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Sebenta Nova

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LINHA DE SEBENTAS AEFDUNL

PREÂMBULO

“Os certeiros que fizeram estes meninos não foram muito precisos quando acabaram de os
escrever a computador. Futuras discussões doutrinárias em São Jario permitiriam corrigir
certos erros que aqui estavam, mas essas correções nunca foram efetivadas a computador. E
porque saber Direito não é saber uma sebenta e siga para bingo, encorajam-se os infelizes que
optaram por ler estes meninos a duvidarem de tudo o que for escrito e a discutirem-no com os
seus amigos. Afinal é, também, desses serões que se faz o curso na NOVA.”

OS AUTORES
Direito Processual Penal:

Temáticas introdutórias

1. A presunção de inocência do arguido: enquadramento e consequências jurídicas.

A presunção de inocência é um estatuto jurídico-político de dignidade constitucional,


constituindo uma regra de tratamento do arguido no processo penal, quer pelo legislador, quer
pelo aplicador do direito1. Não é algo imanente à qualidade de cidadão, mas apenas um estatuto
de todos os arguidos.

Não é possível considerar a presunção da inocência em todo o seu rigor verbal (32º/2,
CRP), pois isso levaria (i) à proibição antecipada de medidas de investigação e cautelares
(inconstitucionalizando a instrução criminal em si mesma) e (ii) à proibição de suspeitas sobre a
culpabilidade do arguido (equivalendo a uma impossibilidade de valorização das provas e
aplicação e interpretação das normas criminais pelo juiz).

Este princípio significa que “até prova definitiva da culpa, o arguido é inocente”.
Esta ideia basilar traz, por isso, consigo várias consequências:

(i) Para que este estatuto do arguido seja ultrapassado, exige-se o trânsito em julgado de
uma sentença penal que o condene. Não podem, por isso, ser aplicadas ao arguido quaisquer
sanções (penas ou medidas de segurança) antes de tal trânsito. Aliás, ainda que a aplicação de
medidas cautelares não contradiga este princípio, está vedado ao juiz aplicar verdadeiras
penas/medidas de segurança a nível material sob o véu formal de medidas cautelares. As
próprias medidas de coação/cautelares devem assumir um cariz perfeitamente excecional.
Assim, este princípio vale até se esgotarem as possibilidades de recurso de uma decisão
condenatória. Presunção de inocência pode ter configurações diferentes conforme os modelos
constitucionais.

(ii) “Tratar o arguido como inocente” significa que quem quiser lhe fizer uma
imputação de responsabilidade tem de provar a sua culpa 2. Não significa que os atos processuais
o tratem como inocente mas para se imputar os factos a alguém, tem de se provar a sua culpa. É
o promotor do processo (MP ou assistente, se este tiver grande preponderância no processo) que
1
Vale desde o início do processo penal daí que se reporte ao arguido e não ao acusado (uma pessoa só é
acusada no decurso do processo penal, quando este se inicia ela é mera arguida).
2
Por vezes, coloca-se a questão de saber se uma pessoa que ocupa um cargo público/político e é visada
em processo penal se deve demitir ou não do cargo que ocupa. Em termos jurídicos, à luz da presunção da
inocência, tal só deve acontecer após a condenação definitiva (só com o trânsito em julgado da decisão
condenatória se produzem efeitos jurídicos impositivos ao arguido). Podem é ser tomadas medidas
cautelares de suspensão de funções, específicas e previstas no CPP. Questão diversa será já o juízo
político, legítimo, que entenda desencadear a demissão de um arguido ou acusado. No entanto, esta não
será uma consequência jurídica do andamento do processo penal.
tem de provar a culpa do arguido, não sendo este último que tem de provar a sua inocência.
Existe, por isso, uma distribuição do ónus da prova que onera o promotor do processo – é nele
criado um desequilíbrio formal.

Não obstante, o arguido pode até ter interesse em defender-se ativamente, mas isso já
será uma questão de estratégia processual; a partir do momento em que ele é arguido pode
remeter-se a beneficiar da presunção de inocência.

(iii) A adoção do in dubio pro reu como critério decisório para quando, produzida a
prova, subsistam dúvidas quanto à culpabilidade do arguido. Se não há certeza quanto à
culpabilidade do arguido, então a decisão a emanar do processo terá de lhe ser favorável. Existe,
pois, uma necessidade de qualquer condenação ultrapassar a “dúvida razoável” (numa
formulação mais anglo-americana). O in dubio pro reu não se encontra expresso na CRP, antes
sendo uma consequência processual lógica da presunção da inocência e, por isso, resultando
implicitamente da nossa lei fundamental.

Além do mais, este critério de decisão associa-se ao princípio nulla poena sine culpa,
pois o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos
pressupostos de facto da atuação de dado agente, ele pronunciar uma sentença de condenação.

Esta regra do in dubio pro reu apenas vale na decisão final (julgamento e recurso) ou
estende-se a todas as fases do processo? É discutível se vigora nas outras fases para lá do
julgamento e dos recursos (aí é clara a sua vigência), porque nestas não se imputam
responsabilidades, apenas se pretende assegurar o andamento do processo e, para tal, bastam
indícios de culpabilidade, o que é compatível com a existência de algumas dúvidas quanto à
culpa do arguido. Para se chegar a julgamento não se exige prova plena, basta haver indícios.

Alguma doutrina e jurisprudência consideram que o in dubio pro reu se estende a todas
as fases do processo, já FREDERICO COSTA PINTO confessa algumas dúvidas, afirmando
que a valer, valerá de forma diferente.

(iv) Preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo, por


forma a demonstrar a verdadeira inocência do arguido;

(v) Não incidência de custas sobre um arguido não condenado;

(vi) Por último, não haverá uma dimensão substantiva da presunção de inocência? Por
exemplo, deparamo-nos perante um crime de enriquecimento ilícito, ou seja, uma pessoa
apresenta um património incongruente com os rendimentos por si declarados. Se a pessoa
provar a origem lícita do património (herança, etc.) o processo é arquivado; se não, o processo
continua. Este foi o conteúdo de proposta de lei penal da AR, que pretendeu criar este tipo
incriminador. Tal diploma subiu ao TC que por duas vezes o considerou inconstitucional, por
encerrar uma inversão do ónus da prova imanente ao tipo incriminador: o MP constata uma
situação de facto e presume a ilicitude do enriquecimento, os elementos constitutivos do tipo.

Ora, tal violaria o princípio da presunção de inocência, pois passa o arguido/acusado a


ter de provar a sua inocência. Podemos retirar deste exemplo uma dimensão substantiva: os
tipos incriminadores não podem ser construídos por forma a inverter o ónus da prova de
culpabilidade do agente.

2. A classificação processual dos crimes. O regime do direito de queixa.

2.1. A classificação processual dos crimes.

2.1.1 Crimes públicos, semipúblicos e particulares: conceito e legitimidade processual do


MP. A base legal do seu regime e sua articulação com os crimes em especial. As técnicas
legislativas usadas: (i) um número específico, (ii) um artigo autónomo ou (iii) uma
remissão para artigo autónomo.

Nota: Começar o estudo desta temática pelo Esquema 1. Devemos atentar, que o nosso
Processo Penal em forma comum tem duas fases obrigatórias: inquérito e julgamento, sendo as
demais facultativas.

Como proceder à destrinça entre crimes públicos, semipúblicos e particulares? O


critério para tal operação será o das condições processuais para os crimes serem promovidos
num processo. Assim:

a) Nos crimes públicos, o MP pode iniciar o processo com o simples conhecimento dos
factos, numa decisão sua. Esta é uma decisão vinculada, mas que o MP toma por iniciativa
própria, sem ver a sua legitimidade condicionada para o efeito. Quando a lei nada diz quanto
ao procedimento criminal são crimes públicos e o MP tem legitimidade quanto a esse crime para
promover livremente o processo: Instaura o inquérito, deduz acusação e sustenta-a na instrução
e julgamento, interpõe recursos e promove a execução. Nos outros casos, não pode promover o
procedimento sem que a queixa ou acusação particular ocorra, o que resulta dos artigos 49 a 52.

b) Nos crimes semipúblicos, o início do procedimento criminal depende da


apresentação de queixa tempestiva por parte do ofendido ou de quem o representa. A queixa é,
pois, condição de legitimidade do MP para abertura do inquérito, sendo este o momento
processual em que este ato surge na marcha do procedimento penal. (49 e exemplos 143, 148,
153, 154 CP)
c) O crime particular é aquele cujo início do procedimento está condicionado à
apresentação de queixa tempestiva do ofendido, mas não só. O ofendido tem, também, de
requerer a sua constituição como assistente no processo, num prazo de 10 dias 3 (68º/2 e 246º/4,
CPP). O MP tem, ainda, de notificar o assistente para este informar se quer ou não acusar (285º,
CPP), i.e. deduzir acusação particular.
O encargo de deduzir acusação é do ofendido e não do MP. Este não pode decidir por si
só se arquiva o processo ou acusa. O MP pode apenas emitir um parecer ao assistente sobre se
existem ou não indícios suficientes para levar o caso a julgamento, nos termos do 285º/2, CPP,
num ato de mera transmissão de informação sobre a viabilidade do caso. É ilegal para o MP
arquivar o processo ou acusar agente sem cumprir o 285º, CPP, um ato processual vinculado.
A queixa, o requerimento da constituição como assistente e acusação particular após
notificação do MP são, por isso três momentos condicionantes da procedibilidade (50º/1,
CPP), cuja não verificação acarreta a falta de um pressuposto processual para o MP exercer a
ação penal, determinando o arquivamento do processo nos termos do 277º, CPP.
Existe uma importante consequência de regime desta destrinça: se o processo penal
tiver por objeto um crime semipúblico ou particular é admissível a desistência do
procedimento e a renúncia à queixa (51º/1, CPP). Se a legitimidade processual do MP
depende da iniciativa do ofendido, procede desta lógica que a mesma iniciativa pode pôr fim ao
processo penal.
Esta possibilidade de desistência do procedimento não existe nos crimes públicos 4,
pois estes são levados a cabo por exclusiva iniciativa do MP. Assim, este não pode desistir do
procedimento, que apenas cessa pelo decurso das suas normais fases, como por exemplo, o
arquivamento do processo.
Cumpre ainda sondar onde se encontra a base legal das matérias acima estudadas:
Todo o regime da queixa, desistência do procedimento e renúncia à queixa está no CP
(arts. 113º - 117º, CP). Já o regime geral da legitimidade processual do MP está nos arts. 48º e
ss., CPP, acrescido de umas provisões particulares.
No entanto, estes artigos não dão resposta à questão de sabermos se um crime é público,
semipúblico ou particular. Para tal, devemos olhar os tipos incriminadores em especial,
sondando, para o efeito, a parte especial do CP ou Direito Penal avulso.
Ex. 1: 203º, CP – no nº1 temos o tipo fundamental do crime, no nº 2 o tipo da tentativa e
no nº3 temos a natureza processual do crime, que é semipúblico, uma vez que o procedimento
criminal está dependente de queixa.
3
Este prazo é, em rigor jurídico, relativo à apresentação do requerimento para constituição como
assistente; e não para a efetiva constituição do ofendido como assistente. NOTA: v. o caso prático nº1,
pergunta 1, ponto 3, relativo à natureza deste prazo, ou seja, à questão de saber se o seu decurso implica
a perda do direito o ofendido se constituir assistente no processo penal.
4
A renúncia à queixa também não existe nos crimes públicos, já que a figura da queixa não tem qualquer
pertinência no regime desse tipo de crimes.
Ex. 2: 207º, CP – o procedimento depende de acusação particular. A natureza deste
crime é particular. 188 CP.
Ora, existem, na parte especial do Código Penal, várias técnicas legislativas de
definição da natureza processual de um crime 5. Se não existir nenhuma norma a especificar
se dado crime é semipúblico ou particular, então o crime será público. É isto que resulta do
art. 48º, CPP.
2.1.2. Conceitos de denúncia, queixa e participação.
A queixa é uma manifestação de vontade de um ofendido no sentido de pretender um
procedimento criminal. Pode visar ou não um suspeito, pode a queixa dirigir-se contra uma
pessoa específica ou contra uma pessoa indeterminada. Já a denúncia pode ser nominal ou
anónima, sendo apenas a transmissão de informação sobre a prática de um crime. Se um crime
for público, proferem-se denúncias, a mera transmissão de informação para que o MP decida ou
não, por si só, abrir um procedimento criminal. Se o crime for semipúblico ou particular, o ato
processual já será a queixa. Assim, a queixa incorpora a denúncia pois contém informação sobre
a prática do crime mas demonstra ainda vontade de início do procedimento.

A lei refere às vezes a participação, uma manifestação de vontade de pessoa coletiva


no sentido de se abrir um procedimento criminal. O artigo 49º/4, CPP equipara a participação à
queixa. A participação também consiste numa manifestação de vontade no sentido de iniciar um
procedimento criminal, apenas se distinguindo da queixa por meio da qualidade formal do
ofendido (uma pessoa coletiva na participação).

A denúncia, queixa ou participação decorrem no momento de abertura do inquérito.


Diferem, por isso da acusação, a imputação indiciária de factos criminalmente relevantes a um
arguido, que tem lugar no fim do inquérito. Na acusação são identificados os factos relevantes e
qual é o responsável, produzindo-se, posteriormente, a prova necessária.

Outra figura afim das três definidas neste capítulo, é a da desistência do procedimento,
que pode ocorrer desde o inquérito até ao fim do julgamento, constituindo uma manifestação de
vontade no sentido de pôr fim ao procedimento criminal.

2.1.3. Fundamentos materiais da classificação processual e suas implicações ao nível da


tramitação do processo penal.
O mais importante fundamento desta tricotomia processual será a gravidade dos factos.
Os crimes mais graves são crimes públicos, em que não está dependente do ofendido a abertura
de um processo para os sancionar, existem entidades públicas encarregadas de iniciar o
procedimento, para defender os interesses da sociedade a assegurar pelo Estado.

5
Ver Ponto 3, Tema 2, Sumário 24/09.
O raciocínio inverso é aplicado aos crimes semipúblicos e particulares, à luz do
princípio constitucional da intervenção mínima do Direito Penal. Por um lado, o OJ Penal
coloca, nos crimes de menos gravidade, na dependência da vontade da vítima a decisão de
abrir ou não um procedimento; se tal não for um desejo da vítima, mesmo que exista uma
conduta que preencha um dado tipo incriminador, esta não dará azo a um procedimento criminal
que impute responsabilidades ao seu autor. Por outro, pretende-se criar travões à tramitação
processual por forma a evitar procedimentos bagatelares, onerando o ofendido e não os
serviços do MP (evitando a sua saturação com delitos pequenos).

Cumpre especificar o caso dos crimes particulares, em que o legislador transfere uma
parte da litigância para o ofendido: é preciso, como já vimos, que este apresente queixa, faça o
requerimento de constituição como assistente, e que, após o MP o notificar para acusar, assuma
o encargo de deduzir acusação. O ofendido assume, aqui, um papel processual mais ativo,
implicando para si maiores encargos/custos. Daí que o legislador tenha de ter especial cuidado
ao criar crimes particulares. Ainda que estes concretizem o princípio da intervenção mínima,
não deixam de ter maiores custos para o ofendido. Por isso, a maior parte dos crimes são
públicos.

Outros fundamentos materiais desta classificação processual serão as consequências


para o próprio ofendido da instauração do procedimento criminal. Os crimes particulares e
semipúblicos estão dependentes da iniciativa do ofendido no processo penal, uma vez que a
publicidade a ele inerente pode agravar o dano que o crime causou (p.ex. em crimes sexuais em
relação aos quais se impõe uma maior discrição para não melindrar a vítima).

2.1.4. Relevância jurídica desta tricotomia processual: (i) início do procedimento (49º e ss.,
CPP); (ii) acusação (283º - 285º, CPP); (iii) objeto do processo (idem); (iv) processo
sumário (arts. 352º/2 e 255º/4); (v) fim do processo (desistência e renúncia – 116º, CP).
(i) Se o crime for semipúblico ou particular, o MP não pode iniciar procedimento sem
iniciativa do ofendido. Já no caso específico dos crimes particulares o MP (ii) nem pode
acusar sem a iniciativa do ofendido. Só o assistente/ofendido o pode fazer, mesmo que o MP
tenha toda a convicção de que há crime, pois tal está na dependência do assistente/ofendido. Se
este não quiser acusar, o processo é arquivado;

(iii) O objeto do processo é, sempre, limitado pela acusação. Ora, se a acusação estiver
dependente do assistente (caso dos crimes particulares), então o objeto do processo será
definido pelo assistente;

(iv) O processo sumário é uma forma processual mais simplificada e célere. Se o crime
for particular não admite processo sumário, pois este começa com uma detenção do infrator
feita pela polícia/ autoridade judiciária, etc (352º/2, CPP). Nos crimes particulares apenas há
lugar à identificação do formal do infrator (255º/4, CPP);

(v) Os crimes particulares e semipúblicos admitem a desistência e a renúncia da queixa


por parte de quem a apresenta até um certo momento do andamento do processo penal. Já nos
crimes públicos esta forma de cessar o processo não tem lugar. Caso o MP acuse, pede a
absolvição ou pede a condenação, mas nunca pode desistir. Assim como na fase de inquérito, ou
acusa ou arquiva, mas nunca pode desistir.

2.2. O regime do direito de queixa

2.2.1. Legitimidade (art. 113º, CP)

O nosso Código Penal usa um conceito fundamental para caracterizar a legitimidade do


direito de queixa: o conceito de ofendido (113º, CP).

Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada pelo crime. O ofendido é o titular do bem
jurídico objeto de tutela imediata e direta pelo tipo incriminador de que se acusa o arguido.

Por seu turno, cumpre olhar o conceito de bem jurídico. Efetivamente, este assume uma
dimensão substantiva (como lecionado em Teoria da Lei Penal), mas possui também um sentido
processual: permite determinar o círculo de agentes que pode assumir uma posição processual
específica que deriva do facto de o CP e o CPP utilizarem o conceito de ofendido como ponto
de partida da legitimidade material do direito de queixa. Assim se delimita a possibilidade da
vítima ou do representante da vítima participar no processo penal. O ofendido pode, por ser o
titular do BJ protegido pelo tipo incriminador, decidir da necessidade do processo penal.

2.2.2. Extensão subjetiva do direito de queixa (art. 113º e 114º, CP)

O conceito de ofendido é, como vimos supra, fulcral para definir a legitimidade do


direito de queixa, mas esta estende-se depois para o representante do ofendido (113º/4) ou para
quem lhe suceda (113º/2).

A representação do ofendido, deixa poucas dúvidas pois rege-se pelas normas


convencionais de suprimento da capacidade de exercício (verbi gratia pais representam o seu
filho menor a realizar uma queixa).

Olhemos, portanto, com mais detalhe o mecanismo de sucessão no direito de queixa do


ofendido. Este tem lugar, nos casos em que o ofendido vem a óbito sem renunciar ao direito de
queixa. A identificação das pessoas com legitimidade na sucessão indicadas pelo 113º/2 exige
alguma interpretação deste normativo:
i) Se a pessoa elegível a suceder no direito de queixa comparticipou no crime de que o
ofendido foi vítima, então o direito de queixa não se estende a essa pessoa;

ii) Os beneficiários desta sucessão serão, em primeiro lugar, os da al. a) do 113º/2; e,


apenas se não existir ninguém da primeira alínea, serão os da al. b), de forma supletiva. Há,
de facto, uma legitimidade subsidiária dos membros da al. b): mesmo que nenhuma das pessoas
da al. a) exerça o direito de queixa, se existirem nunca a legitimidade se estenderá para a al. b).
Se o ofendido só tinha um filho e um irmão e o filho renunciar ou desistir desse direito ou
simplesmente não o exercer, o direito de queixa não se transmite ao irmão do ofendido, como
resulta da expressão legal “na sua falta”. Quanto aos membros da al. a), não há qualquer
hierarquia entre si (por exemplo, não há ordem de precedência entre os filhos do ofendido),
podem todos exercer o direito de queixa de forma autónoma e se o fizerem não o retiram
às pessoas do mesmo grupo (113º/3). Importa, por fim, salientar que, destas pessoas, só quem
exerce o direito de queixa é que pode desistir dela. Quem não o fez não pode desencadear a
desistência da queixa e, consequentemente, o fim do procedimento criminal. Se, por exemplo,
foi o cônjuge, só ele pode desistir e não os filhos.

Existe ainda um mecanismo residual de tutela do ofendido deixado a cargo do MP,


explicitado no 113º/5, que postula as condições para que o MP dê início ao procedimento
criminal mesmo que sem queixa. Está desenhado para casos em que seria manifestamente
chocante que o ofendido não apresentasse queixa. Nestes casos, a lei acaba por converter um
crime semipúblico, dependente de queixa, num crime com um regime equivalente ao dos
crimes públicos. Nestes casos pode o ofendido desistir da queixa? A lei não resolve esta
questão, mas FREDERICO DA COSTA PINTO acha que, se o processo foi promovido pelo
MP, então os ofendidos e seus representantes ou sucessores perdem o direito de desistência da
queixa.

Há que sublinhar ainda o 113º/6, que em certas condições permite ao menor com mais
de 16 anos exercer o seu direito de queixa. Este caducará num prazo específico, o indicado no
115º/2. Pode exercer o direito de queixa a partir dos 16 anos e este só se extingue 6 meses após
completar 18 anos.

Olhemos, agora, o art. 114º, CP. Este trata dos casos em que, por exemplo, estamos
perante uma co-autoria, mas a queixa apenas é apresentada contra um dos co-autores. Diz o
114º que o MP pode avançar com um processo contra todos os comparticipantes, desde que
exista uma situação típica de comparticipação (co-autoria, instigação, autoria mediata e
cumplicidade), conforme aos artigos 26º e 27º, CP, não bastando uma mera pluralidade de
intervenientes.
Corresponde o conteúdo normativo do 114º à concretização do princípio da
indivisibilidade subjetiva da queixa: se o queixoso apresenta a queixa contra um dos
comparticipantes, esta estende-se juridicamente a todos os comparticipantes não visados pelo
queixoso. Este não pode dividir a queixa no caso de uma relação de comparticipação, pois
este efeito normativo de extensão da queixa transcende o ato processual do queixoso.
Pretende-se obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes,
perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em
razão do crime praticado. O titular do direito de queixa não pode submeter o exercício do seu
direito a condições. A condição resolutiva é irrelevante e a condição suspensiva torna a queixa
ineficaz.

A contrario, não existindo comparticipação, este princípio não vale. Por exemplo, se
existem 3 co-autores e 1 autor material autónomo, a queixa contra um co-autor estende-se aos
outros 2 co-autores mas não contra o autor autónomo. Aqui já seriam necessárias 2 queixas.
Distinguir entre a pluralidade de intervenientes e a pluralidade de intervenientes numa relação
de comparticipação. Como correspondente inverso da solução do 114º, CP, encontramos o
116º/3, CP6.

2.2.3. Caducidade do direito de queixa (art. 115º, CP e 51º, CPP)

O direito de queixa tem um regime precário, pois não subsiste por tempo indeterminado.
Tem um prazo de caducidade de 6 meses após o conhecimento do facto e dos seus autores
(115º, CP).

Se a lei pretende deixar na dependência do ofendido a abertura do processo penal, então


é normal que exija deste o conhecimento do facto para que este, em consciência, decida e
possa transmitir toda a informação relevante ao MP. Vislumbramos aqui uma dimensão
processual do princípio constitucional da tipicidade: exige-se conhecimento do tipo enquanto
facto típico para conformar o regime do exercício do direito de queixa, designadamente quanto
ao seu prazo.

Exige-se também, cumulativamente, o conhecimento por parte do ofendido do(s)


autor(es) do facto. Sem este conhecimento, o ofendido possui já um direito de queixa, mas o
prazo de caducidade não corre. Efetivamente, a queixa pode ser apresentada contra pessoa
incerta, e não necessariamente contra uma pessoa específica. A lei não exige que o ofendido
tenha um conhecimento integral da factualidade; o que é essencial é um conhecimento da
dimensão nuclear do facto típico. Só quando o queixoso conhecer o autor do facto é que começa
a correr o prazo da caducidade do direito de queixa.

6
Ver Ponto 2.2.4.
Se a queixa for contra pessoa incerta, tal facto suscitará, à partida, dificuldades de
investigação, mas tal não obsta ao exercício do direito de queixa.

De notar também, que, se a queixa for apresentada contra incerto, não pode depois ser
apresentada uma nova queixa sobre o mesmo facto, mas já dirigida a pessoa certa. FREDRICO
COSTA PINTO acha que deve a lei permitir, nestes casos, fazer uma nova queixa contra pessoa
certa. Aquilo que a lei permite, é que, se o inquérito estiver aberto, seja possível levar nova
informação ao MP (inclusive sobre os autores do facto); mas se processo já estiver fechado,
uma nova informação não pode ser apresentada, porque o direito de queixa já foi exercido, mas
FREDERICO COSTA PINTO acha que isso deveria justificar a permissão de novo exercício do
direito de queixa, levando, consequentemente à abertura de novo processo.

Ora, é admissível a repetição da queixa? Não, esta figura não está prevista na lei e isso
constitui um silêncio eloquente do legislador, para inviabilizar práticas abusivas de apresentação
de várias queixas ou a sua reformulação após a sua apresentação. O legislador podia ter criado
esta figura, existente noutros ordenamentos como o italiano, mas não o fez. Este entendimento é
sustentado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE e pelo Ac. Nº1/2011, STJ, em jeito de
obiter dicta.

A partir da morte do ofendido, já são outras pessoas titulares do direito de queixa. O


prazo conta-se a partir da morte ou em data posterior se só posteriormente tiveram
conhecimento do facto e dos seus autores. Se antes da morte o ofendido tiver renunciado ao
direito de queixa não há transmissão desse direito (113 nº2). Se o ofendido não tiver renunciado,
mas tiverem decorrido os seis meses após o conhecimento dos factos e dos seus autores pelo
ofendido sem que este se queixe, o direito de queixa extingue-se e não se transmite. O mesmo
raciocínio vale para o caso do ofendido se tornar incapaz. Se for menor ou não possuir
discernimento, os dois requisitos têm de verificar-se no representante legal. Relativamente ao
nº4, a extinção do prazo referente a um dos titulares não inviabiliza a dedução de queixa pelos
outros titulares, dentro dos respetivos prazos e a apresentação de queixa por um não inviabiliza
o exercício da queixa pelos restantes, dentro dos respetivos prazos. Já o nº3 é controverso:
Impossibilita o exercício do direito pelo ofendido que desconhece os factos e os seus autores
mesmo depois de passarem 6 meses dos 18 anos e concede ao ofendido que conheça o facto e os
seus autores um prazo alargado de 2 anos e 6 meses para apresentar queixa, contados desde o
dia em que completou 16 anos (115 nº2 conjugado com o 113 nº6).

2.2.4. Renúncia e desistência (art. 116º, CP)

Nos crimes semipúblicos e particulares, é possível efetuar uma renúncia ao direito de


queixa antes do seu exercício, ou desistir dela depois de iniciado o procedimento.
Em crimes públicos não pode uma compensação/reparação do ofendido ser um motivo
de renúncia ao direito de queixa, ela simplesmente não pode ter lugar. O ofendido pode ser
compensado, e isso até pode ser uma atenuante na medida da pena, mas tal não travará o
processo penal. Nos crimes semipúblicos e particulares é possível a entrega de compensação
ao ofendido ter como contrapartida a renúncia ao direito de queixa, isto pode ser
contratualizado.

Diz-nos o 116º/1, que a renúncia pode ser expressa ou tácita. A renúncia pode, ainda, ter
lugar antes ou depois da prática do facto jurídico-penalmente relevante. FREDERICO COSTA
PINTO não descortina na lei qualquer obstáculo a que ela seja feita exclusivamente num desses
dois momentos. A única condicionante é que o facto seja constitutivo de crime semipúblico ou
particular, os únicos em que a figura da queixa existe – a matéria da renúncia tem de ser
renunciável. Por exemplo, se uma pessoa renuncia ao seu direito de queixa antes do facto e,
aquando da sua prática ele assume-se como constitutivo de um crime público. Sendo vários os
titulares do direito de queixa, a renúncia feita por um deles produz efeitos quanto ao
renunciante, mas não afeta o direito dos outros titulares dentro da respetiva classe, pelo que só
prejudica em definitivo o exercício do direito se for feita pela totalidade dos titulares do direito
dentro da respetiva classe. Mesmo entendimento para a desistência.

Já a desistência é um ato processual negativo, tendo um regime bastante amplo. Nos


crimes semipúblicos e particulares, esta pode ser feita até à publicação da sentença da
decisão da 1ª instância. Com efeito, em função do provado em julgamento, podem o arguido e
o ofendido chegar a um acordo (os interesses protegidos pelas normas penais serão neste tipo de
crimes disponíveis) que, sendo benéfico para ambos, ponha cobro ao processo (este quadro
hipotético só pode acontecer, logicamente, em julgamento quando o arguido percebe que pode
ser condenado e tenta chegar a um acordo com efeito extintivo).

A desistência está sujeita a uma cláusula de não oposição do arguido, só procedendo


nesse caso. Em caso de oposição, a desistência da queixa existe, mas é ineficaz, não produz
efeitos. Porquê? Não se coloca exclusivamente nas mãos do ofendido o destino do processo;
este também implica consequências para o arguido (imagem, desgaste, etc.), que pode ter
interesse em continuar o processo. De outro modo, era possível ao ofendido gerir o processo
conforme a sua viabilidade ou o sucesso que está a ter.

Cumpre esclarecer uma questão: nos crimes particulares a oposição do arguido à


desistência da queixa implica uma obrigatoriedade de acusar por parte do assistente cuja
desistência se tornou ineficaz? A resposta tem de ser negativa, uma vez que não existe uma
norma expressa no ordenamento português que preveja essa solução. Com efeito, quando
falamos da queixa e da acusação particular, estamos a falar de duas realidades distintas. Por um
lado, o queixoso desiste da queixa e o arguido opõe-se. Isto, segundo o 116º/2, implica que o
MP não possa homologar a desistência e extinguir o processo por esta via. Assim, a desistência
é, como já vimos, ineficaz. A seguir, continuado o processo, o MP está obrigado pelo 285º a
notificar o assistente para acusar e, aí, a oposição do arguido não dita uma obrigatoriedade do
assistente acusar, pois tal não está previsto em lei expressa. Perante isto, a falta de um
pressuposto processual do crime particular, o MP deve extinguir o processo por outra via: o
arquivamento (277º/1, in fine, CPP).

A lei equipara a ausência de resposta do arguido à sua não oposição à desistência. O


116º, CP deve, para o efeito, ser conjugado com o 51º/3, CPP que diz que, perante uma
desistência de queixa o MP deve transmitir esta informação ao arguido para este se opor ou não
a ela. O arguido, querendo opor-se, deve fazê-lo expressamente. Se ele nada dizer tal equivale a
uma não oposição e a desistência procede.

Cumpre saber se o direito de oposição, em casos de comparticipação, é individual ou de


todos em conjunto? FREDERICO COSTA PINTO considera que parece resultar da lei que este
direito é pessoal, porque se não o for, então estará um dos comparticipantes a decidir do
processo quanto aos outros arguidos. Mas esta solução individual traz o problema de o MP
continuar o processo apenas contra aquele que se opôs, tornando juridicamente irrelevante as
partes da factualidade referentes aos outros. Não deixa, pelos fundamentos supramencionados,
de ser a melhor solução.

A desistência da queixa produz efeitos contra todos os comparticipantes – 116º/3, CP.


Nisto se traduz o princípio da indivisibilidade subjetiva da desistência da queixa, que
também vale só para casos típicos de comparticipação.

O representante legal só pode desistir ou renunciar depois de a pessoa ficar incapaz e


durante essa incapacidade ou até fazer 16 anos. Quanto ao nº4, a desistência (representante legal
não o pode fazer nos casos do 113 nº5) prevalece sobre a decisão do MP de proceder
criminalmente (113 nº5) e sobre a queixa apresentada pelo representante (113 nº4) e deve ser
homologada se não houver oposição do arguido. Mesma solução para o incapaz que recupera,
pois, a analogia favorece o arguido. Irrelevantes condições resolutivas e ineficazes condições
suspensivas na renúncia e desistência da queixa.

2.2.5. Aplicação à acusação particular (art. 117º, CP)7

O artigo 117º, CP contém uma cláusula de extensão do regime da queixa para a


regulamentação da acusação particular. Nele, o legislador diz que o regime da queixa é
correspondentemente aplicável à acusação particular, ou seja apenas quando há correspondência

7
Basta ler o artigo indicado.
entre estes institutos da queixa e da acusação particular que justifique esta equiparação
normativa. Apresenta especial dificuldade esta avaliação no que toca o regime da renúncia e da
desistência da queixa, em especial o princípio da indivisibilidade subjetiva (116º/3 e 114º, CP).

Ora, a doutrina diverge:

Uma parte da doutrina, encabeçada por GERMANO MARQUES DA SILVA e PAULO


PINTO DE ALBUQUERQUE considera extensível este regime à acusação particular por força
da remissão genérica do 117º, CP. Aplica-se, assim, à acusação particular o princípio da
indivisibilidade subjetiva8. GERMANO MARQUES DA SILVA considera que, quando o
assistente deduz acusação contra um dos comparticipantes, aí se verifica um caso de renúncia ao
direito de acusação particular relativo a outro dos comparticipantes, renúncia esta que se
estenderá aos restantes (inclusivamente ao único acusado) por força do 116º/3 quando analisado
juntamente com o 117º. Assim se explica a impossibilidade de dividir a acusação particular,
com a consequência de uma renúncia extensível a todos os agentes que praticaram o facto; salvo
nos casos em que o assistente diga expressamente que não acusa alguns dos comparticipantes
por falta de indícios de prova em relação à sua participação no ilícito-típico. Por esta lógica, o
processo também se extingue se o titular do direito desistir da acusação (já depois de feita) em
relação a um dos comparticipantes.

Já FIGUEIREDO DIAS diz que cabe ao assistente delimitar o âmbito objetivo e


subjetivo da acusação. Assim, ele pode decidir quem acusar e do que os acusar. COSTA PINTO
concorda com FIGUEIREDO DIAS. Se o âmbito objetivo e subjetivo do processo é deixado ao
assistente, no qual a lei deposita o encaminhamento do processo não se pode exigir que a
acusação seja, contra a sua vontade, totalmente completa. Ora, uma interpretação que faz com
que o assistente tenha de acusar todos os comparticipantes ou nenhuns (questão de tudo ou
nada) sem o querer fazer é contraditório com a ratio do instituto da acusação e dos próprios
crimes particulares, não se preservando a liberdade processual do assistente a eles inerente.
Assim, estava-se a obrigar a fazer algo por excesso ou por defeito contra a sua vontade. Se a lei
previsse expressamente a solução defendida pela outra parte da doutrina, tal seria de aceitar.
Mas não o faz, pelo que é de aceitar que o assistente divida subjetivamente a acusação.

Nota: Ver o Caso Prático 1.

3. A estrutura acusatória e o modelo histórico do processo penal

3.1. O conteúdo da estrutura acusatória (art. 32º/5, CRP)


Para que um modelo de processo penal se diga organizado mediante uma estrutura
acusatória, é necessário que contemple uma cisão fundamental entre quem acusa e quem julga.
8
Naturalmente que tal está restringido aos casos de comparticipação típica, campo de aplicação deste
princípio.
Esta estruturação do processo penal assume uma dimensão garantística, fundamental
para a defesa do arguido, pois permite garantir a imparcialidade do julgamento: o tribunal para
ser imparcial não pode estar previamente investido/comprometido com a acusação, só devendo
decidir depois de produzida a prova. Se, pelo contrário, estiver envolvido na acusação terá
necessariamente de formular um pré-juízo do processo, algo indesejável em matéria de garantias
da defesa.
Quando o CPP afirma que o processo penal tem uma estrutura acusatória, é isto que
quer significar, esta divisão processual fundamental entre quem acusa e quem julga.
A regra contida no 32º/5, CRP implica uma opção específica, em termos histórico-
políticos, muito rica de conteúdo. Tem reflexos na modelação estrutural e na organização do
processo penal. Os processos penais podem ser do tipo inquisitório, acusatório ou revelar
caraterísticas mistas
3.2. O modelo inquisitório (“juiz-acusador”)
O modelo inquisitório traz-nos um processo penal exclusivamente dominado pelo
interesse do Estado, não se concedendo ao interesse das pessoas qualquer valoração autónoma.
O único vetor processualmente relevante é a liberdade inteiramente discricionária do julgador.
As suas caraterísticas essenciais assentam, em termos de organização processual, numa
concentração do poder de investigar, acusar e julgar em apenas uma entidade, o juiz.
Com efeito, no modelo inquisitório9, o juiz (sem independência do poder político)
concentra as várias competências do processo, investiga e instrui o caso, deduz a acusação e
decide com base neste seu trabalho prévio. São dele a grande parte das competências em
matéria de investigação e, em geral, de condução de todo o processo o que, aliado ao seu cariz
secreto (v. infra) tornava este modelo processual dificilmente controlável.

O processo inquisitório sobrevaloriza a descoberta da verdade material, sendo os meios


de prova funcionalizados e subalternizados em relação a esse desiderato. Assim, a confissão era
o mais importante meio probatório, podendo recorrer-se à tortura ou a outros mecanismos
extremos de obtenção de prova para chegar à confissão e à verdade material, sem consideração
pela liberdade da pessoa arguida 10 ou pela veracidade do que fosse por ela confessado
(desconsideração de aspetos elementares da pessoa humana). A confissão, existindo, implicava
a suficiência da produção de prova e permitia renunciar a outros meios probatórios, ainda que
incompatíveis com ela.

9
Este modelo tem origem no Baixo Império Romano, tendo sido implementado nos tribunais da
Inquisição (vide o Processo dos Távoras). Era o modelo prevalecente nessa época, pois o direito canónico
era o mais completo e organizado ramo de direito e nele estava implementada uma estrutura processual
inquisitória. Este modelo não deixou de ter uma grande influencia na formação do processo penal nos
estados da europa ocidental, tendo sido adotado pelos estados totalitários do séc. XX, como a Alemanha
Nazi ou a URSS.
10
Vista como mero “objeto” de inquisição, e não como sujeito atuante no processo.
No modelo inquisitório, o processo era (i) secreto, exceto na fase da execução da
sentença condenatória que assumia um cariz público. Era igualmente (ii) um processo cuja
totalidade dos atos processuais eram reduzidos a escrito; e (iii) não contraditório, não se
valorizando a contrariedade dos depoimentos e meios de prova, que podia ser resolvida pela
prevalência absoluta da confissão.

O juiz é encarado como um funcionário, um prolongamento do poder e não uma


instituição autónoma. Este era ainda um processo que podia terminar com uma absolvição
meramente formal (uma simples absolvição da instância), ou seja, o arguido não era absolvido
da sua culpa, mas antes da instância do processo, podendo o caso contra ele ser reaberto noutra
sede a qualquer momento. A falta de prova sobre os factos não fazia, assim, caso julgado
material: o processo poderia ser reaberto para se obterem melhores provas.

3.3. O modelo acusatório ou adversarial (“juiz-árbitro”)


Este modelo processual teve origem na Magna Charta e na mundividência do Estado
liberal, postulando uma série de garantias em relação ao julgamento dos crimes. Carateriza-se,
no plano da estrutura e articulação das fases do processo penal, pela separação entre a entidade
que investiga e acusa e a entidade que julgará os factos, ou seja, quem investiga e acusa não
julga e, por outro, quem julga não investiga previamente os factos nem intervém na acusação.
Esta separação funcional e material implica a intervenção de sujeitos e entidades diferentes nas
respetivas fases processuais. Sobretudo uma ideia fundamental de separação de poderes: o rei e
os tribunais não podiam estar unidos na condução do processo penal, não devendo o monarca
interferir no exercício do poder judicial11.
Assim, deve existir uma separação clara entre acusação e julgamento, ideia oposta ao
preconizado no modelo inquisitório. O tribunal devia estar separado do Rei, mas também do
procurador da Coroa (acusador). O Estado, através do seu representante legal, já não pretende a
todo custo a descoberta da verdade material, mas antes a realização de uma pretensão punitiva
contra indivíduo. O processo desenrola-se com base num diálogo processual entre a acusação e
a defesa, perante um juiz relativamente passivo e árbitro da disputa judicial (juiz-árbitro). O
arguido passa a ser sujeito processual e não o objeto do processo e as partes são responsáveis
pela promoção e eficácia da prova realizada e o debate processual faz-se à luz do princípio do
contraditório.
No centro da valoração processual está, agora, o indivíduo autónomo, dotado de direitos
a si inalienáveis. Este é, de facto, um processo muito modelado pela vontade das partes, que
podem, genericamente, conformar todo o andamento do caso, verbi gratia chegando a acordo
quanto ao objeto do processo. As partes podem, assim, dispor com alguma amplitude do objeto
11
Embora este fosse um pressuposto fundamental da ideia de justiça penal, o Rei podia intervir no
processo penal em matéria de absolvição, através do exercício do seu direito de graça. Estava-lhe vedada
a prática de atos condenatórios.
do processo, não vigorando um princípio de indisponibilidade do objeto do processo para a
parte acusadora.
Neste modelo, o processo é visto como um litígio interpartes (a acusação, corporizada
no Estado que quer punir os crimes e na defesa do indivíduo que quer afastar de si quaisquer
medidas privativas da liberdade, armado de um verdadeiro direito de defesa e das suas garantias
fundamentais individuais) que se defrontam numa posição de paridade, por forma a convencer o
juiz e o júri. Assiste-se, para o efeito a uma distribuição do ónus da prova. A acusação tem de
convencer o tribunal e o júri da culpa do arguido que, até este convencimento, é considerado
inocente. Verificamos, aqui uma existência rudimentar do princípio da presunção da inocência.
Do acima exposto flui a importância do (i) contraditório, como matriz essencial deste
modelo e (ii) da oralidade, como instrumento de convencimento do tribunal. Importa referir
também a caraterística da publicidade.
É, portanto, criado um modelo que não prossegue uma obsessiva descoberta da verdade.
Esta será o que resultar da permanente dialética adversarial interpartes que se pretende que o
tribunal decida de forma independente, enquanto julgador e não acusador (nas palavras de
GIUSEPPE BETTIOL, um tribunal-árbitro).
Nota: Podemos, agora, perceber que os modelos inquisitório e acusatório são perfeitamente
opostos. Contudo, nenhum deles existe já na sua matriz pura. Ainda assim estes densificaram
características históricas hoje presentes na base dos modelos processuais contemporâneos.
3.4. O modelo misto/reformado/napoleónico
Este modelo tem origem no Império Napoleónico, como o Código Processual Penal de
1808, à data vigente.
Nele considera-se que o processo penal pode ter um regime não transversal a todas as
fases do processo, podendo existir fases com predominância inquisitória e outras com
prevalência acusatória. Assim, na fase anterior à acusação este era um processo escrito, secreto
e sem contraditório (modelo inquisitório); sendo na fase do julgamento mais marcado pela
oralidade, publicidade e contraditório como fatores de controlo da justiça penal (modelo
acusatório).
A maior parte dos modelos processuais penais da atualidade são mistos: até ao
julgamento não há uma fase de defesa mas antes de descoberta da verdade. Quando alguém é
investigado não é responsabilizado, apenas se averigua a suficiência de factos para proceder a
julgamento. Indo a julgamento, aí já se pretende imputar responsabilidades ao arguido.
3.5. O modelo acolhido no CPP: um processo basicamente acusatório completado por um
princípio (supletivo) de investigação (FIGUEIREDO DIAS)
a) Separação de fases: inquérito/julgamento (262º e ss./311º e ss., CPP)
b) Impedimentos (40º, CPP)
c) Vinculação temática do tribunal de julgamento (358º/359º, CPP)
d) Um inquérito inquisitório vs. um julgamento acusatório
e) O princípio da investigação (340º, CPP)
f) Transmissibilidade da prova material
g) Conhecimento integral dos autos
FIGUEIREDO DIAS defende que já não existem modelos acusatórios puros. Existem,
isso sim, modelos mais ou menos acusatórios. Deste modo, procede à caracterização do modelo
português como um modelo basicamente acusatório mas complementado com um princípio
de investigação.

Acusatório porquê? Pela cisão fundamental entre quem acusa e quem julga 12. É
fundamental num Estado de Direito reconhecer no processo penal a tensão dialética entre a
tutela dos interesses do arguido e a tutela dos interesses da sociedade, representados pelo poder
democrático do Estado, encontrando a fórmula adequada para a composição de tais interesses.
Tal só pode ser assegurado na lógica adversarial do modelo acusatório.

Não obstante, o tribunal de julgamento (que não investigou previamente os factos, nem
teve intervenção na acusação) tem poderes autónomos de investigação para descobrir a verdade
dos factos13, estando sempre limitado pelos termos da acusação (tem de respeitar o objeto do
processo) – daí que o modelo português se diga complementado por um princípio de
investigação – 340º, CPP. Se esta limitação não existisse, o tribunal violaria a estrutura
acusatória, pois estaria a investigar um caso e a conduzi-lo a julgamento decidido por si. O
tribunal não assume a posição passiva do processo acusatório puro, orienta-se pela busca da
verdade material, mas agora à luz do contraditório, tendo poderes de direção de audiência que se
podem sobrepor à dinâmica da acusação e da defesa (322 ss) e poderes de investigação (340
nº1) que lhe conferem um estatuto muito mais ativo.

Assim, os poderes de investigação do tribunal de julgamento são supletivos e


complementares (naquilo que se afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão

12
V. Ponto 3.1.
13
P. ex. se o tribunal achar que é preciso pedir uma perícia, não está dependente do MP ou da defesa,
pode ordená-la por iniciativa própria. O mesmo se aplica se pretender ordenar buscas ou apreensões.
da causa, como diz o art. 340º, CPP). O tribunal, até fazer este esforço oficioso de investigação
autónoma nunca pode invocar o in dubio pro reu como critério decisório perante uma alegada
insuficiência factual ou probatória.

Este poder de investigação, ainda que supletivo, é suficiente para afirmar que o modelo
não é puramente acusatório e que é, por isso, um processo misto. Podemos encontrar ao longo
do CPP várias manifestações desta caracterização do nosso modelo processual:

a) Existe uma clara separação de fases: o inquérito é da competência do MP (263º,


CPP) e o julgamento cabe a um tribunal (311º, CPP) que não esteve envolvido nas fases
anteriores do processo;

b) Regime dos impedimentos (40º, CPP): um tribunal que tenha um membro que
esteve envolvido na investigação do processo não pode intervir no julgamento, garantindo-se
assim a imparcialidade real do julgador.

c) O tribunal julga e aprofunda a investigação dentro dos limites do conteúdo factual da


acusação, não podendo conduzir o processo para lá do âmbito da acusação construída
anteriormente. Esta é uma garantia de preservação da estrutura acusatória;

d) A fase de investigação é predominantemente escrita, não contraditória e passível de


ser sujeita ao sigilo (segredo de justiça) – inquérito inquisitório. Já o julgamento é público,
marcado pela oralidade e pelo contraditório – julgamento acusatório. Aqui se divisa
claramente a natureza mista do nosso processo penal.

e) O tribunal tem poderes de investigação autónomos (v. supra neste ponto).

f) Existe uma transmissibilidade plena dos autos/prova material da fase de inquérito


para a fase do julgamento. Este trânsito integral implica que seja apenas necessário examinar a
prova documental e repetir a prova pessoal/testemunhal perante o tribunal de julgamento.
Porque se deve repetir a prova pessoal? Por forma a garantir a convicção e imparcialidade do
julgador. Mas o caso não deixa de transitar todo para o julgamento, ao contrário de outros
modelos de processo vigentes atualmente.

g) O tribunal de julgamento tem um conhecimento de todos os autos, recebe o processo


todo – todos os autos escritos, podendo assim consultar todo o caso produzido até aí. Esta é a
dimensão física do trânsito integral falado na alínea anterior, uma decorrência dele.
FREDERICO COSTA PINTO concorda com isto, pois vê o processo penal como um todo.
Além do mais esta prática traz vantagens para efeitos de convicção do julgador, sem prejuízo do
normal contraditório.
4. As formas de processo e a tramitação do processo penal

4.1. A forma de processo comum. As formas especiais: sumário (381º - 391º); abreviado
(391º-A – 391º-F) e sumaríssimo (392º - 398º). Diferenças entre as formas especiais e a
forma comum.

Existe no CPP uma forma de processo comum e três especiais 14. A forma comum está
representada no Esquema 2, e aplica-se sempre que não se aplicar uma das formas especiais –
aplicação residual. É a que merece a regulação mais densa e organizada (241º e ss.), sendo,
assim, a mais solene. Já as formas especiais são mais expeditas: (i) o processo sumário, (ii)
abreviado e (iii) sumaríssimo.

(i) A forma sumária de processo começa com a detenção em flagrante delito, fora de
um contexto processual formalizado. O arguido é, em seguida, apresentado ao MP (382º) que
decide, de forma sumária, se leva o arguido ao julgamento (384º), numa curta fase preliminar ao
julgamento. Em seguida e se cumpridos os pressupostos anteriores, leva-se a cabo o julgamento
(387 e 389º), sem que haja abertura do inquérito. A forma sumária prescinde do inquérito e
da instrução, nasce fora deste contexto processual. É usada para a pequena e média
criminalidade, uma vez cumpridos os pressupostos do 381º (v. artigo).

(ii) A forma abreviada foi acrescentada ao CPP em 1998, estando desenhada para casos
em que não se pode realizar a forma sumária, mas em que as provas indiciárias são
simples e evidentes (391º-A/1 e 3), pretendendo-se, por isso, obstar a que este tipo de casos
siga a forma comum. A forma abreviada consiste num “processo comum simplificado”: em
primeiro lugar, temos um inquérito simplificado, consistindo no auto de notícia que se substitui
à investigação; em segundo lugar, não há lugar a instrução, desde a reforma do CPP de 2007; e,
por último, tem um julgamento simplificado (391º-E).

(iii) O processo sumaríssimo tem a si subjacente a ideia de promoção de um consenso


que possa apaziguar o conflito entre ofendido e agente (392º). Nem sempre o arguido tem
interesse em litigar, nem a sua parte contrária. Assim, feita a investigação, o MP deduz a
acusação. Mas, em vez de indicar quais os factos a imputar ao arguido e ir a julgamento, o
MP propõe uma sanção concreta para ele. Se o juiz não se opuser a essa sanção, notifica o
arguido da mesma e, se este não se opuser, esta proposta passa a ser o conteúdo da decisão
lavrada (394º - 398º).

Ratio: diminuir a litigância no processo penal, aplicando-se por excelência nos crimes
de menor gravidade.

14
Existem ainda alguns processos especiais com localização avulsa ao CPP. Em bom rigor, serão
pequenas adaptações ao processo comum, como o processo penal militar ou o processo penal tributário.
Em termos processuais, é na fase da acusação que é decidida a adoção da forma
sumaríssima: o MP apresenta os factos e acusa o arguido, propondo ir a julgamento
sumaríssimo e sugerindo, para o efeito, sanções concretas. Não há instrução, há julgamento mas
sem audiência de julgamento. Porquê? Porque o processo decorre por escrito, é por escrito que o
juiz se pronuncia sobre a sanção proposta pelo MP, que a envia ao arguido e que este se opõe ou
não à sanção. Se o arguido não se opuser à sanção, a decisão lavrada transita em julgado. Não
há, pois, recurso das decisões proferidas em processo sumaríssimo; estas tornam-se
definitivas.

Subjacente às formas especiais do processo penal está a ideia de que os casos de


pequena e média criminalidade não devem ser objeto de um processo formalmente complexo e
solene que consuma recursos a ser reservados para processos mais graves. Há uma tentativa de
diversificação das soluções processuais para os vários tipos de crime, em função da sua
gravidade. A pequena e média criminalidade, em regra, mede-se pelo limiar máximo dos 5 anos
de prisão. Assim, os crimes com penas até 5 anos regem-se, em regra, por formas especiais; e
aqueles com pena máxima superior aos 5 anos regem-se pelo processo comum, a não ser que
possuem uma diminuta gravidade.

Desde a reforma de 2007 do CPP que a instrução foi abolida das formas especiais. Por
exemplo, na forma abreviada entre 1998 e 2007 existia uma instrução simplificada, o debate
instrutório, mas até isso foi abolido: 286º/3, CPP. Assim, quando se opta por uma forma
especial de processo, está-se a prescindir da instrução.

4.2. A prevalência das formas especiais

A prevalência das formas especiais explica-se: (i) pela normal lógica de lex specialis
que prevalece sobre a lex generalis, na circunstância a forma comum; (ii) mas também pelas leis
de execução criminal, que conferem prioridade à promoção destas formas de processo, para
alcançar uma melhor distribuição da justiça criminal.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que, verificados os pressupostos de


cada forma especial, estas são obrigatórias para o MP. Para FREDERICO COSTA PINTO, esta
obrigatoriedade não advém da lei, o que dela resulta é, tão somente, uma lógica de prevalência,
deixando-se sempre à escolha do MP segui-las ou não.

No entanto, COSTA PINTO não deixa de reconhecer que, por vezes, a dinâmica do
processo acentua esta prevalência das formas especiais. Por exemplo, quando se dá uma
detenção em flagrante delito quase que é pré-encaminhado o processo sumário, pois os
indivíduos são logo levados ao MP para este os conduzir a julgamento. A lógica do flagrante
delito convoca o processo sumário, pelo que a sua prevalência sobre a forma comum é
acentuada.

4.3. A tutela (forte) de legalidade das formas especiais (119º, f))

O artigo 119º, f) prevê uma ilegalidade/nulidade insanável quando se adopte uma forma
de processo especial fora dos casos previstos na lei. O princípio da legalidade processual tem
uma proteção enorme nas formas de processo, ou seja, só em casos muito tipificados na lei se
pode recorrer às formas especiais; se algum dos seus pressupostos faltarem, e mesmo assim elas
forem adotadas, então o processo é nulo.

COSTA PINTO acha que esta tutela forte da legalidade das formas especiais deriva de
uma intenção do legislador de que a configuração que deu a cada forma especial de processo
não fosse adulterada pela prática judicial.

4.4. As fases do processo comum.

Alguma doutrina diz que o processo na forma comum terá 3 fases: a instrução (que é
facultativa) e o inquérito e o julgamento, fases obrigatórias.

Existe na tramitação do processo comum uma afetação das diversas fases do processo a
diferentes entidades. A fase do inquérito está afeta ao MP, competindo a esta entidade a sua
direção; a instrução é dirigida por um magistrado judicial (Juiz de Instrução Criminal) e o
julgamento está afeto a um magistrado judicial (ou a um coletivo de juízes) que não teve
intervenção nas fases anteriores. Esta separação de fases e entidades resulta do 32 nº5 CRP. A
estrutura acusatória do processo penal supõe uma separação formal e material entre a entidade
que dirige o inquérito e deduz a acusação e a entidade que julgará os factos. Garantia de
imparcialidade na avaliação dos factos e do direito aplicável: quando o juiz do julgamento
recebe o processo não está viciado pelo facto de ter tido uma participação na sua instrução, nem
condicionado pelo enquadramento jurídico dos factos realizado na acusação. Quem faz a
instrução não tem intervenção na direção do inquérito nem na fase do julgamento. Pode
controlar a acusação ou a decisão anterior de arquivamento, consoante os casos, mas não pode
nunca intervir depois no julgamento (40 CPP). Uma pessoa pode estar colocada como juiz de
instrução numa comarca e depois passar para o tribunal de julgamento no ano seguinte e ser-lhe
distribuído o mesmo processo, agora em julgamento: movimentações anuais de magistratura.
Como se vê, ele não poderá ser juiz neste processo.

COSTA PINTO diverge desta parte da doutrina, considerando que há 5 fases do


processo penal: 2 obrigatórias, a instrução e o julgamento e 3 facultativas: a da obtenção da
notícia do crime (se houver detenção em flagrante delito então esta fase dá-se, ainda que não
esteja necessariamente prevista, a instrução e o recurso (se uma das partes não se conformar
coma decisão).

Para COSTA PINTO, antes do inquérito há processo e depois do julgamento há


processo. Existem, de facto, momentos anteriores ao inquérito em que se praticam atos de
natureza processual, geradores da aplicação de regimes jurídicos muito relevantes que só são
compatíveis com a existência de processo nesta fase. A mesma ideia é aplicável aos momentos
posteriores ao julgamento, em relação aos recursos.

Algumas das afirmações que dizem que só há processo no inquérito tem a sua origem
histórica na ideia de que não deve haver investigação policial autónoma no processo, prática que
o CPP pretendeu abolir, fazendo com que a investigação policial esteja sujeita ao controlo do
MP. Para esta corrente a existência de processo antes do inquérito, permitiria a existência de
investigação policial autónoma.

Mas mesmo que esta premissa seja aceite, não deixa de ser compatível com a ideia de 5
fases do processo penal de COSTA PINTO. O que este autor defende é que a existência de
processo antes do inquérito, implica somente que o agente ganhe logo o estatuto jurídico-
processual de arguido, recebendo todas as garantias de defesa a ele associadas e podendo
praticar atos processuais numa fase (precária, é certo devido à não abertura formal do
inquérito) que não deixa de ser processo penal; recusando que esta sua tese pretenda legitimar
investigações policiais autónomas. Por exemplo, no processo sumário antes do julgamento
quando alguém é detido: há arguido (por força de lei, 58) mas não há processo? Isto para
COSTA PINTO é uma contradição insanável, só vindo confirmar a sua tese de que tem de haver
processo na fase preliminar à do inquérito. Esta fase processual anterior ao inquérito não visa
legitimar investigações autónomas, mas regular atos anteriores ao inquérito que já devem ser
considerados parte do processo.
A Forma de Processo Comum

5. O “momento” preliminar ao inquérito/de obtenção de notícia do crime (241º -


261º)

Se o procedimento penal não for promovido pelo MP, este inexistirá juridicamente. Ora,
para que o MP possa promover a abertura de um processo, torna-se necessário que obtenha
informação de que foi perpetrado um crime (a notícia do crime), algo que é possível pelos
meios elencados no 241º. Recebida a notícia do crime, o MP deve abrir o processo. Mas o MP
não tem, porém, de o promover perante qualquer informação da eventual prática de um crime.
Se há casos que a lei considera desde logo como notitia criminis, impondo a promoção do
processo, existem outros casos em que a informação não o é, embora o seu transmissor a
qualifique como tal. Pode ainda a notícia não merecer credibilidade. Nesses casos não será
promovido o processo.

Em suma, o MP deve promover necessariamente o processo se a notícia do crime lhe


é transmitida na forma estabelecida no 241º; mas se esta lhe for transmitida informalmente,
só o deverá fazer se se convencer da seriedade da notícia.

Este é um “momento” do processo, prévio ao inquérito, onde se praticam atos


processuais relevantes não uma fase, em rigor linguístico. Alguns aspetos de regime relevantes:

a) a denúncia (246º)

A denúncia é a transmissão de informação sobre a prática do crime, informação


relevante para iniciar o processo. Nela nada se prova. Se relevante, valerá como notícia do
crime para a entidade competente (241º), que assim abre o processo penal.

Para que o MP tome conhecimento de factos com eventual relevância criminal, conta
para tal com a colaboração dos cidadãos, mediante denúncia facultativa (244º), exigindo essa
colaboração às pessoas/entidades identificadas no 242º (denúncia obrigatória).

Os particulares não estão obrigados a denunciar os factos criminalmente relevantes de


que tenham conhecimento (244º). Mas, para certas entidades, a denúncia é obrigatória nos
termos do 242º. Se as entidades elencadas neste normativo tomarem conhecimento da
ocorrência de um crime têm obrigatoriamente de o levar ao conhecimento do MP.

Nota: no contexto da denúncia obrigatória, ver 242º/2.

A doutrina maioritária entre nós procede a uma interpretação específica do 242º/3, no


sentido de afirmar que só há denúncia obrigatória nos crimes públicos, ou seja, exclui o dever
de denúncia das entidades indicadas no 242º/1 quando estejam em causa crimes semipúblicos e
particulares. A razão de ser desta proposição radica no facto de, nestes casos em que o início ou
continuação do procedimento depende da apresentação de queixa ou de dedução de acusação
particular, não fazer sentido proceder-se à denuncia, se depois o MP não pode avançar com o
processo, por ter a sua legitimidade de promoção processual condicionada pelos atos acima
indicados. No fundo, para esta doutrina, os crimes seriam de denúncia obrigatória mediante o
preenchimento de uma dupla condição: a natureza da entidade e a natureza pública da infração 15.

COSTA PINTO refuta esta tese, com base nas seguintes ordens de razão:

(i) Letra da lei: O 242º/3 só faz sentido se nos crimes particulares e semipúblicos
existir possibilidade de denúncia. Diz este artigo que nestes crimes as entidades elencadas no
242º/1 têm o dever de comunicar ao MP a prática do crime, mas sem que isso ponha em causa a
natureza procedimental do crime – daí que o MP só abra inquérito e comece a investigar com a
apresentação tempestiva da queixa. Porque há o dever de denunciar para certas entidades, é que
se vai ressalvar o regime específico do 242º/3 quanto aos crimes semipúblicos e particulares. A
lei afirma a coexistência da denúncia obrigatória e da queixa, sem que os dois atos se
confundam.

Também o 242º/1, a) refere “todos os crimes que tomarem conhecimento”. E é


exatamente por esta razão que a lei expressamente vem no 242º/3 ressalvar o regime dos crimes
particulares e semipúblicos. Ou seja, estes dois tipos de crimes são objeto de denúncia, mas não
podem ser objeto de abertura de inquérito se não for apresentada queixa. A denúncia, por ser
obrigatória, não afasta as regras gerais do 49º e 50º.

(ii) Por outro lado, existe utilidade na comunicação dos factos ao MP. Se a autoridade
tiver presenciado os factos, deve lavrar auto de notícia (243º), integrá-lo e enviá-lo para o MP
como denúncia. A existência deste auto de notícia pode ser de importância essencial para o
ofendido conseguir realizar a prova caso venha a apresentar queixa (por vezes é demasiado
oneroso exigir do particular que desencadeie todo o processo, inclusivamente a produção de
prova quando só uma das entidades do 242º/1 presenciou os factos). No mesmo sentido,
também muitos casos de processo sumário (relativos a crimes semipúblicos) ficariam frustrados
quando o MP não conseguisse deduzir formalmente acusação em tempo útil, na medida em que
não existiria auto de notícia que substituísse a acusação, pois não haveria obrigação de denúncia
das entidades que presenciaram o facto.

(iii) Seguindo a linha interpretativa da doutrina maioritária, pode dar-se o problema de


ser a entidade policial a fazer a avaliação que se traduz em saber se o crime é público ou
semipúblico/particular. Exige-se, segundo essa interpretação do 242º/3, que o polícia decida se

15
Por exemplo, um crime semipúblico ou particular, mesmo presenciado por uma entidade policial, não
estaria sujeito a denuncia obrigatória.
o crime tem natureza pública ou semipública e que em função disso, decida também da sua
atuação, nomeadamente da obrigatoriedade de comunicação do facto ao MP, ou da falta dela.
Não parece legítimo que o processo penal possa depender dos conhecimentos da entidade
policial quanto à natureza processual do crime. A entidade deve sempre comunicar os factos ao
MP, que é quem julgará a natureza do crime e atuará em conformidade com a avaliação que
efetuar (abre inquérito ou aguarda pela queixa do ofendido, conforme os casos). É do interesse
do Estado de Direito que esta filtragem seja feita pelo magistrado que dirige o inquérito.

Em suma, os factos são sempre comunicados ao MP (há denúncia obrigatória qualquer


que seja a natureza processual do crime) e cabe a este decidir se abre ou não inquérito consoante
a natureza do crime e a existência ou não de queixa do ofendido, se for o caso deste último
pressuposto.

O CPP regula as modalidades de denúncias (244º e ss.) e estabelece pressupostos


específicos de conteúdo no 246º. Estabelece igualmente o regime de organização das denúncias
criando um dever de as organizar, tratar, arquivar e inclusivamente, se for o caso, de emitir
certificados de denuncia (247º).

A denúncia pode ser feita por escrito, presencialmente junto de autoridade policial ou
outra autoridade judiciária ou de forma anónima (244º, 245º e 246º/1 e 2).

Não está sujeita a formalidades especiais, mas deve conter os seguintes elementos:

a) O dia, a hora e o local em que foi feita a denúncia;

b) Identificação do denunciante;

c) Os factos denunciados, com indicação, na medida do possível, dos elementos


referidos no 243º/1;

d) Tratando-se de um crime particular, a declaração do denunciante de que se deseja


constituir como assistente;

e) A data da elaboração da denúncia;

f) A assinatura da entidade que receba a denúncia e do denunciante (v. 95º/3 para o caso
de impossibilidade de recolha da assinatura).

Sendo um ato de mera informação, ela não pode afetar a validade do processo aberto
posteriormente a si. Este é um tema controvertido, nomeadamente em matéria de denúncias
anónimas.

Alguma jurisprudência já anulou processos com base em denúncia anónima por a


considerar desleal e contrária ao Direito. COSTA PINTO discorda: a denúncia anónima é
eticamente compreensível, por imperativos de segurança do denunciante. Para além do mais, a
partir da reforma do CPP de 2007 passaram as denúncias anónimas (já antes previstas) a deter
um regime bem densificado. As denúncias anónimas podem servir uma dupla função que todas
as denúncias servem, em geral: (i) fornecer informação da notícia do crime a entidade
competente, relevante para abrir o processo; (ii) e conduzir a investigação num sentido mais
certeiro, tendo em conta a verdade material. Além do mais, para prevenir eventuais abusos desta
modalidade de denúncia, se uma denúncia anónima for em si mesmo crime (p.ex. difamação)
pode levar à abertura de inquérito sobre si mesma (246º/6, b)).

É certo que existe uma certa informalidade no tratamento que a lei faz do regime da
denúncia anónima, mas não deixa de a regular (no CPP e na Lei n.º 48/2007, de 29/08), com o
objetivo de não capturar a investigação criminal, i.e., dirigir a atenção do MP para questões que
afastem os investigadores da verdade dos factos, dando espaço aos autores para destruir provas.
Tanto assim é que, quando o MP a recebe, não tem automaticamente de abrir inquérito, só
nos casos tipificados no 246º/6.

A lei não o diz no 246º/6, mas deve existir algum indício de prova ou factos facilmente
verificáveis para se abrir o inquérito, procurando-se estabelecer um valor intrínseco a ela que,
segundo critérios de razoabilidade (127º), leve o MP a abrir inquérito. Da mesma forma, a
denúncia anónima não equivale à notícia de um crime, isso será avaliado pelas entidades
competentes.

Estando já instaurado inquérito ao qual foi dirigido a denúncia anónima, a avaliação e


eventual destruição da mesma cabe ao MP, no exercício do seu poder de direção do inquérito.
Só o MP está em condições de decidir sobre a relevância da denúncia em face de todos os
elementos do inquérito (53º/2, a)), ainda que a denúncia tenha sido dirigida ao juiz de instrução.
Se a denúncia aparecer em fase de instrução, julgamento ou recurso deve o juiz competente
abrir vista ao MP para que este se pronuncie sobre a relevância da denúncia.

Em suma, a denúncia anónima (bem como a denúncia em geral) não garante o sucesso
do processo, constituindo apenas uma ferramenta de estímulo à obtenção de informação
relevante ao andamento do processo penal e às decisões nele tomadas (ao não ter o denunciante
de se preocupar com a violação do seu anonimato).

b) a queixa (113º, CP)

A denúncia distingue-se da queixa. Esta é uma manifestação de vontade do ofendido


para que se abra o processo penal, enquanto aquela é uma mera informação de factos que podem
levar, ou não, à abertura do inquérito. Nota: V. ponto 2.2.2.
Se o crime de denúncia facultativa for um crime semi-público (49º) e a denúncia for
feita pelo titular do direito de queixa (113º CP) pergunta-se se essa denúncia valerá como
queixa para efeitos do 49º: a resposta a essa questão será negativa, uma vez que, como
explanado acima, os dois atos são materialmente diferentes, i.e., a denúncia é uma declaração de
conhecimento e a queixa uma declaração de vontade.

Por isso, da denúncia não se pode necessariamente inferir a queixa. Mas, não se exclui,
a possibilidade de uma simples denúncia conter uma declaração de vontade (queixa) quanto ao
inicio do procedimento, caso em que será, para todos os efeitos, também uma queixa. Então, há
a necessidade de fazer uma interpretação declarativa restrita do 244º, excluindo da ressalva final
do preceito os casos em que a denúncia de crimes semipúblicos é feita pelo próprio titular do
bem jurídico ofendido e dela se infere com segurança uma vontade de que o procedimento
criminal seja iniciado.

Nota: Ver pergunta 4., Caso 2, no tocante às questões doutrinárias de relação da


denúncia obrigatória com a queixa e as diferentes naturezas processuais dos crimes; e ao auto
de notícia, que passamos a apresentar infra.

c) o auto de notícia (243º)

O auto de notícia é descrito como uma figura de contornos legais, ou seja, o seu
conteúdo e forma são minuciosamente regulados na lei. É uma descrição documental de factos e
demais circunstâncias com relevância criminosa que é lavrada por autoridade pública/judiciária
obrigada a realizar uma denúncia desses factos nos termos do 242º, sendo que os factos, para
serem descritos, têm de ter sido presenciados pela autoridade em causa, que faz registo
documental daquilo que presenciou que assuma relevância jurídico-penal.

A lei cria esta peça processual para garantir um andamento mais acelerado das formas
especiais. Se existir um auto de notícia, este pode ter um duplo interesse para o processo: se ele
tramitar na forma sumária, o CPP permite substituir a acusação pela leitura do auto de notícia no
início do julgamento. O MP, ao verificar que o auto de notícia é suficientemente consistente
para enviar para julgamento não tem que redigir uma acusação autónoma. Assim se garantem
imperativos de economia processual, evitando-se que o MP redija um documento novo quando
já há uma auto com a descrição de todos os factos relevantes – 389º/1. No processo abreviado o
auto de notícia pode substituir o inquérito (391º-A), usando-o o MP para deduzir acusação.

O auto de notícia tem, assim, um valor processual relevante, porque permite organizar
informação importante para apreciação probatória do tribunal de julgamento. É uma verdadeira
peça processual.
Fundamental será saber se o auto de notícia fará fé em juízo. O que significa fazer fé em
juízo? Considerarem-se provados os factos que estão no auto de notícia.

Uma parte da doutrina responde afirmativamente à questão enunciada supra, afirmando


que o regime do auto de notícia resultaria do 99º/4, conferindo-lhe um valor probatório
reforçado por remissão para o 169º, por equiparação do auto de notícia aos documentos
autênticos e autenticados16. Assim, o conteúdo do auto de notícia seria dado como provado até
que a sua veracidade fosse posta em causa.

COSTA PINTO, por seu turno, acha que não é possível que o auto de notícia faça fé em
juízo no processo penal. Em primeiro lugar, por falta de base legal. Em segundo lugar, o auto de
notícia contém um mero registo do que foi presenciado pela entidade que o lavrou. Qual o valor
que o CPP atribui ao auto? O de substituição à acusação/inquérito. Ora, nunca se diz que a
acusação ou o inquérito fazem fé em juízo, até porque tal violaria a estrutura acusatória do
processo penal. De facto, se o auto de notícia fizesse fé em juízo, tal violação da estrutura
acusatória existiria também, onerando-se o arguido com o ónus de provar a sua inocência, algo
que leva à rejeição desta possibilidade, em função da sua clara inconstitucionalidade.

Outra questão de debate quanto ao auto de notícia é a de saber se perante o 243º/1 pode
ou não ser lavrado um auto de notícia em crimes que não tenham natureza pública 17?

Alguma doutrina diz que, como a denúncia obrigatória só vale para crimes públicos
segundo o 242º/3, então o auto de notícia só pode ser lavrado em relação a crimes públicos:
seria esse o alcance da expressão crime de denúncia obrigatória contida no 243º/1. COSTA
PINTO refuta este entendimento, pois tal seria transportar uma interpretação equívoca do 242º/3
(já afastada supra) para interpretar o 243º/1, o que não é, de todo, correto.

COSTA PINTO opta assim por outro entendimento. Em primeiro lugar, afirma que
lavrar um auto de notícia é já investigar a possível prática de um crime, o que sem queixa do
ofendido nos crimes semipúblicos e particulares não é possível – qualquer investigação criminal
deve ter lugar no inquérito e, sem estes atos, esta fase não pode ser aberta. Além do mais,
quando é lavrado um auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime dá-se a
constituição dessa pessoa como arguido (58/º1, d)) o que, uma vez mais, não é possível se não
tiver existido a queixa do ofendido. Acresce ainda que permitir lavrar um auto de notícia sem
que seja apresentada queixa implicaria, consequentemente, a aceitação de que se pode dar início
a um processo sumário debilitado, por falta de um documento que tem algum valor probatório e
que é idóneo para substituir a acusação formal.
16
Ainda que os documentos autênticos e autenticados tenham um maior valor probatório, em
consequência de terem sido lavrados por uma entidade pública, estes podem ser sujeitos a incidentes de
falsidade.
17
A questão será semelhante à da já discutida interpretação que a doutrina maioritária faz do 242º/3.
Assim, se for apresentada queixa após o crime pode ser lavrado o auto de notícia? Sim,
pois, o obstáculo da falta de queixa não se verifica quanto à investigação. Assim, pode ser
lavrado um auto de notícia que relate a prática de crimes semipúblicos e particulares, a partir do
momento em que seja apresentada queixa, tempestivamente.

d) a detenção (254º - 261º)

Nota: na esteira de um NUNES CAETANO, Pedro de um PACÃO, Laulo para uma


visão inicial das matérias, com sugestão de complemento com os apontamentos de COUTO,
Pereira das calças azuis no Benfica-Arouca, aqui ficam breves notas sobre a temática da
detenção, enfim, para quem quer ser um jurista acima da média.

A detenção resulta de um ato de autoridade judiciária, OPC, entidade policial ou


qualquer pessoa que observa os prazos indicados no 254º, bem como os requisitos de
adequação, proporcionalidade e necessidade indicados no 261º/1, in fine. A detenção não é só é
uma privação imediata da liberdade de alguém, como também um pressuposto processual para
que o processo possa tramitar na forma sumária.

Nota: Ver perguntas 4. e 5., Caso 2 quanto ao auto de detenção e quanto ao papel da
detenção no processo sumário e controlo (material e formal) do seu início.

O auto de detenção deve mencionar:

a) O dia, a hora e o local da detenção;


b) A identidade da autoridade ou entidade que fez a detenção;
c) A identidade do detido;
d) Segundo acórdão do TEDH, quaisquer lesões físicas do detido ou queixas
relacionadas, sob pena das lesões ocorridas durante a detenção serem imputáveis ao
detentor;
e) A razão da detenção;
f) A menção da comunicação ao detido dos seus direitos
g) A data de elaboração do autor e respetiva assinatura.

A detenção pode durar o prazo máximo de 48 horas nos seguintes casos:

a) Detenção para julgamento em processo sumário;


b) Detenção para primeiro interrogatório judicial 18;
c) Detenção para aplicação ou execução de medida de coação.

18
O primeiro interrogatório judicial do arguido visa revelar ao detido os motivos da sua detenção, ouvir as
razões do detido e colocar o juiz em posição de decidir se os motivos que determinaram a detenção ainda
subsistem e se justificam uma medida de coação para lá do Termo de Identidade e Residência – ver se há
motivos que justifiquem a privação da liberdade do arguido naquele momento imediato. Ver 141º para a
estrutura do primeiro interrogatório judicial do detido.
A detenção durará um prazo máximo de 24 horas no caso de apresentação do arguido
para ato processual perante qualquer autoridade judiciária.

Quais os direitos do detido? Nota: Ver pp.699, in fine – 700, Código Anotado por PPA.

A detenção sofrida é descontada no cumprimento da pena de prisão que for aplicada ao


arguido (80º/1, CP).

Não é admissível a detenção de um representante legal de uma pessoa coletiva arguida


em processo penal por crime a esta imputado, salvo se a detenção visar assegurar a presença do
representante num ato processual perante a autoridade judiciária, quanto a factos que lhe sejam
imputáveis pessoalmente.

A detenção pode ser feita em flagrante delito, ou fora dele (255º, 256º e 257º). É de
referir especificamente o 255º/3, em que também a queixa assume importância neste regime: é
necessária para que uma detenção se mantenha. É igualmente de referir que o ato sumário de
entrega mencionado no 255º/2 deve conter os mesmos elementos do auto de detenção acima
apresentado.

Nota: v. 255º e 256º em sede de processo sumário, neste Resumo.

A detenção feita fora de flagrante delito só pode ter lugar por crime punível com pena
de prisão, mesmo quando ordenada por mandado do juiz. Este requisito fixado pela lei (256º/1,
ijn proemio) para a detenção em flagrante delito vale, por maioria de razão, para a detenção fora
de flagrante delito (assim o diz também o TEDH).

A única diferença entre a competência do juiz e a do MP para determinarem esta


detenção fora de flagrante delito reside em que o mandado do juiz pode dizer respeito a
qualquer crime punível com pena de prisão, enquanto que o mandado do MP só pode dizer
respeito a crime que admite prisão preventiva (257º/1, cuja leitura se recomenda). A
competência dos OPC para ordenar este tipo de detenção funda-se nos três requisitos
cumulativos do 257º/2.

Fora de flagrante delito, o particular não pode proceder a detenção. Há, contudo, uma
situação excecional, descrita na p. 707, Código Anotado por PPA, e que se relaciona com o
mecanismo da ação direta (336º, CC).

Os mandados de detenção devem conter, sob pena de nulidade, os elementos indicados


no 258º/1, aos quais acresce o prazo de validade do mandado. Quanto ao elemento do 258º/1, c),
diz a jurisprudência constante do TEDH que a indicação do facto e demais fundamentos
jurídico-factuais que motivaram a detenção deve ser feita em linguagem simples, por forma a
que o detido possa perceber o núcleo essencial das circunstâncias factuais e jurídicas que
motivaram a detenção. Este conteúdo do mandado não é constitucionalmente neutro. Na
realidade é imposto pelo 27º/4, CRP como sendo um conteúdo mínimo do mandado de
detenção, essencial para assegurar o direito de defesa do detido a conhecer as razões da privação
da sua liberdade e eventuais impugnações da detenção; bem como procurando evitar detenções
arbitrárias.

Nota: v. artigo 258º/2 que configura exceção à regra de o mandado de detenção ter de
ser entregue ao detido imediatamente, ou seja, durante o ato de detenção ou quando este
termine.

Nos termos do 259º, a entidade policial deve entregar o detido no mais curto prazo à
autoridade judiciária. Não sendo possível a sua apresentação imediata, a entidade policial deve
comunicar imediatamente a detenção ao MP e, no caso de detenção para comparência em ato
processual, ao juiz que a ordenou e que, por isso, emitiu o mandado de detenção. Com efeito, se
o detido for logo apresentado a autoridade judiciária, a comunicação é dispensável. Este dever
de comunicação visa permitir ao MP sindicar a legalidade da detenção. O particular que proceda
a uma detenção não tem qualquer dever de comunicação, mas antes um de apresentação
imediata do detido à autoridade judiciária ou entidade policial mais próxima.

Nota: v. 261º.

e) medidas cautelares e de polícia (248º - 253º)

É importantíssimo haver uma regulamentação das revistas, buscas e apreensões, porque


estas são atos de obtenção de prova relevante para o inquérito. Sendo atos processuais, têm,
portanto, um regime próprio, que o legislador entendeu disciplinar no CPP pela estreita conexão
que apresentam com o restante processo criminal.

