ela estabeleceu em sua vida a constituem: mãe, pai, amigos,
colegas, professores, o que leu, o que ouviu, televisão, cinema. Começamos
a perceber que a realidade é de uma complexidade gigantesca, porque
tudo influencia tudo.
Agora vem uma conseqüência gravíssima. Todos os nossos
encontros, todas as nossas palavras, os nossos olhares, os nossos silêncios
são relacionais, são pedagógicos, positiva ou negativamente. Não existe
um encontro, um olhar, que não seja relacional, mesmo não olhando. O
não olhar é relação. De negação, de rejeição, de desprezo, de displicência.
Mas tudo isso influencia. Se vocês entram num ônibus, não olham para
ninguém, criaram relações. Se olharem, criaram relações. Vocês devem
conhecer este livro que ficou famoso, “A inteligência emocional”, do
escritor americano Daniel Goleman. Ele teve a idéia de escrever o livro
num dia quente, lá nos Estados Unidos. Ia ele para a universidade e,
quando entrou no ônibus, notou o mau humor de todos. Mas, naquele dia,
o motorista estava brilhante. Era um senhor, de quarenta e poucos anos,
que sorria, brincava e cumprimentava a todos. De repente, todo o ônibus
mudou. Todos sorriam e se cumprimentavam, porque uma pessoa mudou
a relação. Bastou uma pessoa, porque somos seres de relação.
Pensar é pensar as relações. Pensaremos mais e melhor na medida
em que soubermos relacionar todas as coisas. Nunca sejam simplistas
de procurar uma causa para alguma coisa. Achar que um filho tomou
determinada atitude influenciado pela namorada. Basta reparar em volta
e os círculos vão aumentando, aumentando, até chegar a Cingapura, até
Cabul. Evidentemente, não podemos ficar eternamente buscando relações,
mas saber pensar é saber relacionar.
128
Vejamos uma outra dificuldade do pensamento de hoje: a
especialização do saber. A solução é o pensamento geral. Especialização é o
saber tatu. Vamos usar esta imagem: quanto mais furamos um buraco, mais
escuro fica. Se furarmos demais, só veremos minhocas. A especialização
dificulta, veda-nos o pensamento, porque ficaremos cada vez em buracos
mais profundos. Quanto mais especializado, menos pensado. O cientista
que só entende de sua matéria não pensa. Vocês acham que um cientista
que pensasse faria uma bomba napalm, faria essa bomba de fragmentação,
essas bombas que os americanos estão usando agora na guerra, para matar
as pessoas? Quem pensa não faz isso. A dona Patrocínia, na sua cozinha,
não faria isso, pois ela pensa mais que um cientista. Ele coloca aquela
bata branca e encontra a explosão química mais perfeita, para explodir
o máximo. Vocês acham que alguém que pensasse faria esse Anthrax
(3) quimicamente puro para matar as pessoas? Não faria. Mas alguém
altamente especializado faz. Viram a diferença entre especialização e
pensar? Pensar é ter uma visão de conjunto. Saber que uma atitude nossa
pode matar ou salvar. É preciso pensar nas mães das crianças, nos avós.
Vários desses astronautas que andaram pisando o solo da lua ficaram
perturbados. Alguns ficaram loucos, outros se tornaram pregadores
evangélicos. Ficaram totalmente desnorteados porque, de repente, viram o
que significava aquela realidade. Toda vez que nos colocamos num saber
muito fechado, perdemos o senso do real, não temos um pensamento
geral. Então, não devemos nos especializar? Devemos, mas sem perder o
pensamento geral. A imagem que eu uso é esta: se eu vou cavar um buraco
aqui, tenho que olhar todo o entorno, para saber onde vou cavar e, de vez
em quando, sair do buraco e olhar também.
Vocês conhecem aquela belíssima história que Rubem Alves
(4) conta. Ele diz que as rãs estavam conversando, num buraco muito
profundo. Repetiam sempre a mesma coisa, como em certos programas
de televisão. De repente, vem um pássaro voando e cai lá dentro. Começa
a ouvir a conversa das rãs e lhes pergunta se elas não conheciam o céu
azul, o verde das árvores, a brancura das nuvens. Exatamente isto: as
rãs só entendem de minhocas. O pássaro que tinha voado conhecia toda
a beleza da natureza e pode dizer-nos: “se vocês não voarem como eu,
nunca conhecerão a beleza do universo”.
Essa historinha é um pouco do que eu quero dizer sobre o que é
saber pensar. Saber pensar é voar, é ter uma visão geral, grande, longa. Por
129
isso, certas matérias, como Filosofia, Teologia, não são para piedosos. É
para ter cabeça, é para pensar.
Lembro-me de que, quando fazia meu doutorado, li um artigo de um
filósofo tcheco – da Tchecoslováquia antiga, a comunista. Ele dizia: “a nossa
filosofia – referindo-se à Tchecoslováquia – está-se empobrecendo, porque
está-se fechando neste mundo marxista. Não tem diálogo com nenhum
outro tipo de filosofia e nenhuma teologia”. Como as rãs, que só falavam
de minhocas, os filósofos tchecos só falavam de Marx. Não conheciam
nada mais. Não conheciam Agostinho, São Tomás, Platão, Aristóteles.
Não voavam e, evidentemente, ficaram pobres. Todo especialista é pobre
de cabeça. Mas se é especialista e tem uma visão, muda tudo.
Olhemos os médicos das gerações antigas. E posso citar alguns que
vocês conhecem: Guimarães Rosa, Pedro Nava, Juscelino. Eram médicos,
mas quanta cultura! Que diferença! Meu pai era médico e a quantidade de
livros de literatura que ele tinha era gigantesca. Toda a coleção de Camilo
Castelo Branco (5), mais de duzentos volumes, que ele leu toda. Sabia que
pensar não era entender do buraquinho do coração, mas ter uma visão geral
do homem, da doença, das relações. Pensar é ter um pensamento geral.
Outro fator que dificulta o pensar é a falta de leitura de obras de
arte. Talvez muitos de vocês, jovens, nunca pensaram no que seja uma
obra literária. Quando lemos uma obra de literatura, nós reconhecemos,
conhecemos de novo, nesses autores, que escreveram de uma maneira
genial, as nossas experiências. Elas ganham em profundidade e em clareza,
porque alguém escreveu bem. Um jovem enamorado toma “Romeu e
Julieta”, lê aquele diálogo entre os dois, em que Shakespeare descreve
a paixão de dois adolescentes e se reconhece – “é isso que eu senti!” E
ele sentiu agora, mais profundamente, porque encontrou na literatura. A
literatura é para que possamos reconhecer os nossos sentimentos, as nossas
experiências. E, em reconhecendo, aprofundarmos. É outro nível. Isso é
pensar. Porque, do contrário, viveremos um namoro superficialmente, um
amor conjugal superficialmente. Há tantos romances de relações conjugais
porque são relações difíceis. Esses grandes romancistas trataram, às vezes
pessimistamente, às vezes realisticamente, mas trataram dessas relações.
O esposo, lendo o romance, clássico, realista, de repente redescobre a sua
crise afetiva, matrimonial, porque o romance coloca a nu a sua experiência
– do autor, que escreveu, e do leitor. Assim, quanto mais lemos literatura,
mais descobrimos.
130
Lendo Dostoievski (6), fico pasmo. É uma obra gigantesca! Quando
ele descreve o grande inquisidor, aquele homem que deixou de ser gente
para ser pura autoridade, descreve o político autoritário de centro. Eu acho
que, quando um político autoritário lê aquilo, tem um tremor e uma ânsia
de rasgar o livro, porque vai-se encontrar despido naquele personagem.
Assim deve ser a literatura. Não simplesmente passar por cima, preparar
o vestibular. É procurar reconhecer na nossa vida. Mas isso só vale
para obras de valor, não para novelas e programas de auditório, porque
são experiências mais vulgares ainda. Ao invés de aprofundar nossas
experiências, vulgarizamos.
Vale também para os grandes filmes. Filmes de Fellini, de Antonioni,
Dias Gomes. Algumas novelas, sim. Temos grandes pensadores, grandes
novelistas, grandes diretores de cinema. Lembro aquele filme iraniano,
acho que se chama “Filhos do Paraíso”, ou coisa assim, que conta o amor
entre dois irmãos. Mas devem ser filmes feitos por pessoas que tenham
grandes intuições. Não pode ser filme comercial, porque não passa
nada. Num grande filme, nos reencontramos. Somos capazes de olhar
e redescobrir nossas experiências profundas. Isso eu considero pensar:
descobrir e reconhecer as nossas experiências nas obras de arte, na cultura,
na música, em toda manifestação de arte, desde que procuremos perceber
a nossa experiência.
Outra coisa que eu acho que nos impede de pensar é que não
observamos, não olhamos. O grande verbo para Teilhard de Chardin (7)
era ver. Vocês sabem que o cientista que um dia intuiu que o Brasil e a
África foram, um dia, um único continente, fez isso observando o mapa?
Simplesmente observando. Pela pesquisa da flora, da fauna, percebeu que
havia uma semelhança. E, de fato, um dia houve uma grande ruptura e os
dois continentes se afastaram. A observação é o início do pensar. Se não
observamos as coisas, os comportamentos das pessoas, não aprendemos.
O grande Piaget (8), adorado pelos educadores, ficava horas olhando
as crianças pequenas. Daí vieram as suas intuições. Observando, podemos
chegar a teorias profundíssimas. Freud (9) não criou a Psicanálise através
de nenhum arcanjo do céu. Foi observando o sonho das pessoas. Elas
contavam os seus sonhos e ele observava que eles se repetiam. Todos
tinham uma coisa em comum. E ele foi atrás deste ponto comum. É a
observação que nos possibilita pensar.
131
Eu acho que nos educaríamos muito se observássemos mais,
sobretudo as pessoas, o rosto das pessoas. Quem vai à missa e comunga
das minhas mãos sabe que eu olho rosto por rosto. Eu não dou comunhão
a ninguém sem olhar no seu rosto. Alguns ficam sérios e não riem para
mim, mas outros riem. Olho para o rosto, porque cada rosto é uma lição,
uma escola. Quantas vezes fico pensando nas rugas daquela velhinha que
vem comungar, nas histórias de dor que estão ali, escondidas. Isso me faz
pensar. Os gestos, a maneira de andar. Vejo pessoas contraídas, incapazes
sequer de abrir os braços. São tão fechadas, que agarram a si mesmas. E
como podemos ajudar? No momento em que as mães observarem mais os
filhos, os filhos observarem os pais, os esposos se observarem e pensarem
sobre o que observam, mudarão muito. A lição das coisas é das mais
importantes.
Ingenuidade crítica é outra dificuldade de pensar. Somos ingênuos,
quando não sabemos perguntar. O princípio do pensamento é a pergunta. Só
pensa quem sabe perguntar. Não tenham vergonha de perguntar nas salas
de aula. Quem não pergunta, não pensa. A pergunta açula, ativa a nossa
inteligência em busca de uma resposta. Ficamos inquietos até encontrar
resposta e, para isso, temos que pensar. Há dois tipos de perguntas: a
pergunta sobre si e a pergunta sobre as coisas, sobre o outro, sobre o de
fora. Temos que aprender a perguntar as duas coisas.
Primeiro, a pergunta sobre nós mesmos. Por que eu penso assim?
Por que eu acho isso? Por que eu ajo de determinada maneira, interpreto
de tal forma? Por quê? E há duas perguntinhas maldosas que vocês podem
um dia fazer para alguém, desarmam até os professores em salas de aula.
Quando alguém desata a falar, podem perguntar-lhe: “a que pergunta você
está respondendo com suas falas?” Se ele não souber responder, não sabe
o que está falando. Eu já lhes disse sobre o que estou respondendo, pois se
eu não tiver clara a pergunta, não falarei claramente. Em geral, as palestras
são péssimas porque os conferencistas não têm perguntas, então ninguém
sabe sobre o que estão falando. Portanto, eu tenho que transformar as
minhas afirmações em perguntas. Há um axioma mínimo da lingüística,
que é o positivismo lógico: toda afirmação é uma resposta, assim como a
toda resposta corresponde uma pergunta. Eu só entendo a afirmação se eu
souber a pergunta da qual ela é a resposta. Se eu não souber a que pergunta
estou respondendo, eu não entendo a afirmação.
132
Eu gosto de dar exemplos banais. Vamos imaginar duas pessoas
discutindo sobre essa mesa. Uma diz que ela é retangular, outra diz que
ela é pesada. Podem discutir até o fim do mundo, se não houver alguém
para questionar a que pergunta estão respondendo. Se a pergunta é sobre a
forma, ela é retangular, se é sobre o peso, ela é pesada. São duas perguntas
diferentes que não comportam discussão. Em geral, noventa por cento das
nossas discussões acontecem porque respondemos a perguntas diferentes
e discutimos as respostas, sem saber a que pergunta respondemos. Não é
fácil saber a pergunta. Essa é fácil, porque eu dei um exemplo material.
Mas quando o exemplo é mais teórico, é difícil saber a pergunta que está
por trás. Se a tivéssemos claramente, nosso pensamento seria claro. Somos
confusos porque não sabemos a que pergunta estamos respondendo. O
básico da inteligência, da clareza, é fazer-se a pergunta antes.
Estou dando um curso sobre o diálogo inter-religioso. O único projeto
salvífico de Deus é a existência das religiões. É ou não uma afirmação
positiva? A única coisa que interessa saber é se religião é ou não algo
positivo. Depois, posso enfatizar as respostas, mas a pergunta tem que ser
clara. Pensar é saber se perguntar sobre aquilo que se quer falar. Quando
forem escrever, dar uma aula, fazer um relatório, façam perguntas. Talvez
não seja necessário formulá-las por escrito, mas formulem para si e depois
comecem a escrever. “Como eu interpreto o terrorismo? Qual a causa do
terrorismo? Qual a relação entre o terrorismo e a religião, entre terrorismo
e racismo?” Se eu fizer dez perguntas, terei dez pensamentos. Mas se
eu responder misturadamente, ninguém entenderá nada. A ingenuidade
crítica é a falta de problematização correta, é não saber fazer perguntas.