De todas as medidas cautelares e de polícia levadas a cabo pelos OPC é obrigatória a


elaboração de um relatório em que se descrevem as diligências efetuadas e os resultados
obtidos. Este relatório é remetido ao MP ou ao juiz de instrução, conforme os casos (253º):
quando estiverem em causa atos que só podem ser autorizados ou ordenados pelo juiz, é a ele
que o relatório é remetido; se as diligências policiais forem realizadas na fase de instrução o
relatório também será remetido ao juiz; já se tais diligências forem feitas antes ou no decurso do
inquérito, o relatório será remetido ao MP.

248º: Já vimos anteriormente que uma das formas de o MP obter a notícia do crime é
através da comunicação pelos OPC. Assim, os OPC que obtiverem notícia do crime, seja por
conhecimento próprio seja mediante denúncia, transmitem-na ao MP no máximo de 10 dias.
Mesmo que esta notícia do crime seja manifestamente infundada deve ainda assim ser
transmitida ao MP (248º/2). É ao MP que compete apreciar o fundamento da notícia. Nota: v.
igualmente o 248º/3.

Nota: ler os artigos 249º (medidas cautelares a adotar para conservar os meios de
prova), 250º (identificação de suspeitos).

O artigo 249º contende com atos que os OPC praticam por iniciativa própria da sua
própria competência policial, que depois serão ou não relevantes no inquérito. É a utilidade para
o processo e a sua urgência que justificam a atribuição de competência ao MP para praticar
esses atos, que só serão integrados nos autos depois da sua aceitação ou confirmação pela
autoridade judiciária competente.

O artigo 250º estabelece normas de garantia dos cidadãos e de disciplina da atividade


policial, procurando limitar a discricionariedade das medidas tomadas pelos OPC quando existe
uma fundada suspeita de que certas pessoas praticaram crimes.

Vejamos agora o regime das revistas e buscas levadas a cabo pelos OPC, contido nos
artigos 174º e 251º. Os OPC podem proceder por sua própria iniciativa, ou seja, sem autorização
de autoridade judiciária, a revistas e buscas, quando a urgência assim o exigir. Estas são em
regra autorizadas (174º/3), mas a lei admite exceções, elencadas no 174º/5. Além das hipóteses
desta norma, o 251º admite também como medida cautelar que os OPC procedam às revistas
neste normativo elencadas. Esses atos devem ser documentados para que possam ser
fiscalizados pela autoridade judiciária competente e a sua admissão no processo depende
sempre da sua validação.

Nota: v. artigo 252º, relativo à apreensão de correspondência e 252º-A, relativo à


localização celular.

Dúvidas quanto à constitucionalidade da localização celular têm sido levantadas.


PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que o 252º-A/3 é inconstitucional por não se
inserir em nenhum processo concreto, servindo apenas a prevenção criminal, algo que não
justifica a limitação de direitos fundamentais que esta norma encerra. Com o mesmo pano de
fundo, GIL MOREIRA DOS SANTOS entende que a localização celular só é admissível para
evitar crimes puníveis com pena de prisão superior a 3 anos por comparação com o 187º/1, a),
relativo às escutas telefónicas. GERMANO MARQUES DA SILVA considera que não existe
qualquer inconstitucionalidade: por um lado sendo a localização celular uma medida cautelar,
esta pode ser prévia à abertura do inquérito; além do mais o seu pressuposto é o perigo para a
vida/ofensa à integridade física, que justificam a permissão desta medida, um pouco à
semelhança das escutas telefónicas.

f) a constituição do arguido (58º)


Este é também um auto processual muito importante, porque é a formalização de um
estatuto de alguém que será objeto do processo. Acontece antes do inquérito, ope legis, e é
notificada à pessoa constituída. Nota: v. desenvolvimento deste tema no Ponto 14.7.8.

Este ato é particularmente relevante, na medida em que há arguido antes do inquérito, e


isto vem confirmar que antes do inquérito há processo, pois não pode haver arguido sem
processo.

6. A fase de inquérito: características e finalidades (262º e ss.).

O inquérito é uma fase processual obrigatória que tem por finalidade essencial o
esclarecimento da notícia do crime em ordem à decisão sobre a acusação. Pode também ser
entendido como uma atividade, compreendendo o conjunto de diligências processuais que, sob
a direção do MP, visa investigar a eventual prática do crime, determinar os seus agentes e
respetiva responsabilidade e descobrir provas relevantes. Retiramos isto do 262º/1, CPP.

O inquérito é da competência do MP a quem cabe exclusivamente a sua direção, mas as


diligências que nele têm lugar podem ser realizadas pelo MP, pelo juiz de instrução ou por
órgãos de polícia criminal.

O fim expresso do inquérito é a decisão sobre a acusação. O processo penal tem custos
morais graves para o arguido, pelo que importa acautelar que só é submetido a julgamento
aquele sobre quem recaia uma fundada suspeita de responsabilidade criminal, ou seja, não se
basta o processo penal com a mera invocação de que alguém praticou um crime para o submeter
a julgamento. É também do interesse público o evitar de custos sociais de processos
desnecessários. Esta decisão da acusação é da competência do MP e é fundamentada
exclusivamente com a prova recolhida no inquérito.

Assim, é imprescindível a investigação criminal de todos os factos relevância criminal.


É também importante a investigação sobre a personalidade do agente, por forma a graduar a sua
responsabilidade e a perceber que medidas aplicar ao agente, segundo fins de prevenção
especial.

6.1. A concentração da investigação criminal no inquérito. As averiguações preliminares.


O Ac. TC, nº360/2016 e a crítica da doutrina (ASD/RSP). Exposição e refutação.

Subjacente ao atual CPP de 1987 está a lógica de a investigação ter de ser feita no
inquérito. Esta é uma ideia que se opõe ao modelo americano de investigações policiais
autónomas não controladas pelo MP/qualquer outra magistratura. Assim, o CPP diz que se as
polícias quiserem investigar criminalmente devem fazê-lo no âmbito do inquérito,
controladas pelo MP: ideia garantística do arguido alvo de investigação.
Fala-se, contudo, numa intervenção material de outras entidades na investigação de
certos crimes, antes mesmo da existência de um inquérito dirigido pelo MP. Podem existir
averiguações preliminares (não se imputam factos às pessoas, o que se faz é cruzamento de
informação) ao inquérito de natureza para-penal (p.ex. administrativa). P.ex. bancos fazem
prevenção de branqueamento de capitais, tendo o dever de participar a entidade administrativa
desta ocorrência. P.ex. na investigação do roubo de Tancos, os deputados pedem comissão
parlamentar de inquérito, fora do processo penal porque não é investigação criminal, mas
apenas de natureza política, não deixando de se cruzar materialmente com o
inquérito/investigação penal.

Estas autoridades administrativas que fazem averiguações preliminares não têm poderes
autónomos de investigação criminal. Mas materialmente não se estará a conduzir a investigação
criminal para áreas administrativas situadas fora do processo penal?

O TC pronunciou-se sobre isto: diz que o que separa as investigações criminais das não
criminais é a obtenção de notícia do crime: a investigação do MP é suscitada pelo conhecimento
de factos que indiciam a prática do crime; o que já não acontece quanto a entidades
administrativas.

Nota: v. anotações do Ac. do Tribunal Constitucional nº360/2016

Ora, o TC considerou, pelo critério acima, que a averiguação de entidade administrativa


destinada a decidir se se deve dar ou não notícia de um crime junto do MP não era investigação
de natureza criminal e que, por isso, o facto de ser conduzida por entidade administrativa não é
inconstitucional. No final das averiguações preliminares são remetidos os resultados ao MP
enquanto autoridade judiciária competente, momento em que este agirá de acordo com as regras
do processo penal, concluindo pela existência ou não de indícios suficientes da existência de
crime que justifique início do processo e, posteriormente, uma acusação.

FREDERICO COSTA PINTO: este tipo de averiguações até é benéfico, pois faz com
que o MP só se concentre em investigações que têm um certo fundo/significância através do
acesso a informação técnica relevante e bem tratada por parte destas entidades para-penais.
Cria-se assim um filtro técnico especializado que assegura a conformidade com o princípio da
intervenção mínima do Direito Penal, que potencia a eficiência da atuação das instâncias de
investigação criminal e impede que o cidadão seja desnecessariamente constituído arguido num
processo criminal votado ao insucesso por inviabilidade técnica.

Aliás, nos dias de hoje pode isto não só brotar de entidades administrativas, mas
também por exemplo de jornalistas: existem várias realidades exteriores ao inquérito onde se
dão averiguações úteis ao processo. Todas estas matérias não são investigação criminal, não
correspondem ao exercício de um poder público de identificar factos, identificar responsáveis,
enfim, de exercer a ação penal.

No entanto, estas averiguações fora do inquérito não podem perturbar o inquérito ou


substituir-se a ele.

Este tema foi objeto de análise de uma parte da doutrina composta por SILVA DIAS e
RUI PEREIRA) que, tendo por base esta ideia estanque e absoluta de que qualquer forma de
investigação deve ser realizada no inquérito, considerou a realização de averiguações
preliminares a ele inconstitucional, pois subtrai o MP do poder de ação penal.

COSTA PINTO critica esta posição: não podem, então, existir informações obtidas fora
do inquérito que podem ser trazidas a ele e ter relevância probatória? Claro que podem. Sendo
transmitidas ao MP, este obtém notícia do crime e abre inquérito; ou já estando o inquérito
aberto a informação pode ser trazida ao MP durante o processo, constituindo meio de prova. Em
fase posterior, o MP, titular da ação penal, decidirá se tais informações são ou não prova válida.

6.2. O dever de abrir inquérito (262º/2) e o problema da oportunidade (119º, d)), CPP e
369º, CP).

No nosso sistema vigora a legalidade e não a oportunidade na seleção do processo, ou


seja, quando o MP obtém notícia do crime não pode decidir se abre ou não inquérito. O 262º/2
diz que, obtida a notícia de um crime, há um dever vinculado de abrir inquérito e promover o
processo. A legalidade significa o cumprimento da tramitação prevista na lei, em termos formais
e estruturais e também obrigatoriedade, ou seja, o MP não tem um poder completamente livre
sobre a decisão de abrir ou não inquérito sendo que, por regra, o conhecimento da notícia do
crime dá lugar à abertura de inquérito. Só não o fará quando, verificados os pressupostos legais,
optar pela submissão do indiciado a julgamento em processo sumário/abreviado (49º e 50º).

Há OJ’s em que vigora o sistema de oportunidade, i.e., em que as entidades


competentes têm margem para decidir se promovem ou não o processo. Este método da
oportunidade garante uma melhor adequação do MP na gestão dos seus recursos, em função da
gravidade dos casos. No fundo, uma melhor adequação dos meios que a justiça dispõe à
realidade dos casos.

Por seu turno, no sistema de legalidade garante-se a igualdade perante a lei e a


controlabilidade dos poderes públicos de ação penal através do dever de promoção do processo.
Não pode o MP selecionar os casos a abrir. Deve abrir todos e se achar que não há
fundamentos para continuar o processo, arquiva-o processo, num ato controlável pois existe
uma investigação realizada que será objeto deste controlo. Há uma ideia de formalizar os
processos para serem controláveis, há uma abertura e um fecho que terão de ser justificados. Os
cidadãos têm, deste modo, a garantia que todos os casos desencadearão um processo penal, sem
qualquer seleção entre eles.

COSTA PINTO defende um sistema baseado na legalidade, afirmando, no entanto, ser


possível os dois sistemas conviverem, dentro de certos limites. Por exemplo, o sistema
português consagrou alguns critérios de oportunidade. Temos, entre nós, um sistema de
legalidade temperado por mecanismos de oportunidade processual. Tempera-se a rigidez de ter
que se abrir inquérito.

O dever de abrir inquérito tem uma tutela processual e substantiva.

Se um caso for a julgamento sem inquérito, sendo este for obrigatório nos termos do
262º/2, então temos uma nulidade insanável do processo (119º, d)) – nisto consiste a tutela
processual.

Por outro lado, o incumprimento do dever de promoção do processo corresponde a um


crime autónomo de denegação de justiça. Nestes casos, incorrem neste crime o MP e os órgãos
policiais independentemente de eventuais consequências disciplinares – nisto consiste a tutela
substantiva (369º, CP). Não prejudica as formas de processo que não têm inquérito.

Ciclicamente, os Estados de Direito são confrontados com casos em que pode ser
preferível não promover inquérito se o investigado oferecer informações criminais relevantes
sobre outros eventuais processos penais – vejamos a figura do plea bargain no sistema norte-
americano. Este problema colocou-se na Europa, p.ex. Espanha e Itália – grassou a questão de
saber se não se podiam avançar soluções de oportunidade processual em troca de colaboração
processual do investigado, nomeadamente no âmbito de criminalidade organizada, p.ex. no
combate á máfia, conferindo imunidade processual negociada em função de colaboração para
outros processos criminais.

COSTA PINTO: o que o direito italiano nos ensinou é que há grandes riscos na
colaboração processual em troca de imunidade:

- Em primeiro lugar, a substituição da investigação criminal em detrimento da mera


colaboração. (meio menos oneroso).

- Em segundo, existe um risco de captura do investigador pelas informações de quem


colabora, se a informação não for completa ou totalmente verdadeira, levando a investigações
inúteis.

- Em terceiro, isto leva a uma violação do princípio da igualdade/legalidade – escolhe-


se um ou dois colaborantes contra os quais não se move o processo, enquanto os restantes
continuam a ser objeto do processo penal.
- Por último, o colaborante pode, em fase posterior, recusar a continuação da
colaboração, exercendo o seu direito ao silêncio. Davam informações na fase de inquérito e
tinham uma atitude contrária no julgamento, não havendo assim prova.

Em suma, COSTA PINTO diz que estes mecanismos são perigosos pois a ação penal
fica na dependência de quem colabora; além do mais quem tem mais para oferecer em termos
de colaboração será quem está mais embrenhado na atividade criminosa (p.ex. em organizações
criminosas como a máfia). Pode-se falar numa perspetiva utilitária. SCHURMAN classifica isto
como eticamente reprovável, levando a um “mercado de negação da sanção” – aliás, nos EUA
isto tem consequências sociais reprováveis, p.ex. quem contratar melhores advogados terá
melhores probabilidades de negociar um melhor acordo e de ser beneficiado numa negociação
com o Estado, algo que viola claramente a igualdade entre cidadãos.

Mas existirá uma alternativa a este sistema? Sim, o arguido pode colaborar com o
processo e, não ficando “imune”, pode beneficiar de tal colaboração como medida da atenuação
da pena. O problema em Portugal é que esta atenuação é facultativa. Se fosse obrigatória, isto
premiaria a colaboração sem criar um expediente para violar o princípio de igualdade por meio
do incumprimento do dever de promoção do processo.

Ressalvadas as exceções previstas neste Código: segundo o 262º/2, existe um dever de


abrir inquérito no caso de haver notícia do crime e não existindo qualquer obstáculo
processual a tal abertura. Quais as exceções? P.ex. não se pode abrir inquérito contra uma
pessoa que goze imunidade processual por ocupar certo cargo público. Nos crimes SP e
particulares, mesmo que o MP tenha conhecimento da prática de um facto, se não se apresentar
queixa pelo ofendido, não pode o MP proceder à abertura do inquérito; Verificados os
pressupostos legais, optar pela submissão do indiciado a julgamento em processo sumário ou
abreviado.

6.3. A abertura do inquérito pelo MP e pelos OPC (2º/3, LOIC).

Só abre inquérito quem tem competência legal para o efeito: o MP e os OPC.

A LOIC permite que os órgãos de polícia criminal, obtida a noticia do crime, abram
inquérito, desde que o comuniquem no prazo de dez dias ao MP que vai ratificar ou não.
Procura-se, com este dever de comunicação, garantir a ideia de que não há investigações
policiais autónomas, controlando os OPC. Nenhuma outra entidade além do MP pode promover
o procedimento penal, instaurando inquérito. Qualquer inquérito começa e acaba formalmente
com um ato do MP.

Por OPC devem entender-se os órgãos policiais ou entidades administrativas


equiparadas a órgãos policiais, como o SEF ou a ASAE.
O JIC não tem competência para abrir inquérito. Se tomar conhecimento da prática do
crime tem de comunicar a devida informação ao MP para este, querendo, abrir inquérito.
Intervém no inquérito com outro estatuto e outra lógica.

6.4. Articulação entre o MP e os OPC no inquérito: direção funcional e “subordinação sem


hierarquia” (263º, CPP e 2º, LOIC).

Se o inquérito compreende, essencialmente, a investigação criminal, cumpre defini-la e,


nesse sentido, importa olhar o 1º, LOIC.

A titularidade do inquérito é do MP, que detém a direção funcional da investigação


criminal, podendo dirigir os atos do inquérito/investigação por si próprio ou, ao invés, delegar
as competências para a prática dos atos de investigação nos órgãos policiais (270º/1). Em
princípio, podem todos os atos do inquérito ser delegáveis nos OPC; excetuar-se-ão as
competências da fase de inquérito que compõem o cerne da ação penal e que, por isso, são
constitucionalmente atribuídas ao MP, ou seja, as elencadas no 53º/2, a), b) e c).

Apesar de subordinados ao MP, os OPC têm autonomia técnico-tática (técnica quanto


aos meios utilizados e tática quanto à estratégia/método da investigação) para a levar a cabo
(2º/5 e 6, LOIC), elaborando um relatório final a submeter ao MP sobre as diligências por si
efetuadas – estão em subordinação funcional face ao MP. Tal relatório será apreciado pelo MP,
sendo que este último decidirá do destino do inquérito. Os OPC não podem acusar mesmo que
cheguem a essa conclusão, o MP é que decide mesmo que os elementos tenham sido recolhidos
pelos OPC.

O MP abre o inquérito ou controla a abertura do inquérito feita pelos OPC e encerra


o inquérito.

Por vezes há investigações conjuntas, os OPC e o MP atuam concertadamente, a lei


permite esta flexibilidade nalguns casos.

Alguma doutrina define a relação entre os OPC e o MP como de “subordinação sem


hierarquia”. Os OPC estão subordinados funcionalmente ao MP (que pode avocar o inquérito a
si ou dar instruções diretas ao MP) enquanto seus coadjuvantes no inquérito conduzido pelo
MP; mas não são inferiores hierárquicos do MP, não saem da hierarquia administrativa das
forças policiais (2º/4 e 7, LOIC).

MP tem de se articular com quem execute a investigação criminal. Não tem


competência de polícia. Caso a caso, decide o que faz com cada inquérito de acordo com uma
melhor eficiência.

Nota: v. artigo 2º, LOIC.


6.5. Natureza e limites da intervenção do JIC no inquérito (268º e 269º, CPP).

O JIC não é chamado à direção do inquérito e também não é o JIC que decide do
encerramento do inquérito, embora o possa controlar na fase de instrução. Não deixa, no
entanto, de ter alguma intervenção no inquérito – 268º e 269º.

Mas mesmo aí vejamos: por exemplo, cabe ao JIC aplicar medidas de coação mas nunca
por iniciativa própria, antes mediante requerimento do MP – JIC controla esta proposta do MP,
apreciando se se deve ou não aplicar a medida de coação proposta ou outra – 194º e, em geral,
268º/2. O CPP estipula que certos atos de inquérito só podem ser praticados ou autorizados pelo
juiz de instrução.

268º/2: os atos que o JIC praticará no inquérito nunca serão realizados por iniciativa
própria mas a requerimento do MP, OPC, arguido ou assistente.

Qual, então, o papel do JIC no nosso inquérito? Ele é o garante da liberdade e direitos
fundamentais do arguido, por haverem medidas de investigação que contendem com eles
(buscas, revistas, apreensões.) e que, por isso, o JIC presidirá, praticará ou autorizará, exercendo
sobre elas um controlo no interesse do arguido. Às vezes, este seu controlo é mesmo presencial
– p.ex. as buscas domiciliárias são conduzidas pelo JIC vai, é ele que pratica o ato. Só uma
intervenção do juiz de instrução no inquérito como juiz das liberdades e não como juiz de
investigação garante o respeito pelo modelo constitucional de repartição de funções entre
magistraturas distintas. Está, por isso, envolvido em atos do inquérito que se prendem com
direitos fundamentais. De referir ainda que o JIC possui poderes de investigação autónoma,
ainda na fase de inquérito, para efeito de fundamentar a sua decisão sobre medidas de coação.

Em suma, a direção do inquérito pertence ao MP e só a ele compete decidir quais os


atos que entende dever levar a cabo para realizar as finalidades do inquérito (Sem prejuízo de a
lei impor a prática de certos atos de inquérito como o interrogatório nos termos do 272º). Para a
prática de algum desses atos pode necessitar da intervenção do juiz, quer para os consentir quer
mesmo para os praticar, mas só por promoção do MP podem ter lugar.

Só uma breve nota: se a lei confia ao MP a direção da investigação, permitindo-lhe


dispor quais os atos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se
compreenderia que depois submetesse a atividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que
fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do MP no termo do inquérito. Ver adiante a fase
de instrução.

6.6. Características do inquérito: escrito, secreto e não contraditório.


O inquérito é uma fase do processo penal português onde se identificam os factos, se
recolhem as provas e se identificam possíveis responsáveis pelos factos, numa lógica de
descoberta da verdade.

Estando integrado num modelo misto de processo penal, o inquérito tem as


características do modelo inquisitório, existindo na fase do julgamento as características opostas
a ele. Assim, até 2007, o inquérito era secreto, escrito e não contraditório (hoje já não é bem
assim, em função da reforma relativa ao segredo de justiça).

(i) Escrito – todos os atos processuais são reduzidos a escrito no corpo do processo, e
todas as decisões são tomadas com base no que foi escrito no processo. É em função dos
elementos escritos que o MP avaliará o inquérito para decidir do seu destino;

(ii) Não contraditório – a lógica de acusação e defesa, de ouvir ambas as partes, não
vale nesta fase. O inquérito é uma fase de investigação criminal e não de imputação de
responsabilidades, pelo que não há contraditório. Este só se justifica havendo acusação, que só
se dá no fim do inquérito. No entanto, alguns atos do inquérito estão sujeitos a contraditório: p.
ex. a aplicação das medidas de coação (194º). Mas há contraditório quanto àquele ato em
específico e não quanto a uma fase global do processo penal.

(iii) Até 2007 o inquérito era secreto. Depois deste ano deu-se uma reforma do CPP, e o
processo a poder ser sujeito a segredo de justiça, não existindo uma obrigação neste sentido. Se
for, o arguido não saberá do decorrer/conteúdo dos autos, salvo se lhe for aplicada uma medida
de coação.

6.7. O segredo de justiça no inquérito (86º): enquadramento, fundamentos materiais e base


constitucional (20º/3, CRP)

O segredo de justiça é o regime de sigilo/reserva quanto aos atos processuais


praticados e seu conteúdo, que não podem ser livremente conhecidos nem divulgados.

Há duas modalidades de segredo de justiça:

(i) segredo externo – aquele que é menos intenso. Os sujeitos processuais podem
conhecer o que está no processo, só não podem divulgá-lo. Impõe-se este SJ, por isso, às
pessoas que estejam fora da relação processual que não podem assistir ou tomar conhecimento
de qualquer ato processual nem do seu teor.

(ii) segredo interno – esta é a modalidade mais forte de segredo de justiça, na qual há
reserva de manutenção do ato processual em sigilo, mesmo dentro do processo, não pode ser
revelado nem aos sujeitos processuais. Estes não podem assistir a atos processuais a que não
tenham o direito de assistir nem divulgar a ocorrência de ato processual ou dos seus termos,
mesmo face a outro sujeito processual. Apenas têm conhecimento do conteúdo do processo o
MP e os OPC. Abarca o segredo externo.

Quais os fundamentos materiais do segredo de justiça?

(i) proteger a investigação de perdas de informação que possam advir do seu


conhecimento (destruição de prova, p.ex.). Serve para a investigação se desenrolar numa forma
normal sem perturbações. O inquérito, em cujo âmbito se desenvolve a investigação, é por
natureza, inquisitório e secreto. Foram estas as palavras do legislador em 1998. O segredo é
fundamental para a investigação, é do fundamento do próprio inquérito.

(ii) proteger os interesses do arguido (preservar a presunção de inocência do ponto de


vista fáctico e social, até porque só no fim do inquérito é que há ou não acusação, e pode a
imagem social do arguido ficar deteriorada num inquérito mesmo que se decida pela não
dedução de acusação. e das várias pessoas envolvidas no processo, designadamente a vítima.

O segredo de justiça é, portanto, uma garantia constitucional, essencial num Estado de


Direito (20º/3, CRP). Este normativo da lei fundamental não exige que todos beneficiem do
segredo de justiça, mas que este exista de forma adequada como expediente fundamental para
manter a presunção de inocência e para garantir a eficiência da investigação. NUNO
PIÇARRA diz que a elevação do segredo de justiça à categoria de bem constitucionalmente
protegido limita a margem de conformação do legislador ordinário que (i) não o pode suprimir
por completo e (ii) está obrigado a dar-lhe um mínimo de efetividade.

Também para proteção da dignidade das pessoas ou da moral pública, a lei prevê a
exclusão da publicidade de atos processuais (87º/1 e 3 a 6).

6.7.1. O regime adotado em 2007 e a história do segredo de justiça. A reforma de


2010 (86º/6, a)). O problema da liberdade de imprensa: facto histórico vs. segredo
processual. Balanço das reformas de 2007 e 2010.

Em 1987, o CPP tinha o segredo de justiça como obrigatório em todos os processos na


fase do inquérito e na da instrução. Ratio: se todo o processo penal na fase de
inquérito/instrução constitui uma fase preliminar à imputação de responsabilidades, deve
manter-se em segredo esta fase de investigação. Finda a instrução, o segredo de justiça acabava
e existia uma publicidade plena no julgamento.

O segredo de justiça era interno e externo no inquérito; mas na instrução era apenas
externo, pois o arguido era acusado e tinha conhecimento disto para poder atuar na instrução
que e, assim, participar no controlo da acusação.
Em 1998, o segredo de justiça continua a ser obrigatório na fase de inquérito; só
continuando (enquanto segredo externo) se o arguido o requeresse – manutenção facultativa do
segredo de justiça. Como a investigação já está feita no fim do inquérito, o segredo de justiça
serviria apenas para garantir a presunção de inocência (v. finalidades do SJ acima), pelo que se
deixa a sua manutenção à escolha do arguido.

Começam a haver em Portugal muitas fugas de informação relativas a processos penais


pendentes, algo naturalmente problemático. A doutrina, então, divide-se: há quem diga que se
ele é tão violado, não devia existir; outra doutrina, na qual se insere COSTA PINTO, dizia que o
segredo de justiça é uma figura valiosa e deve ser preservada, através de maior controlo e
fiscalização do seu cumprimento.

Com a reforma de 2007 do CPP, o Governo propôs um regime limitado do segredo de


justiça, mas a AR decidiu tornar o processo penal público, acabando com a figura da vigência
obrigatória do segredo de justiça. E existindo SJ, este não será determinado por lei, mas pela
vontade do sujeito processual nele interessado, expressa em requerimento – estabelece-se um
regime geral facultativo. O segredo de justiça é, nestes termos, uma figura de exceção,
depende da sua promoção processual feita pelo assistente, pelo arguido ou, em especial, pelo
MP. Segundo Paulo Albuquerque, este regime viola o conceito de segredo de justiça do 20 nº3
CRP. A consagração de um regime de segredo de justiça que o subverte, o coloca como exceção
onde anteriormente representava a regra e praticamente o suprime, é uma proteção desadequada
do segredo de justiça. Ele determina ainda a possibilidade de os autos que ainda não estão na
fase de investigação serem consultados fora da secretaria, não só por sujeitos processuais, mas
até por quem não o seja, sendo certo que uma ponderação equilibrada dos vários interesses
imporia a solução contrária

Um dos desideratos fundamentais desta reforma foi, assim, a diminuição de casos em


que era aplicável o segredo de justiça, tendo-se, por isso, tentado quebrar o regime de
obrigatoriedade do segredo.

O objetivo do legislador também foi tirar ao MP o controlo do segredo de justiça,


impedindo que o processo durasse por tempo indeterminado e/ou que o MP pudesse, por essa
via, esconder a sua inércia processual. Nas palavras de COSTA PINTO, esta reforma surge num
contexto em que o MP decidia unilateralmente e sem controlo judicial do acesso ao processo, já
que o SJ resultava automaticamente da lei para todos os processos. Procurou-se afastar um SJ
dependente de uma única entidade, que significava, por vezes, a manutenção excessiva de uma
ignorância das diligências processuais, quer por parte do arguido, quer por parte do assistente.

Assim, o novo regime do SJ estabelecia que o MP, ainda que sendo o titular do
processo, não decidiria da sujeição do processo a SJ. Se quiser que haja SJ, toma essa decisão,
mas esta tem de ser homologada pelo juiz, que o pode recusar (86º/2 e 3). Se existir divergência
entre sujeitar o processo a SJ ou não, quem decide é o juiz (86º/5). Assim, a promoção do SJ
pelo MP depende da não oposição a tal do juiz de instrução.

PAULO ALBUQUERQUE: Ver ainda o 89 nº1 que coloca o JIC como instância de
controlo definitivo da decisão do MP sobre o segredo interno do inquérito. O JIC passa a
determinar em última instância o que prejudica a investigação e o que não a prejudica, podendo
por em causa toda a estratégia de investigação com uma decisão contrária à do MP. Tal
competência introduz uma contradição intrínseca e insuperável no estatuto do JIC a quem não
compete decidir sobre as exigências de investigação, sobrepondo o seu critério ao do titular da
ação penal. Este poder do JIC contende, assim, com a direção do inquérito por parte do MP.
Este juízo absoluto do JIC constitui uma restrição inconstitucional do exercício monopolista do
inquérito pelo MP e, portanto, da função constitucional do MP (219 nº1 CRP). A
irrecorribilidade do despacho é também ela inconstitucional (2º, 20 nº1, 32 nº7 CRP).

COSTA PINTO não deixa de criticar esta solução, por implicar uma perda de poder por
parte do MP, em função da sua subalternização face à intervenção decisiva do JIC nesta matéria.
Este papel do JIC faz sentido se existirem divergências entre o MP e os outros sujeitos
processuais quanto à existência do SJ, mas tornar o JIC como recetáculo inevitável de todos os
requerimentos do MP neste sentido já será criticável.
O MP é o titular do inquérito – ele é que sabe o que está feito e o que pretende fazer a
seguir. Em função disso, ele tem de montar uma estratégia e, por isso, é ele que tem condições
para perceber se é necessário esse segredo. Se o JIC recusar, deixa de existir segredo e o JIC
não é o titular do processo, pelo que não terá uma posição privilegiada para decidir da sujeição
ou não do processo a SJ.
Ademais, o JIC só controla aspetos formais do requerimento de SJ, pois não conhece o
inquérito nem a estratégia de investigação (é um corpo estranho ao processo). Só controla as
razões pelas quais o MP considera necessário esse segredo. Para além do mais, o MP não pode
revelar toda a sua estratégia, pois se a divulga arrisca-se a que o arguido tenha acesso à mesma e
que fique frustrada a investigação.
Tudo isto assume contornos ilógicos, se considerarmos que, nos termos do 86º/4, o MP
pode levantar o segredo sem permissão do JIC, o que joga mal com a necessidade de aprovação
do JIC para sujeitar o processo a SJ.
Um último problema desta intervenção do JIC em matéria de SJ é a criação de um
espaço de litigância no inquérito em torno do segredo de justiça. Quando o MP tem de
responder a outras questões que não as de investigação criminal nesta fase, estará a largar forças
que são precisas.
Este controlo do JIC, que tem a opinião decisiva quanto à instauração do SJ é um dos
dois mecanismos de controlo do SJ que o legislador instituiu. O segundo mecanismo de controlo
desta situação consiste na criação de prazos para a vigência do segredo. Legislador quis tirar
poder ao MP nesta matéria. Mas estes dois mecanismos são uma sobreposição de soluções que
vai complicar o processo, ou seja, se há um controlo, qual a razão de haver outro?
Com efeito, foi criado um regime de quebra automática do segredo interno por decurso
do prazo do 276º: isto nos diz o 89º/6. O SJ só vigora para o inquérito por prazo limitado, o
prazo de duração do inquérito (276º, CPP); o MP pode pedir para o prorrogar mas quando o
prazo do inquérito decorrer cessa, com ele, o segredo interno. Quando o processo se tornar
público, aplica-se o 89º/4.

Era útil criar um regime de prazos, mas os mesmos teriam de ter em conta a realidade
dos processos. O processo pode durar muito tempo por razões que não tem que ver diretamente
com o MP. Por exemplo, se o MP pedir uma perícia, mesmo que dê um prazo ao perito, vai
estar dependente da execução desse mesmo trabalho. O artigo 89º/6 usa prazos do inquérito
criados nos anos 80 para uma sociedade bem diferente da de hoje – o prazo regra de 6 meses,
com acrescentos.

PAULO ALBUQUERQUE: Este controlo judicial da duração do segredo interno do


inquérito não põe em causa a estrutura acusatória nem a função constitucional do MP. Uma
coisa é o JIC interferir na condução de um inquérito que está dentro do prazo legal, outra
completamente diferente é o JIC controlar um inquérito que já se prolongou para além do
respetivo prazo de duração. O despacho sobre o pedido de prorrogação deve ser fundamentado
(97/º5) e é recorrível (399º). Ao exercer o poder do 89º/6, o juiz está apenas subordinado a
juízos de legalidade e não de oportunidade. JIC deve fazer uma ponderação entre os interesses
os direitos processuais ou extra processuais das partes e a necessidade de continuação do
segredo interno. Nada disto prejudica o incidente de aceleração processual.

A instrução requerida pelo arguido em que ele tem interesse que se mantenha o segredo
externo sofreu alteração em relação ao estabelecido em 1998. Em 2007 estabeleceu-se que o
segredo só pode vigorar durante a fase de inquérito (86 nº2, nº3 3 nº4 e já vimos que, mesmo
vigorando, é a exceção). Tendo o inquérito sido secreto, mesmo que o arguido tenha interesse
em que a instrução seja secreta, o juiz não pode deferir esse requerimento. Com isto, viola-se as
garantias de defesa e a presunção de inocência.

COSTA PINTO: A manutenção do segredo de justiça externo visava garantir a


efetividade social da presunção de inocência antes de se saber se ia ou não ter lugar um
julgamento público. Com o novo regime essa possibilidade deixa de existir: o arguido passa a
ter de se sujeitar a uma fase pública quando pretende evitar um julgamento público.
A lei de 2007 não excluía ninguém de assistir às diligências do inquérito, pelo que
qualquer cidadão tinha o direito de se dirigir às instalações da PJ ou a qualquer esquadra do país
para aí assistir a atos processuais, salvo decisão em contrário que determinasse o segredo de
justiça externo no processo (86 nº1 e nº2) ou a exclusão do público de determinado ato
processual (87 nº1).

COSTA PINTO: A sujeição do inquérito ao regime da publicidade da audiência, algo


que resultava da lei em 2007, ou é um erro de técnica legislativa ou um grave erro político
jurídico.

Fruto das várias críticas à reforma de 2007, surge uma nova reforma em 2010 que
altera, o 86º/6. Esta norma, em vez de dizer que há publicidade de todos os atos do processo em
geral, diz que esta só existe no debate instrutório e na fase de julgamento. A publicidade do
inquérito passa a não ser um direito do público em geral, o que se coaduna com o recato exigido
à investigação criminal. Restringiu-se a publicidade externa, vedando a assistência pelo público
à realização das diligências de inquérito e instrução.

Esta solução faz eco das palavras de MARIA JOÃO ANTUNES, que defende um
modelo processual penal português que se pauta por uma evolução em que o predomínio do
princípio do segredo sobre o princípio da publicidade, típico da fase de investigação criminal,
vai gradualmente mudando para um predomínio do princípio da publicidade, típico da fase
da audiência de julgamento, sem perder de vista o princípio transversal da presunção de
inocência.

Nem o segredo de justiça, nem a publicidade do processo têm um valor absoluto em si


mesmos, precisam de ser compatibilizados, em função dos propósitos e finalidades de cada fase
processual.

Com efeito, dizia-se que o regime do segredo de justiça que tínhamos era incompatível
com a liberdade de imprensa. Por conseguinte, o legislador pensou na transparência e na
publicidade do processo penal como algo essencial para o estado de Direito.
Esta ideia foi ultrapassada com a reforma de 2010. De facto, o legislador entendeu mal
aquilo que era a questão da publicidade no processo penal. A publicidade do processo penal
enquanto imperativo só deveria vigorar para a audiência de julgamento e não para a fase de
investigação criminal. E bem, porque a investigação exige serenidade, reserva.
Fez sentido que o segredo de justiça deixasse de ser imperativo para passar a ser
facultativo? COSTA PINTO chegou à conclusão, depois de algumas reservas, que foi bom fazê-
lo, porque na verdade a solução do regime imperativo era um pouco artificial e era, em certo
sentido, inadequado aos casos concretos. Precisassem ou não de segredo, o legislador impunha
o segredo a todos os processos. Porém, nem todos os casos exigem esse segredo. Se o segredo é
importante, ele deve ser aplicado aos casos em que é efetivamente necessário, na perspetiva dos
sujeitos processuais. Como diz RUI PEREIRA, importa garantir uma concordância prática entre
a necessidade de preservar a investigação e as garantias de defesa do arguido, pelo que se deve
permitir que o arguido tenha acesso aos atos processuais por forma a preparar convenientemente
a sua defesa sem, no entanto, perturbar a investigação criminal.
Se o segredo processual é, nestes termos, desejado, ele arrima-se, no entanto, em
interesses diferentes dos sujeitos processuais, sendo um valor estimável quer enquanto direito
individual, quer no âmbito de proteção da investigação criminal e demais atividade do MP. O
arguido deseja que o processo decorre de forma reservada, por forma a preservar a sua
presunção de inocência e a reserva do processo numa dimensão social. O MP deseja proteger a
investigação. E ao assistente, enquanto vítima, pode ser prejudicial, a nível psicossocial, a
publicidade do processo, pondo em causa alguns dos seus bens jurídicos pessoais.

6.7.2. Proibições processuais (86º/8) e proibições penais (371º, CP): assistência,


conhecimento, divulgação.

Para obter eficácia o segredo de justiça consiste numa série de proibições impostas a
todos os sujeitos e participantes processuais, cujo incumprimento terá como consequência o
preenchimento do tipo criminoso de violação de segredo de justiça, previsto no 371º, CP.

O segredo de justiça concretiza-se, pois, em dois aspetos: (i) a proibição de assistência


a prática de atos processuais ou tomada de conhecimento de atos a que as pessoas não
tenham o direito/dever de assistir; (ii) e proibição, seja qual for o motivo, de divulgação da
ocorrência de um ato processual ou dos seus termos, mesmo que a pessoa tenha o
direito/dever de assistir/participar no ato (p.ex. testemunha que seja interrogada).

Estas proibições, como vimos vinculam todos os participantes processuais, bem como
as pessoas que, por qualquer título, tenham tomado contacto com o processo. Essa expressão,
contida na lei, do a qualquer título deve, na opinião de alguma doutrina (AUGUSTO
ISIDORO) ser interpretada restritivamente, como abrangendo só os sujeitos e participantes
processuais; mas tal entendimento é minoritário, pois nem parece ser isso que resulta da letra da
lei, como defende GERMANO MARQUES DA SILVA.

Este autor considera ainda que esta norma proibitiva deve ser levada cum granum salis,
ao ser inaceitável que, por exemplo, o arguido, quando confrontado com a divulgação pública
de elementos processuais cobertos pelo SJ, deva aguardar passivamente o termo do segredo para
se poder defender publicamente.

GERMANO MARQUES DA SILVA entende, assim, que se para defesa da sua honra
for necessário quebrar o segredo de justiça, então essa violação encontrará desculpa no estado
de necessidade do 35º, CP – não lhe é exigível motivar-se pelo Direito Penal, nestas
circunstâncias de prévia violação do SJ que o lese. Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE,
a expressão “independentemente do motivo que presidir a tal divulgação” cobre todos os casos,
mesmo aqueles em que está em causa a defesa da honra. O interessado deve recorrer, nestes
casos, ao instrumento previsto no 86º/13.

A vinculação ao segredo de justiça de todos os que contactam com o processo ou têm


conhecimentos de elementos do processo, visa também todos aqueles que, não tendo contacto
com o processo, divulguem elementos em segredo de justiça de que tenham tido conhecimento
por outra via (86 nº8 que refere o contacto ou o conhecimento). Conjugar com o 371º CP que
contém a expressão “independentemente de ter tomado contacto com o processo”. Incluem-se
aqui também os jornalistas. De facto, o segredo de justiça pode ser totalmente frustrado por via
da não vinculação daqueles que, não tendo contacto com o processo, divulguem elementos que
lhes sejam facultados por terceiros que, por sua vez, tiveram contacto direto com o processo e
violaram diretamente o SJ e, por isso, a inclusão daquelas pessoas no âmbito da vinculação do
segredo de justiça é uma medida necessária numa sociedade democrática para proteger o direito
à honra e à presunção de inocência dos investigados, manter a autoridade e imparcialidade das
autoridades judiciárias e permitir uma perseguição eficiente do crime.

O segredo de justiça não impede que a autoridade judiciária competente, sujeito


processual, proceda ao disposto no 86º/13. São manifestas estas exceções ao segredo de justiça
externo. Quanto à al. a), na mais das vezes, nem sequer se verifica uma limitação ao segredo de
justiça, como seja o caso de a autoridade judiciária dizer que não correr contra uma dada pessoa
qualquer processo. Quanto à al. b) os esclarecimentos públicos podem ser necessários para
evitar a “justiça popular”, quando surjam boatos de imputação de certas responsabilidades a
dadas pessoas; ou até para tranquilizar os cidadãos quanto à eficácia das autoridades.

Podemos ver ainda, no âmbito das exceções ao SJ, o 86º/9. Podemos entrever aqui não
uma faculdade da autoridade judiciária, mas um poder-dever apenas condicionado pela
necessidade de não prejudicar a investigação. Nota: v. artigo.

Por exemplo, na fase do inquérito, logo que o arguido seja submetido a interrogatório,
devem comunicar-se-lhe os factos que lhe são imputados, incluindo as circunstâncias de tempo,
modo e lugar e os elementos processuais que os indiciam (assim indicam o 141º/4, als. b) e d), o
143º/2 e o 144º/1), por forma a que o arguido possa exercer os direitos que lhe caibam no
processo.

Nota: De acordo com PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, podemos descortinar


neste regime várias violações ao princípio da proporcionalidade: é inadmissível que o despacho
do 87/1 seja recorrível e o despacho do 86/2, 3 e 5 não, ou seja, o despacho menos grave é
recorrível e o mais grave não, algo que não se compreende. Também o facto de o processo
contraordenacional ser secreto e o inquérito ser, em regra, público consubstancia uma violação
ao princípio da proporcionalidade.

6.7.3. A quebra automática do segredo em especial (89º/6) e o Acórdão TC 428/2008.

Como já vimos, decorridos os prazos do inquérito e, quando a elas haja lugar, as


prorrogações do 276º, quebra-se o segredo interno, podendo todos os sujeitos processuais e
outras entidades, com a devida permissão, ter acesso ao processo (p.ex. a comunicação social ou
académicos). Gera-se aqui, uma clara vulnerabilidade processual.
Olhemos o artigo 194º/6, b): Quando é aplicada uma medida de coação (como a prisão
preventiva), o MP e o juiz pode encaminhar o processo sem revelar todos os seus elementos ao
arguido, quando isso é do interesse fundamental do arguido para proteger a sua liberdade ou
outros bens jurídicos pessoais ou do interesse da descoberta da verdade em sede de uma normal
investigação criminal.
Mas o artigo 89º/6 não contém esta ponderação entre revelar ou não revelar certos
elementos processuais, em função do prejuízo que tal informação pode causar a qualquer uma
das partes do processo. Assim, foi declarada inconstitucional uma interpretação do 89º/6
segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerramento do
inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do
processo, neles incluindo dados relativos à reserva da vida privada de outras pessoas, sem que
tenha sido concluída a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização
como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução nos termos do 86º/7.
Esta declaração de inconstitucionalidade baseia-se no facto de a lei não assegurar, desse
modo uma adequada proteção ao segredo de justiça – não estando definido o relevo probatório
de certos elementos mais sensíveis da intimidade de alguém (antes do encerramento do
inquérito isto não acontece) não será conforme à CRP divulgá-los sem restrições, pois tal
divulgação pode trazer consequências nefastas a quem a informação controvertida diz respeito,
podendo estar-se a consentir, indiscriminadamente, lesões da privacidade dos cidadãos, em
violação do 20º/3 e do 26º/1, CRP.
O regime de 2007 foi, também por isso, considerado um regime que desequilibrava, que
não tinha concordância prática entre a investigação e o seu conhecimento por parte dos sujeitos
processuais.
Com efeito, o 86º/6, que prescreve a publicidade do processo, diz que a mesma se dá
com as limitações estabelecidas na lei e, em particular nos artigos seguintes. Podemos, desde
logo, entrever daqui que os nºs 7 e 8 do mesmo normativo constituirão prima facie limitações a
ter em conta quanto à publicidade do processo, devendo ser ponderadas aquando da definição da
amplitude da consulta do processo pelo arguido ao abrigo dos 86º/6 e 89º/6.
COSTA PINTO ensaiou também uma interpretação deste preceito conforme ao 20º/3,
conjugando a publicidade do processo a ele inerente com o interesse público da investigação
criminal para afirmar que, aquando do momento elencado do 89º/6, não pode haver uma quebra
automática do segredo de justiça. De facto, esta norma não pode permitir o acesso automático e
irrestrito aos autos (ou a certos elementos dos autos) sempre que tal possa pôr gravemente em
causa a investigação e a descoberta da verdade ou possa pôr em perigo bens jurídicos pessoais
dos participantes processuais ou das vítimas.
Nota: v. anotações no Acórdão TC nº428/2008

6.7.4. Os prazos do segredo interno e o sistema de prorrogações do prazo do segredo


interno e o Ac. STJ 5/2010.

Surge ainda outra questão controvertida em relação ao regime do 89º/6, que diz respeito
à cessação do segredo interno.
Como previsto nesta norma, o MP pode, em nome dos interesses da investigação,
requerer uma prorrogação do regime de segredo de justiça. E primeiro lugar, pode requerer um
adiamento do acesso aos autos por um prazo máximo de 3 meses. Este prazo máximo pode, por
sua vez, ser prorrogado uma só vez, quando estiverem em causa casos de criminalidade
organizada.
Esta norma suscita dúvidas de interpretação no que se refere ao prazo da segunda
prorrogação. Tem esta prorrogação suplementar um período máximo de 3 meses ou, pelo
contrário, não tem qualquer limite temporal, estando apenas condicionada pelo que for
considerado objetivamente indispensável à conclusão da investigação?
Nota: v. anotações do Ac. STJ, nº5/2010
Alguma doutrina, encabeçada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, interpreta
este artigo no sentido de esta segunda prorrogação poder atingir 3 meses, no máximo, ou uma
duração menor, tudo dependendo daquilo que for considerado indispensável à investigação.
Afirma este segmento da doutrina que é esse o sentido limitativo da palavra “prorrogação” e da
restrição da mesma a “uma só vez”, como se lê no 89º/6; tudo em nome de evitar a continuação
ad aeternum de certos processos criminais.
Já o STJ veio dizer que a 2ª prorrogação não tinha limiar máximo de prazo, dizendo que
a mesma perduraria durante o tempo indispensável à conclusão da investigação. O STJ fez,
assim, o que o legislador não fez: veio dizer que se exige um prazo maior do que o 276º para o
segredo de justiça nos casos de criminalidade organizada, e esse prazo é o que o MP considerar
objetivamente indispensável à conclusão da investigação.
Por oposição, GERMANO MARQUES DA SILVA sufraga a tese do STJ 19, dizendo
que a letra da lei parece reforçar este entendimento ao dispor da segunda prorrogação sem
definir um limite temporal. Não deixa de defender, no entanto, aquilo que resulta claramente do
fim dessa norma, dizendo que a prorrogação tem de ser fundamentada em elementos objetivos
constantes do processo (p.ex. uma perícia mais demorada, uma carta rogatória que se aguarda).
Defende ainda que esta norma precisa de revisão pois ainda que não seja razoável uma limitação
rígida desta prorrogação, em função dos interesses da investigação, também não se pode admitir
uma prorrogação ad aeternum.
Foi aventado que a interpretação do STJ punha em causa os direitos de defesa do
arguido ao não limitar temporalmente o momento em que este poderia, nestes casos, aceder aos
autos. Mas o STJ contrapõe que tal não é líquido, uma vez que o SJ, não sendo um valor
absoluto, ainda que vigorando pode ser levantado no que convier ao exercício dos direitos do
arguido, nos termos do 86º/9, b) – v. Ac. STJ, p. 1672, sublinhados.
6.7.5. Duração do inquérito e duração do segredo.

Salvo o possível levantamento do SJ, da competência do MP nos termos do 86º/4, o


segredo de justiça dura durante toda a fase do inquérito.

Ora, os prazos do 276º são criados para disciplinar a duração do inquérito; enquanto que
os prazos de vigência do segredo são criados para disciplinar o segredo de justiça. Existem
funções diferentes de cada um dos prazos.

Porém, os prazos elencados para o inquérito no artigo 276º acabam, por via do 89º/6 e
do que estudámos acima, por se aplicar ao regime de duração do segredo de justiça. Temos,
pois, que o termo do segredo de justiça é o termo normal de duração máxima do inquérito e
pode ser prorrogado nos termos do 89º/6, como vimos supra.

6.8. Debate: qual a natureza dos prazos do inquérito (276º, CPP) – meramente
ordenadores ou perentórios - e quais os efeitos da ultrapassagem dos prazos?

Cumpre, em primeiro lugar, definir cada um dos tipos de prazos:


(i) prazos meramente ordenadores ou disciplinadores – após o seu decurso, o inquérito
continua a existir, podem continuar a ser recebidos elementos de investigação e os entretanto
encontrados são válidos;
(ii) prazos perentórios – o seu decurso conduz a um espécie de “caducidade” do
inquérito: decorrido o prazo, o inquérito tem de ser encerrado, a investigação não pode
continuar e há quem avente que seria inválido qualquer diligência de investigação ou outro ato
processual praticado após tal caducidade. 
Debrucemo-nos agora sobre a questão levada a debate:
19
No mesmo sentido, PEDRO VAZ PATTO.
A lei não oferece resposta específica a questão da natureza dos prazos do 276º, mas
podemos entrever uma pista para a sua resolução se levarmos a cabo uma interpretação
sistemática da norma em causa à luz do regime do SJ. 
Quando se passa o prazo do 276º e respetivas prorrogações cessa o segredo interno, o
que significa que os sujeitos processuais têm acesso ao processo, mas o processo não
termina. Ora assim sendo, o próprio 89.º/6 declara que o processo continua, quebrando-se o SJ
interno mas mantendo-se o SJ externo. 
Assim, implicitamente o legislador resolve a questão da natureza dos prazos: se
passando os prazos do 276º aplicados ao 89º/6 o processo não acaba, apenas se quebra o SJ
interno, então estes prazos não são perentórios e a sua passagem não afeta a validade do
processo. 
Há consequências deste decurso do prazo, mas são consequências específicas (cai o
segredo interno e só haverá segredo externo), que não englobam a caducidade do inquérito ou,
mais genericamente, do processo. Os prazos são, assim, ordenadores. Como adianta
GERMANO MARQUES DA SILVA, a sua violação não acarreta outros efeitos que não a
tomada de medidas de aceleração processual que podem ser determinados pelo Procurador
Geral da República, nos termos do 109º e do 276º/8.
Ademais, podemos ver no 276º/6 e ss. um regime de comunicação e fundamentação da
violação destes prazos ao superior hierárquico, seguida de pedido de um alargamento do prazo
necessário para concluir o inquérito. O legislador criou, nestes termos, um mecanismo de gerir
os atrasos no inquérito criminal, o que mostra mais uma vez a natureza não perentória destes
prazos: se cabe ao superior hierárquico do MP decidir se o processo continua ou não, isto
significa que os prazos não são perentórios.
Outro argumento sistemático para o sufrágio desta tese, é o facto de o CPP não criar
prazos perentórios para a duração de fases processuais, apenas o faz para a prática de atos
processuais. Com efeito, os inquéritos têm diferentes graus de complexidade, seria difícil
encontrar um mesmo prazo que coubesse bem a todos. Assim, o código permite que a duração
desta fase seja a necessária de acordo com o seu conteúdo em cada caso concreto, criando um
sistema mais flexível.
Se o decurso do prazo tornasse o inquérito inválido por nulidade, isso seria de tal forma
grave que era obrigatório que o legislador expressasse isso na lei. Tal era mesmo necessário à
luz do 118º, que estatui que não há nulidade se não pela força da lei 20. 
Mesmo reconhecendo os prazos como ordenadores, tem de haver alguma razoabilidade,
o processo não deve demorar mais que o tempo justo para não prejudicar o arguido, uma vez
que com o decorrer injustificado do processo ele vê os seus direitos diminuídos, mantém-se a

20
Há países, por exemplo Itália, que adotam a solução da caducidade do inquérito, mas nesses
ordenamentos a lei declara expressamente esta solução (argumento de Direito Comparado). 
situação de suspeitabilidade e há apreensões que podem continuar. Mas não há critério legal
fixo quanto à duração do inquérito, pelo que a mesma dependerá da razoabilidade do superior
hierárquico que decide do novo prazo nos termos do 276º/6 e ss. 
Esta parece uma solução arbitrária, mas o dever de fundamentação do 276º/6 e a pressão
pública para uma razoabilidade destas decisões de alargamento do prazo funcionam como o
necessário contrapeso. COSTA PINTO: este equilíbrio é preferível a uma solução formal que
teria muitos incómodos, pelos motivos expostos supra.
Eventuais alternativas mais positivas a esta solução têm de ser operadas a nível
legislativo (não são acolhidos pelo estado atual da lei), como por exemplo o reforço de meios de
investigação para fazer face a prazos fixos do inquérito; ou a criação de um sistema em que,
passado o prazo do inquérito e mesmo que a investigação continuasse, o arguido poderia
requerer o fim do seu estatuto e só com novas provas poderia ser acusado novamente.
6.9. O encerramento do inquérito

Concluídas as diligências de investigação e recolha de provas sobre a notícia do crime,


encerra-se a fase do inquérito. Não há propriamente um ato específico de encerramento, este
processa-se mediante arquivamento ou acusação (276º/1)21.

O despacho de arquivamento do inquérito (277º) e a acusação (283º) devem ser


notificados ao arguido, ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente, a
quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil e aos respetivos
advogados (277º/3 e 283º/5). Prevê-se ainda uma notificação específica de encerramento do
inquérito, feita ao assistente em processo relativo a crimes particulares para que este, querendo,
deduza acusação particular (285º) – esta é uma decisão vinculada do MP que, se quiser acusar,
tem de notificar o assistente para que ele o faça.

A omissão de notificação em qualquer um destes casos constitui nulidade nos termos do


120º/2, d), na medida em que, na sequência do ato notificado, podem os sujeitos processuais
praticar atos essenciais para a descoberta da verdade (isto será verdade pelo menos nos casos da
notificação do arguido e do assistente).

A acusação e o arquivamento são as formas tradicionais de terminar o inquérito.


Existem ainda formas alternativas de encerrar o inquérito que equivalem a um arquivamento,
pois se o processo ficar por estas possibilidades, não avançará para as fases subsequentes de
apuramento de responsabilidades. Estas formas alternativas de encerrar o inquérito são:

21
Estes atos encerram o inquérito em sentido lógico; pois a fase do inquérito em sentido cronológico só se
encerra com o decurso do prazo após as notificações e o requerimento de abertura da instrução ou a
remessa do processo para o tribunal de julgamento.
(i) Mediação: o MP pode, desde 2007, enviar para mediação o caso que investigou se
este corresponder a um crime semi-público ou particular;

(ii) Arquivamento em caso de dispensa de pena, previsto no artigo 280º;

(iii) O MP pode promover a suspensão provisória do processo e, findo o prazo fixado


para essa suspensão, pode o MP arquivar o processo, se o arguido aquilo que lhe foi exigido
aquando da decisão de suspensão provisória do processo. Este processo surge regulado pelos
artigos 281º e 282º.

Estudaremos todas estas formas de encerrar o inquérito em todo o seu detalhe já em


seguida.

6.9.1. Formas de terminar o inquérito: arquivamento (277º) e acusação (283º) – as


soluções alternativas: mediação, arquivamento do art. 280º e suspensão provisória do
processo do art. 281º.

O processo penal norteia-se pelo princípio fundamental da legalidade, que vale para o
inquérito num duplo sentido. De um prisma mais geral, o processo (e por isso também o
inquérito) desenvolve-se de acordo com a lei e, mais especificamente, o MP tem o dever de
promover o processo obtida a notícia do crime.

A lei é muito rígida quanto à abertura do inquérito, segue critérios estritos de legalidade.
Mas, uma vez aberto o inquérito, são oferecidas ao MP várias possibilidades de
encaminhamento do processo. Este seguirá, na condução do inquérito, critérios de oportunidade
processual, podendo nem sequer submeter o indivíduo a julgamento, algo que pode ser
preferível, por exemplo, em casos de pequena e média criminalidade.

(i) Arquivamento (277º)

Ato processual que, por decisão do seu autor, indica que o processo penal não avançará
para as fases seguintes. Não implica nunca um juízo de mérito, mas antes uma inviabilidade
processual de continuação do processo, embora possa ser determinado por razões materiais
(causas de exclusão da ilicitude, da culpa ou erro) e não exclusivamente processuais.

O arquivamento do 277º deve ser destacado dos demais, pois não forma caso julgado
material, mas sim (e apenas) caso julgado formal. Poder-se-iam invocar boas razões atinentes à
paz jurídica do arguido na defesa da extinção do processo pelo arquivamento no termo do
inquérito, mas tal decisão é estritamente legal.

Enquanto forma tradicional de encerrar o inquérito, o arquivamento, no sentido do 277º,


pode dar-se por:
a) Inexistência de crime, por o arguido o não ter praticado ou por
inadmissibilidade de procedimento (277º/1):

Temos aqui dois fundamentos de arquivamento, ambos se reconduzindo à falta de


pressupostos para submeter o arguido a julgamento.

Por um lado, se no inquérito se conclui que a notícia investigada não tinha fundamento,
porque não foi cometido crime, impõe-se o arquivamento. Também se no decurso do inquérito
se conclui que o arguido no processo não é responsável por um crime que foi efetivamente
cometido, o arquivamento será a solução a ser seguida – não há, nestes dois casos, uma razão
válida para submeter o arguido a julgamento.

Por outro lado, existe ainda outro fundamento, formal, de arquivamento: a


inadmissibilidade legal do procedimento. Um processo pode ser legalmente inadmissível por
várias razões que podem ocorrer já no decurso do inquérito ou existir ab initio, mas só serem
conhecidas após a sua abertura.

Exemplos de razões de inadmissibilidade do procedimento: a morte do arguido, sua


amnistia ou a prescrição do procedimento criminal (127º e 118º, CP); a desistência da queixa
(116º, CP) ou a não dedução de acusação nos crimes particulares (50º, CP) – estas extinguem a
punibilidade do facto; e o conhecimento superveniente da inimputabilidade do arguido, da
prescrição do procedimento ou da falta de legitimidade do MP para promover o processo – neste
segundo grupo falta uma condição de procedibilidade.

Em qualquer destes casos, o processo não pode prosseguir, pois nunca o arguido poderia
ser condenado se fosse a julgamento, pelo que este se torna desnecessário e o processo deve ser
arquivado.

b) Insuficiência de prova sobre a existência do crime ou de quem foram os seus


agentes (277º/2)

Sucede neste tipo de casos que não é possível formular um juízo sobre a verificação do
crime ou sobre quem foram os seus agentes. Deve desta situação inconclusiva brotar uma
decisão de arquivamento por insuficiência de prova, garantido que o arguido, nestes termos,
continuará a beneficiar da presunção de inocência.

Não sendo conhecido o agente do crime, ou não havendo indícios suficientes da sua
prática, a acusação não seria sustentável em julgamento, pois este seria um desperdício
processual e violento para o arguido, na medida em que seria excessivamente restritivo das suas
liberdades fundamentais.
O legislador não conferiu à decisão de arquivamento um efeito preclusivo, i.e., admite-
se que o procedimento possa continuar posteriormente se forem descobertos novos factos ou
obtida nova prova que invalide os fundamentos de arquivamento – mediante reabertura do
inquérito, nos termos do 279º.

Para GERMANO MARQUES DA SILVA a reabertura do inquérito não é um ato


discricionário, antes está sujeito a estreitos critérios de legalidade e se a recusa de reabertura não
é suscetível de impugnação judicial (279º/2), isso é devido a considerações de política criminal
atinentes ao valor da paz jurídica do arguido e não a um suposto cariz de oportunidade da
decisão de reabertura do inquérito.

(ii) Acusação (283º)

Não cabendo o arquivamento, em qualquer das suas modalidades, e tendo sido


recolhidos no inquérito indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu
agente, o MP deduz acusação, tratando-se de crime público ou semi-público. O princípio
dominante na nossa lei é o da legalidade, segundo o qual, salvas as exceções da lei, o MP deve
acusar sempre que os pressupostos jurídico-factuais da acusação se verifiquem. Ou seja, se
durante o inquérito o MP tiver recolhido indícios suficientes de se ter verificado um crime e de
quem foram os seus agentes, então está obrigado a deduzir a acusação (283º) 22.

Questão fundamental neste âmbito será a de discernir o que são os indícios suficientes
exigidos para deduzir acusação? Esta é uma questão amplamente discutida na doutrina, por
forma a que se concretize a previsão do artigo 283º. COSTA PINTO apoia-se no nº2 de tal
artigo para definir o que são indícios suficientes, aqueles dos quais resulta uma possibilidade
razoável de o indivíduo ser responsabilizado em fase posterior de julgamento.

A lei exige a existência destes indícios para que o MP possa deduzir acusação, e a
suficiência dos mesmos exige uma valoração dos meios de prova disponíveis.

A doutrina divide-se em três teses de concretização da expressão de indícios suficientes:

a) Teoria da probabilidade mínima: os indícios serão suficientes sempre que existir


um mínimo de probabilidades de o indivíduo ser responsabilizado. COSTA PINTO considera
que esta teoria não respeita a letra da lei. O juízo a ser feito quanto à suficiência dos indícios é

22
Nos crimes particulares, o MP não pode acusar isoladamente sem o assistente o ter feito, nem
pode arquivar o processo em função do juízo que faça sobre a prova recolhida ou com base em qualquer
outra razão. O processo penal não está, nestes casos, na livre disposição do MP e o 285º exige, antes de
qualquer outro ato, a notificação do assistente para este, querendo, deduzir acusação particular. Depois, o
MP pode decidir-se pela não acusação ou por uma acusação tematicamente subordinada à do assistente
(285/4).
de prognose e não de probabilidade mínima. Um juízo nesses termos seria incompleto,
conduzindo a um processo carente de prova.

b) Teoria da elevada probabilidade (MARIA FERNANDA PALMA): considera que


o MP só pode deduzir acusação se tiver fortes indícios da prática do crime. Na verdade, o
legislador em algumas matérias exige que o processo demonstre a existência de fortes indícios
(artigo 202º). Do ponto de vista literal, a expressão fortes indícios configura uma realidade mais
graduada que indícios suficientes, compreendendo-se o porquê desta diferença: a exigência de
fortes indícios surge no contexto da decisão sobre medidas de coação, que são aplicadas em
fases processuais anteriores a julgamento, em que vigora ainda a presunção de inocência. Ora,
neste sentido, esta teoria não goza de apoio literal do normativo do 283º.

c) Teoria da probabilidade dominante: os indícios serão suficientes quando


admitam um juízo de prognose por si próprios e não em função de outros meios de prova
(documentos que ainda não se obtiveram, por ex.). O que se exige é que se afirme uma
probabilidade razoável, i.e., a probabilidade de responsabilizar um agente deve ser superior à
probabilidade de ele não ser responsabilizado. Se os elementos probatórios forem fracos e a
probabilidade de absolvição for superior à de acusação, deve ser feito o arquivamento,
prescindindo-se da acusação.

(iii) Mediação penal (Lei nº21/2007, de 12 de junho)

Esta é uma mediação não jurisdicional, realizada no âmbito do inquérito, visando a


obtenção de um acordo perante o litígio em causa. Pode dar-se quando estamos perante crimes
semipúblicos ou particulares (não se aplica aos crimes públicos).

A promoção desta mediação é feita pelo MP no âmbito do processo, pressupondo o


envio do caso para um mediador (3º, Lei nº21/2007).

Se existir um acordo e ele for cumprido, a aceitação dos resultados da mediação é


formalizada e equivale à desistência da queixa. O processo é arquivado em função do resultado
da mediação (5º/3, 4 e 5, Lei nº21/2007).

E, porventura, se alguém recusar a mediação, revogar o acordo ou declarar que o acordo


não foi cumprido, pode-se revogar o consentimento para a mediação e a lei admite a figura da
renovação da queixa (5º/4, in fine, Lei nº21/2007).

Se, simplesmente, o acordo não for obtido em sede de mediação ou não for concluído
num prazo de 3 meses após remessa do processo para o mediador, este informa o MP desse
facto e o processo penal seguirá o seu decurso normal (5º/1, Lei nº21/2007). Se o mediador
considerará que é alta a probabilidade de obtenção do acordo, mas o prazo para a conclusão da
mediação está perto do seu decurso, pode solicitar ao MP uma prorrogação desse mesmo termo
por um máximo de 2 meses, como disposto no 5º/2, Lei nº21/2007.

O MP não intervém na negociação. A lei continua a assumir o MP como uma entidade


que não negoceia o seu poder de oportunidade para conduzir o inquérito. A negociação faz-se
fora do processo, junto de um mediador, que depois comunica o resultado ao processo (5º, Lei
nº21/2007).

O processo penal respeita esse resultado obtido, homologando-o. A mediação permite,


assim, que haja uma negociação da culpa entre as partes (assistidas por um mediador),
promovendo uma solução de consenso que se impõe ao processo.

(iv) Arquivamento em caso de dispensa da pena (280º)

Esta forma de encerramento do inquérito tem um menor campo de aplicação penal – só


se aplica a casos de pequena criminalidade.

Consiste na possibilidade do MP promover o arquivamento do processo na fase de


inquérito se a lei contemplar como consequência penal possível para o facto praticado uma
dispensa da pena.

O que é a dispensa de pena? FIGUEIREDO DIAS define-a como uma declaração de


culpa desacompanhada de pena efetiva. Está prevista no artigo 74º do CP e só é aplicada em
crimes de menor gravidade ou quando o legislador expressamente o declara. A dispensa da pena
pressupõe uma valoração da culpa e responsabilidade do agente (este pratica um facto ilícito,
culposo e punível) e, dessa forma, o aplicador do direito podia aplicar-lhe uma sanção criminal.

Porém, a lei permite que se lhe aplique uma “sanção 0”, ou seja, que se declare a sua
culpa (que a pessoa é responsável pelo facto), mas que não lhe seja aplicada uma pena efetiva,
pois as penas mínimas, mesmo assim, seriam demasiado graves, em função de considerações de
prevenção especial que, associadas às particularidades de certos crimes menos gravosos,
permitem declarar que há censura mas não a efetividade da norma penal sancionatória. É uma
medida alternativa à pena efetiva, ditada por razões de carência concreta de pena à luz das
finalidades da mesma mas tem ainda um caráter sancionatório porque se considera que o agente
é responsável. Não é necessária, e a pena que não é necessária não é uma pena útil num Estado
de Direito.

Quando assim é, o legislador permite ao MP que este faça o arquivamento: o


arquivamento é a oportunidade dada ao arguido de interiorizar o regime legal à luz do qual foi
responsabilizado, sem ser sujeito a um julgamento. Avultam aqui razões de economia
processual pois no julgamento a decisão seria a mesma.

O MP encontra nesta via uma solução alternativa à continuação do processo. Não


decide, no entanto, de forma isolada, uma vez que a lei exige a concordância do JIC face à
decisão de arquivamento – este é um meio de impedir que o MP subverta este mecanismo,
utilizando-o para fins diferentes daqueles para os quais ele foi desenhado 23. A natureza desta
decisão é condenatória segundo COSTA PINTO, ao pronunciar-se sobre o mérito da causa e
constituir o arguido em responsabilidade, formando caso julgado material. Por isso, foi
necessário consagrar expressamente a intervenção do JIC, dado o ato ser materialmente
jurisdicional.

Questão controvertida: pode existir arquivamento em caso de dispensa de pena se faltar


algum elemento constante da teoria do crime? COSTA PINTO defende que, nesses casos, a
solução é o arquivamento do 277º (este não requer intervenção judicial e não constitui o arguido
em responsabilidade) e não do 280º, porque se o facto for típico e ilícito, mas não for culposo ou
punível (p.ex. o agente é inimputável), não existe qualquer crime, por falta de pressupostos
materiais. Ora, não pode ser efetivada a norma de sanção se não existir crime, pelo que se faltar
um seu pressuposto, então não pode ser ativada esta figura 24.

Outra questão controvertida: se o crime praticado for particular e já tiver sido


ultrapassada a fase de constituição de assistente pode haver lugar a dispensa da pena e
consequente arquivamento nos termos do 280º? A resposta tem de ser negativa, porque por um
lado a lei não contempla o acordo do assistente na decisão deste tipo de arquivamento, sendo
que o MP, existindo assistente, não pode dispor unilateralmente do processo à margem da
vontade daquele. Esta é a posição de COSTA PINTO. O MP, nestes termos, não pode arquivar
o processo nos termos do 280º, deve seguir o preceituado no 285º, que já estudámos em fase
anterior.

(v) Suspensão provisória do processo (281º e 282º)

Esta figura possui um grande campo de aplicação no seio do nosso processo penal.

A ideia fundamental a ela subjacente é a de parar o processo, dando uma oportunidade


ao arguido para assumir um comportamento conforme as exigências do OJ e, como
contrapartida, não haver punição.

23
A mesma solução, com os mesmos requisitos a nível de pressupostos da dispensa de pena e de
entidades competentes para o fazer, deve ser seguida se a acusação já tiver sido deduzida, nps termos do
280º/2.
24
Desencadeia-se neste caso o arquivamento do 277º, na modalidade de inexistência do crime.
O MP promove a aplicação da suspensão provisória, mas tem de obter, para o efeito, a
concordância dos outros sujeitos processuais que existem (arguido, assistente e JIC), nos termos
do 281º/1, in proemio e al. a). Basta que um destes sujeitos processuais se oponha para não
haver lugar a suspensão provisória do processo.

A aplicação desta figura em nada depende da natureza processual do crime praticado,


este pode ser público, semipúblico ou particular. O único requisito que um crime deve ter para a
viabilizar é uma pena de prisão até 5 anos ou que lhe seja aplicável uma sanção diversa do
aprisionamento. Terão de se verificar, igualmente, os demais requisitos cumulativos do 281 nº1
para se suspender o processo.

Aquando da decisão de suspensão são definidas certas regras de conduta/injunções


concretas de comportamento a que o arguido fica vinculado, ficando o mesmo, durante certo
tempo, em regime de prova (fica vinculado às regras e não pode voltar a praticar o facto
criminoso). O processo é, então, suspenso, nos prazos indicados no 282º/1 e 5.

(i) Caso o arguido cumpra integralmente o regime previsto na suspensão, no final do seu
prazo o MP arquiva o processo (282º/3).

(ii) Caso o arguido desrespeite as injunções que lhe foram impostas ou volte a praticar
um crime da mesma natureza daquele a que o processo suspenso dizia respeito, então o processo
retoma o seu decurso, nos termos do 282º/4.

É mantido um registo destas decisões de suspensão, por forma a possibilitar a


verificação da reincidência do arguido, para que em eventual ocasião futura em que esteja em
causa um crime da mesma natureza, não se volte a aplicar a suspensão do processo (281º/1, c)
inviabiliza-o).

Para COSTA PINTO, esta decisão de arquivamento após a suspensão do processo


forma caso julgado material. De referir que o JIC não intervém no arquivamento após cumprida
a regra de conduta ou a injunção.

Este regime é uma oportunidade para o arguido evitar o julgamento e a responsabilidade


penal efetiva. Evita-se que um caso pouco significativo gere gastos e perda de tempo para os
tribunais, dando vazão ao princípio processual da intervenção mínima do Direito Penal, advindo
da Constituição.

As decisões do 280º e 281º assentam, em parte, em considerações de oportunidade, mas,


por outro lado, são decisões vinculadas quanto ao cumprimento dos pressupostos e requisitos
estabelecidos na lei. Pode defender-se que tais decisões em parte não são impugnáveis.
Contudo, a componente vinculada da decisão, concretamente aquela que não é deixada à livre
apreciação dos diversos sujeitos processuais, admite impugnação para controlo da legalidade do
ato.

(vi) Processo sumaríssimo (392º e ss.)

Esta é também uma forma de evitar uma audiência de julgamento, permitindo encerrar o
inquérito num molde muito específico de acusação. É pressuposta, com efeito, uma acusação
acompanhada de um requerimento para tramitar o processo na forma sumaríssima e de uma
proposta acusatória concreta feita pelo MP.

Nota: v. vários possíveis desenlaces desta acusação específica no ponto 4.1 deste
Resumo.

Este processo foi alargado, na reforma de 1998, aos crimes particulares (392º/2).

6.9.2. Reações a um arquivamento: requerimento de abertura de instrução (287º) vs


intervenção hierárquica (278º).

Entramos na questão de saber se existe ou não alguma hipótese de controlo das decisões
do MP de encerramento do inquérito. Ora, os atos fundamentais do MP que possam colidir com
os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão sujeitos a um controlo judicial através do
JIC ainda em fase de inquérito, é a lei que o prevê de forma expressa (268º e 269º).

Há certos impulsos processuais que, porém, não podem ser controlados pelo JIC, por
exemplo, se o MP decidir, findo o inquérito arquivar o processo por não ter provas suficientes
ou por entender que os factos já prescreveram (118º e ss., CP). Este ato não é controlável
diretamente pelo JIC, só o podendo ser em função de um impulso do assistente.

O arquivamento é uma decisão da competência exclusiva do MP, mas não é por isso
que deixa de ser sindicável. Existem dois mecanismos alternativos de controlo:

Com efeito, porque é uma decisão fundada na falta de pressupostos jurídico-criminais


da acusação, não envolvendo qualquer juízo de oportunidade, a sua legalidade é comprovável
juridicamente através da instrução requerida pelo assistente, com o fundamento de que deveria
ser deduzida acusação (287º/1, b). Nestes casos, o processo sai da titularidade do MP e passa
para o JIC. O MP participa na instrução, mas apenas para a defender a sua decisão de
arquivamento. Como o controlo da sua decisão é feito fora da estrutura hierárquica do
Ministério Público, a probabilidade de sucesso é maior.

A decisão de arquivamento é também fiscalizável hierarquicamente (278º). Não tendo


sido requerida instrução, o imediato superior hierárquico do agente do MP que arquivou o
processo pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a
faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as
investigações prossigam, indicando nesse caso as diligências a efetuar e o respetivo prazo. Neste
caso, o processo continuará na linha hierárquica do MP. O MP é uma magistratura organizada
hierarquicamente, em que, os superiores hierárquicos têm poder de direção sobre os subalternos
(219º/4 CRP).

6.9.3. Reações a uma acusação: requerimento de abertura de instrução (arguido ou


assistente) ou acusação particular (284º) (assistente)

Formulada a acusação pelo MP (283º) ou pelo assistente, quando o procedimento


depender de acusação particular (285º), o arguido pode, no prazo de 20 dias a contar da
notificação da acusação25, requerer a abertura da instrução (287º/1, a)).

A instrução pode também ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender
de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.
Não é relativamente a todos os factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação que o
assistente pode requerer abertura de instrução, embora essa interpretação caiba no 287º/1, b).
Temos de conjugar esta alínea com o 284º/1, in fine, ou seja, se a discordância do assistente
respeitar a factos que não impliquem alteração substancial da acusação do MP, poderá acusar
por eles. Se o MP não tiver acusado em relação a esse tipo de factos, o assistente não deve
controlar tal decisão requerendo a abertura da instrução, pois pode formular uma acusação
particular, alternativa à do MP, nos termos do 284º.

Nota: Só nos crimes particulares a acusação do assistente pode levar diretamente a


julgamento. Nos outros casos só acompanhando a acusação do MP.

7. A fase da instrução

7.1. A fase de instrução: conteúdo e finalidades (287º e seguintes):

(i) Controlo jurisdicional da decisão que pôs fim ao inquérito

A instrução é uma das fases do processo penal, tem caráter jurisdicional e ocorre entre a
fase de inquérito e a fase de julgamento, quando requerida pelo arguido ou pelo assistente. A
sua finalidade basilar é a comprovação da decisão que pôs fim ao inquérito, por forma a decidir
se a causa é ou não submetida a julgamento (286º/1). O MP não tem nunca legitimidade para
requerer a instrução, o que faz sentido uma vez que se pretende controlar uma decisão por si
emanada. A comprovação judicial da acusação tanto pode ser promovida pelo assistente como
pelo arguido.

25
É de salientar a articulação deste regime de prazos com o disposto no 113º (devemos dar especial
atenção ao 113º/13). Será também de aplicar o 196º/2 e 3, c).
A comprovação judicial de arquivar o inquérito só pode ser promovida através de
requerimento para abertura da fase de instrução. Este requerimento (RAI) consubstancia uma
acusação que, nos mesmos termos que a acusação formal, condiciona e limita a investigação do
juiz de instrução criminal (que dirige esta fase nos termos do 288º/1) e a decisão instrutória.

Será o juiz de instrução a decidir se a causa deve ou não ser submetida a julgamento
(308º/1). Como vimos, a acusação do MP só deve ser deduzida nos termos do 283º/1 e o
inquérito deve ser arquivado nos termos do 277/º1 e 2. O fim da instrução é verificar se se
cumprem ou não os pressupostos de que a lei fez depender a acusação ou o arquivamento, entre
os quais se deve destacar a existência ou inexistência de indícios suficientes de que foi praticado
um crime e de quem foi o seu agente. Não está em causa um julgamento do crime acusado,
antes o controlo da ocorrência dos pressupostos que justificam a submissão do acusado a
julgamento. Daí o 308º se socorrer do critério dos indícios suficientes como referente da decisão
do JIC.

A instrução não deixa de ser, no entanto, uma fase jurisdicional. A atividade de direção
da instrução exercida pelo JIC (288º/1) é materialmente jurisdicional: apreciação de uma
situação factual concreta seguida de uma decisão proferida de um ponto de vista exclusivamente
jurídico. Não está em causa uma natureza materialmente policial ou de averiguações da
atividade do JIC. Este pode levar a cabo, autonomamente, diligências de investigação e recolha
de provas (englobadas pela cláusula geral da 1ª parte do 289º), sem, no entanto, a natureza
jurisdicional das suas funções sair beliscada.

Aliás, a natureza jurisdicional da instrução e o respeito pela estrutura acusatória do


processo limitam a liberdade da investigação levada a cabo pelo JIC ao próprio objeto da
acusação (290/1 e 2).

Esta fase é eventual ou facultativa (286º/2), ou seja, só tem lugar na forma comum de
processo se requerida pelo arguido 26 ou pelo assistente e apenas na forma de processo comum
(com efeito, podem os sujeitos processuais concordar ou preferir não contestar a decisão do MP
em fase de instrução).