Passemos para o risco do dogmatismo. Hoje, estamos assistindo a um
fenômeno de fundamentalismo, que é muito forte no mundo islâmico. Mas
o fundamentalismo existe em todos os mundos. Existe o fundamentalismo
médico, o jurídico, dos engenheiros, dos teólogos. Fundamentalismo é
uma compreensão literal da realidade, como se ela não pudesse ser vista
de diferentes ângulos. O fundamentalista só vê a realidade de um ângulo e
acha que é o único ângulo possível. Por exemplo, eu estou aqui, vejo vocês,
mas não vejo a cortina que está aí atrás. E se eu disser que há muita gente
e não há uma cortina nesta sala, eu não estou errado, porque deste lugar
eu só vejo isso. O fundamentalista diz que só existe uma possibilidade. De
cada ângulo se vê a realidade de uma forma. O fundamentalista acredita
que só há uma maneira de olhar. Isso é dogmatismo. Pensar é saber que
133
uma mesma realidade pode ser vista sobre muitos aspectos, de muitos
lugares e de modos diferentes. Um adolescente pode ser visto pelo olhar
médico, pelo olhar de um psicólogo, de um pedagogo, de um filósofo,
olhar do pai, da mãe e cada um vai dizer algo diferente. Se não disserem,
é porque são ignorantes. Como dizia aquele escritor brasileiro, Nelson
Rodrigues: “toda unanimidade é burra”. Exatamente isso. A unanimidade
quer dizer que todos devem ver a realidade apenas de um lado. Pensar é
saber interpretar e perceber como uma realidade é vista de muitos lugares.
Tudo isso eu falei para responder à primeira pergunta: o que é aprender a
pensar?
Passemos agora à segunda pergunta: aprender a fazer. Parece fácil,
mas não é. Existe esta concepção de fazer: a maneira concreta de produzir
uma peça. A peça é sempre a mesma. Pode melhorar, mas é sempre a
mesma. Para isso, basta aprender uma técnica, não precisa pensar.
Qualquer robô faz. Basta colocar um chip e ele faz. Para ser técnico, não
precisa pensar. Foi a grande descoberta de Ford (10). Ele ficou rico porque
reparou que os operários não precisavam pensar para trabalhar. Colocou
todos os operários em fila, e cada um enfiava uma peça no carro, que saía
prontinho. Se pensassem, discutiriam e o serviço não andaria. Vocês se
lembram daquele filme antiqüíssimo – “Tempos modernos”, de Chaplin?
É a constatação de que o técnico não precisa pensar.
Pensar é práxis, supõe que eu conheça o fim. Eu preciso saber para
onde estou indo, preciso conhecer o conjunto. Se algum dia acontecer
algo imprevisto, o que não sabe pensar não saberá resolver. Quem começa
a imaginar possibilidades, começa a pensar. Pensar é descobrir objetivos,
finalidades, é saber imaginar e criar. Só pensa quem tem imaginação.
Imaginação não é para criança. A criança pensa muito, e muito
profundamente, porque ela tem muita imaginação. É capaz de descobrir
coisas novas e fazer perguntas surpreendentes.
Um dia, um garotinho de nove anos estava comigo no carro e
explicava-me que o professor lhe perguntara o que era quantidade absoluta
e o que era quantidade relativa. E ele respondeu que quantidade absoluta
é a quantidade nela mesma e a relativa é a que tem outra como referência.
Isso é profunda filosofia e me foi dito por um menino de nove anos. De
onde ele tirou isso? Eu fiquei pasmo! Como uma criança de nove anos é
capaz de fazer uma reflexão de tal profundidade? Isso é pensar.
Voltemos ao aprender a agir. Aprender a agir pressupõe técnica
134
e práxis. A práxis é saber o objetivo, a finalidade das coisas pensadas.
Aprender a fazer supõe que eu saiba as conseqüências históricas do que
eu faço. Eu tenho que aprender que o que faço hoje tem amanhã. Quem
não aprendeu a fazer, faz hoje e ponto. Se eu faço hoje uma usina nuclear,
eu tenho que pensar que ela pode vazar e matar milhares de pessoas,
como aconteceu em Chernobyl (11). Saber fazer não é construir a usina.
Para isso, basta um técnico. Aprender a fazer é inserir as nossas ações,
os nossos produtos, as nossas criações dentro de um contexto. Quando
vamos fazer uma construção, temos que conhecer o terreno, porque a casa
pode afundar. Saber fazer não é simplesmente colocar pedras. É perceber
que esse ato produtivo tem amanhã e este amanhã pode se desdobrar. E,
sobretudo, eu cito outro exemplo, das armas. Eu acho que qualquer pessoa
que pensasse não faria arma alguma. Imaginem se o mundo não tivesse
nenhuma arma?! Mas se vamos fazendo cada vez mais armas, não temos
idéia das conseqüências.
Ainda outro dia eu lia no jornal que há cento e dez milhões de minas
enfiadas no mundo atualmente. E duas mil pessoas, por mês, pisam nessas
minas e morrem, explodidas. Geralmente, crianças e mulheres. Será que
quem enterra uma mina no chão não sabe que ela explode e que se alguém
pisar vai morrer? Não aprendeu a fazer? Aprendeu a cavar e colocar a
mina e isso não é fazer. Vejam a diferença!
Achei muito bonito um fato que li. Um grande cientista francês estava
pesquisando no campo da genética e da microbiologia. De repente, ele diz:
“paro a minha pesquisa. Nego-me a continuar, porque esta pesquisa pode
trazer conseqüências dramáticas, imorais, antiéticas para o mundo. E, em
sã consciência, não posso fazer”. Não podemos pesquisar tudo. Portanto,
esta idéia de que a tecnologia é onipotente é falsa. A Ética diz que eu não
posso construir algo que amanhã pode ser mortal, pode ser imoral. Não
temos o direito de fazer tal pesquisa. Infelizmente, estamos longe disso.
Nenhum cientista pensa assim. Lembram daquele cientista italiano contra
o qual o mundo está clamando, porque ele pretende fazer a clonagem, um
ser humano artificial? Ele quer fazer num navio, em águas internacionais,
para que ninguém o proíba. Nenhum país poderá interferir.
Falta a percepção ética das decisões, falta a relação entre saber e fazer.
Todo o fazer tem ciência, toda a ciência é factível. Qualquer elaboração
teórica que eu fizer pode se transformar em práxis. Por exemplo, quando
135
Einstein (12) diz que a massa se transforma em energia, se multiplicada
pela velocidade da luz ao quadrado, tem-se o início da bomba atômica. Esse
pensamento, de fato, levou à bomba atômica. Eu posso pegar um mínimo
de matéria e fazer com que ela se transforme numa energia gigantesca e
com uma bombazinha, eu faço explodir Nagasaki e Hiroshima (13). E
hoje as explosões podem ser muito maiores. Isso é a partir de teorias. Mas
as teorias são práticas. Toda prática tem teoria, isto é, por trás de cada
ação humana, em cada realização, em cada planejamento, há uma teoria.
Não existe um pragmatismo, mas sim uma teoria pedagógica, uma teoria
política – boa ou má. Mas há sempre uma teoria por trás. Saber fazer é
conhecer as teorias das práticas e conhecer as práticas que brotam das
teorias. Essa relação é fundamental.
Aprender a fazer é distinguir programação de estratégia e
reflexividade. Programação é o seguinte: vamos começar a palestra as
dezenove e trinta e ela durará até as vinte e uma horas. Tudo deve estar
programado: luzes, chaves, recepção, lugares, som. Se alguma coisa falha,
falha toda a programação. Programar não é aprender a fazer. Programar
bitola, encurta a inteligência. Estratégia é outra coisa. No processo da
“programação” deve-se estar continuamente aberto para receber novas
informações e modificar o processo. Significa que eu entro numa ação
aberto a contínuas informações que me levarão a modificar o meu modo
de agir. Eu não tenho um programa, mas uma estratégia. Para quem
trabalha em escola, é bom pensar nisso. Se tenho uma estratégia, eu sei
onde quero chegar, embora não saiba bem os caminhos ainda. Eu começo
a pensar, e de repente,me surgem tantas informações, que eu preciso ter
flexibilidade de modificar durante e até o fim do processo. Precisamos
aprender a pensar estrategicamente e não programaticamente. Os homens
de computador, em geral, pensam programaticamente. Não sabem pensar
estrategicamente.
Os militares – daí vem a expressão estratégia – sabem pensar. Eles
não podem prever de onde chegará o inimigo e têm sempre que mudar.
Ainda outro dia, apareceu uma matéria no “Estado de Minas”, relatando
que os americanos, apesar da grande tecnologia que lhes permite saber
com antecipação todos os detalhes do lugar onde atacarão, ainda não
conseguiram saber quando as pessoas se movem. Por exemplo, se eles
soubessem onde estava Bin Laden (14), poderiam planejar o ataque, mas
se ele se move, o alvo se move e a estratégia terá que mudar também.
136
O ataque planejado não surtirá resultado. Isto os americanos ainda não
sabem fazer: acompanhar os movimentos. Estão bolando um programa
de computação, que eles chamam de inteligência artificial, para captar
essas mudanças, para que elas realimentem continuamente os projetos. Os
projetos estão sempre abertos a mudanças. No caminho, o míssil deverá
mudar de direção, porque receberá o comando depois que foi acionado.
Este é o auge da estratégia: ser tão flexível no modo de agir que, recebendo
qualquer informação, transforme.
Reflexividade é um conceito de um pensador inglês, Anthony
Giddens, que é mais ou menos a mesma coisa, e que ele define como
atuar, estando aberto sempre a novos conhecimentos que fazem com que
mudemos continuamente as nossas práticas. Ele diz que é um modo próprio
de conhecer hoje. Se eu vou tomar uma decisão agora, ela não poderá ser
tão fixa, que amanhã não possa vir um dado diferente que me obrigue a
repensá-la. É preciso estar continuamente recebendo novas informações
e teorias. Quanto mais novos conhecimentos tivermos, mais podemos ir
modificando a práxis. Isso é aprender a fazer.
Aprender a conviver. Qual o segredo de aprender a conviver?
A primeira idéia fundamental é ser tolerante. Sem tolerância, não há
convivência. Mas que coisa é tolerância? Há uma tolerância teórica e uma
prática. A tolerância teórica é saber que outros podem e têm direito de ter
posições diferentes das minhas. Eu não sou detentor de nenhuma verdade.
Nem teológica, nem filosófica, nem pedagógica, nem administrativa. A
verdade é um processo contínuo de busca. Todos buscamos juntos. A
tolerância é saber que, nessa busca, há bemóis diferentes, há melodias
diferentes, há músicas diferentes.
Um autor alemão, chamado J. Habermas, introduziu este conceito,
que eu achei lindo. Ele chama de “consenso diferenciado”, como maneira
de viver a tolerância. Isso significa que nós encontramos uma base de
humanidade comum e não excomungamos a posição do outro, mesmo de
fé, de religião. Encontramos um consenso em que somos seres humanos,
racionais. Somos seres que amamos, buscamos o bem. Temos que encontrar
plataformas comuns. As posições opostas e diferentes não devem excluir
umas a outras. A exclusão é intolerância, seja racista, religiosa, filosófica,
ideológica.
Jean-Yves Calvez, um pensador francês, estudou muito o leste
europeu, conhecia bastante a região, já antes da queda do socialismo,
137
e chegou a fazer uma palestra em Belo Horizonte, sobre isso. Ele dizia
que nem sabemos se os países socialistas continuarão socialistas. Talvez
a economia mantenha aspectos socialistas. Por isso, não está dito que o
socialismo econômico caiu totalmente. Mas uma coisa – e é isso que eu
achei importante – caiu definitivamente: eles não toleram mais o partido
único. Um único partido que diga o que é bem, o que é verdade, o que é
beleza, o que se deve fazer, o que se deve vestir. Ninguém mais tolera o
pensamento único, a autoridade única.
Nesse último domingo, o “Jornal do Brasil” comparava as revistas
femininas, que são fundamentalistas, às mulheres do Irã. Elas têm que
usar aqueles véus, e as mulheres daqui têm que vestir como mandam as
revistas. Devem emagrecer, freqüentar academias, caso contrário, não são
mulheres. Isso é um fundamentalismo, é pensamento único. Pensamento
único não é só lá não. Aqui também tem que se seguir a moda, aquilo
que diz determinada artista. Isso é fundamentalismo, é intolerância. A
tolerância é buscar uma base humana e aceitar a diversidade.
Mas há um limite. O limite da tolerância é o intolerante. Aquele
que não aceita o convívio humano não pode conviver. O intolerante não
pode ser tolerado. Esse é o paradoxo! O intolerante destrói a possibilidade
da convivência humana. O limite da tolerância é a convivência humana.
Não podemos ser tolerantes com quem é incapaz de ter uma convivência
humana. Se não somos intolerantes, caímos dentro da tolerância.
Aprender a conviver supõe que eu seja capaz de viver com o diferente.
Um dos fatores que destrói a convivência são os grupos fechados. Como se
diz na gíria dos adolescentes, as tribos. Tribo de um adolescente não ajuda
a conviver. Eles fazem dos seus atos um único pensamento: todos têm a
mesma grife, vestem da mesma maneira, têm o mesmo grito, as mesmas
gírias. É a mesmice que impede a convivência, porque a convivência só
é possível no diferente. Somos diferentes no sexo, na idade, na raça, na
cultura. Se eu reduzo todos ao mesmo, através de um líder, esvazio todo
mundo e todos se tornam eu. Aí, não há convivência. Há mimetismo, cópia,
submissão, autoritarismo, mas não há convivência. Onde há submissão e
autoritarismo não há convivência. Só existe convivência na diversidade
e na diferença; no respeito da diferença e na tolerância ao diferente.
Grupos fechados não toleram, por isso são agressivos. Vejam as torcidas
violentas. Recebem uma palavra de ordem e cumprem como autômatos.
São praticamente máquinas, não seres humanos. Isso não é convivência.
138
Há convivência quando um grupo de jovens discute e sabe que pensam
diferente. Discordam e buscam um consenso diferenciado.
Uma última idéia no campo do ser. É um tema de que eu gosto muito
e, por isso, já preguei muito aqui em Vespasiano. A grande dificuldade
de ser hoje é a nossa dificuldade de ser o que somos. Primeiramente,
escondemos o nosso ser com o ter. Todas as vezes que eu escondo o meu
ser, seja com a roupa, seja com a moda, seja com os bens, seja com o meu
carro, com a minha profissão, com o meu título, eu não sou, eu tenho.