Tal como indica o 286º/3, não há instrução nas formas de processos especiais. Se o MP
optar pela submissão do processo a uma forma especial, elimina a possibilidade desta fase
processual, existente no processo comum. No processo sumário, o arguido detido é
imediatamente submetido a julgamento, não há lugar a instrução. No processo sumaríssimo,

26
Este pode ou não ter interesse em requerer a abertura da instrução. Ser-lhe-á favorável fazê-lo quando
detenha um bom argumento de natureza simples que impeça o caso de ir a julgamento; ou quando, através
da instrução, possa obter a prescrição do processo. Mas noutros casos pode ser muito difícil não resultar
da instrução um despacho de pronúncia, caso em que o arguido vai a julgamento em pior posição
processual do que estava antes da instrução.
passa-se da acusação ao momento da aplicação da sanção concreta proposta. No processo
abreviado esta fase também não existe devido à busca de celeridade 27.

(ii) Defesa do arguido

A instrução a requerimento do arguido é uma manifestação do direito de defesa, sendo


esta fase, em alguns casos, a primeira em que o arguido tem a possibilidade de apresentar uma
sua defesa plena, perante uma entidade independente. Formulada a acusação pelo MP (283º) ou
pelo assistente, quando o procedimento depender de acusação particular (285º), o arguido pode,
no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação, requerer a abertura da instrução
(287º/1, a)).

O arguido pode requerer a abertura da instrução para debater os factos em que se baseia
a sua acusação e/ou a qualificação jurídica desses factos. Por exemplo, o arguido não questiona
os factos que lhe são imputados, mas tendo sido acusado de homicídio qualificado, entende que
a factualidade descrita deve ser valorada não por aquele tipo de homicídio, mas antes pelo
homicídio privilegiado.

Embora o 287 nº1 a) não pareça permitir, o 287/º2 prevê a hipótese de apresentar no
requerimento questões de facto e de direito. Além do mais, o 286º/1 não limita a finalidade da
instrução a questões de facto e do 297º/1 resulta que a instrução pode ter lugar sem que o juiz
faça diligências instrutórias (direcionadas para a averiguação de questões de facto), passando-se
logo para o debate oral e contraditório.

Nota: Ver a importância de na instrução se poderem discutir questões de facto e de


direito nos exemplos das páginas 154 e 155, Folhas de 98. Aconselha-se também a leitura
aprofundada do manual Qué Pasa, de DRA DRA DRA DE REAIS, enfim, para quem quer ser
um jurista acima da média.

Em suma, o arguido pode ter muito interesse em debater a qualificação jurídica dos
factos que lhe são imputados, uma vez que a sua posição processual pode ser posta em causa
não só por modificações nos factos que integram o objeto do processo, mas também por
modificações no enquadramento jurídico desses mesmos factos. Se, na senda dessa discussão,
ele obtiver um despacho de não pronúncia não haverá julgamento. Mesmo que obtenha uma
pronúncia diferente (com uma outra qualificação jurídica como no exemplo acima), está a
contrariar a pretensão acusatória do MP, o que já é muto importante do ponto de vista do seu
direito de defesa.

27
Numa nota jurisprudencial, já foi alegado em alguns processos que esta solução legislativa do 286º/3
violava os direitos de defesa do arguido, ao eliminar uma fase da mesma; ou ainda em que se defendeu
que os direitos do ofendido poderiam estar igualmente a ser postos em causa, uma vez que se diminui a
sua participação no processo.
Para GERMANO MARQUES DA SILVA a instrução pode ter, ainda, como fim ilidir
ou enfraquecer os indícios de circunstâncias acidentais do crime e é também admissível o
requerimento pelo arguido que vise apenas a aplicação da suspensão provisória do processo
(307º/2, a suspensão é permitida nesta fase).

(iii) Concretização de pretensões do assistente

A instrução pode também ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender
de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.

Nota: v. último parágrafo do ponto 6.9.3. para perceber em relação a que factos
relativamente aos quais o MP não deduziu acusação pode o assistente emitir o RAI.

Três razões fundamentam a restrição do âmbito factual do RAI operada pela articulação
do 287º/1, b) como 284º/1:

(i) Existência de norma expressa que confere a possibilidade de formular uma acusação
alternativa nos termos do 284º face a esses factos, que lhe permite controlar uma deficiente
qualificação jurídica feita pelo MP;

(ii) razões de celeridade e eficácia processual, já que o assistente podia requerer a


instrução para debater a qualificação jurídica de certos factos com o propósito de sujeitar o
arguido a mais instâncias de apreciação da sua conduta, sendo que o arguido tem, na maior parte
das vezes, interesse em ver o seu caso rapidamente julgado;

(iii) por fim, ao contrário do arguido, o assistente não tem um interesse muito
significativo em pedir a abertura de instrução para debater questões de direito (ver supra o
porquê no caso do arguido): se obtiver um despacho de pronúncia, isso revela-se inútil, visto
que no julgamento o juiz não está vinculado pela qualificação jurídica anterior dada aos factos
pelo MP, sendo que esta pretensão do assistente é plenamente concretizável através da acusação
particular do 284º.

Se, porém, (i) a divergência do assistente relativamente à acusação do MP for


substancial, por o assistente entender que a acusação deveria ter conteúdo significativamente
diverso, donde resultasse a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos
limites máximos das sanções aplicáveis, ou, (ii) tendo-se o MP abstido de acusar, arquivando o
processo, o assistente entender que deveria ter sido deduzida acusação, em conformidade com o
283º, pode o assistente requerer a abertura da fase de instrução.

(iv) Reformulação do objeto do processo

Reformular o objeto do processo consiste em modificar os factos descritos na acusação


e que irão ser debatidos no processo.
Num sistema em que vigora a estrutura acusatória, quem faz a acusação não julga o
caso e vice-versa. Ou seja, a partir de um certo momento os factos consideram-se fixados e, a
partir daqui, será muito difícil modificar os factos que constituem o objeto do processo (só
mediante acordo de todos os sujeitos processuais): para garantir o estatuto do arguido e o debate
contraditório sobre os factos, estes têm de ficar estabelecidos num certo momento. Se o juiz
pudesse aditar factos ao objeto estaria a pôr em causa o estatuto do arguido e, por outo lado, a
misturar as funções que tem de exercer no processo penal.

Ora, nesse sentido, o momento em que os factos são estabelecidos é, em regra, o da


acusação, é com ela que se estabiliza o objeto do processo. Mas os sujeitos processuais podem
discordar dos factos que foram descritos pelo MP na acusação.

O assistente é o sujeito processual que, regra geral, terá mais interesse em modificar o
objeto do processo, pelo que este regime de estabilidade do objeto do processo na acusação
prova-se-lhe muito rigoroso, em nome da proteção dos princípios do Estado de Direito, da
certeza jurídica e da liberdade, todos correndo no interesse do arguido. Assim, a lei concede-lhe
tal hipótese na fase da instrução, em que uma das funções do RAI é permitir a reformulação do
objeto do processo.

Por exemplo, o assistente entende que existem as circunstâncias qualificadoras do


homicídio do 132º/2, CP e pretende adicionar esses factos, dizendo que o homicídio não foi só
pelos factos A, B e C, mas também pelos factos D, E e F, o que do ponto de vista substantivo,
significa que se está perante um caso do 132º, CP e não do 133º, CP. O assistente com a sua
pretensão estará a alterar a factualidade que é o objeto do processo, que deixará de ser apenas a
que constava da acusação do MP. Os factos D, E e F, se não constassem do requerimento de
abertura de instrução, não podiam ser conhecidos pelo Tribunal de Julgamento, pois tal
representaria uma alteração substancial dos factos. (359º/1 e 1º, f)).

(v) Requerimento de abertura de instrução como acusação (57º/1)

Quando a instrução é requerida pelo assistente relativamente a factos não acusados, o


RAI cumpre o papel de acusação no que se refere à fixação desses factos, dentro dos limites do
288º/4 e, mais decisivamente do 303º.

Ver 57º/1 e 287º/2, donde resulta que, substancialmente, o requerimento contenha uma
verdadeira acusação, se for feito pelo assistente. Deve constar, nesse caso, do requerimento o
disposto nas alíneas b) e c) do nº3 do 283º, ou seja, os elementos essenciais da acusação.

O juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar


indiciários e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses
factos (308º e 309º).
7.2. Estrutura da Instrução:

(i) RAI (287º/ 2 e 3)

A instrução principia com um RAI, cujos requisitos de apresentação (287º/1) e conteúdo


(287º/2) já foram por nós expostos supra. A instrução é, de facto, aberta a requerimento do
arguido ou do assistente, manifestando o seu estatuto de sujeitos processuais. Quanto ao seu
conteúdo, embora este não esteja sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as
razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente ao conteúdo da
decisão de encerramento do inquérito do MP28. Acresce a isto, sempre que for caso disso, a
indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o JIC leve a cabo, dos meios de
prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que se espera provar 29.

Cumpre agora olhar o 287º/3, que trata dos motivos de rejeição do RAI. A lei favorece a
abertura da instrução, pois o RAI só pode ser recusado nas três situações tipificadas nesta
norma.

a) Extemporaneidade do requerimento: casos de incumprimento do prazo de 20 dias


a contar da notificação da acusação ou do arquivamento (287 nº1) em que o RAI deve ser
apresentado;

b) Incompetência do juiz: o juiz ao qual for apresentado o RAI pode declarar-se


incompetente, remetendo-o para o JIC competente;

c) Inadmissibilidade legal da instrução: serão estes os casos de este (i) requerimento


ser apresentado em processo tramitado na forma especial (286 nº3); (ii) se o requerimento for
apresentado por arguidos que não tenham sido acusados; (iii) por assistentes se o apresentarem
em processos referentes a crimes particulares (287º/1, b)); (iv) se o requerimento do assistente
não conformar uma verdadeira acusação identificando o objeto (factos típicos) e o arguido
(286º/2); (v) se o RAI for apresentada numa das situações do 284º, em que o assistente pode
apresentar acusação alternativa à do MP; (vi) se o RAI se referir a factos que não forem objeto
do inquérito; (vii) se o requerente não for assistente ou ofendido nos termos do 68º; (viii) se
faltar o pagamento da taxa de justiça, quando a instrução for requerida pelo assistente.

Não há controlo de mérito do RAI, apenas a verificação da sua conformidade com estes
critérios formais. Sendo feita a apresentação tempestiva de RAI válido, passamos à fase
instrutória, em que o JIC praticará:

28
Em acórdão do STJ (nº7/2005) foi fixada jurisprudência no sentido de não há lugar a convite ao
assistente para aperfeiçoar o RAI se este for omisso quanto à narração sintética destes factos, que
fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
29
V. requisitos adicionais no 7.1., (v) para o caso do RAI ser apresentado pelo assistente, nos termos do
283º73, b) e c).
(ii) Os atos instrutórios (290º e seguintes)

Atos instrutórios correspondem às diligências que o JIC considerar convenientes para


alcançar as finalidades referidas no 286º/1 – isto nos diz o 290º/1 bem como o 289º/1, 1ª parte -
podendo estas diligências ser-lhe requeridas pelos sujeitos processuais (287º/2). Numa outra
formulação, os atos instrutórios são atos de investigação e de recolha de provas ordenados pelo
juiz, oficiosamente ou a requerimento, em ordem a fundamentar a decisão instrutória.

O 288º/4 dispõe que o juiz investiga autonomamente 30 o caso submetido a instrução e


que esta é formada pelos atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo (289º), donde
resulta que os atos de instrução a praticar dependem da livre resolução do juiz. Pode, por isso,
existir uma atividade complementar probatória nesta fase.

O JIC é assistido na prática destes atos instrutórios pelos OPC, a quem pode conferir o
encargo de proceder a diligências instrutórias, nos termos do 290º/2.

O JIC não está vinculado aos atos de instrução requeridos (291º/1) por isso não cabe
recurso do despacho de indeferimento (291º/2). Possui, de facto, um poder autónomo de recusar
a realização de diligências requeridas pelos sujeitos processuais se entender que as mesmas
ultrapassam a natureza indiciária da instrução. O JIC decide ainda da ordem dos atos a realizar,
em função do que se mostrar mais adequado, na sua perceção, ao apuramento da verdade
(291º/1, 1ª parte).

A situação do 292º/2 não depende da livre resolução do juiz como sucede com os
demais atos de instrução. Se o juiz não proceder às interrogações elencadas neste artigo, somos
levados a aplicar os artigos 120º/2, d) e 120º/3, c), que estatui a nulidade do processo, ainda que
esta esteja dependente de arguição.

A publicidade, enquanto fenómeno externo, apenas existe na instrução na fase do debate


instrutório (86º/6, a)). No entanto, podem os sujeitos processuais assistir às demais diligências
da instrução, nos termos do 289º/2.

Se for requerida a prática de atos que já foram praticados no inquérito, o 291º/3, a


contrario estabelece que a regra será o seu indeferimento pelo JIC, pelo que é necessário que se
indique a razão da indispensabilidade para a realização das finalidades da instrução ou a
inobservância de formalidades legais no inquérito para que se permita a repetição destes atos.

Os atos de instrução não são obrigatórios, podendo haver instrução sem a sua prática
(297º). MARIA JOÃO ANTUNES dá o exemplo dos casos em que no RAI se invoquem apenas
30
Esta investigação é autónoma, mas limitada pelo RAI no que diga respeito às razões de facto e de
direito de discordância com a decisão do MP no encerramento do inquérito, como aliás indicam os artigos
303º e 309º/1. Ou seja, a instrução permite um suplemento à investigação do inquérito, mas este não é, de
todo, um suplemento de investigação autónomo.
razões de direito (vide uma prescrição do procedimento criminal ou a descriminalização da
conduta imputada ao arguido) ou ainda de um RAI que vise a dispensa de pena ou a suspensão
provisória do processo.

(iii) Debate instrutório (297º e seguintes).

O debate instrutório é obrigatório (289º/1, 2ª parte), oral e contraditório (298º), no qual


podem participar o MP, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes
civis (289º/1, in fine).

Este momento da instrução visa permitir uma discussão perante o juiz sobre se, do
decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes
para a submissão do arguido a julgamento. Ouvido um sujeito processual que faz valer uma
certa pretensão, tem de ser ouvido o sujeito processual que eventualmente possa ser afetado com
essa pretensão.

Este debate e, em geral, toda a instrução têm de se pautar por um grande equilíbrio na
sua condução, imprescindível que esta fase se cinja a aprofundar a análise que se fez sobre a
responsabilidade do arguido no inquérito, sem que se converta, materialmente, num autêntico
julgamento. Não se pode, por isso, ultrapassar o limite da prova indiciária, extraído do 298º. É
necessário apurar se há indícios suficientes para o caso ir a julgamento, mas mais do que isso
será materialmente ilegítimo, tendo em conta a natureza desta fase processual. Consequências
práticas: o JIC não julga o caso, não tem de esgotar os meios de prova para resolver todas as
suas dúvidas.

Nota: ler artigos do 297º ao 305º.

Uma das caraterísticas que permite distinguir a instrução do inquérito é o facto de a


instrução ser uma fase orientada pelo princípio do contraditório, em termos plenos. Por força
dos artigos 289º e 298º, a instrução comporta obrigatoriamente um debate oral e contraditório,
materialmente semelhante ao que se passa numa audiência de julgamento. O MP participa nele
para fazer valer a sua pretensão; o juiz dirige a fase processual com poderes de direção efetivos
e poderes de investigação em nome da verdade material (288º/4, 289º, 290º, 291º, 299º e 301º);
o arguido, o seu defensor e o assistente podem ter uma intervenção ativa, estando todos os atos
sujeitos ao princípio do contraditório (289º e 298º).

(iv) O despacho instrutório: a decisão de pronúncia ou não pronúncia (308º)

A instrução encerra-se depois do debate instrutório, através da prolação de um despacho


de pronúncia ou de não pronúncia, nos termos do 307º/1.
A circunstância de a instrução ter sido requerida apenas contra um dos arguidos não
prejudica que o juiz retire dela consequências legalmente impostas a todos os arguidos – 307º/4.

O despacho de pronúncia vem previsto no 308º e significa a confirmação da viabilidade


processual da pretensão acusatória do MP, isto é, que existem efetivamente indícios suficientes
que permitem um juízo de possibilidade quanto à efetivação da responsabilidade penal contra o
arguido.

O seu conteúdo é moldado sobre as exigências legais para a acusação (308º/2 e 283º/2,
3 e 4).

Em razão da vinculação temática do tribunal de instrução criminal ao conteúdo do


inquérito e do RAI, bem como em função do direito de defesa do arguido, este não pode ser
pronunciado por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação ou
no RAI, de acordo com o estatuído no 1º, f) e 303º/3 31. A violação desta proibição implica a
nulidade da decisão instrutória (118º/1 e 309º/1), sendo que é recorrível um eventual despacho
que indefira a sua arguição (310º/3).

O JIC conhece questões de forma no despacho instrutório (308º/3), mas também se


pronuncia sobre as questões de fundo, questões materiais absolutamente decisivas. O JIC pode
pronunciar-se sobre mais questões do que aquelas que se reconduzem ao apuramento de indícios
suficientes para o processo seguir para a fase de julgamento. Que se pronuncie sobre os indícios
suficientes é apenas um requisito mínimo.

Por exemplo, o arguido invoca o 16º/1 do CP, o juiz terá de se pronunciar sobre esta
questão pois é a viabilidade da pretensão acusatória que está em causa. Esta questão leva-nos ao
ponto seguinte.

Uma parte da doutrina, encabeçada por SOUTO MOURA, defende que o 308º/3 nos
traz uma terceira modalidade de despacho instrutório, o despacho de mera forma, em que o juiz
só conheceria de nulidades processuais e questões incidentais prévias de que pudesse conhecer,
tendo este um conteúdo distinto do despacho do 308º/1, na medida em que ao conhecer das
nulidades poderia não entrar na questão de fundo de saber se há indícios para submeter o caso a
julgamento.

COSTA PINTO discorda. Pela própria letra do 308º/1, o que está em causa não é um
despacho diferente, mas um momento do despacho previsto no n.º1. Conhecer das questões
elencadas no nº3 corresponde somente a um momento do despacho instrutório e, a existir, não

31
V. artigo para outras consequências de alteração substancial dos factos. O 303º/4 diz, no entanto, que
sendo comunicada esta alteração substancial ao MP, tal comunicação equivalerá a denúncia para que ele
proceda pelos novos factos, desde que esses sejam autonomizáveis em relação ao objeto do processo já
em curso. V. também o 303º/1 e 5.
se decidirá das questões referidas no 308º/1, por razões de economia processual. Um despacho
que conheça, como questão prévia, de nulidades processuais e decida que o caso não pode ir,
por causa delas, a julgamento, não deixa de ser um despacho de não pronúncia.

Quando SOUTO MOURA apresentou esta tese existia um recurso autónomo do


despacho que conhecesse das nulidades processuais. Mas o 310º/1, do novo CPP, já não admite
um recurso autónomo só das nulidades, o que também concorre para afastar esta opinião de
SOUTO MOURA.

7.3. O despacho de não pronúncia (308, nº1, 2ª parte): natureza, modalidades e efeitos

O despacho de não pronúncia revela que a pretensão acusatória do MP (ou do assistente


ao requerer a abertura após o arquivamento do MP) não é procedente, quer porque não existem
indícios suficientes para levar o caso a julgamento, quer por qualquer outra questão
juridicamente decisiva. Por exemplo, se o arguido vem acusado de facto doloso e se invoca uma
situação de erro que é procedente, caso não exista um tipo de crime negligente pode haver uma
não pronúncia, ou seja, significa que não há julgamento.

Nota: Desde que obtenha a concordância do MP, o JIC pode encerrar a instrução nos
termos do 280º/2, arquivando o processo por dispensa da pena 32; ou pode ainda suspendê-lo
provisoriamente, de acordo com os 307º/2 e 281º.

7.3.1 O despacho de não pronúncia: um despacho formal ou material (caso julgado)?

No CPP não há nenhuma norma que expressamente determine o valor do despacho de


não pronúncia. Mas faz este despacho caso julgado material, ou seja, é uma decisão definitiva e
imodificável, de caráter jurisdicional, sobre aqueles factos?

O debate instrutório é marcado pela intervenção de todos os sujeitos processuais, e


nesse sentido, assemelha-se a um julgamento. É orientado por um contraditório pleno em
matéria de facto e de direito e, nesse sentido, também se aproxima de um julgamento e não de
um despacho de mero expediente como o do 308º/3.

Além do mais, como já estudámos, o JIC tem poderes e deveres de investigação em


nome do princípio da verdade material (288º/4, 289º, 290º, 291º, 299º, 301º). As provas
admitidas são as mesmas que no julgamento (292º).

Esta fase termina com uma decisão judicial, isto é, uma decisão de um tribunal
(despacho de não pronúncia), que tem, por isso, natureza jurisdicional e não meramente
administrativa como se pode considerar em relação ao ato de arquivamento do MP (277º).

32
Neste caso precisará também de concordância do arguido.
O despacho de não pronúncia é recorrível, isto é, pode ser objeto de confirmação por
um tribunal superior, o que reforça a sua natureza jurisdicional. Mais a mais, não há nenhuma
norma expressa a permitir a reabertura, como existe o 279º para o arquivamento do inquérito,
que não tem natureza jurisdicional33.

Todos estes argumentos acima apresentados concorrem na ideia de que, com o despacho
de não pronúncia, o processo termina definitivamente, faz caso julgado material, não podendo
os factos que o compõem ser de novo sujeitos a julgamento – tem o chamado efeito preclusivo.

Em suma, este despacho traduz-se num ato de caráter jurisdicional, uma decisão
proferida por um tribunal, que conhece todas as questões de facto e de direito, após um debate
oral e contraditório, onde se produziu toda a prova legalmente admissível, sujeita a recurso e
confirmável por instâncias superiores. Não é realizado formalmente um verdadeiro julgamento
dos factos que integram o objeto do processo, mas existem mais afinidades materiais entre a
decisão proferida pelo JIC e a decisão proferida pelo juiz de julgamento, do que a decisão
proferida pelo JIC relativamente à decisão de arquivamento do MP. A decisão de não pronúncia
considera-se, assim, um julgamento dos factos, para efeito do disposto no 29º/5, CRP.

7.4. O problema da irrecorribilidade da decisão instrutória (310º)

Para responder à questão da recorribilidade do despacho instrutório devemos articular o


310º com o regime geral de recorribilidade do 399º.

Assim o despacho de pronúncia é irrecorrível, uma vez que essa irrecorribilidade está
prevista expressamente na lei (310º), condição para que ela existe e fuja à regra geral da
recorribilidade das decisões judiciais do 399º.

Mas quanto a este despacho importa fazer uma destrinça. O caso mencionado no 310º é
o de a pronúncia se fazer pelos mesmos factos constantes da acusação feita pelo MP no
encerramento do inquérito. Este despacho é irrecorrível, pois confirmando-se o conteúdo da
acusação ("dupla conforme"), não há recurso porque se entende que o despacho de pronúncia
produz imediatamente efeitos, já existindo segurança quanto à consistência do caso para ir a
julgamento. Mas, a contrario sensu, se o despacho de pronúncia contiver factos diferentes dos
que compunham a acusação levada à instrução então já será recorrível.

33
GERMANO MARQUES DA SILVA considera que se deve aplicar o 279º analogicamente à instrução,
porque esta é mais semelhante ao inquérito que ao julgamento. COSTA PINTO discorda, na medida em
que, para ele, o inquérito e a instrução são fases qualitativamente diferentes, não se podendo transferir por
via hermenêutica o regime de um para a outra. A aplicação analógica só pode existir para integrar uma
lacuna, mas nem todas as omissões legislativas são lacunas. Se o legislador não optou por uma solução
similar à do 279º para a instrução, foi porque não o quis, foi uma opção legislativa, não uma lacuna. A
existir uma solução deste tipo teria a lei que a prever expressamente.
Já se o despacho de não pronúncia, não sendo mencionado no 310º (nem outro lugar da
lei) em relação a uma sua irrecorribilidade, é sempre recorrível, por força da regra geral do 399º.

Em todos os casos de recorribilidade do despacho instrutório, o recurso deve seguir para


a Relação, nos termos gerais do 427º.

De destacar ainda que o despacho instrutório, naquilo que diga respeito a nulidades e
outras questões incidentais prévias (como prova proibida), é irrecorrível. Com efeito, antes de
2007 era possível recorrer autonomamente destas matérias, mas o legislador eliminou esta
possibilidade com a reforma do CPP.

7.5. Pode ser apresentado RAI em relação a sujeitos que não foram constituídos arguidos
no inquérito?

Quer-se saber com esta questão se se pode apresentar RAI contra alguém que não tenha
sido constituído arguido, por forma a conseguir submetê-lo a julgamento, no âmbito do controlo
à decisão do MP de não levar tal sujeito a essa fase de imputação de responsabilidades.

Esta é uma questão que surge no contexto da law in action, onde se criam tendências
que cria uma certa expetativa quanto à aplicação do direito. Existe jurisprudência da Relação de
Lisboa, do Porto e de Guimarães que procura dar resposta a esta questão, onde se denota uma
tendência para dar resposta negativa à possibilidade de apresentar RAI face a sujeitos que não
foram constituídos arguidos.

Mais, a jurisprudência especifica que a distinção a ser feita para servir de base a esta
análise não é se a pessoa é arguida ou não; mas se a pessoa foi ou não investigada no decurso do
inquérito.

Se uma pessoa foi investigada, então o assistente pode apresentar RAI contra ela. Mas
se não foi investigada não pode ser apresentado RAI contra ela. Este entendimento é fundado
em que base legal? No artigo 119º, CPP, b) e d) (que opera uma forte tutela da legalidade
processual), uma vez que se a pessoa não foi sequer investigada e for decidido, em instrução,
que deve ir a julgamento, então não haverá sequer inquérito contra essa pessoa, o que
constitui uma nulidade insanável do processo.
Nesses casos, a investigação teria lugar na instrução, o que não pode ser aceite. A
instrução é uma fase complementar à investigação/inquérito, controlando-o; não pode nunca
constituir um inquérito alternativo.

Este primeiro argumento, apresentado supra, arrima-se na separação de fases


processuais e suas finalidades.

Seguindo a mesma lógica, o assistente já poderá apresentar RAI contra uma pessoa cujo
processo tenha sido arquivado no termo do inquérito. A instrução servirá de controlo em relação
a esse arquivamento; pois já houve processo aberto contra essa pessoa, que, por isso mesmo, já
foi objeto de uma investigação.

Podemos, nesta matéria, distinguir três situações:

a) o assistente requer RAI contra pessoas investigadas, constituídas arguidas e algumas delas
não foram acusadas – o assistente pode fazê-lo (287º/1, b)) contra todos os arguidos
investigados no inquérito, incluindo aqueles que não foram acusados, submetendo tal decisão ao
controlo do JIC;

b) várias pessoas foram investigadas, mas nenhuma delas foi constituída arguida e o inquérito
foi arquivado. É nestes casos admissível apresentar RAI contra todos os investigados, pois a
instrução controlará a investigação feita e a decisão de encerramento do inquérito;

c) o processo é conduzido e há pessoas que nem sequer foram investigadas. O assistente não
pode requerer RAI, responde a jurisprudência (v. supra). Nestes termos, a instrução funcionaria
como inquérito que não existiu, do ponto de vista material. Assim subvertem-se a repartição de
finalidades entre as várias fases processuais, convertendo-se a instrução, uma fase de
sindicância, numa fase de investigação. Admitir neste tipo de casos o RAI equivaleria
materialmente a acusar sem inquérito, conferindo-se ao assistente um poder que este (nem o
MP) não tem – nulidade insanável do processo (119º, como vimos acima). Nota: Assistente
pode fazer uma denúncia (pessoas diferentes não se considera litispendência) ou pode pedir
controlo hierárquico (avocação ou mandar fazer mais diligências).

Mais argumentos podem ser apresentados para fundamentar a resposta supra, diz
COSTA PINTO, para lá do da natureza das fases processuais e necessidade da sua não
subversão nem da estrutura acusatória do modelo processual penal português, que acabámos de
estudar:

- Necessidade de salvaguarda da legalidade da forma processual comum: deve haver sempre


inquérito, nos termos do 119º;
- 272º/1 – se o MP para deduzir acusação tem antes de ouvir arguido, não se pode permitir que
o assistente possa fazer mais que a entidade pública que tem o monopólio da ação penal, i.e.,
que sem ouvir uma dada pessoa, a possa levar a responder perante o JIC em tribunal de
instrução e, mais tarde e eventualmente a tribunal de julgamento;

- O regime de constituição de arguido não contempla a constituição autónoma de arguido na


instrução. A fase de instrução pressupõe que a pessoa seja arguida, ou que, tendo sido, já não o
seja por arquivamento do inquérito. Este é um argumento a articular com o da natureza das fases
processuais, apresentado supra.

- Pode também ser deduzida uma razão de fundo para a defesa desta tese: o legislador deu o
monopólio constitucional da ação penal ao MP, permitindo a participação processual do
assistente, mas nunca permitindo que um particular promova um processo penal contra alguém,
como pode suceder no processo civil. Pode acusar pessoas nos crimes particulares, enquanto
ofendido, mas tal acusação particular tem a si subjacente um inquérito conduzido pelo MP e
uma promoção do processo que, em última ratio, é também feita pelo MP ainda que dependente
de atos processuais do ofendido. Nunca se pode contornar o monopólio da ação penal do MP,
algo postulado na CRP.

8. A fase de julgamento

Finda a instrução, se for proferido um despacho de pronúncia, ou após a acusação


quando não tenha sido aberta instrução ou esgotado o prazo para requerimento de instrução, os
autos do processo são remetidos ao tribunal competente para que se inicie a outra fase
obrigatória do processo comum, a fase do julgamento.

8.1. Estrutura acusatória e a centralidade do julgamento.

Como pilar basilar da ideia de estrutura acusatória do processo penal temos a separação
fundamental entre inquérito/investigação e a do julgamento, advinda da própria ciência da
estrutura acusatória.

A fase de investigação não decide da responsabilidade dos eventuais agentes, mesmo


que seja muito aprofundada ou que tenha conduzido à aplicação de medidas de coação, como a
prisão preventiva. Serve, isso sim, para levar indiciariamente a julgamento alguém para
eventual imputação de responsabilidades. O julgamento é fase central de apreciação de
responsabilidades, contrapondo-se, nestes termos, ao inquérito.
Quando um caso é conduzido a julgamento, pretende-se que se analise a
responsabilidade criminal do arguido, apurando a verdade dos factos e a sua responsabilidade
concreta do arguido.

A fase do julgamento conhece três momentos distintos: (i) atos preliminares à


audiência, (ii) a audiência, onde se faz toda a produção de prova em ambiente de contraditório
para se apurar a verdade material e (iii) a sentença; a sua própria produção sendo vista como
momento do julgamento.

8.2. Atos preliminares à audiência: o saneamento (311º), a marcação de audiências (312º),


a contestação e o rol de testemunhas (315º); o âmbito da causa (339º/4) e o dever de
pronúncia (379º/1, c)).

Após a distribuição do processo, o juiz irá elaborar despacho preliminar nos termos do
311º, quer haja instrução ou não. Há sempre lugar à apreciação judicial da verificação dos
necessários pressupostos da fase de julgamento.

A diferença é que, tendo havido instrução, o juiz de julgamento, antes de designar dia
para a audiência, limita-se a sanear o processo nos termos do 311º/1, a possibilidade de controlo
da acusação é de menor escopo, o que bem se compreende uma vez que na fase instrutória já se
deu um controlo jurisdicional da acusação. Quando não haja instrução, o juiz, neste ato
preliminar de saneamento do processo, terá de se debruçar sobre o fundamento da acusação, por
um lado, e verificar se a acusação do assistente ou do MP representa ou não uma alteração
substancial da acusação dominante (311º/2).

Este despacho tem, assim, uma função similar à decisão instrutória, de apreciação da
legalidade da acusação e subsistência dos pressupostos para que o arguido possa ser submetido
a julgamento pelos factos da acusação, podendo o juiz rejeitar a acusação que lhe foi
apresentada.

O juiz não conhece do mérito da causa, isto é, ele não se pronuncia sobre as questões
materiais que integram o objeto do processo. Porque é que não pode conhecer do mérito?
Porque desse modo estaria a subverter por completo o espírito do julgamento, decidindo do caso
antes da produção de prova. Assim, o juiz faz no despacho saneador um controlo dos aspetos
básicos de legalidade processual.

Rejeitando a acusação, estará a fazer um saneamento negativo, ou seja, um juízo


negativo categórico de rejeição da acusação por força de uma questão de Direito ou de uma falta
de tipicidade dos factos que manifestamente inutiliza a pretensão acusatória (por exemplo, a
descriminalização de uma conduta, o decurso de um prazo de prescrição, a aplicação de uma lei
de amnistia). Por exemplo, o MP descreve um conjunto de factos, considerando que eles se
submetem a uma certa previsão normativa, mas o juiz verifica que tal não é possível pela
simples leitura do ilícito e, portanto, trata-se de um equívoco ou de uma pretensão interpretativa
do MP sem o mínimo apoio na letra da lei, pelo que o juiz decide que não há tipo de crime para
esta pretensão acusatória. Caso exista uma dúvida quanto à subsunção dos factos ao tipo de
crime, não é legítimo recusar a acusação nos termos do 311º.

311º/2, a) – v. artigo. Como concretizar o conceito de acusação manifestamente


infundada? Através do 311º/3, que estabelece taxativamente os casos de acusação
manifestamente infundada. Podemos perceber, por isso que a expressão manifestamente
infundada tem um sentido restrito e não respeita à indicação dos pressupostos de punibilidade,
como sucede no 308º (a propósito dos indícios suficientes). Nota: v. anotações desta norma.

De destacar o 311º/3, c): se a prova for meramente ilegal, o juiz não pode conhecer de
tais questões nesta fase. Porém, se houver uma situação de prova manifestamente proibida, pode
o juiz conhecer dela no despacho saneador, pois estas provas proibidas são inadmissíveis e essa
ilegalidade mais graduada pode ser conhecida por qualquer tribunal em qualquer momento do
processo. Há que, com efeito, operar a distinção entre prova meramente ilegal e prova proibida.
Toda a prova proibida é ilegal mas nem toda a prova ilegal é proibida; e só a ilegalidade da
proibida pode ser conhecida nesta fase.

311º/2, b) – faz-se aqui um controlo da legitimidade para dedução de acusação. Nem o


assistente pode acusar nos crimes públicos e semipúblicos por factos que representem uma
alteração substancial da acusação do MP, nem o MP tem legitimidade para acusar nos crimes
particulares por factos que representem uma alteração substancial da acusação deduzida pelo
assistente. O despacho proferido ao abrigo desta alínea, tem precisamente por fim o controlo de
legalidade da acusação subsidiária em matéria de acusação 34, dado não ter havido instrução.

O juiz do tribunal de julgamento possui uma liberdade na requalificação jurídica dos


factos feitos na acusação ou na pronúncia, mas só o pode fazer após a produção de prova e não
no despacho liminar, de acordo com jurisprudência recente.

Este despacho preliminar do juiz é recorrível nos termos do 407º/3, este será um recurso
a final.

Engloba-se ainda nos atos preliminares à audiência o preceituado no 312º, referente à


marcação da audiência de julgamento. Nota: v. artigo.

34
É pela acusação que se fixam os factos a submeter a julgamento e porque a acusação subsidiária do
assistente não pode importar alteração substancial da acusação do MP, os factos pelos quais a acusação há
de ser recebida são os da acusação dominante, eventualmente completada pelos da acusação subsidiária,
se a correção não importar alteração substancial daquela.
315º - o arguido pode (não está obrigado) a apresentar a contestação e a indicar o rol das
suas testemunhas. Esta apresentação faz-se no prazo de 20 dias após a notificação do despacho
de marcação da audiência (v. também 113º), referido no parágrafo anterior.

A contestação não está sujeita a formalidades especiais (313º/2), não tem de ser
formulada por escrito. A contestação cria o âmbito da causa (339º/4), o conjunto de questões de
facto e de direito suscitadas pela acusação e pela defesa, sobre as quais o tribunal terá um dever
de se pronunciar, sob pena de ilegalidade parcial da sentença, nos termos do 379º/1, c).

COSTA PINTO considera que existe vantagem em contestar, pois assim o arguido
suscita no processo questões de direito que serão, por isso, objeto de um dever de pronúncia por
parte do juiz de julgamento. Pode o arguido não o fazer na contestação, mas antes na audiência
de julgamento, tudo depende da sua estratégia. Mas a contestação é uma peça processual que
melhor sistematiza e clarifica os argumentos do arguido, permitindo suscitar o dever de
pronúncia do juiz quanto às questões nela apresentadas de forma mais segura.

Na sentença, o tribunal tem de indicar os factos provados e não provados (374 nº2),
sendo estes não apenas os factos da acusação mas também os alegados pela defesa na
contestação. Ou seja, o contraditório não se faz apenas de modo essencial pela discussão das
provas sobre os factos da acusação, mas pela invocação de factos que, desde que provados,
ilidem as provas da acusação, afastam a qualificação jurídica ou diminuem a responsabilidade
do arguido. Bastará, em certos factos, criar no espírito do julgador a dúvida da sua ocorrência
para que devam ser considerados a favor do arguido devido ao princípio da presunção da
inocência (in dubio pro reo).

Também é importante para a disciplina da audiência que o tribunal entenda a razão de


certas questões postas às testemunhas e esse razão encontra-se, em regra, na contestação.

Quanto à indicação do rol de testemunhas, por uma questão de célere andamento do


processo devem a identificação e posterior convocatória das testemunhas ser tratadas neste
momento. Mas não só a economia processual justifica esta solução, que também se fundamenta
no princípio da lealdade processual. À luz deste princípio, devem todos os sujeitos processuais
perceber a extensão completa do acervo de prova, por forma a que se evitem decisões surpresa,
em que uma eventual testemunha tem impacto na decisão pelo facto de aparecer em julgamento
sem ninguém saber e não tanto pelo que diz.

Ainda que, por princípio, o rol de testemunhas deva ser sempre apresentado nesta fase, a
prática jurídica (à luz do 340º) permitiu que se apresentassem testemunhas em fase posterior,
em nome da descoberta da verdade. Esta tendência atenuou-se, uma vez que as reformas do
Código conferiram ao juiz poderes mais fortes de disciplina da audiência e este passou a poder
recusar a apresentação de testemunhas-surpresa.

Procede-se ainda, neste momento preliminar, à notificação dos demais intervenientes


processuais (317º) e, excecionalmente nos termos do 318º, à tomada de declarações a residentes
fora da comarca.

8.3. A audiência: publicidade (321º), contraditório (327º) e oralidade e imediação (355º).


Poderes de investigação (323º e 340º), alegações orais e últimas declarações do arguido
(360º e 361º).

O momento da audiência de julgamento é marcado por princípios antagónicos com


aquilo que foi o inquérito – enunciados neste ponto do sumário.

De acordo com a CRP e o CPP as audiências são públicas (206º, CRP e 86º/6, a) e
321º, CPP), admitindo exceções quanto a dados de natureza mais sensível (321º/1, in fine,
321º/2 e 87º). A assistência a audiências de julgamento configura um direito do público em
geral, que pode ser fundamento de nulidade insanável do processo quase tal publicidade não
seja assegurada.

Subjacente à sua consagração está a ideia de que não se pode esconder a justiça penal
dos cidadãos35. Garante-se ao povo a possibilidade de se aperceber diretamente como é
administrada a justiça, tutela-se o juiz de suspeitas sobre o modo como exerce a sua função e
exige-se dos peritos, testemunhas e em geral de todos os que participam na audiência uma
correta colaboração com a justiça.

Nota: v. 88º/2, b) para inibições de transmissão do julgamento.

A audiência é ainda marcada por um contraditório pleno em termos de facto e de


direito, manifestado na ideia de que todos os sujeitos devem ser ouvidos antes das decisões dos
tribunais, participando de forma ativa nesta fase do processo, i.e., na produção de prova em
audiência, na apresentação de razões de facto e de direito, no oferecimento das suas provas, no
controlar das provas contra si oferecidas. Esta é uma imposição constitucional (32º/5),
concretizada no 327º. Todos os sujeitos processuais podem suscitar e defender-se de questões de
facto e de direito que possam ser relevantes para a boa decisão da causa. Por exemplo, as
testemunhas são interrogadas pelo juiz, mas também por ambas as partes. É ainda poder das
partes organizar o modo e ordem de produção de prova e requerer o que tiverem por
conveniente ao esclarecimento do seu caso.

35
Este princípio está estritamente ligado à oralidade da audiência, que estudaremos adiante. Só quando
toda a prova haja de ser produzida ou analisada oralmente na audiência se torna relevante a publicidade
da audiência, pois só então o público pode acompanhar a produção de prova e compreender a decisão,
fiscalizando-a também.
Este princípio pressupõe a necessária presença do arguido na audiência. Com o
contraditório, a acusação e a defesa têm pleno acesso a todos os elementos do processo,
conhecem as opiniões e argumentos que se confrontam, por forma a indicar os elementos de
facto e de direito que fundamentam as suas posições.

Outro princípio de funcionamento da audiência é o da oralidade. Os sujeitos


processuais comunicam oralmente, o que muda a exposição das questões de facto e de direito e
traz indicações fundamentais para a perceção da responsabilidade e culpa do agente. Podem-se
discernir, por via oral, detalhes que não são discerníveis ao ler declarações por escrito: a
consistência da comunicação, a hesitação ou falta dela, se a resposta foi segura e convincente;
em suma, é possível interpretar o que foi transmitido também pela forma como foi transmitido.
O documento escrito é estático, falta-lhe riqueza humana e não permite que a inquirição ou
outros atos processuais evoluam de forma dinâmica no sentido da descoberta da verdade
material, algo possibilitado pela oralidade36. É muito importante a preparação da inquirição, por
exemplo. Aliás a apresentação prévia do rol de testemunhas permite isso.

De sublinhar igualmente que, em função do cariz oral das alegações das partes, que
dificultam o registo das mesmas, é praticado um registo de prova por sistema áudio (gravação)
na audiência. Nota: v. artigo 360º.

A imediação é um princípio que não existe em mais nenhuma fase processual e que,
entre nós, tem consagração expressa no 355º. Exige que o tribunal de julgamento tenha contacto
direto com os meios de prova, produzida em audiência de julgamento. Garante-se, deste modo,
que o tribunal julga de acordo com a convicção que cria na audiência de julgamento e não de
acordo com o que resulta do inquérito e da instrução, algo que, por isso, é pressuposto essencial
da estrutura acusatória.

Da imediação e da oralidade resulta a necessidade de os juízes que participaram na


audiência serem os mesmos do princípio ao fim, bem como de serem eles próprios que decidem
dos factos considerados provados e não provados.

Nota: v. ainda o princípio da continuidade da audiência, previsto no 328º.

O tribunal de julgamento tem poderes de investigação autónomos (323º, a), b) e c) e


340º/1 e 2), ou seja, possui o poder de descobrir por si a verdade dos factos. Em consequência,
se tiver dúvidas ou falta de esclarecimentos tem o dever de as suprir por si 37, não está
dependente para tal do impulso dos outros sujeitos processuais. Isto claro, respeitando a
36
O CPP reflete isso, por exemplo, no artigo 356º, em que se limita a casos muito excecionais a leitura de
autos e declarações. Mesmo que as mesmas se façam em suporte oral, a verdade é que têm por base um
documento previamente preparado; sendo este assim um expediente para contornar a oralidade exigida a
esta fase do processo.
37
Se quer repetir a inquirição de testemunhas, pedir perícia, etc., pode praticar estes atos por si.
estrutura acusatória, ou seja, sem extravasar o objeto do processo e o âmbito da causa. O
processo não é, assim, das partes, sendo o tribunal um mero árbitro. Pelo contrário, esta fase do
julgamento é titulada pelo tribunal.

A fase da audiência termina com as últimas declarações do arguido (361º), onde este
pode alegar algo que, eventualmente, ainda não tenha suscitado no processo. No entanto, os
juízes são razoavelmente compreensivos nesta fase, para que o arguido faça uma última
afirmação de inocência mesmo que repetindo questões já faladas, embora não seja isso que
resulte do 361º.

8.4. A sentença: data para leitura (373º), segredo de deliberação (367º), reabertura da
audiência (371º), dever de fundamentar (374º). Estrutura da sentença (368º; 374º) e
modalidades de sentença (375º; 376º).

O tribunal marca uma data para a leitura da sentença e depois terá de existir um
procedimento de deliberação que variará consoante o tribunal seja singular ou coletivo (ou
ainda, muito excecionalmente, um tribunal de júri).

Há um relativo segredo de deliberação, na medida em que, desde a reforma de 2007, é


possível registar votos de vencido por escrito também em tribunais de 1ª instância, o que torna o
processo de deliberação mais transparente (372º/2, 367º).

É possível, ainda a reabertura de audiência, ainda que limitada a casos limite em que
impera produzir nova prova à luz de novos factos que venham ao conhecimento do juiz (371º e
369º/2).

O tribunal que profere a sentença está adstrito a um dever de fundamentação. Este


obriga a que o tribunal organize a sentença de uma forma específica, prevista no 374º, que exige
que a fundamentação de facto e de direito deva ser especificada. Como? Deve o tribunal indicar
os factos provados e não provados bem como os motivos de direito que animam a decisão,
expondo os meios de prova e razões que levaram à formação da sua convicção nesse sentido
(dever de especificar o raciocínio probatório). Este é um dever relevante para que haja uma
justiça penal racional, que não decida por impressão; bem como para facilitar o exercício do
contraditório (nomeadamente através do recurso).

De facto, explicar de forma racional, explícita e segura a convicção do tribunal torna


esta sua decisão controlável, o que é fundamental para a justiça penal num Estado de Direito.
Garante-se, assim, a rejeição do arbítrio nestas matérias tão importantes para a liberdade dos
cidadãos.
O 368º contém a estrutura da sentença, autêntica aplicação processual da teoria do
crime. Em primeiro lugar, deve o tribunal decidir as questões prévias ou incidentais, de natureza
processual, ainda não decididas (368º/1) 38. Depois, o CPP disciplina normativamente o juiz a
fazer a sua análise segundo a estrutura lógica da teoria do crime. Isto é muito importante, pois se
determinar o juiz a, primeiramente, definir a culpabilidade do indivíduo (368º) e, só depois, a
determinar a sanção a aplicar (369º).

O nosso legislador só admite dois tipos de sentença: condenatórias (375º) ou


absolutórias (376º), manifestando-se neste facto uma tipicidade da sentença penal. Não se
podem, por isso, proferir decisões de mero arquivamento formal do processo, a chamada
absolvição da instância no direito civil. Nunca se esclarecia se a pessoa era inocente ou não, o
que permite concluir que decisões intermédias seriam erosivas para a presunção de inocência.

De facto, todas as questões, materiais e processuais, condensam-se simultaneamente e


têm, do ponto vista funcional, o mesmo valor, uma vez que a sentença só pode ou condenar ou
absolver. Esta tipicidade da sentença constitui um imperativo do Estado de Direito, ao mostrar-
se condizente com a manutenção da presunção de inocência. Não existem soluções intermédias
de forma da sentença, i.e., seja o sujeito absolvido por razões materiais ou formais, isso não
influi na forma da sentença, o sujeito é absolvido nos termos do 376º e garante-se, assim, a
presunção da sua inocência39.

9. A fase de recurso: regime geral (399º e ss.).

O recurso é um meio de impugnação de decisão judicial, que tem por finalidade a


eliminação dos defeitos de decisão eventualmente injusta ou inválida ainda não transitada em
julgado, submetendo-a a uma nova apreciação por outro órgão jurisdicional hierarquicamente
superior.

Em processo penal, há a possibilidade de recurso que brota, em regra, de uma decisão


facultativa dos sujeitos processuais, em função da sua avaliação da decisão do caso. Se for
interposto recurso, o processo é transferido para um tribunal superior. Em matéria penal o
indivíduo tem a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição (32º/1, in fine, CRP), ou
seja, um direito de todos os arguidos de ver as suas decisões condenatórias apreciadas.

O nosso CPP admite um duplo grau de recurso ou, por outras palavras um triplo grau de
jurisdição, ao permitir a reapreciação das decisões judiciais por duas vezes (Relação e STJ).
Não obstante, esta possibilidade tem limites muito apertados, coincidentes com a competência
do STJ (432º), tribunal que assegurará este duplo grau de recurso.

38
Na teoria do crime primeiro vemos os pressupostos materiais do crime e só depois os processuais, mas
aqui começa-se por estes últimos.
39
No mesmo sentido corre a publicidade da sentença absolutória, prevista no 378º/1.
9.1. Conceito e efeito do recurso

A sentença que emana da fase de julgamento não é logo executada, tem um período de
pendência, antes de transitar em julgado, onde pode ser interposto recurso dela.

O recurso é, assim, um meio de reapreciação da decisão que resulta do processo penal


por um tribunal superior ao que emanou a decisão (não há recurso de atos que não sejam
judiciais, p.ex. não há recurso de diligências promovidas pelo MP).

O principal efeito do recurso é impedir a formação do caso julgado: efeito suspensivo


do recurso. Além disso, formando-se caso julgado após o recurso, a decisão já não poderá ser
reapreciada (efeito preclusivo do caso julgado). O recurso garante, assim uma última
manifestação do princípio do contraditório antes da consolidação permanente da decisão do
tribunal.

Só nas situações de recurso é que existe, entre nós, uma verdadeira hierarquia judiciária.
Existem duas formas de hierarquia: vertical (entre tribunais inferiores e superiores) e horizontal
(entre tribunais do mesmo nível hierárquico). Em matéria de hierarquia horizontal, os tribunais
não se vinculam uns aos outros por precedentes, que são meramente persuasivos. Em matéria de
hierarquia vertical, o tribunal inferior não se vincula pelas decisões dos tribunais superiores,
com exceção dos recursos.

Nota: Têm legitimidade para interpor recurso as pessoas e entidades elencadas no 401º.
Deve-se consultar o artigo, bastante explícito, sem prejuízo da pormenorização que faremos, já
de seguida, do 401º/1, a) e b):

O MP pode recorrer, ainda que no exclusivo interesse do arguido (401º/1, a)), na


medida em que a ele lhe importa apenas que as decisões judiciais sejam justas, impliquem ela a
condenação ou absolvição do arguido ou uma pena mais elevada ou mais baixa. O MP tem,
assim, legitimidade para recorrer de quaisquer decisões.

Contrariamente ao MP, o arguido e o assistente só podem recorrer das decisões contra


eles proferidas. Decisões proferidas contra o arguido são aquelas que lhe imponham uma pena e
ainda as proferidas contra o que tiver requerido. Já decisões proferidas contra o assistente são
aquelas que se revelem contrárias à posição que ele tenha sustentado no processo. No nosso
Código atual o assistente não pede a condenação numa pena concreta e, mesmo que o faça, o
tribunal não estará a ela vinculado. Assim, parece que o assistente pode, nestes termos, recorrer
de qualquer decisão condenatória, por considerar que a pena aplicada foi inferior à que se deve
considerar ajustada. Não tem sido essa, porém, a orientação da nossa jurisprudência à luz do
401º/2, ou seja, do interesse em agir.
Dispõe esta norma que não pode recorrer quem não tiver interesse em agir. Como já
vimos o recurso via a renovação da decisão, pelo que para haver legitimidade importa que o
recorrente tenha interesse na revogação e na nova decisão. Mas este interesse nunca pode ser
abstrato (com o simples fundamento de uma má aplicação da lei, salvo no caso do MP), antes
um interesse concreto, que se afere pelo sacrifício que a decisão representa para o recorrente 40.

É entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência que o MP terá interesse em


agir, sempre que o recurso vise obter a correta aplicação da lei, com alguns limites. Em primeiro
lugar, se o MP interpuser o recurso no exclusivo interesse do arguido, o tribunal superior nunca
pode modificar as sanções aplicadas na decisão recorrida em prejuízo do arguido. Em segundo
lugar, a jurisprudência considera hoje que o MP não terá interesse em agir para recorrer de
decisões concordantes com uma sua posição anteriormente assumida no processo (Ac. STJ de
reexame de jurisprudência fixada no nº2/2011)41.

Quanto ao interesse em agir do assistente a jurisprudência não está inteiramente assente,


sendo que a case law dominante corre no sentido de o assistente não ter interesse em agir no que
respeita à espécie e quantidade da pena concretamente aplicada. Acrescenta, assim, que o
assistente só pode recorrer de sentença condenatória na parte referente à medida da pena se
houver acusado em sede de crime particular. A medida da pena dá resposta às finalidades da
punição e não tanto à satisfação do ofendido face ao crime praticado. Assim, parece mais
correto a GERMANO MARQUES DA SILVA que se diga que o assistente só terá interesse em
agir quando o arguido for absolvido ou condenado por crime diverso daquele que foi objeto da
sua acusação.

Nota: v. artigo 407º para perceber do momento da subida do recurso.

Deve-se igualmente atentar no 406º para perceber do modo de subida do recurso.


Quanto a este último tema, cumpre avançar que a subida em separado implica a formação de um
novo processo para efeitos de recurso, em que se autonomiza o fundamento do mesmo,
continuado o outro processo a sua marcha normal em paralelo com o recurso em separado. Se o
recurso subir nos próprios autos, então o processo do qual brota o recurso deve ser suspenso
enquanto se julga o recurso. A regra é a subida em separado (406º/2), estando explicitados no
406º/1 os recursos que sobem nos próprios autos.

9.2. Regra geral sobre recorribilidade (399º e ss.)

40
Por exemplo, um arguido absolvido nunca tem interesse em agir no que respeita à decisão que o
absolve, seja qual for o fundamento.
41
GERMANO MARQUES DA SILVA defende a jurisprudência do Ac. de fixação de jurisprudência de
27/10/94 em que considera que o MP, sendo órgão interessado apenas na realização da justiça, não está
vinculado ao que anteriormente defendeu no processo, tendo por isso sempre legitimidade para recorrer
quando defenda decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
A regra geral é a recorribilidade das decisões penais, salvo se a irrecorribilidade for
declarada expressamente. O artigo 400º possui um catálogo de decisões irrecorríveis e existem
algumas situações pontuais e específicas espalhadas ao longo do código de tal previsão expressa
(400º/1, g)).

Nota: v. exemplos e precisões de algumas das alíneas do 400º/1 nas pp. 204, in fine -
207, MARIA JOÃO ANTUNES42; e pp. 307, GERMANO MARQUES DA SILVA.

De facto, é do mais elementar conhecimento que a CRP consagra um direito ao duplo


grau de jurisdição (32º/1) em matéria penal, mas é entendimento reiterado do TC que a CRP não
o postula relativamente a todas as decisões proferidas em processo penal. O direito de recorrer
impõe-se somente quanto a decisões condenatórias e relativamente às que tenham a ver com a
situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos
fundamentais43.

Por vezes, nessas situações pontuais, o legislador não usa a fórmula a decisão é
irrecorrível. Pode optar antes por estatuir que a decisão transita imediatamente em julgado.
Existem, de facto, técnicas legislativas diferentes de previsão expressa da irrecorribilidade.

9.3. Âmbito do recurso

Os artigos 402º e 403º dispõem sobre o âmbito do recurso.

Nota: Ler artigos, sem prejuízo das precisões abaixo efetuadas.

O princípio geral é que o recurso interposto de uma decisão abrange a sua plenitude,
salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais do recorrente (402º/2) ou se for limitado
a uma parte autónoma e autonomizável da decisão (403º).

O que são motivos estritamente pessoais do recorrente? São razões que não são
extensivas, perante a lei, a outros intervenientes no processo. P.ex. estamos a falar de qualidades
ou circunstâncias pessoais do recorrente, relativas à ilicitude subjetiva do crime, à culpa dos
agentes ou à imputabilidade do recorrente. Pelo contrário são motivos não estritamente pessoais
os referentes à ocorrência de um facto, à sua qualificação jurídica, ou a uma circunstância
atenuante relativa ao facto e não aos seus agentes.

9.4. Modalidades: ordinários e extraordinários (437º e 449º)

42
Cumpre realizar, nesta sede, uma precisão adicional: de harmonia com o princípio geral de
irrecorribilidade do 399º, é de concluir que é sempre recorrível um acórdão que aplique uma das sanções
criminais que não a pena criminal, nos termos do 376º/3, 2ªa parte.
43
Daí se explicam, por exemplo, as alíneas d), e) e f) do artigo 400º. Entre outros, apontam neste sentido
os Acs. nº 265/94, 387/99 e 430/2010.
O regime dos recursos está todo no CPP, unificado e completo (alguma lacuna que,
eventualmente, exista será preenchida com recurso ao CPC) 44.

Este regime é fundado numa divisão fundamental entre recursos ordinários e


extraordinários.

Os recursos ordinários são da competência dos tribunais da relação ou do STJ, nos


termos dos 11º/4, b), 12º/3, b), 427º e 432º. Olhando o disposto nestes dois últimos artigos, é de
concluir que a competência do STJ se estenderá aos casos de maior gravidade – v. ponto 9.5.

Os recursos ordinários interpõem-se antes da formação do caso julgado, impedindo-a


(interposto antes do decurso do prazo de pendência da sentença). Se o caso transitar em julgado
a decisão passa à fase de execução, exceto se a mesma for alvo de recurso extraordinário. Só há
duas modalidades de recurso extraordinário no CPP: recurso de revisão e de fixação de
jurisprudência.

(i) Recurso de fixação de jurisprudência (437º - 448º): visa solicitar ao STJ que fixe
uma interpretação jurisprudencial preferível perante acórdãos de tribunais superiores que sejam
contraditórios (437º e ss.). Nota: v. artigo para perceber mais concretamente quais são os
casos de contradição jurisprudencial em causa. Estes recursos têm, por isso, uma finalidade
interpretativa.

Estes recursos são da competência do pleno das secções criminais do STJ, nos termos
dos 11º/3, c) e 437º/1.

São interpostos do acórdão contraditório proferido em último lugar (437º/1, in fine) por
meio de requerimento e no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado de tal acórdão
(438º). No entanto, e de acordo com a jurisprudência fixada no Ac. nº5/2006, STJ, o recorrente
ao pedir a resolução do conflito jurisprudencial não está obrigado a indicar o sentido em que
deve fixar-se a jurisprudência, como parece indicar o 442º/2.

Estes recursos são de cariz obrigatório para o MP (437º/5, in fine). Não têm uma força
vinculativa externa, mas sim interna, ao ser imperativo para o MP nos casos em que surgem os
pressupostos (437º/1 e 2), mas possível aos demais tribunais afastarem-se das decisões que dele
emanam, desde que fundamentadamente. Esta ausência de força vinculativa externa das
decisões destes recursos confirma a ideia de que não existe verdadeiramente um precedente no
sistema português45, nem uma hierarquia vertical entre tribunais.
44
Além dos recursos regulados no Código podemos sinalizar os recursos de constitucionalidade para o
TC, de extraordinária relevância no sentido do aprofundamento dos direitos e garantias que a CRP
consagra. Com efeito, muitas das alterações ao CPP tiveram origem em jurisprudência do TC. V. esta
matéria com maior detalhe no ponto 9.6.
45
Com efeito, nos termos do 445º/1, a decisão a emanar neste processo terá a sua eficácia restrita ao
processo em que o recurso for interposto e aos processos cuja tramitação tenha sido suspensa nos termos
Esta foi a forma encontrada para impedir a inconstitucionalidade desta matéria à luz das
fontes de direito, algo que aconteceria se estas decisões constituíssem precedente, ou seja que a
interpretação do STJ se tornasse fonte autónoma de direito, aproximando-se da natureza dos
assentos, cuja inconstitucionalidade já foi declarada. As decisões deste tipo de recurso têm, por
isso, um efeito conformador de jurisprudência, meramente persuasivo, argumentativo.

(ii) Recurso de revisão (449º - 466º): este é um tipo de recurso utilizado para corrigir
alguma injustiça penal subsistente ou revelada posteriormente (um direito constitucional dos
cidadãos nos termos do 29º/6, CRP).

Este recurso permite instaurar um processo para anular uma decisão transitada em
julgado. Por exemplo, usam-se testemunhas para imputar responsabilidades a uma pessoa que se
vêm a provar decisivas para a sua condenação. Vem-se a descobrir, mais tarde, que prestaram o
depoimento sob coação, dizendo inverdades. Sendo o seu depoimento falso, constituiu prova
proibida, mas esta ilegalidade só é descoberta a posteriori. O CPP permite, neste tipo de casos,
a interposição de um recurso de revisão para anular este tipo de decisões inquinadas.

Nota: v. tipos de situações que dão azo a esta modalidade de recurso no 449º/1 .

O conhecimento do pedido de recurso de revisão é da competência das secções


criminais do STJ, nos termos do 11º/4, d) e 455º.

Ao conhecimento do pedido de revisão corresponderá uma decisão de negação ou de


autorização da mesma. Caso a revisão seja autorizada, dá-se o reenvio do processo ao tribunal
de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever que se
encontrar mais próximo (456º para o caso de negação e 457º para o caso de autorização) –
efeito cassatório da decisão de autorização da revisão.

9.5. Forma e prazos de recurso (411º)

O recurso pode ser interposto por requerimento ou simples declaração na ata (411º/2). A
interposição do recurso é a manifestação da vontade de recorrer da decisão que constitui o seu
objeto e isso é compatível com qualquer uma das duas formas de recurso admissíveis. Caso o
recurso seja interposto por declaração na ata, as suas motivações podem ser apresentadas mais
tarde, nos termos do 411º/3.

Regra geral, o prazo de interposição de recurso é de 30 dias. Em 2007 unificou-se este


prazo de 30 dias, mas às vezes ele é difícil de cumprir dada a complexidade de alguns casos. A
jurisprudência tem, no entanto, permitido o alargamento dos prazos de recurso, com base no
regime da prática extemporânea de atos processuais (107º-A).

do 441º/2 (ou seja, processos em quem tenha lugar requerimento de resolução do mesmo conflito
jurisprudencial que ficarão em suspenso até à resolução do recurso interposto em primeiro lugar).
COSTA PINTO não objeta a essa solução, mas diz que esta matéria deveria ser alvo de
uma maior assertividade legislativa, uma vez que deixar este tipo de decisões ao arbítrio do
aplicador da lei pode gerar desigualdades em função dos vários tribunais do país que,
naturalmente, adotam diferentes práticas nesta e noutras questões.

Nos termos do 414º/1, o juiz (do tribunal que profere a decisão recorrida) profere
despacho assim que o recurso for interposto e, quando for caso disso, lhe for junta a sua
motivação, sendo que em caso da admissão do recurso deve fixar o seu efeito e o regime de
subida. O 414º/2 elenca os fundamentos de não admissão do recurso. O 405º/1 diz-nos que o
despacho de não admissão do recurso pode ser alvo de reclamação para o presidente do tribunal
a que o recurso se dirige, cuja decisão é definitiva se confirmar o indeferimento. Se o infirmar,
então mesmo assim o tribunal de recurso não fica vinculado a cumprir esta decisão (405º/4).

Nota 1: É possível a desistência do recurso, nos termos do 415º.

Nota 2: ver artigos 416º a 426º-A para perceber da tramitação dos recursos, sendo que
muito do seu regime é importado do da fase de julgamento.

9.6. Objeto e fundamento do recurso e competência das Relações (428º) e STJ (432º)

O objeto do recurso é sempre uma decisão judicial, mas o seu fundamento pode ser
diverso: violação de lei substantiva ou de lei processual. Ambos estes fundamentos têm o
mesmo peso para efeitos de recurso, sendo irrelevante a graduação da ilegalidade que,
alegadamente, consubstanciam (410º/1).

Podemos ainda operar outra divisio em matéria de recursos entre os que versam sobre
questões de facto e sobre questões de direito. E temos ainda os fundamentos específicos do
410º/2, que permite recurso com fundamento em contradições e insuficiências de cognição ou
em erro notório na apreciação da prova dentro da própria sentença. Estas não são questões nem
puramente de facto nem puramente de direito, sendo, por isso autonomizadas pela lei.

Regra geral, nos termos do 410º/1, podem os recursos conhecer de matéria de facto e de
direito (olhe-se para as competências dos Tribunais de Relação no 428º). Por vezes, os recursos
são restritos a matéria de direito, e, nesses casos, esta divisão entre questões de facto e de direito
ou ainda do 410º/2 é relevante para definir a competência do tribunal de recurso.

Com efeito, a destrinça entre recursos sobre questões de facto e de direito torna-se
relevante quanto à competência do STJ, que não conhece matéria de facto, apenas questões de
direito (434º) e do 410º/2. Isto não obsta a que uma Relação conheça exclusivamente de direito,
apenas implica que o STJ não possa conhecer de matéria de facto.
Podemos entrever outro critério de competência: da decisão de um tribunal singular
podemos recorrer para a Relação; e da decisão de tribunais coletivos para a Relação ou STJ:
este é o critério da composição do tribunal que emana a decisão recorrida. Como compatibilizar
estes preceitos? 427º: o recurso de decisão proferida em 1ª instância interpõe-se sempre a
Relação, salvo se houver lugar a recurso direto para o STJ.

Além do mais, a gravidade da pena aplicada também pode influir na repartição de


competências recursivas. Se a pena aplicada em 1ª instância não for superior a 5 anos, o recurso
interpõe-se para a Relação (este entendimento brota da conjugação dos artigos 427º e 432º/1),
ainda que vise exclusivamente o reexame de matéria de direito.

Sem prejuízo destas regras de competência elencadas supra, e dos diferentes poderes de
cognição da Relação e do STJ, os recursos são tramitados segundo o regime tendencialmente
comum – princípio da tramitação tendencialmente unitária dos recursos46.

Nota: v. sublinhados no último parágrafo da p. 200, MARIA JOÃO ANTUNES.

Importa ainda sinalizar que vale, no nosso sistema processual penal, o princípio da
reformatio in pejus, tratado no 409º. Segundo este regime, nos casos descritos no nº 1 do art.
409º do CPP (ou seja tendo sido interposto recurso pela defesa – somente pelo arguido, pelo MP
no exclusivo interesse do arguido, ou pelo arguido e pelo MP em conjunto mas no exclusivo
interesse do primeiro) não pode o Tribunal de recurso agravar a pena aplicada pelo tribunal
recorrido, com exceção do caso elencado no nº2 do mesmo artigo.

Resulta, no entanto, do nº1 do art. 409º, a contrario sensu, que a possibilidade de


agravação existe quando o recurso tiver sido interposto pelo MP com esse propósito e não só no
interesse do arguido, mesmo que este também recorra.

Embora o princípio da proibição da reformatio in pejus esteja previsto, de um ponto de


vista sistemático, no âmbito dos recursos ordinários, este pode ser visto como um princípio
geral em matéria de recursos em processo penal (proibição estende-se aos recursos
extraordinários nos termos do 443º/3 e 463º/2)47.

9.7. O recurso de inconstitucionalidade (70º, LOTC)

O CPP não regula o recurso de inconstitucionalidade, que é de fundamental importância


para o Direito Processual Penal. O TC tem, de facto, um papel muito importante na

46
Incluem-se nesta regra matérias relativas a fundamentos, interposição, motivação, notificação,
admissão, julgamento em conferência ou audiência e rejeição dos recursos; bem como relativas à
deliberação do tribunal, votação e elaboração do acórdão e reenvio do processo para novo julgamento – v.
artigos 410º a 426º-A.
47
Serve este princípio como garante da efetividade do duplo grau de jurisdição, ao procurar não oferecer
um contra motivo sério ao recorrente – o risco de ver a sua sanção agravada.
conformação das soluções vigentes no sistema penal (5º, LOTC). O recurso de
inconstitucionalidade tem também efeitos suspensivos do trânsito em julgado.

O regime desta modalidade de recurso encontra-se autonomamente legislado na Lei


Orgânica do Tribunal Constitucional (de destacar o 70º, LOTC que dispõe das decisões de que
cabe recurso para o TC, em concordância com o 280º, CRP). Podemos ainda sinalizar o artigo
69º, LOTC que dispõe a aplicação subsidiária do CPC a estes recursos, e informar que as regras
próprias de tramitação dos mesmos se encontram nos artigos 69º - 85º, LOTC.

O TC só conhece da constitucionalidade de (i) normas jurídicas de per se e da


constitucionalidade de (ii) entendimentos/interpretações normativo(a)s de normas jurídicas
(neste último caso, não se declara a norma inconstitucional, mas eventualmente inconstitucional
se interpretada de certo modo) – 71º e 80º/1 e 3, LOTC. Com efeito, o 280º/6, CRP diz que os
recursos para o TC são restritos à questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitadas
no processo.

A legitimidade para recorrer aparece regulada no artigo 72º, LOTC. O nº3 deste artigo
descreve ainda os casos em que a interposição deste recurso da parte do MP é obrigatória. O
prazo de interposição deste recurso vem regulado no artigo 75º, LOTC (10 dias).

Segundo o 79º-C da LOTC, o TC só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que


a decisão recorrida tenha aplicado ou recusado aplicar, mas pode fazê-lo com fundamento na
violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi
invocada.

Os efeitos da decisão estão elencados no 80º, LOTC.

O TC pode fazer declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral,


apagando a norma inconstitucional do sistema jurídico e repristinando a norma que esta
eventualmente tenha revogado (282º, CRP); isto desde que exista jurisprudência constante em
mais de três casos a considerar essa norma inconstitucional (281º/3, CRP).

Nota acessória: Também pode haver recurso de decisões emanadas do processo penal
para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Formas especiais do processo penal

10. O processo sumário (381º-391º)

10.1. A importância e as características das formas especiais de processo. A forma


sumária: relevância prática

Nota: V. pontos 4.1 – 4.3., do Resumo Toupeira e Cashball, presentemente a ser escrito por um
menino que assistiu ao desnorte de Frederico Varandas na condução do Sporting Clube de
Portugal ao despedir José dos maiores Fazedores de Pesos, bem como à galharda exibição do
Moreirense no Estádio da Luz, levando de vencidas as águias por 3-1, com tentos de
Chiquinho, Pedro Nuno e Loum, um trinco certeiro proveniente da escola de Direito Público do
Sp. Braga B. São as benes.

O objetivo das formas especiais é fornecer ao aplicador da lei penal uma tramitação
simplificada para casos não tão gravosos. Nesse sentido as formas especiais de processo são de
grande importância para o ordenamento penal português.

Outrora, não havendo lugar à tramitação de um processo penal na forma sumária ou


sumaríssima (por estas possuírem um escopo limitado), a maior parte dos casos era tramitada
(às vezes injustificadamente) na forma comum.

Em 1998, o legislador tentou evitar esse fenómeno processual, criando a forma


abreviada para a tramitação de casos onde se verifica a impossibilidade de recorrer ao processo
sumário/sumaríssimo. A forma abreviada torna-se, assim, alternativa ao processo comum.

Esta importância das formas especiais de processo manifesta-se, também, do ponto de


vista estatístico, de forma crescente. Cerca de 1/5 dos julgamentos penais realizados anualmente
em Portugal fazem-se em forma de processo sumário. Os números em relação aos processos
abreviado e sumaríssimo são menores.

Ainda assim, COSTA PINTO considera que a forma de processo abreviado tem um
grande potencial de crescimento estatístico, porque (i) é uma alternativa muito consistente ao
processo comum, (ii) as leis de execução da política criminal dão prevalência às formas
especiais de processo, (iii) o processo abreviado é o que tem a forma mais flexível e (iv) o
regime do CPP facilita muito a sua aplicação.

Porquê números tão elevados de processos sumários tramitados? Deve-se esta


tendência, sobretudo, à quantidade de processos de criminalidade rodoviária que surgem em
Portugal (estes são geralmente tramitados na forma sumária). Como este tipo de crimes são
particularmente visíveis, permitem detenções em flagrante delito que convocam o processo
sumário48.

10.2. As reformas de 1998, 2007. A revisão de 2013 e a jurisprudência do TC: o Ac. TC


nº174/2014. A lei nº1/2016.

As reformas do CPP de 1998 e 2007 alteraram significativamente o campo de aplicação


do processo sumário, tendo como denominador comum o sucessivo alargamento do seu
escopo.

Antes destas reformas, um indivíduo entre 16 e 18 anos não podia ser julgado em
processo sumário, mesmo que fosse alvo de uma detenção em flagrante delito. Existia nesta
proibição uma preocupação do CPP em relação a jovens adultos tidos como muito vulneráveis,
para lá de que a submissão destes casos a processo sumário não permitia apurar o contexto
familiar e social do agente e um apuramento rigoroso das circunstâncias associadas à sua culpa.
Estas reformas eliminaram este fator da idade como critério de aplicação do processo sumário,
que passou assim a poder ser aplicado a este tipo de jovens.

Houve também um alargamento das penas que podem advir de julgamento em processo
sumário e, consequentemente, dos crimes que, pelas suas molduras penais abstratas, são
compatíveis com a tramitação nesta forma especial de processo. Antes só eram admitidos a
processo sumário os crimes cuja pena máxima não excedesse os 3 anos.

O legislador nestas reformas (i) sobe a fasquia da pena máxima compatível com o
processo sumário para 5 anos, alargando, assim, o tipo de crimes que podiam ser sujeitos ao
processo sumário e (ii) permite que, se a pena de um dado crime fosse superior a 5 anos mas sua
a gravidade concreta levasse o MP a concluir que a este provavelmente não seria aplicada uma
pena superior a 5 anos, esse tipo de casos fossem tramitados na forma sumária 49.

48
Outras situações de flagrante delito que suscitam o processo sumário são os furtos, a prática de crimes
de dano ou o envolvimento em rixas.
49
Nestes casos, seriam competentes apenas os tribunais singulares. Estes, em função do 16º, CPP, ficam
limitados a julgar dentro dos limites da sua jurisdição. Isto implica que, mesmo que percebessem que,
afinal, a pena concreta poderia ultrapassar os 5 anos, nunca poderiam aplicá-la excedendo esse limite de
anos. Assim, ou aplicam uma pena concreta até 5 anos ou declaram-se incompetentes.
Antes apenas se incluíam no âmbito do processo sumário os casos em que a detenção
era feita por um órgão policial ou por outra autoridade judiciária competente. Após as reformas
passaram a ser abrangidos também os casos em que a detenção em flagrante delito fosse feita
por particulares50. O legislador admite, nestes termos, o processo sumário independentemente da
pessoa ou entidade que proceda à detenção inicial.

Passamos então a uma nova intervenção legislativa, a revisão de 2013, em que o


legislador simplifica ainda mais o processo sumário, ao suprimir o requisito da pena máxima de
5 anos. Fica, desta forma, estatuído na lei que sempre que haja detenção em flagrante delito se
procede ao processo sumário, excetuando-se apenas alguns crimes mais gravosos do campo de
aplicação desta forma processual.

Entre 2013 e 2014 tivemos, assim, um regime em que o legislador prescindiu do


requisito da pena máxima, permitindo a aplicação do processo sumário, em regra, a quase todos
os crimes. Esta aplicação era de inadequação gritante em relação a certos tipos criminosos,
como por exemplo o homicídio ou o furto qualificado.

Não surpreendeu por isso que na prática judiciária se tenha verificado alguma
resistência a esta intervenção legislativa. As magistraturas já se tinham pronunciado contra esta
alteração, achando precipitado colocar todos os tipos de crime ao cuidado de juízes singulares
(algo que procedia da submissão dos tipos criminosos a processo sumário). Os críticos desta
revisão alegavam também uma certa subversão do processo sumário, desenhado para questões
de pequena criminalidade e não para todos os tipos de crime. COSTA PINTO subscreve estes
entendimentos, afirmando que, efetivamente, houve uma decisão legislativa precipitada que
simplificava em demasia o funcionamento do Direito Processual Penal, ignorando a
complexidade da administração da justiça penal.

Alguns juízes e até magistrados do MP começaram a pôr em causa a constitucionalidade


destas normas. Entre 2013 e 2014 houve 8 casos de recursos interpostos junto do TC por todos
os sujeitos processuais. Todo este processo culmina no Ac. nº174/2014, que declara, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade destas normas que consubstanciam a revisão de 2013.

Nota: Ver as anotações do supramencionado Acórdão do TC.

O Ac. nº174/2014 diz que viola as garantias de defesa do arguido a utilização do


processo sumário para crimes graves e muito graves apenas pelo facto de se dar uma detenção
em flagrante delito51.

50
Outrora, esta era uma questão controvertida que a intervenção legislativa veio, assim, resolver.
51
MARIA JOÃO ANTUNES: diz que se nestes casos a aplicação do processo sumário é inconstitucional
pelos fundamentos elencados no Ac. do TC então é porque o processo sumário de per se é
inconstitucional por implicar sempre uma diminuição das garantias do arguido.
A supramencionada declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
revoga as normas da revisão de 2013 e repristinaria, em teoria, as normas por ela revogadas.
Neste caso, porém, apenas a norma que previa a pena legal máxima de 5 anos para aplicar o
processo sumário é que é revogada, pois apenas esta norma dizia respeito à questão de
inconstitucionalidade apreciada. Mas o regime de 2013 continha outras alterações de regime.
Qual era então a lei aplicável à totalidade do processo sumário?

Surgiram, então, várias propostas de compatibilização dos vários regimes


potencialmente aplicáveis ao processo sumário. O legislador veio, por esse facto, fazer em 2016
uma revisão do regime que não violasse a CRP, permitindo estabilizar o mesmo. O regime de
2016 é, em parte, o da revisão de 2013, mas com algumas limitações advindas dos regimes
anteriores a 2013. Em matéria de penas aplicáveis o regime aplicável é anterior a 2013 – é
retomado o requisito da pena legal máxima, exposto supra (5 anos). Quanto à tramitação do
processo, ainda se aplica o regime de 2013.

10.3. A fase pré-judicial e a fase judicial. Sequência do processo sumário: detenção


(flagrante delito), fase prévia ao julgamento (382º) e a fase de julgamento (385º e ss.)

O processo sumário começa com uma detenção em flagrante delito, uma situação
exterior a um processo aberto que, posteriormente evolui para a sua abertura, começando por
decorrer uma fase pré-judicial. Depois chega-se ao julgamento, a fase judicial.

Detalhemos, então, a sequência desta forma de processo:

(i) Situação fáctico-normativa de detenção em flagrante delito: alguém está a


cometer um crime em flagrante delito e é apanhado por um particular ou entidade pública. Neste
momento, não existe ainda processo sumário, a escolha desta forma processual corresponderá a
uma decisão posterior do MP em função do cumprimento dos respetivos requisitos 52. Mas já há
um processo penal que começa com este ato; este já está a ser encaminhado para a forma
sumária, embora falte ainda uma decisão formal nesse sentido.

P.ex. um polícia nunca decidirá da submissão de um processo à forma sumária, mas


após a detenção de um agente em flagrante delito, irá mantê-lo detido ou notificá-lo para estar
pressente em julgamento. Assim, não decidindo do processo sumário, começa já a encaminhar a
adoção desta forma processual.

(ii) Fase pré-judicial: A autoridade judiciária ou a entidade policial que tiverem


procedido à detenção ou a quem o agente tiver sido entregue apresentem o detido, no mais curto
prazo após a detenção, ao MP junto do tribunal competente para o julgamento. Antes da fase de
julgamento, em que o tribunal recebe os autos do processo, o MP conduzirá uma fase prévia ao
52
V. ponto 10.4.
julgamento, onde exerce importantes poderes processuais tendentes à decisão 53 da submissão ou
não submissão do processo à forma sumária.

Esta fase foi densificada em 2013 (sendo uma das marcas da revisão do regime), nela
sendo feita uma fase de instrução e investigação complementares ao processo antes do
julgamento, fase esta em que o arguido pode já apresentar meios de defesa. Decorre num
período de 20 dias. Esta solução brota do 382º ao prever que o arguido possa exercer o seu
direito de defesa antes ou depois do julgamento.

(iii) Fase de julgamento: Em princípio, o arguido não fica detido (só em casos mais
graves), antes sendo notificado para se apresentar em julgamento. Só permanecerá detido
mesmo que o julgamento não seja imediatamente a seguir à detenção nos casos excecionais do
385º/1.

COSTA PINTO interpreta as normas do CPP como significando que, até 20 dias após a
detenção em flagrante delito, o julgamento tem de ter lugar, com base no 382º/5. O arguido, na
esteira do 283º, deve ser notificado para comparecer na audiência de julgamento. Verificar-se-á
uma nulidade insanável do processo se o arguido for julgado in absentia no processo sumário
sem que tenha sido regularmente notificado para comparecer em julgamento aquando da sua
detenção (momento da notificação).

O processo sumário concentra-se na fase de julgamento; à qual se aplicam mutatis


mutandis as normas reguladoras da fase de julgamento do processo comum (386º/1), sempre
tendo como pano de fundo um imperativo dirigido ao juiz, enquanto titular desta fase do
processo de reduzir as intervenções processuais e demais atos do julgamento ao mínimo
indispensável para a boa decisão da causa (386º/2).

Assim, esta fase inicia-se com o despacho judicial que recebe os autos do MP e marca
data para o início da audiência de julgamento, despacho onde o juiz deve conhecer dos
pressupostos gerais e específicos do processo sumário, para efeitos de verificação de nulidades
irregularidades e proibições de prova (386º/1 remete para 311º/1).

Nota: V. sublinhados pp. 1000, in fine – 1002, início, PPA para diligências a realizar
antes da audiência do julgamento. V. artigo 387º e 389º/5 e 6 para regulação específica da
audiência de julgamento.

As pessoas com legitimidade para se constituírem assistentes e partes civis podem


requerer a sua intervenção no processo até ao início da audiência (388º).

53
Pode, por exemplo, o MP, em vez de apresentar os autos ao juiz, homologar a desistência da queixa,
arquivar os autos ou determinar a suspensão provisória do processo (384º/1).
O 390º determina os casos em que, em vez de tramitar o processo na forma sumária, o
tribunal decide remetê-lo para outra forma processual, legalmente indicada. Veremos o 390º, a)
imediatamente a seguir; o 390º, b) refere-se a casos de incumprimento do prazo para a
realização da audiência (387º); e o 390º, c) exige uma excecional complexidade do
procedimento (e não uma mera complexidade). Nestes casos, pode o tribunal competente para
tramitar o processo na forma legalmente indicada o mesmo que recebeu os autos para inicial
tramitação na forma sumária (390º/2).

10.4. Requisitos do processo sumário:

(i) flagrante delito (381º/256º)

(ii) detenção legal (381º): crimes, prazo de entrega para particulares (381º71, h)),
queixa (255º/3

(iii) pena legal máxima (381º/1 e 2)

(iv) requisito negativo implícito: a competência natural não pode ser de tribunal
coletivo (14º/2, a))

(v) prazos para início da audiência (387º/2)

Se forem violados requisitos do processo sumário, temos uma nulidade insanável do


processo por adoção de processo sumário fora dos casos previstos na lei (119º). Nestes casos,
com a declaração da nulidade do processo sumário, deve decidir-se o reenvio do processo para
tribunal que possa conhecê-lo (390º, a))54. Apresentamos, assim, os requisitos de legalidade da
tramitação do processo penal na forma sumária55:

i) Detenção em flagrante delito: Corresponde, muito simplesmente, a uma situação fáctica de


alguém que é encontrado a praticar um crime, situação esta à qual a lei atribui certos efeitos
jurídicos. O flagrante delito surge tratado genericamente e tipificado normativamente no 256º
como meio de legitimação a detenção. Além disto, é convocado como requisito essencial do
processo sumário (381º) que sempre esteve pensado para este tipo de situações – este é um dos
efeitos da detenção em flagrante delito, o de ser pressuposto da tramitação em processo
sumário.

54
Este é um caso de utilização do processo sumário fora dos casos previstos na lei. Pelo contrário quando
se deveria empregar o processo sumário e se recorre a outra forma de processo (seja, p.ex. comum ou
abreviado) verifica-se a nulidade do 120º/2, a), que tem de ser arguida e só aproveita ao arguente
enquanto estivermos dentro do prazo admissível para a realização do julgamento em processo sumário –
v. secção (v) deste ponto.
55
O elenco de requisitos seguintes é aquele que no entender de FCP existe antes de 2013 e depois de
2016.
O conceito de flagrante delito é um conceito histórico que tem tido modulações
diferentes ao longo da história do Processo Penal. Enquanto conceito legal, normativiza várias
situações que podem ser classificadas como de flagrante delito, comportando casos nucleares ou
casos mais alargados56. A sua extensão será sempre opção dos vários legisladores penais,
variando de ordenamento para ordenamento. Também o nosso legislador adotou alguns casos
como sendo de flagrante delito e rejeitou outros.

O que foi, então, incluído pelo nosso legislador no conceito de flagrante delito, nos
termos do 256º?

a) Flagrante delito nuclear – indivíduo é encontrado e detido a praticar o crime, ou seja, no


momento em que se verificam plenamente os requisitos materiais da atualidade e da visibilidade
da comissão do ilícito. As demais noções de flagrante delito são extensões materiais deste
conceito nuclear:

b) O quase flagrante delito – o indivíduo cometeu o crime e é detido no momento


imediatamente posterior ao da prática do crime. Existe uma proximidade física e temporal
estreitíssima entre o facto e o momento de identificação/detenção do agente (256º/1, in fine);

c) A presunção do flagrante delito - esta encontra-se inscrita nas cláusulas do 256º/2: (i)
cláusula de perseguição e (ii) cláusula dos indícios objetivos da prática do crime, quer pela
posse de objetos ou existência de sinais que demonstrem claramente o cometimento do facto
típico. O facto de estas situações configurarem uma presunção de flagrante delito mostra que o
legislador decidiu afastar outro tipo de situações presuntivas do escopo deste conceito, como
p.ex. boatos ou a convicção generalizada da população de que alguém cometeu um crime.

A verdade é que as cláusulas presuntivas do nº2 têm em comum com as do nº1 as


marcas de atualidade e visibilidade que conferem uma unidade dogmática e semântico-
normativa ao flagrante delito, ou seja, uma ligação temporal estreita e uma visibilidade de
elementos que ligam a pessoa à prática do crime que, desse modo, se torna evidente e
manifesta. O nº2 configura, em suma, um prolongamento normativo no tempo das
circunstâncias do nº1.

Assim, por exemplo, a cláusula de perseguição não se basta com uma pura perseguição,
é necessário que quem persegue tenha assistido à prática do facto e não tenha conseguido deter,
nesse momento, o agente (perseguição surge, aí, ligada aos elementos de atualidade e
visibilidade do nº1). Propor o contrário equivaleria à entrada numa zona insegura em que quem
persegue não tem ligação nenhuma ao momento da prática do facto, correndo-se o risco de

56
Em alguns crimes o flagrante delito funciona como elemento do conceito material de crime, como
condição objetiva de punibilidade. Ex.: caça ilegal; participação em jogo ilícito. Assume, assim, uma
certa relevância substantiva.
legitimar perseguições com o flagrante delito, mesmo que estas sejam só baseadas em boatos ou
suspeitas difusas.

A outra cláusula do 256º/2 (existência de sinais claros da prática do crime) socorre-se da


normal estrutura das presunções – de um facto conhecido (posse de dado objeto ou outro sinal)
inferimos um facto desconhecido (a prática do crime). Deve ser nesta estrutura presuntiva
assegurada a proximidade temporal entre factos presumido e conhecido.

Uma inferência feita nestes termos, em relação a qualquer uma das cláusulas do 256ª/2,
corresponde materialmente ao raciocínio que se faz numa presunção. Uma presunção consiste,
materialmente, na identificação de um facto a partir de uma inferência que se faz de outro facto.
Ora, o que a lei permite neste caso é que, para delimitar a noção de flagrante delito, se faça uma
inferência desta natureza.

O controlo do recurso a esta presunção pode ser realizado com base nas regras da lógica
e da experiência comum, à luz das quais se exige a razoabilidade da inferência. Esta será tanto
mais sólida quanto do mesmo facto não for possível realizar outras inferências diferentes e
outras conclusões que lancem uma dúvida razoável sobre a sua consistência. Isto nos diz
claramente o 256º/2: mostrem claramente. Há quem diga, nestes termos, que a presunção de
flagrante delito é incompatível com a existência de dúvidas objetivas sobre a consistência da
inferência realizada.

Ora, o flagrante delito para efeitos do 381º (i.e., em matéria de requisitos do processo
sumário) refere-se a qualquer uma das 3 situações elencadas acima, no 256º. Se o CPP
normativiza uma condensação de todas as situações sob o conceito de flagrante delito, então não
se pode não submeter todas à possibilidade de processo sumário, para efeitos do 381º. Além do
mais, com o denominador comum da visibilidade e de proximidade temporal de todas as
situações em relação à descoberta da prática do crime, ficam cumpridas as suas condições de
legitimidade enquanto flagrante delito. Daí a expressão contida no 256º/2 – logo após o crime –
que ilustra a exigência de uma ligação imediata com o momento da prática do facto.

TERESA PIZARRO BELEZA defendeu que só o flagrante delito nuclear justifica o


processo sumário, pois antes de 98 (quando ela fez a sua opinião sobre esta matéria) a pessoa
encontrada ficava logo detida até ao julgamento e só se podia manter detida a pessoa quando
fosse clara a prática do crime, sendo as demais soluções baseadas numa incerteza
potencialmente geradora de uma detenção e, consequentemente, de uma restrição da sua
liberdade. Porém, depois de 98, a regra passou a ser a da identificação do agente e sua
manutenção em liberdade e a exceção passou a ser a manutenção da detenção, o que invalida
este argumento.
Coloca-se ainda a questão de saber se a detenção em flagrante delito se pode operar
através de câmaras de videovigilância. No momento da captação de imagem há flagrante delito,
mas a questão é a de saber se no momento, posterior, em que se é detido esta situação ainda
configura um quadro de flagrante delito.

Temos, para o efeito, de interpretar o 256º por forma a que alguma das suas disposições
incluam esta detenção baseada em imagens de videovigilância. Tal será possível mediante uma
interpretação declarativa lata enformada por considerações atualistas da cláusula de
perseguição, estendendo ao conceito de perseguição aquela que seja realizada com recurso a
estes sistemas de vídeo. Tal será perfeitamente admissível, uma vez que o 256º não dita o
método de perseguição a seguir, mas apenas que é necessária uma perseguição.

Esta interpretação que inclui a videovigilância como forma de perseguição permite


reconduzir estas situações ao conceito de flagrante delito, em que o acompanhamento da prática
do crime se faz de forma diferenciada e mais adequada à realidade dos nossos tempos. Este
entendimento permite oferecer um duplo meio de prova: testemunhal de quem acompanhou a
prática do crime e material, concretizada no conteúdo das imagens captadas.

Já o 256º/3 fala de situações de flagrante delito em casos de crimes permanentes e


duradouros, crimes em que a ação típica do agente é suscetível de se prolongar no tempo, por
vontade deste, havendo uma agressão continuada de um bem jurídico (Enquanto existir
sequestro há flagrante delito). Nestes crimes o estado de flagrante delito também se prolonga no
tempo, desde que existam sinais da prática do crime. Se o flagrante delito cessar e for feita a
detenção, já não pode o processo ser tramitado na forma sumária.

Nota: v. exemplos contidos nas pp. 56 e 57 das Folhas de 98 sobre o 256 nº3.

Em certas situações, o facto de a detenção ter sido feita em flagrante delito permite a
utilização de meios de prova excecionais (excecionais por imposição constitucional, nos termos
do 32º/8, que proíbe provas que configurem uma abusiva intromissão na vida privada (…)). A
certeza a elas associada confere legitimidade à utilização destes meios, como por exemplo
buscas domiciliárias.

Finalmente, devemos sinalizar que é decorrência da natureza deste tipo de detenção que
o processo sumário não possa ser aplicado a pessoas coletivas, insuscetíveis de serem detidas
em flagrante delito.

ii) Detenção Legal: a detenção em flagrante delito tem de ser legal, cumprindo vários
pressupostos, sob pena de um processo sumário nulo porque ilegalmente adotado.

Quais as situações em que a legalidade da detenção pode relevar?


Até 2007 discutia-se muito a questão da legitimidade da detenção, porque até 2007 o
legislador só admitia o flagrante delito se quem detivesse o agente fossem os OPC ou autoridade
judiciária – a legitimidade da detenção (ao ser feita por estas entidades) era condição de
legalidade da detenção.

Ora, a prática suscitou vários problemas, p.ex. quando as detenções eram feitas por
seguranças privados em estabelecimentos comerciais. À luz dos requisitos da anterior lei, não
poderia nestes casos haver processo sumário. A partir de 2007, o legislador admite a detenção
em flagrante delito por qualquer pessoa ou entidade (isto resulta do 255º/1, b) articulado com o
381º/1, b)), pelo que a questão da legitimidade deixa de influir na legalidade da detenção.

No entanto, se o crime praticado for particular não pode haver detenção em flagrante
delito, apenas se dá lugar a identificação do infrator (255º/4). Na prática, isto dita que os crimes
particulares não podem ser sujeitos a processo sumário. Não é, assim, possível haver detenção
legal quando a mesma se dá em relação a crimes particulares.

Se a detenção for feita por particular, existem ainda requisitos temporais para a entrega
do detido pelo particular aos OPC ou outra autoridade judiciária – 381º/1, b): esta entrega tem
que ser feita num prazo máximo de 2 horas. Isto quer dizer que, se a detenção pelo particular se
mantiver para lá das duas horas, não será legal.

Se o crime for semipúblico, a queixa tem de ser apresentada em ato seguido à detenção,
nos termos do 255º/3. Não pode haver um hiato temporal significativo entre a detenção e a
apresentação da queixa. Nesse caso, sem queixa teríamos uma pessoa detida, que, por isso, teria
de ter um estatuto processual de arguido. Por sua vez a existência deste estatuto processual
pressupõe que exista processo. Ora, não há processo sumário baseado em flagrante delito sem
queixa. Nestes termos se a detenção neste tipo de crimes não for imediatamente sucedida por
uma queixa está inquinada a validade do processo sumário.

Para a detenção ser mantida o titular do bem jurídico ofendido ou um mandatário com
poderes especiais para o efeito (49º/3) apresente logo queixa após a detenção. Caso contrário e
se a polícia ainda mantiver a detenção, esta será ilegal por violação do 255º/3. Só com a
apresentação de queixa pode ser legalmente mantida a detenção e o processo poderá seguir a
forma sumaria.

Assim a detenção, sendo ilegal, sê-lo-á em relação ao processo sumário, que não pode
ser tramitado por força dos moldes em que se deu a detenção.

iii) Limites de Pena: A lei nº1/2016 promoveu, quanto a este requisito, um regresso ao regime
anterior a 2013: a pena prevista para um crime tramitado em processo sumário não pode ser
superior a 5 anos. Pode, contudo, ser usado o 381º/2 para tramitar o processo sumário nos casos
em que a pena é abstratamente superior a 5 anos, mas no juízo de prognose concreta feito pelo
MP se vir que a medida da pena concreta não ultrapassará este limiar.

A ideia do legislador é definir a submissão de processos à forma sumária em função da


menor gravidade dos crimes a ela sujeitos.

Segundo o regime geral da competência dos tribunais, os crimes de pena inferior a 5


anos são tramitados em tribunal singular e os de pena superior a 5 anos em tribunais coletivos.
Ora, para manter uma congruência entre a composição do tribunal competente e a tramitação do
processo sumário é utilizado o critério do 381º/1 fazendo com que todos os casos de processo
sumário sejam tramitados em tribunal singular (os casos do 381º/2 irão também para tribunal
singular, que não pode, no entanto, ultrapassar o limite dos 5 anos na definição da medida
concreta da pena)57.

Estas regras aplicam-se também a casos de concurso de crimes. Neste tipo de casos,
aquilo que devemos analisar são as penas máximas de cada crime e não tanto para o critério de
cálculo do cúmulo material mitigado. Nestes termos, só se aceita a submissão destes casos a
processo sumário se a soma das penas máximas não exceder os 5 anos. Não releva o cúmulo
material mitigado (77º CP, que estabelece a moldura do concurso tendo como limiar máximo a
soma da pena concreta de cada crime e tendo como limiar mínimo a pena concretamente
aplicada mais elevada), mas as penas máximas abstratas que, somadas, não podem exceder 5
anos.

Sistema da determinação concreta da competência fora do processo sumário: Se o


MP achar que a realidade concreta não vai ultrapassar os 5 anos, o MP envia para o tribunal
singular (16º/3). Objetivo: Fazer com que casos menos graves sejam julgados em tribunal
singular e desafogar os tribunais coletivos.

Em 2007 permitiu que este mecanismo fosse usado também no processo sumário.
Legislador permite que o MP envie para julgamento na forma sumária quando a realidade
concreta for menor (381º/2).

Ou seja, pena superior a cinco anos não pode ser julgada em processo sumário, a não ser
que se use o mecanismo do 381º/2 pressupondo que o tribunal não aplicará pena superior a 5
anos. Problema é que o legislador criou o 16º/3, no pressuposto que havia inquérito e acusação.
Quando o legislador aplica este regime ao processo sumário, não há inquérito o que pode levar a
um desfasamento entre os critérios da entidade policial e do MP pois o mecanismo tem de ser
57
O legislador, desde 2007, define a competência dos tribunais de duas formas: ou utilizando a pena legal
abstrata ou quando um tribunal envia para outro que considera competente um caso que, não obstante a
pena legal abstrata, se prova menos grave, menos complexo e passível de merecer uma pena concreta
menor. Em 2007, foi permitido que este mecanismo, previsto no 16º/3, fosse aplicado ao processo
sumário, através do disposto no 381º/2.
logo ponderado na detenção em flagrante delito. Quando entidades policiais têm dúvidas sobre
o encadeamento de processos, há um magistrado do MP nas comarcas disponível a isso, está de
turno e resolve a questão colocada pelas entidades policiais.

iv) Requisito Negativo Implícito: Nas palavras de TERESA PIZARRO BELEZA, resulta de
uma interpretação sistemática da lei que, para que um crime seja tramitado na forma sumária,
este não possa ser da competência material de um tribunal coletivo.

Se o julgamento em processo sumário é feito sempre em tribunal singular, não pode o


crime em causa ser da competência de um tribunal coletivo. Assim, se existir uma detenção
legal em flagrante delito por um crime cuja pena não seja superior a 5 anos e se respeito o prazo
do 287º/2, não pode ser tramitado o processo sumário se esse crime for da competência material
(e não relacionada com a moldura penal dos ilícitos) de um tribunal coletivo. Quais sejam?

Há certos crimes que, independentemente da pena, são da competência dos tribunais


coletivos. Por exemplo, o homicídio (onde algumas formas – maxime o homicídio a pedido –
tem uma pena de 1 a 3 anos, irrelevante para que este tipo seja da competência de tribunais
coletivos). A isto se chama a reserva material de competência do tribunal coletivo,
concretizada no 14º/2, a)58.

Em 2014, esta regra foi instituída por acórdão do TC e foi confirmada na reforma de
2016. Esta era a solução inicial e foi alterada em 2013, em que o legislador retirou os limites de
pena máxima e de competência do tribunal coletivo do elenco de requisitos do processo
sumário. Contudo, o legislador em 2016 veio repor o regime antigo em que este requisito
vigorava59.

v) Prazo de realização da audiência60 de julgamento: A doutrina maioritária acha que a


realização da audiência de julgamento em processo sumário já não se encontra sujeita

Antes de 1998, o detido ficava preso numa esquadra e era submetido a julgamento no
prazo de 48 horas. Estas 48 horas eram, por isso, requisito do processo sumário, a serem
cumprido estritamente em função da salvaguarda dos direitos fundamentais do arguido.

Este regime quanto ao início da audiência foi sendo sucessivamente flexibilizado com
as reformas de regime, pois o legislador acho que o prazo de 48 horas era muitíssimo apertado
(bastava a detenção ser na sexta-feira para não se respeitarem as 48 horas, em função de não
haver julgamentos ao fim-de-semana); e solução de incumprimento do prazo seria sempre a
58
Outros crimes da competência material de tribunal coletivo que não podem ser conhecidos em processo
sumário são os elencados no 14º/1. P.ex. quando alguém é detido em flagrante delito a praticar o crime de
injúrias ao PR.
59
Requisito que, assim, vigorou de 1987 a 2013 e foi retomado em 2014 com acórdão do TC e
confirmado em 2016 pela via legislativa.
60
Este é o prazo que medeia a detenção em flagrante delito e o julgamento.
tramitação do processo comum. O legislador foi, assim, alargando sucessivamente o prazo até
chegar à solução atual – até 5 dias após a detenção tem o indivíduo (que fica a liberdade, sendo
apenas notificado) de ser levado a julgamento, caso se interponham no prazo de 48 horas um ou
mais dias não úteis.

Em função disto, a jurisprudência maioritária (destaca-se CARLOS RODRIGUES DE


ALMEIDA, juiz do STJ) e alguma doutrina começaram a defender que este prazo para o início
da audiência já não era requisito do processo sumário, ou seja, sendo violado dava origem a
uma mera irregularidade e não a uma nulidade insanável. Baseava-se esta tese também no facto
de este prazo sair sistematicamente do 381º (que estabelecia todos os outros requisitos do
processo sumário) e ser transferido para o 387º.

COSTA PINTO, doutrina minoritária, entende que o prazo é requisito do processo


sumário, apenas mudou de norma e foi alargado com as reformas deste regime. Em primeiro
lugar, a inserção sistemática da regra do prazo é irrelevante para esta questão. O 381º e o 387º
têm o mesmo valor, enquanto normas jurídicas da mesma fonte. Por outro lado, à medida em
que passa o tempo entre a data dos factos e a detenção passa a haver um maior distanciamento
em relação a eles, que desvirtua a natureza do processo sumário (proximidade da tramitação,
ligada à impressividade da prova que a detenção em flagrante delito configura, é uma razão
substancial e não meramente procedimental).

10.5. A celeridade do processo sumário e o seu regime:

a) Auto de notícia/acusação (243º + 389º/1) Auto de detenção?

b) Recursos finais (391º)

c) Intervenções processuais limitadas (386º/2)

d) Número de testemunhas (383º)

e) Sentença oral (389º-A)

Nota: consultar os artigos enunciados neste ponto. Cumpre-nos só realizar algumas precisões
quanto às alíneas a) e b) deste ponto:

a) Auto de notícia: O auto de notícia pode, no processo sumário, substituir a leitura da


acusação. Se o MP recebe um auto de notícia lavrado pelos OPC ou outra autoridade judiciária,
não precisa de redigir acusação própria se achar que este auto tem factos suficientes e corretos
para fundamentar a acusação, deduzindo-a com o conteúdo do auto recebido. Não terá por isso
de redigir uma peça processual.
A tramitação do processo sumário é simplificada, está prevista para casos. Daí ter sido
um erro, corrigido em 2016, que o legislador em 2013 tenha aplicado este processo a casos mais
complexos cujo processo mais adequado é o comum.

Mesmo assim, a reforma de 2016 não corrigiu tudo, manteve algumas soluções de 2013.
Assim o processo contempla, por exemplo, uma instrução complementar e intermédia em que
há possibilidade de haver diligências de defesa (Momento de defesa do arguido ainda antes de
ser acusado, os factos não estão estabilizados. Arguido defende-se depois de ser acusado, lógica
do processo penal. Aqui é o contrário.) e do MP para consolidar o caso antes do julgamento 61.

b) Recursos finais: É possível recorrer da sentença emanada em processo sumário ou


de despacho do juiz que ponha termo ao processo por qualquer irregularidade (391º/1). PAULO
PINTO DE ALBUQUERQUE defende que se deve fazer uma interpretação conforme à
Constituição deste preceito no sentido de permitir que se possa recorrer de algumas decisões
anteriores à sentença, sob pena de violação das garantias de defesa do arguido (20º/1 e 32º/1,
CRP) – p.ex. medidas de coação aplicadas ao arguido, decisões que condenem no pagamento de
dada quantia antes da sentença ou despacho do juiz que não reconhece de impedimento contra si
deduzido.

10.6. O problema do concurso de crimes.

Se existir um concurso de crimes que, pela sua natureza, dê origem a tramitações de


processos diferentes, o que acontece a esses casos? P.ex. temos um crime público e outro
semipúblico ou temos um público e outro particular, para os quais, individualmente
considerados, existem regimes diferentes. Quid iuris se os crimes surgirem em concurso?

P.ex. se num concurso de crimes um deles for um crime particular, o que fazer quanto à
tramitação do processo sumário à luz do 255º/4 que já estudámos supra?

COSTA PINTO diz que não é possível enviar todo o concurso de crimes para processo
sumário, o concurso ao qual se submete a forma sumária tem de ser de crimes em que todos
admitam processo sumário. O 387º pressupõe que o crime possa ser julgado em processo
sumário.

A lei parece, pois, indicar a fragmentação: o que pode ser julgado em processo sumário
segue para essa forma o que não pode vai para processo comum ou outra forma que seja a
adequada. O MP ou o arguido podem, no entanto, suscitar esta questão, se a fragmentação não
for indicada (por razões de verdade material) ao tratamento do caso, levando a que o MP
conduza esse caso a outra forma compatível com ambos os crimes do concurso (em última

61
V. fase pré-judicial no Ponto 10.3.
ratio, isto será sempre possível com o processo comum) que não a do processo sumário. Pode o
MP fazê-lo autonomamente ou a requerimento do arguido.

O mesmo raciocínio se aplica a concurso entre crimes que sejam da competência de


tribunal singular e outros de tribunal coletivo.

Se dois tribunais diferentes tratarem dos vários crimes do concurso, o arguido tem o
direito a pedir o cúmulo superveniente dos crimes 62 em que foi julgado por tribunais diferentes,
aquando do último processo a ser tramitado.

11. Processo abreviado (391º-A e ss.)

11.1. Caracterização: valores e finalidades. Origem e estrutura.

No início da vigência do CPP só haviam duas formas de processo especial: a forma


sumária e a sumaríssima. Como ambas as formas tinham requisitos muito exigentes, bastava
faltar a verificação de um deles para não se poder adotá-las. Deste modo, casos de pouca
gravidade seguiam para a forma de processo comum, demasiado complexa face à sua pouca
danosidade.

A finalidade da forma abreviada surge, precisamente, para criar uma alternativa ao


processo comum para casos de pequena ou média gravidade, constituindo-se como um
verdadeiro “processo comum simplificado”, mas não deixando de ser uma forma especial.

A simplificação que a forma abreviada oferece ocorre no inquérito e no julgamento,


sendo tal simplificação destas duas fases acompanhada pela eliminação da instrução 63, desde
2007.

As estatísticas sobre o processo abreviado demonstram que esta forma de processo tem
tido alguma aplicação (crescente) ao longo dos tempos, mas que ainda se revela pouco
significativa. COSTA PINTO considera, no entanto, que o processo abreviado tem um grande
potencial de expansão e uma ampla margem de aplicação.

O processo é promovido na forma abreviada quando o MP deduz acusação juntando


um requerimento para tramitação na forma abreviada. O processo, a partir desse momento,
transita imediatamente para a fase de julgamento, que será simplificada. Quando o MP requer
julgamento na forma abreviada está a retirar a possibilidade de o arguido e o assistente

62
O cúmulo do concurso pode ser feito num mesmo tribunal que julga o concurso, ou supervenientemente
se os vários crimes forem julgados por tribunais diferentes.
63
Quando foi criado, o processo abreviado tinha uma pequena fase de instrução. não havia uma instrução
completa, mas apenas um debate instrutório. Nestes termos, a instrução servia não para concretizar a
investigação, mas para gerar um debate e subsequente pronúncia do juiz sobre se o caso deveria seguir
para julgamento ou não. Mesmo isto foi eliminado na reforma de 2007. Assim, nenhuma forma especial
tem instrução.
requererem a instrução. Assim, do ponto de vista processual não é inócua a escolha desta
forma, porque se subtraem (potestativamente, i.e., por vontade do MP) direitos aos sujeitos
processuais, designadamente o de promover o controlo da investigação criminal. Sacrifica-se,
em nome da celeridade, de forma potestativa, a possibilidade de os sujeitos requererem a
instrução.

Além do mais, nas outras formas especiais há um momento, ainda que não
necessariamente instrutório, em que o arguido pode contestar a adoção daquela forma especial.
Este momento não existe na forma abreviada, o que coloca estas dúvidas de
inconstitucionalidade.

No mesmo sentido do com outra linguagem: No processo sumário o arguido tem ainda
uma hipótese de se defender e no sumaríssimo pode recusar a sanção proposta, ou seja, nestas
duas formas especiais, há um momento intermédio em que o arguido pode manifestar a sua
vontade. No abreviado não há este momento, daí ter surgido a questão da inconstitucionalidade.

Até agora, porém, este regime não foi considerado inconstitucional, porque não deixa de
se garantir o direito ao julgamento e o direito ao recurso da decisão proferida. Em suma, a forma
de processo abreviado caracteriza-se por uma substancial aceleração, não inócua, das fases
preliminares, mas sempre garantindo o formalismo próprio de um julgamento em processo
comum. Nota: v. artigo 391º-E.

Funciona como garantia alternativa à da instrução a possibilidade de o juiz determinar a


remessa do processo para outra forma que não a abreviada se se verificar uma sua
inadmissibilidade em função da falta dos seus pressupostos legais – ideia de controlo do
processo – sendo esta possibilidade regulada no 391º-D (v. artigo).

11.2. Alterações de 2010 (391º-A/3)

O processo abreviado baseia-se em casos em que há provas simples e evidentes da


prática do crime e de quem foi o seu agente (391º-A/1).

Ora, antes de 2010 o legislador colocou no regime do processo abreviado uma cláusula
exemplificativa do que seriam as tais provas simples e evidentes. O MP podia, assim, alargar a
adoção do processo abreviado a situações não previstas na lei se considerasse as provas em
mãos simples e evidentes. Deste modo, um requisito que se exigia objetivo estava a ser alvo de
uma ponderação subjetiva do MP, o que se configurava como atentatório da certeza jurídica. O
requisito objetivo (princípio da legalidade na adoção das formas especiais) era convertido em
opinião subjetiva do MP.
COSTA PINTO concorda, por isso, com a reforma de 2010 em que se converteu a
cláusula exemplificativa em taxativa (391º-A/3). O que encontramos agora no artigo são os
únicos casos em que legalmente é possível considerar provas simples e evidentes. Se vamos
adotar uma forma que elimina a instrução e, consequentemente, direitos dos sujeitos
processuais; bem como que promove uma simplificação das fases de inquérito e de julgamento,
devemos fazê-lo com o máximo de segurança jurídica possível.

Adotando a solução da cláusula exemplificativa, multiplicariam-se os casos em que o


tribunal descobriria, posteriormente à decisão de tramitação do processo na forma abreviada,
que a prova não era, afinal, simples ou evidente. Aí a forma do processo teria sido mal
escolhida, o que implicaria uma invalidade superveniente do processo, ditando a sua remessa
para a forma comum. Contrariamente ao desiderato inicial deste processo, atrasar-se-ia mais a
tramitação processual. Flui desta situação hipotética que a solução da cláusula taxativa
salvaguarda, igualmente, a celeridade processual.

11.3. Requisitos:

Igualmente ao processo sumário, o emprego da forma de processo abreviada em


violação dos requisitos essenciais constitui uma nulidade insanável do processo (119º, f)). Ao
invés, empregando-se a forma de processo comum quando a lei determina a utilização da forma
de processo abreviado, a nulidade tem de ser arguida (120º/2, a)).

No entanto, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE defende que o poder de cognição


do juiz quanto a estas nulidades está limitado pela própria estrutura acusatória do processo,
salvaguardada pelo 32º/5, CRP, manifestando-se na sua avaliação da simplicidade e evidência
das provas.

Ora, pedir ao juiz que, antes da audiência se pronunciasse sobre se as provas de um


processo eram simples e evidentes seria o mesmo que pedir-lhe que antecipasse um juízo de
culpa e da procedência da acusação ainda antes do julgamento, o que é inaceitável e atentatória
das garantias de defesa e, em última ratio, da presunção da inocência do arguido. Deste modo
devem os artigos 119º, f), 120º/1, a), 391º-A/3 e 391º-C ser interpretados conformemente à
CRP, no sentido de que o juiz não se pode pronunciar sobre a simplicidade e evidência das
provas antes da audiência de julgamento.

(i) Gravidade abstrata ou concreta (da pena) (391º-A/ 1 e 2)

A gravidade da pena dá-nos ideia da gravidade do crime praticado.


A gravidade da pena abstrata de um crime suscetível de ser tramitado na forma
abreviada não pode ser superior a 5 anos ou, sendo superior a 5 anos, deve ser alvo de uma
ponderação concreta inferior a esse limiar por parte do MP antes de deduzir acusação.

Ex.: concurso de crimes com 3 anos de pena máxima cada um. Os dois somados
conduzem a uma pena abstrata máxima de 6 anos, incompatível com a tramitação na forma
abreviada. O MP pode usar o 391º-A/2 e, num juízo de prognose concreta, remeter o processo
para tribunal singular na forma abreviada ao dizer que a pena concreta nunca excederá os 5
anos, apesar da moldura legal abstrata máxima de 6 anos 64. Tribunal nunca pode ultrapassar o
limite da sua jurisdição: os 5 anos de prisão. A pena tem de se enquadrar na sua competência
material.

COSTA PINTO, ao contrário de GERMANO MARQUES DA SILVA, diz que um


tribunal que receba um caso em processo abreviado ou sumário (em que a pena aplicada não
pode ultrapassar os 5 anos) e o aceite em primeira mão, mas que descubra, no decurso do
processo, que o encaminhamento do MP não foi o correto pois o crime é mais grave que esse
limite de pena abstrata; pode declarar-se materialmente incompetente, remetendo o processo
para um tribunal apto a julgar casos mais graves – tribunal coletivo. Caso contrário punha-se
em causa a autonomia do tribunal havendo uma subordinação deste ao MP.

Defende a doutrina contrária (GERMANO MARQUES DA SILVA) que (i) o tribunal


singular já teve um momento para se poder declarar incompetente – o saneamento do processo
(311º) - e não o aproveitou, tendo-se declarado competente e feito seguir o caso seguir para
julgamento, só aí tendo concluído pela sua incompetência e que (ii) isto gerará um conflito
negativo de competências, porque, assumindo que o tribunal singular se poderia declarar
incompetente, isto implicaria que remetesse o processo para um tribunal coletivo e este poderia
também considerar-se incompetente para conhecer o caso por achar, no mesmo sentido do MP,
que o caso deve mesmo ser tramitado no processo abreviado/sumário.

COSTA PINTO, no entanto, acha que o tribunal coletivo que recebe um caso nestes
termos não pode declarar-se incompetente, porque é o tribunal coletivo que, à partida e sem o
requerimento da forma abreviada, seria o juiz legal, em função da moldura abstrata do crime –
originariamente o sistema já atribuía competência para julgar aquele crime ao tribunal coletivo,
só um juízo de prognose concreta do MP alterou esta distribuição competencial.

Outra questão que se coloca a este propósito: assumindo que o tribunal singular se pode
declarar materialmente incompetente na fase de julgamento e há remessa do processo para
tribunal coletivo. a que fase regressa este processo no tribunal coletivo? Uma hipótese será

64
V. no Ponto 10.4., (iii), a frase com a nota de rodapé 54 – sobre o limite da pena a aplicar pelo tribunal
singular.
regressar ao início do julgamento no tribunal coletivo. Mas isto implica um risco para a defesa.
Qual é? Na forma abreviada não há instrução. Indo para o tribunal coletivo para julgamento em
processo comum, implicaria o abdicar da instrução, retirava esse direito ao arguido. Assim, seria
mais acertado o processo ser remetido para a fase de instrução do tribunal coletivo.

(ii) Provas simples e evidentes (391º-A/3)

Nota: v. anotações deste artigo no CPP quanto a cada alínea e ponto 11.2.

Em função da nota supra, cumpre apenas precisar a alínea c):

Tem de haver mais que uma testemunha, exigência que resulta da expressão
testemunhas e da necessidade de a prova ser uniforme quanto aos factos, o que inerentemente
convoca uma multiplicidade de testemunhas.

Exige-se ainda que as testemunhas tenham um conhecimento direto dos factos (128º).
Exclui-se, assim, do escopo desta alínea a possibilidade de depoimento indireto – casos em que
quem presta o depoimento não viu os factos mas recebeu a informação de outra pessoa que os
viu (129º). Explica.se esta opção do legislador pela admissibilidade excecional desta prova
indireta entre nós, uma vez que é um meio probatório falível.

Nota: Quando a fonte tiver impossibilitada de depor o 129º é a melhor forma. A fonte
não pode ser chamada ao processo pois, se for, ultrapassa o depoimento indireto.

(iii) Auto de notícia ou inquérito abreviado (391º-A/1)

O processo abreviado, como já vimos, tem um inquérito simplificado, abreviado. Além


disso, o legislador permite que se substitua tal inquérito por um auto de notícia, que já contenha
uma narração suficiente dos factos, presenciados por quem o lavrou.

O auto de notícia pode substituir o inquérito, porque descreve os factos, quem os


praticou, as circunstâncias em que o crime ocorreu e as provas disponíveis, nestes termos
equivalendo materialmente a uma acusação (391º-B/1).

Permite-se com esta solução que um processo sumário que não foi viável transite para a
forma abreviada: como já estudámos, se o processo sumário contiver um auto de notícia pode-se
substituí-lo à acusação, mas se falhar um dos seus requisitos, o MP pode sempre recorrer em
alternativa ao processo abreviado, socorrendo também do auto de notícia.

(iv) Prazo 90 dias para acusação (391º-B/2)


Na redação original do regime do processo abreviado, haviam dois prazos a cumprir:
um de 90 dias para deduzir acusação (no decurso do qual se realizava a investigação prévia à
acusação) e outro igualmente de 90 dias para realizar o julgamento (Ideia era que se conservasse
a frescura da prova).

Ora, a praxis mostrou que o segundo prazo criava muitos problemas porque, por vezes,
eram necessários adiamentos e um maior prolongamento da produção de prova; algo que não
era compatível com o curto prazo de realização do julgamento. Havia quem dissesse que o
tribunal, ultrapassando-se o segundo prazo, deveria considerar-se incompetente, outros
defendiam que, pelo contrário, poder-se-ia permitir a continuação do julgamento. Surgia,
também, a questão de perceber a natureza de tal prazo e qual o efeito de o tribunal prolongar o
julgamento para lá dos 90 dias: tínhamos nulidade insanável do processo? Por outro lado, o
julgamento tinha de começar em 90 dias continuando depois o seu curso normal ou o
julgamento já tinha de estar terminado quando decorresse os 90 dias?

Assim, para solver estes diferendos e inconvenientes práticos, o legislador decidiu


acabar com este segundo prazo. Atualmente, mantêm-se apenas os 90 dias para deduzir
acusação. Será este prazo (agora único) um dos requisitos do processo abreviado?

Sim, este é um requisito desta forma processual, uma vez que se relaciona com uma das
suas finalidades, a de manter a impressividade das provas que conferem alguma segurança
quanto à prática do crime. Se se ultrapassar este prazo pode o tribunal conhecer da nulidade
insanável do processo abreviado (que entretanto se gerará) e enviá-lo para a forma comum.

Isto implica que o 391º-A/3, a) e c) pressuponham que não exista degradação temporal
das memórias subjacentes à prova (evita-se criar uma sugestão inconsciente) que se referem –
daí se explica também o curto prazo de 90 dias e as suas consequências preclusivas da
tramitação na forma abreviada: pela necessidade de preservação normativa da simplicidade e
clareza das provas. Não é um requisito meramente procedimental, tem que ver com a clareza
das provas (uma dos fundamentos da criação do processo abreviado).

(v) Requisito negativo implícito

O caso que se pretende tramitar na forma abreviada não pode dizer respeito a um crime
que seja da competência material de um tribunal coletivo (não pode ser um dos elencados no
14º.)

Nota 1: v. Ponto 10.4., (iv).

Nota 2: Já não referente aos requisitos da forma abreviada de processo, mas quanto
ao seu regime, já todos os seus artigos foram falados, menos os 391º-F e 391º-G, que remetem
para o regime da forma sumária de processo. Assim, aconselha-se a leitura dos mesmos e das
secções deste Resumo que se referem ao 389º-A e ao 391º.

11.4. Crimes particulares (391º-B/3)

É possível tramitar o processo na forma abreviada nos crimes particulares. Mas nestes
crimes é o assistente a deduzir acusação particular. O MP pode ou não acompanhar a acusação,
mas pode também, autonomamente, requerer o julgamento na forma abreviada, mesmo que
não acompanhe a acusação.

O MP nunca pode deduzir acusação e fazer o requerimento antes de cumprir o 285º.


Caso o assistente acuse, é que o MP toma a decisão de apresentar ou não o requerimento. O MP
não pode decidir questões relativas à promoção ulterior do processo (designadamente a forma
de tramitação) sem que o assistente demonstre o impulso de continuar o processo, através da
acusação particular. O nº3 vem permitir, no fundo, que o MP acrescente o requerimento à
acusação do particular independentemente de acompanhar ou não a acusação.

12. Processo sumaríssimo (392º e ss.)

12.1. Valores e finalidades: consenso, participação do arguido, pacificação do conflito.


Estrutura: inquérito facultativo/ sem instrução/julgamento por despacho

A forma sumaríssima é completamente diferente das outras formas especiais, possuindo


uma estrutura e características completamente inovadoras face ao processo sumário e abreviado.

Na forma sumaríssima, o MP em vez de simplesmente acusar e propor julgamento em


forma especial, faz uma proposta sancionatória concreta pedindo que o processo tramite na
forma sumaríssima, o que obriga a um procedimento específico (esta proposta surge, no entanto,
no contexto formal de uma acusação).

A lei permite que esta acusação com proposta sancionatória concreta ocorra no fim do
inquérito, mas pode também acontecer que o processo venha de tramitação na forma sumária
que não pôde continuar e, nesse caso, se reunidos os pressupostos, pode o processo tramitar na
forma sumaríssima, mesmo sem inquérito – o inquérito é, deste modo, facultativo.

Continuando a análise estrutural da forma sumaríssima, verificamos que nela não existe
instrução; e que o julgamento não tem audiência, sendo feito por despacho escrito. Ao longo da
vigência desta forma processual, o legislador foi simplificando os seus requisitos, sendo de
destacar a eliminação da necessidade de acordo expresso do arguido quanto à sanção proposta
pelo MP (não havia audiência mas tinha de ir a tribunal receber a decisão); eliminando-se
também a presença do arguido em audiência para ouvir a leitura da sanção – a ideia de consenso
subjacente a esta forma torna-se menos intensa. O consenso é, assim, depois da Reforma de 98
que simplificou os requisitos um pressuposto e não uma realidade bastando que o arguido não
recuse a sanção para ser proferido despacho (manifestação tácita).

Temos na forma sumaríssima uma alternativa à figura do plea bargaining (também o


processo sumaríssimo é enformado pela oportunidade processual), permitindo-se uma solução
mais expedita para certos casos menos graves, evitando-se a conflitualidade (ideia de promoção
do consenso65 relativamente ao desfecho do caso) e o gasto de recursos inerentes ao julgamento.
No entanto, a lógica do processo sumaríssimo é diferente da do plea bargaining – (i) o arguido
pode aceitar ou recusar a sanção proposta, mas não a pode negociar (se tentar negociar, isso
equivale a uma recusa); e (ii) todo este processo não se desenvolve em lógica policial (numa
fase pré-judicial), pois todo o diálogo entre sujeitos processuais é mediado pelo juiz.

Permite-se com a forma sumaríssima que, num momento prévio ao da audiência, o


arguido resolva rapidamente o processo pendente se considerar isso vantajoso para si, ou seja,
se pensa que poderia ser condenado em julgamento não sabendo a que pena será sujeito,
preferindo a celeridade e certeza do desfecho do processo nesta forma especial. Evita-se a
sujeição a uma audiência publica de julgamento. Diminui-se, assim, a litigância em torno do
caso, e pacifica-se o conflito. Em vez de litigar, aceita e resolve. Não se obriga o arguido a
confessar.

Esta foi uma solução desenhada para a pequena e média criminalidade, bagatela, em que
há provas muito seguras e concretas quanto à prática do facto.

O processo sumaríssimo tem uma vocação residual – em média poucos casos (5.000 a
6.000 por ano) são tramitados nesta forma. COSTA PINTO não acha isto pouco significativo,
pois qualquer caso em que se promovam soluções desta natureza é benéfico ao sistema, portanto
se há 5.000 casos há 5.000 situações de vantagem ao sistema. O processo sumaríssimo nunca
terá um grande campo de aplicação, mas será sempre vantajoso nesta sua função numericamente
menos significativa.

12.2. Requisitos:

(i) Gravidade da pena legal (392º)

Para um crime poder tramitar na forma sumaríssima, a sua pena legal abstrata não pode
exceder 5 anos. O legislador não contemplou nesta forma processual uma possibilidade de
ponderação da medida concreta da pena para levar um crime com pena superior a 5 anos a

65
FIGUEIREDOS DIAS e COSTA ANDRADE defendiam a criação desta forma processual, porque o
consenso nela promovido e obtido legitimava a decisão condenatória. Para COSTA PINTO este consenso
não é tanto um dado real, mas antes um valor do sistema, pois pode haver consenso tácito do arguido,
p.ex. se ele incumpre o prazo ou nada diz quanto à sanção proposta (o que desvirtua claramente a ideia de
consenso).
processo sumaríssimo. É certo que não está previsto este mecanismo no regime do processo
sumaríssimo, mas é aplicável o 16º/3, regra geral que permite este mecanismo. COSTA PINTO
diz que na sua perspetiva não há razão para não o aceitar à luz do 16º/3, reconhecendo, no
entanto, que este não é um entendimento pacífico. Alguma doutrina defende esta solução por
considerar que a falta deste mecanismo de ponderação concreta configura uma lacuna do 392º.

(ii) Audição ou pedido do arguido (392º)

O arguido tem de ser ouvido antes de se pedir a tramitação na forma sumaríssima. Ou


pode também o arguido pedir que o processo se tramite nesta forma.

Antes a lei não contemplava que o arguido pedisse a tramitação na forma sumaríssima,
segundo uma lógica de não promover expedientes que permitissem a negociação da sanção.
Mas esta solução foi adotada pelo legislador: se o arguido pode o mais (aceitar uma sanção
proposta pelo MP), pode o menos (propor a tramitação em que lhe será proposta uma sanção).

Se o arguido pedir a tramitação na forma sumaríssima não está o MP obrigado a seguir


este pedido – só o deve fazer quando entender que ao caso deve ser concretamente aplicada uma
sanção não privativa da liberdade e quando considerar que haverá mérito na tramitação segundo
esta forma:

É isto que COSTA PINTO defende, ao contrário de PAULO PINTO DE


ALBUQUERQUE: o MP tem uma margem de discricionariedade quanto à condução desta
forma de processo que tem de ser respeitada, para que não se entre numa lógica de negociação
da responsabilidade criminal do arguido. Discricionariedade deve ser respeitada. Não é por
existir um pedido que tem de haver forma sumaríssima. Não se pretendeu acolher a negociação,
mas é útil para o MP saber o que o arguido possa aceitar, não pode é negociar com o arguido.
Este requisito visa alguma troca de informação para que haja uma proposta viável. Assim, não
se volta para trás com a recusa do arguido.

(iii) Acusação, requerimento e proposta sancionatória concreta do MP (394º)

Esta é a estrutura formal a seguir para abrir o processo, necessária a que fiquem
conhecidos os factos que compõem a prática do crime 66. O requerimento do 394º corresponde
materialmente a uma acusação. Por isso, o MP só deve apresenta-lo quando se verifiquem
indícios suficientes da prática do crime.

Assim, o requerimento deve ser fundamentado com a prova existente (as provas que
sustentam a indiciação); devendo ainda conter os elementos de identificação do arguido, os
factos imputados, as normas penais violadas, o enunciado sumário das razões pelas quais o MP
66
Uma das finalidades desta exigência do conhecimento dos factos é a de controlar que tais factos possam
ser julgados de novo, ou seja, a de salvaguardar eventuais anteriores efeitos de caso julgado.
acha que deve ser aplicada sanção não detentiva e a proposta sancionatória concreta já tratada
supra67.

A pena proposta não pode ser privativa da liberdade: pode, por isso, ser uma pena de
multa (47º, CP), a proibição de exercício de profissão, função ou atividade (43º/3, CP), a
admoestação (60º, CP), a interdição de atividades (100º, CP), a inibição de condução/cassação
da carta (101º, CP), e a pena de trabalho em favor da comunidade (58º, CP). É discutível que
esta última sanção possa ser aplicada em processo sumaríssimo, pois há quem entenda que esta
pode implicar uma privação da liberdade incompatível com esta forma processual. Mas como o
arguido pode recusar a sanção (sendo a sua não oposição equivalente à aceitação do condenado
do 58º/5), deve-se aceitar o trabalho em favor da comunidade como possibilidade sancionatória
a propor em processo sumaríssimo.

(iv) Concordância do Tribunal e não oposição do arguido (395º/397º) com eventual


modificação do Tribunal (395º/2)

O tribunal tem de concordar com a proposta sancionatória do MP 68 e, concordando,


transmite-a ao arguido, dando-lhe um prazo para ele se opor a ela 69. Se o arguido aceitar ou não
se opuser dentro do prazo que lhe foi dado, o tribunal decide, lavrando despacho em que
condena o arguido com a sanção proposta (397º).

Depois do tribunal transmitir a sanção proposta ao arguido, está vinculado a seguir o seu
conteúdo se ele a aceitar ou não se opuser. No entanto, antes de tal momento (aquando da
proposta sancionatória do MP), o tribunal tem alguma liberdade quanto à conformação da
sanção proposta.

Outrora, se o tribunal não concordasse com a sanção proposta, tinha de devolver o


processo ao MP, recusando o requerimento de tramitação na forma sumaríssima. Agora, com a
recente reforma deste regime, pode o tribunal, dento de certos limites, modificar a sanção
proposta pelo MP (395º/2) – assim se traduz a liberdade do tribunal até à transmissão da sanção
proposta ao arguido (em vista de uma melhor eficiência).

Se o arguido se opuser à sanção proposta, aplica-se o 398º e o juiz ordena o reenvio do


processo para a forma processual comum ou, sendo ainda possível, para a forma abreviada 70. O
juiz deve, antes de ordenar o reenvio, verificar a legitimidade e tempestividade da declaração de

67
Quando for caso disso é ainda indicado o constante do 394º/2, b).
68
O tribunal possui ainda a prerrogativa de rejeitar o requerimento do MP e ditar o reenvio do processo
para outra forma nos termos do 395º/1, 3 e 4.
69
Os ditames a seguir para notificar o arguido surgem discriminados no 396º. De salientar que é uma
garantia essencial de defesa do arguido que esta notificação seja feita por contacto pessoal (396º/2).
70
Nestes casos, o requerimento do 394º equivale a acusação do MP, da qual deve o arguido ser notificado.
No caso de o reenvio ser para a forma comum, deve ainda o MP notificar o arguido de que ele pode
exercer o seu direito de requerer a abertura da instrução.
oposição. Nestes casos de oposição do arguido em que o juiz tenha concordado com a sanção
proposta pelo MP, este está comprometido com o mérito da causa e, por isso, não pode intervir
no seu julgamento subsequente. Qualquer entendimento em sentido contrário do 398º será
inconstitucional por violação de garantias de defesa fundamentais (32º/1 e 5, CRP).

No julgamento subsequente na forma que já não seja sumaríssima não vale o princípio
da proibição da reformatio in pejus – pode a sanção aplicada ser mais gravosa para o arguido
que a proposta pelo MP no sumaríssimo, pois essa proposta não equivale a uma decisão de 1ª
instância.

(v) Requisito negativo implícito

Nota: Este requisito é em tudo igual ao seu homónimo do processo abreviado. Consultar 11.3.,
(v).

12.4. Traços gerais de regime do processo sumaríssimo

a) Processo facultativo – há doutrina que defende que o MP está obrigado a,


verificados os pressupostos do processo sumaríssimo, adotar tal forma do processo penal.
COSTA PINTO, por seu turno, discorda: o MP faz uma proposta sancionatória, mas esta pode
não ser feita se o MP o julgar inadequado. Num quadro deste tipo, não se pode advogar uma
obrigatoriedade do MP a tramitar na forma sumaríssima.

Mesmo que o MP tenha uma margem de discricionariedade condicionada quanto à


apresentação de proposta, continua a poder decidir apresentá-la ou não. Ninguém pode
substituir o MP nesta proposta sancionatória (pressuposto essencial que depende da decisão do
MP). Se ele não a fizer, não se poderá tramitar o processo sumaríssimo, o que só nos pode levar
a concluir que esta forma processual é de adoção facultativa. Não é uma forma imperativa de
processo. Em suma, é reconhecida ao MP uma margem de discricionariedade perante o caso
concreto não se impondo ao MP qualquer caminho processual.

O processo é ainda facultativo, não só quanto ao MP, como quanto ao Tribunal (pode
discordar) e quanto ao arguido (pode opor-se). Feita a proposta do MP, não há necessariamente
processo sumaríssimo. Daí se dizer que é facultativo porque depende da apreciação concreta e
da vontade de três sujeitos diferentes.

b) Processo fundamentalmente escrito – o processo penal português é


fundamentalmente escrito no inquérito e marcado pela oralidade na fase de julgamento (a isto
corresponde a estrutura acusatória do nosso modelo processual penal). Isto é, mesmo que no
processo comum exista documentação escrita o Tribunal tem de tomar contacto com ela na
audiência de julgamento e a regra fundamental de condução desta audiência é a do princípio da
oralidade (96º). Mas neste caso, a partir do momento em que se pede o julgamento na forma
sumaríssima, o processo passa a ser todo por escrito (aliás esta característica encontra-se bem
vincada no julgamento realizado por despacho). A fase judicial decisória desta forma processual
é marcada pela natureza escrita da sua tramitação e não pela oralidade como acontece nas outras
formas de processo. Em suma: temos um requerimento do MP escrito e um despacho liminar do
juiz escrito (seja um despacho de rejeição, seja um despacho de notificação do arguido).
Anteriormente, exigia-se aceitação expressa do arguido e esta tinha também de ser por escrito.
O acordo entre os três sujeitos processuais é essencial para se aplicar esta forma de processo e
tem uma base escrita.

c) Contraditório comprimido – Por imposição constitucional (32º nº5 CRP) o


processo penal português assenta na ideia de contraditório, quanto aos factos e quanto ao
enquadramento de direito. Nas outras formas de processo há um contraditório pleno no
julgamento. No processo sumaríssimo só há a possibilidade de recusa da proposta sancionatória.
Não pode haver discussão nem produção adicional de prova (arguido não pode, por exemplo,
nomear testemunhas para debater os factos; ou aceita os factos e as sanções ou não aceita e,
neste caso, o processo é remetido para a forma comum. Ou há acordo e faz-se um processo
sumaríssimo e não há debate; ou não há acordo, quando o Tribunal ou o arguido não aceitarem a
proposta, e então não há processo sumaríssimo e o debate irá realizar-se noutra forma de
processo). Se o individuo faz algum requerimento que não seja compatível com a tramitação
sumaríssima, então isto significa uma recusa desta tramitação. Bem se entende que assim seja,
uma vez que, sendo este processo orientado pelo consenso, não pode existir a conflitualidade
inerente ao contraditório. Esta forma de processo sacrifica em parte, mas com o acordo dos
principais interessados, o princípio do contraditório. O facto de as decisões proferidas em
processo sumaríssimo serem insuscetíveis de recurso, nos termos do 397º nº2 é também uma
forma de não transportar o contraditório para as instâncias superiores.

Em suma, o processo sumaríssimo tem estas três características, que o tornam uma
singularidade no panorama das formas de processo.

Podemos, ainda, destacar algumas particularidades do processo sumaríssimo:

393º - não há intervenção de partes civis no processo sumaríssimo. A única exceção a


esta não intervenção das partes civis é a permissão de que o lesado manifeste a intenção de obter
a reparação dos danos sofridos nos termos do 393º/2, caso em que o MP pode incluir na
proposta sancionatória concreta o montante da quantia devida (394º/2, b)).

Pretende o CPP permitir uma solução rápida do caso, sem a conflitualidade própria da
intervenção de um ofendido, em especial de um lesado que pode levar ao prolongamento do
processo por causa da questão da indemnização cível. O legislador cria aqui, por esta via, outro
efeito: impede o ofendido de desistir da queixa apresentada. Porquê? Se a lei diz que não há
intervenção das partes civis, a partir do momento em que o processo tramita na forma
sumaríssima, o ofendido não participa no processo (não há espaço legal para este intervir), pelo
que, tendo feito a queixa, já não possui qualquer estatuto processual que o possa levar a optar
pela desistência da queixa (se a houver, não será legal), inviabilizada pela afirmação categórica
feita no 393º/1. Conclui-se assim que se houver requerimento para o processo tramitar na forma
sumaríssima, retira-se não só a possibilidade de se requerer instrução como se impede a
desistência do processo criminal por parte do ofendido.

12.5. Crimes particulares

Pode haver processo sumaríssimo se o crime for particular, por que isso foi
expressamente acrescentado no 392º/2, que não existia na versão original deste regime. Porém,
o assistente tem de concordar com a tramitação do processo na forma sumaríssima, para que
esta se possa desenrolar em relação a este tipo de crimes.

Os crimes particulares pela sua típica pouca gravidade teriam nesta forma de processo o
seu campo de aplicação por excelência. Mas, efetivamente, não estava prevista nesta forma
processual a intervenção do assistente, e tendo o MP de notificar o assistente para este deduzir
acusação nos crimes particulares, ficava assim vedada a possibilidade de apresentar a proposta
sancionatória concreta necessária para que se tramitasse na forma sumaríssima. Assim, por falta
de previsão legal, o regime do processo sumaríssimo não se aplicava a crimes particulares, o
que era uma incongruência do sistema, senão veja-se:

Para além de não se permitir esta tramitação para estes crimes, de pouca gravidade, na
figura da suspensão provisória do processo está prevista uma possibilidade do assistente
intervir, concordando ou não com a suspensão provisória. Se esta possibilidade existia no 281º,
porque é que não existia no processo sumaríssimo? Se estava num lado mas não estava noutro
era porque o legislador assim queria , mas tal não fazia qualquer tipo de sentido.

Assim, o legislador acrescentou o 392º/2, esclarecendo que, se o crime for particular,


o requerimento com proposta sancionatória tem de ter o acordo do assistente. Na prática não
se subverte o regime dos particulares. Se um crime tiver natureza particular e for adequada a
aplicação da forma sumaríssima, não se substitui o 285º ao 392º/2: este acresce àquele.

No fim do inquérito, o MP cumpre o 285º e notifica o assistente para, se quiser,


deduzir acusação particular. Se o assistente o fizer, pode o MP juntar a esta acusação um
requerimento com uma proposta sancionatória nos termos do 392º/2, mas exige-se sempre
que o assistente concorde com este requerimento para que ele siga para tribunal.
Este regime do 392º/2 não foi criado para subverter o procedimento dos crimes
particulares, mas antes para adaptar o processo sumaríssimo a este tipo de crimes.

13. O sistema de fontes e os princípios fundamentais do Direito Processual Penal

13.1. As fontes de DPP e a Constituição: a) A lei e a CRP; b) A jurisprudência; c) A


doutrina

A principal fonte do Direito Processual Penal é, em termos muito simples, a lei. Mas
devemos ressalvar algumas particularidades:

a) em primeiro lugar, devemos notar a necessária articulação entre a lei ordinária e a


CRP. Alguns aspetos do DPP estão tratados na CRP, porque:

(i) o processo penal contende com direitos fundamentais e, por isso, no capítulo das
garantias fundamentais temos normas que regulam diretamente o processo penal (25º e ss.,
CRP);

(ii) a CRP de 1976 operou uma revolução face ao regime processual penal do Estado
Novo (marcado pela PIDE, pela censura e outros abusos do processo criminal) e, portanto, num
argumento histórico, percebemos que o legislador constituinte quis antecipar na CRP alguns
princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, que foram, assim, vertidos numa
Constituição Penal riquíssima, gerando normas constitucionais que regulam diretamente o
processo penal.

Este fenómeno acima descrito confere uma grande diferença ao DPP, quando
comparado com outros ramos de direito processuais: uma interação muito intensa entre o DPP
ordinário e a Constituição. Prova disto é a abundante jurisprudência do TC a analisar normas
de direito processual penal.

Outra particularidade do DPP é que a sua regulamentação consiste numa codificação


(CPP) e em alguma legislação processual penal complementar (p.ex., em matéria de consumo e
tráfico de estupefacientes), num modelo semelhante ao germânico. Esta organização do sistema
gera uma grande vantagem em matéria de técnica legiferante: o essencial do regime do DPP está
contido no CPP, sendo que as inovações legislativas são, geralmente, introduzidas em legislação
avulsa, onde serão aperfeiçoadas e desenvolvidas.
Portanto, quando falamos de lei processual penal falamos numa realidade complexa:
legislação que se articula intensamente a nível hermenêutico com a CRP (com consequências
na produção jurisprudencial do TC, em sede de recurso de inconstitucionalidade 71) e que deve
contemplar uma visão integrada entre o CPP e legislação complementar.

Em função de todas as precedentes considerações, COSTA PINTO é da opinião que as


alterações em matéria penal do CPP e Código Penal (ou seja, das codificações estruturantes do
processo penal português) devem apenas ser efetuadas por meio de uma maioria qualificada – a
lei penal deveria ser uma expressão de uma maioria qualificada, uma vez que a estabilidade das
codificações em Processo Penal traz uma segurança jurídica para os cidadãos que é posta em
causa com as múltiplas alterações às normas dos Códigos.

b) A compreensão das fontes de DPP não se basta com a lei. Olhemos o papel da
jurisprudência nesta matéria:

As decisões dos tribunais não são vinculativas a não ser no caso concreto. Um tribunal
pode decidir autonomamente, não estando vinculado por tribunais superiores ou por outros do
mesmo nível hierárquico (aqui se manifesta a independência horizontal e vertical dos tribunais).
As decisões dos tribunais têm, contudo, uma eficácia persuasiva e argumentativa. O facto de
existir uma corrente jurisprudencial quanto a uma certa matéria confere uma força acrescida às
soluções defendidas por essa corrente, que será, assim, muito esgrimida nos vários processos
penais.

Vemos este fenómeno no seu máximo esplendor a propósito das decisões do TC, usadas
como precedente argumentativo a seguir pelo próprio TC noutros casos e pelos demais tribunais
ordinários.

Depois, devemos ainda atentar nos acórdãos uniformizadores de jurisprudência, que


possuem, igualmente, força vinculativa para o caso concreto, não detendo força vinculativa
geral72. No entanto, as orientações vertidas nestes acórdãos contêm uma espécie de persuasão
reforçada, pois quando uma Relação ou um tribunal de primeira instância adotam uma certa
decisão, fundamentada, que seja divergente da jurisprudência uniformizada do STJ, sabem que,
provavelmente, a sua decisão será revogada em sede de recurso, sobretudo no STJ onde se
uniformizou a jurisprudência.

Assim, em síntese, a força persuasiva dos acórdãos uniformizadores de


jurisprudência deriva (i) da probabilidade de revogação em sede de recurso de decisões

71
Ver Ponto 9.7. deste Resumo.
72
Qualquer tribunal pode afastar a jurisprudência uniformizada, desde que devidamente o fundamente
(437º e ss., CPP).
divergentes com a orientação neles defendida e (ii) da tendência dos tribunais a acomodar
decisões maioritárias.

Além disto, devemos ainda notar o facto de o MP emitir circulares ao nível distrital e ao
nível geral, que conformam a atuação dos seus magistrados consoante a sua hierarquia
administrativa.

Ex.: Um Procurador-adjunto recebe uma circular do Vice-PGR a dizer que pode fazer
acordos processuais com vista a ser o conteúdo das decisões finais do processo e depois recebe
outra da PGR a dizer que já não o pode fazer – vai-se vincular a esta última circular.

Estas circulares do MP não são fonte de direito, são um mecanismo de soft law, mas
mesmo as normas de soft law conformam as regras de direito. Por exemplo, quando surgiu o
regime das escutas telefónicas, foram emanadas circulares sobre boas práticas relativas à
aplicação deste regime, que conformaram a atuação do MP.

c) A doutrina tem um valor argumentativo muito singular, sendo muito absorvida pelas
decisões dos tribunais, em todos os níveis. Não sendo fonte de direito, têm muito peso no OJ
português, mais do que noutros OJ.

COSTA PINTO diz que a doutrina tem um grande valor, pois produz soluções jurídicas
desligadas do caso concreto, e, por isso, dos interesses que nesses casos sempre surgem. O seu
autor não está comprometido com nenhum interesse e a sua opinião é somente sujeita a um
princípio de coerência interna, em função de um pensamento específico. Diz COSTA PINTO
que um manual de Figueiredo Dias valerá mais do que um parecer concreto de Figueiredo
Dias.

13.2. Interpretação da lei processual penal: a tese tradicional e novos limites axiológicos

Para GERMANO MARQUES DA SILVA, a lei processual penal interpreta-se como


outra lei qualquer. No plano das técnicas de interpretação, isto é verdade (pode haver
interpretação declarativa, declarativa lata, extensiva, restritiva, etc.). Porém, há um plano mais
vasto a analisar no campo da interpretação, o dos referentes axiológicos na atividade
interpretativa, sendo por aí que a interpretação da lei processual penal diferirá da de outras leis
diferentes.

Quais, então, os elementos com mais peso na interpretação do direito processual penal?:

a) história legislativa – se nos trabalhos preparatórios de uma lei processual penal (CPP
ou diplomas extravagantes) virmos que o legislador não quis incluir no âmbito de uma norma
uma certa situação, isto terá muito mais peso comparativamente a outros ramos de direito, pois
no direito processual penal vigora o princípio da legalidade (consideração estrita dos ditames da
lei e das intenções do legislador);

b) a lei processual penal concretiza certos caminhos processuais, sacrificando alguns


interesses em detrimento de outros. Está nele presente, nestes termos e em todas as fases
processuais, toda uma dinâmica de formalização de um conflito de interesses entre os vários
sujeitos processuais e a atribuição de preponderância a alguns desses interesses em função dos
vários momentos do processo, procurando-se chegar ao maior equilíbrio possível entre
interesses discordantes. Neste quadro, surgem 4 limites axiológicos da interpretação da lei
processual penal:

i) A densificação de valores constitucionais – quando interpretamos uma norma


processual penal temos sempre de verificar a sua conformidade com a CRP. Nesta atividade
interpretativa entram diretamente, por vezes, um princípios e regras constitucionais;

ii) Como o processo penal é conflitual (mesmo que não seja um processo de partes), é
marcado por uma tensão entre os interesses da acusação e do arguido, que se manifesta em
muitos atos processuais ao longo do processo. A acusação pretende obter meios jurídicos para
descobrir a verdade material e imputar factos aos responsáveis; enquanto o arguido quer
contrariar esses esforços da acusação e evitar uma ingerência na sua vida privada. Neste
esquema entra também o ofendido. Por exemplo, se fizermos uma interpretação restritiva
favorável ao arguido, podemos estar a criar uma solução desfavorável aos outros sujeitos
processuais – o ofendido ou o MP, que também têm interesses legítimos no processo, que o
DPP também defende.

No DPP verifica-se a prossecução de um certo equilíbrio que procura conciliar os


interesses contraditórios dos vários sujeitos do processo penal. Assim, quando fazemos uma
interpretação, temos de cumprir um limite adicional, o de saber se não estamos a desequilibrar o
equilíbrio legalmente criado entre os estatutos dos sujeitos processuais. Se uma interpretação
que o faça não tiver uma base legal explícita, provavelmente não será admissível. Não pode o
intérprete criar um direito praeter legem que desfavoreça sujeitos processuais em detrimento de
outros;

iii) O processo penal português estabelece um princípio de concordância axiológica


de interesses conflituantes. Muitas vezes no CPP existem soluções explicitas de equilíbrio, de
acolher os interesses de alguns sujeitos sem sacrificar os dos outros. Por exemplo, se o
legislador eliminar o direito de recurso, está a assegurar celeridade e a comprimir as garantias
de defesa do arguido. Daí que sejam legislativamente estabelecidas soluções intermédias que
procuram atender, na medida do possível, aos vários interesses em jogo, compatibilizando-os.
Por exemplo, temos a divisão da estrutura acusatória que, no inquérito, sacrifica o contraditório
pleno, mas em relação a alguns atos ou diligências permite que exista um contraditório
específico e circunscrito a tal ato. Daí que o legislador não deva mexer de forma abrupta no
CPP, porque muitas vezes desequilibra o regime de equilíbrio criado, como aconteceu, a título
de exemplo, na reforma de 2013 do regime do processo sumário. Se o legislador o fez, também
não o pode o intérprete73;

iv) Do ponto de vista interpretativo, deve estar limitada a produção de resultados


surpresa, em que se dá uma certa valoração retroativa dos comportamentos dos sujeitos
processuais. Com efeito, as decisões-surpresa que saem fora do que a lei diz expressamente
podem, por isso mesmo, criar direito com o qual os sujeitos não contavam. Ora, isto equivale a
uma valoração retroativa do comportamento de tais sujeitos, que é completamente destrutiva do
processo. Daqui se extrai um quarto limite axiológico da interpretação do DPP: os intérpretes
devem evitar decisões-surpresa que ponham retroativamente em causa, por não constarem da lei
à data da prática dos factos, o comportamento dos sujeitos processuais.

13.3. A integração de lacunas e o artigo 4º, CPP. As soluções “fechadas” (imunes a


lacunas): 118º; 399º e ss.

No Direito Penal substantivo é proibida a analogia incriminadora e é, ao invés,


admissível a analogia com resultados favoráveis ao arguido – esta é a opinião da doutrina
maioritária.

Já em direito processual penal, é admitida qualquer analogia, nos termos do 4º, que
indica a sequência metodológica através da qual devem ser integradas as eventuais lacunas do
CPP. Deve atender-se em primeiro lugar às normas do processo civil compatíveis com o
processo penal e, subsidiariamente aos princípios do processo penal, que, assim, são fonte de
direito, na medida em que podem legitimar soluções normativas em caso de lacuna.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE critica o estabelecido no 4º, dizendo que os


princípios do processo penal deveriam ter precedência sobre as normas do processo civil, uma
vez que estas exigem operações hermenêuticas mais distantes, pelo facto de o processo civil ser,
em si, muito distinto do processo penal. Acrescenta ainda este autor que não se compreende que
o intérprete possa recorrer às normas do processo civil, mas não a normas inseridas em
diplomas avulsos de processo penal (pelo menos isto não está expressamente previsto no 4º.
Defende, por isso, que as normas de tais diplomas devem preceder a aplicação analógica das
normas do processo civil.

O que o 4º não diz é que há regimes legais que são imunes às lacunas. COSTA PINTO
apelida tais regimes de soluções fechadas, na medida em que não admitem lacunas. De facto,

73
Este limite axiológico tem apoio histórico no preâmbulo do CPP.
todas as lacunas são omissões legislativas, mas nem todas as omissões legislativas são lacunas.
Há omissões que elas mesmas são a solução, pois o legislador propositadamente não quis
regular certos aspetos.

Ex.1: temos no CPP 7 modalidades de medidas de coação, mas não temos mais
nenhuma, Não existe aqui qualquer lacuna e, por isso, não se pode, por analogia criar novas
medidas de coação ou modificar as já existentes. Vigora no DPP o princípio da legalidade, não
se podendo, por isso, aumentar elenco ou cruzar soluções das medidas já existentes.

Ex.2: O regime das nulidades processuais restringe-se taxativamente ao elenco de


nulidades do 119º e 120º, em função da sua sujeição ao princípio da legalidade, tal como
acontece no exemplo anterior. E depois temos o 118º/2, que nos diz expressamente que ou há
nulidade ou, na sua falta, existe uma irregularidade processual (123º). Neste caso, é o próprio
legislador que esclarece que não há lacuna. Não pode, assim, o intérprete/aplicador criar novas
nulidades por aproximação à estrutura valorativa do 119º ou 120º, por analogia.

Ex.3: As mesmas orientações estabelecidas no exemplo anterior são aplicáveis aos


casos de recorribilidade: o legislador estabelece os casos de irrecorribilidade. Fora desse elenco,
vigora a regra da recorribilidade, não podendo, por analogia, ser criadas novas situações de
irrecorribilidade.

Nestes casos, não concordando com a lei, temos de pugnar pela alteração legislativa do
regime analisado de iure condendo, e não criar novas soluções para o caso concreto por meio da
analogia.

13.4. Vigência temporal da lei processual penal nova: a) Critério geral (5º/1, CPP):
aplicação imediata (retroatividade moderada); b) Lei especial: direito transitório; c)
Limites à aplicação imediata (5º/2, CPP)

A vigência de uma lei é a possibilidade de a mesma ser invocada como solução para um
caso concreto. No Direito Penal existem regras muito claras quanto à sua aplicação no tempo:
vigora uma proibição da retroatividade da lei menos favorável ao arguido e uma regra de
aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido. Em DPP vale um regime diferente,
constante do 5º, em função de a lei processual penal se relacionar não com a conduta do agente
subsumida a um tipo, mas com o processo.

Qual a regra geral em matéria presente no 5º? A lei processual penal é de aplicação
imediata ao processo. Sendo de aplicação imediata, tem alguma retroatividade, na medida em
que abrange alguns processos que se iniciaram antes da sua entrada em vigor, mais
concretamente, aqueles que estão pendentes no momento em que surge (e que, por isso,
começaram a tramitar na vigência da lei anterior. Aplica-se, igual e naturalmente, a processos
futuros. Quais os limites desta regra geral?:

- Pode acontecer que certa solução legislativa crie direito transitório – normas que
enunciam qual lei se aplica a certos casos. Pode existir direito transitório formal, normas que
definem qual a lei material aplicável a um certo caso (se a lei nova se a lei antiga). Nesses casos,
não se aplica o 5º, mas estas normas de direito transitório formal. Pode igualmente ser criado
direito transitório material, em que em vez de uma norma de cariz formal indicar quais as
normas aplicáveis a cada tipologia de casos, cria um regime material específico para o período
transitório.

- Existem mais dois limites à regra geral, presentes no 5º/2. Nos casos elencados neste
artigo não se aplica a lei nova, antes se prolonga a aplicação da lei antiga, naquilo que se
denomina de um fenómeno de sobrevigência ou de ultratividade da lei antiga. Este
prolongamento da vigência da lei antiga é limitado ao caso concreto em que atua uma das
exceções do 5º/2.

Nota: v. artigo 5º/2.

13.5. Sucessão de leis no tempo (alteração da natureza processual do crime):

A) De crimes públicos para semipúblicos

(i) o processo não se iniciou: aplicação do novo regime (crimes semipúblicos);

(ii) o processo já se iniciou: processo contínuo (passa a existir direito de desistência


da queixa?)

B) De crimes semipúblicos para públicos

(i) o processo não se iniciou: pode iniciar-se, exceto em casos de caducidade do


direito de queixa

(ii) o processo já se iniciou: processo contínuo (deixa de admitir desistência?)

Existem casos específicos de sucessão da lei penal no tempo, em que se altera a


natureza processual de determinados crimes.

A) A primeira hipótese em análise é a de um crime público se converter em


semipúblico, como por exemplo, já sucedeu em relação a vários crimes contra o património.
Qual a natureza processual do crime a ter em conta nos vários processos penais?

GERMANO MARQUES DA SILVA pondera qual a situação mais favorável ao


arguido, mas, no caso de compatibilização de interesses do DPP, será redutor atender apenas ao
interesse do arguido, há outros a acautelar (como o do MP ou o do assistente). Já PAULO
PINTO DE ALBUQUERQUE recorre ao regime de sucessão da lei penal material no tempo,
mas esta tese tem a limitação de não existir propriamente uma equivalência de princípios entre o
direito penal e o processo penal, que possa fazer equivaler as normas penais materiais às normas
processuais.

COSTA PINTO propõe, em face destas teses, outra solução, mais simples. Se um crime
público for convertido em semipúblico, distingue duas situações:

i) A de o processo não se ter, ainda iniciado. Aí aplica-se o novo regime, aquele em que
o crime é semipúblico. O processo não se pode, então, iniciar à luz da lei antiga, mas antes nos
termos da lei nova (passa a ser necessária a apresentação de queixa do ofendido para o MP
poder abrir o inquérito). Nestes termos, desde quando se conta o prazo para a apresentação da
queixa? Desde a entrada em vigor da lei nova, pois é ela que torna o procedimento dependente
de queixa, sendo a partir deste momento que nasce na esfera do ofendido o direito de a
apresentar;

ii) Se o processo já se iniciou, então no momento do seu início o crime era público.
Nessa altura, o MP tinha legitimidade para abrir o processo sem a iniciativa do ofendido, algo
que, assim, fez nos termos da lei. Mas, a partir da entrada em vigor da lei nova, já não se vai
reverter tal abertura de inquérito.

Porém, outra questão se coloca: pode admitir-se um direito de o ofendido desistir da


queixa? Podem ser deduzidos argumentos em ambos os sentidos. Por um lado, para defender
que este direito de desistir da queixa existe, esgrime-se o princípio da igualdade - se os
processos que começarão depois da entrada em vigor da lei nova vão admitir a desistência da
queixa, então os já iniciados devem passar, igualmente, a admiti-lo. Por outro lado, no sentido
contrário, poder argumentar-se que não faz sentido poder-se desistir de uma queixa não
apresentada - se não foi uma queixa a ditar a abertura do processo, então não pode a sua
desistência ditar o seu final.

Em suma, COSTA PINTO segue a tese da inexistência do direito de desistência de


queixa em processos já iniciados, em termos muito simples: se tiver existido queixa no início do
processo, pode desistir-se dela, se não tiver existido queixa a presidir ao início do processo, não
poderá haver desistência (este último será o caso de o crime ser público e converter-se,
posteriormente a um processo que vise responsabilizar um agente pela sua prática, em crime
semipúblico).
B) Uma segunda hipótese a analisar será a de um crime semipúblico se converter em
crime público, algo que aconteceu, por exemplo, a propósito do crime de violência doméstica.
Também aqui, cumpre distinguir duas situações:

i) Se o processo não se iniciou ainda, passará a poder iniciar-se nos termos da luz da lei
nova (ou seja, passando o crime em causa a ser público, o MP deixa de estar dependente da
apresentação de queixa pelo ofendido para abrir o processo), exceto se já caducou o direito de
queixa. Neste caso excecional, antes da lei nova já se tinha consolidado uma situação de não
abertura do processo penal, pelo que cumpre não afetar a segurança jurídica dos interessados;

ii) Ao invés, se o processo já se iniciou, coloca-se a questão de saber se se deixa de


admitir a desistência da queixa legitimamente apresentada à luz da lei antiga (em que o crime
era semipúblico). À luz da lei antiga, o ofendido tinha o direito de desistir da queixa por si
apresentada e por meio da qual se iniciou o processo. Com a lei nova, o legislador quis retirar o
direito de queixa do ofendido face àquele crime (e correspondentemente o direito de dela
desistir), mas em relação a processos já iniciados, aceitar a supressão de tais direitos seria retirar
ao ofendido prerrogativas de que ele antes gozava.