Quando sou capaz de prescindir disso, eu começo a ser. Eu posso ter as
coisas, mas elas não podem ocultar o meu ser. Eu não sou contra que todos
andem bem vestidos. O problema é quando isso oculta o ser. O ter é para
que o ser aflore, para que o ser se comunique. Se somos convidados para
um jantar e encontramos uma comida gostosa, isso é ter, mas para que
possamos rir, conversar. Esse ter faz com que sejamos. Quantas vezes o
ter esconde o ser?! O famoso “você sabe com quem está falando?...” O ser
fica atrás de um título, atrás de um terno, de uma gravata, de um carrão
enorme, porque o ser é frágil. Quando eu sei o que sou, o ter é só para que
o ser desabroche. A beleza, a cosmética, a moda são para que as mulheres
sejam.
Outra coisa, e muito importante: nós representamos teatro. Fazer
teatro é assumir outras personalidades que não somos nós. Isso a
sociedade pede continuamente. E nós acabamos não sendo. Por exemplo,
eu tenho um cargo e, se encarnar os jargões, irei representar o cargo que
ocupo. Observem se não estamos continuamente representando papéis na
sociedade, para que sejamos reconhecidos no papel e não reconhecidos no
nosso ser? Ser é ser reconhecido pelo que sou e ponto final. O verbo ser
não tem complemento. Ele termina com o ponto final.
Mais forte ainda, não é só representar papel, encobrir o ser, mas viver
para responder às expectativas do outro. Eu faço só para agradar aos outros.
Eu nunca sou eu. Quando alguém faz essa descoberta na idade adulta, é
das dores maiores para a Psicanálise. A Psicanálise leva muita gente a
descobrir que toda a sua vida foi para agradar à mamãe, ou à vovó, ou à
titia, ou ao pai. Com o adolescente, a mesma coisa. Faz tudo para agradar
à namorada. Nunca somos nós mesmos. É uma das coisas mais graves da
sociedade. A mesma coisa é ter que seguir a moda, agradar ao público. É
o caso dos políticos, coitadinhos. Nunca são eles mesmos. Como é difícil
o político ser gente! Eles são obrigados a dizer besteiras, são capazes
139
de provocar uma guerra para conseguir votos. Representam, agradam,
respondem o que os outros querem. Por isso, quando encontramos um
político autêntico, nos cai o queixo. Aprender a ser é dizer um não radical
ao teatro, ao ter como complemento do ser e do viver para agradar aos
outros. Somos seres corpóreos, sensitivos e espirituais. Enquanto seres
corpóreos, sensitivos, realizamo-nos na medida em que os nossos sentidos
se abrem para aquilo para o qual são feitos. O olhar para ver; o paladar
para saborear, o ouvido para ouvir, o olfato para cheirar. Os sentidos
são feitos para serem usados. Temos que começar a cultivar os nossos
sentidos. Olhar as belezas dos jardins nos faz um bem enorme. Ouvir uma
música que realmente seja música, não um ruído. Sentir o perfume das
flores. Apreciar o sabor dos alimentos, de um quibe sem cebola. O tato é
fabuloso. Produz carinho, o toque. Há pessoas que são rígidas, que não
toleram um encostar de mão que já estremecem.
O escritor mineiro, Affonso Romano de Sant’Anna, escreveu um
artigo lindo sobre o corpo da princesa. Ele compara a princesa inglesa
Anne à Diane. Diane era muito mais bonita, mas a outra tinha muito
mais beleza interior, era mais social e mais humana, embora fosse mais
feinha. Ela veio ao Brasil e quis visitar a favela, não por esnobismo, mas
porque tinha uma consciência social mais profunda. É claro que a polícia
carioca ficou preocupada com uma princesa inglesa subindo a favela Dona
Marta. Mandaram um baita segurança para defender a dona princesa. Ela
foi subindo com seus pezinhos de princesa e escorregou. O segurança
agarrou-a e ela estremeceu, porque o seu corpo era intocável. Deu um
chilique. Muitos europeus são criados para não serem tocados. Aborrecer
um inglês é dar tapinhas em suas costas.
Eu morei um mês com uma família inglesa. No primeiro dia,
encontrei a senhora, cumprimentei-a e só fui revê-la um mês depois, para
despedir-me, bem suavemente. Não é como nós, que abraçamos, beijamos.
São pessoas que encurtam seu ser.
Nós somos espirituais também. Nossos sentidos desbordam
para as quatro janelas maiores que temos: a beleza, a verdade, o bem e
a transcendência. Quanto mais o nosso espírito se abrir para a beleza,
mais gente seremos. Mas não é só a beleza sensível. Beleza também no
pensar, ler uma obra literária, valorizar o trabalho. Beleza em todos os
campos, o bem, a ética. A ética nos faz felizes. Quando pensamos no bem
da humanidade, na redistribuição de rendas neste país, na melhoria de
140
nossa cidade, que as misérias desapareçam, tudo isso enche o coração. O
ser humano é feito para a verdade. Verdade é a realidade como ela é. É
aproximarmos cada vez mais da realidade. Cada verdade é um toque na
realidade, um toque naquilo que existe, que está aí. A Transcendência quer
dizer abertura para além do que somos.
Um último ponto: aprender a discernir a nossa profissão. Eu
chamaria a atenção para pouquíssimas coisas. Eu distingo profissão
de vocação. Coloco, no mundo da profissão, o mundo da eficiência e
da competência. É importante, necessário e basta para ser profissional.
Basta ser competente e eficiente para ser um bom profissional. Vocação
é mais. Supõe carisma, espírito, amor, mística, algo que vem de dentro.
Quando as duas coisas se somam, nós somos felizes. Só somos felizes
se a nossa profissão é a nossa vocação, e se a nossa vocação se realiza
profissionalmente. Isto é, se eu tenho uma paixão pela pedagogia, se gosto
de dar aulas, de ver aqueles adolescentes crescerem, fico feliz de vê-los
progredirem. Temos que descobrir e transformar a nossa profissão em
vocação. Temos que dar uma mística, uma paixão à nossa profissão.
Eu, por exemplo, com toda a simplicidade, tenho paixão pela
Teologia. Poderia ser apenas profissional, mas dar aula para mim é um
gozo. Eu brinco com os alunos e saio descansado. Dia de aula é para
mim dia de alegria. Chego cansado fisicamente, mas feliz, porque faço
com paixão. Não faço uma palestra competente, profissional, senão leria
um texto complicado e ninguém entenderia nada, mas diriam que eu
sou um homem muito culto. A vocação nada tem a ver com esnobismo
profissional. Mas quando você consegue articular as duas coisas, a vida
fica belíssima.
A profissão pede reconhecimento social, por isso somos profissionais.
O reconhecimento, quando vem nos ajudar a fazer desabrochar o ser, é
ótimo. Quando o reconhecimento exige o sacrifício do meu ser, ele é minha
morte. Seja pela vaidade, pelo fingimento, pela petulância ou arrogância. Aí
o reconhecimento é a morte. Nunca sacrifiquemos o nosso ser para sermos
reconhecidos profissionalmente. A profissão só nos realiza se ela for uma
vocação e se for um desabrochar de nós como pessoas. Boa noite!
(1) referência à cidade inglesa de Manchester.
(2) referência ao ataque americano ao Afeganistão, logo após os
atentados de 11.09.01.
141
(3) arma química usada logo após o atentado aos Estados Unidos.
(4) escritor mineiro, nascido em Boa Esperança.
(5) escritor português, do século XIX.
(6) Fiódor Dostoievski, escritor russo.
(7) filósofo e teólogo francês, nascido no século XIX.
(8) grande educador, nascido na Suíça, no século XIX.
(9) médico austríaco, fundador da Psicanálise.
(10) Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística americana.
(11) referência à explosão acontecida em 1986, na ex-União
Soviética.
(12) Albert Einstein, cientista alemão, radicado nos Estados
Unidos.
(13) referência às explosões ocorridas no Japão, no final da II
Guerra Mundial.
(14) terrorista árabe, responsável pelo atentado de 11 de setembro
de 2001.
142
ESPIRITUALIDADE INACIANA (#)
A espiritualidade de Santo Inácio de Loyola é bastante conhecida,
há uns quatrocentos a quinhentos anos. Santo Inácio nasceu em 1491,
portanto, no fim do século XV e deixou uma longa tradição. Vou tentar
resumir muito simples e rapidamente os principais traços da Espiritualidade
Inaciana.
Numa primeira parte, explicarei quatro definições de que coisa
seja espiritualidade. Três mais amplas, que valem também para pessoas
que não tenham o sentido estrito da Palavra, a fé em Deus, mas têm uma
verdadeira espiritualidade. Acho que é um conceito que pode ser ampliado
para além do mais religioso, mais eclesial, até mais eclesiástico. Eu creio
que espiritualidade é uma realidade dada a todos os seres humanos, de
todos os tempos.
Hoje à tarde, um advogado e professor gabaritado da Federal (1)
veio conversar comigo. Estava preocupado, não só com os seres humanos,
mas também com os animais. Já se discute se os animais têm direito
e espiritualidade. Mas vamos nos restringir à espiritualidade dos seres
humanos.
A primeira definição é um pouco difícil. Vou dizê-la e tentar
explicar palavra por palavra. Trata-se de espiritualidade, encarada dentro
da perspectiva antropológica. Isto é, olhada a partir da dimensão do ser
humano. Nos distinguimos, mais ou menos, do animal. Por sermos seres
humanos, somos dotados de uma possível espiritualidade. Uns podem
desenvolver mais, outros menos. Mas, uma restiazinha de espiritualidade,
todos têm. Um traço de espiritualidade, todos os seres humanos, por serem
humanos, têm. Até nestes broncos, metidos no crime, de vez em quando,
rasga-se um tracinho de espiritualidade em suas vidas. É impressionante!
Todas as pessoas que trabalham na pastoral carcerária que, muito
pesada, por sinal quando visitam os presos, ficam admirados. De repente,
de corações de onde menos se espera, surge um traço espiritual, um
traço de bondade. E agora ficamos sabendo que há grupos grandes de
evangélicos que já conseguiram converter muitos presos, que levam até
uma vida cristã. Isso quer dizer que a espiritualidade atravessa todos os
rincões.
143
Encarada dentro da perspectiva antropológica, é a prerrogativa de
pessoas autênticas. É uma qualidade daquilo que temos de autenticidade.
O melhor da nossa cara. Somos uma mistura, como já vimos em tantas
parábolas de Jesus. É joio misturado com trigo, peixe pequeno com peixe
grande. Todas as parábolas falam um pouco dessa mistura. Temos um lado
mais autêntico e a espiritualidade toca mais esse lado mais verdadeiro,
mais fiel a nós mesmos, em face do ideal e da história.
Acho difícil o ser humano viver sem um ideal. No “Estado de
Minas” de ontem, havia um artigo de um psicólogo, ou talvez, da mesma
família, que falava da felicidade. Ele dizia que, quando vemos pessoas
em situação dolorosa e difícil e que têm força interior, não se pode deixar
de pensar na Transcendência. Interessante é que ele não menciona Deus
em momento algum, mas não teve coragem de omitir isso. Só isso torna
possível que uma pessoa tão lascada, tão machucada, ainda consiga ter
uma forçazinha para levantar a cabeça.
Lembrem-se daquele menino, do qual falei na pregação de domingo.
Estava encostado num poste na Avenida Prudente de Morais, em Belo
Horizonte, quando a jornalista Déa Januzzi aproximou-se e perguntou
porque ele estava chorando. Ele continuou quieto, enquanto ela insistia.
Depois de um bom tempo, ele olhou-a com o olhar mais triste e disse: “a
minha vida não tem nenhum pedaço de felicidade”. Toda a sua vida era
escuridão. Ela se sentiu desesperada, foi embora, depois quis voltar para
encontrá-lo e não o viu mais. Mas, mesmo nesta situação, se déssemos
um toquezinho, poderíamos acordar algo de espiritualidade nesse menino,
apesar da escuridão gigantesca que o cobria. As crianças sofrem.
Em face do ideal e da história, constatamos uma escolha axiológica,
isto é, de valor. Valor é uma coisa que é importante para nós. Por exemplo,
fazer o bem, ajudar alguém, comprometer-se numa causa política digna,
lutar pela natureza. Isso é axiológico, porque tem valor. São valores que
mexem com as pessoas. A espiritualidade é tocada por essa dimensão de
valor. É uma escolha decisiva, dura, firme, corajosa, tenaz, constante,
disciplinada e fundamental.
Espiritualidade é uma espécie de alicerce que construímos para
erguer a casa que somos nós. A nossa história, a nossa vida, a nossa
existência. Também é unificante. Somos muito dispersados, diversificados,
fragmentados. Somos pedaços, somos meio encacados. Espiritualidade
é o que consegue ligar esses cacos. Comparo muito com um mosaico.
144
Aquele desenhozinho que se faz com pedrinhas pequenas. Se jogarmos
as pedras no chão, cairão todas dispersas. Mas se eu ordená-las, de forma
que no final se veja uma figura, terei a espiritualidade. Ela toma os nossos
cacos, vai encaixando e, no fim, aparece a nossa verdadeira e melhor face,
que é o oposto dos nossos pedacinhos.
É também capaz de dar sentido. Guardem esta palavra: a
espiritualidade é importante porque dá sentido a toda nossa vida. Vale a
pena viver, não por causa de atos. Há pessoas que vivem para comer, beber.
A espiritualidade é mais profunda. Ela unifica, não só esses momentos
esporádicos, soltos, quebrados, da nossa existência. Ela dá um sentido
maior, alcança horizontes maiores. É como quando eu olho para longe e
vejo um longo horizonte e posso colocar todas as coisas contra ele.
São Tomás, aquele grande teólogo medieval, compara o ser humano
com o horizonte, onde o céu e a terra se encontram. Somos corpo/
terra; somos espírito/céu. A espiritualidade é uma espécie de grande
horizonte onde se pode situar todas as coisas. Como se colocássemos
todas as maravilhas do mundo contra um único horizonte e fôssemos
identificando.
Outra definição mais simples diz que espiritualidade é a atitude
profunda, prática, existencial, que é a conseqüência e expressão da
concepção que um ser humano faz de sua existência religiosa. Quando o ser
humano tem uma concepção da sua existência religiosa, tira conseqüências
práticas para a sua vida. A espiritualidade alimenta as nossas práticas, as
nossas ações, os nossos comportamentos, as nossas atitudes, a partir de
uma existência religiosa. Isto é, uma maneira de nos comportar quando
temos uma referência no Mistério que mora dentro de nós. Cito aquela
frase tão linda de Santo Agostinho: “Deus é mais interior do que o que
há de mais íntimo em mim mesmo”. Ele diz ainda nas “Confissões”, uma
outra frase sobre quando era um jovem estróina e andava perdido por
aí: “Eu procurava as belezas fora de mim, buscava todo o prazer fora de
mim e Tu estavas no mais íntimo de mim mesmo. Oh, beleza que tarde
conheci!” E essa beleza está toda dentro.