COSTA PINTO aceita que se diga que, se a natureza processual do crime se alterou, o
processo passou a tramitar enquanto processo público, e, então, deixou de existir um direito de
desistência da queixa. Não deixa, no entanto, de considerar esta solução um pouco violenta, pois
se o ofendido, quando apresentou a queixa, tivesse previsto que poderia perder o direito de
desistir dela, então, se calhar, não a tinha apresentado.

Assim, COSTA PINTO acha preferível que, se à data dos factos o indivíduo tinha o
direito de apresentar e de desistir da queixa, então, com a mudança da lei penal e da natureza
processual do crime, não se lhe pode tirar o direito de desistir da queixa, pois ele não tinha
previsto a perda da possibilidade de desistir da queixa à data dos factos e fazê-lo constituiria
uma violação insuportável da certeza jurídica.

13.6. Princípios fundamentais do Direito Processual Penal


Um princípio fundamental de Direito Processual Penal é a cristalização normativa de
regras processuais fundamentas; nuns casos, abrange proposições normativas construídas
interpretativamente a partir do direito legislado. Noutros, abrange proposições normativas,
sedimentadas historicamente, que caraterizam a forma de o Estado exercer a pretensão penal. É
neste último ponto que entram os princípios mais estruturantes.

Por vezes, os princípios fundamentais do processo penal ganham acolhimento


constitucional (na “Constituição Penal”), obtendo a força consentânea com a sua inserção na lei
fundamental. ALEXY defendia que os princípios são “mandatos de otimização”: são situações
desejáveis que se devem densificar de forma a aprofundar os valores do Estado de Direito,
contendo assim objetivos a atingir, e não regras.

No processo penal há, no entanto, uma exceção, podendo os princípios comportar uma
dupla valência: ora são mandatos de otimização, ora são um padrão que deve ser respeitado
pelo direito legislado, sob pena de invalidade, neste último sentido se constituindo regras.
Assim, a sua observância implica, por vezes, a adoção de procedimentos concretos.

13.6.1. Origem dos princípios


Os princípios fundamentais do processo penal possuem origens diferentes. Alguns têm
origem constitucional, estando configurados como garantias de direitos fundamentais. Outros
são direitos fundamentais de per se. Outros são regras de organização não advindos da CRP, por
exemplo:

a) O princípio do juiz natural (art. 32º/9 CRP) tem origem constitucional, enquanto
garantia do direito fundamental à imparcialidade do juiz;
b) O direito de defesa do arguido (art. 32º CRP) – é, em si mesmo, um direito
fundamental, assim configurado pela CRP;
c) O princípio da suficiência da instância penal (art. 7º) não é uma garantia
constitucional, não é um direito fundamental, não estando consagrado na
Constituição. Não deixa de vigorar, consagrado no CPP (em norma
infraconstitucional), significando que o juiz penal decide todas as questões que se
colocam, mesmo as que sejam de outro ramo de direito, gozando de uma
competência geral que lhe permite pronunciar-se sobre todas as questões de
Direito74.

Para além do CPP e da CRO, não devemos deixar de notar que alguns princípios
fundamentais do processo penal resultam de direito internacional (CEDH, PIDCP, CDFUE) e,
por isso, têm fonte supranacional. A fonte de um princípio fundamental determina o seu valor
hierárquico. É incontestável que um princípio consagrado na CRP ou em fonte internacional
prevalece sobre um princípio extraído do CPP.

13.6.2. Constituição penal


Olhemos vários exemplos de normas constitucionais que dizem respeito ao processo
penal, contendo alguns dos seus princípios fundamentais:

No 25º, CRP encontramos uma norma que garante a integridade física e moral. Esta
norma faz a ponte para o processo penal, relacionando-se com a temática da prova proibida

74
Por exemplo, no processo penal é discutido um contrato de direito público cuja validade é discutível: o
juiz penal tem competência para decidir se do ponto de vista administrativo esse contrato é ou não válido
à luz das normas de direito administrativo.
(126º/1). É ainda consagrado um direito à liberdade e à segurança (27º, CRP), que funda a
existência do regime constitucional referente à prisão preventiva (28º, CRP), que se articula
com várias normas sobre a detenção no CPP. Na Constituição encontramos ainda a regulação de
outras matérias de natureza processual penal: existem limites para as penas e medidas de
segurança (30º, CRP); regula-se a figura do habeas corpus (31º CRP), que permite a reação
imediata a uma privação ilegal da liberdade (p.ex., alguém está em prisão preventiva para além
dos prazos permitidos legalmente). Veja-se ainda o 32º, CRP, que elenca as garantias do
processo criminal, ou o 34º, CRP, que restringe o regime de institutos probatórios como as
escutas em função da inviolabilidade do domicílio e da correspondência.

Todas estas normas se encontram na secção que enuncia os direitos, liberdades e


garantias. Podemos ainda encontrar outras normas relevantes para o processo penal noutras
secções da CRP. O 165º/1, d), CRP confere a feitura de normas penais à competência exclusiva
da AR. Quanto aos Tribunais, várias normas constitucionais existem, entre as quais se destaca o
203º, CRP. Quanto ao Ministério Público, vejam-se os 219º e ss., CRP.

13.6.3. As funções dos princípios fundamentais do processo penal e sua evolução histórica
Os princípios fundamentais do processo penal possuem várias funções:

1. Podem, desde logo, orientar a compreensão do Direito, sendo importante referente


hermenêutico;
2. Em alguns casos, têm uma função limitativa, havendo certas soluções que se devem
rejeitar por incompatibilidade com a CRP;
3. Têm uma fortíssima dimensão argumentativa, para efeitos de fundamentação de
decisões. São constantemente invocados nos tribunais, como apoio argumentativo na
interpretação da lei. Em matéria de hermenêutica constitucional, não se faz uma
graduação de maior ou menor conformidade à CRP, mas há soluções que são mais ou
menos respeitadoras do preceituado na lei fundamental, ainda que não deixem de ser
conformes, sendo de preferir as que melhor acolham os princípios vertidos na CRP;
4. Podem ainda ser fonte de integração de lacunas (4º, in fine).

Na prática, o alcance destes princípios diferencia-se em função das formas de processo


e das fases processuais. Por exemplo, o princípio do contraditório é limitado no inquérito e é
pleno na fase de julgamento.

Há toda uma sedimentação histórica inerente a cada princípio fundamental do


processo penal, que lhe imprime uma constante evolução. Veja-se o caso do direito ao silêncio,
originalmente concebido como um direito a não se declarar culpado. Hoje em dia, não só é um
direito a não responder, como um direito a que o silêncio não seja valorado desfavoravelmente
pelo Tribunal. Outras evoluções são de esperar, em função de novas questões que surgem a
propósito deste princípio fundamental: por exemplo, temos um processo penal em curso
concomitante com uma comissão parlamentar de inquérito. Está um arguido obrigado a falar
numa comissão parlamentar de inquérito onde não é arguido, mas pode inutilizar o seu direto ao
silêncio fora do processo, ao se registar aquilo que ele disse nessa sede, algo que pode vir a ser
usado em processo penal. Como compatibilizar este conflito de estatutos?

13.6.4. Organização dos princípios fundamentais do processo penal


Os princípios fundamentais do processo penal não são matéria teórica que paira sobre o
direito legislado, sendo parte do regime (como já estudámos, são mandatos e regras). COSTA
PINTO arruma estes princípios em 5 grupos, que vamos analisar separadamente.

13.6.4.1. Dos princípios relativos à estrutura e organização do processo penal


(i) Princípio da estrutura acusatória do processo penal
Plasmado no 32º/5, CRP, este é um princípio com um conteúdo mínimo básico: quem
acusa não julga, e quem julga não acusa, garantindo-se a máxima imparcialidade do tribunal de
julgamento.

Este princípio aplica-se, decisivamente, ao Tribunal, mas não se aplica ao MP, no


sentido de o mesmo magistrado do MP poder transitar do inquérito para a instrução e da
instrução para o julgamento ou do inquérito para o julgamento, enfim poder transitar pelas
várias fases processuais. Porquê? Este princípio apenas quer assegurar a imparcialidade do
tribunal, pois só este (e não o MP) vai decidir da imputação de responsabilidades ao arguido.

Esta é uma prática frequente e perfeitamente legal, promovendo situações em que quem
tem o processo nas suas mãos vai-se cada vez mais inteirando dos factos pelos quais
eventualmente se deduz (ou não) acusação.

O MP até pratica, como veremos, vários atos para jurisdicionais, mas nunca decide da
responsabilidade criminal do agente, sendo, por isso, que este princípio não se estende ao MP.
Outros princípios fundamentais norteiam a atuação do MP, como a descoberta da verdade, a
objetividade ou a procura da boa aplicação do direito. Mas como não julga, a estrutura
acusatória não se lhe refere.

É importante para garantir a estrutura acusatória:

- A vinculação temática – o juiz decide e não investiga/acusa, pelo que está vinculado
no processo pelo conteúdo da acusação;
- A estabilidade do objeto do processo – depois da fase do inquérito/instrução não se
deve mudar o objeto do processo (só excecionalmente), para que quem julga não mude o objeto
do processo, formulando juízos de valor sobre a base da sua valoração julgadora 75.

Com base nestas considerações, podemos desenvolver a fórmula apodíctica que usámos
para descrever este princípio no início desta exposição: quem acusa não julga e quem julga não
acusa, competindo ao acusador definir o objeto do processo e vincular tematicamente o
julgador.

Nota: estas são meras breves notas, ver este princípio nos Pontos 3.1 e 3.5 deste
Resumo.

(ii) Princípio da presunção da inocência do arguido

Nota: Este princípio encontra-se tratado no Ponto 1. deste Resumo, pelo que apenas
iremos deixar aqui breves notas sobre o Quinto do Rialva.

A presunção de inocência tem diversas componentes:

(i) Componente intraprocessual – este princípio obriga a que as entidades que intervêm
no processo, partam do princípio de que o arguido é inocente, tendo de demonstrar a sua
culpabilidade, ou seja, provar os indícios de responsabilidade do arguido – relevância na
distribuição do ónus da prova, que impenderá sobre a acusação. Por exemplo, o Tribunal tem de
tratar o arguido como sendo inocente, não podendo, na apreciação da sua responsabilidade,
formular juízos de suspeita ou acusação antes de se provar a sua não inocência, ou seja, antes de
produzida a prova sobre a culpabilidade do arguido. Aí o juízo de culpabilidade já será legítimo;

(ii) Componente extraprocessual – há quem entenda que a presunção de inocência só


vale dentro do processo. COSTA PINTO discorda, considerando que, sendo a presunção de
inocência um direito fundamental, se ela não valesse fora do processo, esgotava e inutilizava a
sua dimensão intraprocessual. De que vale seres inocente no processo se és condenado na praça
pública? Assim, quem fizer imputações de responsabilidade ao arguido fora do processo
incorre, eventualmente, em crime de denúncia caluniosa. Deve esta dimensão extraprocessual
ser balançada com a liberdade de imprensa, tudo se jogando na forma como se divulgam
noticias – podem-se relatar factos comprometedores, mas não acompanhar esse relato de juízos
de valor.

(iii) Princípio da judicialidade

Este princípio sustenta que em tudo o que implique direitos fundamentais (27º/1,
29º/1 e 32º/1, CRP), deve o JIC intervir.

75
Ver Ponto 15. deste Resumo.
O JIC não terá intervenção na investigação em si e enquanto um todo, mas em atos
específicos de investigação que pontualmente colidam com direitos fundamentais, vide a reserva
da vida privada, o sigilo nas telecomunicações, o segredo médico ou bancário, as privações de
liberdade de maior grau. Flui destas considerações que toda e qualquer medida de coação,
ressalvando a mínima (o termo de identidade e residência), deve ser aplicada pelo JIC, mesmo
que estejamos na fase de inquérito (194º/1).

COSTA PINTO denota uma tendência moderada no CPP de permitir ao MP a prática de


atos materialmente jurisdicionais, como aqueles que decorrem dos 280º e 281º, ou até juízos de
valor sobre a culpabilidade do arguido para elaboração de requerimento para julgamento em
processo sumaríssimo. Oram sempre que haja, na prática destes atos um risco de colisão, ainda
que abstrata, com direitos fundamentais, ao ponto de se restringir a liberdade de um cidadão,
deve o ato em questão considerar-se incluído na reserva judicial do art. 202º, CRP e ser
atribuído ao JIC. Os atos desta natureza praticados pelo MP, além de excecionais, devem ser
legitimados como atos de colaboração com o Tribunal (202º/3, CRP).

Assim, e para terminar, todos os atos materialmente jurisdicionais do MP estarão sob


acompanhamento judicial imediato ou sob sujeição a um controlo judicial, não podendo, por si
só, ser vinculativos, nem podendo opor-se às decisões de tribunais.

(iv) Princípio do juiz natural ou legal

É a lei, e não uma vontade subjetiva concreta, que determina quem é o juiz de um dado
processo e qual vai ser o tribunal a julgar o caso (32º/9, CRP). A fonte de competência do
tribunal será, então, a lei.

Este é o conteúdo do princípio do juiz natural, que visa garantir um juiz imparcial, ao
garantir que a sua nomeação para um processo esteja vinculada a mais nenhum interesse que o
da lei. Assim, o juiz não será escolhido de forma casuística.

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, FÁTIMA MATA-MOUROS assim


como PAOLO TONINI76, aventam que este princípio se opõe a qualquer alteração do tribunal
competente à data do cometimento do crime, o tempus delicti. Segundo esta doutrina, proíbe-se
a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do

76
Este a propósito do 25º/1 da Constituição italiana.
crime. Outra corrente doutrinária, maioritária e merecedora do apoio do TC 77, defende que este
princípio não obsta a que o julgamento da causa penal seja feito por tribunal diferente do
competente à data do crime, desde que a atribuição de competência o novo tribunal não seja
discricionária, antes fundando-se na lei (neste sentido, entre outros, JORGE MIRANDA,
FIGUEIREDO DIAS, GERMANO MARQUES DA SILVA ou COSTA ANDRADE).

Assim, a competência dos tribunais fixar-se-á no momento da entrada de um processo


no tribunal, quer tendo em vista o recebimento da acusação ou do RAI, quer para intervenção do
JIC no inquérito.

De facto, este princípio estende-se tanto ao julgamento, como à instrução como ao


recurso (como se extrai da letra do 32º/9, CRP, no seu silêncio eloquente) 78. Mais
concretamente, e nas palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA, o que se proíbe por via
deste princípio é que em certa causa se defina individualmente a competência, ou ainda que se
promova o desaforamento discricionário de certa causa, colocando em perigo o direito que aos
cidadãos assiste de uma justiça penal independente e imparcial.

Há quem questione se este princípio não será ainda mais amplo, ao ponto de abranger o
primeiro interrogatório judicial do detido (141º) e a intervenção de juízes em atos processuais
concretos de, como a aplicação de medidas de coação. JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS defende
tal perspetiva sinalizando que a lei confere, na sua amplitude, cobertura constitucional a este
entendimento79, algo que COSTA PINTO tende a aceitar, ainda que não seja neste sentido que
funciona a nossa praxis judiciária, que rejeita tal entendimento com base no argumento histórico
de que o juiz natural se concretiza tradicionalmente no julgamento (noção que nem base legal
tem, como vimos).

COSTA PINTO, em suma, diz que há um núcleo essencial do princípio do juiz natural,
referente à escolha legal do tribunal de julgamento que, sem dificuldade, se pode estender à
instrução; e não lhe custa a aceitar que se estenda ao processo todo. Já vimos que esta extensão
tem sindo criticada em Portugal. Mas a CRP não cinge o alcance deste princípio ao julgamento
e, por isso, o núcleo essencial deste princípio tem vindo a conhecer esforços de alargamento,
algo que COSTA PINTO aplaude.

O princípio do juiz natural não se aplica ao magistrado do MP, que é escolhido dentro
da sua hierarquia administrativa, em função de cada caso concreto (cabendo ainda referência
aos poderes do superior hierárquico de avocar o processo a si, eventualmente para o redistribuir
77
Ac. nº 614/2003, TC; ver citação deste acórdão na p. 54 do Vol. I do CPP anotado de PAULO PINTO
DE ALBUQUERQUE.
78
Dentro do tribunal, há, à partida, um mecanismo de sorteio onde os casos são redistribuídos pela
secretaria, sendo impossível determinar em regra quem é o juiz.
79
Já falámos do silêncio eloquente do 32º/9, CRP que parece estender este princípio a todos os tribunais
que intervenham no processo.
a outrem). Com efeito, o MP não decide, antes investiga e promove o processo, assim se
explicando a sua não sujeição a este princípio80.

(v) Princípio da intervenção limitada do júri

Entre nós, o princípio da intervenção limitada do júri comporta um duplo sentido:

Em primeiro lugar, certos crimes não admitem a constituição de tribunal de júri (207º/1,
CRP), pelo risco de os jurados serem manipulados ou ameaçados.

Em segundo lugar, a admitir-se a constituição deste tribunal, reserva-se a mesma para


certos casos bem delimitados no 13º, e sempre mediante requerimento.

Nota: ver Ponto 14.4.1. deste Resumo.

(vi) Princípio da participação da vítima

O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei (32º/7, CRP). O
ofendido é titular do bem jurídico que a incriminação visa especialmente proteger, sendo
geralmente a vítima da lesão desse mesmo bem jurídico.

Uma das grandes críticas feita ao processo penal europeu era que este era um processo
historicamente demarcado das vítimas. Em Portugal, desde 1945, surgiu uma inovação do
Direito Processual Penal, que obstou a essas alegações de crítica: a figura do assistente. A partir
desta inovação legislativa, o ofendido, mais do que ser testemunha, pode acompanhar o
processo, com a devida representação de advogado, assumindo uma posição formal ativa de
sujeito processual.

Este princípio é fundado na ideia de que o processo penal não pode ser feito sendo a
vítima uma mera colaboradora, tendo esta de ser um sujeito processual (assistente), em paridade
com os demais sujeitos. As restrições (até legais) à participação do ofendido no processo
podem, por isso, ser questionadas em sede de controlo de constitucionalidade.

Nota: v. Ponto 14.6. deste Resumo.

(vii) Princípio da jurisdição

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE sinaliza este princípio como estruturante do


processo penal. Está previsto no 202º, CRP e no 8º: nenhuma pena ou medida de segurança
pode ser aplicada senão por tribunal judicial.

80
Numa solução de equilíbrio, não deixa o MP de estar sujeito à imparcialidade e aos regimes de
impedimentos e suspeição.
Acresce a este princípio o disposto no 209º/4, CRP, que proíbe a existência de tribunais
com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes; o julgamento de
todos os crimes é da competência dos tribunais judiciais comuns.

(viii) Princípio do processo equitativo

Igualmente sinalizado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE como princípio


fundamental do processo penal, este vem previsto no 20º/4 e 32º/1, CRP, sendo concretizado,
entre outros, no artigo 283º/3, d) e 7 quando comparado com o 315º/4. A sua ideia fundamental
é a de que a causa deve ser julgada mediante um processo equitativo, que reconheça ao acusador
e ao arguido uma posição de igualdade material.

Este princípio representa, assim, uma concretização do princípio da igualdade (13º,


CRP), correndo no sentido da compatibilização de interesses entre todos os sujeitos processuais
que o processo penal também pretende (não é defendido só o interesse do arguido, como em
algumas matérias pode aparentar).

(ix) Princípio da lealdade

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE refere ainda este princípio como estruturante do


processo penal, decompondo-o em duas vertentes. A primeira consiste na proibição da aquisição
e da produção da prova por meios desleais, que será trata mais adiante, no Ponto 13.6.4.4., (i) e
(ii). A segunda vertente consiste na proibição do venire contra factum proprium, como resulta
do requisito da legitimidade estabelecido quer no regime de arguição de nulidades,
irregularidades e proibições de prova (118º, 120º e 123º), quer no regime dos recursos (401º,
com especial destaque para o nº 2). Em qualquer destes regimes, a sua alegação só pode ser feita
pelo interessado.

É ideia fundamental deste princípio a de que nenhum sujeito processual pode reagir
contra facto ou decisão que promoveu ou com a qual anuiu ou concordou. Esta é a formulação
que brota do acórdão Bricmont v. Bélgica, TEDH. Diz ainda o TC, no seu acórdão nº 429/95,
que, por exemplo, não pode um sujeito processual aproveitar-se de alguma omissão ou
irregularidade cometido ao longo dos atos processuais em que interveio, guardando-as como
um “trunfo” para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, as
suscitarem e obterem a destruição do processado. Também se encontra vedado aos sujeitos
processuais praticar um ato processual depois de ultrapassada a fase própria para o efeito, em
que o podiam e deviam ter feito, com base em omissão ou irregularidade que prejudica um outro
sujeito processual (Ac. do STJ de 19/5/2010).

Este princípio comporta, por último, certos deveres de colaboração com o Tribunal, com
vista à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa. Estes impendem sobre o MP
enquanto promotor da ação penal e defensor da legalidade democrática; sobre o assistente
enquanto colaborador do MP (69º/1); sobre os OPC, enquanto coadjuvantes do MP na
investigação criminal; e sobre o lesado, o responsável meramente civil e os meros intervenientes
processuais (maxime testemunhas). Já não impendem estes deveres sobre o arguido, dado o seu
direito constitucional ao silêncio e à não autoincriminação, que densificaremos no Ponto
14.7.12. deste Resumo.

(x) Princípio da celeridade do processo

Também apontado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, este princípio consiste


em que o arguido deva ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa
(32º/2, CRP e 323º, g), 340º/4, d) e 362º/2).

Como consequência, os atrasos graves do processo imputáveis a entidades públicas


devem, em regra, ser compensados com uma atenuação especial da pena (72º/2, d), CP).

13.6.4.2. Dos princípios ligados à promoção do processo


(i) Princípio da legalidade
a) Legalidade enquanto vinculação à lei
Nos termos do 205º/1, CRP e dos 2º e 9º/1, este princípio significa, desde logo, a
vinculação à lei, no sentido de que esta regula a organização do processo, e este deve seguir,
assim, o que a lei postula.

Como aponta COSTA PINTO, implica assim este princípio que a lei preveja os tipos de
atos processuais, as diversas formas de processo e a tramitação essencial do processo penal.
Esta legalidade dos atos/formas processuais faz depender a sua validade da conformidade à lei.
Outra consequência deste princípio, para PAULO PINTO DE ALBUQUERUQUE é que só nos
termos de um processo previsto na lei pode ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança.

Axiologicamente, esta faceta da legalidade está conexa ao princípio da confiança e ao


direito de defesa do arguido, que exige que o cidadão possa saber previamente como será o
decurso do processo penal: por forma a defender-se da forma mais eficaz, deve o arguido saber
qual será o encadeado de factos com os quais pode contar, o eventual desfecho destes e as fases
processuais. Deve ser rejeitada a ideia de uma justiça ad hoc, a inexistência de um modelo pré-
concebido de realização do DPP.

b) Legalidade enquanto obrigatoriedade de promoção processual

O 262º consagra o princípio da legalidade no contexto da promoção do processo,


comportando uma sua obrigatoriedade, ou seja, a existência de um dever do MP de promover o
processo assim que obtida a notícia do crime nos termos do 241º.
Por contraposição, outros países adotam o princípio da oportunidade, lido como a
possibilidade de escolher os casos a promover e os não promovidos, numa lógica económica de
consistência e adequação que não contempla qualquer obrigatoriedade de promoção processual.
Veja-se o exemplo de sistemas como o americano ou o italiano, em que o agente se pode
negociar a sua culpa e obstar a que se inicie o processo, mediante a prestação de certas
informações relevantes à investigação criminal quanto a terceiros.

O princípio da legalidade nesta vertente em Portugal é mitigado por alguns mecanismos


de oportunidade processual (p.ex., no processo sumaríssimo ou na suspensão provisória do
processo), algo preferível a uma oportunidade extraprocessual que vigora como regra.

Nota: ver toda a discussão a propósito deste princípio no Ponto 6.2. deste Resumo.

ii) Princípio da oficialidade/oficiosidade

O processo penal é matéria de Direito Público (art. 219º CRP e arts. 48º e ss.), a sua
promoção sendo assumida por uma entidade pública, que suporta as despesas de condução e
promoção do processo.

Este princípio concretiza-se na ideia de que a iniciativa de investigar uma notícia do


crime e a decisão de submeter o facto criminoso a julgamento cabe ao MP, uma entidade
pública.

Contudo, não há um dever de investigar toda a notícia do crime, como bem se vê nos
casos de denúncias anónimas sem indícios (e que não constituam elas próprias crime), que
devem ser destruídas sem abertura do inquérito (246º/8). Esta “renúncia ao processo” pelo MP
não viola este princípio, pois tais denúncias não comportam uma base probatória mínima para
desencadear a investigação e promoção do processo por entidade pública.

De facto, o processo penal não está, em Portugal, na disposição das partes. É por isso
que ao particular não se admite a introdução de um caso em processo penal de forma autónoma.

Em crimes particulares, um particular deduz acusação, mas tal só acontece no fim de


um inquérito controlado por entidade pública, o MP, que assume todos os esforços de
manutenção e promoção do processo, de investigação criminal e de decisão da submissão dos
factos a julgamento – não há, nem aí, uma acusação autonomamente deduzida por particular.

Do mesmo modo, nos crimes semipúblicos a iniciativa de investigar a notícia do crime é


condicionada pela vontade do ofendido em apresentar uma queixa, mas mesmo aí quem
conduzirá à investigação e procederá formalmente à abertura do inquérito será o MP.

Nota: ver o Ponto 14.5 deste Resumo, relativo ao estatuto e funções do MP.
(iii) Princípio da acusação

Este princípio extrai-se do 283º e da nulidade insanável do 119º, b) (e ainda do princípio


da estrutura acusatória vertido no 32º/5, CRP), sendo condição sine qua non para que existe
uma estrutura acusatória do processo penal. A sua ideia fundamental é a seguinte: não se
introduz um caso em juízo sem haver imputação indiciária de factos ao arguido numa
acusação, ao ponto de a realização de um julgamento sem acusação ser cominada com uma
nulidade insanável de todo o processo (119º, b)).

Para que é que se exigirá esta imputação de factos? Para o que o arguido saiba do que se
vai defender, e para dar consistência à estrutura acusatória: quem acusa, não será quem julga!
Ora, se não houvesse uma acusação prévia ao julgamento, então o tribunal assumiria a função
acusatória e julgadora, algo inaceitável.

Aponta-se que, pontualmente, a lei prevê um ato equivalente à acusação, a que


reconhece esse valor, tal se passando, por exemplo, com a hipótese de substituir a acusação pela
leitura do auto de notícia, em sede de processo sumaríssimo. Também se juntam aqui os casos
dos 280º e 281º, que, não prevendo uma acusação formal, não deixam de prever uma acusação
material, porque os factos abstratamente imputáveis ao arguido devem estar fixados pelo MP
quando solicita a concordância dos outros sujeitos processuais.

(iv) Princípio da vinculação temática

O tribunal de julgamento está limitado ao conteúdo da acusação (359º e 379º), apurando


a verdade material dentro do conjunto essencial de factos que constam da acusação, e não
transcendendo esse conjunto. Julga assim dentro do objeto da acusação, que é
simultaneamente o objeto do julgamento. Ressalva-se apenas a possibilidade de haver variação
factual não essencial, ou não substancial, como estudaremos no Ponto 15. deste Resumo.

Isto não muda mesmo que se descubram novos factos e novas provas, estando vinculado
o Tribunal nesta descoberta ao conteúdo factual da acusação.

(v) Princípio da proibição do duplo julgamento (ne bis in idem)


Nos termos do 29º/5, CRP, se alguém foi julgado por um crime, não poderá ser objeto
de um novo julgamento por esse mesmo crime 81. Literalmente, isto significa que a CRP proíbe a
repetição de julgar, temos uma proibição constitucional da repetição de julgados.

DAMIÃO DA CUNHA sustenta um entendimento interessante deste princípio, que


diverge da sua mera interpretação literal: este aplica-se não só ao julgamento, como também à
promoção do processo pelo MP, por força do princípio da legalidade. Assim, não poderá o MP
promover duas vezes um processo pelos mesmos factos. Este entendimento estende-se a
qualquer promoção do processo, inclusive a feita pelo assistente em crimes particulares.

Questão diversa da que acabámos de referir, e que naturalmente se compreende, está


ligada à extensão do princípio do ne bis in idem a todas as promoções de processo por força da
litispendência82 e do caso julgado. Com efeito, será inadmissível a promoção processual ex
novum nestas situações, porque afetada por haver um caso concomitante (litispendência) ou pelo
caso já ter sido julgado (caso julgado).

COSTA PINTO defende este entendimento, até porque a acusação quer do MP quer do
particular derivada da promoção do processo norteia-se pela valoração dos indícios da prática
do crime como suficientes. Se já houve caso julgado num processo promovida pelo MP ou pelo
assistente, e se for promovido um novo processo em relação ao mesmo crime, deverão o MP ou
o assistente realizar de novo a valoração dos indícios suficientes, sendo que esta será
indelevelmente afetada pela existência de caso julgado (que resolve a questão de os indícios que
constam da primeira acusação permitirem ou não responsabilizar o arguido pelo crime sub
judice). O mesmo raciocínio pode ser aplicado, mutatis mutandis, à litispendência.

A doutrina aceita que esta proibição constitucional se estende à proibição da dupla


penalização pelo mesmo crime, projetando esta regra constitucional em matérias diversas para
lá da salvaguarda do caso julgado, como o sejam o regime da comparticipação ou do concurso
de crimes. É o que defendem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA. Assim, o 29º/5,
CRP proibiria a dupla valoração do mesmo facto, mesmo que ocorra no âmbito do mesmo
julgamento. Inversamente, FIGUEIREDO DIAS extrai ainda desta regra a obrigação do

81
Historicamente, este princípio surge no Direito Romano das Obrigações, no corpo da máxima “quem
pagou bem, não tem que pagar novamente”. Na Idade Média, a Igreja usou isto como garantia pelo
privilégio de foro: se o clérigo fosse julgado no foro da Igreja, ficava excluído do foro do Estado. Surge
ainda como limite ao ius puniendi no jusracionalismo iluminado: “Deus é justo, não se vinga duas
vezes”, e, nesse sentido, o monarca, símbolo de Deus na terra, não se podia vingar duas vezes. Desde a
teorização iluminista setecentista e dos Estados Liberais, esta ideia consolidou-se não como uma garantia
individual, mas como um limite ao ius puniendi, enquanto “Magna Charta” do delinquente, nas palavras
de VON LISZT. Temos aqui uma nota histórica de Diogo Rainha inspirado pelos ensinamentos de
DORDEIRO e de ANTÓNIO HESPANHA.
82
Tramitação concomitante de dois processos com o mesmo objeto. Esta figura não está prevista no CPP,
mas pode estender-se ao processo penal, por via da aplicação subsidiária e analógica das disposições do
processo civil.
julgador de esgotar toda a responsabilidade criminal do arguido no seu julgamento, e não punir
aquém o arguido, uma vez que uma extensão posterior da sua responsabilidade será
inviabilizada por este princípio.

Remanescem outras questões. Por exemplo, é i) controverso saber como se articula,


nesta matéria, o poder punitivo de diversos Estados 83 e ii) como se articula a cumulação de
responsabilidades de natureza distinta84. Na CRP, fala-se em duplo julgamento pelo mesmo
crime, não contemplando a dupla valoração do mesmo facto em sistemas que não qualifiquem o
facto como crime.

COSTA PINTO sustenta que não é possível confundir a proibição da dupla condenação
pelo mesmo crime (29º/5, CRP), com a dupla condenação pelo mesmo facto (cumulação de
responsabilidades de natureza distinta), nem com a dupla valoração do mesmo facto, que
consiste na possibilidade do mesmo ser valorado de forma diferente no mesmo sistema ou em
sistemas distintos: um exemplo disto será uma dupla valoração do dolo, tanto em sede de tipo
como em sede de culpa. Tudo isto é permitido.

É muito importante, para finalizar, reter que esta proibição se reporta a crimes, e não a
factos. Será perfeitamente legítimo uma nova promoção processual através da qual se retiram
dos mesmos factos consequências jurídicas distintas, imputando ao arguido diversas infrações
de natureza diferente, conquanto que não se julgue duas vezes o mesmo crime.

13.6.4.3. Dos princípios ligados ao desenvolvimento e tramitação do processo


(i) Princípio da investigação
Assume o tribunal a disciplina completa do julgamento, detendo poderes autónomos de
investigação (340º). Há quem diga que o nosso processo penal se orienta pela busca da verdade
material, conduzida por um tribunal independente e com poderes autónomos de investigação.
Por exemplo, o Tribunal não tem de aguardar que as partes arrolem uma testemunha, pode fazê-
lo autonomamente.

De facto, o único limite destes poderes de investigação do Tribunal será a lei, e


também, claro está, o objeto do processo, por força do princípio da vinculação temática. Fora
isso, estamos perante um princípio muito importante, que dá consistência a uma posição jurídica

83
Um tráfico de droga, que comece em Itália, passe pela Alemanha e pela Bélgica, e termine no Reino
Unido, passou por 4 ordenamentos jurídicos distintos, cada um se arrogando a soberania de julgar a parte
do facto praticada no seu território! Podem tramitar 4 processos em simultâneo relativos a este crime?
Devem, ao invés, haver mecanismos de cooperação judicial, como p.ex. o mandado de detenção europeu?
84
Um jogador de futebol agrediu um treinador, sendo alvo de a) sanção disciplinar do clube, b) sanção
disciplinar da federação, c) processo civil e d) processo penal. Outro exemplo: uma conduta leva à
cumulação de crimes e de contraordenações. Isto é excessivo? Podem concorrer estas múltiplas
responsabilidades? Ainda outro exemplo é o do Direito da Concorrência, onde é comum a pluralidade de
processos nacionais e transnacionais.
do Tribunal que, mais do que um mero poder, é um poder-dever, fundado no conceito de
“busca da verdade material”.

Este princípio abrange o tribunal de instrução e o de julgamento, que retêm assim


poderes de investigação autónomos. Implica isto um estatuto muito mais ativo do Tribunal, que
não está, nesta matéria concreta, dependente da iniciativa dos demais sujeitos processuais.

Podemos destacar várias manifestações deste princípio:

(i) O JIC dirige a fase de instrução, investigando autonomamente o caso submetido à sua
apreciação (288º/4 e 289º). Simultaneamente, terá o poder (e dever) de recusar
diligências de prova que ultrapassem a natureza indiciária da mesma, exigida na fase
em causa (301º/3). Os seus poderes estarão funcionalizados para a finalidade da
instrução (290º/1 e 286º/1). Ainda assim, em vários preceitos encontramos que o JIC
deve procurar a verdade material (291º/1 ou 299º/1): isto significa que os indícios
suficientes para a pronúncia (308º/1) não se consideram limites materiais dos poderes de
investigação, mas antes requisito mínimo da pronúncia e, por isso, objetivo a atingir
com a investigação. Assim, aceita-se que os limites materiais da investigação a realizar
pelo JIC são apenas os decorrentes do objeto do processo fixado na acusação
(eventualmente alargado no RAI)85.
(ii) Na fase do julgamento, surgem diversos afloramentos deste princípio, acolhido
expressamente no 340º. Por exemplo, o 323º confere ao Tribunal poderes de disciplina e
de direção da audiência que são expressão deste estatuto ativo e dinâmico do Tribunal,
orientado pela busca da verdade material, como se diz expressamente no 323º, a) e b).
Podemos destacar ainda o 353º/2.

Nota: Completar este princípio com o Ponto 13.6.4.4., (iv).

(ii) Princípio do contraditório

Este princípio tem um conteúdo e aplicação variáveis ao longo do processo (32º/5, CRP
e 327º, encontrando-se igualmente previsto no 6º/1, CEDH). Como sua ideia fundamental temos
a de que antes da decisão do caso, os sujeitos processuais contribuem ativamente com o seu
ponto de vista para a mesma, o tribunal decidindo após ouvir a acusação e a defesa.

Podemos estabelecer, com base no CPP, três formas de participação dos sujeitos
processuais no processo: a sua audição (direito de audiência), a sua participação nas várias
diligências apresentando conteúdos a ter em conta e oferecendo pontos de vista relevantes
(direito de participação no caso; e, por fim, a possibilidade de questionarem as decisões tomadas

85
Ver Ponto 15. deste Resumo, pois este (alteração do objeto do processo) não é tema pacífico.
e os próprios atos processuais perante um tribunal superior (direito de impugnação, manifestado
em toda a sua extensão pela possibilidade de recurso).

Na senda do acórdão Brandstetter v. Austria do TEDH, deve ser dada oportunidade à


acusação e à defesa de ter conhecimento e comentar as petições apresentadas e a prova
produzida pela respetiva contraparte.

a) Contraditório e fases processuais

A nível de fases processuais, haverá contraditório pleno no julgamento, mas não na fase
de inquérito e instrução. Porquê? Porque estas são fases que integram o processo preparatório
do julgamento, onde verdadeiramente se irá decidir o caso. Ainda assim, o facto de uma fase
não ser, por si, contraditória, não exclui a existência de contraditório pleno para atos específicos
nela inseridos. Se o MP quiser, por exemplo, a aplicação de medidas de coação, irá requerê-la
ao JIC, e desencadeia-se, então, um “subprocesso” onde o arguido será ouvido, nessa qualidade.
Outro exemplo surge quando alguém requer a constituição de assistente, admitindo-se a
possibilidade de o arguido ser ouvido, antes da decisão de tal requerimento (68º/4).

Densificando, vejamos os seguintes pontos:

i) Na fase de inquérito não existe um contraditório pleno, mas há quem fale num
contraditório passivo, traduzido no direito de o arguido presenciar atos que lhe digam
respeito (61º/1, a)). Outra solução consta do registo de prova para memória futura
(271º);
ii) Nas demais fases, há uma previsão genérica da natureza contraditória delas,
prescindindo-se de referências casuísticas:
a) Na fase de instrução, o princípio vale plenamente durante o debate instrutório
(298º e 301º). Cobre esta proclamação toda a instrução? Não, devemos, para
perceber a extensão deste princípio na instrução, ter em conta os atos em causa:
se os mesmos colidirem com a pretensão de algum sujeito processual (arguido
ou assistente), eles devem sujeitar-se a contraditório;
b) Na fase de julgamento, diversas regras dão acolhimento pleno este princípio,
em destaque os arts. 322º/2 e 327º.

b) Esta garantia do contraditório protege quem?

COSTA PINTO salienta que estamos perante uma garantia constitucional que é
seguramente do arguido, mas não só, existindo interesses prosseguidos pelo processo penal que
não se reconduzem apenas a este sujeito processual. Desde logo, esta garantia será reconhecida
no 32º, CRP ao assistente, ao contemplar um direito do ofendido a intervir no processo (32º/7,
CRP, consubstanciando o já estudado princípio fundamental da participação da vítima).
Esta extensão do contraditório é uma forma de legitimar as decisões materiais (o
tribunal só decide depois de ouvir todos os sujeitos processuais), acabando por ser constitutivo,
como defende CASTANHEIRA NEVES, do processo penal e da própria estrutura processual
acusatória, pois sem este princípio não há uma decisão autónoma e imparcial do tribunal de
julgamento.

(iii) Princípio da concentração espacial e temporal

Previsto nos 328º e 354º, este princípio postula que haverá um direito a um processo
que corre no mesmo espaço, e a um desenvolvimento do processo e julgamento sem grandes
hiatos temporais, garantindo-se, em suma, um julgamento estável, que permita a apreensão
correta dos factos e da prova (que será erodida se proliferarem os hiatos na condução do
processo) pelo tribunal.

Concretiza-se este princípio, mais cabalmente, na audiência de julgamento, que deve ser
contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento (328º),
devendo o Tribunal tomar a sua decisão o mais próximo possível do encerramento da discussão
(365º/1 e 373º/1), para não se perder a impressividade da prova e das intervenções das partes no
exercício do seu direito ao contraditório.

Este princípio relaciona-se (mas não se confunde) com a garantia de um julgamento no


mais curto prazo possível (32º/2, CRP), tratado no 13.6.4.1, (x).

(iv) Princípio da suficiência

Está previsto no 7º, e traduz-se num princípio de ampla competência material do


tribunal de julgamento: este tribunal, e todas as entidades antes do julgamento, são dotadas de
competência geral, conhecendo questões de outros ramos de direito, conquanto que necessárias
para a discussão e decisão penal. Inversamente, as outras jurisdições (p.ex., a administrativa ou
a laboral) estão proibidas de conhecer matéria penal, isso cabendo na reserva explícita do
tribunal penal. Com efeito, os tribunais penais poderão ter que decidir questões como, em mero
exemplo, a validade de um contrato, se isso for necessário para a decisão penal.

a) Finalidades

i) Celeridade e eficiência do processo – Imuniza-se assim o tribunal penal de outras


jurisdições, de ter que esperar por decisões de outras instâncias, abrindo portas a um
funcionamento do processo sem condicionalismos, ele que deve concluir-se no mais
curto prazo possível (32º/2, CRP e 6º, CEDH);
ii) Concentração e continuidade do processo – A consagração deste princípio visa
impedir expedientes dilatórios em torno da devolução de certas questões a outros
tribunais que não o penal;
iii) Assegurar a unidade da ordem jurídica – Se esta unidade se admite nas causas de
justificação de um facto86 (31º/1, CP), também pode o Tribunal conhecer de questões
não penais que se revelem necessárias para a decisão da causa;
iv) Princípio da busca pela verdade material e pela justiça, que reputa como
aconselhável, para o seu cumprimento, que um mesmo tribunal apure todas as questões
relevantes do processo.

b) Do regime processual do princípio. As questões prejudiciais em especial

O 7º, que já introduzimos, comporta também um regime processual especial, que


permite ao tribunal criar um incidente de devolução da questão não penal para um tribunal
não penal. É possível, se aberta uma instância não penal, que o tribunal suspenda o processo, e
remeta uma questão controvertida não penal para um tribunal não penal, que se pronuncia sobre
ela e a devolve ao penal. Esta solução é inteiramente facultativa, sendo deixada à
discricionariedade do tribunal penal (7º/2).

Podem surgir várias questões a título prejudicial:

i) Questões penais em processo não penal – P.ex., alguém impugna um testamento,


surgindo nesse contexto a possibilidade de existência de um crime de falsificação de
documento. Esta matéria nada tem que ver com a devolução do 7º. Nestes casos, extrai-
se certidão e envia-se a notícia do crime ao MP, que irá eventualmente promover um
processo penal autónomo;
ii) Questões penais em processo penal – Isto também não tem que ver com o 7º, porque
as questões prejudiciais para efeitos do mesmo são questões não penais. Ainda assim,
imagine-se uma falsificação de um documento em Coimbra, utilizado para uma burla
em Lisboa (se o documento for falso, haverá burla em Lisboa). Uma questão penal
condiciona, portanto, a outra questão penal, GERMANO MARQUES DA SILVA
propondo a aplicação analógica do 7º/2, se ambas forem objeto de processos diferentes.
COSTA PINTO discorda, dizendo que não há nesta matéria uma lacuna, apenas não se
previu esta prejudicialidade para este tipo de casos, para que a mesma não seja
permitida. Não está em causa uma analogia, mas um caso diferente, para o qual está
pensada outra solução: a conexão de processos nos termos do 24º e ss., algo que iremos
estudar adiante87;

86
É utilizada no 31º/1, CP a expressão ordem jurídica considerada na sua totalidade.
87
Ver Ponto 14.4.5. deste Resumo.
iii) Questões não penais em processo penal – Aqui, origina-se, corretamente, o incidente
de prejudicialidade: se o tribunal penal entender que não pode discutir
convenientemente a questão penal porque está pendente a resolução de uma questão não
penal, pode devolver esta questão a um tribunal não penal (7º/2). Porquê?
a. Desde logo, esta decisão surge de uma decisão de conveniência casuística do
tribunal que procede ao reenvio;
b. Em acréscimo, porque pode não existir um processo autónomo. No processo
cível, e em tantos outros, vigora o princípio do dispositivo, podendo as partes
não terem iniciado qualquer processo em relação à questão não penal, que seria
útil à resolução da mesma.

Definida a questão de quando existem estes incidentes de prejudicialidade do 7º/2, cabe


acrescentar-lhe alguns apontamentos. Para começar, a doutrina traça 3 requisitos para que se
opere a devolução:

(i) Deve estar em causa uma questão de resolução necessária, que condicione
materialmente a decisão do processo penal. O 7º/2 delimita este requisito, de
modo a excluir a resolução de circunstâncias acidentais do processo penal do
escopo desta norma. Ainda assim, a prejudicialidade abrange a resolução de
questões relativas a elementos do tipo de ilícito, bem como de variações desse
mesmo tipo (p.ex. o homicídio qualificado ou privilegiado). A doutrina inclui,
ainda, no âmbito desta norma a resolução de questões relativas a elementos
negadores da responsabilidade penal, em sede de tipicidade, ilicitude, culpa e
punibilidade;
(ii) Deve a questão prejudicial ser séria;
(iii) A suspensão do processo e consequente reenvio prejudicial só se requer após a
acusação ou RAI, pelo MP, assistente ou arguido, podendo, ainda, ser ordenado
oficiosamente pelo tribunal (7º/3).
Para GERMANO MARQUES DA SILVA, a resposta que o outro tribunal der vincula o
tribunal penal. Em alternativa e minoritariamente, COSTA PINTO propõe que se faça a
compatibilização da decisão não penal com as regras de prova do processo penal.
Exemplificando: temos uma relação de paternidade provada através de uma presunção nesse
sentido, ainda que sobejasse alguma dúvida. No processo cível, isto bastou para a prova, mas no
processo penal, a dúvida prevalece sobre a presunção, não podendo a paternidade ser dada como
provada.
É imprescindível a referência ao 7º/4, que dispõe que, esgotado o prazo dado para a
resolução da questão prejudicial sem que esta tenha sido resolvida, ou se a ação tendente à
resolução desta questão não tiver sido proposta no prazo máximo de 1 mês, essa mesma questão
será decidida no processo penal.
Por fim, pode colocar-se a questão de saber se valerá a decisão prejudicial (que forma
caso julgado) apenas para o processo penal, ou para o ramo do Direito a que essa questão diz
respeito? O Direito Penal tem uma natureza fragmentária, de intervenção mínima, chamando à
sua jurisdição apenas alguns comportamentos danosos para bens jurídicos fundamentais. Ainda
assim, esta questão é discutível, e pode admitir-se uma força de caso julgado para os demais
ramos de Direito não penais, quando a confrontamos com o princípio da unidade da ordem
jurídica e com o princípio da não contradição entre julgados.

13.6.4.4. Dos princípios relativos à prova


No processo penal todas as questões factuais exigem prova. O conhecimento dos factos
não tem outra origem que não a produção de prova feita no processo, aproximando-se a verdade
processual à verdade material.

(i) Princípio da liberdade de prova


Ora, à partida, qualquer facto pode ser provado com qualquer meio de prova, desde que
este seja legal. A liberdade probatória existe, portanto, sempre dentro dos limites da lei, não
podendo haver prova ilegal. A legalidade da priva é dupla: quanto à obtenção da prova e quanto
ao meio probatório usado. Podem-se provar factos com qualquer meio de prova legalmente
admissível, não se permitindo que tudo se faça em nome da busca da verdade material,
nomeadamente usar um meio de prova que a lei proíba.

Neste último ponto, do meio de prova usado, podemos apresentar um exemplo curioso:
pode haver uma reconstituição de um acidente (150º), à luz de uma base normativa que não
previa, quando foi criada, as possibilidades de utilização de meios tecnológicos. Hoje seria
possível delegar a tarefa reconstitutiva a um perito informático. Assim, entramos no campo das
perícias informáticas (151º e ss.), ditando isso uma mudança de regimes intensa: o perito é
designado, presta juramento, e está sujeito a variados controlos normativos.

(ii) Princípio da legalidade da prova

Este princípio (32º/8, CRP e 125º e 126º) será, então, importante para nos inteirarmos
da legalidade do meio de prova em si, da obtenção da prova no caso concreto e da inserção da
prova no processo. Imagine-se que uma pessoa contrata um detetive privado e ele grava uma
conversa entre duas pessoas num jardim, sem eles se aperceberem, é isso válido? Olhando para
o regime das escutas telefónicas, tal matéria está prevista no 189º, ditando que a prova obtida
pelo detetive é uma prova ilegal, e mais do que isso, uma prova proibida (cuja lista consta do
art. 126º, que enumera as provas que colidem diretamente com o Direito) 88.

Fala-se, neste contexto das provas proibidas, em inadmissibilidade de uso, um vício


mais graduado que a nulidade: a prova não pode ser obtida; se obtida, não pode ser integrada no
processo; se integrada, não pode ser utilizada na produção de prova; se produzida prova, não
pode ser valorada pelo julgador. Esta prova inadmissível só pode ser usada para responsabilizar
criminalmente quem a obteve, nos termos do 126º/4.

(iii) Princípio da imediação

Quem decide deve ter contacto direto com os meios de prova, decidindo porque
produziu a prova ou a examinou, nesse constante e direto contacto. Formula-se (355º) como um
princípio do julgamento, por ser um princípio típico de quem decide, e instrumental para a
garantia da estrutura acusatória. Com efeito, o tribunal não pode nunca decidir tendo por base
uma convicção alheia, devendo toda a produção de prova (ou examinação nos casos do 355º/2 e
ss.) passar-se diretamente em audiência de julgamento.

No inquérito e na instrução, este princípio não valerá. Porquê? Porque, no inquérito, a


prova pode ser produzida e obtida, nestas fases, de várias fontes. Os OPC, por exemplo, ouvem
testemunhas, elaborando relatórios que enviam ao MP, que irá decidir segundo a conclusão que
os OPC tiraram, não havendo imediação. Na instrução, este esquema é mais mitigado, mas
acaba por ser similar ao que se disse para o inquérito.

É no julgamento que o princípio vale por si, sendo uma garantia de que a legalidade
da prova é imediatamente controlada pelo tribunal de julgamento. É precisamente por isto que
a testemunha que depõe em inquérito tem que ir depor no julgamento, o tribunal formando a sua
convicção ouvindo-a diretamente.

Isto é instrumental do princípio do contraditório: quando uma testemunha é ouvida em


tribunal, podem participar na inquirição o MP, a defesa, e, eventualmente, o assistente 89, para
que o tribunal forme a sua convicção num espírito de contribuição de todos os sujeitos
processuais para a sua atividade valorativa e julgadora. O facto de dever haver contacto direto
com a prova no julgamento implica que as partes intervenham ativamente na produção e

88
Faz-se a distinção, no 126º, entre provas absolutamente proibidas (126º/1 e 2) – que nunca são
admitidas, por ser relacionarem com o núcleo essencial da integridade física e psicológica do investigado
– e provas relativamente proibidas (126º/3) – que se relacionam com a privacidade, podendo valer se
houver um eventual controlo pelo cumprimento dos requisitos legais ou pelo consentimento do
investigado.
89
Naturalmente, podem existir exceções, entre as quais se destacam as declarações para memória futura:
grava-se logo a prova, para ser utilizada posteriormente, porque, por exemplo, a pessoa tem uma doença
grave, e há o risco de perecer antes do julgamento.
examinação da prova, tentando que estas sejam orientadas no sentido dos seus interesses
processuais.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE diz que este é um princípio estruturante do


Estado de Direito. Já COSTA PINTO diz que este é um princípio estruturante da estrutura
basicamente acusatória do processo penal português, para que quem julgue não forme a sua
convicção com base na perceção de quem acusou, mas antes baseada na sua própria perceção
dos meios de prova exibidos em fase por si controlada (o julgamento).

Este princípio, como bem se percebe do já exposto, não é uma garantia exclusiva da
defesa, mas da própria idoneidade da sentença, pelo que protege tanto o arguido como o
assistente, como resulta explicitamente da jurisprudência constitucional (Ac. nº 1052/96, TC).

(iv) Princípio da verdade material

O nosso processo penal orienta-se por este princípio: a verdade processual deve
aproximar-se o mais possível à verdade material. Está enunciado para a instrução no 288º/4 e
para o julgamento no 340º.

Por ele se reforça a ideia de que este não é um processo estritamente formal e de partes:
não há uma distribuição formal do ónus da prova, quem invoca factos não tem, necessariamente,
de os provar, uma vez que a acusação tem o ónus da prova dos factos criminalmente relevantes,
mas defesa não tem o ónus de provar os factos que invoque ou que não se provam os invocados
contra si. A verdade material exige que ultrapassemos estas questões formais que limitam o
conhecimento da verdade material. Assim, é conferido ao tribunal, como já estudámos a
propósito do princípio da investigação, poderes autónomos de investigação do caso.

(v) Princípio da livre apreciação da prova

A prova deve ser apreciada de acordo com regras de experiência comum, com critérios
de plausibilidade (127º), ao ponto de os acontecimentos relevantes para o processo serem
interpretados de modo a que lhes seja imputado um significado aceitável atendendo ao
conhecimento partilhado por toda a comunidade.

Ex.1: Por exemplo, quando é que existe dolo de homicídio? Na falta de confissão do
agente, quando os factos permitem concluir que há dolo, mais concretamente que a pessoa, ao
praticar o ato, fê-lo com a consciência de que ia provocar a morte de outrem. Se alguém disparar
sete 7 vezes sobre a mesma zona do corpo da vítima, lhe fizer ameaças de morte e a perseguir
continuamente, então será pouco provável que a insistência nos disparos não dite a existência de
um dolo de homicídio. É plausível concluir por dolo quanto ao homicídio pela conjugação dos
indícios da prática do crime quando analisados pela experiência comum. Pode o indivíduo até
confessar que há dolo apenas quanto a ofensas corporais, mas os factos interpretados deste
modo permitem concluir pela existência de dolo de homicídio.

Ex.2: Se se deixar cair um copo no chão, é genericamente aceite que é provável que ele
se parta. Invocar isto logrará uma aceitação generalizada quanto à sua plausibilidade.

Em suma, e nas palavras de CASTANHEIRA NEVES, a liberdade na apreciação da


prova é uma liberdade fundada na objetividade, que deve seguir regras de coerência interna do
julgador e não uma liberdade orientada para o arbítrio. Este princípio concretiza os princípios
constitucionais do Estado de Direito e da independência dos tribunais (2º e 203º, CRP).

(vi) Princípio do in dubio pro reo

Nota: Já tivemos a oportunidade de o tratar, no contexto do princípio da presunção de


inocência. Consultar, para o estudo deste princípio, o Ponto 1. deste Resumo.

Significa este princípio que, em caso de dúvida, o tribunal deve decidir favoravelmente
ao arguido. Na formulação americana deve haver condenação para lá da duvida razoável. Este
princípio não está previsto no CPP ou na CRP, mas decorre do princípio fundamental da
presunção de inocência: se o indivíduo é tratado como inocente, tem de haver prova consistente
e suficiente para provar a sua culpabilidade. Esta prova da culpabilidade do arguido não é
compatível com existência de dúvidas razoáveis, caso em que não permite derrogar a presunção
de inocência do arguido e afirmar a sua culpabilidade.

O in dubio pro reo é aplicável apenas a matéria de facto e já não a matéria de direito.
MARIA JOÃO ANTUNES, FIGUEIREDO DIAS e EDUARDO CORREIA afirmam que a
dúvida sobre uma questão de direito tem de ser resolvida juridicamente com critérios
hermenêuticos próprios não compatíveis com este critério decisório do in dubio pro reo.

Na investigação, há duvidas resolúveis e não resolúveis. Mas porque, à partida, a


investigação pode resolver todas as dúvidas existentes, o tribunal só pode invocar uma dúvida
para decidir in dubio pro reo após esgotar todos os meios autónomos de investigação ao seu
dispor. Só após a utilização destes meios, pode ser invocada esta regra de decisão. Assim a
dúvida que se exige para permitir o in dubio pro reo deve ser razoável, pertinente e irresolúvel.
Noutras palavras, o in dubio pro reo é não é um princípio de direito probatório, mas uma regra
de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos, como bem
apontam FIGUEIREDO DIAS, COSTA PINTO ou ROXIN, entre outros.

Parece que este princípio não se aplica, assim, às fases anteriores ao julgamento, pois a
acusação é indiciária e porque a prova nesta fase não é plena, é compatível com a existência de
duvidas razoáveis. Todas as outras fases são igualmente compatíveis com estas dúvidas, pelo
que este princípio vale apenas no julgamento, em que tem de ser dada uma resposta definitiva
sobre a culpabilidade do arguido.

Outra consequência deste princípio é a inadmissibilidade, em caso de dúvida insanável


quanto ao ilícito que o arguido cometeu, de uma condenação em alternativa, na medida em que
esta constitui um expediente para contornar o funcionamento do in dubio pro reo. Não é assim
admitida (ao contrário do que sustenta CONDE CORREIA) a condenação pelo crime menos
grave quando não se sabe qual o ilícito pelo arguido cometido; nem tão pouco a pronúncia em
alternativa por crime ou contraordenação que correspondam aos mesmos factos (assim o diz o
Ac. TC, nº 244/99).

13.6.4.5. Dos princípios relativos à forma dos atos processuais


(i) Princípio da oralidade
Nos seus termos (96º para o julgamento), o essencial da comunicação entre sujeitos
processuais faz-se oralmente e, desejavelmente, de forma presencial. Representa isto uma
contraposição face ao que sucede na fase de inquérito, em que a organização escrita do processo
é elemento fundamental, ainda que possa haver contacto oral entre sujeitos.

No julgamento, porém, vigora a matriz de comunicação: os sujeitos comunicam


oralmente, em audiência pública, conferindo à audiência de julgamento uma natureza riquíssima
de apreciação de responsabilidades.

Nota: v. Ponto 8.3. deste Resumo.

Este princípio relaciona-se com o princípio da investigação, uma vez que o tribunal
pode notar nos depoimentos orais certas contradições ou hesitações que, pode, no momento,
esclarecer e aprofundar, sempre no interesse da verdade material. Pelas mesmas razões, há
quem diga que este princípio é instrumental face à livre apreciação da prova. É este também um
princípio instrumental face ao da publicidade das audiências, uma vez que esta só fará sentido
se as audiências decorrerem numa plataforma oral.

Como corolário deste princípio, vejamos o regime geral das testemunhas dita que as
mesmas estarão na audiência, e prestarão as suas declarações oralmente, não podendo lê-las
(salvo 96º/2 e 3).

(ii) Princípio da publicidade

Decorre do 206º CRP, estando previsto para as audiências judiciais (de julgamento e
debate instrutório), não exigindo tal norma que outra fase ou ato processual sejam públicos.

A audiência é o momento de compreensão do caso para se apurarem responsabilidades,


numa lógica de partilha do caso com a comunidade, à qual se faculta a possibilidade de assistir à
realização da justiça penal dos nossos tribunais. Neutraliza-se ainda a hipótese de uma arcana
praxis, de uma justiça secreta de conluio entre os sujeitos processuais.

Se as regras da publicidade do processo não forem cumpridas temos uma sua nulidade
insanável (321º).

Foi um erro histórico, porém, estender a publicidade a todo o processo penal, como já
tivemos oportunidade de expor no ponto 6.7.1. deste Resumo.

Até agora falamos da dimensão externa do princípio da publicidade, relativa ao acesso


ao processo pelo público. Devemos, ainda, atentar na sua dimensão interna, relativa ao acesso
ao processo pelos sujeitos processuais (89º) que não sejam o MP ou o juiz. Esta relaciona-se
com a matéria do segredo de justiça, tratada no Ponto 6.7. deste Resumo, para o qual se remete.

(iii) Princípio da imediação (só para o julgamento)

Já falámos deste princípio, mas voltamos a referi-lo neste contexto. Este exige um
contacto direto entre tribunal e os meios de prova, examinados (prova pré constituída) ou
produzidos (prova constituenda) no decurso da audiência de julgamento (e só no julgamento,
como vimos supra). Mais do que isso, é um princípio do julgamento em primeira instância,
porque no recurso o tribunal decide com base nos elementos da primeira instância.

Vejamos um exemplo da violação deste princípio, que levou à anulação do julgamento:


foram feitas buscas e apreensões na casa de uma pessoa, onde se apreenderam muitas armas,
umas funcionais outras de coleção. Era necessário avaliar as armas para saber em que situação
se podia invocar a tipicidade do crime de posse de arma proibida, porque se as mesmas
estivessem desativadas, isto influiria na responsabilidade do indivíduo. O juiz até pediu a
opinião de uma pessoa, mas fez a avaliação das armas no seu gabinete, fora da sala de
audiência. O tribunal superior anulou o processo, defendendo uma dimensão mais ampla do
princípio da imediação. Com efeito, ficaram despidos da imediação os outros sujeitos
processuais!

Instrumental para o princípio da imediação é a continuidade da composição do tribunal,


que encontra o seu regime no 328º-A.

(iv) Princípio da representação especializada (62º, 70º e 76º)

O nosso processo penal, ao exigir a intervenção dos vários sujeitos em todas as fases
processuais, exige uma representação especializada (extensível a todas essas fases), do arguido
e do assistente, por meio de advogados habilitados a tal por um mandato formal. Assim, o
arguido não se pode fazer representar por si próprio ou por uma pessoa com grande competência
na matéria, mas que não seja formalmente um advogado.
Esta é uma questão interessante que, atualmente, gera um intenso debate. A favor da
representação especializada, está a ideia de que a nossa justiça atual tem uma componente muito
técnica, sendo preferível deixar o acompanhamento do processo e seu desenvolvimento a
juristas com formação académica e profissional especializada e formalizada, tanto do lado da
advocacia, como do lado da magistratura. O arguido pode sempre intervir, assim como o
assistente, mas quando o fazem, estão representados (ressalvam-se alguns atos de intervenção
pessoal destes sujeitos, em termos que estudaremos nos Pontos 14.6. e 14.7. deste Resumo.

Ainda assim, nomes como PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE defendem que esta
exigência de representação especializada viola o Direito Internacional (CEDH) 90. COSTA
PINTO, ao invés, diz que esta exigência faz todo o sentido, porque, sem retirar poderes ao
arguido e ao assistente, garante uma certa idoneidade jurídica à sua intervenção e
acompanhamento processuais.

É um debate ainda em curso saber se, em certos casos, pode fazer sentido uma
representação especial ratione materiae e não por advogado: por exemplo, se está em causa a
destruição de uma obra por alegado descuido de um engenheiro, poderia fazer sentido que o
assistente este fosse representado por um outro engenheiro, com especialização técnica.

14. Os sujeitos processuais, os OPC e as partes civis

14.1. Os sujeitos processuais no CPP (arts. 8º a 70º)

Nem todos os intervenientes no processo penal são sujeitos processuais (testemunhas,


peritos, pessoas responsáveis ou lesadas civilmente, etc.). No processo penal podem intervir
várias pessoas, a títulos diversos e com poderes muito distintos. De facto, nem sequer é
necessária a intervenção de todos eles para que o processo penal tramite regularmente (podem
não existir partes civis ou assistente).

O CPP dedica todo um livro aos sujeitos processuais. A ideia fundamental do legislador
ao tratar esta matéria consistiu em regular todos os poderes e competências processuais em
função de um conjunto de participantes qualificados no processo, os sujeitos processuais.

Qual é, então, o critério material subjacente à identificação dos sujeitos processuais?


Segundo FIGUEIREDO DIAS, os sujeitos processuais serão os intervenientes no processo que
possuem poderes de concreta conformação da tramitação do processo. Nem todos os
intervenientes têm poderes desta natureza e com este alcance, pelo que, voltando à frase do
início desta exposição, nem todos os intervenientes no processo penal são sujeitos processuais.
Os sujeitos processuais têm poderes, cujo exercício determina a evolução do processo - requerer
fases processuais, uma participação mais ativa em matéria de contraditório, por exemplo.
90
Ver Ponto 14.7.7. deste Resumo.
Seguindo este critério podemos identificar 5 (e só 5) sujeitos processuais: o tribunal, o
MP, o arguido, o defensor do arguido (que tem um estatuto autónomo em relação ao arguido)
e o assistente (que intervém no processo mediante um seu representante, este já sem estatuto
autónomo; embora possa intervir isoladamente em alguns atos processuais). Cada sujeito tem
diferentes poderes de encaminhamento da instância e do processo em si, mas todos possuem
poderes de conformação da evolução do processo. Só a estes 5 são tais poderes de influência
processual atribuídos.

14.2. Os OPC (art. 55º, Lei nº49/2008 e leis orgânicas)

Como já avançámos supra, há outros intervenientes no processo, essenciais ao mesmo,


mas com poderes subordinados/limitados, que não determinam a evolução da instância.

Os OPC são intervenientes indispensáveis (55º/2) ao processo (sobretudo na fase de


inquérito, onde materialmente o realizam quando assumem predominância na investigação do
crime titulada pelo MP), mas são subordinados (56º) ao titular das várias fases do processo
(realizam a investigação criminal exercendo competência próprias, mas não são sujeitos do
processo). Os seus poderes são limitados aos atos processuais para os quais tenham
competência, sendo órgãos de coadjuvação do titular da fase processual em causa (55º/1). Não
têm poderes autónomos para encaminhar o processo.

Nota: desenvolveremos este tópico nos pontos 14.5.5. – 14.4.7.

14.3. As partes civis: o lesado (74º) e a pessoa com responsabilidade civil (73º)

O lesado (74º) e a pessoa com responsabilidade meramente civil (73º). Não se


confundem com os sujeitos processuais na medida em que não estão sujeitos aos mesmos
deveres nem possuem os mesmos poderes de intervenção no processo. O lesado assume uma
função de imputação ativa de responsabilidade civil no processo e a pessoa com
responsabilidade civil uma função “passiva”, no sentido de ser alvo dessa tentativa de
imputação.

O lesado sofre as consequências do crime, sofre danos e pretende a reparação civil dos
mesmos, podendo ou não coincidir com o ofendido. Efetivamente, os factos que são objeto do
processo penal podem ser também fundamento de responsabilidade civil, enquanto lesem
interesses suscetíveis de reparação patrimonial, nos termos da lei civil (129º, CP). O lesado irá,
então, deduzir um pedido de indemnização civil contra quaisquer pessoas com responsabilidade
civil fundada na prática do crime. Este pedido, para ser admitido no processo penal, há que ter
por causa de pedir os mesmos factos que são o pressuposto da responsabilidade criminal e pelos
quais o arguido é acusado.
Ex.: Um menor sofre uma agressão física e tem de ser internado; à luz dos critérios
penais o ofendido é o menor, enquanto titular do bem jurídico afetado pelas ofensas à
integridade física. Mas o ofendido, sendo menor, não têm capacidade judiciária autónoma, pelo
que será representado pelos seus pais. Assim, os pais têm legitimidade processual para assumir
o estatuto processual de assistentes, através do mecanismo da representação. Mas, além disso,
podem ter despesas avultadas com o tratamento do menor. Nesse sentido podem vir ao
processo reclamar a reparação desses danos pela via cível, assumindo-se como lesados.
Enquanto lesados não serão sujeitos processuais, são-no enquanto representantes do ofendido.
Se os pais do menos não se constituíssem assistentes em nome e por conta do menor, não
seriam, por isso, sujeitos processuais: mas seriam intervenientes no processo, como lesados.

Se é certo que o lesado não é de per se um sujeito processual da ação penal (uma vez
que não pode conformar o processo), ele também não é um mero interveniente no processo,
como será uma testemunha ou um perito, pois tem alguns direitos de intervenção processual,
embora esses estejam, em regra, limitados e funcionalizados à sustentação da pretensão cível de
que o lesado se faz valer no processo penal. Por exemplo, na esteira do 75º, o lesado tem o
direito a ser informado por autoridade judiciária/OPC de que podem deduzir um pedido de
indemnização num processo penal em curso, podendo o lesado manifestar, até ao encerramento
do inquérito, o propósito de o fazer – o lesado possui direitos de informação.

O CPP articula a pretensão cível com o processo penal, em regra (71º, CPP), naquilo
que consubstancia o princípio da adesão obrigatória – o pedido cível deve ser solicitado ou
apresentado no âmbito do processo penal se a pretensão indemnizatória se fundar na prática de
um crime. Este princípio apenas é excecionado nos casos do 72º (v. artigo).

De facto, o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal é uma verdadeira


ação civil transferida para o processo penal. Esta natureza verdadeiramente civil do pedido (que
não se altera com a sua adesão à ação penal) tem como consequência que se apliquem às partes
da ação civil os princípios próprios do processo civil, p.ex., no que concerne à capacidade
judiciária.

Qual a ratio do princípio da adesão obrigatória?

(i) Comunhão de prova, economia processual – se uma pretensão de responsabilidade


civil advém de um facto penalmente relevante, então haverá comunhão de prova e uma parte da
decisão penal permitirá identificar elementos necessários à eventual responsabilização civil do
causador dos danos;

(ii) Evitar a contradição de julgados entre o processo penal e o civil, se estes fossem
julgados separadamente.
Como diz FIGUEIREDO DIAS, as partes civis são sujeitos da ação civil (de
condenação) que adere ao processo penal. Tendo já apresentado o lesado, olhemos a pessoa com
responsabilidade meramente civil.

A pessoa com responsabilidade meramente civil (73º) pode ser demandada no processo
criminal como parte do processo civil que o acompanha, só respondendo pela componente civil
do pedido de indemnização que é trazido ao processo criminal. Porém, não se confundirá com o
arguido, respondendo somente pela componente cível do processo, ou seja, pelo pedido de
indemnização enxertado no processo penal. Não é um sujeito processual, tem a sua intervenção
limitada ao debate da pretensão cível (73º/2). Ex.: um fiador ou uma seguradora podem ser
demandados para ressarcir civilmente danos que tenham decorrido da prática de factos criminais
pelo beneficiário da fiança/segurado.

Mesmo que não demandas no processo civil enxertado no processo penal, as pessoas
com responsabilidade meramente civil podem intervir voluntariamente no processo penal,
embora não podendo praticar atos que o arguido tenha perdido o direito de praticar (73º) – tudo
se passa em termos similares àqueles em que é permitida a intervenção de terceiros no processo
civil.

A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e prova do pedido de


indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos
assistentes (74º/2), mas apenas para a sustentação do pedido civil por si formulado.

74º/3: os demandados e intervenientes no processo civil terão uma posição processual


idêntica à do arguido, embora limitada à sustentação e à prova das questões civis julgadas no
processo, sendo independentes as suas defesas entre si e entre eles e o arguido. A própria defesa
do arguido no que diga respeito ao pedido civil será autónoma da sua defesa relativamente à
parte criminal.

Em suma, as partes civis (lesado e pessoa com responsabilidade meramente civil) não
são sujeitos processuais, apenas têm uma intervenção limitada à componente civil do
processo.

Nota: v. ainda o artigo 76º, sobre a representação em juízo das partes civis.

Comecemos agora o estudo em especial de cada um dos sujeitos processuais,


começando com:

14.4. O Tribunal

14.4.1. A reserva de jurisdição penal e os tipos de tribunais (Lei nº 62/2013, atualizada em


2018)
Os tribunais são órgãos de soberania encarregados da administração da justiça (202º,
CRP), aos quais é reservada a prática de atos materialmente jurisdicionais. A partir do momento
em que existe um enquadramento constitucional que coloca os tribunais como órgãos de
soberania, isto gera um certo desequilíbrio normativo face aos demais sujeitos processuais, que
não têm este enquadramento processual.

Esta diferença do tribunal, enquanto sujeito processual constitucionalmente designado


como órgão de soberania, face aos demais sujeitos processuais é especialmente relevante para
destrinçar o MP do Tribunal. Estes não se confundem, nem o MP faz parte do Tribunal, pelo
que não está sujeito ao mesmo regime, princípios e limites. Por exemplo, o princípio do juiz
natural não vale para o MP.

A alguns tribunais judiciais é atribuída a jurisdição penal, que é exclusiva, reservada e


única. Os tribunais penais são judiciais, mas têm uma competência exclusiva que os outros
tribunais não têm. Consequentemente, por apenas eles poderem julgar matéria penal, terão
igualmente a possibilidade de julgar matérias de outras áreas não penais do direito sempre que
as mesmas se entrecruzem com matéria penal.

É de vislumbrar uma eventual exceção a este princípio ordenador do nosso sistema de


que só os tribunais com competência penal podem praticar atos materialmente jurisdicionais
relacionados com matéria penal: o processo contraordenacional. As contraordenações são um
sistema autónomo, já que as decisões de mérito neste ramo competem a entidades
administrativas, contemplando-se apenas um recurso facultativo de tais decisões administrativas
para tribunais judiciais. Estas são entidades sancionatórias de direito público, mas de natureza
não penal. A decisão das entidades só vincula se o arguido concordar com ela na fase
administrativa. Se não concordar, vai-se a julgamento em tribunal judicial penal, valendo a
decisão administrativa como proposta sancionatória a entregar ao MP para este abrir um
processo penal e podendo haver nova produção de prova – nesses casos os tribunais
jurisdicionais penais terão jurisdição plena sobre o caso. Mesmo assim, isto não configura uma
exceção, uma vez que o direito contraordenacional não tem natureza penal, é um direito
sancionatório público não penal.

De facto, só os tribunais judiciais têm competência para imputar a alguém


responsabilidades criminais e dentro da jurisdição judicial, esta responsabilidade é cometida a
alguns tribunais, os que consubstanciam a jurisdição penal. Nota: consultar a Lei nº62/2013 –
Lei da Organização do Sistema Judiciário. Que tribunais existem, então?

Do ponto de vista da composição podemos vislumbrar os tribunais singulares, os


tribunais coletivos e os tribunais de júri.
(i) Os tribunais singulares existem em maior número, encontrando-se nas comarcas.
Neles, tem competência um único juiz que titula o julgamento e profere a correspondente
decisão sozinho.

(ii) Os tribunais coletivos são compostos por 3 juízes, um dos quais presidente e outros
dois juízos, partes integrantes do tribunal com competências próprias (p.ex. a de fazer
inquirições em audiência de julgamento).

Podemos dizer, simplisticamente, que os casos de maior gravidade e complexidade


estão reservados aos tribunais coletivos – esta é a grande diferença entre tribunais singulares e
tribunais coletivos, localizada na sua competência material. Quantitativamente, os tribunais
coletivos existem em menor número, mas qualitativamente julgam este tipo de casos mais
graves e complexos.

Assim, em princípio, um julgamento em tribunal coletivo será mais demorado, com uma
produção de prova mais extensa e com mais incidentes processuais. Podemos extrair de uma
observação da realidade prática atual que os juízes de tribunais coletivos, normalmente, têm
cerca de 10, 15, 20 anos de experiência, algo condizente com o tipo de casos que julgam.

(iii) Já o tribunal de júri é composto pelo tribunal coletivo (3 juízes acima


mencionados), ao qual se somam 4 jurados efetivos e 4 jurados suplentes. O regime deste
tribunal está presente no Decreto-Lei nº 387-A/87, que estabelece as regras procedimentais de
constituição do júri (8º - 13º, Decreto nº387-A) – os jurados são sorteados ao nível das comarcas
e, depois, sucede-se um processo administrativo de eliminação dos membros sorteados até se
chegar ao número de quatro jurados efetivos e quatro jurados suplentes.

O tribunal de júri, tem, no sistema português um peso menor do ponto de vista


estatístico (apenas 8 a 12 casos por ano são julgados neste tipo de tribunal) e mesmo do ponto
de vista processual – o júri decide da culpabilidade do arguido (2º/3, Decreto nº 387-A), mas
todos os demais aspetos técnico-jurídicos da sua responsabilidade são decididos pelo tribunal
coletivo.

A constituição do tribunal de júri é facultativa, apenas procedendo com o requerimento


intratável do artigo 13º/3 e 5, CPP (v. artigo) – que pode ser feito pelo arguido, pelo MP ou pelo
assistente, em momentos diferentes. No entanto, este requerimento só pode ter lugar em relação
aos crimes elencados no 13º/1 e aos crimes cuja pena abstrata máxima seja superior a 8 anos de
prisão. Estes crimes são inicialmente da competência do tribunal coletivo (14º/1), mas podem,
se requerido dar entrada num tribunal de júri. Existe uma proibição de constituição de tribunal
de júri em relação à criminalidade organizada lato sensu, existindo até uma interdição
constitucional nesse sentido (207º/1, CRP).
Nota: v. artigo 207º, CRP.

Existe em ordenamentos como o português uma desconfiança histórica em relação ao


tribunal de júri, por comparação com os sistemas anglo-saxónicos, desconfiança esta
relacionada com o risco de pressões sociais sobre o júri exteriores ao processo e incontroláveis
do ponto de vista dos poderes públicos, que podem influir na decisão dos jurados, pondo em
causa a idoneidade da justiça penal.

Uma vez vistos os vários tipos de tribunais distinguidos em função da sua composição,
cumpre olhar para a dimensão geográfica e hierárquica de distinção dos vários tipos de
tribunais. Como se distribuem as competências pelos tribunais ao nível do território nacional?

Existem vários tribunais espalhados pelo país nas diferentes comarcas. À medida que
vamos subindo no grau de jurisdição (p.ex. 1ª instância para 2ª instância), a competência de
cada tribunal não se cinge somente a uma comarca. Por exemplo, no que diz respeito aos
tribunais da Relação, existem cinco destes tribunais em Portugal que julgam os recursos de
decisões das várias comarcas da sua área territorial de jurisdição. A sua competência é alargada,
portanto, a várias comarcas, sendo que podem conhecer questões de facto, mas também de
direito. Num plano acima dos tribunais da Relação encontramos o STJ que tem uma
competência material muito limitada, uma vez que se cinge ao conhecimento de questões de
direito, suscitadas em recursos de decisões das Relações, em princípio.

Por fim, podemos ainda apontar o TC, que tem competência para recursos onde se alega
a inconstitucionalidade das normas penais, ou de certas interpretações delas extraídas, sendo
que tais recursos de constitucionalidade possuem um efeito suspensivo, ou seja, só se executa
uma pena determinada pela decisão recorrida depois de uma decisão do TC 91, em sede de
recurso, compatível com a manutenção de tal execução.

14.4.2. A competência do tribunal: funcional (17º e 18º), territorial (19º e ss.) e material
(14º, 16º e ss.)

A competência de um tribunal é a medida de jurisdição que lhe cabe. A lei atribui


competência a certos tribunais de acordo com critérios de conexão geográfica entre o local da
prática do crime e a jurisdição dos tribunais (competência territorial), em razão de competências
específicas dos tribunais (competência funcional) e em razão da matéria que é objeto do
processo (competência material)92.
91
Os argumentos jurídicos que podemos encontrar nos acórdãos do TC no que toca a questões de
(in)constitucionalidade têm grande força argumentativa. O efeito dos enquadramentos jurídicos debatidos
no TC para um caso concreto estará cingido a esse caso concreto, pelo que não serão vinculativos para a
generalidade dos casos; mas assumirão um grande valor persuasivo, na medida em que espelham uma
orientação já assente do TC sobre dada matéria.
92
É em função das regras de atribuição de competência aos tribunais, que se define a atribuição de
competências ao MP e ao juiz de instrução criminal.
A atribuição de competência aos tribunais em processo penal é orientada e limitada pelo
princípio constitucional do juiz natural. 32º/9, CRP: é a lei prévia a fonte de determinação da
competência dos tribunais penais, sendo proibida a atribuição ad hoc de competência judicial.
Exige-se uma determinabilidade genérica, prévia e abstrata dos tribunais competentes para
julgar um facto criminoso. Procura-se, assim, impedir que razões de conveniência política,
administrativa e pessoal estranhas à lei conduzam a uma atribuição casuística de competência.