Vejam o sucesso daquele livro, que tanta gente leu – “O Alquimista”,
desse autor que agora foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras,
chamado Paulo Coelho. Qual é a história que ele conta? Alguém está
sentado numa pedra e sai em busca de um tesouro. Gira o mundo inteiro e
volta para a pedra na qual estava assentado. Essa pedra, esse tesouro somos
145
nós mesmos. Estamos sentados no tesouro da nossa existência, da nossa
história e continuamos procurando, porque estamos sentados. Quantas
vezes procuramos fora o que está dentro de nós?! Somos sôfregos para
buscar tantas coisas e estamos metidos dentro dessa coisa. O ser humano,
às vezes, é de uma cegueira espantosa! A espiritualidade é essa que
consegue ajudar a perceber os mistérios que habitam o nosso interior.
O mais genérico é o compromisso ético. Eu sempre gosto de
falar em compromisso ético porque, muitas vezes, as pessoas não têm
espiritualidade no sentido religioso. Mas quem tem o compromisso ético
tem espiritualidade. A ética é uma forma de espiritualidade. Gosto muito
de citar o exemplo do Betinho (2). Ele foi alguém que assumiu as grandes
causas do Brasil, de uma maneira espiritual. Ele tinha espiritualidade e
compromisso da entrega. O seu grande sonho era que, pelo menos no
Natal, nenhum brasileiro fosse dormir de barriga vazia. Fez aquele imenso
movimento de cestas de natal, no Brasil inteirinho, para que, mesmo naquele
cantão do Ceará ou do Pará, chegasse uma cesta e a pessoa, comendo, não
dormisse com fome. Isso é ético, é espiritualidade também.
É uma determinação ativa e habitual. Portanto, supõe ação, não é
coisa parada. Muita gente pensa que espiritualidade é ficar paradinho. Não
é não. É ativa e habitual. É uma prática constante e não isolada, solta,
quebrada, esfacelada, fragmentada. Aparece a partir de intuições objetivas
e decisões últimas. Por isso, as mulheres têm mais espiritualidade que
os homens, porque são mais intuitivas. O homem quer analisar tudo, e
espiritualidade não é para se dissecar. Ela pega o todo. É uma intuição
global. As intuições são as coisas mais importantes da nossa vida. Não são
as análises. As análises são meios, mas o mais importante são as intuições,
conhecimentos que dispensam cultura acadêmica. Por isso, as pessoas
simples, às vezes, são extremamente sábias, porque são intuitivas. Uma
dona Patrocínia nunca foi à escola e, de repente, diz uma frase que nos
paralisa e nos deixa pasmos. Uma criança pequena, de repente, solta uma
frase e ficamos estarrecidos, porque ela tem capacidade intuitiva. Ela vai
ao cerne da verdade, agarra-a no seu coração e depois diz. Nós temos que
dissecar para entender. A espiritualidade é intuitiva e atinge as decisões
últimas, isto é, além das quais não existem outras. No fundo, esbarra no
grande Mistério.
Numa definição cristã, espiritualidade é a maneira de viver sob a
ação do Espírito. Acreditamos que aquele que nos move no mais profundo
146
de nós é o Espírito Santo. É uma existência totalmente de fé, na qual
a vida do Espírito de Cristo transparece em nós. Quando alguém tem
espiritualidade, percebemos na cara. Um pastor protestante tem uma frase
muito interessante. Ele diz que, quando nos convertemos, até o cachorro
percebe. Imaginem outros que não são cachorros. Transparece por meio
das condições históricas da vida concreta. A nossa maneira de viver
concretamente manifesta a espiritualidade.
Voltemos agora para a espiritualidade inaciana. Vou colocar alguns
axiomas e resumi-la em algumas frases.
O primeiro ponto é comprometer-se na construção do Reino, em
atitude de indiferença. Compromisso é entrega de si. Não há compromisso
se não nos entregamos. Não nos comprometemos dando coisas, mas
dando-nos a nós mesmos. É muito fácil eu dar alguma coisa e muito difícil
dar-me a mim mesmo. Compromisso é entrega de mim. Quem nunca se
deu a nada, nunca se comprometeu com nada. Dar dinheiro não significa
compromisso. O compromisso só existe quando nasce do meu coração. É
alguma coisa minha, da qual só eu disponho. É meu tempo, meu corpo,
meu pensar, meu falar, meu amar, meu tocar. É meu e é isso que eu coloco.
Eu coloco meu tempo para as pessoas. Você dá do que tem mais de si
mesmo. Não venhamos com compromissos vazios. Só há compromisso
com a entrega de si mesmo. Do seu tempo, do seu afeto, do seu coração,
do seu sangue, do seu suor.
A construção do Reino é a maneira de Deus atuar na História.
Nós nos comprometemos é com isso – com a maneira de Deus atuar na
História. É por isso que lemos a Bíblia. Para saber como Deus atua. Toda
a série de parábolas que ouvimos nos Evangelhos nos mostra isso. Cada
parábola é uma carinha da maneira de Deus agir. Ele age daquela maneira
que vemos na parábola. Age escondidamente; age como uma sementinha
pequena que ninguém vê, mas que tem força. Age valorizando, como a
pérola, pela qual se deixa todo o resto. É como o sal – eu gosto tanto
desta imagem, que a uso em quase todos os casamentos – “vós sois o sal
da terra!” O sal dá gosto, dá sabor. Deus age dando gosto, e nós vamos
construindo o Reino agindo como Deus, dando sabor. Há tantas pessoas
azedas e precisamos dar gosto à vida. Trabalhar pelo Reino é fazer a vida
saborosa.
Indiferença é uma palavra inaciana, mas muito mal entendida. Não
é como imaginamos em português. Não é tanto faz como tanto fez. Isso
147
é ceticismo, a pior doença que existe. É doença de velhos, e, quando um
jovem tem, é porque envelheceu rapidamente. O velho não deve ser cético,
mas tem a desculpa da idade. Para Santo Inácio indiferença é uma coisa
totalmente diferente. Você percebe, com a sua intuição, o valor infinito do
amor e da presença de Deus em você, e todo o resto fica secundário.
Eu lembro uma experiência muito bonita que Frei Betto (3) me
contou, de quando ele foi preso, durante o regime militar. Ele ajudava os
perseguidos políticos a fugirem, como dever cristão. Mas, naquela época,
ser cristão merecia cadeia. Por isso, ele foi preso e o juiz justificou: “nós o
condenamos por uma coisa que os cristãos fazem, mas a lei manda condená-
lo”. Foi condenado a quatro anos de prisão. Ele me disse dessa experiência,
do projeto do General Fleury, que pretendia assassiná-lo, levando-o até a
fronteira e lá metralhá-lo, com a desculpa de que tentara fugir. Ele deu
sorte porque o cardeal de Porto Alegre anunciou esse fato e eles não o
puderam concretizar. Depois de tudo isso, ele diz: “cada minuto da minha
vida eu dou, porque já deveria ter morrido”. Aí percebe-se o profundo
mistério da Transcendência. Diante de Deus e da Transcendência, todas as
coisas ficam relativas. Quando experimentamos essas experiências fortes
é que percebemos que tudo o mais fica secundário.
Quando alguém tem uma doença grave, relativiza tudo. Betinho
(2), com AIDS, no fim da vida, sabia que nada mais tinha sentido. Só
tinha sentido aquele valor último da sua vida. A espiritualidade inaciana
chama a atenção para isso. Diante de Deus, todas as coisas são relativas.
Tudo é relativo, exceto Deus. Isso é indiferença: o sentido agudo para a
relatividade de todas as coisas, exceto de Deus. O único que não é relativo
é Deus. Todo o resto que acontecer, passa. Os amores mais importantes da
terra não valem nada, porque podem acabar. Mas Deus, nunca. Isso dá uma
coragem gigantesca. É a coragem dos mártires. Aquelas meninazinhas,
que os torturadores romanos queriam matar, não tinham medo, porque
eles não podiam arrancar-lhes Deus. Eles ficavam enfurecidos quando
uma menina de quinze anos enfrentava um torturador. Isso leva a certos
fanatismos perigosos, como vimos aqueles islâmicos (4). Não deixa de
ser uma experiência profunda. Só que precisamos de experiências para
empenhar pela vida.
Vejamos agora a atitude de despojamento. Não deixar que nenhuma
coisa, por maior que seja, prenda-nos, amarre-nos. Nada deveria prender
um jovem idealista. Por maior que seja uma coisa, ela não deve me limitar.
148
Eu devo ser maior que essa coisa. Ter um idealismo tão grande, que nem
o medo, nem o risco, nada me segurem. Mas para não me perder no
quixotismo vazio, devo ser capaz de parar, sentar na rua e conversar com
um bêbado. Ser capaz de fazer, como fez a Déa: parar com um menino de
rua e perguntar porque ele estava chorando. Uma coisinha de nada: uma
criança chorando e eu ser capaz de olhar e passar horas conversando com
ela. Nada tão grande que me segure, mas ser capaz de cuidar de um irmão
que está precisando de uma conversa. Dar atenção àquela criança de oito
anos que me perguntou na sacristia: “padre, o que nós vamos fazer no
céu?” Eu respondi, perguntando: “de que você gosta?” Ela respondeu: “de
soltar papagaio”. E eu lhe disse que no céu haverá papagaios lindos.
Outro dia, o Romildo me levava de volta para casa, e estavam os
dois filhos dele no banco de trás, semi-sonolentos. De repente, um deles
me pergunta: “Padre, quem é que fez Deus?” Que coisa linda! É hora de
parar, conversar com uma criança. Ser capaz de passar horas. Saber caber
no universo dela, como os pais que brincam com seus filhinhos pequenos.
São os mesmos que estão pensando no futuro, nos projetos para o Brasil.
Esse jogo é que é maravilhoso. Isso é muito inaciano.
Oxalá nós, jesuítas, tivéssemos um pouquinho disso! Desse jogo, que
eu acho que é uma das coisas mais fascinantes da espiritualidade inaciana
até hoje: saber tomar pequenas coisas, mas também não se prender a nada.
Ter liberdade e mobilidade. Santo Inácio queria que estivéssemos hoje
aqui, amanhã no Japão, depois na Coréia, fosse onde fosse. Não se agarrar
a nada, não criar raiz em lugar nenhum. Mas uma vez que se lançou, aí
vai buscar aquela aguazinha lá embaixo, com seus minerais pequenos.
Portanto, é no pequeno cotidiano, no serviço humilde que encontramos o
magis – o mais. Esse é o jogo.
Alimentados pelo conhecimento, amor e serviço de Deus aos irmãos,
à Igreja – em tudo amar e servir. É a mesma dialética. O amor não tem limite
e o serviço é pequeno. É a mesma dialética do matrimônio. Um casamento
é feliz quando uma esposa tem um amor gigantesco e, ao mesmo tempo, é
capaz de pensar e preocupar-se com o esposo. Saber que ele gosta daquela
comidazinha, não gosta da cebola, mas de uma pimentinha discreta. É
aquele pormenor. Nisso vocês, mulheres, são maravilhosas. Precisam ter
a mesma grandeza de tantas mulheres que tiveram a grandeza de querer
mudar o mundo, como Santa Teresa de Ávila, Teresa de Calcutá. A própria
beldade da Diane tinha um pouco disso. No meio de todo aquele esplendor,
149
daquela beleza, daquela riqueza imensa, de vez em quando descia ao
mundinho dos pobres.
Há um fato bonito sobre um santo, chamado São Luís, rei de França.
É rei, Luís IX e, naquela época, rei era rei mesmo, não essa coisa vagabunda
que é só para festa. Naquela época rei mandava mesmo. Pois bem, conta-
se que às vezes a esposa olhava para o quarto e não o via na cama. Ela
ficava preocupada, perguntando-se onde ele teria ido. De repente, sabia-se
que ele ia dormir com os miseráveis, lá na rua. Procuravam debaixo de
pontes e viadutos e lá estava o rei, conversando com aquele povo simples,
malcheiroso. Esse é o jogo profundo da espiritualidade.
O serviço nos pede amar essa realidade. É o limite do real. Nós temos
que conhecer o real. Não adianta servir na lua. O primeiro passo do servir,
do conhecimento é a análise. Daí a importância do curso sobre a Doutrina
Social da Igreja, para conhecer a realidade política e social. Conhecer os
vícios, os defeitos, o que está emperrando o nosso país. Ainda outro dia,
no “Estado de Minas”, tinha uma notícia muito interessante, citando um
grande candidato de um partido de duas letras, que fazia uma crítica da
atual situação, mas com uma lucidez gigantesca. É isso que precisamos
ter: análise da realidade. Conhecer o real, ver como funciona para poder
mudar. Sempre tendo como motivação o amor sem limite, porque Deus
está presente. É por isso que não temos limite, porque Deus está presente.
O amor é a percepção de Deus presente na realidade.
O serviço é a tradução concreta do amor. É a maneira de eu mostrar
que amo. Como diz João e também Tiago, “só há amor se houver obras.
Quem diz que ama a Deus e não ama seu irmão, é mentiroso”. É essa
unidade que eu chamo “unidade dos dois amores”. O amor a Deus e ao
irmão faz um único amor. É muito importante que vocês, pais, expliquem
para seus filhos pequenos aquela frase que soa muito mal e que está escrita
nos catecismos: “devemos amar a Deus mais que todas as coisas, mais
que todas as pessoas”. Não é bem esse o sentido. A criança não pode
aceitar que ela deve amar mais a Deus do que a mãe. Ela ama mãe e
pai mais que tudo. E se colocarmos comparação é um grande equívoco.
O que temos que dizer é que amamos Deus nas pessoas. Aí resolvemos
tudo. Devemos dizer à criança que, amando muito à mãe, ela está amando
a Deus. É naquele amor humano que Deus está presente. Não é fora,
além, comparativamente. É dentro. Podemos amar tremendamente as
realidades terrestres, mas sabendo que, no que elas têm de bonito, estamos
150
amando a Deus. É um pouco isso a intuição de Inácio. Amamos Deus nas
realidades.