Vejamos então a atribuição de competências penais feita pela lei aos tribunais, quer esta
competência seja funcional (tem que ver com o tipo de intervenção que o tribunal tem no
processo, que variará conforme a fase em que o tribunal intervenha – p.ex. temos a competência
do JIC no 17º ou do tribunal de execução de penas no 18º), territorial (medida de jurisdição de
conexão de um certo tribunal com um ato/facto que ocorreu num dado espaço geográfico) ou
material (que tipo de casos pode um tribunal apreciar/decidir). Ainda a propósito da
competência territorial, o MP, quando acaba a acusação, tem de remeter o processo para o
tribunal de julgamento (titular de tal fase processual) – normalmente será o tribunal da comarca
em que o MP está inserido (264º/1), podendo ainda influir nesta remessa considerações de
competência material. Detalhamos já em seguida todas estas regras de competência:

i. Competência funcional

A competência funcional surge no CPP determinada a partir das funções específicas de


certos tribunais: o tribunal de instrução criminal (17º), o de execução de penas (18º), ou ainda o
tribunal de recurso (427º para o tribunal da Relação e 432º para o STJ).

Em casos especiais, delimitados em função do arguido, a competência para a prática de


atos jurisdicionais a levar a cabo no inquérito e a competência para a instrução podem caber não
ao JIC, mas sim às secções criminais do STJ (11º/3, a) e 4, a)) ou às secções criminais das
Relações (12º/3, a)).

Assim, a competência territorial do MP para a abertura de inquérito determina-se, nos termos do art. 264.º
do CPP, por referência ao local da prática do crime (art. 264.º/1). Como os crimes podem ter naturezas
diversas e ocorrer em diferentes locais teremos de recorrer aos critérios do art. 19º - relativos ao tribunal
de julgamento - sempre que tal se revele necessário, para determinar com exatidão o local em que o facto
foi cometido. O 264º/2 e 3 contém critérios que permitem resolver casos duvidosos, como o do crime com
local desconhecido (caso em que se acolhe o critério do local em que primeiro surja a notícia do crime) ou
do crime cometido no estrangeiro (caso em que se acolhe o critério do local do tribunal territorialmente
competente para o julgamento). O 264.º/4, por seu turno, consagra uma regra de competência residual,
considerando que, em caso de urgência ou perigo na demora, qualquer magistrado ou agente do MP
procede à prática de atos de inquérito. Finalmente, o 264.º/5 remete em caso de conexão de processos
para as regras de competência do tribunal de julgamento nestas situações, que adiante serão estudadas
(cfr. arts 24.º a 30.º do CPP).
Relativamente à fase da instrução, o 288.º/2 manda aplicar ao Tribunal de Instrução Criminal (TIC) as
regras de competência relativas ao tribunal de julgamento. Tendo em conta que os TIC são, em todos os
casos (isto é, independentemente da natureza do crime e da eventual pena que lhe caiba), tribunais de
composição singular, a remissão não diz respeito à repartição de competência prevista nos artigos 13.º,
14.º e 16.º do CPP (que estabelece a competência do Tribunal do Júri, Tribunal Coletivo e Singular), mas
abrange seguramente os critérios de competência territorial (art. 19.º e ss) dos tribunais de julgamento.
ii. Competência territorial

A competência territorial é determinada no CPP de acordo com um critério geral,


completado com critérios especiais em função das particularidades de algumas incriminações.

No 19º/1 encontramos o princípio geral de distribuição da competência territorial dos


tribunais: o tribunal territorialmente competente para conhecer um dado crime será o do
local onde esse crime se consumou. Este princípio usa como cláusula operativa um conceito de
direito substantivo: o conceito de consumação, que corresponde à realização de todos os
elementos do tipo legal de crime imputado ao agente (na acusação ou na pronúncia, se for
requerida instrução neste último caso). A determinação do momento e local da consumação
depende, assim, da descrição legal do crime em causa, que pode ser mais ou menos complexa.
Este conceito de consumação será um conceito de consumação formal, pois liga-se aos
elementos do tipo do crime, não se confundindo com a consumação material do crime quando
esta implique a produção de um resultado que não esteja compreendido no tipo legal do crime.
Ora, a consumação material pode ser coincidente ou não com a consumação formal, não
relevando para efeitos do 19º/1 quando não seja coincidente com a consumação formal.

Até 2007, esta regra geral aplicava-se a todos os crimes. Porém, essa aplicação gerava,
muitas vezes, uma incongruência entre as regras de competência material e a proximidade do
tribunal com as provas de dado crime. Por exemplo, em crimes de homicídio poderia acontecer
que a ação idónea tinha lugar no sítio X mas a morte tinha lugar no Y, ou porque a vítima fugia
ou porque apenas falecia no hospital. A prática do facto típico dava-se num local, mas o evento
“morte”, de que depende a consumação do homicídio, acontecia devido a situações clínicas ou a
circunstâncias fácticas aleatórias.

Ex.: uma agressão dá-se em Coimbra, e a vítima é deslocada para Lisboa, onde morre e,
por isso, o homicídio se consuma. A notícia do crime obtém-se em Lisboa, e todo o processo
evolui em Lisboa, mas os factos e provas encontram-se em Coimbra. Não faz sentido que um
tribunal de Lisboa fosse, neste caso, realizar diligências processuais a Coimbra

É criada, por isso, em 2007 a exceção do 19º/2: o tribunal competente para conhecer de
crimes em que a “morte” seja elemento do tipo será o do local onde ocorre a ação ou a omissão.
Explica-se este novo critério, por uma necessidade de permitir uma atitude rápida das
autoridades em relação à investigação dos homicídios, bem como uma proximidade da
investigação e do julgamento em relação às provas, às pessoas envolvidas e à residência da
vítima e do agente. Este artigo refere-se aos crimes dolosos e negligentes cujo resultado seja a
“morte”, bem como outros crimes dolosos com uma agravação negligente por meio do resultado
“morte”.
Podemos, ainda, encontrar mais regras específicas no artigo 19º:

19º/4: aplica-se à tentativa e a atos preparatórios puníveis. A competência territorial de


um tribunal para conhecer de um crime não consumado é determinada com uma conexão com o
último ato de execução (no caso de tentativa) ou com o último ato preparatório punível.

19º/3: aplica-se a crimes habituais, crimes que comportam no próprio tipo incriminador
uma prática reiterada de atos. Ora, estes atos podem repartir-se territorialmente em diferentes
partes geográficas. Para resolver a questão de determinar, neste tipo de crimes, qual o local
relevante para determinar a competência territorial do tribunal, estabelece o 19º/3 que será
competente o tribunal do local em que tiver sido praticado o último ato da continuação
criminosa.

Ex: pode acontecer que quem fomenta com intenção lucrativa o exercício por outra
pessoa de prostituição (170º/1 – crime de lenocínio), o faça, sucessivamente, em diversos locais
(Lisboa, Faro, Albufeira). Aí, o tribunal competente para conhecer deste crime será o do local
em que foram praticados os últimos atos ilícitos (Albufeira) 93.

O 19º/3 aplica-se ainda a crimes duradouros ou permanentes, crimes que consistem num
só ato suscetível de se prolongar no tempo94. Se a ação típica se pode prolongar no tempo,
através de um único comportamento correspondente à realização de um único tipo de crime,
então também se poderá prolongar no espaço, realizando-se em vários locais. Relevante para
perceber este critério é que, nos crimes duradouros, há um momento em que se inicia a
consumação, há um período continuado (por vontade do agente) de consumação em que o BJ
está a ser lesado/comprimido e um momento em que essa consumação cessa. Durante toda esta
continuação criminosa temporal, a agressão pode, também, variar territorialmente.

Neste tipo de crimes será territorialmente competente o tribunal em cuja área de


jurisdição tiver cessado a consumação.

Ex: Um crime de rapto inicia-se, com o rapto, em Cascais, a pessoa raptada é levada
para Lisboa e é enclausurada em Sintra, sendo lá que é depois solta ao ser detido o agente.
Neste caso, o local onde cessa a consumação é Sintra, ou seja, o tribunal de Sintra será o
tribunal territorialmente competente.

Podemos encontrar outra regra especial no 21º, uma regra residual aplicável a casos em
que a localização dos elementos relevantes para determinar a competência territorial do tribunal
é duvidosa ou desconhecida de todo. Por exemplo, falamos aqui de casos em que a vítima é

93
Outros exemplos de crimes habituais: um crime de exploração de menores que comporte vários atos, ou
o crime de exercício ilegal da profissão de médico.
94
Nestes crimes, o bem jurídico lesado admite uma compressão contínua ao longo do tempo, e não uma
sua destruição.
raptada e solta enquanto está inconsciente, não sabendo onde esteve raptada e, por isso, não se
sabe em que local cessou a consumação. Nesses casos, será territorialmente competente a área
em que primeiro surgiu a notícia do crime. Se já se procedeu à abertura de inquérito numa certa
zona do território nacional, será o tribunal dessa zona que receberá o processo na fase de
julgamento. Não pode recorrer-se a este critério complementar de localização do crime quando
existam factos objetivos nos autos que permitam concluir, sem dúvidas, onde se consumou o
crime/cessou a sua consumação.

Nota 1: v. ainda o artigo 20º, que trata de crimes cometidos a bordo de


navios/aeronaves; bem como o 22º/1 para crimes totalmente cometidos no estrangeiro e o 22º/2
para crimes parcialmente cometidos no estrangeiro.

Nota 2: Nos crimes preterintencionais, a questão pode ser mais complexa, porque estes
crimes têm estrutura mista: conjugam um tipo base doloso com um resultado agravante
imputável a título de negligência. O que significa que nestes crimes podemos aparentemente
identificar dois momentos de consumação: a consumação do facto doloso de base e a
consumação do resultado agravante. Estes dois factos podem, por seu turno, ocorrer em locais
distintos. Contudo, para determinar o local da consumação do crime para efeito de competência
territorial não se deve atender autonomamente aos dois factos que integram o crime
preterintencional, mas apenas à unidade típica que conjuga o facto do crime base como
resultado relevante, sendo este decisivo para a determinação da competência territorial. Isto
porque se o crime é imputado ao agente como um todo, este tipo de crime só está
verdadeiramente consumado com a produção do resultado agravante.

Nota 3: Nas incriminações com condições objetivas de punibilidade, o local da


consumação corresponde não ao local da ação ilícita, mas sim ao da verificação da condição
objetiva de punibilidade que condiciona a relevância criminal da ação (ex. suicídio). Isto porque
a condição objetiva da punibilidade é um pressuposto substantivo da punibilidade, essencial
para a punição da conduta proibida: sem a verificação desta condição o facto não é punível.
Assim, é necessário ter em conta o local onde a mesma se verifica para determinar o tribunal
territorialmente competente, pois só nesse caso é que temos um crime imputável ao arguido.
Quando existem distintas condições objetivas de punibilidade, em anexo ao tipo de ilícito, basta
a verificação de uma para determinar o tribunal competente.

iii. Competência material – em especial, o tribunal de júri (13º), o tribunal coletivo (14º) e
o tribunal singular (16º). Articulação entre critérios qualitativos e quantitativos.

A atribuição de competência material significa que o legislador seleciona certos crimes


e integra os mesmos, a priori, na competência de um certo tribunal.
Ora, o CPP recorre a diversos critérios materiais para determinar a competência do
Tribunal. Podemos identificar:

(i) Critérios relativos à qualidade das pessoas a quem os factos são imputados,
nomeadamente em função de estas pessoas serem titulares de certos cargos políticos. De facto,
alguns titulares de órgãos políticos ou do poder judicial respondem apenas perante certos
Tribunais (11º/3, a), 11º/4, a) e 12º/3, a));

(ii) Critérios relativos a certas matérias específicas, em relação às quais certos tribunais
têm competência específica. Assim, por exemplo, é da competência das secções do STJ a
decisão sobre os pedidos de habeas corpus (11º/4, c)); bem como é da competência das Relações
julgar os processos judiciais de extradição (11º/3, c)).

(iii) Critérios relativos às penas cominadas para os factos imputáveis ao arguido, em que
a competência do tribunal se determina através do limite máximo abstrato da pena. Assim,
excetuando os casos do 13º/1, o Tribunal de júri só julga processos em que sejam imputados ao
arguido crimes que, isolada ou conjuntamente, sejam sancionados com penas máximas abstratas
superiores a 8 anos de prisão (13º/2). Para crimes punidos com penas de prisão superiores a 5
anos, é competente o Tribunal coletivo (14º/2, b)). Para crimes punidos com penas iguais ou
inferiores a 5 anos de prisão é competente o tribunal singular (16º/2, b)).

(iv) Critérios relativos aos tipos de crime imputáveis ao arguido, segundo os quais a
competência (positiva ou negativa) de certos tribunais pode ser determinada em função da
natureza de certos crimes. Assim, por exemplo, o Tribunal de júri é competente para julgar os
crimes do 239º a 246º e 308º a 346º, CP, independentemente da medida da pena prevista
legalmente para estes factos (13º/1), mas já não pode julgar os crimes indicados no 207º/1, CRP
e na Lei nº 52/2003 – crimes de terrorismo e de criminalidade organizada. O Tribunal coletivo,
por sua vez, é competente para julgar os crimes dolosos e agravados pelo resultado quando seja
elemento do tipo a morte de uma pessoa (14º/2, a)), o que abrange, por exemplo, os crimes de
homicídio doloso dos 131º, 132º, 133º, 134º e 136º, CP, bem como os crimes preterintencionais
em que o resultado agravante (não previsto) seja a morte de uma pessoa (p.ex. o de ofensas
simples à integridade física, 143º/1, CP, agravadas pelo resultado morte, enquadrável no 145º/1,
a), CP). Já o Tribunal singular terá competência para o julgamento de crimes contra a autoridade
pública, independentemente da medida da pena (16º/2, a).

Ora, é com base neste conjunto de critérios materiais associados a regras lógicas que o
CPP distribui a competência entre o Tribunal de júri, o Tribunal coletivo e o Tribunal singular.
Já estudámos os critérios materiais que operam esta distribuição (ver com especial atenção os
pontos (iii) e (iv) acima), cumpre ver que regras lógicas influem nesta operação.
Intervêm na distribuição de competências entre os supramencionados tribunais regras
lógicas de subsidiariedade expressa, isto é, em diversas situações um Tribunal apenas é
competente se não for atribuída competência especificamente a outro tribunal. Por exemplo, o
coletivo é competente se não o for o tribunal de júri (14º/1, 1ª parte); o tribunal de júri é
competente em alguns crimes se estes não forem da competência do singular (13º/2); o singular,
por sua vez, tem competência para julgar os processos que por lei não couberem na competência
dos tribunais de outra espécie (16º/1).

Podem identificar-se algumas regras de articulação dos vários critérios, em função da


necessidade da sua preservação:

(i) Os critérios da medida da pena e da natureza do crime imputado cedem perante os


critérios de competência determinados em função das pessoas ou da matéria específica que é
objeto do processo (extradição e habeas corpus);

(ii) De forma mais genérica, os critérios qualitativos prevalecem sobre os critérios


quantitativos (em função da medida da pena) – regra hermenêutica proposta por COSTA
PINTO, que não significa mais do que dizer que a natureza do crime se impõe sempre à medida
da pena abstrata na questão da determinação da competência dos tribunais. Aliás, se os critérios
quantitativos prevalecessem, na prática (e em rigor) só teríamos critérios quantitativos. Ora, não
foi essa a intenção do legislador do Código ao criar os vários tipos de critérios materiais.
legislador. Aquilo que a reforma de 2013 do processo sumário fez e que foi considerado
inconstitucional95 foi dar prevalência a um critério quantitativo sobre os qualitativos: os crimes
cuja detenção do agente se desse em flagrante delito seriam tramitados em processo sumário,
em tribunal singular, não sendo suscetíveis de pena superior a 5 anos, independentemente do
tipo de crime praticado.

(iii) As reservas legais de competência de alguns Tribunais (14º/2, a) ou 16º/2, a))


prevalecem sobre os demais critérios materiais – estas reservas legais são igualmente critérios
qualitativos.

Procurando uma noção de reservas legais de competência, existem certos casos em que
a lei, quando esteja em causa o conhecimento de um dado crime, só permite que o caso seja
julgado pelo tribunal coletivo ou pelo tribunal singular. Assim, uma reserva de competência é
uma situação em que um tribunal tem competência para conhecer um determinado tipo de
casos e essa competência impede a de outro tribunal qualquer – está em causa uma
jurisdição exclusiva do tribunal em favor do qual corre a reserva.

95
Ac. nº 174/2014, TC.
Por exemplo, temos um crime de terrorismo que é da reserva de competência do
tribunal coletivo perante o júri (207º, CRP conjugado com o 14º/2, b). Se neste caso de
competência reservada de um tribunal coletivo for requerida a constituição de júri, então
existiria, à partida uma incompetência material do tribunal de júri 96. Já nos casos do 14º/2, a),
em que há uma competência reservada ao tribunal coletivo somente perante o tribunal singular,
então em relação a esses crimes reservados ao tribunal coletivo pode ser requerida a
constituição de júri.

Existem razões diferenciadas para cada uma das reservas legais: por exemplo, a reserva
do 14º/2, a) atribui competência ao tribunal coletivo quando a morte faz parte do tipo do crime
praticado, algo que se deve à gravidade da imputação 97 (a danosidade ético-social dos crimes
com esse elemento no seu tipo legal), não tanto pela complexidade processual – até pode existir
prova segura da prática do crime que ele será tramitado em tribunal coletivo.

Já na reserva do 16º/2, a), o legislador pretendeu que o julgamento dos crimes indicados
por aquela norma (crimes contra a autoridade pública) elencados fosse rápido e expedito (seguiu
critérios de eficiência) e muitos dos casos que envolvem esse tipo de ilícitos são tramitados em
processo sumário, daí reservar-se o conhecimento destes crimes para o tribunal singular. P.ex.,
imaginemos que está em causa um concurso entre um crime de desobediência e dois de
resistência: a competência continuará a ser do tribunal singular, mesmo que a pena abstrata
máxima seja superior a 5 anos – isto nos diz o 16º/2, a). Aliás, nestes casos de concurso, o
tribunal singular pode aplicar penas concretas acima dos 5 anos, ultrapassando a sua medida
quantitativa de competência material, sendo esta uma novidade trazida pela reforma de 2013 do
CPP. Nestes casos, o critério qualitativo prevalece sobre critérios quantitativos relacionados
com a medida da pena.

Mesmo em casos de concurso de crimes devemos ter presente esta regra hermenêutica
de que as reservas legais prevalecem sobre os demais critérios de atribuição de competência
material. Suponhamos um concurso de crimes entre um crime de dano e um homicídio tentado.
Este último tem de ser conhecido por tribunal coletivo (14º/2, a)), enquanto que o primeiro será
da competência do tribunal singular em função do 16º/2, b). Devemos respeitar a reserva legal
existente, neste caso a do tribunal coletivo. Teremos, por isso, de tramitar dois processos
distintos por cada um dos componentes do concurso? Neste caso não, o tribunal coletivo tem
competência para julgar todo o concurso, dado que o crime de dano não é da competência do

96
Esta competência do tribunal coletivo não será reservada perante o tribunal singular, na medida em que
o crime de terrorismo poderá vir a ser julgado neste tribunal pois, apesar de a pena abstratamente
aplicável ser superior a 5 anos, pode-se usar o mecanismo do 16º/3 para que o processo seja tramitado
nesse tribunal.
97
De acusar alguém de matar outra pessoa.
tribunal singular em razão de um critério qualitativo, mas apenas em função de um critério
quantitativo que, como vimos supra cede sempre perante critérios qualitativos.

Detalhemos um pouco mais a reserva de competência do 14º/2, a). Quais os requisitos


desta reserva? É necessário que no crime a ser julgado o elemento morte faça parte do tipo
ilícito objetivo. Cumulativamente, deve a imputação subjetiva deste ilícito objetivo ser feita ao
agente a título de dolo. Não será necessária esta imputação subjetiva nos casos de agravação de
um crime pela produção, não necessariamente dolosa, do resultado morte – devem ser julgados
em tribunal coletivo os casos em que, pelo menos negligentemente (18º, CP), se produziu o
resultado morte, tendo-se anteriormente praticado dolosamente o facto que se agravou por tal
resultado.

Esta norma abrange, literalmente, qualquer agravação pelo resultado que desemboque
na morte. E se é claro que esta norma abrange crimes em que se deu a prática de um facto
doloso com agravação negligente, já não será tão claro que se aplique a crimes negligentes que
sofreram agravações negligentes que se traduziram na morte do ofendido. Alguma doutrina
critica este âmbito do 14º/2, a), mas não há qualquer razão suficientemente forte para que esta
norma seja interpretada com uma menor amplitude 98. De facto, o propósito do 14º/2, a) é incluir
na competência do tribunal coletivo todos os crimes de homicídio doloso e todos os crimes
agravados pelo resultado morte, independentemente da pena abstrata que lhes seja aplicável.

Ex.: Vejamos os crimes de homicídio privilegiado, homicídio a pedido ou infanticídio:


as penas que lhes são aplicáveis são baixas, inferiores a 5 anos, o limiar de competência do
tribunal coletivo. Qual o tribunal competente para os julgar? Segundo um critério puramente
quantitativo (em função da medida da pena) a competência material seria do tribunal singular.
No entanto, o propósito do 14º/2, a) é incluir na competência do tribunal coletivo todos os
crimes de homicídio doloso e todos os crimes agravados pelo resultado morte,
independentemente da pena que lhes seja aplicável. Em suma, a reserva de competência do
14º/2, a) perante o tribunal singular afirma-se pelo tipo incriminador e não pela medida da
pena99.

Nota: Nos crimes agravados pelo resultado no 14 nº2 a) exige-se um tipo incriminador
onde o resultado morte faça parte do tipo, e deve existir uma estrutura de imputação subjetiva
que será uma de duas: dolo ou agravação pelo resultado (dolo + negligência). EX: 14º + 147º -
98
De notar que uma acusação que, p.ex., impute um crime de ofensas à integridade física agravadas pelo
resultado morte, está a imputar um único crime e não dois crimes agregados, mas autonomizáveis. Não
determinaremos a competência material dos tribunais em função dos dois tipos separados que compõem a
agravação, mas antes em função de todo o crime agravado pelo resultado, enquanto unidade criminosa
indivisível
99
Se esta reserva for desrespeitada, estamos perante um caso de incompetência material, que corresponde
a uma nulidade insanável do processo penal, nos termos do 32º. Estudaremos as modalidades de
incompetência com todo o detalhe no ponto 14.4.6.
crime com estrutura complexa (base mais agravante) imputado pelo todo, e determina-se a
competência pelo todo. O crime que está na acusação vale pelo seu todo e não pelas partes, pelo
que se for crime agravado pelo resultado será da competência do coletivo perante a competência
do singular (da reserva de competência). Esses tipos estão claramente abrangidos, mas há
crimes preterintencionais de estrutura mista duplamente negligentes: Incêndio negligente com
morte negligente, agravação de crime negligente pelo resultado que cabe também nesta alínea.

No entanto, existem alguns casos cuja subsunção a esta norma de reserva de


competência é discutível:

(i) Crimes em cujos tipos legais surja a morte de uma pessoa, mas em que a
morte seja descrita como suicídio (vide 135º/1 e 2, CP), mas também crimes
dolosos agravados pelo suicídio da vítima como acontece no 166º, CP quando
conjugado com o 177º/5 ou ainda os crimes do 174º e 175º em conjugação com
o 177º/5: deve-se incluir nas agravações pelo resultado mencionadas no 14º/2,
a), todas as cláusulas de agravação pelo suicídio da vítima. Porquê? Por um
lado, a morte faz parte do tipo legal destes crimes através da formulação do
suicídio, sendo que a lei não distingue se morte é hetero-provocada ou auto-
provocada. É ainda possível fazer uma interpretação declarativa lata que
abarque ambas estas realidades. Por outro lado, a prova nestes casos pode ser
ainda mais complexa do que nos homicídios100, o que justifica que a sua
apreensão seja feita e debatida por um tribunal coletivo. Por exemplo, um crime
de rapto agravado pelo suicídio da vítima será da competência reservada de um
tribunal coletivo.
(ii) Tentativa de homicídio (22º e 23º em conjugação com 131º - 134º, CP): a
tentativa é sempre, no nosso sistema, um facto doloso (22º, CP) 101. O 14º/2, a)
não exige que a morte de uma pessoa se produza efetivamente, mas sim que o
tipo aplicável comporte a morte de uma pessoa. Assim, independentemente da
medida da pena, a tentativa de homicídio cabe no 14º/2, a), sendo da
competência reservada de tribunal coletivo.
(iii) O aborto (140º, CP) também é da competência reservada de tribunal coletivo.
Literalmente, o crime de aborto não implica a morte de uma pessoa, mas sim de
um feto. Contudo, repare-se que na sistemática do CP o crime de aborto é

100
Ainda que, como já estudámos, a complexidade não seja a razão fundamental de criação desta reserva
legal, antes a danosidade ético-social dos crimes por ela abrangidos.
101
A tentativa não é um tipo autónomo, mas sim um tipo dependente, ou seja, o 22º, CP aplica-se sempre
em conjugação com um tipo da parte especial que, para esse efeito, tem de ser invocado enquanto título
de imputação e enquanto objeto do dolo do agente (14º, CP). Assim, sendo o 22º, CP um tipo dependente,
ele implicará sempre a invocação dos tipos consumados de homicídio na acusação ou na pronúncia para
que exista uma tentativa de homicídio.
(enquanto crime contra a vida intrauterina) uma modalidade dos crimes contra
as pessoas. Por outro lado, pode afirmar-se que o art. 14º/2, a) pretende remeter
para o tribunal coletivo o conhecimento de todas as agressões dolosas ou
preterintencionais102 à vida humana e o crime de aborto é um crime contra a
vida humana dependente. Com efeito, se, literalmente, o 14º/2, a) abrange as
agressões dolosas ou preterintencionais contra a vida humana independente
(morte de uma pessoa) devem-lhe ser equiparadas, por interpretação extensiva,
as agressões dolosas à vida humana dependente. Acresce que, no plano
processual, as dificuldades de prova e as consequências ético-jurídicas da
imputação de um crime desta natureza justificam também a intervenção do
coletivo.

Delimitado que está, pela positiva, o alcance do 14º/2, a), importa agora identificar os
casos que podem suscitar, igualmente, dúvidas quanto à sua subsunção a esta reserva legal de
competência, mas em relação aos quais a competência não é do tribunal coletivo, mas do
tribunal singular. Que casos ficam, então fora da competência do tribunal coletivo?

(i) Homicídios negligentes, porque o legislador limitou a norma do 14º/2, a) aos


crimes dolosos ou aos crimes agravados pelo resultado em que a morte faça
parte do tipo. A negligência simples não é nenhum destes casos, pelo que fica
de fora desta reserva legal, algo que tem sido confirmado pela praxis judiciária;
(ii) Os crimes de reserva legal de competência do tribunal singular. Quais
sejam? Os crimes contra autoridade pública (16º/2, a)).
(iii) O crime de participação em rixa (151º, CP) - poderíamos pensá-lo como
sendo da competência do tribunal coletivo, pois é um crime doloso e numa das
modalidades de rixa descritas no seu tipo legal, encontra-se o elemento morte.
Porque é que este crime é, então, da competência do tribunal singular pela regra
residual do 16º/1 e pelo 16º/2, b)? A morte está, de facto, descrita no seu tipo
legal, mas não é imputada ao agente do crime. Com efeito, a morte é um
resultado do conflito generalizado, do facto coletivo, não sendo imputada
subjetivamente (nem negligentemente nem com dolo) a nenhum agente
individualmente considerado. A morte é uma condição objetiva de punibilidade
neste crime, não um elemento do tipo, pelo que este crime não é abrangido pela
reserva do 14º/2, a), sendo da competência do tribunal singular. Nota: v. Caso
2, pergunta 1.

102
Preterintencionais são agressões agravadas pelo resultado, ou seja, que em que o resultado produzido
vai para lá da intenção do agente. Neste caso, é o resultado aborto que agrava o tipo praticado
dolosamente.
Após a apresentação de todas estas coordenadas, como é ao certo a distribuição de
competências materiais entre tribunal coletivo, tribunal singular e tribunal de júri?

Nota: v. Esquema 3 e suas anotações, onde se concretizam os critérios legais


consagrados nos artigos 13º, 14º e 16º do CPP, sistematizando-se a distribuição de
competência material entre o Tribunal do Júri, o Tribunal coletivo e o Tribunal singular.

14.4.4. A determinação concreta da competência: 16/3 e o Ac. TC nº 41/90

As regras anteriormente estudadas sobre a determinação da competência do Tribunal


permitem a sua identificação em abstrato, isto é, a sua competência resulta da aplicação direta
de um critério legal.

Acontece, contudo, que a competência do tribunal singular pode ser, também,


determinada, em alguns crimes, através de um método de atribuição concreta da competência
previsto no 16º/3. Nestes casos, apesar de a pena abstrata justificar o envio do processo para o
tribunal coletivo, por ser superior a 5 anos de prisão (14º/2, b)), o MP pode fazer um juízo
sobre a gravidade concreta do facto imputado ao arguido e, em função dessa menor
gravidade, remeter o processo para julgamento em tribunal singular por entender que não
será provavelmente adequado (ou necessário) aplicar, em concreto, uma pena superior a 5
anos de prisão.

Esta possibilidade advém, pois, da lei e de um ato concreto do MP de requerimento de


tramitação em tribunal singular, constituindo um mecanismo de desaforamento legal de
competências do tribunal coletivo, que são transmitidas a um tribunal singular.

Ex.: Temos um crime de dano, cuja moldura penal abstrata vai de 2 a 8 anos. O MP
pode prever, em função de todas as circunstâncias do caso, que o tribunal de julgamento não
aplicará uma pena superior a 5 anos de prisão e, em vez de enviar o processo para um tribunal
coletivo, envia-o para um tribunal singular ao abrigo do 16º/3.

Esta faculdade do MP foi criada 103 com o objetivo de aliviar os tribunais coletivos de
crimes com gravidade abstrata consentânea com a sua esfera de competência, mas que, em
concreto, seria inferior a 5 anos, permitindo “reservar” o tribunal coletivo para o julgamento dos
casos mais graves.

Nota: v. Esquema 3, nota ****

COSTA PINTO considera que este juízo de prognose concreta feito pelo MP quando
recorre ao mecanismo do 16º/3 não é vinculativo para o tribunal singular para o qual ele remete
o processo, nem tão pouco obriga à realização de julgamento por parte desse tribunal. Este

103
Legislador penal importou-a do ordenamento alemão.
pode, desde que o fundamente, declarar-se materialmente incompetente quando recebe o
processo (32º e 33º). Esta é a única solução compatível com o princípio da independência das
magistraturas, neste caso manifestável face a uma perceção discricionária do MP. Pode-se dizer
que o mecanismo do 16º/3 se traduz, assim, numa mera proposta dirigida ao tribunal de
julgamento.

De qualquer modo, uma vez realizado o julgamento nos termos do 16º/3, não pode o
tribunal singular aplicar pena superior a 5 anos de prisão, sendo este um limite quantitativo da
sua esfera de competência, como resulta expressamente do 16º/4. Coloca-se então a questão de
saber como deve proceder o Tribunal se, em função da prova produzida em audiência (e que,
portanto, o MP não conhecia quando recorreu ao mecanismo do 16º/3) ou de uma alteração da
qualificação jurídica dos factos sub judice, considerar que a pena concreta a aplicar ao indivíduo
deve ser superior a 5 anos de prisão. Para GERMANO MARQUES DA SILVA, o Tribunal
singular julgará, apesar de tudo o que se descreveu, até ao limite quantitativo de 5 anos de
prisão, como aconteceria por razões de vinculação temática ao conteúdo da acusação. Para
COSTA PINTO, um entendimento desta natureza e com este alcance é dificilmente compatível
com a estrutura acusatória do processo penal e com a independência das magistraturas face ao
MP, acabando por reconhecer a este último poderes materialmente jurisdicionais. O Tribunal
pode, então, declarar-se materialmente incompetente e remeter o processo para julgamento em
Tribunal coletivo, seguindo-se o regime dos 32º e 33º.

Coloca-se a também questão de saber se o tribunal singular se pode declarar competente


quando o MP tenha recorrido ao mecanismo do 16º/3 mas o arguido, em função da pena
abstrata, tenha requerido o julgamento em tribunal de júri. Deve ser deferido o requerimento do
arguido e deve o tribunal singular declarar-se incompetente (art. 32º e 33º CPP). Esta solução é
a que resulta da prevalência dada ao direito de defesa do arguido (art. 32º/1 CRP) que pretende
ser julgado em tribunal de júri. Mas supõe ainda que a ressalva contida no art. 13º/2 ("não
devendo ser julgados pelo tribunal singular") não se aplica às situações em que o Tribunal
singular é competente por força apenas do art. 16º/3, antes diz respeito apenas à reserva legal de
competência do tribunal singular contida no art. 16º/2, a) (isto é, à reserva de competência do
tribunal singular, em razão da matéria).

Nota: aprofundar a discussão desta problemática no Ponto 11.3., (i) deste Resumo.

Esta solução do 16º/3 não foi de aceitação pacífica, na doutrina e na jurisprudência, nos
primeiros anos de vigência do CPP. Algumas das razões aduzidas para a sua crítica eram a sua
não conformidade com alguns princípios constitucionais. Arguia-se uma violação do princípio
da legalidade das penas, do juiz natural, do in dubio pro reo (pelo juízo prévio que o MP fazia
quanto à culpabilidade concreta do arguido) e da estrutura acusatória do processo, bem como
uma diminuição de garantias do arguido em virtude do seu julgamento em tribunal singular.

Deste modo, a apreciação da sua constitucionalidade foi suscitada junto do TC, tendo-se
este tribunal pronunciado pela sua não inconstitucionalidade, embora com um voto de vencido
de MARIA FERNANDA PALMA, que invocou a violação do princípio da legalidade das penas
e de autonomia dos tribunais para sustentar a inconstitucionalidade desta norma.

COSTA PINTO considera que não se viola o in dubio pro reo, uma vez que este
princípio só emerge na produção de prova e na imputação de responsabilidades, atos que têm
lugar na audiência de julgamento. O MP, ao requerer julgamento em tribunal singular, não
pratica nenhum destes atos em que emerge este princípio; estando até num momento processual
anterior àquele em que deve operar o in dubio pro reo. Além do mais, este juízo do MP incide
sobre o tribunal competente no caso concreto e não sobre a responsabilidade do arguido, não
sendo, por isso, produzido qualquer juízo de valor antes do julgamento que pusesse em causa a
estrutura acusatória do processo (e a decorrente presunção de inocência) 104.

Para garantir a não violação destes princípios tem a proposta do MP de ser sujeita ao
contraditório, como forma de garantir o direito de defesa do arguido e a intangibilidade da sua
presunção de inocência. Nesse sentido, pode uma declaração de incompetência do tribunal
singular ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, para que o processo seja remetido para
julgamento no tribunal coletivo (32º e 33º). Se, diversamente, perante estas possibilidades,
nenhum sujeito processual se opuser ao julgamento perante o tribunal singular, então deve
entender-se que este tribunal é competente por força do disposto no 16º/3 e do consenso tácito 105
assim formado entre todos os sujeitos processuais.

E quanto a uma eventual violação do princípio da legalidade das penas? MARIA


FERNANDA PALMA diz que esta violação existe no 16º/3, pois nele temos presente uma
decisão casuística do MP (e não da lei) que determina a competência do tribunal. COSTA
PINTO discorda este entendimento, porque há uma base legal para esta decisão casuística e
104
O que diz quem advoga uma violação da estrutura acusatória e, consequentemente, do princípio da
presunção de inocência: a isenção do tribunal de julgamento que a estrutura acusatória pressupõe pode
sair prejudicada quando o Tribunal singular, antes de realizada a audiência e produzida a prova, se
declarar competente, pois significa que está a dar o seu acordo antes do julgamento à imputação dos
factos ao arguido e inclusivamente concorda com o juízo de gravidade concreta dos factos feito pelo MP.
Está a conhecer previamente do mérito da causa mesmo que o faça num plano hipotético, não formando a
sua convicção livremente durante o julgamento, através da prova produzida e seguindo um regime de
imediação. Por ter realizado este juízo antes da audiência, é inevitável que forme a sua opinião sobre a
causa antes da produção de prova, não surgindo em julgamento com a isenção suposta pela estrutura
acusatória do processo. Fica hipotecado também na prática o estatuto jurídico do arguido e a presunção de
inocência de que beneficia que foi logo contrariada quando o Tribunal se declarou competente.
105
Podem aqui invocar-se lugares paralelos a propósito da ideia de consenso tácito, como p.ex., o acordo
do arguido com a sanção proposta pelo MP no processo sumaríssimo. Ver outros exemplos desta ideia de
consenso tácito a legitimar soluções adotadas no CPP na página 44, Tópicos dos Sujeitos Processuais,
COSTA PINTO e TERESA PINTO BELEZA.
discricionária do MP, o próprio artigo 16º/3. A decisão que o MP tomar não será puramente
casuística, ao ser feita ao abrigo da lei – esta competência é, assim, ainda uma competência
determinada nos termos da lei, podendo por isso ser afirmado que não só o 16º/3 não viola o
princípio da legalidade das penas como também não viola o princípio do juiz natural. É de facto,
a lei a determinar quais os Tribunais que podem intervir nesta transferência de competências, o
coletivo e o singular, cabendo apenas ao MP adequar a lei geral à situação do caso concreto que
integra o objeto do processo.

Mais razões que podem ser deduzidas para defender a não violação do princípio do juiz
natural são a de que este não se trata de um caso de determinação ad hoc do Tribunal
competente (não permite a escolha do concreto tribunal que julgará o caso, só desvia o processo
do tribunal coletivo para o singular, sendo que o mesmo ainda vai ser distribuído por um
tribunal concreto) e a de que as alternativas quanto à competência do Tribunal resultam ainda de
lei prévia e expressa.

A suposta violação do princípio da igualdade é, também, dificilmente invocável pois o


regime do 16º/3 pressupõe exatamente que nem todos os casos são concretamente idênticos, não
se justificando, por isso, a sujeição uniforme ao julgamento em tribunal coletivo – “tratar
diferente o que é diferente” também compõe os ditames da igualdade.

Nota: Por falar em igualdade hoje José de Mota proferiu um bonito ensaio sobre como
o Desportivo das Aves é a única equipa prejudicada pelo VAR, exortando a comunidade a, e
passo a citar, “acabar com esta palhaçada”. Noto que são 3h49 da manhã quando escrevo esta
merda.

O único argumento que, para COSTA PINTO, é mais forte é o da violação da


autonomia dos tribunais, pois a regra é a de que os tribunais declaram a sua própria
competência, mas aqui temos o MP a declarar a competência do tribunal. Se entendermos que o
tribunal tem sempre de realizar o julgamento se o processo lhe for remetido nos termos do
16º/3, então sim, temos o MP a determinar a competência do tribunal, o que viola a autonomia
da magistraturas. Porém, temos de fazer um entendimento normativo do 16º/3 em junção com o
32º/1: se o tribunal receber o processo e se achar incompetente, tem capacidade de declarar
oficiosamente a sua incompetência, podendo fazê-lo em qualquer fase do processo até ao
trânsito em julgado, no entendimento de COSTA PINTO. No entendimento de GERMANO
MARQUES DA SILVA, que diz que esta declaração de incompetência não pode ser feita a todo
o tempo, mas apenas até ao momento de saneamento que precede a audiência em julgamento, o
tribunal também tem hipótese de se declarar incompetente pelo 32º/1.

Nota: v. sublinhados e anotações, Ac. TC, nº41/90.


14.4.5. A competência por conexão (24º e ss.): pressupostos, regime e efeitos

Na análise que se fez até aqui, foi pressuposto que existiria apenas um Tribunal
competente para julgar os crimes imputados ao arguido ou que, existindo mais do que um
Tribunal, os processos tramitariam autonomamente. Contudo, a distribuição da competência
pelos diversos Tribunais pode sofrer inflexões e derrogações por força do regime da conexão de
processos.

A conexão derivada da junção de processos é, com efeito, uma forma de atribuir


competência a um tribunal. A competência por conexão é um regime de concentração de
competências, em que um processo atrai outro, com derrogação simultânea da competência
de um tribunal originariamente competente. Esta concentração de competências implica uma
unificação de processos (29º).

A aplicação das regras de conexão de processos tem em regra 3 efeitos:

a) Concentração da competência para todos os processos num único Tribunal que, de


outra forma, não seria competente para todos os processos;

b) Derrogação da competência de outros Tribunais que normalmente seriam


competentes;

c) Unificação ou apensação de processos (art. 29º).

Ex.1: B tenta matar A em Lisboa; B é encontrado pouco depois com uma arma proibida
em Setúbal. Temos dois tipos de ilícito em causa, o de tentativa de homicídio e o de posse de
arma proibida, tendo estes de tramitar, à partida, em dois tribunais distintos. Suponhamos que
não se sabe quem foi o autor da tentativa. Assim, abre-se inquérito para descobrir isso. No
decurso dessa fase surgem indícios suficientes que incidem sobre A. Aí, teremos dois processos
com duas acusações contra o mesmo sujeito, mas em tribunais diferentes. A tentativa será
conhecida em tribunal coletivo de Lisboa (14º/2, a)); enquanto que a posse de arma é um crime
duradouro que cessa em Setúbal, pelo que é competente o tribunal singular de Setúbal.

Ex.2: Numa reunião pública que tem lugar em Aveiro, a pessoa X incitou à prática de
um crime (art. 297º, CP). Na sequência desse facto, Y comete um crime de ofensas graves à
integridade física (art. 144º, CP) em Lisboa. Para realizar o julgamento pelo primeiro crime (art.
297º, CP) será competente o Tribunal singular de Aveiro (16º/2, b) e 19º/1, CPP). Para realizar o
julgamento do segundo crime (art. 144º do CP) será competente o Tribunal coletivo de Lisboa
(14º/2, b) e 19º/1). Contudo, como os crimes em causa estão numa relação de causa e efeito (art.
24º/1, b), CPP) será competente apenas o Tribunal coletivo de Lisboa para realizar o julgamento
por todos os crimes (art. 24º/1, b), 27º e 28º, a), CPP), desde que se respeitem os limites à
conexão expressos nos 24º/ 2 e 26º, CPP.

A conexão consiste numa força atrativa de um processo sobre outro. O tribunal que
tenha uma esfera de jurisdição mais alargada receberá os dois processos, assim apensos: o
tribunal coletivo pode julgar o porte de arma, mas o tribunal singular não pode julgar a tentativa
de homicídio. Assim, a competência do tribunal coletivo é alargada em função da derrogação de
competência do tribunal singular, fruto da força atrativa que o processo de tentativa exerce
sobre o processo do porte de arma proibida.

Nota: ler artigos 27º e 28º, que estabelecem critérios de determinação de qual o
tribunal que julgará os processos conexos.

27º: Se os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente


hierarquia ou espécie, é competente para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada.
A mais elevada espécie do tribunal define-se em razão da pena aplicável ao crime. Assim, deve
entender-se que o tribunal coletivo e o tribunal do júri são de espécie mais elevada do que o
tribunal singular.

GERMANO MARQUES DA SILVA considera que o tribunal coletivo e o tribunal de


júri, embora de espécies diferentes, são paritários, isto é, não há entre eles qualquer grau de
elevação. Assim, se os processos conexos devessem ser uns da competência do coletivo e outros
da competência do tribunal do júri, é competente o tribunal do júri, não por força do art. 27º,
mas do art. 30º/2. No acórdão 16.1.90 do STJ podemos encontrar outro argumento para fazer
prevalecer o tribunal de júri sobre o coletivo, argumento este defendido por PAULO PINTO DE
ALBUQUERQUE: atendendo-se à ordem estabelecida nos termos do 13º, 14º e 15º, podem os
tribunais, por ordem decrescente de espécie, classificar-se em tribunal do júri, tribunal coletivo
e tribunal singular106.

Se as regras sobre competência do art. 27º não forem suficientes, de modo a não ser
possível através delas determinar a competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas
ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer dos processos conexos, nos
termos do 28º:

(i) O tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave. Diz o
Tribunal de Relação do Porto (Ac. 5.4.93) que, no caso de serem iguais os limites máximos das
penas, para efeitos de determinação de qual o crime mais grave atender-se-á ao limite mínimo.

(ii) Em caso de crimes de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver
preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual estiver preso o maior número.
106
Ver anotação do artigo 27º, no Código Anotado de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE.
(iii) Se não houver arguidos presos ou o seu número for igual, o tribunal da área onde
primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes.

Quais são, então, os pressupostos da figura da conexão?

(i) Uma pluralidade de processos autónomos, ou seja, com suscetibilidade de


serem tramitados em separado. Esta autonomia pode existir hipotética ou
efetivamente. Repare-se que a concentração de competências num tribunal,
determinada pelas regras de competência por conexão, tanto opera em relação a
processos pendentes (já instaurados formalmente) como antes desse momentos,
o que resulta do regime do 29º. Por isso, se tem referido que a existência de dois
ou mais processos tanto pode ser hipotética como efetiva. Pode verificar-se logo
originariamente, antes da instauração de qualquer processo, e, a ocorrer assim,
determinará desde logo a organização ab initio de um só processo (29º);
(ii) Uma pluralidade de tribunais competentes, de acordo com as regras gerais de
atribuição de competência estudadas supra;
(iii) Um fator de conexão entre os processos – 24º e 25º, CPP – p.ex., a
instrumentalidade de certos crimes julgados num processo quanto a crimes
julgados noutro. Exige-se, nestes termos, uma situação fáctico-jurídica,
relacionada com os agentes ou com os factos, que motive o tratamento conjunto
das matérias sub judice, mediante a atribuição de competência para tal
tratamento a um só tribunal. Nota: ler artigos 24º e 25º e respetivas anotações
no Código anotado, PPA;
Podemos organizar as situações descritas no 24º e 25º em três grupos:
a) conexão de natureza objetiva (em que um agente comete vários crimes
relacionados entre si); por exemplo, o 24º/1, a), que prevê situações de
concurso ideal efetivo de crimes cometidos por um agente;
b) conexão de natureza subjetiva (em que é a relação entre os agentes
relativamente a um crime que determina a conexão de vários processos), por
exemplo, art. 24º/1, c) e d);
c) conexão de natureza mista (em que a lei atende aos agentes e à relação
entre os crimes); por exemplo, 24º/1, e);
As diversas cláusulas que surgem nas alíneas do 24º/1 são alternativas e não
cumulativas – basta que uma delas se verifique, para termos um fator que
fundamente a conexão;
(iv) Uma tramitação concomitante entre processos, que devem encontrar-se em
fases processuais compatíveis entre si. A jurisprudência diz (e bem) que não
basta os processos estarem na mesma fase, estes têm, suplementarmente, de
estar em momentos compatíveis da mesma fase. P.ex. não é compatível um
processo estar no início de um inquérito e outro estar numa fase do inquérito em
que só resta fazer a dedução da acusação. Não é, igualmente, compatível um
processo em início de audiência de julgamento e outro em que só falta a leitura
da sentença para tal fase terminar.

O regime da competência por conexão é um regime imperativo, ou seja, verificando-se


os seus pressupostos da conexão, supra indicados, ela opera. É possível, porém, promover a
separação de processos, tipificada no 30º.

Além do mais, esta figura conhece alguns limites, designadamente contidos nos 24º/2 e
26º. Como resulta do 24º/2, pode haver conexão quer na fase de inquérito (264º/5), quer na de
instrução (288º/2), quer na de julgamento, desde que exista uma compatibilidade entre os
momentos em que se encontram os processos a juntar (já vimos supra). Já o artigo 26º (ler
artigo) estabelece um limite à conexão: um processo com esta competência especializada
(menores) não pode ser alvo de conexão.

Porque é que a lei prevê esta possibilidade de conexão?

(i) A conexão fomenta a descoberta da verdade dos factos e previne a contradição


de julgados, pois os factos relevantes são apreciados em conjunto – assegura-se
um bom funcionamento do sistema.
(ii) Este tratamento conjunto dos factos relevantes pode ser útil para uma mais fácil
compreensão da factualidade que facilite uma imputação de responsabilidades,
beneficiando o assistente. Mas também pode ser útil ao arguido, na medida em
que permite a comunhão de provas entre os processos (dentro dos limites
permitidos pela lei) e o arguido irá responder num só processo, não se
multiplicando diligências probatórias ou de alegações, numa vantagem
essencialmente logística de não duplicar o trabalho e deslocações. O arguido
concentra a sua defesa (e o esforço a ela tendente) num só processo;
(iii) O arguido tem o direito a ser condenado em pena única, por força do regime do
cúmulo jurídico. Esta pena única, em casos de conexão, será aplicada
diretamente pelo tribunal de competência alargada, em vez de saírem duas
penas distintas em dois processos separados e o arguido se desdobrar em
recursos e mais procedimentos para conseguir a agregação da pena. Mais a
mais, num regime de pena única conseguem-se conjugar melhor todas as
circunstâncias relevantes para a determinação da pena (70º e 71º, CP) e para a
atribuição da pena a que o arguido tem direito nas situações de concurso de
crimes (77º do CP).
Do ponto de vista prático, pode a conexão, no entanto, ser desfavorável ao arguido, por
razões estratégicas: se calhar, por vezes, é mais vantajoso ao arguido não jogar tudo num
processo, onde pode ter uma decisão desfavorável. Pode ser preferível dividir os seus esforços
processuais por dois tribunais, aumentando, deste modo, as probabilidades de um deles aceitar a
sua defesa.

Havendo competência por conexão, passa a existir um processo com mais factos ou
mais agentes. Se a junção pelos factos que estão em causa der origem a um concurso de crimes,
antes separados em dois tribunais singulares, que ultrapassa a pena abstrata máxima de 5 anos,
então o caso é transferido para tribunal coletivo.

A conexão é diferente do concurso de crimes. No concurso, não há uma pluralidade de


processos; há uma pluralidade de crimes contidos numa acusação única. Por isso mesmo, não há
também uma pluralidade de tribunais competentes, mas apenas um tribunal competente ab
initio. P.ex., se no exemplo dado supra, o MP tivesse deduzido acusação pelo concurso entre
tentativa de homicídio e porte de arma proibida, tal não seria problemático a nível de conexão,
que não seria suscitada, determinando-se logo apenas um tribunal competente. Está em causa,
no caso do concurso de crimes, determinar a competência de um único tribunal, em função da
totalidade da acusação, para julgar o concurso na sua totalidade.

Em suma, se o MP acusar de ambos os crimes, numa só acusação, só temos um


tribunal competente, num único processo. Agora, se houver duas acusações, com factos
diferentes, em tribunais diferentes, aí teremos conexão. Se a acusação acusar em concurso, não
temos competência por conexão, porque só há um processo (se um tribunal não perder
competências não temos conexão). Se houverem várias acusações em diferentes processos,
teremos conexão.

14.4.6. As modalidades de incompetência (32º e 33º)

A incompetência do Tribunal constitui uma nulidade insanável do processo penal, por


força do disposto no art. 119º, e), que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do
processo (corpo do art. 119º).

Contudo, os efeitos desta nulidade não são, nos termos gerais do art. 122º, a invalidade
de todos os atos praticados, pois o art. 33º/1 obriga ao envio do processo para o Tribunal
competente, que apenas anulará os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse
corrido o processo. Isto significa, a contrario sensu, que o Tribunal competente não irá declarar
nulos os atos praticados pelo Tribunal incompetente se esses atos fossem também praticados
pelo primeiro. Por outro lado, são ainda ressalvados os atos processuais urgentes que podem ser
praticados pelo Tribunal incompetente (art. 33º/2).
O vício de incompetência do Tribunal é, assim, uma nulidade atípica insanável, de
conhecimento oficioso em qualquer fase do processo, conjugado com um princípio de
aproveitamento de alguns atos processuais. As incompetências materiais e funcionais são
conhecidas a todo o tempo, seguindo a regra geral do 32º/1. O tribunal pode declarar-se
materialmente incompetente quer no saneamento do processo quer supervenientemente. Quando
há incompetência material e funcional, há uma nulidade insanável de conhecimento oficioso que
paira sobre o processo até ao trânsito em julgado.

Deve, contudo, ser destacado um especial regime legal quanto à incompetência


territorial, em que esta nulidade se sanará se se tornar irrecorrível, ou seja, se o tribunal
precludir este direito numa fase. Como? Se o vício de incompetência se der em razão do
território, a lei prevê que o mesmo fique sanado se não for deduzido e declarado até ao início do
debate instrutório, caso esteja em causa a competência do JIC, ou até ao início da audiência de
julgamento, quando esteja em causa a competência do tribunal de julgamento (32º/2). O JIC ou
o Tribunal de julgamento devem, consoante os casos, conhecer e declarar a incompetência
territorial no momento da apreciação das questões prévias à fase que titulam, caso contrário o
vício fica sanado.

Deve ainda ser tido em conta o regime da conexão, pois pode acontecer que o Tribunal
territorialmente competente seja outro de acordo com as regras gerais, mas a ponderação das
regras da competência por conexão (24º e ss.) conduzam a uma concentração de competências.

14.5. O MP e os OPC

O MP é um sujeito do processo penal, na medida em que possui poderes de


conformação efetiva e acompanhamento do processo. Já os OPC não são sujeitos do processo,
assumindo, ao invés, uma posição funcionalmente subordinada ao MP no plano processual. Isto
não corresponde, de modo algum, a uma diminuição da importância dos OPC no processo
penal, estes são decisivos ao seu decurso, nomeadamente em matéria de investigação criminal.

14.5.1. O MP: origem, natureza e funções

O MP é uma magistratura específica que não se confunde com a magistratura judicial, a


não exercer por si funções de cariz jurisdicional. Os procuradores são magistrados de carreira,
mas não são juízes. O MP é uma magistratura autónoma face à magistratura judicial, à qual a
Constituição (219º/1, CRP replicado no 1º, Lei nº 60/98) confere o encargo de representar os
interesses do Estado, de várias maneiras – o MP tem um estatuto constitucional.

Por exemplo, o MP representa os trabalhadores e os menores em juízo, quando tal


corresponda ao seu interesse; tem funções de consulta do Estado, bem como de fiscalização da
legalidade; e exerce a ação penal. Este exercício é apenas uma partes das suas competências
(mais amplas), sendo funcionalmente assegurado pela atribuição da titularidade da investigação
criminal, sem prejuízo de não a mesma não ser pelo MP executada exclusivamente (mas de
forma partilhada com os OPC). Nota: v. artigo 3º, Lei nº 60/98.

O MP exerce assim funções de administração da justiça, mas, nos termos


constitucionais, não integra o poder judicial: não é um órgão de soberania nos termos do art.
202º CRP107.

COSTA PINTO acrescenta, ainda que, por outro lado, o MP não recebe ordens do
tribunal. Só assim se respeita, material e formalmente a estrutura acusatória e o princípio da
acusação: a decisão de acusar e a seleção dos factos relevantes e respetivo enquadramento
jurídico cabe ao MP findo o inquérito e o juiz não pode interferir nesse campo. Podemos
adicionar a estas considerações os ditames de GERMANO MARQUES DA SILVA que afirma
que o MP goza de autonomia, que, nos termos do art. 219º/2, CRP, se caracteriza pela sua
vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do
MP às diretivas, ordens e instruções previstas na lei.

A atuação do MP não se confunde com a dos OPC, não tem competências específicas
de investigação, embora seja titular do inquérito108.

COSTA PINTO identifica alguns objetivos essenciais ao nosso modelo processual penal
que se atingem com a figura do MP:

(i) Torna-se possível acentuar a separação entre a acusação e o julgamento, exigida


pela estrutura acusatória do processo penal;
(ii) Permite-se que o julgamento dos factos fique livre dos problemas de instrução
do processo;
(iii) Permite-se uma concentração de competências e um órgão na feitura da na
acusação que, dessa forma, o será no campo das probabilidades mais
consistentes (embora os "limites mínimos" da acusação, que se basta com
"indícios suficientes" - art. 283º CPP - e não "fortes indícios" como seria
desejável) Por isso, não sujeitará, em regra, o arguido a processos infundados.

14.5.2. Organização hierárquica do MP (Lei nº60/98). A identidade do MP (219º, CRP) e


princípios de atuação.

107
Uma diferença entre estas magistraturas é que a magistratura judicial é irresponsável, autónoma e
inamovível enquanto que a magistratura do MP é responsável, hierarquicamente dependente e movível
(art. 219º CRP).
108
Ver Ponto 14.5.3., Resumo.
O MP tem uma organização hierárquica, que não existe na magistratura judicial.
Existe uma relação de subordinação hierárquica das bases da carreira em relação ao topo.
Existem, do nível inferior para o nível superior da hierarquia (8º, Lei nº 60/98):

a) Procuradores-Adjuntos;

b) Procurador da República;

c) Procurador-Geral Adjunto (geralmente com 15 a 20 anos de carreira);

d) Vice PGR;

e) PGR – pode ou não provir da estrutura hierárquica do MP, desta carreira de


magistratura própria – já houve PGR anteriores que não eram a priori magistrados do MP. Tem
de existir um consenso político entre Governo e PR para nomear o/a PGR, o que lhe confere um
duplo grau de legitimidade.

Podemos verificar, nas várias circunscrições territoriais, uma organização hierárquica


intermédia do MP. Nas comarcas, há um Procurador (o Procurador Coordenador) que coordena
o trabalho de todos os outros procuradores (procuradores subalternos) daquela comarca. Pode o
Procurador Coordenador dar instruções aos procuradores subalternos, ou até avocar o processo a
si.

O nosso MP no processo penal não é “parte” no processo, antes se orienta por critérios
de legalidade, objetividade e imparcialidade (53º/1) 109 (estes são os seus princípios de atuação),
não tendo necessariamente de se colocar contra o arguido, antes podendo não só pedir a sua
acusação ou absolvição, como também interpor recursos contra ou a favor do arguido. Não é
parte acusadora, tem a liberdade de decidir corretamente o caso de acordo com os seus
elementos factuais e jurídicos. Em suma, tem autonomia decisória 110 quanto a acusar ou não.
Por exemplo, um procurador subalterno pode recusar-se a cumprir ordens ilegais. O MP tem
competência exclusiva para deduzir a acusação, mas não é parte acusadora, não está obrigado a
deduzir acusação. O MP cumpre a sua função se acusar quando se verifiquem os respetivos
pressupostos ou se absolver quando se verifiquem também os respetivos pressupostos. Pode
até o MP, depois de uma sentença de condenação, pedir a absolvição do arguido se tiver dúvidas
quanto à culpabilidade daquela pessoa (orienta-se pelo que é correto e justo não tendo de
defender os casos a todo o custo).

Os princípios de atuação do MP colocam-no numa posição equiparada ao tribunal (têm


muitos dos mesmos princípios), mas não é por isso que o MP é parte dos tribunais. O princípio

109
Ver artigo 2º/2, Lei nº 60/98.
110
Esta autonomia decisória é sempre balizada pela subordinação hierárquica dos procuradores, que estão
subordinados às ordens dos seus superiores, salvo se estas forem ilegais.
da atuação objetiva significa que, apesar das suas funções, o MP não é mera parte acusadora do
processo penal, mas sim um sujeito processual com competências específicas. Por isso, o MP
está vinculado a critérios de objetividade na sua atuação processual, tem o dever de investigar
objetivamente tanto os elementos indiciadores da prática do crime como elementos dirimentes
da responsabilidade do arguido. Além do mais, o MP não decide, nem profere decisões
materialmente relevantes em relação à condenação. O que faz, isso sim, é promover o processo,
participando ativamente nas várias fases processuais.

Uma última diferença em relação aos tribunais é que o MP é hierarquizado. Em relação


aos tribunais isso não acontece: o tribunal da relação não subordina a si as comarcas.

14.5.3. O MP no processo penal e o problema das suas competências

O MP dirige a atuação dos OPC na investigação, ao deter a titularidade do inquérito


(esta titularidade acresce ao estatuto de sujeito processual que tem nas outras fases), mas não é
uma magistratura de investigação, não tem competências específicas para tal. De facto, sendo
uma magistratura, nem assim o MP é especializado em investigação criminal, não é um corpo
de investigação criminal. Pode praticar atos de investigação criminal por si, mas pode
igualmente delegar a sua prática nos OPC, que têm competências especializadas e decisivas
nesta matéria. A investigação criminal é, em regra, realizada pelas polícias. O que o MP faz é
dirigir a investigação criminal, ainda que esta seja realizada por outras entidades com poderes
policiais específicos (3º/1, b) e i) e 3, Lei nº 60/98) e exercer a ação penal orientada pelo
princípio da legalidade (3º/1, c), Lei nº 60/98).

CUNHA RODRIGUES considera que as atribuições do MP devem entender-se como


predominantemente referidas à direção processual da investigação. Não compete aos
magistrados o empenho pessoal em ações de polícia, excetuados os casos em que dirigem
diretamente a investigação criminal.

As competências que o CPP atribui ao MP são competências para-jurisdicionais. Mas


pratica, igualmente, certos atos que se assemelham muito a um cariz de jurisdicionalidade (atos
materialmente jurisdicionais) na medida em que declaram o direito aplicável ao caso concreto:

Por exemplo, o MP tem competências para homologar a desistência de queixa,


implicando que o caso se encerre e que aquela queixa não seja renovada. Há quem entenda que
este é um ato materialmente jurisdicional, pois encerra o processo com uma decisão sobre o seu
objeto.

Noutro exemplo, a jurisprudência diz que o arquivamento do processo pelo MP nos


termos do 280º e nos termos do 281º e 282º faz caso julgado material, pois ao encerrar o caso
resolve o fundo da causa, impedindo que outros processos tenham o mesmo objeto. Quer no
280º quer no 281º há um mecanismo de controlo judicial, embora a intervenção do JIC no ato de
arquivamento propriamente dito só acontece nos casos do arquivamento em caso de dispensa da
pena (280º), já que, na opinião de COSTA PINTO (um menino como poucos) nos casos de
suspensão provisória (281º), apesar do JIC ter de concordar com a suspensão do processo, a lei
não exige a sua participação no ato de arquivamento posterior (282º/3).

Ademais, no processo sumaríssimo, pode o MP propor sanções concretas sujeitas a


homologação do juiz.

Noutro exemplo ainda, o MP tem a possibilidade de enviar um processo para tribunal


singular nos termos do 16º/3, como já estudámos supra.

O MP tem, de facto, uma competência muito alargada que implica que pratique atos que
constituem decisões definitivas com influência no processo. Houve, inclusive,
constitucionalistas (VITAL MOREIRA) que consideraram que este estatuto reforçado do MP
era de conformidade duvidosa com a CRP.

Um dos argumentos que contradiz estas dúvidas de constitucionalidade é a ideia de


controlo do juiz face a estes atos materialmente jurisdicionais praticados pelo MP – o MP tem
influência decisiva, mas não final no processo, sendo esta sempre sindicada por um juiz (e pode
até ser preciso o consenso de outros sujeitos processuais para certos atos). Há quem contraponha
que este controlo não existe no 16º/3, mas COSTA PINTO que considera que este será mais um
argumento para defender que os tribunais podem declarar-se materialmente incompetentes
depois do saneamento – assim podem, a todo o tempo, controlar este ato de remessa do MP, não
lhe atribuindo uma influência decisiva neste aspeto.

Mesmo os atos do inquérito, em relação a cuja prática o MP tem competências normais


são controlados pelo JIC se forem suscetíveis de colidir com garantias fundamentais.

O TC foi chamado a pronunciar-se sobre este assunto, num caso onde se questionou o
estatuto reforçado do MP e a sua conformidade com a CRP. Em causa estava a necessidade de a
instrução estar a cargo de um juiz e o facto dos poderes do MP no inquérito ultrapassarem
aquilo que é normal do MP, perguntando-se se não devia o JIC ser titular do inquérito. É
legítimo e constitucional que o MP seja o titular do inquérito?

A investigação criminal é feita pelos OPC, a direção do inquérito é do MP e certos atos


no inquérito requerem a intervenção do JIC - não temos uma fase inteiramente
jurisdicionalizada. Ora, o TC considerou este esquema constitucional porque:
(i) O MP não tem, na generalidade dos casos, competências não controladas que tenham
efeitos materialmente jurisdicionais (O MP promove o processo, mas não decide sozinho: é
preciso intervenção do juiz e, por vezes, do arguido);

(ii) Existe um controlo jurisdicional na generalidade das decisões materialmente


jurisdicionais do MP, como vimos supra;

(iii) Também existe controlo da decisão final do inquérito - pode o assistente/arguido


abrir instrução (este será o controlo jurisdicional da decisão final do inquérito de acusar ou
arquivar). Só se passa logo para julgamento se essas partes concordarem com a decisão do MP;

(iv) Se tivéssemos um juiz de instrução a dirigir o inquérito, teríamos, posteriormente


em instrução, um JIC a controlar as decisões do JIC, sendo a única alternativa a isso que não
fossem controlados pelo JIC titular da instrução – ambas as soluções são indesejáveis.

(v) Há quem diga que o JIC deve ser titular do inquérito pois é necessária esta sua
qualidade para garantir o respeito pelos direitos fundamentais do arguido. Mas o MP quando
investiga vai respeitar também os direitos fundamentais (existe uma obrigação nesse sentido).
Não é por ser um JIC a dirigir o inquérito que os direitos fundamentais do arguido serão melhor
respeitados.

Nota: v. anotações Ac. 7/87, TC.


Em suma, não há qualquer colisão entre a amplitude de competências do MP e
quaisquer garantias constitucionais. O sistema português é muito equilibrado com base numa
interação muito bem calculada entre os vários intervenientes do processo, pelo que a
conformidade com a CRP está assegurada.

14.5.4. Os OPC: art. 1º, c) e Lei nº49/2008. Classificação dos OPC (3º e ss., Lei nº49/2008):

a) OPC de competência genérica [PJ, GNR, PSP]

b) OPC de competência específica (art. 3º/2 e 3 e lei especial: v.g. ASAE; SEF)

O MP é quem faz a investigação criminal no nosso sistema processual, mas de forma


partilhada com as polícias criminais de per se e com as entidades administrativas com poderes
de polícia. Os OPC são órgãos especializados na investigação criminal (1º, c)). Na lógica do
CPP, em princípio uma entidade que não tenha natureza policial não será OPC, ainda que possa
colaborar no processo.

O CPP não atribui aos OPC a titularidade de qualquer fase processual. São os OPC
entidades com competência para fazer a investigação criminal, coadjuvando as autoridades
judiciárias no cumprimento desse desiderato, tendo, em princípio, uma natureza policial. O MP
dirige o inquérito e pode praticar atos de investigação criminal por si ou delegar esses atos nos
OPC, articulando-se com eles e fiscalizando as tarefas que estes realizem. Os OPC fazem a
investigação criminal em sede de inquérito, subordinados ao seu titular, o MP, prosseguindo
uma lógica do Código de que toda a investigação criminal deveria ser feita no contexto
controlado do inquérito.

A par dos OPC, o CPP usa o conceito de autoridade de polícia criminal, nele incluindo
os diretores, oficiais, inspetores e subinspetores de polícia e todos os funcionários policiais a
quem as respetivas leis reconhecem tal qualificação (1º, d)). A distinção é relevante porque o
CPP exige que certos atos sejam praticados não por OPC, mas sim por autoridades de polícia
criminal111. De qualquer forma, tanto as autoridades de polícia criminal como os OPC não são
sujeitos processuais, mas meros intervenientes no processo, com competências específicas
legalmente conferidas.

Quais são os OPC? Estes aparecem indicados na Lei nº49/2008, que nos indica dois
tipos de OPC, os de competência genérica (3º/1, Lei nº49/2008) e os de competência específica
(3º/2, Lei nº49/2008, que só serão OPC se a lei lhes atribuir poderes de polícia (no nosso OJ
temos a ASAE e o SEF como OPC de competência específica). Nota: v. artigo 3º e 4º, Lei nº
49/2008.

Existe uma distribuição de competências entre os OPC de competência genérica,


reservando-se a investigação de alguns crimes à PJ (7º, Lei nº 49/2008), uma polícia que é,
fundamentalmente, de investigação criminal, estando estruturada para este efeito. A Lei nº
49/2008 repartiu competências entre os OPC de competência genérica, prosseguindo critérios de
gravidade dos crimes em análise: os crimes mais graves e de investigação mais complexa
seriam da competência da PJ; enquanto que os restantes crimes, mais simples, seriam deixados à
competência da GNR ou da PSP (6º, Lei nº 49/2008), conforme as divisões que existam nas
várias zonas territoriais. A PJ é centralizada e por isso não conhece bem os locais e as pessoas
(possíveis testemunhas ou intervenientes nos factos analisados), pelo que faz sentido que os
crimes menos graves, locais e cuja investigação exija uma maior proximidade, sejam da
competência dos órgãos policiais de maior contacto com as populações – a PSP e a GNR.

A lei é muito expressa ao dizer as entidades que são OPC, sendo esta declaração
expressa uma exigência para que uma entidade seja considerada OPC. Outras entidades
administrativas, como a CMVM, ANACOM, têm certos poderes materialmente de polícia, mas
não são OPC, pois a lei não os declara como tal.

14.5.5. A relação entre MP/OPC no inquérito: coadjuvação “supremacia sem hierarquia”


[art. 3º/4, Lei nº49/2008 e 262º/2, CPP].
111
111º/2, 257º/2, 258º/2 e 3, art. 273º, CPP.
DAMIÃO DA CUNHA diz que a relação entre o MP e os OPC é de “supremacia sem
hierarquia”. Porquê? Porque o MP dirige o inquérito (supremacia), mas não há hierarquia no
sentido administrativo do termo (as polícias mantêm a sua hierarquia administrativa própria não
estando subordinadas administrativamente ao MP). Gera-se assim uma certa dúvida de
conflitualidade: a polícia obedece a quem? À sua hierarquia ou à supremacia funcional do MP?

A lei estabelece esta relação muito particular de subordinação, mas impõe limites: os
OPC têm autonomia técnica e tática na realização as diligências de investigação, este sendo o
reduto de autonomia dos OPC quando atuam no inquérito criminal 112. Não deixam de estar
subordinados à orientação do MP, mas escolhem os melhores meios para os cumprir.

Ex.: Se o MP determinar uma apreensão de bens, os OPC têm de a realizar, mas o MP


não pode indicar-lhes a forma como concretamente devem proceder a essa apreensão.

Isto que dizer que, no modelo de processo penal criado no Código, os OPC têm esta
competência de realizar a investigação criminal desde que a exerçam no contexto controlado de
inquérito em curso. Não podem fazer a investigação criminal fora desta fase processual, num
inquérito à margem do MP.

As medidas de polícia que podem ser praticadas antes do inquérito 113 (248º e ss.) são
precárias, ditadas pela urgência e orientadas pela necessidade de conservação da prova,
implicando a imediata comunicação da notícia do crime ao MP A própria investigação sumária
contida no auto de notícia (243º) obedece a idênticos princípios (248º/3). Assim, em qualquer
dos atos pré-inquérito, a recolha de elementos sobre a possível prática de um crime e a sua
hipotética imputação a alguém são rapidamente comunicados ao MP que, para o efeito, abrirá
inquérito. Mesmo esta investigação criminal prévia supõe a existência de um inquérito.

Assim, GERMANO MARQUES DA SILVA identifica os poderes de direção do MP


relativamente às polícias:

(i) Exigir às polícias a pronta comunicação da notícia do crime (243º/3 e 245º e


248º) e dos relatórios previstos na lei sobre medidas cautelares e de polícia
(248º e ss.);
(ii) Avocar o inquérito, a todo o tempo, e devolvê-lo, se necessário, a outra
entidade;
(iii) Emitir diretivas, ordens e instruções sobre o modo processual de realização da
investigação criminal;
(iv) Apreciar o resultado das investigações, tomando as iniciativas que se
justificarem;
112
Ver Ponto 6.4., Resumo.
113
Ver Ponto 5., e), Resumo.
(v) Fiscalizar, em qualquer altura, a forma como é realizada a investigação.

Como última nota, afirmar que o nosso sistema processual, não há investigação criminal
privada. A nossa lei não atribui estas competências a privados na regulamentação do inquérito.
Mas, na prática, isto acontece, embora sem ser sob o véu da investigação criminal. Existe uma
investigação criminal em sentido material 114, sendo que a matéria investigada por detetives
penais privados nesse tipo de investigações pode cruzar-se com matéria criminal do processo.

Por exemplo, grandes empresas auditoras oferecem serviços chamados auditorias


forenses – perante um caso complexo por vezes contrata-se uma empresa externa que organiza
elementos por meio de uma investigação (p.ex. entidade externa fez auditoria forense da gestão
do Bruno de Carvalho, para ver se houve fraca gestão danosa). Isto implica alguma investigação
materialmente criminal, mas que formalmente não o é, pois não está situada no inquérito. Há
outras realidades de investigação fora do inquérito criminal, como p.ex. as comissões
parlamentares de inquérito (fraco caso BES). Isto levanta problemas de compatibilidade entre
estas práticas comuns e a investigação criminal pública, feita no inquérito.

Esta área não foi regulada no CPP por motivos históricos: (i) estas áreas de investigação
privada evoluíram já depois da entrada em vigor do CPP; e o objetivo deste Código sempre foi
controlar a investigação criminal pública que se faz no inquérito – qualquer investigação fora
dele é ilícita, nos termos do CPP.

14.6. A figura do assistente e o seu representante

14.6.1. Conceitos fundamentais: lesado, queixoso, ofendido e assistente. A intervenção


processual do assistente e do seu representante.

i) Assistente e ofendido:

O assistente (figura que corresponde a uma possibilidade de intervir ativamente no


processo pelo ofendido ou por quem o representa) distingue-se processualmente do ofendido e
do lesado.

O ofendido, enquanto titular dos interesses que a lei incriminadora especialmente quis
proteger com a incriminação (68/º1, a)), sendo maior de 16 anos, pode constituir-se assistente,
mas enquanto não se constituir não é sujeito processual.

O ofendido, titular do bem jurídico posto em causa pelo crime sub judice, pode ter uma
participação ativa em todo o processo. Mesmo não se constituindo assistente pode sempre

114
Querendo significar atividade de recolha de elementos, realizada ou não no âmbito de um inquérito
formalmente aberto para o efeito, através da realização de diligências que pessoalmente afetem uma
pessoa em concreto e que permitam a identificação de factos criminalmente relevantes (que permita, no
fundo, obter a notícia de um crime) para a sua imputação a alguém.
participar nele, de forma casuística: p.ex. ser testemunha ou apresentando queixa, mas, neste
caso, a sua participação limita-se à diligência onde intervém. O assistente, por sua vez, participa
no processo como sujeito processual, podendo acompanhá-lo e detendo poderes de conformação
efetiva do mesmo. Esta participação processual do assistente manifesta-se duplamente: o
indivíduo é ouvido como assistente (prestando o seu depoimento) e, para além disso, tem um
advogado que acompanhará todo o processo.

O advogado do assistente participa de forma ativa em todas as fases processuais,


acompanhando-as: é ele que é notificado, pode acompanhar o inquérito, ter acesso pleno aos
autos, pode discordar da acusação, pode requerer a abertura da instrução e participar nos atos e
no debate instrutório. No julgamento, o advogado está presente em audiência como os demais
sujeitos processuais, participando em inquirições e, de forma plena, em toda a produção de
prova: requerimentos, inquirições. E, no final de tal fase, alega também. O assistente tem, assim,
uma intervenção formalizada no processo através do seu advogado, que acompanha o seu
decurso, mas pode intervir, por si próprio, em várias fases da atividade, participando nos atos
em que a sua presença seja necessária; uma vez que, sendo o ofendido do crime, possui um
particular conhecimento dos factos, que se pode provar muito útil à descoberta da verdade
material.

Quando a lei fala em assistente temos de ver qual o sentido de tal expressão, na medida
em que se pode estar a referir ao assistente enquanto pessoa física ou à necessidade de o ato ser
praticado pelo seu representante. Por exemplo, quando a lei se refere às declarações do
assistente enquanto meio de prova (145º), quer significar as declarações da pessoa física que
requereu a constituição como assistente: será o ofendido. Por outro lado, temos o 287º, em que o
requerimento é apresentado pelo advogado, este é que intervém e não a pessoa física. Os atos
que exigem patrocínio judiciário são feitos pelo representante do assistente (o seu advogado).

Vamos agora densificar um pouco mais o conceito fundamental de ofendido. Esta é uma
figura delimitada pelo direito substantivo, i.e., pelo conceito de bem jurídico. Para determinar o
ofendido temos de identificar o bem jurídico lesado ou posto em perigo e estabelecer a sua
relação com uma esfera individual de alguém.

O ofendido tem uma intervenção processual limitada: não tem, em regra, poderes
processuais de conformação da evolução da instância. O estatuto de ofendido pode tornar-se
num estatuto processual 115 quando a lei faça uma referência especifica ao ofendido e declare

115
Não é sujeito processual, mas tem direitos e deveres próprios para a prática dos atos em que a sua
intervenção é prevista, estes compondo o seu estatuto.
expressamente que ele possui um dado poder processual 116, vide 86º/4, que permite ao ofendido
intervir no levantamento do segredo de justiça, através do poder de o requerer 117.

A figura do assistente é facultativa, não sendo obrigatório que quem tenha legitimidade
para se constituir como assistente o requeira. Nos crimes contra a integridade física, podemos
não ter assistente e ter as outras três figuras (ofendido, lesado e queixoso); ou ter essas três
figuras e ainda um assistente. Se o ofendido quiser praticar alguns atos processuais próprios do
estatuto do assistente, tem de requerer a sua constituição enquanto tal – se não o fizer não pode,
p.ex., fazer-se valer do 287º. Noutro exemplo, se não se constituir assistente, o ofendido não
pode apresentar recurso dos atos que o prejudiquem; mas se o for o 401º já lhe dá legitimidade
para recorrer desses atos. Estas duas prerrogativas de intervenção processual são as mais
relevantes a praticar pelo assistente, a par da possibilidade de participar, através do seu
representante, no debate instrutório e na audiência de julgamento.

Assim, podemos concluir que, mesmo sendo uma figura facultativa, o ofendido tem um
ónus processual de se constituir como assistente, na medida em que não o fazendo, precludirá a
possibilidade de ter uma intervenção mais ativa no processo.

ii) Lesado:

Nota: v. Ponto 14.3., Resumo.

Como já estudámos, o lesado é a pessoa que sofre as consequências suscetíveis de


responsabilização civil que procedam do facto criminoso, nos termos do 74º. Ora, sendo o
lesado aquele que sofreu danos com o crime, pode confundir-se com o ofendido e, por isso,
pode também constituir-se assistente, não por ser lesado, mas por ser ofendido. No entanto, em
razão da sua qualidade de lesado, pode apenas intervir no processo como parte civil, no pedido
de indemnização civil.