Na Igreja, devemos aceitar nossos limites e batalhar aí dentro.
Na nossa igrejinha aqui, de Vespasiano, com nossos limites, nossas
dificuldades, nossos problemas, nossas burrices, tudo isso pertence ao
limite. É o nosso concreto, dos nossos ministros, das catequistas. São
esses e não outros. As crianças são estas e não outras. Os adolescentes
são estes e não outros – enjoados, enojados, com dor de barriga constante.
Às vezes fico parado no ISI (5), olhando aqueles adolescentes indo para a
escola próxima e fico triste, com pena deles. Têm umas caras tão tristes,
tão aborrecidas, tão enjoadas. Parece que estão saturados de comida azeda.
Põem um chiclete na boca e ficam o dia todo mordendo a si mesmos.
São esses que conhecemos. Não adianta sonhar com outros certinhos,
bonitinhos, ensabonetados. São esses que conhecemos e é com eles
que temos que trabalhar. São eles que temos que animar, na catequese.
Agüentar, sofrer, ter paciência. Isso é muito inaciano. Tanto é que Santo
Inácio insistia muito no papel da Igreja, principalmente porque ele viveu
na época da Reforma Protestante. Uma época em que a Igreja Católica era
muito desprezada, usada e atacada. Ele insistia muito na eclesialidade. É
uma conotação típica, em face daquela época.
Colocar os dons a serviço é puro Evangelho – “de graça recebido,
de graça oferecido”. Eu não faço nada. Simplesmente dou o que de graça
recebi. Não há mérito nenhum. Cada um vai colocar o que é. Se pensarmos
assim, acabam as vaidades, as comparações, porque não existe comparação.
Ninguém é mais nem menos que o outro. Todos somos diferentes, e cada
um coloca o que tem e o que é. Isso é o importante. É o ser que é importante,
não o que temos. Se colocarmos um pouquinho do nosso ser, valerá mais
do que todo o nosso ter. Isso é espiritualidade: quando somos capazes de
colocar o que somos. O que temos decorre daí. O que temos só tem sentido
quando decorre do ser, quando é uma prolongação. As coisas estão aí para
melhorar as nossas relações. As mulheres ficam bonitas para que sintamos
prazer em vê-las bonitas. Para que as nossas relações sejam mais bonitas,
mais coloridas. Ser agradável, simpático, alegre faz bem para as nossas
relações. Devemos colocar tudo que somos de beleza, de inteligência, de
riqueza física e espiritual em função de que as relações entre as pessoas
melhorem. Isso é o fundamental em qualquer espiritualidade.
151
Cultivar o hábito do discernimento. Essa é uma palavra muito
jesuitinha. Não há um jesuíta que não fale, em cada cinco palavras, quatro
vezes discernimento. A quinta pode ser discernimento também. Eu coloco
três dimensões de discernimento: pessoal, comunitário e apostólico.
Pessoal, dito em termos profanos, é uma espécie de auto-
análise, autocrítica. É a capacidade de voltarmos sobre nós mesmos e
percebermos, dentro de nós, os movimentos que nos afetam. Sentimos
desejos antagônicos, o que os psicólogos trabalham muito e nós temos que
trabalhar um pouquinho mais. Sentimos raiva, paixão. Às vezes ficamos
bravos, outras vezes felizes, sem saber porque. Esses movimentos estão
dentro de nós. Quais os que dão alegria, prazer? Quais os que me fazem
feliz? Santo Inácio descobriu a sua vocação fazendo esse jogo. É um jogo
muito simples, sem nada de espetacular.
Era um nobre, estava apaixonado por uma arquiduquesa. Ele queria
se casar com a filha do Fernando Henrique Cardoso (6). Arquiduquesa
naquela época era mais ou menos isso. Estava louco para casar, mas tinha
que fazer muitas bravatas, porque ela sequer o olhava, porque ele era nobre
do interior de Minas. Então, o seu sonho era fazer as maiores proezas para
que a princesinha o olhasse. Pensava em tudo isso e tinha sentimentos.
Depois leu a vida de São Francisco, de São Domingos e pensou em ser
como São Francisco. Não sabia se casava ou se seria como São Francisco.
Começa a perceber o que se passava em seu coração. Quando pensava na
princesa, sentia alegria e depois um terrível tédio. Valeria a pena? E ele
começa a analisar: iria ou não? E a esse jogo ele chama discernimento
espiritual. É perceber o jogo interior dentro de nós. Só que o critério que
ele coloca não é econômico, nem de glória, nem de poder, mas aquela
paz profunda e de longa duração. É como quando eu pensava: vou para
Vespasiano ou não vou? Tive que fazer discernimento sim. E quando me
convidam para me ausentar num fim-de-semana? Vou a Vespasiano ou
aceito o convite? Tenho que decidir, pois não posso fazer as duas coisas.
É isso que é discernimento espiritual. É procurar aquilo que realmente
responde ao projeto de Deus em nossa vida.
É comunitário, quando fazemos em grupo. Catequistas,
coordenadores de crisma sentam-se e começam a discernir o que devem
fazer. Mas a motivação deve nascer do Espírito.
Mais ainda a apostólica, isto é, na ação que queremos fazer na
Paróquia. Se começássemos a trabalhar um pouquinho o discernimento,
152
progrediríamos muito, porque ficaríamos mais puros, mais livres. Uma
vez que vemos o que Deus quer, as rusgas perdem o sentido. Às vezes
perdemos e deixamos coisas por razões bobas, por falta de discernimento.
Abandonar o trabalho na Igreja porque o padre não olhou para mim...
Há pessoas que não voltam mais. Essas nunca fizeram discernimento.
Discernimento exige razões profundas. Depois vai ficar chata, azeda
porque abandonou o trabalho, por puro ressentimento. Se o padre é chato,
Deus não é.
Encontrar e reencontrar Deus é lindo. Encontrar Deus em todas
as coisas, na contemplação e na ação é das coisas mais lindas de Santo
Inácio. Quando conseguimos achar Deus em tudo que fazemos, a vida fica
de uma beleza que nem podemos imaginar. Se tivermos Deus, quem pode
nos tirar alguma coisa? Ninguém pode tirar Deus de ninguém. Podem
tirar tudo que quiserem, menos Deus. Quando começo a descobrir que
Deus está atuando na minha vida, que eu estou procurando e encontrando,
que eu estou esbarrando com Ele, eu faço contemplação na ação. Estou
agindo, atuando, mas paro e sinto que estou no caminho certo. É bom
parar, de vez em quando, no meio de um trabalho e sentir que Deus está
presente. Um dos momentos em que eu sinto mais a presença de Deus é
naqueles dias em que eu tenho atendimento aqui. Fico ouvindo aquelas
pessoas, muitas com dores enormes.
Certa vez, eu cheguei na sacristia, e uma mulher muito perspicaz
notou que eu estava triste. Eu não estava triste, estava sofrido, o que é
diferente. Tinha passado por mim uma pessoa tão pesada, numa situação
tão dolorosa, tão doída e eu sabia que ali eu tinha que dizer uma palavra
de consolo. É das maiores alegrias que a gente tem, apesar de estar
marcado pelo sofrimento. É uma coisa única: perceber que, no sofrimento,
podemos ter alegria. Não são opostos. A tristeza é o oposto da alegria,
mas o sofrimento não. Eu sei que a única coisa que eu posso fazer por
essa pessoa é olhar para ela e esperar que diga tudo o que quiser. Eu não
tenho nenhuma resposta para ela. Só posso acolhê-la e nada mais. Não sou
Deus, e a sua dor é dor mesmo. Uma dor que ela tem que sofrer. É uma
dor real, verdadeira. Não é fictícia, não é doença psicológica. Fizeram-na
sofrer, como aquela menina que veio me falar que a mãe não a amava, e
provavelmente ela tinha razão. O que eu posso fazer por uma menina de
onze anos que diz que a mãe não a ama? Se a mãe não a ama, sua vida é
um vazio imenso, e é essa dor que nos faz perceber Deus. O que podemos
153
fazer é dizer uma palavra, tentar animar.
Já contei para vocês sobre os pais e irmãs de um garoto de quatorze
anos que havia suicidado. O que eu poderia dizer para essa família? Um
menino bonito, de família rica, tinha dinheiro, tinha tudo. Qualquer suicídio
acaba, arrasa uma família. Nessas dores é que temos que perceber que
Deus está presente. É nesse sentido que eu digo que devemos encontrar
Deus em todas as coisas, na contemplação e na ação. Mas se não rezarmos
e não tivermos profundidade, nunca acharemos palavra nenhuma. Só a
profundidade espiritual nos permite dizer uma palavra neste momento.
Buscar amar e servir a Cristo em profunda conversão do coração.
Santo Inácio insistia muito que temos que conhecer a Cristo para mais
amar e mais seguir. Conhecer para amar. São Tomás diz uma frase muito
profunda: “só podemos amar o que conhecemos”. Nada é amado se não é
antes conhecido. O conhecimento é o início do amor. Amar sem conhecer
é paixão, não é amor. Amor supõe conhecimento. O conhecimento leva ao
amor e o amor ao seguimento. Esses são os três passos da espiritualidade.
Se eu não conheço Jesus, se eu não conheço o Evangelho, não posso
dizer que amo. Posso dizer que tenho algum sentimento, mas amar não.
Por isso, os esposos mais se amam quanto mais se conhecem, porque aí
sim, será amor mesmo, porque conhecem em profundidade e gostam da
profundidade que conhecem. É conhecer, amar e seguir. Isso significa
uma contínua transformação nossa, uma conversão do coração, na escuta
da Palavra.
E aí eu uso uma expressão clássica, muito usada por Santo Inácio:
vestir a libré. Libré é veste. É palavra medieval para roupa – vestimos a
roupa de Jesus. Olhem que imagem bonita! Isto é, o que Ele era, como agia,
como fazia. Inácio era apaixonado e queria que nós, jesuítas, olhássemos
muito para Jesus, para vestirmos a libré de Jesus. Para isso é importante a
leitura dos Evangelhos.
Alimentar uma fé – isso é muito jesuítico – que leve a promover a
justiça e trabalhar pela paz. O jesuíta, para imitar Santo Inácio, sabe que
não há fé sem compromisso social e político. Toda fé muito espiritualista
não é jesuítica. A fé é que motiva, alimenta, ilumina o nosso compromisso
social, político, concreto, histórico. Esse compromisso é iluminado pela
fé. Iluminado pela prática de Jesus, pelo Evangelho. Esse jogo até motiva,
critica, anima, abre horizontes. A justiça realiza, opera, concretiza, torna
real, verdadeira a fé. Sem a prática, a fé é uma mentira. Sem fé, a prática
154
pode ficar desnorteada. Articulando a fé, que é luz; a prática, que é ação, eu
terei uma ação iluminada. Daí, a relação entre fé e justiça. E a justiça hoje,
segundo João Paulo II, em sua forma mais importante, é a paz. Justiça e
paz são sinônimos. Boa Noite! (29/07/02)
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DEUS PAI (#)
Pensando no tema desta palestra, lembrei-me de um rapaz do quinto
século – dezesseis séculos atrás. Era muito inteligente e vivia lá na África,
um filósofo que pensava muito, investigava os autores daquela época.
Ele procurou em todas as filosofias e voltou-se para uma vida devassa,
de prazeres mundanos. E num cantinho, uma senhora rezava por ele.
Era a mãe, que se chamava Mônica e esse rapaz, Agostinho. Ele disse
essa frase com a qual eu queria começar. Vou dizer em latim, que é uma
língua bonita. Ninguém vai entender e pensará que a palestra foi boa:
“et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te”- Senhor, o nosso
coração está inquieto até que descanse em ti. Esse homem foi, talvez, o
teólogo e filósofo mais respeitado pela Igreja Católica de todos os tempos
e escreveu, sobretudo, sobre Deus e a Trindade.
Pediram-me que falasse sobre Deus e eu acho um assunto fascinante.
Um outro grande teólogo alemão - Karl Rahner - afirma que a infinitude
de perfeição de Deus vem encher a infinitude do vazio do nosso coração.
Isso é Deus! Se olharmos dentro do coração humano, veremos que ele é
infinito, só que o infinito do nosso coração é um imenso vazio. Está sempre
desejando, buscando, aspirando, numa procura que se prolonga pela vida
toda. Aí vem a infinitude de Deus, que pode nos encher totalmente. É
dessa infinitude que eu quero lhes falar hoje. E isso é uma ousadia.
O nosso papa Bento XVI fez, há alguns dias, uma homilia, na
qual disse uma coisa bonita. É o papa, um grande teólogo e diz que,
quando queremos nos aproximar de Deus com os conceitos e idéias, não
conseguimos. É como se idéias e conceitos fossem uma espécie de rede
que não nos deixa chegar perto de Deus. E ele continua dizendo que com a
seta da fé, conseguimos rasgar esses conceitos e esbarrar na profundidade
de Deus, e, uma vez que o tocamos, nunca seremos os mesmos. Uma
única vez em que experimentemos realmente Deus, nunca mais seremos
os mesmos.
Eu acho possível que alguém passe a vida toda querendo esbarrar
no mistério de Deus, mas não consiga. Passa ao lado, à margem, e por
isso continuará olhando com o olhar apatetado, com cara de sexta-feira
santa de tarde, triste, macambúzio, porque passou à margem do mistério
de Deus. Mas quando conseguimos tocar a fímbria de Deus, por mínima
156
que seja, nosso coração estremece. E é bom que nos perguntemos a razão
disso.
Todas as religiões só querem responder, de fato, uma única pergunta.
No fundo nós queremos saber quem é Deus. Se quisermos saber se o Brasil
será ou não campeão, depois de uma magra vitoriazinha, uma pequenina
vitória apertadinha, suspirada, sofrida, gemida (1), poderemos continuar
perguntando, mas isso é um pormenor. A coisa fundamental da nossa vida
é conhecer o mistério de Deus. Eu escolhi para vocês algumas respostas.
Começo com uma resposta bonita. Os gregos, que inventaram as
olimpíadas, há muito tempo, achavam que os deuses eram como nós,
seres humanos, com qualidades e defeitos, virtudes e paixões. Tinham
raiva, ciúmes, brigavam entre si, casavam e descasavam. Todas as nossas
paixões e virtudes podiam ser encontradas também nos deuses. No fundo,
eles projetavam, jogavam de dentro para fora os filósofos gregos. Tinham
Dionísio, um deus importante para eles, que gostava de uma cachacinha, e
tantos outros tipos de deuses, mas não eram felizes. Acabaram rejeitando
esses deuses. Aparece Platão, dizendo que Deus era uma idéia bonita, uma
espécie de grande farol que iluminaria todas as outras idéias. Mas ninguém
adoraria uma idéia. Adoramos uma presença. Portanto, esses deuses não
serviriam, pois são muito próximos ou distantes demais.
Lá do céu, Deus olhava e esperava, sabendo que ainda não era
hora de revelar-se, porque a cabeça das pessoas era pequena demais.
Encontrou um rapazinho melhor, chamado Abraão, que percebe alguma
manifestação mais misteriosa, mais pessoal: - deixe a tua terra, a tua casa,
vá longe, onde encontrará um grande povo -. Ele começa a perceber que
Deus é alguém que fala ao coração, alguém que chama, mas também
alguém que empurra. Ele ainda continuava confuso, tinha idéias muito
misturadas. Sabia que existiam muitos deuses, mas o seu era maior. E
Deus continuava revelando-se, abrindo-se para as pessoas que se abriam
para Ele. Se as pessoas não se abrem, não há como Ele entrar. O jogo é
instigante porque supõe os dois lados.
Aparece Moisés e é interessante como Deus se manifesta. Moisés
olha a folhagem e percebe que ela pega fogo. Ele pára e ouve uma voz: -
tire a tua sandália porque essa terra é santa -. Deus continua mostrando-se
num fato, numa voz, num coração que se agita por dentro. Deus é muito
sensível, sobretudo à ação de seu povo. Ele gosta muito das pessoas abertas
para Ele e para os outros. Como poderá manifestar-se aos fechadões,
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trancados em seus quartos? Ele quer entrar e não consegue. Para muitos,
Deus é como um assaltante que provoca medo. Moisés, não. Abre-se, e
Deus manda que ele vá falar ao faraó, lá no Planalto. Ele vai dizer ao faraó
que queria a liberdade de seu povo. Ouve uma negativa, pois precisavam
do trabalho daquele povo. Moisés insiste em tirar o seu povo da opressão
e em colocá-lo aberto para Deus, como todas as vezes que nós estivermos
abertos para o outro. Seja para o jovem com seu crackzinho que encontra
em nós o seu Moisés. Não pensem que houve só um Moisés, lá atrás,
milhares de anos antes. Há muitos aqui nesta sala, porque toda pessoa que
está aberta à outra é Moisés. Deus é fantástico! Ele está querendo entrar
em cada coração, a cada momento. Só que nem sempre somos Moisés.
Houve um momento em que Moisés percebeu que não poderia fazer
tudo por aquele povo. E Deus vai mostrando-se num vento forte que abre
o mar e possibilita que o povo atravesse. Os judeus passaram. Com os
olhos de Deus, o descobriremos em todas as coisas, porque Ele faz com
que as coisas sejam. Não precisamos procurar milagres, porque o grande
milagre é o nosso existir pela força de Deus.
Voltando a Santo Agostinho, ele tem uma frase belíssima: “Tu
autem eras interior intimo meo et superior summo meo” - Deus é interior,
o que há de mais íntimo. Quando chegarem ao mais íntimo de vocês,
quando esbarrarem lá embaixo de vocês mesmos, tocarão o mistério de
Deus. A liberdade, o amor, a paciência nos faz esbarrar um pouquinho
na profundidade do mistério de Deus. Lá, todos esses valores se fazem
realidade. Ele é mais alto, mais superior, mais sublime do que há de mais
sublime em mim. Imaginem quando tiverem um desejo maravilhoso, de
uma generosidade nunca experimentada - eu quero ser missionário em
Moçambique! Eu largo a minha paróquia aqui no Brasil, largo tudo e vou
enfrentar malárias em Moçambique. Vou dar o melhor de mim. Deus é
esse superior, esse sublime. Eu esbarrei no sublime de Deus. Todas as
vezes que somos bons, simplesmente bons, esse bom é o toque divino
em nós.
E os profetas? São como esses nossos radialistas que não apenas
nos informam o que está acontecendo: inflação, eleições, as oscilações do
mercado. Ele pára e modifica o seu olhar. Com outro olhar, como ele verá
as informações? Com esse outro olhar, ele será profeta. Uma mãe, um
pai, com sua filha adolescente, jovenzinha, vendo-a crescer, sabendo das
dificuldades, neste momento eles precisam ser profetas. Com os óculos de
158
Deus para ver o seu filho, tem início a missão do profeta e da profetiza.
Portanto, Deus está muito mais presente. Ele simplesmente muda o nosso
olhar. Ele é aquele que, estando em nós, muda o nosso olhar.
Há um texto antigo, que hoje vocês podem achar na internet.
Vocês, adultos, não conseguem, mas os jovens sabem. Chama-se - Carta
a Diogneto -. Não tem autor, mas apareceu logo depois dos Evangelhos.
É dos primeiros livros que se escreveu no Cristianismo, logo depois
que terminou o Novo Testamento. Está muito perto dos Santos Padres.
Nesta Carta se diz que o cristão é aquele que dirige um automóvel, mas
dirige com um outro olhar. Não buzina para uma mulher, respeita, não diz
palavrão, não faz gestos. Ele dirigirá diferentemente. O cristão também vê
televisão, almoça, janta, ama, mas com um olhar diferente.
Charles de Foucauld, francês, foi viver na África, no meio do deserto,
com aquelas noites lindas, onde as estrelas brilham mais pela falta de
eletricidade. Ele se converte, se torna um monge e vai ser missionário
entre os muçulmanos. Resolve que não irá falar de Jesus, de um Deus
Trino, num ambiente tão hostil. Sua pregação de nada valeria. Resolve
simplesmente viver até que eles percebessem que ele agia diferentemente.
Tratava as pessoas de um modo diferente, olhava a mulher com o olhar
puro e transparente, olhava e ouvia a criança com respeito, costumes muito
estranhos em países árabes. Esperou que eles percebessem tudo isso e o
perguntassem porque ele agia daquela maneira. Então ele responde que no
seu agir estava Deus. É isso que é bonito!
Vocês trabalham num banco, em meio a milhões e milhões de
endinheirados. Chega um pobre e você o recebe com um sorriso, faz
as contas para ele, ajuda-o a preencher um cheque. Todos notarão um
funcionário diferente. É assim que podemos demonstrar que Deus existe,
porque Ele é o olhar com que vemos a realidade. Ele muda a nossa ótica.
Os profetas são exatamente isso: viram os mesmos fatos, a mesma fome,
a mesma guerra, a mesma injustiça, mas não compactuaram. Gritaram,
clamaram contra a injustiça, contra o racismo, apesar da ameaça de serem
perseguidos.
Quando Deus entra na nossa vida, muda tudo, mas, sobretudo, o
nosso modo de olhar. Há uma coisa linda sobre o olhar. Jesus diz que o
nosso olhar é como lâmpada. A lâmpada não faz com que eu veja vocês, ela
só ilumina. Se essas luzes se apagassem totalmente, vocês continuariam
nesta sala, mesmo sem nos vermos. A luz acende, e então vemos uns aos
159
outros. Comecem a observar, mudem os seus olhares! Vejam as mesmas
coisas que viram até hoje e perguntem: se eu tiver o olhar de Deus, o
que mudará? Ainda outro dia eu tive esse pensamento - não que eu seja
diferente de vocês. Estava na minha paróquia e iria iniciar a homilia. Entrou
um bêbado e, claro, distraiu a todos. Veio até ao altar, eu o cumprimentei,
abracei-o e me perguntei: se Jesus estivesse aqui, e esse bêbado entrasse,
Ele o acolheria? Certamente que sim. O meu sermão era muito menos
importante do que acolher esse bêbado. E ainda coube uma reflexão sobre
como era triste ver uma pessoa assim. Deveria ser um homem sofrido que
tentava afogar suas lágrimas na bebida. Um homem que cheirava mal
e espantava as pessoas. É claro que não é bom cheirar alguém assim, o
nosso nariz não é feito para isso, mas com o olhar de Deus eu acolho quem
cheira mal.
Vocês poderão perceber que, quando experimentarem mais a Deus,
tudo mudará em suas vidas. E há uma coisa sobre a qual devemos pensar
muito: é sobre o perdão. É a coisa mais difícil, sobretudo o perdoar a quem
amamos. Perdoar um marido traidor, a esposa que se separou, o filho que
se foi, o filho transviado, metido na droga. Amar a estes é difícil. E há uma
coisa que eu admiro muito. São essas mulheres que vão ver seus maridos,
seus filhos, nas prisões, nas penitenciárias. Quando há alguma rebelião,
podemos ver nas portas uma quantidade de mulheres - mães ou esposas,
cujos maridos e filhos estão lá. São homens perigosos, que mataram,
roubaram, mas a mulher está lá. Não tem vergonha. É criminoso, mas
é seu marido, é seu filho. Ela acena para ele através das grades. Essas
mulheres têm o olhar de Deus. Isso é Deus - aquele que modifica o nosso
olhar.
O povo de Israel foi dilacerado na sua experiência de Deus. Algumas
poucas pessoas, como citei para vocês - Abraão, Moisés, alguns profetas e
juízes, Sansão - tiveram uma experiência de Deus. Eram também sábios e
escreveram os livros sapienciais. Lembro-me, certa vez, de Carlos Mesters
(2), dizendo dos autores dos livros sapienciais como velhos com barbas
talmúdicas e abraâmicas, falando para os jovens na praça, começando
a passar a sabedoria para eles. Todas as vezes que passamos um pouco
de nossa sabedoria aos jovens, temos um pouco do olhar de Deus. Ele
permite e nos capacita para que nós, mais velhos, passemos para essa
geração nova, bonita, sequiosa, com olhos lindos, um pouquinho do que
já vivemos, para que eles vivam melhor ainda. Eles serão sábios, também
160
na experiência de Deus. Deus é sábio e muito sábio, e os sábios são sábios
com os olhos de Deus.
Há um salmo que diz que, quando Deus aparece, as montanhas
tremem. Fogo e fumaça aparecem de todos os lados. Então o povo de Israel
tinha verdadeiro pavor de Deus e, às vezes, sentimentos contraditórios. A
própria Escritura diz que Deus pedira que Moisés virasse de costas e a
mesma Escritura afirma que Moisés conversava cara-a-cara com Deus. No
primeiro livro da Bíblia, na ordem das Paulinas, da Vozes, e não o primeiro
livro escrito - o Gênesis -, tem duas narrativas da criação completamente
diferentes. É bom para percebermos como existiam imagens diferentes de
Deus.
Primeiro é a idéia de um Deus muito próximo. Deus é quase como
um oleiro. Toma o barro, suja a mão, amassa-o e depois sopra o nariz e o
barro vira gente. Depois Ele vai fazer um curso de Medicina no Hospital
das Clínicas, para fazer uma cirurgia. Tira uma costela, o que não é fácil
fazer. Desafio qualquer médico a arrancar uma costela sem anestesia e
dela fazer uma mulher, e ainda sem deixar cicatriz. E mais engraçado
ainda é que os homens da Idade Média eram muito sérios, e São Tomás
lançou a seguinte pergunta: teria Deus criado Adão com uma costela a
mais para ser tirada ou teria ele ficado com uma a menos? Portanto, eles
levavam a sério essa vocação de cirurgião de Deus. Ele aparecia como
oleiro, cirurgião e jardineiro. O Gênesis continua dizendo que Ele plantou
árvores e à tarde passeava no jardim. Eles tinham um Deus muito próximo,
muito humano, muito nosso.
Voltemos para outra passagem: - Deus disse... - Cria tudo com a
palavra, sem tocar em nada, sem mexer as mãos. Transcendência absoluta!
Cria apenas com a palavra. São essas as duas versões de Deus no Antigo
Testamento, que se misturam. Ora temos um Deus muito longe, com quem
não temos nenhum contato; ora um Deus muito próximo, cotidiano. Mas
a tendência de um Deus próximo foi desaparecendo. Esse texto que fala
da criação pela palavra, apesar de estar no início da Bíblia, é muito mais
tardio. A imagem do Deus oleiro é bem mais antiga. Quanto mais o povo de
Israel foi evoluindo na sua reflexão, mais se separou de Deus, colocando-
o cada vez mais longe. A imagem do Deus próximo foi desaparecendo e
foi surgindo o Transcendente. Guardem isso na cabeça: quando Deus fica
muito distante, a nossa tentação é de enfiar uma quantidade de coisa no
meio. É uma espécie de sanduíche: Deus lá em cima e nós aqui embaixo.
161
Enchemos o meio de anjos, demônios, novenas, promessas, porque a
distância é muito grande.
Quando Jesus veio à Terra, Deus ficou muito próximo. Ele tem um
corpo como nós, é concebido no seio de uma mulher. Nunca Deus ficou tão
próximo da humanidade como no momento do mistério da Encarnação. Ele
começa a viver a nossa vida e isso se reflete nos Evangelhos. Os sinóticos
- os três primeiros Evangelhos: Marcos, Lucas e Mateus, nessa ordem
e não na ordem das Paulinas - vão refletir isso. Ao lermos os sinóticos,
sobretudo Marcos, o mais antigo, perceberemos um Jesus muito da Terra,
até mal-educado. Quando vai curar o cego cospe e faz barro, mexe nas
orelhas do surdo, convive com as pessoas, reclama quando o empurram,
diz que os apóstolos não têm inteligência. Portanto é um Jesus muito
próximo.
As mesmas passagens em João mostram um Jesus mais distante.
Vou dar apenas um exemplo: tomemos a prisão de Jesus no Horto das
Oliveiras. Os sinóticos a descrevem com os guardas agarrando-o, Pedro
cortando a orelha do soldado, e Jesus a recolocando e sendo levado depois
da traição de Judas. Um Jesus humano, frágil, que não reage à prisão.
João, ao contrário, descreve os soldados chegando, e Jesus se antecipando
a eles: - A quem buscais? - Ele se entrega, os soldados caem de espanto. Se
quisesse ir embora, poderia ter ido, pois estavam todos caídos. João sequer
menciona a participação de Judas. É o divino que se deixa prender.