Os estatutos de lesado e assistente podem, ou não, coincidir na mesma pessoa:

Ex.1: X tem 15 anos de idade. Tendo sido vítima de uma agressão, quem suporta as
despesas com o seu internamento hospitalar é, por insuficiência económica dos seus pais (P),
um tio (T). Neste caso o ofendido será X, já que a integridade física é um bem pessoal, mas, em
função da sua idade, não tem direito a constituir-se como assistente no processo (art. 68º/1, a)
do CPP); os seus ascendentes, na medida em que são os representantes legais do menor, serão as
pessoas com legitimidade para se constituírem assistentes (art. 68º/1, d) do CPP) – que deverão

116
Se a lei apenas usar a expressão ofendido sem a associar a um dado poder processual, então apenas
quer significar o titular do bem jurídico agredido.
117
Noutra hipótese se um ofendido, sem qualquer estatuto processual, for chamado a depor como
testemunha, não terá o estatuto processual de ofendido – a lei não lhe confere poderes específicos neste
sentido de forma expressa – mas terá o estatuto processual de testemunha.
contar com um advogado que, em seu nome, acompanhará o processo; e o lesado, para além de
poder ser o próprio agredido, é também o tio (T) que suporta as despesas hospitalares. Neste
caso, o ofendido, o assistente e o lesado são pessoas distintas.

Ex.2: No caso de X ser maior e suportar as despesas hospitalares, vai ser


simultaneamente lesado, ofendido e a pessoa com legitimidade para se constituir assistente. Será
ainda o queixoso.

iii) Queixoso:

O queixoso tem uma legitimidade que resulta de uma conexão material com o titular do
bem jurídico que é protegido, podendo por tal conexão manifestar uma vontade quanto à
existência e continuação do processo. Será o próprio titular do bem jurídico ou o representante.
A vontade do queixoso é processualmente relevante, dando vazão a dois direitos de
intervenção processual, que integram o estatuto do queixoso 118: o de apresentar e o de desistir da
queixa. Mas os direitos de intervenção processual do queixoso limitam-se àqueles dois.

Tendo legitimidade para tal, enquanto não se constituir assistente, o queixoso não é um
sujeito processual. Nos crimes particulares, como se sabe, há uma plena identificação das
posições processuais de queixoso e de assistente a partir do momento em que o queixoso é
constituído formalmente como assistente: mas GERMANO MARQUES DA SILVA assinala
que, em caso de morte ou incapacidade do assistente, o titular do direito de queixa que lhe
suceda pode desistir da queixa apresentada, sem necessidade de assumir o estatuto de assistente.

14.6.2. Legitimidade para constituição como assistente: critérios legais

Nem todas as pessoas se podem constituir como assistentes num processo penal, nem
todos os crimes o admitem. Em primeiro lugar, a legitimidade para constituição como assistente
não depende da natureza processual do crime. Pode estar relacionada com ela, na medida em
que é que é precisa a constituição do ofendido como assistente para o MP possuir legitimidade
de tramitar o crime particular119 (natureza perentória do prazo de constituição conferida pelo
246º/4, como já estudámos), mas é possível haver assistente independentemente da natureza
processual do crime.

Nos crimes semipúblicos a constituição como assistente, não é condição da sua


tramitação, basta para tal a apresentação de queixa. Pode o ofendido/queixoso constituir-se
assistente, mas não numa questão de necessidade, pois tal não trará qualquer improcedibilidade
ao processo. No entanto, tal constituição afigurar-se-á conveniente, no sentido de permitir um
acompanhamento mais pleno do processo (p.ex., através do 284º ou do 287º).

118
E não o do assistente.
119
Sem assistente, nos crimes particulares, o processo será arquivado por falta de pressuposto processual.
Nos crimes públicos, a possibilidade de constituição do assistente dependerá da
natureza do bem jurídico em causa: os que se podem individualizar numa esfera jurídica
concreta admitem a constituição como assistente, mas os bens jurídicos supra individuais podem
não o admitir.

Ex.: tentativa de homicídio – o titular do bem jurídico vida é o ofendido que, por isso,
terá legitimidade para se constituir como assistente. Mas, p.ex., o crime de desobediência tutela
um bem jurídico supraindividual e, por isso, não admite a constituição de ninguém como
assistente, na medida em que não podemos reconduzir a sua lesão a uma esfera jurídica concreta
e, assim, conferir o direito de constituição como assistente a alguém.

Há casos discutíveis nesta destrinça. Por exemplo, em crimes de falsificação de


documentos, em que se falsificaram dados de outra pessoa (vide, a assinatura), o ser falsificado
corresponde a um elemento material de identificação de outra pessoa e o bem jurídico tutelado é
supra individual: a confiança nos documentos. Nestes casos, no entanto, em que há bens
jurídicos supra individuais que assumem dimensões individuais 120 (no exemplo dado, os
documentos das pessoas), as pessoas a que se reportam os elementos em que se manifesta o bem
jurídico protegido têm legitimidade para se constituírem como assistentes. Outro exemplo será o
crime de manipulação de mercado. Alguém divulga informações falsas para beneficiar de uma
subida de cotação, e depois vende as suas ações a um valor superior. Este é um crime público
com um bem jurídico supra individual (o bom funcionamento dos mercados), mas será que
admite a constituição de assistente? A jurisprudência tem tido orientações distintas, com o TC a
responder negativamente e os tribunais de 1ª instância a responderem positivamente. Para
COSTA PINTO, a pessoa que é titular das ações que foram manipuladas, tem direito a
constituir-se como assistente, porque aqui não está em causa proteger apenas o bem público do
mercado em si, mas igualmente os interesses de um participante do mercado.

Denominador comum a todos estes casos falados supra é que será a hermenêutica
substantiva na identificação do bem jurídico em causa (e não a natureza processual do crime)
que determina ou não a legitimidade da constituição do ofendido como assistente.

Quem tem legitimidade, então, para se constituir assistente?

a) Lei Especial

Pode existir lei especial que diga que certas pessoas ou entidades têm legitimidade para
se constituírem como assistentes. Por exemplo, em crimes racistas as associações de
representantes de grupos de pessoas que sem alvo de racismo; ou, em crimes laborais, as
comissões de trabalhadores podem constituir-se como assistentes. Esta legitimidade é conferida
120
Estes chamam-se de bens jurídicos compósitos, pois apesar de serem bens jurídicos supra individuais,
podemos identificar certos indivíduos aos quais a sua tutela especialmente se reconduz.
ope legis. O ofendido (pessoa singular), salvo se na lei especial vier disposto o contrário, pode
também constituir-se assistente. Ex.: Pense-se no caso de as associações de imigrantes se
poderem constituir assistentes em processos onde sejam julgados crimes de ofensas corporais ou
homicídios de natureza racista. Seria materialmente ilegítimo e contrário ao art. 32º/7, CRP o
legislador retirar ao ofendido concreto o direito a constituir-se assistente, porque reconheceu tal
legitimidade a uma entidade coletiva. Aliás, em regra, a legislação especial que atribui a pessoas
coletivas ou organizações o direito a requer a sua constituição como assistentes, ressalvam a
possibilidade de o ofendido a isso se opor.

b) Ofendido

Os ofendidos, isto é, os titulares dos bens jurídicos que a lei quis especialmente
proteger, se forem maiores de 16 anos podem constituir-se como assistentes (68º/1, a)). Este
critério pressupõe que, através do processo hermenêutico habitual de compreensão das normas
penais incriminadoras, seja identificado o bem jurídico protegido e, caso o mesmo seja
integrável numa esfera jurídica concreta, o respetivo titular, a ele se concedendo o direito de se
constituir como assistente.

c) Titular direito queixa

Podem constituir-se como assistentes, nos crimes semipúblicos e particulares (49º a 51º
do CPP, entre outros), os titulares do direito de queixa ou de acusação particular 121 (68º/1, b)).

d) Substituição e representação

Poder-se-ia arguir que, entendida a remissão constante do art. 68º/1, b) nestes termos,
então as alíneas c) e d) do art. 68º aplicar-se-iam só aos crimes públicos (pois em relação aos
crimes semipúblicos, esta matéria reger-se-á pelo 113º, CP ex vi 68º/1, b)) – é esta a opinião de
COSTA PINTO. Mas, GERMANO MARQUES DA SILVA considera que os 68º/1, c) e d) se
aplicam tanto aos crimes públicos, como aos semipúblicos e particulares, sendo que apenas
ressalva da renúncia ao direito de queixa, presente no 113º, CP, respeita exclusivamente aos
crimes semipúblicos e particulares. Entende, GMS, que a alínea c) se refere a todos os
ofendidos que são quem, nos termos das alíneas a) e b), primariamente se podem constituir
como assistentes (o direito de queixa pertence primeiramente ao ofendido).

121
A distinção entre o direito de queixa e de acusação particular tem relevância: pode o ofendido ter
apresentado queixa num crime particular, seguida do pedido de constituição como assistente, mas ter
falecido antes de terminar o inquérito. Nesse caso, será uma das pessoas referidas no art. 113º/2, CP que
se poderá constituir assistente e deduzir a respetiva acusação particular, nos termos do art. 285º. Portanto,
de acordo com o próprio regime legal, podem não coincidir na mesma pessoa o direito de apresentar
queixa e o direito de acusar em processos por crimes particulares. Assim sendo, justifica-se a redação do
preceito com a referência autónoma à queixa e à acusação particular, apesar de esta pressupor a
constituição de assistente.
O conceito de incapacidade, para efeitos do 68º/1, d) deve ser interpretado com o
alcance que resulta do 113º/4, CP (por remissão do 68º/1, b)): um incapaz significa a falta de
discernimento para entender o alcance e o significado do ato processual em causa ,
contendendo com a concreta capacidade de avaliação do ofendido e não com uma incapacidade
como entendida no direito civil, embora possa parecer que é este o conceito de incapacidade
convocado pelo 68º/1, d). Não faria, no entanto, sentido mudar o conceito de incapacidade que
vale para os crimes semipúblicos e particulares (68º/1 b)) quando passasse a estar em causa um
crime público (como é o caso do 68º/1, d).

e) Qualquer pessoa em alguns crimes

Certos crimes previstos, por exemplo, no 68º/1, e) têm uma expressão social alargada e
a lei admite que qualquer pessoa se constitua assistente. Nestes crimes estão em causa bens
jurídicos supra individuais, mas que, neste caso, embora a todos digam respeito, têm uma
dimensão supra individual que se pode decompor na sua incidência em todas as esferas jurídicas
concretas de todos os indivíduos.

O âmbito deste artigo foi sendo alargado sucessivamente pelo legislador o que, em
alguns casos, gera problemas específicos: por exemplo, a classificação da legitimidade é feita
em função do crime que é objeto do processo e qualquer pessoa se pode constituir assistente,
isto sendo assim quer se trate de corrupção de Estado quer seja de uma câmara municipal – a lei
apenas fala em corrupção. Se existir corrupção em Faro, qualquer pessoa do país se pode
constituir assistente.

Temos também associações chamadas de transparência que pedem a constituição como


assistente para dar algum oxigénio às atividades da sua associação. Vários meios de
comunicação social requerem a constituição em processos de corrupção ao nível do Estado.
Ambos estes exemplos ilustram um certo desvirtuamento da figura do assistente, sobretudo no
que diz respeitos aos meios de comunicação social, que se constituem assistentes para ter acesso
a matérias que, de outro modo, estariam sujeitas a segredo interno, ganhando assim uma fonte
de informação que lhes confere uma vantagem informativa. COSTA PINTO acha isto perigoso,
na medida em que permite contornar o regime do segredo de justiça, embora haja quem diga
que isto é legitimo, enquanto meio de cumprimento da função jornalística.

O CPP estabelece alguns limites a este preceito no 88º, que deve fazer parte de uma
interpretação sistemática do 68º/1, e), extraindo nós que os meios de comunicação social têm
como vedados alguns comportamentos de divulgação de informação processual.

f) Crimes que não admitem assistente


Existem crimes que não admitem a constituição de assistente. Essa conclusão decorre,
de acordo com a opinião dominante, da natureza do bem jurídico tutelado. É o que se passa
relativamente aos bens jurídicos de natureza supra individual que não se concretizam em esferas
jurídicas específicas. Fundamental será perceber se o dano no bem jurídico público se
concretiza também numa esfera jurídica individual ou se tal não acontece. Não é assim
defensável, ao contrário de algumas tendências que se manifestam na jurisprudência nacional,
excluir a legitimidade para a constituição de assistente apenas em função da natureza pública do
bem jurídico.

Ex.: no 360º, CP apesar de o bem jurídico tutelado pela incriminação do falso


testemunho ser a realização da justiça, esse bem, de natureza supra individual, é instrumental
em relação à tutela das partes ou dos sujeitos processuais e pode ter, por isso, uma projeção
específica numa esfera jurídica individual. Nesse sentido, a pessoa visada pelo falso testemunho
deve poder constituir-se como assistente no processo pelo crime em causa.

Por último, notar que é a partir da legitimidade que se estabelece o restante regime do
assistente.

Ex.: Se alguém for assistente num processo em que há concurso de crimes e um crime
admite constituição de assistente e o outro crime não admite, então o titular da fase judicial tem
de delimitar a possibilidade de intervenção do assistente. Este só poderá, por exemplo, requerer
abertura de instrução contra o crime que admite assistente ou recorrer apenas do conteúdo da
decisão que admite assistente.

14.6.3. Procedimentos e prazos: regra geral (68/º3, a)); regras especiais (crimes
particulares, prazo certo, processo sumário)

O CPP obriga nos termos do 68º/3 e 4 a um procedimento específico para a constituição


de assistente, que se traduz na apresentação de um requerimento sujeito a contraditório
(obrigatório ouvir os demais sujeitos processuais sobre a constituição de alguém como
assistente – há contraditório pleno, embora a fase onde o requerimento é feito não seja
contraditória) e decisão judicial (quem decide é o juiz, por despacho logo notificado aos
restantes sujeitos). Dado o seu cariz jurisdicional, a decisão de constituição como assistente
admite recurso. Se o juiz decidir pela constituição, o MP e o arguido podem interpor recurso. Se
recusar, quem pediu a constituição pode recorrer.

Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA, a admissão do assistente faz caso


julgado rebus sic stantibus122 até ao momento da fixação do objeto do processo na acusação ou
no arquivamento. Na fase de inquérito o objeto do processo é suscetível de alteração, fixando-se

122
Significa estando assim as coisas.
com a acusação. Se o crime que justificou a constituição de assistente na fase de inquérito não
vier a ser objeto de acusação, o assistente perderá legitimidade para continuar no processo, pois
o crime a ser julgado (o que compõe a acusação) não lhe permite a constituição de assistente. Se
a decisão de admissão da constituição de assistente for feita depois da acusação, então já fará
caso julgado formal. Com efeito, a acusação fixa o objeto do processo e, aí, só com a decisão
final se poderá decidir se o crime em causa admitia a constituição como assistente, pois pode o
tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos que constavam da acusação, alterar a natureza
processual do crime e, com ela, os seus pressupostos processuais, nomeadamente a
possibilidade de constituição do assistente.

Quais, então, os prazos a cumprir para fazer este requerimento?

Regra geral, pelo 68º/3, a), deve o requerimento de constituição como assistente ser
apresentado 5 dias antes do debate instrutório ou antes do julgamento, caso a instrução não
exista. Esta exigência é feita, pois antes do momento de contraditório pleno (debate instrutório
ou audiência de julgamento), tem de estar estabilizado o número de sujeitos processuais. Isto
significa que pode ser constituído assistente ainda no inquérito, a lei é generosa neste sentido.
Esta solução da alínea a) só vale para os crimes públicos e semipúblicos, pois nos crimes
particulares o assistente tem de estar constituído antes da acusação particular que condiciona o
procedimento, isto mesmo resultando do art. 285º/1: o MP findo o inquérito notifica o assistente
para este acusar se quiser.

Por outro lado, o art. 246º/4 diz que, nos crimes particulares ao realizar a denúncia, o
denunciante deve declarar obrigatoriamente que se quer constituir assistente. Esta declaração
não é, no entanto, por si só constitutiva da posição processual de assistente, pois sobre ela tem
de incidir o despacho judicial do art. 68º/4.

O CPP contém ainda regras especiais quanto a este procedimento que prevalecerão
sobre a regra geral qua acaba de ser apresentada, pelo princípio geral de lex specialis derrogat
lex generalis:

(i) 68º/3, b): quando a prática de dado ato processual exigir que o seu autor tenha
qualidade de assistente, o prazo para a apresentação do requerimento é o prazo
da prática de tal ato (caso da acusação particular dependente (284º) ou da
apresentação do requerimento para abertura de instrução (287º) no prazo de 10
dias e 20 dias, respetivamente). Para COSTA PINTO, há um risco em, no
requerimento de abertura de instrução, requerer a constituição do assistente: se a
discussão sobre a constituição de assistente for controvertida pode passar o
prazo do 68º/3, b). Há mesmo quem diga que, se o indivíduo que apresentou o
requerimento para abertura de instrução ainda não era, nessa altura, assistente;
então passado o prazo dos 20 dias sem que se decida sobre a sua constituição
como assistente, o requerimento apresentado não vale ainda que tenha sido
apresentado dentro do prazo.
(ii) Ainda existe outro prazo previsto no 68º/3, nomeadamente na alínea c). Pode o
requerimento ser apresentado no prazo de interposição do recurso da sentença,
estabelecido no 411º/1.
(iii) 68º/2: Nos crimes particulares o requerimento tem de ser apresentado no prazo
de 10 dias a contar da advertência referida no 246º/4.
(iv) Em processo sumário, o art. 388º admite a constituição de assistente desde que a
pessoa em causa o solicite no início da audiência. O regime do artigo 388º não
afasta integralmente o conteúdo do art. 68º, pois aquele preceito apenas prevê
uma regra especial quanto ao prazo e quanto à forma de constituição de
assistente. Assim, em tudo o resto (nomeadamente critérios de legitimidade,
regime do contraditório) continua esta constituição como assistente a reger-se
pelo 68º.

14.6.4. Estatuto processual do assistente e sua relação com o MP

O 69º dispõe que os assistentes têm a posição de colaboradores do MP, a cuja atividade
subordinam a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei. Estas exceções acabam por
ser múltiplas e de diversa natureza, condicionando o assistente a própria ação do MP (caso dos
crimes particulares) nuns casos e fiscalizando-a noutros (requerer abertura de instrução). Pode
também apresentar recurso da decisão final ainda que o MP não o faça. Para além destas
exceções, pode atuar com autonomia tanto no debate instrutório como no julgamento. Contudo,
a atividade do MP não deixa de ser dominante em relação à do assistente e, em certos casos,
pode condicionar o processo sem que o assistente possa intervir (280º, 16º/3, 392º).

Existem algumas diferenças significativas entre o estatuto processual do MP e o estatuto


do assistente, pois os primeiros estão vinculados a um dever de objetividade e legalidade, o que
não se passa com o assistente, que pode assumir uma posição de “parte” em relação a uma certa
pretensão processual123.

Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA, a posição do assistente em relação aos


crimes públicos e semipúblicos é a de colaborador do MP, auxiliando diretamente o MP com os
poderes processuais de que dispõe, mas também indiretamente na busca da solução justa para o
caso (participação na discussão no debate instrutório, julgamento e recursos). Nos crimes

123
A consideração de que o crime ofende primordialmente interesses da comunidade não pode fazer
olvidar que em grande parte dos casos quem sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua
participação ativa no processo permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida, convencendo-os da
efetivação da justiça no caso e trazendo ao processo a sua colaboração.
particulares a posição de colaborador não é tão clara, mas não deixa de o ser na medida em que
o MP submete ao tribunal a sua apreciação fáctico-jurídica do caso, acompanhando ou não a do
assistente, e não sofre qualquer limitação nos seus poderes de intervenção processual. Nos
crimes particulares, nunca cabe ao assistente, para além do direito de acusar, os poderes ou
funções do MP, nomeadamente os de investigação na fase do inquérito para fundamentar a
acusação.

As exceções de que o 69º fala, nomeadamente os poderes autónomos que a lei atribui ao
assistente e os direitos que pode exercer com autonomia do MP, leva-nos a considerar que esta
subordinação é muito limitada e significa, somente, que, em relação a alguns atos
estruturantes do processo, é dominante a posição do MP, como sucede no inquérito e na
acusação. A lei estabelece um número tão elevado de exceções em que o assistente pode agir
com independência do MP, que podemos afirmar que a sua colaboração com o MP é
essencialmente indireta, na busca da realização da justiça e na indicação dos meios de prova.

Para GERMANO MARQUES DA SILVA, o assistente só é colaborador do MP durante


a atividade do inquérito e só nessa fase lhe está subordinado.

Nota: ler artigo 69º/2, que contém as competências, em especial, do assistente, que já
estudámos acima. De destacar o 69º/2, a), em que devemos conceber a intervenção do assistente
no inquérito como sendo limitada, subordinada à do MP, de mera colaboração com este. O
assistente tem uma função auxiliar porque o MP é quem domina essa fase processual. Na
acusação, a função já será de complemento face à atuação do MP, nos termos do 284º e 287º,
sendo que na acusação particular a autonomia do assistente é total (69º/2, b), 2ª parte). Já o
69º/2, c) leva-nos ao 401º/1, b) ao estabelecer que o assistente pode recorrer das decisões que o
afetem – essas decisões não são aquelas em que se afetam/contrariam interesses pessoais do
assistente, mas sim que afetam ou contrariam posições processuais por ele sustentadas. Para
mais poderes conferidos ao assistente, ver pp. 296 – 297, GERMANO MARQUES DA SILVA.

14.6.5. Representante do assistente

O assistente não intervém pessoalmente no processo. A representação judiciária dos


assistentes permite obstar a muitos reconhecidos inconvenientes da sua intervenção como
sujeitos processuais, além de assegurar a colaboração técnica do processo.

Nota: v. ponto 14.6.1., (i) e artigo 70º.

14.7. O arguido e o seu defensor

14.7.1. Suspeito e arguido (1º, e) e 57º e ss.)


O CPP pressupõe em diversas matérias a existência de um arguido (veja-se por
exemplo, entre tantos outros, 277º/1, 280º/2, 281º/1 e 2, 287º/1, a), mas não define
expressamente este conceito. Contudo, já define o que seja um suspeito no 1º, e): é toda a
pessoa em relação à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime,
ou nele participou ou se prepara para participar. O simples suspeito não é um sujeito
processual e, como tal, não é titular de direitos nem está sujeito a deveres processuais especiais.
Os suspeitos ou são convertidos em arguido ou não são; sendo-o, ganharão um estatuto de
sujeito processual.

Do ponto de vista material, a constituição de alguém como arguido significa que foi
ultrapassada a mera existência de um indício de que a pessoa visada no inquérito cometeu um
crime ou que nele participou. Este mero indício caracteriza a posição material do sujeito, mas já
não a do arguido, em relação ao qual existirão sinais mais fortes do cometimento do crime
investigado – uma suspeita fundada da prática do crime124.

Qual a admissibilidade das declarações do suspeito ainda não constituído arguido 125?
Podem as suas declarações ser utilizadas contra ele se posteriormente vier a ser constituído
arguido ou contra terceiros que o sejam?

O suspeito presta declarações como testemunha e, por isso, fica sujeito aos deveres
desta, desde logo, o de dizer a verdade, podendo incorrer em crime em caso contrário (360º).
GERMANO MARQUES DA SILVA diz que se pode argumentar que como a testemunha tem
sempre o direito de requerer a sua constituição como arguido, então aquilo que declarar em
interrogatório pode sempre ser utilizado como meio de prova (nos termos do 141º/4, b)), mas
este direito de constituição como arguido (e tudo o que o envolve, como o direito ao silêncio)
pressupõe um conhecimento jurídico que, em regra, a testemunha não tem, correndo este contra-
argumento no sentido de afastar uma equiparação das declarações do suspeito às do arguido. Por
isso, para GERMANO MARQUES DA SILVA, o regime a aplicar às declarações da
testemunha suspeita que venha a ser arguida no processo deve ser parecido com o do 58º/5.

Sendo fundada a suspeita que recai sobre uma testemunha, torna-se clara a aplicação do
58º/5, por via do 58º/1, a), pois ela será constituída como arguida. Porém, quando não há uma
suspeita fundada não é obrigatória a constituição do suspeito como arguido, algo que corre no
interesse do visado e não no interesse da investigação – protegendo a inocência do indivíduo de
um certo estigma social em sentido contrário 126. Assim, uma interpretação da lei no sentido de
que a testemunha suspeita (mas ainda não fundada) está obrigada a dizer a verdade mas sem que
124
No CPP de 1929 existia, mesmo, uma norma (251º) que definia o arguido como aquele sobre quem
recai forte suspeita de ter perpetrado a infração.
125
Ou porque a autoridade judiciária ou OPC que o deveria constituir considera que a suspeita não é ainda
fundada (58º/1, a) ou porque o suspeito não tenha ainda requerido a sua constituição como arguido?
126
É fundamental para perceber este parágrafo, consultar o Ponto 14.7.5.
se aplique o 58º/5 como qualquer outra testemunha (permitindo uma utilização livre das suas
declarações mais à frente no processo se eventualmente se constituir como arguido) poderá
subverter o espírito da lei que, ao impor a exigência de uma suspeita fundada para a constituição
como arguido, o fez no interesse dos visados e não da eficácia da investigação, pelo que o
suspeito sobre o qual não recaia qualquer suspeita fundada deve ser protegido nos mesmos
termos que o suspeito fundado.

14.7.2. Medidas cautelares e garantias do suspeito

Em certos casos, a lei refere-se ao suspeito, como por exemplo quando se refere à
detenção de suspeitos ou a medidas cautelares que se dirigem a suspeitos (249º e ss.).
Efetivamente, o CPP trata o suspeito ao nível das medidas cautelares de polícia.

COSTA PINTO, discordando de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, afirma que o


suspeito não é um sujeito processual pois a lei não lhe confere direitos processuais de
conformação efetiva do processo, podendo vir a lograr a obtenção de alguns mas sempre quando
se converta em arguido. Esses direitos farão parte do estatuto processual do arguido, não
existindo um estatuto processual do suspeito. Então que garantias são dadas ao suspeito?

O 132º/2 confere ao suspeito, enquanto testemunha, o direito a não responder a certas


perguntas. Se uma testemunha começar a ser tratada como suspeita da prática de um crime, ela
pode manter a sua qualidade de testemunha (participante processual), invocando o direito do
132º/2, ou pedir o estatuto de arguido (sujeito processual), nos termos do 59º/2. Podemos,
assim, concluir que o sujeito possui um “estatuto” precário e transitório que permite, por ato
próprio, a sua transformação num sujeito processual (arguido).

14.7.3. O arguido enquanto sujeito processual

O CPP não define genericamente o que seja um arguido, mas o seu conceito resulta dos
artigos 57º a 59º. Não se pode definir arguido como a pessoa contra quem for deduzida acusação
(57º/1), porque a acusação é apenas um ato praticado no final do inquérito (283º) e, de acordo
com o próprio CPP, já antes desse momento existe a possibilidade de uma pessoa estar
constituída como arguido. A constituição como arguido opera ope legis (58º/1) ou por
comunicação ao visado feita por um órgão de polícia criminal ou autoridade judiciária (58º/2).

Perante o regime legal, previsto nos artigos 57º a 59º do CPP, pode afirmar-se que
arguido é a pessoa formalmente constituída como sujeito processual relativamente a quem
corre um processo que o pode responsabilizar por um facto criminoso. O arguido é assim,
segundo COSTA PINTO, um “suspeito qualificado” porque em relação a ele já ocorreu um dos
factos constitutivos que lhe atribui o estatuto respetivo de sujeito processual 127.

O arguido é, simultaneamente, sujeito e objeto do processo penal. Enquanto sujeito


processual, o arguido tem um importante estatuto jurídico no processo que se concretiza num
conjunto de relevantes direitos de intervenção processual (60º e 61º); enquanto objeto, o arguido
é visado pelos atos processuais que podem limitar a sua liberdade (por exemplo, medidas de
coação, como as previstas nos 196º e ss.) e as suas declarações constituem também um meio de
prova, embora não sejam sujeitas a juramento - ao contrário das testemunhas (140º) - e embora
entre os seus direitos conste expressamente o direito ao silêncio (61º/1, d)). Esta dupla natureza
do estatuto do arguido claramente, evidenciada entre nós no 60º, permite compreender o
cuidado assumido pelo legislador quanto ao momento e à forma de constituição de arguido, em
especial o facto de ser necessário articular a investigação criminal com o momento em que a
pessoa deve ser constituída como arguido para beneficiar (58º), entre outros direitos
processuais, do direito ao silêncio relativamente a factos que a podem incriminar (art. 61º/1, d)).

O estatuto processual do arguido permite-lhe uma participação constitutiva na


declaração do direito do caso concreto, através da concessão que lhe é feita de direitos
processuais autónomos que deverão ser respeitados por todos os outros intervenientes do
processo (60º e 61º). Esta é uma conceção do estatuto processual do arguido desenhada por
MARIA JOÃO ANTUNES, que assente em três vetores fundamentais: (i) o direito de defesa;
(ii) o princípio da presunção de inocência e (iii) o princípio do respeito pela vontade do arguido,
uma decorrência da presunção de inocência. Olhemos para cada um deles em detalhe:

(i) Direito de defesa – é por referência à categoria aberta do direito de defesa que
compreendemos todos os direitos reconhecidos ao arguido em matéria de contraditório (p.ex.
61º/1, a), b) ou g) ou ainda 361º/1). Nas palavras de FARIA COSTA, estes direitos que a lei
processual penal oferece ao arguido podem sumariar-se na possibilidade de este se pronunciar e
contrariar todos os testemunhos ou meios de prova. Grande parte dos direitos que compõem o
estatuto processual do arguido se reportam a este direito de defesa, p.ex. o direito de ser
informado dos factos a si imputados – 61º/1, c) – o direito de assistência por defensor (61º/1, f)),
o direito de constituir advogado (61º/1, e)) ou ainda o direito de requerer a intervenção do
tribunal de júri (13º) ou de apresentar um RAI para controlar a decisão de acusação do MP
(287º/1, a));

(ii) Presunção de inocência – este princípio tem uma incidência direta no estatuto
processual do arguido, prescrevendo a própria CRP, como corolário desta presunção, que o

127
GERMANO MARQUES DA SILVA, por seu turno, define arguido como a pessoa que é formalmente
constituída como sujeito processual e relativamente a quem corre processo que visa a sua eventual pelo
crime que constitui objeto do processo.
arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (32º/2,
CRP, bem como o 6º/2, CEDH e o 48º/1, CDFUE, recebidos em Portugal ex vi 8º, CRP).
Decorre daqui que as fases anteriores ao julgamento não devem prolongar-se para lá do que já
não se possa considerar razoavelmente compatível com a presunção de inocência do arguido.

Este princípio incide, ainda, na parte do estatuto processual do arguido que comporta a
possibilidade de sujeição a medidas de coação e de garantia patrimonial (60º e 61º/3, c)), dele
decorrendo que só poderão ser aplicadas das tais medidas as que ainda se mostrem
comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente ,
como diz FIGUEIREDO DIAS.

Este princípio tem, ainda incidência na sujeição do arguido a diligências de prova, uma
vez que, não obstante tal sujeição, o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao
arguido quando a prova dos factos que lhe são imputados fique aquém da dúvida razoável –
assim se afirma o in dubio pro reo.

Outra decorrência da presunção de inocência que se reflete no estatuto processual do


arguido, merece ser tratada autonomamente:

(iii) Princípio do respeito pela vontade do arguido – este tem especial incidência na
posição processual do arguido enquanto objeto de diligências probatórias (60º e 61º/3, d)). O
arguido está protegido por um estatuto fundado no respeito incondicional pela sua vontade, com
reflexos na matéria de prova, por via do princípio da legalidade da prova obtida nas
supramencionadas diligências (125º, concretizado no 126º onde são vedados meios de obtenção
da prova que implicam compressão ou desconsideração total da vontade do arguido). Outra
manifestação deste respeito pela vontade do arguido será o seu direito ao silêncio e à não
autoincriminação128.

14.7.4. Menores e imunidades de Direito público (Convenção de Viena; arts. 130º, 157º e
196º, CRP)

Quem pode ser arguido? Qualquer pessoa que possa ser autor de um crime. A
capacidade judiciária para ser arguido em processo penal não se confunde com o regime da
imputabilidade criminal, ou seja, o arguido pode ser imputável ou inimputável (20º, CP). Pode,
no caso de inimputabilidade, ser-lhe aplicada uma medida de segurança, mas essa aplicação será
no processo penal e com as garantias do processo penal. O inimputável não deixa, assim, de ser
arguido. Que exceções existem a esta regra da possibilidade universal de constituição como
arguido?

128
Ver mais à frente no Ponto 14.7.12. MARIA JOÃO ANTUNES sinaliza uma miríade de artigos que
concretizam este direito ao silêncio do arguido: 59º/2, 61º/1, d), 125º, 126º, 132º/2, 141º/4, a) e b) e 5,
143º/1 e 2, 144º/1, 343º/1, 344º e 345º/1.
Em razão da idade, os menores de 16 anos não podem ser sujeitos no processo penal
(existe uma lei especial que pondera as situações ilícitas praticadas por menores no quadro de
um regime especial que tem que ver com a intervenção preventiva sobre menores). Ao contrário
dos maiores que sofrem de anomalia psíquica, o menor não pode ser arguido. As medidas a
aplicar-lhes são outras, estabelecidas na lei tutelar educativa (aplicável a menores entre os 12
aos 16 anos).

Assim, podemos operar uma distinção entre a suscetibilidade de responsabilidade penal


que tem natureza substantiva (os inimputáveis não podem ser responsabilizados), e a
suscetibilidade de ser arguido (personalidade judiciária), que tem natureza processual e
representa a suscetibilidade de uma pessoa ser titular de direitos e deveres processuais para se
defender da imputação que lhe é feita.

Outra exceção à suscetibilidade da constituição como arguido brota do regime das


imunidades de Direito publico, nomeadamente as advindas do Direito Internacional Público e
do Direito Constitucional. De facto, os diplomatas e titulares de cargos políticos não podem ser
arguidos nas mesmas condições dos demais agentes.

Existem mecanismos de direito internacional que condicionam o exercício da ação


penal. A convenção de Viena não permite que os diplomatas sejam arguidos, pois este estatuto é
incompatível com o estatuto internacional das garantias diplomáticas. Emergem, neste caso,
interesses públicos que condicionam o exercício da ação penal, desencadeando-se medidas
diplomáticas, pois não se pretende que o direito penal gere conflitos diplomáticos.

Já quanto a titulares de cargos políticos (PR e deputados), estes detêm certas


prerrogativas processuais na mesma lógica das imunidades diplomáticas, a de emergiram
interesses públicos que se impõem ao exercício da ação penal: o interesse público na
realização da justiça penal tem de se compatibilizar com o interesse publico no exercício dos
cargos públicos por parte do seu titular. Isto será fulcral para evitar que o processo penal seja
usado como arma política. Nota: v. artigos 130º/4, 157º e 196º, CRP.

14.7.5. Variação histórica sobre o significado da constituição do arguido

Qual a lógica do CPP de 1987 quanto ao significado da constituição do arguido? A


constituição de um arguido serve o propósito de permitir que uma dada pessoa seja visada no
processo e, com essa investidura processual, permitir também que tenha uma palavra a dizer no
processo. A constituição de arguido era vista como vantagem processual, na medida em que
permitia ao visado ter um certo controlo do processo; mas também como um dever das
autoridades judiciárias competentes, por forma a permitir que o indivíduo possa exercer o seu
direito de defesa integrado no processo.
A partir do momento em que uma pessoa adquire a qualidade de arguido é-lhe
assegurada o exercício de direitos e a sua sujeição a deveres processuais. É um sujeito
processual, podendo intervir ativamente no processo, no quadro do seu estatuto processual
composto por poderes de conformação efetiva do processo. A constituição como arguido
representa então uma garantia da pessoa sobre quem recai a investigação ou foi deduzida
acusação, garantia essa de se poder defender da imputação indiciária/suspeita fundada que lhe é
associada, de se manter em silêncio, enfim, de adotar a estratégia processual que mais lhe
convier, por ordem a salvaguardar a sua inocência.

No entanto, este estatuto acarreta, hoje em dia, pelo menos na prática e socialmente,
uma certa presunção de culpa. Daí resultar para muitas pessoas um grande desconforto quando
são constituídas como arguido devido à presunção social de culpa que a constituição acarreta na
prática (não tanto pelos deveres a que fica sujeito). Do ponto de vista do CPP, o estatuto do
arguido é encarado como uma vantagem de participar ativamente no processo; no entanto, na
vida social, este é visto como desvalioso, fruto da erosão da reputação da pessoa constituída
arguido que este estatuto acarreta.

Foi em razão deste efeito na opinião pública 129 que em 2007 se alteraram os
pressupostos da constituição de arguido, exigindo que existam nos autos indícios de fundada
suspeita da prática do crime. Anteriormente, se havia um processo por suspeita de cometimento
de determinado ilícito típico (mesmo que este resultasse de denúncia anonima) que corresse
contra uma dada pessoa, essa pessoa seria constituída arguida, uma vez que, no inquérito ela
começasse a ser investigada.

O artigo 58º/1 foi, então, alterado nas suas alíneas a) e d) em 2007, tendo sido
acrescentado a estes normativos que não é obrigatória a constituição de arguido de uma pessoa
investigada, sobre a qual não recaia uma suspeita fundada. Para evitar, então, a constituição
automática de qualquer suspeito como arguido, introduziu-se esta exigência da suspeita
fundada. Se uma pessoa for chamada a depor enquanto suspeita (em função de uma qualquer
denúncia, maxime anónima), não basta que preste declarações para que seja constituída
arguida, tem de sobre ela recair uma suspeita fundada da prática do crime ou tem, ela
129
Esta alteração foi uma consequência do processo Casa Pia: existiram muitas denúncias de atos de
pedofilia. No regime anterior, no início do inquérito teriam logo todos os visados de ser constituídos
arguidos, mas isso seria muito desvalioso para as pessoas. Teve-se em linha de conta que, uma vez
constituído como arguido, só se perde essa condição depois de o processo acabar o que é muito oneroso
para a pessoa. Para evitar isto, em função da complexidade de casos da Casa Pia, e também para evitar
que o processo penal fosse manipulado pela opinião pública, alterou-se o regime nos termos indicados no
texto acima. No anterior regime, haviam grandes incentivos a prejudicar a reputação social de uma
pessoa, bastando fazer uma simples denúncia anonima para ela ser investigada e, automaticamente em
função disso, ser constituída arguido. Isto levava a um direcionamento da investigação criminal contra
múltiplas pessoas, podendo tal não configurar qualquer utilidade do ponto de vista da eficácia da
investigação (controlo do processo do exterior). Não é do interesse da investigação que todos os
investigados sejam arguidos.
própria, de o requerer, quando seja objeto da investigação criminal e assim o entenda, por
forma a ganhar vantagens do ponto de vista processual.

Nota: v. artigo 58º.

Em 2013, fez-se outra alteração. Anteriormente, as declarações do arguido no inquérito


ficavam registadas em auto de interrogatório, mas depois não podiam ser valoradas como meio
de prova na audiência de julgamento se o arguido não as reproduzisse de novo nesse momento
processual, ou seja, se se remetesse ao silencio 130.

Este regime (141º/4, b), 61º/1, c), d) e f) e 357º/1 e 2) foi alterado pelo legislador 131,
tendo sido consagrado um direito do indivíduo a não responder às perguntas que lhe sejam
feitas132, mas sendo-lhe avisado no inquérito que tudo aquilo que ele disser nessa fase processual
às autoridades investigadoras pode ser usado contra ele em audiência de julgamento (141º/5) 133,
mediante certos requisitos: (i) desde que o arguido seja informado das consequências da
prestação de declarações, (ii) tenha defensor constituído e que (iii) o teor das mesmas fique
registado, então tais declarações podem ser usadas como meio de prova em fase processual
ulterior, sendo uma fonte fidedigna de informação.

A nível garantístico esta solução não configura quaisquer problemas (direito ao


silêncio). No entanto, alguns problemas surgem em matéria de investigação criminal, na medida
em que este regime faz com que o arguido exerça precocemente o direito ao silêncio, na medida
em que, se prestar declarações no inquérito, estas podem ser usadas contra si na audiência. Em
regra, o advogado do arguido, não sabendo o que se passará no decorrer do processo, aconselha
o seu cliente ao silêncio. Ora, isto gera inconvenientes ao apuramento da verdade material, p.ex.
na criminalidade organizada, onde seria importante que o indivíduo prestasse declarações,
mesmo que as mesmas não constituíssem um meio de prova contra si. Os OPC e autoridades
judiciárias vêm-se privados de informações que o arguido daria espontaneamente se optasse por
colaborar com a investigação.

Em suma, este regime do CPP possui várias garantias de defesa do arguido, mas, ao
mesmo tempo, privou as autoridades de obterem mais informação, na medida em que o direito
ao silêncio seja muito frequentemente esgrimido.

130
Esta solução revela grande diferença face ao direito anglo saxónico, em que não há uma
inadmissibilidade de uso destas declarações, antes o arguido é avisado de que tudo o que disser pode ser
usado contra si no processo penal. Nestes sistemas, as declarações do arguido no inquérito são, então, um
meio de prova que o pode responsabilizar.
131
Esta alteração de regime foi, em grande parte motivada por uma crítica da comunicação social face ao
modelo processual penal, por este não permitir responsabilizar quem admitia a prática de factos
penalmente relevantes no inquérito.
132
A qualidade de arguido é irrenunciável e apenas se pode recusar a prática dos atos cujo direito de
prática a lei confira. O estatuto de arguido em si mesmo não pode ser renunciado.
133
Solução semelhante à descrita na nota de rodapé 106.
14.7.6. Defesa pessoal e defesa técnica (61º, b), 98º, 343º e 361º); assistência obrigatória por
advogado (61º/1, f) e 64º)

A atividade da defesa é a atuação processual que tem por fim favorecer o arguido. E
se é certo que todos os sujeitos processuais podem praticar atos que favoreçam o arguido, é de
esperar que tais atos sejam sobretudo praticados pelo próprio interessado e pelo seu defensor.

A defesa pode ser exercida, em regra, pelo próprio arguido (61º/1, b) e 63º/1, in fine) e
há muitos e importantes atos de defesa que só pessoalmente por ele podem ser praticados,
embora este possa (ou deva, em cerros casos) ser assistido pelo defensor (61º/1, f) e 63º/1). A
obrigatoriedade de defensor em certos atos (64º/1) do processo penal tem sobretudo uma
função de garantia, de controlo da legalidade dos atos processuais e de assistência técnica ao
arguido para que este possa estar bem informado dos seus direitos e deveres processuais e
das consequências jurídicas dos seus atos. É do interesse da justiça que o arguido possa
desenvolver a sua mais ampla defesa, em plena liberdade, o que pressupõe um conhecimento da
tramitação processual e das consequências dos seus atos no processo.

Tem de ser feita uma distinção entre a defesa pessoal, a que é exercida pessoalmente
pelo arguido, e a defesa técnica, a que é exercida através ou com a assistência do defensor: a lei
reserva ao arguido certos atos de defesa para por ele serem exercidos pessoalmente (141º134,
143º, 292º/2, 343º, 361º/1). No 98º encontramos um caso de atos que podem ser praticados
pessoalmente pelo arguido ou através do seu defensor. Finalmente, existem atos que só podem
ser praticados pelo defensor, em que a defesa técnica é considerada essencial no próprio
interesse do arguido (302º - representação do arguido no debate instrutório, 339º, 360º, 423º).
Contudo, depois da intervenção do defensor, o arguido tem ainda o direito de intervir para
completar ou mesmo corrigir a atuação daquele (63º/2).

Olhando com mais detalhe para os atos em que é obrigatória a assistência do defensor,
devemos proceder a uma análise das alíneas do 64º/1, uma concretização do 32º/3, CRP:

- a) e b): A assistência do defensor nos interrogatórios do arguido constitui uma


garantia de liberdade das declarações do arguido e da legalidade do interrogatório, donde que
essas declarações possam depois ser reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento (357º/1,
b). Antes do interrogatório podem o arguido e o seu defensor conferenciar para organizar a
defesa, mas durante o interrogatório é necessário observar o 141º/6;

c) O não cumprimento do 287º/4 no debate instrutório e do 313º/1, c) no despacho que


marca a audiência de julgamento constituem uma irregularidade e uma nulidade dependente de

134
Ver com especial atenção, na senda dos atos pessoais de defesa, o 141º/1 e 6.
arguição (120º/1), respetivamente. No entanto, a falta do defensor no debate instrutório e na
audiência de julgamento constitui uma nulidade insanável do processo (119º/1, c));

d) Esta obrigatoriedade funda-se em razão de especiais qualidades pessoalmente


estruturantes da aptidão do arguido para intervir no processo;

e) Os recursos envolvem questões eminentemente técnicas e, por isso, é necessária a


intervenção de um defensor tecnicamente habilitado;

f) Se as declarações produzem efeitos na audiência, como se prestadas nesse ato, então


se para a audiência é necessária a nomeação de defensor, deve esta ser também necessária
nestes incidentes;

g) Nota: v. 333º/2, 3 e 5 e 334º/1, 2 e 6. De facto, como se extrai do 313º/1, c), nem


sempre é exigida a comparência do arguido na audiência de julgamento;

h) Por exemplo, 221º/3, 223º/2 e 504º/3 – não se diz expressamente que a defesa técnica
é obrigatória, mas enuncia-se o defensor como um dos participantes no ato processual em causa.

14.7.7. O problema da autorrepresentação (6º, CEDH)

Nota: aqui se transcreve o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:

Direito a um processo equitativo

1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo
razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a
determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer
acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de
audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo,
quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática,
quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou,
na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a
publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.

2. Qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não
tiver sido legalmente provada.

3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:

a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da
causa da acusação contra ele formulada;

b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;


c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para
remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses
da justiça o exigirem;

d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório


das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;

e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no
processo.
Coloca-se a questão de saber se a assistência obrigatória por defensor viola o artigo
acima transcrito, designadamente o direito de autorrepresentação do arguido, em face do seu
nº3, c)? PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que sim, uma vez que esta norma da
CEDH é aplicada diretamente no nosso OJ ex vi 8º, CRP, havendo, por isso, uma
inconstitucionalidade na obrigatoriedade de assistência por defensor 135.

COSTA PINTO acha que não: a obrigatoriedade de defensor é criada no interesse do


arguido e faz parte do nosso modelo processual penal como meio de legitimação da justiça
penal, fruto do não abandono do arguido no processo quando ele careça de ajuda técnica.

Além do mais, o CPP dá prevalência à defesa pessoal, algo bem patente no 63º/2: se
existir alguma divergência entre o defensor e o arguido quanto à defesa por aquele exercida, o
arguido pode retirar a eficácia ao ato do defensor mediante declaração expressa, tem uma última
palavra de controlo dos atos do defensor. Aquilo que o CPP veda, no sentido do direito
constitucional de defesa do arguido, é que ele seja julgado sem defensor.

Um arguido que esteja simultaneamente a pensar na sua defesa pessoal e nos aspetos
técnicos da mesma, está a atuar em dois patamares, exigentes, aumentando a probabilidade de
prejudicar um destes dois níveis de defesa. A autorrepresentação cria vulnerabilidades jurídicas
e pessoais muito significativas. Daí que o nosso OJ estabeleça no 64º/1 a obrigatoriedade de ele
ser assistido num destes campos da sua defesa (a técnica), podendo ainda o arguido ter a última
palavra quanto ao sentido/modo em que ela seja exercida. COSTA PINTO elogia este equilíbrio
criado pelo legislador, considerando que não viola quaisquer normas constitucionais ou
supranacionais.

Já GERMANO MARQUES DA SILVA argumenta no mesmo sentido de COSTA


PINTO, entendendo que nada impede a lei de reservar certos atos processuais ao advogado e de
impor a assistência do arguido por advogado, mesmo contra a vontade daquele, utilizando o
argumento já apresentado de COSTA PINTO relativo ao 63º/2. Por isso, o arguido nunca pode,
objetivamente, ser prejudicado com a imposição de um advogado. Acresce a isto que a

135
Ver anotação ao artigo 62º, no seu CPP anotado de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUER, pp.191 –
197.
regularidade do procedimento penal, que cumpre ao advogado fiscalizar e promover, não é
apenas do interesse do arguido, mas também do interesse da justiça.

COSTA PINTO: podem, de facto, haver abusos quanto ao defensor oficioso, sobretudo,
quando não há compatibilidade entre o defensor e arguido, o que pode prejudicar a defesa deste,
mas isso não é um problema a tratar nesta sede, antes no campo da articulação entre o MP e o
poder político, no sentido de melhor controlar o processo de nomeação do defensor oficioso.

14.7.8. Regime de constituição do arguido: factos (57º - 59º) e formalidades (58º/2 e 4): a
proibição de prova do artigo 58º/5

Na abertura de inquérito não é necessário haver arguido. Um inquérito, em regra,


começa com uma abertura de investigação em que não há arguidos e pode evoluir sem arguidos
constituídos.

Ex.: é encontrado um corpo e não se sabe quem foi o autor do homicídio, nem há
suspeitos da prática desse crime. Aí, o inquérito decorre para apurar quem foi o autor. Se se
concluir por um suicídio, a investigação vai dirigir-se a ver se alguém teve participação nele nos
termos do 135º, CP, ou seja, a investigação continua. Se não se determinar quem é o autor dos
factos o processo tem de ser arquivado nos termos do 277º (em articulação com o 283º).

Sem um arguido constituído não pode haver acusação: esta pressupõe um arguido
devidamente identificado contra o qual a acusação é deduzida. A falta de arguido gera nulidade
da acusação e até há quem diga que tal vício será uma inexistência, pois nem teremos, nestes
termos, uma acusação na medida em que a ninguém são imputados os factos nela constantes.
Para GERMANO MARQUES DA SILVA, a falta de arguido no processo, a partir do momento
em que seja necessária a sua existência (vide acusação ou requerimento instrutório do
assistente), gera a inexistência jurídica dos atos que respeitem ao arguido.

Como adquire o arguido adquire esse estatuto? Em função de cláusulas tipificadas na


lei, isto é, os factos que geram a sua constituição como arguido estão tipificadas na lei. Que
cláusulas (normas legais) são estas? A constituição de arguido está prevista em três artigos: 57º,
58º e 59º.

(i) - 57º:

A dedução de acusação (art. 283º) ou a apresentação de um requerimento de abertura de


instrução (art. 287º) fazem com que a pessoa visada por estes atos fique, ope legis, constituída
como arguido (57º/1).
No caso do requerimento de abertura de instrução, a prática judiciaria não tem cumprido
este regime de automatismo na constituição do arguido, quando a pessoa não foi constituída
arguido na fase de inquérito. Quando o MP arquiva um processo no inquérito e o assistente
pretende controlar este arquivamento na instrução, a jurisprudência acha que o RAI visa
controlar se haveria alguma razão para, afinal, constituir o indivíduo como arguido, pelo que
não se deve constituir a pessoa automaticamente como arguido – procede-se a uma interpretação
restritiva do 57º/1 no sentido da não automaticidade da constituição de alguém como arguido,
em função da onerosidade que este estatuto configura.

Para GERMANO MARQUES DA SILVA, não se pode falar aqui numa constituição
ope legis pois temos o 57º/3 que, ao remeter para o 58º/2 a 6, obriga a uma constituição
realizada por comunicação, oral ou escrita, feita ao visado, de que a partir desse momento deve
considerar-se arguido num processo penal.

(ii) – 58º136:

a) É obrigatória a constituição como arguido da pessoa visada por um inquérito


criminal, em relação à qual haja suspeita fundada da prática de um crime, quando esta prestar
declarações perante qualquer autoridade judiciária 137 ou órgão de polícia criminal 138. Esta
exigência da suspeita fundada implica necessariamente um juízo sobre os indícios da prática de
um crime já existentes nos autos. Nota: v. ainda o 272º/1;

b) É obrigatória a constituição como arguido havendo uma necessidade de aplicar uma


medida de coação ou de garantia patrimonial (196º e ss., 227º e 228º). Esta modalidade de
constituição tem que ver com a necessária audição do arguido (194º/4) que deve preceder a
aplicação de tais medidas139.

c) Deve ainda uma pessoa ser constituída arguido quando seja realizada a detenção de
um suspeito, nos termos dos art. 254º a 261º. Daí que, segundo COSTA PINTO, a detenção em
flagrante delito dê início ao processo, porque se há logo arguido, um estatuto eminentemente
processual, não faz sentido que não haja processo. Por vezes pensa-se, erradamente, que as
garantias do detido começam coma apresentação ao juiz, mas isto é errado, começam na
detenção;

d) É, por último, obrigatória a constituição como arguido quando seja levantado um


auto de notícia (243º) que dê uma pessoa como agente de um crime e o mesmo lhe seja
136
Notar que, anteriormente e como acima foi dito (Ponto 14.7.5.), a alínea a) e a alínea d) tinham outra
redação em que não se exigia a ponderação sobre se estávamos perante uma suspeita fundada ou
infundada.
137
1º/1, b).
138
1º/1, c).
139
Note-se, contudo, que as medidas desta natureza podem, em certos casos, ser aplicadas sem que seja
ouvido o visado (194º/4).
comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada (repete-se aqui a necessidade de
efetuar um juízo sobre os indícios da prática de um crime em momento prévio ao da
constituição como arguido).

(iii) - 59º:

Nos casos apresentados supra (57º e 58º), a constituição como arguido está relacionada
com certos atos processuais. Os casos do 59º reportam-se a uma realidade diferente:

59º/1: Se, durante a inquirição a uma pessoa não arguida, surgir a suspeita de que essa
pessoa inquirida cometeu um crime. Neste caso, a entidade que realiza a inquirição deve
suspendê-la de imediato e proceder à declaração de constituição de arguido, prevista no art.
58º/2. A constituição de arguido visa assegurar o direito de defesa e o direito ao silêncio. A
suspeita de comissão de um crime que é relevante para efeitos da aplicação do 59º/1 não é
apenas a autoria, mas sim qualquer forma de envolvimento no facto que possa gerar
responsabilidade criminal, o que abrange as diversas modalidades de comparticipação criminosa
(26º e 27º, CP), bem como quaisquer atos concomitantes ou posteriores ao crime principal,
como, por exemplo, o auxílio ao criminoso (232º, CP).

59º/2: Finalmente, admite a nossa lei a constituição de arguido a pedido do próprio


suspeito, quando o mesmo for objeto de uma diligência (depor como testemunha para factos
pelos quais possa ser incriminado, revistas, buscas, apreensões de coisas que lhe pertencem,
etc.) destinada a comprovar a imputação de um facto criminoso que pessoalmente o afete.

Os dois números do 59º visam assegurar desde logo o direito de defesa,


consubstanciado no direito a não responder a perguntas sobre factos que lhe forem imputados.
Daí que a inquirição de uma pessoa sobre factos delituosos por ele praticados só possa ter lugar
depois da sua constituição como arguido. Procura-se claramente garantir o direito de defesa e o
direito ao silêncio, evitando que, de forma desleal e inadequada ao processo de matriz
acusatória, uma pessoa seja induzida a prestar declarações que depois serão usadas contra ela,
sem que se aperceba desse facto no momento em que as presta. A redação da norma e a sua
finalidade não permitem reconhecer à entidade em causa o poder de recusar a constituição
de arguido neste caso: a letra da lei não consente essa margem de apreciação, razão pela qual,
verificados que estejam os pressupostos da constituição de arguido a pedido, esse estatuto tem
de ser formalmente atribuído à pessoa em causa. Está em causa, portanto, um direito
processual potestativo de uma pessoa se constituir como arguido, pois, uma vez exercido pelo
seu titular, a sua procedência não depende de qualquer apreciação, maxime pela entidade que
procede à inquirição.
Por outro lado, a norma do 59º procura evitar que as entidades que realizam a inquirição
retardem a constituição de arguido de forma a conseguirem obter, por meio das declarações do
agente enquanto mera testemunha vinculada a dizer a verdade, provas para a imputação do
facto, submetendo desde logo, verificados os seus pressupostos, as declarações das pessoas
inquiridas ao regime do 58º/5140. Este artigo vem dizer que a tomada dessa atitude pelas
entidades a realizar a investigação não vale de nada, pois a prova obtida nesses termos não pode
ser utilizada no processo. Esta ratio do 59º aconselha, efetivamente, a que não se reconheça às
entidades que realizem a investigação o poder de recusar tal pedido, pois caso contrário poderia
ficar frustrada tal finalidade.

Ex.: No Caso Maddie, a partir de um certo momento, os OPC consideraram os pais da


rapariga desaparecida suspeitos do seu rapto e posterior homicídio. Estes estavam a prestar
depoimento na qualidade de testemunhas, tendo o acompanhamento, lícito, de um advogado. A
um certo momento, as perguntas feitas indicavam que eles eram suspeitos de ter praticado os
factos a ser investigados. Assim, os pais, que se assumiam como vítimas, estavam a ser tratados
como suspeitos e, deste modo, exerceram esta prerrogativa de se constituírem como arguidos.
Os pais fizeram-no porque o estatuto de testemunha obrigava-os a continuar a responder às
perguntas que lhes eram feitas. Assim, interromperam a inquirição a que estavam a ser sujeitos
com esta constituição como arguidos, pela violência a que estavam a ser sujeitos no decurso da
inquirição.

A constituição de arguido exige, em todos os casos, a observância das formalidades


descritas no art. 58º/2 e 4: o dever de informação, oral ou por escrito, quanto à constituição do
arguido e explicação dos direitos e deveres que compõem este estatuto; e a entrega de um
documento onde constem a identificação do processo, do defensor (se o mesmo já tiver sido
nomeado) e dos direitos e deveres processuais descritos no art. 61º. A violação destas
formalidades gera uma irregularidade processual. Não estamos perante uma nulidade do
processo (119º e 120º), mas sim perante uma mera irregularidade processual (art. 123º) que se
traduz numa ineficácia relativa da prova obtida com a preterição das formalidades exigidas: o
art. 58º/5 proíbe que as declarações prestadas pelo visado sejam usadas como meio de prova.

140
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE nota o facto de o 59º/3, que remete para o 58º não ter
atualizado tal remissão no sentido de abranger os números 3 a 5 do 58º (apenas remete para os números 3
e 4, numa falha de atualização numérica pós-revisão destes artigos). Assim, o 59º omite a sanção a aplicar
pelo incumprimento do seu regime, o que configura um diferente tratamento destes casos face aos 58º
sem qualquer justificação material, o que constitui uma intromissão abusiva na vida privada da pessoa
visada na inquirição. Assim, o 59º/3 é inconstitucional ao não remeter também para o nº5 do 58º, por
violação do 32º/1 e 8, CRP. De facto, temos uma nulidade probatória (32º/8, CRP) que não pode ser
aplicada por falta de assento infraconstitucional expresso. No mesmo sentido, SILVA DIAS.
A proibição de prova é um desvalor intenso da prova. A prova não é admissível, mas o
que releva é que não pode ser usada no processo (125º, a contrario quando articulado com o
58º/5). O vício de que esta prova padecerá é o da inadmissibilidade de uso.

TERESA PIZARRO BELEZA e COSTA PINTO consideram que, da letra e da ratio do


58º/5, resulta que a proibição de valoração da prova incide apenas sobre as declarações
prestadas após os factos que obrigariam à constituição formal como arguido e não sobre as
declarações anteriores. Resulta igualmente do espírito desta norma que esta proibição só impede
que as declarações sejam usadas contra o declarante e não que sejam usadas probatoriamente
contra terceiros, ou em favor do declarante.

A constituição de arguido é feita pela autoridade judiciária ou de polícia criminal


competente para o ato em que a constituição de arguido deve ser feita. Se esta constituição for
feita por OPC, aplicamos o 58º/3: a validação deste ato processual do OPC (que este comunica
ao MP no prazo de 10 dias) tem de ser feita pelo MP no prazo de 10 dias. Se esta validação não
tiver lugar, a pessoa perde o estatuto processual de arguido que lhe tinha sido comunicado pelo
OPC. De referir que, tendo havido constituição de arguido pelos OPC, embora não validada
pelo MP, as declarações anteriormente prestadas foram-no com todas as garantias exigidas (ele
foi constituído arguido, assumindo que o OPC cumpriu os restantes pressupostos do 58º), pelo
que não faria sentido a invalidação dessa prova (58º/6).

Por último, notar que a qualidade de arguido se conserva durante todo o processo
(57º/2); e que a não constituição de arguido nos casos em que a mesma é obrigatória (estudámo-
los supra) constitui uma nulidade dependente de arguição, nos termos do 120º/2, d), por se
preterir um ato legalmente obrigatório.

14.7.10. Estatuto do arguido (61º): direitos e deveres

O estatuto ao arguido é composto por um acervo significativo de direitos e deveres,


contido no 61º, que a pessoa adquire com a constituição como arguido (60º).

Num processo de matriz inquisitória, o estatuto do arguido é essencialmente o de objeto


do processo, caracterização, por seu turno, incompatível com a matriz acusatória do processo
penal, vigente em Portugal. Nesta, o arguido, não deixando de ser um meio de prova, é
fundamentalmente um sujeito processual, com um importante complexo de direito e deveres de
natureza processual.

A enumeração do 61º não é exaustiva, existindo ainda outros direitos e deveres do


arguido dispersos pelo CPP (89º, 140º/1, 287º/1, a), 325º/2, 332º/7, 334º/2), além de outros que
não integram exclusivamente o estatuto de arguido (ninguém está isento do dever de colaborar
com as autoridades judiciárias para a realização da justiça; podemos ainda vislumbrar direitos
que o arguido detém independentemente da sua qualidade processual, como p.ex., os do 25º,
32º/8, 26º, 32º, 34º, CRP).

O 61º/1 indica-nos os direitos do arguido:

a) De presença: Nos atos que podem afetar as suas pretensões processuais e que devem
ser, portanto, objeto de contraditório. Revela-se este direito no debate instrutório e na audiência
de julgamento (300º e 332º);

b) De audiência: corresponde à possibilidade de ser ouvido e, assim, procurar


influenciar a decisão da autoridade judiciária em causa. Este direito será mais limitado no
processo preliminar (272º/1, 141º/1, 194º/4) e obrigatório na audiência de discussão e
julgamento (343º e 361º). Literalmente, este preceito não abrange os atos a praticar pelo o MP
(só os do tribunal de julgamento e do juiz de instrução), pelo que estes não carecem de audição
prévia do arguido. Deve, no entanto, entender-se, por interpretação extensiva, que o preceito é
aplicável a atos “materialmente jurisdicionais” que o CPP permite que sejam praticados pelo
MP (v.g. arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena do 280º);

c) De informação: Ver 141º/4, d);

d) Ao silêncio141: O arguido deve ser informado de que goza do direito ao silêncio antes
do interrogatório, com a explicação que se mostre necessária (141º/4, 143º/2, 144º/1 e 343º/1).
Este silêncio não pode ser interpretado como uma presunção de culpa pois o arguido presume-se
inocente (32º/2, CRP ou 343º/1, in fine) – para assegurar o efeito útil do direito ao silêncio, o
seu exercício não pode ser valorado pelo tribunal.

De referir que, a lei não estabelece qualquer sanção para o arguido que, prestando
declarações sobre os factos que lhe forem imputados, falte à verdade. Se faltar à verdade não
incorrerá no crime de falsas declarações (exceto na parte respeitante à sua identidade e
antecedentes criminais, quando a lei exija a resposta, que constituirá, assim, um dever nos
termos do 61º/3, b)) por beneficiar de uma causa de desculpa (por inexigibilidade). Não se fala
num direito de mentir, mas simplesmente da não punição da mentira;

e) e f) A defensor e a defender-se ele próprio: Esta é uma importante garantia de


defesa do arguido, que não tem, em geral, a serenidade, nem a liberdade de movimentos, nem a
preparação jurídica necessária para estruturar eficazmente a sua defesa. O arguido pode
constituir advogado em qualquer altura do processo (62º/1), mas pode também solicitar que o
tribunal lhe nomeie um nos termos da alínea e);

141
Ver Ponto 14.7.12. deste Resumo.
g) De intervenção: Não se refere nesta alínea o direito de intervir noutras fases
processuais que não o inquérito ou a instrução, mas o arguido não deixa de o ter na fase de
audiência, fase em que a sua presença e interrogatório são até obrigatórios;

h) De informação dobre os seus direitos: Ver 58º/2, in fine e 4, 141º/4, a), 143º/2 e
144º/1.

i) De recurso: Ver 399º e ss.

Já o 61º/3 indica-nos os deveres do arguido:

a) De comparência: Ver 111º/1, a). A falta injustificada do arguido é cominada com


sanções económicas (116º e 117º).

b) De responder com verdade sobre a sua identidade: Ver 141º/3, 143º/2 e 144º, sob
pena de eventual preenchimento dos ilícitos-típicos referidos no 348º e 348º-A, CP.

c) Prestar termo de identidade e residência logo que assuma a qualidade de


arguido: esta é uma medida de coação regulada no 196º, que se deve consultar, com especial o
nº3.

d) Sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coação e de garantia


patrimonial: No que toca às diligências probatórias, tem o arguido de se sujeitar a todas as que
não forem proibidas por lei (125º) como por exemplo as do 140º, 146º, 147º, 150º, 151º, 171º e
174º. Quanto às medidas de coação e garantia patrimonial, apenas se deve o arguido submeter
às que forem previstas por lei (191º). Decorre de tal situação de sujeição a proibição da criação
de obstáculos a diligências probatórias e à aplicação das medidas de coação e de garantia
patrimonial. De facto, o estatuto do arguido é não só o acervo dos seus direitos, sendo também
composto por situações jurídicas passivas, entre as quais as sujeições.

Ex.: existe um cofre na casa do arguido e os OPC pedem para que este o abra ou que dê
informação sobre o seu conteúdo. Tem o arguido o dever de fazê-lo? Está sujeito ou não se pode
autoincriminar? O legislador resolve esta questão quanto à criminalidade informática (lei anexa
ao CPP, no seu artigo 14º): pode o investigador pedir ao arguido que desencripte a informação
ou dê a password de um equipamento eletrónico? O legislador considerou que tal não é
possível, considerando que o arguido não tem o dever de dar tais informações, sendo que esta
resposta não deve ser dada em termos absolutos, pois deve haver uma articulação entre os
direitos e deveres do arguido e os interesses da investigação criminal em cada caso concreto, a
ponderar pelo juiz.

14.7.11. O estatuto do defensor (62º) e a relação com o arguido (61º/1, f), 179º/2 e 187º/5)
O defensor em processo penal tem o estatuto de sujeito processual. O direito de escolher
defensor e de ser por ele assistido nos vários atos processuais (61º/1, f)) constitui uma das
garantias de defesa do arguido consagradas no 32º/3, CRP 142, onde se estatui que a lei especifica
os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória. É esta obrigatoriedade que
aponta precisamente no sentido de o defensor ter uma posição de sujeito no processo penal.

Ao defensor não cabe uma mera representação dos interesses do arguido, mas antes um
papel de órgão de administração da justiça que atua exclusivamente no interesse da defesa.
Deve, por isso, haver atos em que a assistência por defensor é obrigatória, o que faz dele um
sujeito processual e não um mero interveniente no processo – a lei confere-lhe, para o efeito,
poderes de conformação efetiva da evolução da instância.

Nota: v. o Ponto 14.7.6., em que se trata detalhadamente os vários casos em que a


assistência por defensor é obrigatória, indicados no 64º/1.

Fora dos casos previstos no 64º/1, poderá sempre ser nomeado defensor ao arguido, se
as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou conveniência de ele ser assistido (64º/2).
O defensor é, ainda, obrigatoriamente nomeado se não houver advogado constituído quando for
deduzida acusação ou requerida a abertura da instrução (64º/3 e 4 e 287º/4).

A não comparência do defensor nos atos processuais em que a lei o exigir constitui uma
nulidade insanável (119º, c)).

A atuação do defensor é feita exclusivamente no interesse do arguido, pelo que se


justifica que atue ainda que sem ou mesmo contra a vontade deste, sempre dentro dos limites
postulados no 63º/2. Ainda segundo o 63º, mas olhando o seu nº 1, vemos que o defensor exerce
os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este.

Pode o arguido constituir advogado em qualquer altura do processo (62º/1).


Diferentemente do que já sucedeu no OJ português, exige-se hoje que a defesa seja técnica.
Aponta nesse sentido o 62º/1, bem como o 330º/1, na parte em que se referem à substituição do
defensor por outro advogado ou advogado estagiário e já não à substituição por pessoa idónea
que sucedia na versão original no Código. Na versão atual, o papel de defensor está
exclusivamente reservado ao advogado/advogado estagiário.

Além da já destacada assistência nos atos processuais por parte do defensor, o 61º/1, f)
destaca ainda que o arguido goza, em qualquer fase do processo, de, enquanto detido,
comunicar, mesmo em privado, com o seu defensor. Esta garantia de incomunicabilidade vale

142
Esta norma é complementada pelo 20º/1, CRP, que determina que a justiça não pode ser denegada por
insuficiência de meio económicos, conferindo aos mais necessitados proteção jurídica no processo penal
na modalidade de nomeação de defensor oficioso ao arguido.
ainda, expressamente, no momento prévio ao primeiro interrogatório judicial em crimes de
terrorismo e demais criminalidade violenta e organizada, como nos diz o 143º/4 143.

É, nesta senda, proibida (179º/2) a apreensão e qualquer outra forma de controlo da


correspondência entre o arguido e o seu defensor, sob pena de nulidade de tais diligências e da
prova nelas recolhida (que será de uso inadmissível nos termos do 126º/3), salvo se o juiz tiver
fundadas razões para crer que aquela correspondência constitui objeto ou elemento do crime. É,
ainda, proibida, nos termos do 187º/5, a interceção e a gravação de conversações ou
comunicações entre o arguido e o defensor, salvo se o juiz fundadamente considerar que elas
constituem objeto ou elemento do crime.

14.7.12. Garantia contra a autoincriminação e direito ao silêncio: 61º/1, d), 343º/1 e 345º/1

O direito ao silêncio significa que o inquirido, sendo arguido, pode não responder a
perguntas que lhe são feitas (61º/1, d), 343º/1 e 345º/1). Este direito não vem consagrado na
CRP, nem a mais lata garantia contra a autoincriminação.

No entanto, a garantia do direito ao silêncio é imanente a qualquer estrutura do processo


penal que seja acusatória, ao contrário do modelo inquisitório que procura a confissão a todo o
custo como meio essencial de prova, mesmo que se force o arguido a colaborar. O modelo
acusatório traz também a garantia contra a autoincriminação, uma garantia legal de que o
arguido não tem de colaborar com o processo se essa colaboração redundar na sua acusação.

Estes dois direitos não se confundem, pode em alguns sistemas haver um e não haver
outro. Por exemplo, há sistemas em que o indivíduo pode não ter o direito ao silêncio,
permitindo à investigação exigir que o arguido responda a todas as perguntas feitas, mas
consagra-se uma garantia contra a autoincriminação – a resposta às perguntas não pode ser
utilizada contra a pessoa que responde. Para que serve, então, a não concessão do direito ao
silêncio ao indivíduo? Para obter prova relevante sobre a responsabilidade criminal de terceiros.

143
O 143º/4 estabelece uma incomunicabilidade entre o detido e qualquer pessoa neste tipo mais grave de
crimes. A ressalva que lhe é feita, permitindo ainda assim que o detido comunique com o seu defensor foi
determinada pelo TC, no Ac. nº7/87. Considerou o Tribunal que estender esta incomunicabilidade ao
arguido violaria o 32º/3, CRP. Para o sustentar, afirmou que a assistência abrange não apenas a simples
presença física do defensor nos atos do processo, mas também o direito de o arguido comunicar com ele.
Não tendo nenhuma destas garantias consagração constitucional 144, como é que as
mesmas se fundamentam? É possível reconduzi-las à CRP? Sim, existindo várias teses
diferentes que dão resposta a esta magna questão:

(i) Há quem defenda que o direito ao silêncio e a garantia contra a autoincriminação se


reconduzem à estrutura acusatória do processo penal (32º/5, CRP). COSTA PINTO considera
esta referência possível, mas muito imprecisa, podendo implicar uma amplitude enorme da
significação da estrutura acusatória do processo penal como garantia constitucional.

(ii) Há, ainda, quem defenda que estas garantias estão contidas na referência
constitucional à dignidade da pessoa humana (1º, CRP). Ora, parece duvidoso que o direito ao
silêncio ou contra a autoincriminação se possa enquadrar neste princípio fundamental, pelo
simples facto de este entendimento negar tais direitos às pessoas coletivas (que, naturalmente,
não são humanas. Esta tese levaria a que nem todos os arguidos tivessem um direito ao silêncio
e contra a autoincriminação, o que constituiria uma limitação inconstitucional e inaceitável do
estatuto do arguido.

COSTA PINTO considera, portanto, que a estrutura acusatória e a dignidade da pessoa


humana são boas maneiras de enquadrar constitucionalmente o direito ao silêncio e a garantia
contra a autoincriminação, mas não são suficientemente precisos para os poderem fundamentar
de forma completa e precisa.

Como devemos, então, arrimar estes direitos na CRP? COSTA PINTO considera que tal
terá de ser feito através dos princípios constitucionalmente consagrados da presunção de
inocência (32º/2, CRP) e do direito de defesa do arguido (32º/1, CRP): considerarmos o arguido
inocente até prova em contrário e aplicarmos esta visão à tramitação do processo penal, coloca o
ónus da prova da responsabilidade do arguido em quem deduz a acusação: o MP. Se assim é,
então o arguido não tem o dever de colaborar com a investigação, um tal dever seria
incompatível com a presunção da sua inocência, sempre que exista um risco de ele ser
responsabilizado. Além disso, do ponto de vista processual, o direito ao silêncio pode ser visto
como uma manifestação do seu, mais lato, direito de defesa: cabe ao arguido decidir como se
comporta no processo, em função da sua estratégia de defesa, podendo optar, com toda a
liberdade, por falar ou não falar. Em suma, cabe à vontade do arguido determinar, à luz destes
dois princípios fundamentais, como será a sua postura processual, podendo esta redundar numa
não colaboração (legítima) com as entidades que conduzem a investigação criminal.

JOANA COSTA sinaliza que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do


Homem considera que tanto o direito ao silêncio como o direito à não autoincriminação são

144
Outros textos constitucionais, maxime a Constituição espanhola, consagram tanto o direito o silêncio
como a garantia contra a autoincriminação.
essências à ratio do 6º, CEDH (apesar de nela não serem expressamente mencionados),
enquanto núcleo do direito a um processo equitativo, tendo na sua razão de ser a ideia de
proteção do acusado contra o exercício impróprio de poderes coercivos pelas autoridades que
exerçam a ação penal. Ainda segundo o TEDH, estes dois direitos relacionam-se intimamente
coma presunção de inocência (6º/2, CEDH), enquanto pressuposto segundo o qual a acusação,
num processo criminal, deverá provar a sua tese contra o acusado sem o recurso a elementos de
prova obtidos através de métodos coercivos ou opressivos, com desrespeito pela vontade deste.

Há quem diga que esta tese de COSTA PINTO subalterniza o direito ao silêncio,
colocando-o em subordinação face ao direito de defesa do arguido. Ora, o direito de defesa é
uma garantia fundamental; e dizer que o direito ao silêncio é uma manifestação desse direito
fundamental é dar-lhe esse mesmo estatuto de direito fundamental, pelo que não pode proceder
este argumento contra a tese exposta supra.

A principal vantagem desta tese é que por ela se reconhece o direito ao silêncio às
pessoas coletivas, ao contrário de quem o ilidia da esfera jurídica de tais sujeitos, por fundar tais
direitos na dignidade da pessoa humana. Esta extensão do direito ao silêncio e da garantia
contra a autoincriminação às pessoas coletivas é algo consentâneo com o 12º/2, CRP.

Por último, e antes de especificar o conteúdo do direito ao silêncio, é importante notar


que o mesmo seria inutilizado se não comportasse, para lá do direito a não responder a
perguntas, a garantia legal (343º/1, in fine e 345º/1, in fine 145) de que a opção pelo silêncio do
arguido não será valorada para efeitos de imputação de responsabilidades ao arguido (contra
ele): esta garantia corre no sentido do princípio da presunção de inocência.

14.7.12.1. Conteúdo do direito ao silêncio: declarativo/material? Direito a não colaborar


com a investigação e dever de sujeição a diligências de prova (61º/3)

O direito ao silêncio tem os seus contornos legais fundamentalmente desenhados no


CPP. Este direito comporta um conteúdo essencialmente declarativo, mas será que pode,
igualmente, assumir um conteúdo material, ou seja, outras formas de declaração que não sejam
estritamente declarativas? Por outras palavras, o conteúdo do direito ao silêncio é um direito do
arguido a não responder a perguntas ou, também, o de não participar em diligencias de prova
que, possivelmente, o incriminem (p.ex. um direito de não entrega de certos objetos)?

Ora, no CPP o conteúdo declarativo do direito ao silêncio vem expressamente


consagrado. Já um eventual conteúdo material deste direito não é expressamente previsto. Aliás,
existem alguns regimes avulsos ao CPP, em que é expressamente consagrado algo incompatível
com um direito ao silêncio material: um dever do arguido de colaboração processual.

145
Esta garantia é retirada da expressão sem que isto o possa desfavorecer.
Ex.: em matéria de criminalidade fiscal, as pessoas coletivas têm de ter uma
contabilidade organizada (ou seja, um registo exaustivo de todas as suas operações financeiras),
para facilitar o registo dos seus rendimentos e demais matéria tributável. As pessoas singulares
têm, igualmente, de declarar os seus rendimentos e demais bases de tributação. Estes são
deveres acessórios à obrigação fiscal principal, cujo incumprimento é, por si só, um crime. Estes
deveres servem ainda para permitir a sindicância do incumprimento da obrigação fiscal em
contexto penal (p.ex. serão informações úteis à investigação de eventuais evasões fiscais).

Voltando ao CPP, este regula um direito ao silêncio no seu sentido mais estrito
(declarativo) e, quanto, às demais diligências de prova (as que não envolvam declarações orais),
coloca o arguido numa situação de sujeição (61º/3, d)). Isto significa que o arguido tem o dever
de nelas colaborar? Não. O arguido está, isso sim, impedido de criar obstáculos ao exercício da
ação penal nestas diligências - esta é a verdadeira extensão da sujeição do 61º/3, d). Assim se
compatibiliza a sujeição do 61º/3, d) com um direito ao silêncio na sua vertente material 146 – o
arguido pode recusar colaborar em qualquer diligência de prova, só não pode é criar obstáculos
ao exercício daquela específica ação penal, sob pena de ser compelido à prática de certos atos
(172º/1), esta sendo a cominação da desobediência processual (por incumprimento da
supramencionada sujeição) entendida deste modo.

Ex.: numa busca domiciliária autorizada por entidade competente para o efeito, o
arguido está num estado de sujeição – não pode obstar a que ela seja feita. No entanto, pode
recusar-se a colaborar nela de qualquer maneira, i.e., a entregar chaves ou certos objetos, etc.
Pode o arguido recusar-se a entregar a alegada arma do crime, na media em que este
comportamento expressará uma declaração de culpabilidade ou, no mínimo, assumirá um
sentido incriminador.

O TC tem usado um critério interessante nesta matéria de desenhar a fronteira entre um


direito a não colaborar com diligências de prova e a sujeição às mesmas: o arguido pode ser
compelido a realizar uma diligência probatória (nos termos do 63º/1, d) e do 172º/1) quando o
resultado da mesma é incerto no momento em que ela se realiza.