Jesus é João e também os sinóticos. Nós podemos vê-lo como
preferirmos. Podemos ser mais joaninos ou mais sinóticos. As duas
vertentes são verdadeiras. Deus é transcendente e é próximo. Tomemos
outro exemplo na epístola aos Filipenses. Lá está escrito que o Verbo de
Jesus renunciou à maneira divina de caminhar entre nós. É uma expressão
forte - ekénosen - esvaziou. Ele não pode negar o seu ser divino, mas
renunciou a mostrar-se, a permanecer Deus. Vou dar um exemplo: quem é
pai pode renunciar ao autoritarismo, mas não pode renunciar ao fato de ser
pai. Pode renunciar à forma, à maneira de ser pai. E é isso que Paulo diz:
Jesus poderia andar divinamente, poderia voar sobre as águas, mas não
quis. Na passagem da tempestade, enquanto o barco era sacudido pelas
ondas, Ele dormiu. Para dormir num barco agitado, deveria estar com um
sono terrível, exausto. Podemos imaginar que o homem Jesus teve uma
vida muito indigente fisicamente. E, em contraposição, Paulo continua
dizendo que Ele tinha um nome acima de todos os nomes, diante do qual
162
todos se ajoelham. Assim Paulo apresenta duas versões de Jesus.
Aconteceu que essas duas imagens de Deus, apresentadas nas
Escrituras, tiveram história. Os Evangelhos foram escritos no primeiro
século, e daí começaram as gerações seguintes, que terão três relações
com o passado: memória, esquecimento e invenção. Os jovens não sabem
o que é passado, mas nós, velhos, lembramos algumas coisas, esquecemos
outras e inventamos outras. Inventar é humano e sociológico. Toda
tradição tem elementos de memória, ao mesmo tempo em que esquecemos
e também floreamos. Isso também aconteceu com a tradição de Jesus. A
Igreja começou a esquecer que Jesus viveu pobre, no meio dos pobres,
cuspia no chão, dormia no chão. E começou a lembrar só do Jesus glorioso,
ressuscitado, que atravessava paredes, subiu ao céu - é o Cristo glorioso,
maravilhoso. E o imperador Constantino, e outras autoridades que se
converteram, começam a se identificar com o Cristo glorioso. Sentam-
se em cadeiras grandes, usam coroas porque só se lembram da glória,
esquecendo-se do pobre, daquele que se sentava no chão, que dormia na
barca.
Essa idéia de um Deus próximo começou a desaparecer. Começamos
a valorizar mais a divindade de Jesus do que a sua humanidade. Jesus
é muito mais próximo de nós quando aparece humano. Pois bem, essa
imagem começou a afastar-se de nós. Somente no século passado é que
os exegetas começaram a redescobrir o Jesus histórico. E, ao descobrir
o Jesus da Palestina, começam também a mudar a imagem de Deus. A
nossa imagem de Deus está muito ligada à imagem que temos de Jesus. E
sobre isso gostaria de chamar a atenção: quando colocamos Deus muito
longe, vamos ter que inventar um monte de coisas para aproximá-lo de
nós. Se queremos que Deus fique bonzinho, fazemos logo cinco novenas.
Se o sentimos próximo, não precisamos de novenas, porque Ele já está.
Precisamos rezar para que nos abramos à sua presença. Ele dará o que
precisamos mesmo sem pedirmos, mas o pedido do filho é simplesmente
a proximidade com o Pai. É importante que peçamos as coisas para Deus,
não para que nos sintamos humilhados, não que Ele não saiba, mas para que
mostremos a Ele o nosso carinho, a nossa confiança, a nossa necessidade
de comunicação.
No momento em que nos afastamos de Deus, começamos a inventar
um monte de coisas: busca de milagres, de coisas extraordinárias. Não
precisamos de nada disso. Quem tem o infinito não precisa de mais nada.
163
Deus é o infinito de perfeição que enche o infinito vazio do ser humano. Se
o infinito de Deus me preenche, precisarei de mais alguma coisa? Preciso
sim, de curtir, meditar, contemplar, amar.
Guardemos essa idéia na nossa cabeça: a proximidade de Deus nos
liberta de uma série enorme de crenças - não de fé - que substituem Deus.
Essas crenças no fundo são, para nós, substitutos de Deus, e Ele não pode
ser substituído.
Se alguém perguntasse a mim qual a página mais bonita que
encontro no Evangelho, eu diria que é Jesus chamar Deus de Abba, que
em hebraico significa papai, paizinho. Não o chamou de Todo Poderoso,
Infinito, Insondável. Estive uma única vez em Israel e levei um susto.
Estava passando numa rua de Jerusalém e ouvi um meninozinho gritar
Abba! Levei um susto, e a criança estava simplesmente chamando o seu
pai, da mesma forma que Jesus chamou o seu Pai Celeste. Jesus chamou
a Deus de Abba e disse que nós também podíamos chamá-lo assim. Não
precisaríamos nos comportar como escravos, chamando-o de Senhor. Jesus
passa para nós a experiência de proximidade que existe entre pais e filhos
aqui na Terra. Por isso, vocês, pais e mães, devem sentir-se muito felizes:
quando a Bíblia descreve uma experiência muito profunda, apela para a
paternidade e o esponsal. São duas imagens bíblicas muito importantes. A
paternidade é a experiência matriz para entendermos Deus. Por isso, uma
pessoa que não teve uma boa relação com o pai, terá muita dificuldade em
ter uma experiência de Deus. Mas se tiveram um pai maravilhoso, essa será
uma graça imensa para experimentarem Deus. Por isso, quando vocês são
ótimos pais, serão os melhores catequistas para os seus filhos. Essa é uma
experiência fundante que permite que a criança perceba a misericórdia e
bondade de Deus. Isto é fascinante! Um pai carregando uma criança nos
ombros é o símbolo da experiência de Deus e a levará a ter uma imensa
facilidade de chamar a Deus de Pai. Quando ocorre o contrário, de um
adolescente não ter um pai presente, é a nossa função lembrar-lhe que a
experiência de Pai transcende a seu próprio pai. No fundo, é essa a raiz
das teorias de Freud, de Jung e tantos outros psicanalistas. Se falharmos,
por qualquer razão que seja, na experiência primigênia da maternidade ou
paternidade infantil, pode ser que um outro adulto a substitua, e é essencial
que isso aconteça. Eu mesmo já vivi experiências bonitas. Certa vez, uma
criança se chegou a mim e perguntou: - O senhor é Deus? - Eu respondi-
lhe que não. Ainda não cheguei a tanto. Mas para a criança a imagem de
164
Deus é muito abstrata. Então, a túnica branca que eu usava no altar de uma
igreja fez com que ela fizesse essa pergunta.
É isso que eu queria falar de Deus hoje. Não é nada de complicado
que fosse embaralhar a cabeça de vocês. Falar de Deus é falar dessas coisas
cotidianas, mas primais, primigênias. Gosto de me deter nas experiências
primais. Certa vez, numa longa viagem de ônibus, viajavam duas crianças
com seus pais. Numa das paradas os pais desceram, deixando os filhos no
ônibus. Aproximando-se a hora da partida, quando o motorista começa
a fazer os primeiros movimentos e, vendo que os pais não voltaram,
elas deram um grito espantoso. Aquele realmente era um grito primal.
Os pais aparecem e qualquer um nota o alívio. Esse grito nós daríamos
se perdêssemos Deus. É um grito eterno da certeza de que nos teríamos
perdido. Não seria uma perda qualquer, mas a perda de nós mesmos, a
perda da experiência mais fundante de nossa existência. Deus é aquele
que nos criou, que fez o que nós somos, nos fez capazes de querer todas
as coisas. Se perdermos isso, perderemos a nossa última identidade. É a
destruição radical. Boff (3) chama de frustração radical.
Daí a importância de nós, adultos, em relação ao jovem, à criança
e ao adolescente. Se alguém diz que o Cristianismo está fracassando, não
será por outro motivo a não ser por não estarmos passando a experiência
de Deus para as novas gerações. Ele continua fascinante, não mudou nada
desde toda a eternidade. Continua o mesmo Pai, o mesmo Amante.
Eu estou muito impressionado com a insistência de Bento XVI em
falar de amor. Ninguém esperava. É muito difícil para um alemão, frio,
robótico. Pois bem, o grande tema que ele vem tomando é o amor. Coisa
mais linda! E eu gostaria de terminar falando desse amor, como tantas
vezes falo para os noivos.
O amor tem três andares. Só que a metáfora dos andares é estática,
por isso não é muito boa. É como se o segundo andar agarrasse o primeiro,
e o terceiro agarrasse os anteriores. Imaginem uma casa móvel na qual
os três andares se movessem continuamente. O primeiro andar é o que
Bento XVI chama de eros. É o amor fundamentalmente sensível. Eu sinto
falta da presença do outro e o primeiro modelo é o amor do homem pela
mulher, do esposo para a esposa. Essa é a matriz fundante do eros. Partindo
daí, temos as outras experiências de nossas amizades, dos nossos amores
sensíveis, dos nossos desejos, do desejo dos namoradinhos. Isso é lindo e
necessário. Se saltar esse andar, a casa não estará completa. É o amor que
165
tem suas raízes no olhar, no olfato, no paladar.
O segundo andar é filia. É a amizade, que não precisa tanto de
experiências sensíveis. Amizade é o prazer de estar junto, conversar
horas. É o estar contente, sentir-se bem. Mas Bento XVI fala de um grau
maior. Até aqui chegaram os gregos. Nós cristãos temos algo de novo para
oferecer. Não podemos saltar os dois primeiros andares, mas é a questão
do olhar de que já lhes falei. Temos algo de diferente. Esse diferencial
chamamos de agape. É o amor que quer o seu bem sem mais. Mesmo que
convivamos com a mais aborrecida das pessoas, continuamos querendo o
seu bem. Mesmo que o namorado se separe de mim, continuarei querendo
o seu bem, não o meu. Essa é a grande novidade. É o dom daquilo que nós
temos. É a experiência que Jesus viveu na cruz diante de seus algozes:
- Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem! - Nenhum de nós ama
o assaltante, mas podemos perdoá-lo, desejar que, apesar de todo o crime,
de toda a maldade, ele se regenere e reencontre o caminho. Não desejamos
a sua morte, a sua destruição, mas sim que seja salvo e redimido. Isso é
agape e podemos sentir por qualquer pessoa, até pelo maior inimigo. Não
vou defender o crime, que continuará sendo crime, mas vou querer que a
pessoa se reestruture, se salve, encontre o caminho do bem, da salvação.
Esse tipo de amor é o que o Cristianismo ensina. Por isso, até aquele
que blasfema contra Deus, continuará sendo sustentado pelo mesmo
Deus, que continuará dando-lhe a vida. Uma cena linda da vida de Jesus,
narrada nos sinóticos, é quando Ele encontra Judas, que vai traí-lo, e
pergunta: - Amigo, a que vieste? - Chamou-o de amigo e se chamou é
porque verdadeiramente o era. Apesar de ser traidor, de estar tramando a
sua morte, Jesus não retira o seu amor - agape. É claro que Jesus não podia
aceitar o crime, a traição, mais perdoa e continua chamando de amigo.
Deus é isso, e no dia em que formos capazes de fazer essa experiência,
seremos capazes de falar de Deus. (13.06.2006)
167
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
Pedro e Paulo At 12, 1-11 I 106
Percebendo o Anjo em Nossas Vidas At 12, 1-11 I 98
A Igreja Precisa de Pedros e Paulos At 12, 1-11 II 77
Quem Eu Sou Perante Deus At 12, 1-11 III 80
Igreja Plural At 15,1-2.22-29 III 72
A Importância da Família Cl 3,12-21 I 130
O Alicerce da Autoridade é a Verdade Cl 3,12-21 III 154
Alegria se Celebra com Alegria Dt 5,12-15 III 43
A Igreja Começa na Família Eclo 3,2-6.12-14 III 152
O Alicerce da Autoridade é a Verdade Eclo 3,2-6.12-14 III 154
A Família Precisa de Ritos Eclo 3,3-7,14-17a II 144
Fé e Razão Ef 3, 2-6 III 15
A Quem Iremos? Ef 5,21-32 II 81
Um Nome Não É Simplesmente Um Nome Ex 3, 1-8a,13-15 I 39
A Pergunta que Nos Move Ex 17, 8-13 II 114
Jesus Revela o Coração de Deus Ex 19,2-6a III 74
Amar a Deus na Obra de Sua Criação Ex 22,20-26 III 125
Deus Ouve o Grito dos Excluídos Ex 22,20-26 IV 96
Jesus Está Sempre em Má Companhia Ex 34, 4-6.8-9 IV 40
Responsabilidade Ética Ez 33, 7-9 IV 80
Lidando Com as Perdas Gl 3,26-29 IV 52
O Bem e o Mal: Tentações Gn 2,15-24 I 52
A Grande Tentação de Construir um Gn 9,8-15 III 51
Mundo Melhor
Uma Caminhada de Conversão Gn 9,8-15 III 53
Marta e Maria Gn 18, 1-10a I 112
A Acolhida pelo Saber Ouvir Gn 18, 1-10a IV 60
Pedir é Abrir-se Gn 18,20-32 III 86
Reino de Deus: Já e Ainda Não Is 8,23-9,3 II 23
Antes da Ternura de Belém, a Aspereza de Is 11, 1-10 II 134
João Batista
Buscando Sinais que Nos Unam Is 55,1-3 III 88
Fé e Razão Is 60, 1-6 III 15
Sinais do Reino de Deus em Nossa Realidade Jn 3, 1-5.10 II 25
168
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
Natal – Valeu a Pena Criar (Um Diálogo Trinitário) Jo 1, 1-18 I 127
A Força do Olhar de Jesus Jo 1, 1-18 III 150
A Novidade da Fé Jo 1,19-28 III 27
O Chamado que Desacomoda Jo 1,35-42 II 20
O Sagrado é Inegociável Jo 2,13-22 II 45
Amar É o Verbo de Deus Jo 3,16-18 II 63
Jesus Está Sempre em Má Companhia Jo 3,16-18 IV 40
Água: Sinal e Símbolo Jo 4, 1-26 I 55
Multiplicando por Palavras Jo 6, 1-15 II 90
O Pão da Convivência Jo 6,30-50 III 90
Eucaristia é Participar da Intimidade de Deus Jo 6,41-51 IV 70
Nossa Alegria É a Alegria de Deus Jo 6,51-58 II 66
A Quem Iremos? Jo 6,60-69 II 81
Buscando Força Interior Jo 6,60-69 IV 74
A Grande Lição de Paciência e Esperança Jo 8, 1-11 IV 27
Luz: A Caminhada da Fé Jo 9, 1-41 I 57
Razão se Faz com Lama e Luz na Medida Certa Jo 9, 1-41 II 37
As Cegueiras em Nosso Dia-a-Dia Jo 9, 1-41 III 48
Somos Pastores na Igualdade Jo 10, 1-10 II 49
Nós Temos Sede de Infinito Jo 10, 1-10 IV 31
Mães Para Todas as Estações Jo 10,11-21 II 54
Cordeiros e Pastores Jo 10,27-30 I 94
Lázaro: Milagre por Amor Jo 11, 1-44 I 61
Vida é Movimento de Dentro Jo 11, 1-44 I 59
Deus É, Deus Ama Jo 11, 1-45 II 150
Sinais de Morte e Ressurreição no Amor Jo 11, 1-45 II 39
Jesus Assumiu na Liberdade Jo 12,12-19 I 63
O Grão que Cai na Terra Jo 12,20-33 III 58
É Noite! Jo 13,21-33 I 65
Mães Jo13, 31-33a, I 96
34, 35
Amar é Desejar a Vida Para Todos Jo 13,31-35 IV 34
Construindo Eternidade Jo 14, 1-12 III 65
Caminho, Verdade e Vida Jo 14, 1-14 I 29
169
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
O Amor se Faz na Acolhida do Diferente Jo 14,15-21 III 69
A Paz que Vem de Cristo Jo 14,23-29 I 76
Nó de Relações Jo 15, 1-8 II 60
O Sentido da Morte na Morte de Jesus Jo 18,1-19,42 I 69
A Realeza que Recebemos no Batismo Jo 18,33-37 IV 113
Entendendo a Ressurreição Jo 20, 1-9 I 70
Jesus Não Deu Conta Jo 20,19-23 IV 37
Tomé – O Amor é Incondicional Jo 20,19-31 I 74
Tomé – O Crucificado é o Ressuscitado Jo 20,19-31 I 72
A Identidade do Ressuscitado Jo 20,19-31 II 52
Amar a Face Escura Jr 1,4-5/17-19 I 20
A Quem Iremos? Js 24, 1-2.15-18 II 81
Buscando Força Interior Js 24, 1-2.15-18 IV 74
O Ser Humano Como Lugar de Deus Lc 1,26-38 III 148
Noite Silenciosa Lc 1,39-45 I 126
As Três Dimensões da Assunção Lc 1,39-45 III 95
Assunção – Fé Pretensiosa Lc 1,39-56 I 122
Assunção: A Festa da Esperança Lc 1,39-56 II 98
Maria Traz para a História Sementes de Eternidade Lc 1,39-56 IV 72
João Batista: Tradição e Profecia Lc 1,57-66.80 II 75
Natal é Mergulhar no Mistério de Deus Lc 2, 1-14 II 140
A Transformação da História Começa no Mistério Lc 2, 1-14 IV 120
do Coração de Deus
Ano Novo – Portas Abertas para o Ser Lc 2,16-21 I 11
As Três Fogueiras Lc 2,16-21 II 13
Um Dia Diferente Lc 2,16-21 II 146
Deus Pai nos Propõe o Ano da Misericórdia Lc 2,16-21 IV 9
Entrando Num Novo Milênio com Cristo Lc 2,41-52 III 11
Advento é Tempo de Confiança Lc 3, 1-6 IV 116
Batismo é Compromisso Com o Futuro Lc 3,15-16.21-22 IV 11
Tentações em Lucas Lc 4, 1-13 I 50
Nós Somos o Limite de Deus Lc 4, 1-13 IV 22
Avançar para Águas mais Profundas Lc 5, 1-11 I 26
Nossa Vocação é Criar as Relações Lc 5, 1-11 I 24
170
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
Bem-Aventuranças em Lucas Lc 6,17-26 I 43
A Proposta Cristã para a Vida Além da Morte Lc 6,17.20-26 III 129
Jesus Responde à Grande Pergunta Lc 6,17.20-26 III 127
Ser Cristão é Mais que Ser Ético Lc 6,27-36 I 35
Gratuidade x Reciprocidade Lc 6,27-36 IV 16
Jesus Quer Mais que Rito e Rotina. Ele Quer Amor Lc 7,36-8,3 I 102
O Amor Reconstrói por Dentro Lc 7,36-8,3 I 104
Lidando Com as Perdas Lc 9,18-24 IV 52
Transfiguração – A Festa Contínua Lc 9,28-36 I 47
Transfiguração: Força para o Sofrimento Lc 9,29-36 I 49
Transfigurações no Nosso Dia-a-Dia Lc 9,29-36 II 42
Ser Livre Para Amar, Amar Para Ser Livre Lc 9,51-62 I 108
Abrindo a Janela Interior Lc 10,25-37 I 114
Todas as Leis se Calam Diante do Amor Lc 10,25-37 IV 57
Marta e Maria Lc 10,38-42 I 112
Servir e Contemplar Lc 10,38-42 I 110
A Acolhida pelo Saber Ouvir Lc 10,38-42 IV 60
Pedir é Abrir-se Lc 11,1-13 III 86
O Nada se Veste Lc 12,13-21 II 94
Somos o Que Amamos Lc 12,16-21 I 116
Pai, Referência Fundamental Lc 12,32-48 I 119
Pais da Transcendência Lc 12,32-48 II 96
O Serviço de Ser Pai Lc 12,32-48 III 93
Abrir-se para Acolher Lc 13,22-30 III 100
Nós Construímos a Salvação Lc 13,22-30 III 102
Nós Existimos para Deus Lc 14,1.7-14 III 104
A Felicidade que Deus Espera para Nós Lc 14,25-33 III 108
A Busca da Interioridade Lc 14,26-33 II 104
A Parábola do Pai Misericordioso Lc 15,1-3,11-32 I 28
Jesus nos Apresenta o Deus da Acolhida Lc 15,1-32 III 111
A Parábola dos Inversos Lc 16,19-31 II 108
No Cotidiano se Faz Eternidade Lc 16,19-31 III 117
O Horizonte do Amor É o Infinito Lc 17, 5-10 II 110
171
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
A Pergunta que Nos Move Lc 18, 1-8 II 114
Deus é Contínua Doação Lc 18, 1-8 IV 94
Justiça e Misericórdia Lc 18, 9-14 I 100
A Dimensão da Verdadeira Glória Lc 18, 9-14 II 120
Somos Iguais na Radicalidade Lc 18, 9-14 IV 98
A Caminhada de Zaqueu Lc 19, 1-10 II 123
A Teologia nos Descortina Horizontes Infinitos Lc 20,27-38 IV 104
Só Restará o que For Construído por Dentro Lc 21, 5-19 II 129
O Fim do Mundo a Cada Dia Lc 21, 5-19 III 135
A Paixão em Lucas Lc 22,14-23,56 I 67
Nós Não Damos Conta do Amor Lc 22,14-23.56 IV 29
A Originalidade da Realeza de Jesus Lc 23,35-43 II 131
A Realeza pelo Olhar Lc 23,35-43 III 138
Emaús x Jerusalém Lc 24,13-35 I 92
Ser de Luz Lc 24,13-35 I 91
A Grande Caminhada para Jerusalém Lc 24,13-35 III 60
Na Ascensão, A Nossa Ressurreição Lc 24,46-53 I 80
O Sentido do Silêncio Messiânico Lv 13, 1-2.44-46 IV 20
Quando o Céu se Abre Mc 1, 1-8 III 146
Os Vários Sentidos de Batismo Mc 1, 6-11 III 23
Vozes de Nossa Vocação Mc 1, 7-11 III 21
A Grande Tentação de Construir um Mc 1,12-15 III 51
Mundo Melhor
Uma Caminhada de Conversão Mc 1,12-15 III 53
O Reino de Deus Aqui e Agora Mc 1,12-15 IV 25
Cronos e Kairos – Tempo Qualitativo Mc 1,14-20 I 124
Sinais do Reino de Deus em Nossa Realidade Mc 1,14-20 II 25
O Cotidiano de Jesus Mc 1,29-39 III 31
A Acolhida pela Pele Mc 1,40-45 III 39
O Sentido do Silêncio Messiânico Mc 1,40-45 IV 20
O Invisível no Visível Mc 2, 1-12 IV 18
Alegria se Celebra com Alegria Mc 2,23-3,6 III 43
Os Batismos na Vida de Jesus Mc 3,13-17 II 17
A Outra Margem Mc 4,35-41 IV 55
172
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
Oração, Esmola e Jejum Mc 6, 1-6,16-18 III 45
Autoridade x Poder Mc 6, 7-13 II 86
Antecipando a Ressurreição Mc 9,2-10 III 55
O Batismo Nos Faz Profetas Mc 9,38-43.45. IV 89
47-48
O Privilégio do Bem Não é Exclusivo Mc 9,38-48 IV 87
Consciência e Liberdade Mc 13,33-37 II 133
Humanidade e Divindade Fazem Mc 14,1-15,47 III 62
a Realeza de Jesus
Ascensão é o Mistério da Ausência Mc 16,15-20 IV 43
A Força da Mulher na Transformação do Mundo Mt 1,18-24 II 136
Uma Fé Aberta para a História Mt 1,18-25 II 138
Magos – Dois Olhares Mt 2, 1-12 I 17
Magos: Diálogo Inter-Religioso Mt 2, 1-12 II 15
A Noite que Antecede a Aurora Mt 2, 1-12 III 13
A Universalidade de Jesus Mt 2, 1-12 III 18
Fé e Razão Mt 2, 1-12 III 15
Coragem para Buscar Libertação Mt 2,13-15,19-23 II 142
Como João Batista Esperava Jesus Mt 3, 1-12 I 41
Cronos e Kairos – Tempo Qualitativo Mt 3, 1-12 I 124
Antes da Ternura de Belém, Mt 3, 1-12 II 134
a Aspereza de João Batista
Atravessando o Rio Jordão Mt 3,13-17 IV 118
O Bem e o Mal: Tentações Mt 4, 1-11 I 52
Nossa Tentação em Ver um Jesus Diferente Mt 4, 1-11 II 35
Jesus Vai à Frente Mt 4,12-13a,17-22 III 29
Reino de Deus: Já e Ainda Não Mt 4,12-17 II 23
Bem-Aventuranças em Mateus Mt 5, 1-12 I 45
Pérolas de Eternidade Mt 5, 1-12 II 28
Deus nos Dará Aquilo que Somos Mt 5, 1-12 III 132
Bem-Aventuranças: A Felicidade Mt 5, 1-12a IV 107
que Ninguém nos Tira
Sabedoria é Saber com Sabor Mt 5,13-16 II 30
Sabedoria e Luz Mt 5,13-16 III 34
Nova Visão da Lei e Valor do Lazer Mt 5,21-47 I 37
173
Título Texto Bíblico Vol. Pág.
Deus Esqueceu-se de Ir Embora Mt 5,43-48 I 31
Três Dimensões de Abertura Mt 6, 1-6.16-18 II 32
O Mistério se Encontra no Silêncio Mt 6, 1-6.16-18 III 36
Transparências e Limites Mt 7,21-27 II 68
Deus Age nas Coincidências Mt 9, 9-13 II 71
O Símbolo Traduz o Amor Mt 9,36-10,8 IV 49
Medos Mt 10,26-31 II 73
Deus Potencializa os Nossos Amores Mt 10,37-42 III 77
Abba: Um Deus Próximo Mt 11,25-30 II 79
O Poder da Palavra Mt 12,33-37 I 33
Um Outro Pentecostes Mt 13, 1-23 I 83
Ser Terra para Acolher e Produzir Frutos Mt 13, 1-23 II 84
As Palavras Carregam Experiências Mt 13, 1-23 III 83
Trindade: Realidade Cotidiana Mt 13,24-30 I 87
Joio e Trigo Coexistem Dentro de Nós Mt 13,24-43 II 88
A Semente de Trigo que Guarda a Nossa Esperança Mt 13,24-43 IV 62
Só Descobrimos o que Já Temos Mt 13,44-46 IV 65
A Grande Rede que Procura Bondade Mt 13,44-52 IV 68
Buscando Sinais que Nos Unam Mt 14,13-21 III 88
A Grande e Total Presença Mt 14,22-33 II 148
Barcas ao Mar Mt 14,22-33 III 97
Pedro e Paulo Mt 16,13-19 I 106
A Igreja Precisa de Pedros e Paulos Mt 16,13-19 II 77
Quem Eu Sou Perante Deus Mt 16,13-19 III 80
Tu És Pedra Mt 16,13-20 II 100
Respeito à Individualidade Mt 16,21-23 II 102
Dom Helder: O Mensageiro da Esperança Mt 16,21-27 IV 77
Transfiguração é a Nossa Reserva de Luz Mt 17,1-9 III 41
As Ovelhas Amadas de Deus Pai Mt 18,12-14 III 143
A Gratuidade do Perdão Mt 18,15-18 III 106
Responsabilidade Ética Mt 18,15-20 IV 80
O Perdão Que Nos Reconstrói Mt 18,21-35 IV 84
A Lógica de Deus Mt 20, 1-16 II 106
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Título Texto Bíblico Vol. Pág.
O Julgamento Misericordioso de Deus Mt 20, 1-16 III 113
O Tempo de Deus é Outro Mt 20, 1-16 III 115
A Nova Vinha Mt 21,33-43 III 120
Uma Matemática Diferente Mt 21,33-45 II 112
Deus nos Convida ao Banquete da Vida Plena Mt 22, 1-10 IV 91
A Ação de Deus Depende de Nossa Liberdade Mt 22,15-22 II 118
Deus Está Presente em Todos os Amores Mt 22,15-22 II 116
Amar a Deus na Obra de Sua Criação Mt 22,34-40 III 125
Religião: Símbolo, Doutrina e Práxis Mt 23,1-12 III 122
Estamos Preparados? Mt 24,37-44 III 140
O Noivo É a Realidade Mt 25, 1-13 II 125
O Noivo do Dia Seguinte Mt 25, 1-13 IV 101
A Felicidade de Repartir Mt 25,14-30 II 127
Pontos de Transcendência Mt 25,14-30 IV 110
Trindade: Unidade na Diversidade Mt 28,16-20 I 89
Jesus Revela o Coração de Deus Mt 9,36-10,8 III 74
O Batismo Nos Faz Profetas Nm 11,25-29 IV 89
O Privilégio do Bem Não é Exclusivo Nm 11,25-29 IV 87
Buscando Sinais que Nos Unam Rm 8,35.37-39 III 88
Somente o Ser Humano é Instrumento de Paz Sl 137/136 II 47
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