Ex.: uma recolha de saliva ou de qualquer outro vestígio biológico de um arguido por
força a traçar o seu ADN. Este pode ou não coincidir com o material genético constante das
provas de um dado ilícito (o corpo da vítima ou a arma usada num crime de homicídio, p.ex.).
Esta diligência de prova em si não tem um conteúdo incriminatório, é neutra, podendo o seu
resultado ser (ou não) favorável ao arguido. Nestes casos em que as diligências probatórias não
tenham em si mesmas um conteúdo incriminatório, existe um dever de sujeição a elas 147. Em
146
Que brota da garantia contra a autoincriminação já tratada supra.
147
O TC considerou, no seu acórdão nº 155/2007, que a garantia contra a autoincriminação não abrange a
recusa em colaborar numa colheira de material biológico do arguido. No acórdão nº 14/2014, considerou
diligências com conteúdo incriminatório, o arguido pode recusar colaborar nelas, dando vazão
ao seu direito ao silêncio, enquanto fundado no princípio da presunção de inocência.

Diz o TC, apoiando-se na jurisprudência do TEDH e do TC Espanhol, que a garantia


contra a autoincriminação e o direito ao silêncio apenas se referem a contribuições do arguido
de conteúdo diretamente incriminatório, não tendo o alcance de integrar a faculdade de se poder
subtrair a meras diligências neutras de prova. Em recolhas de vestígios biológicos ou testes de
alcoolemia, p.ex., não há uma declaração em sentido lato do indivíduo (suscetível de o
incriminar), mas uma mera tolerância de que sobre ele recaia uma especial modalidade de
perícia de resultado incerto. Assim, não pode o arguido recusar-se a participar nelas.

Nota: v. sublinhados e anotações no Ac. nº 155/2007, TC, nomeadamente no ponto


12.1.5 desse acórdão.

Não há uma proibição de autoincriminação no CPP, o individuo pode-se autoincriminar,


desde que o faça no contexto de uma submissão a diligências de prova neutras (veja-se, no
exemplo acima, que o ADN corresponde ao encontrado no corpo da vítima, o arguido sujeitou-
se à recolha de saliva e daí resultou a sua incriminação). Aquilo que existe, no nosso
ordenamento processual penal, é uma garantia contra a autoincriminação, i.e., o arguido não é
obrigado a submeter-se a atividades probatórias com um conteúdo incriminador, das quais
podem sair formas não orais de declaração (diversas da resposta a perguntas) que violem a
presunção da sua inocência. No caso de diligências probatórias não neutras quanto à
culpabilidade do arguido, a recusar em nelas colaborar é legítima.

Em suma, o direito ao silêncio tem, claramente, um conteúdo declarativo. Quanto a


saber se tem ou não um conteúdo material, o regime legal do CPP coloca o arguido numa
situação de sujeição perante diligências de prova. Ainda assim, o arguido mantém o núcleo
irredutível do seu direito à não incriminação e ao silêncio, que decorre do princípio da
presunção de inocência: não tem um dever de colaborar com a investigação.

Ora, dando resposta à questão colocada no início desta secção, COSTA PINTO diz que
o direito ao silêncio, mais do que possuir uma vertente material, tem um conteúdo declarativo
que veda todas as declarações de culpabilidade, expressas por palavras ou por outros
comportamentos com um conteúdo/sentido incriminatório. Quando a participação numa
diligência probatória expressar um conteúdo incriminatório, então terá um valor declarativo,
e aí entra em jogo o direito ao silêncio, ou seja, o arguido pode legitimamente recusar-se a
“declarar” contra si mesmo.

que este também não englobava a recusa em prestar autógrafos para posterior exame e perícia em sede de
inquérito quando esta prestação fosse ordenada pelo MP, sob pena de prática do crime do 348º/1, b), CP.
A prestação de autógrafos não tem, igualmente, um conteúdo incriminatório, pois estes podem ou não
coincidir com a letra que se quer averiguar se corresponde ou não à do arguido.
14.7.12.2. Direito ao silêncio em bloco ou seletivo (escolha das perguntas a responder)?

Questão colocada na praxis judiciaria é a de saber se o direito ao silêncio, na sua


vertente declarativa, existe em bloco ou se pode ser seletivo/casuístico.

No início da audiência, o juiz pergunta se a pessoa quer prestar declarações. Se o


arguido responder negativa, significa isto que não poderá, no decurso da audiência de
julgamento, reverter a sua vontade e prestar declarações? Noutra formulação, a resposta dada no
início da audiência é irreversível?

O regime legal permite que o arguido possa intervir no processo a qualquer momento
(por exemplo, prestar declarações quando quer em julgamento, mesmo tendo dito antes que não
o iria fazer, nos termos do 61º/1, b)). Com efeito, faz parte do direito de defesa do arguido e do
seu direito ao silêncio a prerrogativa do arguido em decidir o modo de exercício da sua defesa,
não podendo o tribunal (de instrução ou de julgamento) condicioná-lo. Esta proibição de
condicionamento do exercício do direito de defesa do arguido inclui a permissão de reversão da
decisão do arguido, no início da audiência, a não responder às perguntas a si feitas.

Já analisámos a reversibilidade do exercício do direito ao silêncio do arguido. Outra


vertente de análise da questão colocada no início deste sub-capítulo será a de saber se o arguido
pode escolher as perguntas que responde, o momento em que responde e a quem responde, ou
seja, se pode ser seletivo no exercício deste direito? A resposta é positiva 148, pois uma proibição
desta seletividade seria restritiva do direito ao silêncio, restrição esta que (i) não tem qualquer
apoio na letra da lei e que (ii) será inconstitucional por violação do 32º/1, CRP e das outras
bases constitucionais de fundamentação do direito ao silêncio.

Uma última sub-questão é: se o arguido exercer o seu direito ao silêncio, deixam, por
isso, os demais sujeitos processuais de ter o direito a fazer perguntas? Esta pergunta pode
colocar-se num caso em que existam dois arguidos, e em que um se recusa a responder ao
advogado do outro arguido.

COSTA PINTO acha que, nestes processos de pluralidade de arguidos, o advogado de


um deles pode sempre fazer perguntas ao outro arguido, mesmo que ele já tenha dito que não
iria a elas responder, uma vez que tais perguntas são, em si mesmas, uma ferramenta retórica
que constitui uma manifestação do direito de defesa do arguido cujo advogado pretende fazer
perguntas. Os tribunais não têm, na prática, permitido esta colocação das perguntas sem esperar
resposta, por motivos de economia processual – não concedem que se façam perguntas cuja
resposta se sabe, a priori, não será dada. Esta não é, porém, uma questão definitivamente
resolvida.
148
Pode, p.ex., o arguido dizer que responde às perguntas colocadas pelo Tribunal e que não responde ao
MP ou ao advogado do assistente.
14.7.12.3. Direito ao silêncio, acareação (146º) e reconstituição (150º)

Havendo contradição entre declarações, pode pedir-se uma acareação (146º). Pode o
arguido recusar-se a participar na acareação? COSTA PINTO acha que, sendo a acareação um
meio de prova, o arguido está numa situação de sujeição a ela, não se podendo recusar a nela
participar. Contudo, a lei não o obriga a responder a questões feitas na acareação – o arguido
continua, na acareação, a beneficiar de um direito ao silêncio na sua vertente declarativa e ao
direito a que tal silêncio não seja valorado contra si. Em suma, o arguido tem o dever de
participar na acareação, mas não tem o dever de responder às perguntas que lhe sejam feitas
nesta diligência.

E quanto à reconstituição das circunstâncias factuais do crime (150º)? Esta também é


uma diligência de prova, que poderá ser mais ou menos neutra conforme aquilo que a
testemunha diga, que é aquilo em que a reconstituição se baseará. Pode-se, assim, exigir ao
arguido que tenha um papel ativo na reconstituição do facto que pode ser expressivo da sua
culpabilidade (p.ex. reconstituir a agressão que fez a uma vítima)? Pode ou não o arguido
recusar-se a participar em reconstituição desta natureza?

O regime deste meio de prova nada diz sobre esta questão e, por isso, temos de recorrer
às normas gerais. Estas, como já estudámos, dizem que o arguido tem, simultaneamente, o dever
de se sujeitar a diligências de prova e ainda direito de com elas não colaborar (p.ex. de não
responder a perguntas). Assim, se aquilo que for requisitado ao arguido tiver por base factos que
demonstrem a sua culpabilidade pode ele recusar-se a participar na reconstituição, pois isso
pode ser expressivo de uma sua incriminação e constituir, na prática, uma assunção de culpa 149.
Por exemplo, pode o arguido recusar-se a participar numa reconstituição quando se lhe pede que
reconstitua a forma como empurrou a vítima pelas escadas a baixo, quando o arguido alegou
que ela tinha escorregado.

Nota: tendo completado o estudo dos sujeitos processuais, ler todos os artigos entre o 8º - 70º
que não tenham ainda sido mencionados expressamente.

15. Objeto do processo e alteração da qualificação jurídica dos factos

Comecemos por fazer uma análise casuística, por forma a perceber o tipo de problemas
que podem surgir nesta matéria do objeto do processo:

1) Acusação por furto qualificado (204º, CP) e julgamento por abuso de confiança (205º, CP)

149
Este é um exemplo claro de uma diligência probatória que não é neutra (ver discussão da
jurisprudência constitucional mencionada no Ponto 14.7.12.1.), por ter um conteúdo incriminador e cuja
colaboração pode o arguido, legitimamente, recusar.
A é comproprietária (com B) de uma jóia valiosa. A vai buscar a jóia e vende-a a C. B
queixa-se e MP acusa A de furto qualificado. O caso vai a julgamento e o tribunal percebe que
não está em causa um furto, pois a jóia não foi subtraída. Antes está em causa um crime de
abuso de confiança. A factualidade analisada mantém-se a mesma, mas o tribunal de julgamento
entende que a norma jurídica a aplicar ao caso é diferente da sustentada pelo MP na acusação. O
tribunal não altera os factos, eles mantêm-se os mesmos, o que é alterado é a sua
qualificação jurídica. Pode o tribunal de julgamento fazê-lo? Se sim, em que condições?

2) Acusação por homicídio simples (131º, CP) e julgamento por homicídio qualificado, pois
percebe-se uma premeditação do crime (132º, CP)

O MP acusa A por crime de homicídio simples. O tribunal tem de descobrir a verdade


material dos factos (340º). No contexto do exercício dos seus poderes autónomos de
investigação, o tribunal descobre que o homicídio já vinha sendo premeditado 3 meses antes da
sua consumação. De facto, surgem novos factos na instrução da causa que permitem dar um
novo enquadramento jurídico ao crime – o de homicídio premeditado, que é qualificado.
Numa situação como esta, temos uma alteração de factos ao contrário do que acontece no caso
1). Como se passa de um crime com uma pena menos grave para um crime com uma pena mais
grave, estamos perante uma alteração substancial de factos. Aqui se revela o processo
metodológico a seguir na análise deste problema: primeiro, vimos se havia uma alteração de
factos, depois qualificámos essa alteração, como substancial (poderíamos ter qualificado tal
alteração como não substancial). Qual é o regime da alteração substancial de factos?

3) Acusação e julgamento pelo crime do 151º, CP. E quanto ao 131º, CP?

5 pessoas são acuadas de participação em rixa, em que morreu uma pessoa, não se
sabendo quem a matou, apenas que houve uma rixa violenta em que alguém morreu. O MP
deduz acusação pelo crime de participação em rixa (151º, CP). No julgamento, os arguidos
dizem que quem matou a vítima foi A, assim se produzindo prova testemunhal em julgamento
de que a morte resultou não da rixa mas de um facto suscetível de ser qualificado como
homicídio, praticado por A. Em julgamento, provam-se factos que não estavam na acusação e
a prova desses factos significa a imputação de um crime a um dos arguidos. Será isto
possível? Pode o tribunal condenar todos à participação em rixa e ainda A por um crime de
homicídio? Isto contende com outro valor não relacionado com a matéria do objeto do processo:
o princípio da vinculação temática, pois se A não foi acusado por homicídio, logo não pode ser
julgado por homicídio. Se naquele julgamento se imputar e provar o homicídio, o tribunal está a
ser acusador e julgador, violando igualmente a estrutura basicamente acusatória do processo
penal português. Mas a questão aqui em matéria de objeto do processo é outra: constitui isto
uma alteração de factos ou uma introdução de factos novos?
4) Acusação pelo crime do 134º, CP e no julgamento há falta de prova quanto aos pressupostos
do 134º, CP. Pode-se aplicar o 131º, CP?

Imaginemos que temos acusação por homicídio a pedido da vítima (134º, CP), um tipo
incriminador diferente, com uma culpabilidade e ilicitude menores quanto às do homicídio
simples, pois o agente tira a vida à vitima com o consentimento dela. Mas este tipo incriminador
tem requisitos próprios. Suponhamos que um médico administra, a pedido da vítima, uma
substância mortal e a vítima morre de tal ingestão. Mas em julgamento prova-se que a vítima
não pediu para morrer da forma que o 134º, CP exige – não houve da parte dela uma declaração
séria, inequívoca, etc. O tribunal concorda que há uma série de factos não provados e, assim,
não temos um homicídio do 134º, CP. O que é que nos sobra? Um homicídio não atenuado, um
homicídio simples. Pode o indivíduo ser condenado por homicídio simples quando isso não
constava da acusação? Não está em causa uma alteração de factos, mas o tribunal apenas
considera não provados alguns factos que implicariam uma atenuação da responsabilidade
do arguido.

15.1. A variação do objeto do processo: conceito, função e limites

O problema da variação do objeto do processo é o de saber se o conteúdo factual do


processo se cristaliza, ou se é modificável no decurso da instância.

No processo penal há toda uma fase (inquérito) em que se busca essencialmente


investigar os factos em ordem à eventual formulação da pretensão punitiva na acusação. Na
acusação formula-se uma pretensão (pedido feito ao tribunal para aplicar a sanção prevista na
lei) e indica-se a causa dessa pretensão (alegação que o acusado praticou determinado facto que
constitui um crime). O Tribunal vai julgar se os factos alegados na acusação foram (ou não)
praticados pelo acusado e, caso conclua que sim, aplicar a medida penal prevista para quem os
tiver praticado.

O objeto do processo penal é, assim, constituído pelos factos alegados na acusação e


a pretensão nela também formulada, nas palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA. Só
que, conforme o modelo vigente de estrutura processual, a determinação dos factos e da
pretensão feita na acusação pode ser mais ou menos rígida ao longo do processo,
compatibilizando-se mais ou menos com variações no seu decurso. É nesta amplitude maior ou
menor da determinação dos factos e da pretensão da acusação ao longo do processo que residem
os principais problemas acerca do objeto do processo.

Antes da acusação (no inquérito), o objeto é mais fluido, podendo variar com o decurso
da própria investigação. Para GERMANO MARQUES DA SILVA, nesta fase o objeto é a
notícia do crime, que vai ser investigada para verificar se está cumprida a al. a) do 1º. No
entanto, as exigências de estabilidade e identidade do objeto do processo (entenda-se, dos factos
criminalmente relevantes que serão imputados ao arguido no processo) variam de acordo com as
fases processuais, atingindo o seu expoente máximo nas fases de julgamento e recurso, por
contraposição ao inquérito, como acabámos de expor.

De facto, no julgamento, em regra, o debate sobre a responsabilidade do agente será


efetuado sobre os factos que lhe foram indiciariamente imputados pelo MP (283º) e/ou pelo
assistente, caso o mesmo esteja constituído e tenha requerido abertura de instrução (287º/1, b))
ou deduzido acusação particular (284º ou 285º).

Tendo já percebido o panorama geral da variação do objeto do processo, devemos


perceber que funções pode servir a sua regulamentação e quais os limites que daí brotam.

De facto, admitir que o objeto do processo pode variar significativamente implica que o
arguido tenha constantemente de se preocupar com a introdução de novos factos no processo, o
que pode contradizer ou comprimir as suas garantias de defesa (pode esta variação prejudicar a
certeza jurídica essencial ao exercício do direito de defesa). É nesse interesse que se exige
alguma estabilidade ao objeto do processo, uma necessidade de os factos não estarem em
constante mutação ao longo do processo, mas de ficarem cristalizados a partir de certo
momento.

Não devem, assim, existir variações intoleráveis do objeto do processo, à luz de certos
valores e fins: já falámos do direito de defesa do arguido e da certeza/segurança jurídica, mas
desenvolveremos esta matéria no ponto subsequente. Em especial, não serão admissíveis
variações que possam descaracterizar o complexo fáctico do processo (e, consequentemente, o
enquadramento jurídico de tais factos) anteriormente imputado indiciariamente ao arguido na
acusação.

Tem de ser assegurada a identidade entre o acusado, o conhecido em julgamento e o


posteriormente decidido – esta frase servirá como pano de fundo para a compreensão do regime
das variações no objeto do processo.

15.2. Valores envolvidos no problema da estabilidade do objeto do processo

Como vimos supra, podem concorrer vários princípios gerais do processo penal nesta
matéria do objeto do processo, que exigem a sua estabilidade. Podemos nomear um elenco
sistematizado desses princípios:

(i) Direito de defesa e contraditório (32º/1 e 5, CRP) – a flutuação do objeto do processo


pode colidir severamente com o direito de defesa do arguido e, de forma mais genérica, com o
princípio do contraditório. A defesa do arguido estaria sempre a ter de se adaptar a novas
questões se não houvesse estabilidade no objeto do processo, podendo, em razão disso, perder
eficácia (o exercício das garantias de defesa pressupõe um objeto do processo com um mínimo
de estabilidade).

GERMANO MARQUES DA SILVA: O acusado defende-se da acusação e, por isso,


não pode, por princípio, ser surpreendido com alterações de factos ou da qualificação jurídica de
factos que sejam relevantes para a sua defesa. A plenitude da sua defesa implica que o
julgamento (e a posterior sentença) não possa incidir sobre factos não contidos no objeto do
processo (ou seja na acusação e pronúncia – se existir – notificadas ao arguido). Assim, a
regulamentação rigorosa do objeto do processo, mormente a partir da acusação, é
imprescindível ao exercício pleno do direito de defesa do arguido (32º/1, CRP), essencial a um
processo penal democrático e de direito;

(ii) Princípio da acusação e estrutura acusatória (32º/5, CRP). O nosso modelo


processual penal acolhe uma matriz essencialmente acusatória, mas integrada por um princípio
de investigação (294º, 299º, 301º e, em especial, 340º). Se ao Tribunal (de instrução ou de
julgamento) se reconhece um estatuto ativo na busca da verdade material, então o problema da
estabilidade do objeto do processo projeta-se não apenas no estatuto do arguido como também
nos poderes do próprio Tribunal.

Por um lado, alterações no objeto do processo fluem do cariz acusatório da nossa


estrutura processual, onde encontramos uma separação vincada entre a acusação e julgamento: a
factualidade que resulta da produção de prova feita no julgamento não é controlável a priori e
pode fazer variar o objeto do processo tal como estabelecido no momento da acusação. Dado
que, na formulação fundamental da estrutura acusatória quem julga não acusa (e vice-versa) é
normal que surjam discrepâncias no objeto do processo, fruto das perceções diferentes do caso
tidas pelas entidades que acusam e pelas que julgam. Por outro lado, estas alterações são, no
nosso sistema, acentuadas pelo estatuto ativo do Tribunal em matéria de investigação, que leva
a uma sua maior frequência.

Haverá, por isso, desde logo que reconhecer que esses poderes autónomos de
investigação do Tribunal supõem a existência de uma acusação (princípio da acusação) e que,
quando exercidos, devem conter-se pelos limites temáticos do acusado, não os podendo
livremente exceder (vinculação temática). Neste campo, a questão que se coloca é perceber que
alterações do objeto do processo advindas destes poderes do Tribunal são ou não toleráveis.

Desde logo, o Tribunal não pode reformular unilateralmente o objeto do processo, pois
tal violaria o princípio do contraditório. Uma reformulação do objeto do processo em
julgamento que altere a sua identidade essencial só é possível com o acordo de todos os sujeitos
processuais (359º/2). Além, do mais, não pode o Tribunal reformular livremente o objeto do
processo pois, entre outras razões, estará simultaneamente a investigar e a julgar os factos
criminalmente relevantes, pelo que só o poderá fazer em certas condições estabelecidas na lei,
que estudaremos adiante.

De facto, a busca da verdade material (53º/1, 299º/1, 340º/1) que procura, dentro dos
limites da instância, a verdade histórica sobre os factos eventualmente geradores de
responsabilidade, não é um fim que justifique todos os meios. Não é um fim absoluto, mas sim
um fim a prosseguir de forma condicionada, nos limites dos factos acusados (303º, 309º, 311º/2,
b), 359º e 379º), sob pena de o conhecimento de certos factos ficar, definitivamente, preterido;

(iii) Segurança jurídica (enquanto componente do Estado de Direito consagrado no 2º,


CRP): caso julgado, litispendência (figura importada do processo civil) e ne bis in idem (29º/5,
CRP). Estes princípios são funcionalizados no interesse do exercício dos poderes de
conformação do processo por parte dos vários sujeitos processuais.

Por exemplo, imagine-se que no caso 2), acima apresentado, se pretende abrir inquérito
em relação ao crime de homicídio qualificado por premeditação. Podem dois processos tramitar
contra A, pelos mesmos factos? Pode-se prosseguir o processo em relação ao homicídio simples
e iniciar um processo que visa a responsabilização do agente pelo homicídio qualificado? Aqui
é claro que há violação do ne bis in idem - com a decisão de um processo, a decisão do outro
violará o efeito preclusivo do caso julgado (de não se poder responsabilizar o agente quando a
sua responsabilidade já foi apreciada em sentença anteriormente transitada em julgado).

Além do mais, sem uma identificação rigorosa do objeto do processo não é possível
afirmar com segurança a existência de um caso de litispendência (dois processos concomitantes
com o mesmo objeto), nem dar efetividade ao princípio da proibição da dupla condenação pelo
mesmo facto (ne bis in idem).

Permite este exemplo ilustrar que estão, nesta matéria, em causa princípios e valores
adicionais ao da estabilidade do objeto do processo, que com ele concorrem na conformação do
regime das variações no objeto do processo.

15.3. Princípios fundamentais: identidade, estabilidade, indivisibilidade e consunção

No início da vigência do CPP, o problema da variação do objeto do processo era tratado


de maneira diferente na doutrina (EDUARDO CORREIA): esta questão foi colocada no plano
dos princípios, de quando poderia o objeto do processo variar ou de quando deveria manter-se
idêntico entre o julgamento e acusação150.

150
O CPP de 1929 não utilizava o conceito de alteração de factos, não sendo esta possível, a não ser que
tais factos fossem alegados pela defesa ou resultassem da discussão da causa, desde que, neste último
caso, tivessem por efeito diminuir a responsabilidade do arguido.
Já o CPP de 1987 veio tratar este problema por referência a certos conceitos: o de
alteração de factos, substancial ou não substancial. Assim, colocou-se o problema no plano dos
conceitos e não no plano dos princípios, como fazia a doutrina inicial. O que importa aferir,
atualmente, é se existe uma alteração de factos e, existindo, se a mesma é ou não substancial.

Não deixa de ser benéfico, no entanto, para a compreensão deste problema olhar os 4
princípios fundamentais em relação ao objeto do processo:

(i) CASTANHEIRA NEVES aponta o princípio da identidade: deve haver identidade


entre o acusado, o julgado e o decidido. Quer esta formulação significar uma identidade entre o
conteúdo da acusação, o que vai a julgamento e a decisão depois proferida, que as oscilações da
matéria de facto durante o processo não podem em regra afetar a identidade do objeto do
processo definido na acusação. Essa identidade deve ser aferida na prática, na aplicação dos
conceitos supra e não só num plano teórico;

(ii) Princípio da estabilidade: Orientado para a preservação do círculo de factos ao


longo do processo, sem qualquer oscilação significativa que o descaracterize, este princípio
implica que exista um momento em que o objeto do processo se estabilizará, que será a
acusação. A partir daqui o objeto do processo fica tendencialmente cristalizado, para que o
arguido possa exercer com certeza o seu direito de defesa, confiando no conteúdo da acusação e
que este não se alterará dramaticamente. Assim, poderá o arguido defender-se não de matéria
hipotética, mas daquilo que lhe é efetivamente imputado na acusação.

O objeto do processo, enquanto referente do princípio da estabilidade, é constituído


pelos factos que integram o processo e não pelo seu enquadramento jurídico ou pelo acervo de
meios destinados a provar os factos. Por exemplo, a variação do enquadramento jurídico é
tratada na matéria da alteração da qualificação jurídica dos factos, da qual falaremos,
igualmente, adiante;

(iii) CASTANHEIRA NEVES formula igualmente o princípio da indivisibilidade - o


objeto do processo não é passível de ser fragmentado, valendo como um todo. Assim, não se
pode tratar parte de um facto num processo e outra parte noutro processo.

Este princípio veda, portanto, a segmentação da sequência de factos que, em função da


sua conexão interna e da sua unidade jurídica, devem ser tratados conjuntamente e não ser
objeto de fragmentações processuais discricionárias.

Ex.: suponhamos que a morte de uma vítima é resultado de duas agressões. Esta
factualidade é indivisível, devendo ser valorada como um todo, que resulta num só resultado
proibido, que não pode ser analisado fragmentariamente entre dois processos.
(iv) Princípio da consunção dos poderes de cognição do Tribunal – a decisão de um
caso abrange e produz os seus efeitos em relação a todos os factos conhecidos no processo, bem
como tudo aquilo que, estando numa unidade histórica com o que foi conhecido, podia e deveria
ter sido conhecido no processo decidido.

Os poderes de cognição do Tribunal esgotam-se, assim, não só quanto ao efetivamente


conhecido, como também quanto àquilo que, estando em sequência unitária com o acusado e o
conhecido, deveria ter sido efetivamente apreciado pelo Tribunal, ficando preterida a
possibilidade do seu conhecimento autónomo.

Mesmo quando o objeto do processo não tenha sido conhecido na sua totalidade deve
considera-se irrepetivelmente decidido e, portanto, não pode renascer noutro processo.

Ex.1: No caso das agressões de Alcochete, a investigação tem grande complexidade


pelo número de arguidos. Haverá um momento do processo em que os factos relevantes para a
decisão se cristalizarão – a acusação do MP. A decisão deste processo abrangerá toda a
factualidade concreta conhecida sobre o que se passou em Alcochete à data dos factos, bem
como todos os factos que compõem a unidade histórica que serve de base à valoração das
responsabilidades criminais (juntamente com os factos conhecidos) e que poderiam e deveriam
ter sido conhecidos. Assim a decisão final abrangerá toda esta unidade histórica em que os
factos apreciados se situam, tenha ou não sido conhecida na sua integralidade no seio do
processo. Ora, se não consta da acusação que o Aleluia bateu com um pau no Ruben Ribeiro e
tal não foi conhecido no processo, a decisão do Tribunal abrange, ainda assim, este facto, que
não pode gerar a abertura de um novo processo – efeito preclusivo do caso julgado.

Ex.2: Suponhamos um crime continuado, em que o agente rouba 10 euros de uma caixa
registradora todos os dias durante um mês. A figura do crime continuado funde todas estas
realizações criminosas num único facto ilícito-típico, sendo o arguido responsabilizado por um
só crime e não por vários. A figura da consunção diz-nos que este crime continuado abrange
toda a unidade histórica que compreende o crime continuado (todo o mês em que se realizaram
os ilícitos-típicos) – quer em relação aos factos conhecidos no processo quer aos não
conhecidos. Se não se descobriu que num dia o agente roubou 20 euros em vez dos 10 euros
conhecidos, então a decisão do processo abrange também esses factos, no sentido de não
poderem ser abertos novos processos a pedir uma nova responsabilização do agente, porque
afinal o valor subtraído foi maior. Esse maior valor podia e devia ter sido conhecido durante o
processo, pelo que a sua extinção faz precludir a possibilidade de uma repetição de julgados
quanto a estes factos.

EDUARDO CORREIA explica que o princípio da consunção implica que, posta uma
questão ante um magistrado este deve resolvê-la, de forma esgotante e exaustiva, até onde deva
e possa. Aquilo que, devendo ter sido decidido na sentença, não o foi diretamente, tem de
considerar-se indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa, deve tornar-
se e tomar-se como tacitamente decidido.

15.4. Modelos de solução do problema: o modelo rígido e o modelo flexível.

Para tratar o problema da variação do objeto do processo, podemos recorrer a um


modelo flexível, que admite tal variação até à decisão final; ou a um modelo rígido, que
estabelece um limite a partir do qual não podem existir alterações no objeto do processo.

15.5. A evolução do regime do CPP e a solução de 2007: um modelo tendencialmente


rígido

O regime em Portugal é tendencialmente rígido, que resulta da reforma de 2007 do


CPP. Segundo este modelo o objeto do processo pode variar livremente na fase de inquérito,
algo pressuposto pela lógica de investigação subjacente ao inquérito. O limite desta variação é
dado pelo regime da duração do inquérito, bem como a prescrição de certos factos que assim
não podem integrar o objeto do processo (por tais factos já não serem suscetíveis de sustentar a
responsabilização do arguido).

Já no julgamento, o nosso regime legal admite algumas variações do objeto, se as


mesmas não forem substanciais (358º). Se forem substanciais, em regra, o nosso regime legal
não permite que sejam conhecidas nesse processo (359º). Foi, assim, desenhado em 2007, um
regime compromissório e equilibrado: a variação do objeto do processo é livre no inquérito e
progressivamente limitada à medida que se avança na tramitação do processo.

Como já estudámos supra o legislador de 2007 não adotou, no tratamento desta matéria,
o plano dos princípios, como defendido pela doutrina tradicional. Notamos isso na não adoção
do conceito de identidade do objeto, algo que na versão inicial do CPP se procurava aferir
(quando deve ou não o objeto manter-se idêntico entre a acusação e o julgamento).

Ao invés, optou-se em 2007 por tratar a variação do objeto do processo através de


conceitos diferenciados, que exigem uma metodologia diferente de análise: cumpre apurar se a
alteração dos factos verificada é substancial ou não, ou seja, o conceito operativo deste regime
é o da alteração substancial de factos e não o da identidade do objeto.

Ora, o conceito de alteração substancial de factos encontra-se no 1º, f). O juiz vai
aplicar efetivamente este crivo concetual aos factos que surjam na fase de julgamento (358º e
359º), não vai ver apenas se, no plano teórico, há ou não identidade do objeto. Em termos
simplistas, que densificaremos mais a seguir:
- O 359º comporta as variações mais graves da factualidade do objeto do processo,
alterações menos toleráveis, que, em regra, não podem ser conhecidas, sob pena de nulidade da
sentença;

- Já as alterações tratadas no 358º não têm um impacto tão significativo no objeto do


processo. Exige-se um patamar mínimo (a existência de contraditório) para que tais alterações
sejam admissíveis.

E na instrução, qual o regime de variação do objeto do processo? Temos um regime


especial, que permite a variação do objeto do processo nos termos do 303º e 309º.

Sistematizando, a variação do objeto do processo é livre até à acusação, podem existir


variações pelo regime especial da instrução (303º e 309º) e são estabelecidos limites à alteração
do objeto do processo no julgamento, através do conceito de alteração substancial de factos
(358º e 359º). Sendo cruzados esses limites, a consequência será a nulidade da sentença (379º).

Assim, podemos concluir que os princípios referidos nos Pontos 15.2. e 15.3. balizam
uma parte das alterações possíveis (o plano dos princípios não é completamente abandonado),
mas atuam primacialmente critérios normativos (os da alteração de factos), que estabelecem
regras concretas nesta matéria.

15.6. Referentes legais: 1º, f), 303º, 309º, 358º, 359º, 379º

Esta matéria tem referentes legais precisos.

A lei portuguesa não enuncia expressamente os diversos princípios atrás invocados,


como o da identidade do objeto do processo, o da sua indivisibilidade ou da força consuntiva do
caso julgado. Mas o regime legal da alteração de factos e a consequente vinculação temática do
juiz (quer o do TIC quer o do Tribunal de julgamento) ao conteúdo da acusação, a par da regra
constitucional do ne bis in idem constituem manifestações de tais princípios.

A técnica seguida pelo CPP traduziu-se em definir o conceito de alteração substancial


de factos, no 1º, f) e usar depois esse conceito ao longo do CPP para limitar tematicamente
certos atos ou poderes de cognição do JIC e do Tribunal de julgamento.

Assim, desde logo, a acusação do MP e do assistente limitam-se reciprocamente,


consoante a natureza dos crimes: nos crimes públicos e semipúblicos a acusação do MP (283º)
vincula tematicamente (entenda-se, quanto à factualidade nela descrita) a (eventual) acusação
subordinada do assistente (284º/1) e nos crimes particulares a acusação do assistente vincula
tematicamente a acusação (facultativa) do MP (285º/3).
Além disto, a pronúncia (303º) está tematicamente vinculada pela acusação (283º, 284º
e 285º) e pelo requerimento para abertura de instrução (287º/1) – ver com especial atenção o
303º/3.

Ex.: O MP acusa por homicídio privilegiado (atenuada a responsabilidade do crime de


homicídio). O assistente apresenta RAI, pedindo que se acuse por homicídio qualificado. A
pretensão do assistente contém mais factos e factos mais graves do que a acusação do MP. O
RAI traz, assim, ao processo todos os factos novos invocados pelo assistente. A partir deste
momento, o objeto do processo serão os factos que compõem a acusação acrescidos dos factos
novos invocados pelo assistente por meio do RAI. Assim, uma pronúncia por homicídio
qualificado será admissível e legítima e no julgamento pode haver uma condenação nesse
sentido, porque os factos que baseiam tal responsabilização do arguido entraram legitimamente
no processo.

E, finalmente, o Tribunal de julgamento está tematicamente vinculado pela acusação ou


pela pronúncia (caso tenha existido instrução) (p.ex., 311º, 358º, 359º e 379º).

A violação desta regra da vinculação temática é cominada pelo CPP com nulidades de
diferente grau: uma nulidade atípica no caso da pronúncia (309º), já que depende de arguição e
se sana com o decurso do prazo de 8 dias; uma nulidade absoluta no caso da decisão final do
julgamento (art. 379º), de conhecimento oficioso, e que afetará parcialmente a decisão (379º/2 e
414º/4), isto é, exatamente na parte que representar uma alteração substancial de factos.

A lei prevê ainda a hipótese da rejeição parcial da acusação no despacho de saneamento


do processo (311º/2, b)) por violação dos limites do objeto do processo, aferida à luz do
conceito de alteração substancial de factos.

A alteração da qualificação jurídica de factos (303º/5 e 358º/3) é equiparada à alteração


não substancial de factos (303º/1 e 358º/1), tendo também uma tutela forte ao nível do 379º/1,
b)151.

15.7. O conceito de alteração substancial de factos no CPP e a metodologia bipartida de


análise das variações no objeto do processo:

(i) Há uma alteração de factos?: conceito

(ii) Havendo alteração de factos, quando deve ser qualificada como substancial?

Nota: À data a que escrevo, a juíza Ana Peres acaba de emitir um despacho de não
pronúncia em relação à SAD do Benfica pelos crimes indiciariamente imputados ao Benfica

151
Ver Ponto 15.10 deste Resumo, mais concretamente, a alínea c) dessa secção.
pelo MP no processo E-Toupeira. O título deste resumo perde alguma atualidade com o efeito
preclusivo do caso julgado gerado por este arquivamento. Que bom é viver!

Do ponto de vista metodológico, é importante respeitar uma estrutura bipartida. Em


primeiro lugar devemos apurar se existe uma alteração de factos e, em segundo lugar e
assumindo que essa alteração existe, aferir se essa alteração é substancial ou não.

Porquê este percurso? Porque o CPP assim o exige, como pressuposto da aplicação (em
alternativa) do 358º ou do 359º ou do 303º/1 ou 3. Previamente à ponderação de qual das
normas aplicar, devemos perceber se a alteração em causa é factual, pois por vezes podemos
ter alterações que não são de factos, mas da sua qualificação jurídica. Definindo bem se
existe alteração de factos, afastamos do nosso campo de análise algumas realidades análogas à
da variação do objeto do processo152. Só depois de saber se há (ou não) uma alteração de
factos, de definirmos a realidade a qualificar, é que podemos qualificá-la como substancial
ou não, mediante a aplicação de um dos artigos enunciados no início do parágrafo.

Começar por este último passo seria começar pelo resultado do processo de análise, o
que seria um erro metodológico que pode conduzir a conclusões também elas erradas (quando
ponderamos se uma dada alteração é ou não substancial, e depois percebemos que não está em
causa uma alteração de factos).

Vejamos o exemplo do caso 4) apresentado no Ponto 15: o tribunal de julgamento, ao


considerar que os requisitos típicos do 134º, CP não estavam verificados, considerou que o
homicídio não seria a pedido da vítima (e, por isso, de responsabilidade diminuída), mas um
homicídio simples (131º, CP), que possui uma pena mais elevada o que, segundo o que
estudaremos mais à frente, é causa de substancialidade da alteração de factos. Contudo, esta não
é, sequer, uma alteração de factos, pois não houve uma variação da factualidade existente no
processo, mas uma valoração dos factos que compunham o objeto do processo na acusação e
uma decisão pela sua não prova153. Ou seja, temos sempre de começar por saber qual a realidade
em análise. Não vamos ao resultado (alteração substancial ou não substancial) para definir se
houve alteração de factos.

Ora, como já vimos, a técnica de tratamento desta matéria no CPP passa pela criação do
conceito de alteração substancial de factos. O CPP define expressamente este conceito no 1º, f),

152
Ver casos práticos enunciados no Ponto 15.
153
Considerar não provados os factos típicos do 134º, CP não implica retirá-los do processo. Quando o
tribunal diz que dado facto não está provado, ainda assim conhece-o, algo necessário para o dar como
não provado. Os factos continuam a estar no objeto do processo que é submetido à decisão do juiz, mas
consideram-se não provados. Na acusação, estes estavam indiciariamente provados. No julgamento vai-se
fazer a produção de prova quanto a eles. Quando, em função destas diligências probatórias, estes se
considerem não provados, eles terão de constar do objeto factual da sentença, ainda que nela se diga,
agora com uma segurança não existente na acusação, que eles não ocorreram.
mas não define expressamente o que seja uma alteração de factos, ou seja, o passo prévio a
definir uma alteração substancial de factos. A definição do 1º, f) é, assim, incompleta, pois parte
do pressuposto (errado) de que o que seja uma alteração de factos já foi definido. Isto configura
um grande problema. Logo, o conceito de alteração de factos tem vindo a ser delimitado pela
doutrina154.

FREDERICO ISASCA tem uma conceção aritmética do conceito de alteração de


factos, considerando que ela existirá quando se acrescentam ou eliminam factos face aos que
constam do objeto do processo. COSTA PINTO discorda desta conceção, considerando que não
está em causa, nesta matéria, um problema numérico, mas antes o de saber quando está a ser
alterado o conjunto de factos constante do processo.

COSTA PINTO cria, por isso, um critério funcional ou normativo de definição de


alteração de factos. Há um núcleo comum aos conceitos de alteração substancial e não
substancial de factos – o conceito de alteração de factos, algo que ambas são. Ora, quando é
que se atinge o patamar que permite desencadear o regime do 358º ou do 359º, quando é que
temos uma alteração de factos que permite aplicar estes artigos para perceber se a mesma é ou
não substancial? A resposta a esta questão dar-nos-á o conceito de alteração de factos.

Ora, o 358º e 359º devem ser convocados quando no processo surge uma variação da
factualidade que suscita a necessidade de conceder o direito ao contraditório ao arguido, para
que este se possa pronunciar sobre tal realidade. Ora, só motivará a aplicação do regime do
contraditório o facto de o arguido não se ter podido pronunciar antes sobre certos factos. É esta
factualidade, a que devemos sujeitar à consideração da defesa, que constituirá uma alteração de
factos.

COSTA PINTO acrescenta aos referentes normativos do seu conceito de alteração de


factos o regime de nulidade da sentença do 379º. O conceito nele usado não é o de alteração de
factos, mas o de factos diversos (379º/1, b)). Este regime diz que a alteração de factos que gera
a nulidade da sentença é a que introduz no processo factos diversos dos descritos na acusação
ou na pronúncia. Conjugando as considerações tecidas a propósito do 379º com as feitas sobre o
358º e 359º, COSTA PINTO conclui que uma alteração de factos será uma variação na
descrição da factualidade feita até então no processo que, em termos de conteúdo, gere factos
diversos que dão origem à necessidade de contraditório por parte do arguido. Podemos
decompor esta proposição do conceito de alteração de factos em dois elementos:

154
A maior parte da doutrina definiu este conceito para resolver, no plano dos princípios, o problema de
quando há ou não uma variação admissível do objeto do processo, mas não é esse processo metodológico
que resulta do CPP. Aquilo que resulta, isso sim, do CPP é a necessidade de aferir se uma alteração de
factos é (ou não) substancial.
(i) Variação do complexo fáctico que existe no processo – uma alteração de factos é,
antes de mais uma variação dos acontecimentos já constantes na acusação ou na pronúncia (se
esta existir) de um dado processo, que permite uma descrição diferente da realidade tal como
conhecida até então; noutras palavras, trazem-se ao processo factos diversos que geram a
variação do complexo fático nele já existente.

Assim, afastamos do conceito de alteração de factos realidades completamente novas


face ao complexo fáctico do processo, que são factos diversos, mas não constituem variações
de um complexo fáctico já existente; antes introduzem nele uma nova realidade.

Ex.1: está-se a tramitar um processo relativo ao furto da casa A, já em fase de


julgamento e introduz-se nesse mesmo processo o furto da casa B, que ocorreu um mês antes.
Este furto da casa B não varia o complexo fáctico do assalto à casa A, introduz nesse complexo
uma nova realidade. A consequência de serem trazidos factos completamente novos ao processo
será não a alteração do seu objeto, mas a elaboração de uma participação criminal que gera a
abertura de novo inquérito autónomo, referente apenas ao facto distinto. O objeto já existente
(assalto à casa A) continua o julgamento; o assalto à casa B tem de gerar novo processo, não
podendo ser conhecido no julgamento em curso, sob pena de violação da estrutura acusatória 155.

Ex.2: Consta do objeto do processo o facto de que A arrombou a porta de B à meia noite
e trinta. Em fase posterior do processo, traz-se a ele a informação de que o arrombamento foi às
onze. Esta é uma modificação de um facto já existente, varia-se a factualidade do processo
descrevendo acontecimentos que implicam a mudança do objeto do processo como formulado
na acusação. Isto, por contraposição ao descrito no Ex.1, já será uma variação suscetível de
constituir uma alteração de factos.

Em suma, esta exigência de uma variação num complexo fáctico já existente exclui
esta introdução no processo de outros factos distintos ou de outros acontecimentos histórico-
sociais, algo que acontece num outro momento e que dará origem a um outro enquadramento
jurídico, mesmo que existe alguma relação com o que é discutido no processo em que
(inadmissivelmente) foram introduzidos. Esses factos completamente novos não alteram o
objeto do processo; criam um novo objeto do processo, gerando o início de um processo
autónomo se surgem na fase de instrução ou de julgamento, quando a variação do objeto do
processo não seja admitida.

(ii) Necessidade de o arguido exercer o contraditório – a variação do complexo


fáctico do processo, para ser uma alteração de factos no sentido do CPP, tem de suscitar a
necessidade de o indivíduo exercer o contraditório, para se pronunciar sobre tal variação, este

155
Em regra, os factos completamente novos geram problema de concurso de crimes, enquanto as
alterações dos factos geram outros efeitos jurídicos, os do 358º e 359º.
sendo o núcleo comum mínimo do 358º e 359º. Percebemos que está, assim, em causa uma
modificação da factualidade do processo que faz com que nele entre ou saia algo que até aí
não estava no horizonte da defesa. Quando é que ocorre, então, uma variação do complexo
fáctico existente no processo que seja motivadora do contraditório?

a) Quando o facto novo que é trazido ao processo descreve uma realidade até aí não
prevista, mas que se situa dentro da unidade histórica já existente no processo.

Ex.: até certa altura no processo já se sabia que o agente de uma alegada agressão estava
escondido numa esquina antes da agressão; traz-se ao processo na produção de prova em
julgamento o facto desse indivíduo ter consigo uma faca;

b) Quando se traz ao processo uma modificação dos factos nele já existentes, o facto
descrito sendo o mesmo, mas mudando algumas das suas circunstâncias relativas ao tempo,
modo ou lugar em que se deu.

Ex.: traz-se ao processo a mudança da hora 156 em que o arguido estava à espera da
vítima. Não tendo ainda esta modificação surgido no processo, terá de ser sujeita a
contraditório;

c) Quando se procede à supressão de factos constantes do objeto do processo, de


acontecimentos que estavam na acusação, mas que, na sentença, não constaram nem da lista de
factos provados nem da lista de factos não provados. Afere-se que se deu uma supressão de
factos por comparação da matéria de facto valorada na sentença com a matéria de facto que
compunha a acusação (e, eventualmente, as modificações que lhe foram feitas no RAI e que
procederam por meio da pronúncia).

Qual a diferença, então, entre uma supressão de factos e dar um facto como não
provado? O facto não provado será submetido à decisão, faz parte da base fáctica de valoração
do juiz; já a supressão de factos, faz com que estes não sejam submetidos ao processo decisório,
simplesmente não são considerados. Se um facto não for suprimido, a sua verificação dependerá
da discussão sobre a produção de prova, sobre o valor da prova, e sobre a sua valoração judicial.
Mas se um facto for suprimido, tal surgirá da produção de prova, mas, simplesmente, não será
objeto da decisão.

Para que um facto seja suprimido do objeto do processo e, consequentemente, da base


fáctica a valorar na decisão, tem a sua supressão de ser submetida a contraditório. Para um juiz
retirar um facto da lista de factos a estabelecer como provados ou não provados na sentença,

156
A hora pode ser relevante no apuramento da verdade material, isto podendo ser ou não substancial em
termos de alteração, mas isso ver-se-á depois.
tem de promover a audição das partes, sob pena de nulidade da sentença nos termos do 379º/1,
b) ou c), 1ª parte.

O facto suprimido só retomará a sua relevância processual se a sua supressão for


contestada em sede de recurso, perante tribunal superior (mediante a nulidade mencionada no
parágrafo anterior). Se nenhum sujeito processual suscitar esta questão, então o tribunal superior
não vai conhecer o que foi suprido.

Regra geral, após as diligências de prova, ainda em audiência de julgamento, o juiz


apercebe-se de que existem alterações de factos e informa as partes disso, dando-lhes aí a
oportunidade (nomeadamente à defesa) para sobre elas se pronunciarem. Às vezes, a audiência
já fechou e o tribunal apercebe-se, ao analisar o acervo de prova produzida, que há alterações de
facto; aí continua a ter de sujeitar a alteração de factos a contraditório (para perceber se a
mesma é ou não substancial) e, para isso, terá de reabrir a audiência.

Como já vimos, exige-se uma identidade entre o acusado, o conhecido e o julgado. Um


facto suprimido não fará parte do objeto do processo que for julgado, nem será considerado
como parte do objeto do processo a submeter à decisão do juiz.

Passamos agora para o segundo passo do percurso metodológico acima descrito:


quando podemos qualificar uma alteração de factos como substancial? O conceito de
alteração substancial de factos define aquilo que será uma variação intolerável do objeto do
processo (303º/3 e 359º). A contrario sensu, permite também definir, pela negativa, aquilo que
será tolerável a nível de tais variações (303º/1 e 358º), as alterações não substanciais de factos.

A definição do conceito de alteração substancial de factos é de obtenção mais simples,


porque é expressamente dada pelo 1º, f): existe uma alteração substancial de factos quando
uma alteração de factos fundar a responsabilização do arguido por pena máxima mais grave
ou por crime diverso do que foi sustentado, até então, no processo. Vejamos, separadamente
cada um dos motivos possíveis de qualificação de uma alteração de factos como substancial:

(i) Uma alteração de factos será substancial se der origem à agravação da pena que
for aplicável ao arguido ou à invocação de um diferente tipo legal que é punido com uma
pena mais grave do que o tipo até então imputado ao arguido. Daqui resulta que alterações de
factos que suscitarem variações na pena mínima aplicável ao arguido não serão substanciais.
Este é o critério quantitativo da qualificação de uma alteração como substancial. Existe ainda
um critério qualitativo:

(ii) Será substancial a alteração de factos que tiver por efeito a imputação ao arguido
de crime diverso. Quando é que isto sucede? O CPP não o especifica. Ora, na ausência de
determinação legal, viramo-nos para a doutrina e para TERESA PIZARRO BELEZA (uma
menina como poucas), que sugere o critério do bem jurídico, dizendo que existe imputação de
crime diverso quando estiver em causa uma agressão típica a um bem jurídico distinto do que
seria agredido segundo o enquadramento jurídico dado ao objeto inicial do processo.

Não está meramente em causa, na exigência de crime diverso, que se impute ao arguido
outro tipo legal. De facto, podem haver variações factuais que geram tipos diversos, mas que
não constituem alterações substanciais de factos, porque não é diferente o bem jurídico
protegido pelo tipo convocado por tais variações; podem igualmente dar-se variações factuais
que permitem imputar ao arguido outros tipos incriminadores, mas que, por tais tipos
protegerem um diferente bem jurídico, constituem alterações substanciais de factos.

Ex.: se existir uma acusação por furto e se se chegar à conclusão que existe uma
variação factual que convoca o crime de abuso de confiança, ela não será substancial pois,
embora este seja um tipo incriminador diferente, não será um crime diverso, na medida em que
o bem jurídico protegido pelos dois crimes é o mesmo.

É o bem jurídico protegido que constitui a pedra de toque deste critério qualitativo do
crime diverso, sendo necessário um esforço hermenêutico para perceber qual o bem jurídico
protegido pelo tipo incriminador original e posterior, ou seja, advindo da alteração de factos.

Este critério qualitativo possui uma real autonomia normativa quando existem
variações de enquadramento típico da conduta do arguido que não motivam uma agravação
da pena máxima aplicável ao arguido, mas que lhe imputam um crime diverso, em função do
diferente bem jurídico protegido pelo tipo incriminador convocado pela alteração de factos.
Numa formulação mais simples, só aplicamos o critério do crime diverso para qualificar uma
alteração de factos como substancial quando o crime que surge posteriormente não tiver pena
máxima aplicável mais grave.

Súmula de todo este Ponto: O prolema da variação do objeto do processo não é o da


identidade do objeto (saber quando ele pode ou não variar à luz de certos princípios
fundamentais, como defende, entre outros, EDUARDO CORREIA). Antes se resolve pela
determinação de quando existem alterações de factos e, posteriormente, de quando elas são
substanciais, algo delimitado pela positiva no 1º, f) ou não substanciais, algo delimitado pela
negativa por recurso ao mesmo artigo. Estes serão os tipos de variações do objeto do processo
cuja admissibilidade cumpre avaliar, segundo o regime estabelecido nos 303º/1 e 3, 358º e 359º.

15.8. Momentos processuais de fixação do objeto do processo antes e depois da acusação

- Durante o inquérito (262º e ss.) é livre a variação do objeto do processo. Pela própria
natureza e função desta fase processual, que visa investigar a existência de um crime,
determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em
ordem à decisão sobre a acusação (262º/1), a factualidade nela recolhida (e eventualmente
imputada ao arguido, posteriormente, na acusação) é variável.

Na nossa estrutura processual basicamente acusatória, o objeto do processo fixa-se, em


regra, na acusação – o objeto do processo é a descrição dos factos presentes na acusação. A
identidade do objeto do processo delimitada neste ato vai servir de referência para outros atos
processuais posteriores157. Como o TC já salientou várias vezes 158, os factos descritos na
acusação definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimitará os poderes de
cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.

Pode, no entanto, o objeto do processo fixar-se em certos momentos antes ou depois da


acusação, que cumpre sinalizar.

Que momentos processuais de fixação do objeto do processo existem antes da


acusação? Pode existir uma fixação do objeto do processo em acordo de mediação (Lei nº
21/2007), arquivamento em caso de dispensa de pena (280º) e arquivamento subsequente à
suspensão provisória do processo (281º e 282º) que ditam o término do processo. Estas são
soluções de oportunidade processual que permitem pôr fim ao processo antes da acusação.
Como o fim do processo implica o efeito de caso julgado, tem de se dar uma cristalização do
objeto sobre o qual se sentirá tal efeito. Por outras palavras, deve existir uma fixação do objeto
do processo em relação ao qual se sentirá o efeito preclusivo do caso julgado (é em relação a
esse objeto que não podem haver novos processos, nem julgamento posterior no mesmo
processo). Este entendimento já foi afirmado jurisprudencialmente pelo Tribunal da Relação de
Lisboa.

Os três casos enunciados no parágrafo anterior diferem do arquivamento previsto no


277º, que não fixa o objeto do processo, na medida em que se trata de um despacho de natureza
formal e não de natureza material

Ora, o acordo obtido em mediação, e os arquivamentos do 280º e do 281º e 282º fixam


o objeto do processo, na medida em que formam caso julgado material. Nesses casos, é
delimitada a factualidade relevante que é depois imputada ao arguido no âmbito de um tipo
de crime, daí se retirando efeitos jurídicos imediatos, em termos processuais e em termos
substantivos. Significa isto que, procedendo-se ao término do processo, esses factos não podem
voltar a ser apreciados criminalmente para efeitos da determinação da responsabilidade criminal
daquele agente, ficando abrangidos pelo efeito preclusivo do caso julgado não só os factos

157
Assim, a acusação particular dependente não pode introduzir no processo variações substanciais de
factos (1º, f)), em relação aos factos invocados pelo MP na sua acusação, como decorre expressamente do
284º/1, in fine. A acusação do assistente nos crimes particulares, por seu turno, limita, tematicamente e da
mesma forma, a eventual acusação dependente do MP (285º/4, in fine).
158
Por exemplo, no Ac. nº 130/98, TC.
efetivamente conhecidos no processo, como todos aqueles que, encontrando-se na mesma
unidade histórica dos primeiros, poderiam e deveriam ter sido conhecidos pelo Tribunal.

E podem haver fixações do objeto do processo em momento posterior ao da


acusação? Sim, vejamos:

- Quando for apresentado RAI (para controlar a decisão de acusação ou arquivamento


do MP), o objeto passará a ser a factualidade apresentada na acusação, acrescida das variações
factuais introduzidas pelo RAI. Efetivamente, o RAI fixa um objeto do processo alargado pela
factualidade que consta desse requerimento, podendo realizar este alargamento de forma
legítima.

Ex.: se o MP acusar o arguido de furto qualificado (204º/2, a), CP) e o assistente, no


RAI, invocar novos factos que se traduzem em ameaças e violências cometidas pelo arguido
sobre a vítima do suposto furto e durante o suposto furto, o JIC irá conhecer toda esta
factualidade e pode, indiciados todos os factos, proferir uma pronúncia por roubo (um furto com
violência, nos termos do 210º, CP).

Se quem requerer a abertura de instrução for o arguido, entrarão no objeto do processo


as variações factuais que ele inseriu no RAI apresentado. Se for o assistente a introduzir novos
factos no objeto do processo, entrarão nele as alterações substanciais de factos por via do RAI,
enquanto as alterações não substanciais de factos entrarão no objeto do processo por via da
acusação dependente do 284º159.

A instrução abrangerá todas estas realidades factuais, ou seja, a acusação e o


requerimento para a abertura de instrução vão servir de referências temáticas à decisão
instrutória, o JIC encontrando-se tematicamente vinculado pelo conteúdo factual da acusação e
do RAI (na parte em que alegue novos factos) pelo requerimento para abertura de instrução. O
tribunal, quando emitir a decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia, conhecerá todo o
objeto do processo constante da acusação e do RAI. A pronúncia fixará o objeto do processo
para a fase de julgamento e a não pronuncia fixará o objeto do processo sobre o qual se
produzirá o efeito preclusivo de caso julgado, na medida em que põe fim ao processo, como já
estudámos supra quanto aos momentos de fixação do objeto anteriores à acusação.

- Devemos, ainda, abordar o saneamento do processo falado no 311º/2, b), que elimina
as alterações substanciais de factos que gerariam uma nulidade permanente do processo (379º/1,
b)). Ora, o despacho de saneamento do processo, previsto no 311º, não pode, em regra, alterar o
objeto do processo, na medida em que é feito por um juiz que vai estar presente no julgamento.
Aceitar o contrário significaria uma composição unilateral do objeto do processo pelo juiz que

159
Ver Pontos 6.9.3. e 7.1., (iii) deste Resumo.
colidiria com a estrutura acusatória do processo penal, pois teríamos o julgador a fixar o objeto
sobre o qual iria julgar.

Pode, contudo, o juiz, no saneamento prévio ao julgamento, reduzir o objeto do


processo, rejeitando parcialmente a acusação (do MP ou do assistente), na medida em que ela
implique uma alteração substancial de factos, em violação dos limites previstos nos 284º/1 e no
285º/4160.

Não se prevê idêntico procedimento quanto à pronúncia (303º) que acolha uma
alteração substancial de factos em relação aos factos descritos na acusação (do MP ou do
assistente) ou no requerimento de abertura de instrução, porque essa hipótese constitui uma
nulidade que tem de ser requerida no prazo de 8 dias, sob pena de sanação 161 (309º).

As alterações substanciais de factos não toleráveis, como indicadas no 359º, não se


conhecem no saneamento do processo, mas em momento posterior do julgamento, na produção
de prova. Só as mencionadas no 311º/2, b) podem ser conhecidas no saneamento do processo
promovido pelo tribunal de julgamento.

- O Tribunal de julgamento está tematicamente vinculado pelo conteúdo da acusação


e/ou da pronúncia (se existir), como resulta expressamente do regime de alteração de factos
descrito nos 358º e 359º, conjugados com o regime da nulidade da sentença cominada para a
violação daqueles preceitos no 379º.

A lei admite apenas uma hipótese de reformulação do objeto do processo na fase de


julgamento, através do acordo entre todos os sujeitos processuais – MP, arguido e assistente –
em relação à continuação do julgamento com a alteração substancial que surgiu naquela fase
(art. 359º/3).

De resto, surgindo uma alteração não substancial de factos na fase de julgamento, esta
pode ser acolhida, desde que o arguido tenha exercido o seu direito de contraditório sobre ela
(358º). Esta será uma variação tolerável do objeto do processo. Quanto às alterações
substanciais de factos, como indicadas no 359º, elas não podem ser consideradas pelo Tribunal,
salvo por meio da excetio tratada no parágrafo anterior. Com efeito, a vinculação do Tribunal
dita a impossibilidade de existirem novos momentos de fixação do objeto para lá do 259º/3.

- Finalmente, podemos notar mais um momento de fixação do objeto do processo


posterior à acusação: a sentença. Uma sentença condenatória fixará o objeto do processo para

160
Casos em que a acusação do MP ou do assistente é dependente, não podendo, por isso, conter
alterações substanciais de factos.
161
No caso de sanação de tal nulidade, tal implicará uma reformulação do objeto do processo por
consenso tácito entre os sujeitos processuais, na medida em que as irregularidades do objeto não foram
arguidas pelo sujeito processual nelas interessado.
efeitos de recurso; já uma sentença absolutória também o fará para efeitos de recurso e, se não o
houver, para que se produza o efeito preclusivo de caso julgado.

Nota: Para sistematizar esta matéria, ver o Esquema 5.

15.9. Delimitação negativa do problema: o que não é uma alteração substancial de factos

O que é que não é alteração substancial de factos?:

(i) Uma alteração de factos será substancial, quando a alteração tiver por efeito
imputação ao arguido de uma pena máxima mais grave ou de crime diverso, em termos já
estudados a propósito do segundo passo do percurso metodológico exposto no Ponto 15.7. deste
Resumo. Ora, o conceito de alteração não substancial de factos é definido por exclusão de
partes. Naturalmente, a alteração é não substancial quando não for substancial, quando não
atingiu os patamares do 1º, f).

A qualificação de uma alteração de factos como substancial só ocorre quando se


identifica uma possível quebra da identidade do objeto do processo, traduzida numa alteração de
factos, uma mutação intolerável do objeto do processo. Por isso, sempre que, seguindo o
modelo de análise bipartida apresentado no Ponto 15.7., identificarmos (i) uma alteração de
factos, mas (ii) não lhe reconhecermos o caráter substancial nos termos do 1º, f), teremos, a
contrario sensu, uma alteração não substancial, uma mudança tolerável do objeto do processo,
na medida em que não descaracteriza a sua identidade;

(ii) A falta de prova de factos favoráveis ao arguido pode gerar modificações da


qualificação jurídica dos factos que compõem o objeto do processo. Efetivamente, se não se
provar certa circunstância que diminua a responsabilidade do arguido, o Tribunal deixará de
aplicar-lhe um tipo privilegiado e passará a aplicar uma norma incriminadora com uma pena
mais severa. Contudo, este não constitui um caso de alteração de factos, pelo que não pode,
igualmente, constituir um caso de alteração substancial de factos.

Assim, por exemplo, se o arguido é pronunciado por homicídio a pedido da vítima


(134º, CP) e não se prova que existiu um pedido da vítima com as características exigidas na lei
penal162, o Tribunal deixará de aplicar o tipo incriminador do 134º, CP e passará a aplicar um
tipo incriminador mais grave de homicídio (o 131º ou o 133º, CP, conforme os casos).

Em situações desta natureza, toda a factualidade relevante integra o objeto do processo


desde a acusação ou desde a pronúncia (se ela existir), por isso a ausência de prova sobre um
dos factos não altera a identidade do objeto do processo (que será o mesmo quando comparado
com o conhecido em julgamento e com o decidido, mesmo que parte desse objeto se dê como

162
Caso 4) do Ponto 15. deste Resumo.
não provado) – o que se procura é uma identidade da base fáctica de valoração em todo o
processo, desde o momento em que, por excelência, o objeto se fixa.

Casos como este, devem ser tratados como alterações da qualificação jurídica (nos
termos que adiante se expõem) e não como problemas da identidade factual do objeto do
processo. O facto é conhecido pelo Tribunal, o que evidencia que compõe o objeto do
processo163, mas não será integrado no enquadramento jurídico dado aos factos, por razões
ligadas à valoração da prova produzida no processo.

Que consequências processuais se retiram da classificação deste problema como de


alteração da qualificação jurídica? Em primeiro lugar, será avaliado se essa alteração é
admissível, o que variará conforme a fase processual em que se esteja; sendo admissível, isso
será suscetível de uma série de efeitos processuais 164, bem como determinará necessariamente a
avaliação substantiva que o Tribunal fará da responsabilidade do arguido. Em segundo lugar,
poderá, em recurso, esta alteração da qualificação jurídica ser controlada, mediante contestação
da correção do Tribunal na apreciação que fez da prova (que o levou a considerar não provados
certos factos favoráveis ao arguido);

(iii) A introdução no processo de factos completamente novos, estranhos à unidade


histórico-social a que se reporta o objeto do processo. Os factos novos traduzem-se não numa
diferente representação da realidade já integrante do objeto do processo, mas sim numa
realidade completamente diferente 165. São, nesse sentido, acontecimentos completamente
estranhos à sequência unitária dos factos que integram o objeto do processo.

Não sendo uma variação do complexo fáctico já existente no processo, a introdução


nele de factos novos não constitui uma alteração de factos, pelo que não será, igualmente, uma
alteração substancial. Por conseguinte estas situações não estão sujeitas ao regime do 358º e do
359º. Nota: esta questão já se encontra amplamente tratada no primeiro passo do percurso
metodológico exposto no Ponto 15. 7. deste Resumo, para o qual se remete.

Os factos completamente novos podem ser apropriados pelo processo legitimamente em


fase de inquérito (aí junta-se-lhe mais um crime, a acusação far-se-á por concurso efetivo do
crime pelo qual se abriu o processo e do crime cuja imputação indiciária brota deste facto
completamente novo). Porém, já não podem entrar no objeto do processo após a acusação (na
instrução e julgamento), sendo, nesse caso, objeto de participação criminal para abertura de
novo inquérito, caso contrário violar-se-ia a estrutura acusatória, uma vez que o JIC ou o

163
Diferentemente do que acontece na supressão de factos da lista de provados e não provados da
sentença, como estudámos no Ponto 15.7. deste Resumo.
164
A tratar no Ponto 15.10 deste Resumo.
165
A única relação que com mantêm com o processo em que surgem é uma eventual ligação que possuem
com o arguido.
Tribunal de julgamento estariam a basear-se nesses factos para acusar o arguido de um crime
que iriam, posteriormente, julgar.

Os crimes imputados a partir de cada conjunto de factos serão, assim, tramitados em


processos autónomos, podendo, eventualmente, dar-se uma conexão de processos (competência
de um só tribunal por força atrativa de um processo sobre o outro) se alguma vez os dois
processos se encontrarem na mesma fase processual e em momento compatível da mesma. Caso
não haja conexão de processos e eles tramitem em separado até ao seu fim, o arguido tem, ainda
assim, direito ao cúmulo jurídico superveniente da pena, para que se lhe aplique uma pena única
(77º e 78º, CP);

(iv) A alteração da qualificação jurídica, mesmo que, tenha por consequência a


imputação de uma pena máxima mais grave ao arguido, não será uma alteração substancial de
factos, pois nem logra passar o crivo de ser uma alteração de factos.

O Tribunal mantém, no julgamento e na sua consequente decisão, uma certa liberdade


de qualificação jurídica dos factos, pelo que pode considerar, com base nos mesmos factos,
cristalizados na acusação, que o indivíduo é responsável por outro tipo incriminador, mesmo
que isto seja mais grave para o arguido. Apenas está limitado, nesta sua análise de direito, pela
factualidade que chega ao julgamento, pelo objeto do processo.

Nestes casos, o objeto do processo mantém-se exatamente o mesmo; apenas se altera a


qualificação dos factos em relação à que constava da acusação, da pronúncia ou da decisão do
tribunal de 1ª instância, consoante os casos. Para já interessa reter que, em função disto, o
problema da alteração da qualificação jurídica é distinto do problema da identidade (factual) do
objeto do processo.

Se existir uma alteração da qualificação jurídica, o tribunal, para a poder fazer, tem de
cumprir o regime do contraditório. Não há nenhuma norma autónoma que diga isto,
simplesmente o 358º/3 equipara o processo de acolhimento de uma alteração da qualificação
jurídica ao da alteração não substancial de factos – é necessário ouvir a defesa antes de proceder
a qualquer uma destas alterações166.

15.10. A alteração da qualificação jurídica e seus efeitos

No Ac. nº 2/93, o STJ veio defender que a alteração da qualificação jurídica dos factos
de um processo era completamente livre. O Supremo quis, com isto, afirmar duas coisas: (i) que
o Tribunal tem autonomia para decidir de direito sem se vincular, nessa matéria, pela acusação;
(ii) e que, nessa decisão, o tribunal era completamente livre quanto à conformação das soluções

166
Anteriormente, esta norma expressa não existia, pelo que TERESA PIZARRO BELEZA defendia esta
mesma solução por analogia entre as duas figuras.
de direito a dar ao caso. Ainda que a sua primeira asserção seja acertada, a segunda ideia
exposta (a da completa liberdade decisória do Tribunal) tem de ser refutada, uma vez que esta
liberdade é sempre condicionada pela existência de garantias de defesa do arguido que devem
ser cumpridas, antes de se viabilizar a alteração de qualificação jurídica – de forma mais
simples, tem o arguido de ser ouvido antes de o Tribunal proceder à qualificação jurídica dos
factos do processo.

O Ac. nº455/97, TC veio, inclusive, considerar este entendimento do STJ


inconstitucional, invalidando tal ratio decidendi evidenciada pelo Supremo no Acórdão
mencionado supra. De facto, a qualificação jurídica feita pelo Tribunal não é completamente
livre. Ainda que, do ponto de vista hermenêutico, o Tribunal seja livre (jura novit curia), tem
sempre de respeitar o contraditório, ou seja, dar tempo ao arguido e aos outros sujeitos
processuais para se pronunciarem sobre uma eventual alteração da qualificação jurídica 167.

GERMANO MARQUES DA SILVA: se o acusador omitiu um elemento essencial do


facto típico, o tribunal, nada pode fazer, quando disso se aperceba, para corrigir essa falha, a não
ser com o acordo dos demais sujeitos processuais (359º/3) ou usando dos meios processuais (do
contraditório) permitidos no 358º e 359º. Isto não significa que o erro se imponha ao tribunal; o
que sucede é que a lei apenas permite que o tribunal julgue os factos que lhe foram submetidos
e constituem, por isso, o objeto da ação.

Assim, criaram-se as condições para uma alteração legislativa ao CPP, em 1998. Antes
desta data, TERESA PIZARRO BELEZA considerava existir uma lacuna do Código quanto ao
regime da alteração da qualificação jurídica (v. nota de rodapé 163). Em 98, o legislador criou o
358º/3, que estende o regime do contraditório da alteração não substancial de factos à alteração
da qualificação jurídica. Este artigo corporiza a decisão do TC no já falado acórdão, ao
considerar que o direito de defesa do arguido também incluía a possibilidade de conhecer a
qualificação jurídica dos factos a ser ponderada pelo Tribunal e de se pronunciar sobre ela.

Nota: v. anotações Ac. 455/97, TC.

Qual é então o regime completo da admissibilidade das alterações da qualificação


jurídica?

a) A qualificação jurídica dos factos é livre durante o inquérito, algo consentâneo com
a lógica e finalidades desta fase, orientada para a investigação;

b) Na instrução, a qualificação jurídica dos factos já não será completamente livre


porque quaisquer alterações à qualificação jurídica dos factos descrita na acusação ou no
167
GERMANO MARQUES DA SILVA sinaliza outro limite à alteração da qualificação jurídica,
exclusivo do tribunal singular, que constitui o limite máximo de 5 anos da pena a aplicar quando o
processo lhe seja remetido nos termos do 16º/3.
RAI têm de ser sujeitas a contraditório (303º/5). A violação de tal regime na instrução não gera
a nulidade da decisão instrutória (309º), pois esta só está prevista para a alteração substancial de
factos. O que temos em caso de incumprimento do 303º/5 é uma irregularidade processual,
arguível num dado prazo (118º/2 e 123º). Se nenhum controlo da irregularidade se fizer (porque
ela não foi arguida tempestivamente), então a alteração de qualificação jurídica feita pelo
Tribunal convalidar-se-á com o despacho de pronúncia e vai-se a julgamento com uma nova
qualificação jurídica dos factos, já admissível;

c) E no julgamento? O regime da alteração da qualificação jurídica está expressamente


previsto no já falado 358º/3: o tribunal pode alterar a qualificação jurídica dos factos do
processo, desde que dê tempo para a defesa sobre ela se pronunciar (mesmo regime da
alteração não substancial de factos). E se o Tribunal proceder à alteração sem conceder
contraditório ao arguido? Olhando o 379º, que estabelece as nulidades da sentença, este não
contempla tal vício para a adoção inadmissível de uma alteração da qualificação jurídica dos
factos do processo, pois este normativo não foi adaptado à reforma de 98, que trouxe o 358º/3.
Contudo, se a redação do 379º visa claramente cominar com a nulidade quaisquer violações
do regime do 358º e 359º, logo também traz o vício da nulidade para as alterações de
qualificação jurídica que se provem inadmissíveis (nos termos do 358º/3). Apenas se usa a
expressão factos diversos no 379º em função de a letra do 379º não ter sido acomodada às
alterações legislativas de 1998.

COSTA PINTO considera, portanto, que se deve fazer uma interpretação atualista do
379º/1, b), para abranger, também, o controlo das alterações da qualificação jurídica, cujo
regime se encontra igualmente contido no 358º, artigo este que é mencionado na letra do 379º/1,
b). Faz todo o sentido incluir neste último artigo todas as violações do 358º, seja no que diz
respeito à alteração não substancial de factos, seja no que diz respeito à alteração da
qualificação jurídica.

Assumindo que uma alteração da qualificação jurídica é admissível, cumpre analisar


quais serão os seus efeitos.

Nota: ver a indicação dos efeitos da alteração da qualificação jurídica no Ponto 13.
Do Esquema 4 (Sumário).

- Uma mudança do tipo incriminador imputado ao arguido, pode fazer com que a
competência para conhecer do caso deixe de ser do tribunal singular e passe para o tribunal
coletivo, ou vice-versa. Pode, inclusive, influir no estabelecimento de reservas materiais de
competência desses tribunais ou até convocar a competência de tribunal de júri. O tribunal
competente depende do tipo incriminador que estiver em causa no processo.
- Noutro efeito possível da alteração da qualificação jurídica, as medidas de coação são
definidas em função do tipo imputado ao arguido e da medida da pena contemplada, em
abstrato, nesse tipo. Ora, se se mudar a qualificação jurídica, pode colocar-se em causa a
admissibilidade de uma medida de coação. Ex.: o JIC altera a qualificação jurídica dos factos a
ser conhecidos na instrução, transformado a imputação de homicídio doloso feita na acusação,
numa imputação ao arguido de homicídio negligente. Deixará de ser admissível a sujeição do
arguido a prisão preventiva, que não se aplica a crimes negligentes – esta medida de coação
deixa de poder ser aplicada ao arguido.

- A admissibilidade de certos meios de prova depende do crime a ser imputado ao


arguido. Por exemplo, no 187º vem estabelecido o regime das escutas telefónicas. Estas estão
limitadas ao inquérito e pressupõem que se encontre indiciado certo tipo de crimes. Se na
acusação o crime imputado indiciariamente ao arguido for diferente do que aquele que levou, no
inquérito, à possibilidade da realização de escutas, estas caem como meio de prova. Ou seja, a
alteração da qualificação jurídica pode ter como efeito a inadmissibilidade superveniente deste
meio de prova.

- O último efeito possível da alteração da qualificação jurídica que iremos elencar é a


alteração dos pressupostos processuais de um dado crime. Se o tipo incriminador a ser
investigado for mudado (algo que pode acontecer, como já vimos, de forma livre no inquérito)
e, com ele, se alterar a natureza processual dos crimes em análise, então podem ser exigidos
novos pressupostos processuais da legitimidade do MP para promover a ação penal. Ex.: se o
MP altera a qualificação jurídica dos factos de um crime público para um crime semipúblico ou
particular, passarão a ser exigidas a apresentação tempestiva da queixa por ofendido, ou esta e a
constituição deste como assistente, respetivamente.

Nota: ver Ponto 2., sobre os pressupostos processuais dos crimes semipúblicos e
particulares; ver Ponto 13.5., sobre consequências da alteração da natureza processual do
crime a ser analisado, sob o contexto da sucessão das leis no tempo.

Neste último ponto, podemos discernir que, ainda que a qualificação jurídica no
inquérito não necessite de contraditório (seja completamente livre), ela não deixa de ter efeitos
relevantes.

15.11. Regime das variações do objeto do processo

Chegamos, agora, ao busílis deste Ponto da matéria, a descrição do regime da variação


no objeto do processo. Nota: ver o Ponto 14. do Esquema 4 (Sumário), que elenca com
precisão e sistematização este regime. Abaixo, apenas algumas precisões quanto ao mesmo.

(i) Sendo a alteração de factos não substancial:


a) 358º/1: se o tribunal de julgamento a verificar, vai dar possibilidade de contraditório
à defesa. O 358º/1 só fala em conferir contraditório à defesa pois pressupõe que a alteração não
substancial de factos será desfavorável à defesa. Não podemos, no entanto, negar que uma tal
alteração seja desfavorável ao MP ou ao assistente. No entanto, a prática judiciária não trata
como nulidade a violação do contraditório em relação ao MP e ao assistente, na medida em que
a lei não exige expressamente que haja contraditório nestes casos. Ainda assim, quando o juiz
ouve o arguido, todos os outros sujeitos processuais são convocados e marcam presença na
audição do arguido, pelo que poderão intervir ativamente naquele ato processual – questão
verificada na praxis judiciária

Nota: ver nota de rodapé 10, p. 5, CRUZ BUCHO.;

b) Se não for respeitado o contraditório exigido no 358º/1, então a alteração não


substancial de factos é ilícita e gera uma nulidade da sentença nos termos do 379º/1, b). Não
pode o Tribunal conhecer a alteração, mas se o fizer gerará a tal nulidade. Nota: v. 424º/3, já em
contexto de contraditório exigido a propósito da decisão do Tribunal de julgamento;

c) 358º/2: se for o arguido a apresentar variações não substanciais de factos, não é


necessário seguir o 358º/1 e criar um incidente de contraditório para o auscultar quanto a esses
novos factos, uma vez que o arguido naturalmente já conhecerá a factualidade que introduz no
processo. Apresentados pelo arguido os factos que constituam uma alteração não substancial, o
processo incorporá-los-á automaticamente e o Tribunal poderá conhecer esses factos. Estes são
casos em que o objeto do processo se altera por iniciativa do arguido.

O que se pode discutir neste caso é se não será necessário que se dê contraditório quanto
aos demais sujeitos processuais (neste caso MP e/ou assistente), para que se pronunciem sobre
estas alterações trazidas ao processo pelo arguido. Ora, a lei não prevê expressamente esta
possibilidade, permitindo a alteração legítima do objeto do processo sem seguir o regime
previsto no 358º/1. PANOLO diz que isto pode suscitar questões de inconstitucionalidade, à luz
do princípio do contraditório (32º/5, CRP) e do princípio da participação da vítima (32º/7,
CRP).

COSTA PINTO e TERESA PIZARRO BELEZA consideram que, em alguns casos, no


entanto, a alteração não substancial de factos pode colidir com a pretensão acusatória do MP
ou do assistente, sendo, aí, razoável respeitar o contraditório em relação a esses sujeitos ,
mesmo que à margem do nº 1 e 2 do 358º.

Não existe um regime equivalente a este do 358º/2 para a fase de instrução, já que o
303º não contempla este caso específico de a alteração não substancial ser introduzida pelo
arguido no processo. Parece, no entanto, razoável que o 358º/2 seja analogicamente aplicado,
por identidade de razão, na fase de instrução – esta é a opinião de COSTA PINTO.

(ii) Sendo a alteração de factos substancial:

a) 359º/3 e 4: esta é a única situação em que se aceita a introdução das alterações


substanciais de factos, os casos em que existe acordo nesse sentido entre MP, arguido e
assistente. O objeto do processo alarga-se, passando a abranger os novos factos que constituem
uma alteração substancial do complexo fáctico do processo, fixado na acusação ou na
pronúncia (se existir). Forma-se assim o chamado caso julgado de consenso, sendo admissível
esta alteração na medida em que todos os sujeitos processuais acordam nela.

O 359º/4 estatui que se deve, nestes casos, após a incorporação da alteração no objeto
do processo, conceder ao arguido, sob requerimento, um prazo para a preparação da sua defesa
(não superior a 10 dias), com o consequente adiamento da audiência, se tal se provar necessário.

Este acordo não poderá ser viabilizado se a alteração substancial implicar a


incompetência do tribunal que se encontra a conhecer do processo. Nota: ver exemplo na nota
de rodapé 15, p. 7, CRUZ BUCHO;

b) Caso não haja acordo e se os factos em causa puderem ser autonomizados quanto ao
objeto do processo, eles permitiram sustentar a abertura de novo inquérito (303º/4 na instrução e
359º/2 no julgamento). A comunicação da alteração substancial ao MP para estes efeitos é
realizada pelo juiz, não deixando, por isso, o MP de manter toda a sua independência,
manifestada nos seus princípios de atuação. Não há, assim, qualquer interferência do juiz na
autonomia do MP;

c) Não existindo o acordo do 359º/3, nem sendo possível a autonomização dos factos
novos para efeitos de abertura de novo inquérito, nos termos do 359º/2, não podem os factos ser
tomados em conta pelo Tribunal para efeitos de condenação – isto nos diz o 359º/1, que RUI
PEREIRA sinaliza como uma decorrência dos princípios do ne bis in idem e do acusatório, que
impõem, neste caso, a continuação do processo sem alteração do respetivo objeto.

Surge, neste caso, uma divergência doutrinária:

Para COSTA PINTO168, estes factos podem ser conhecidos para efeitos de determinação
da sanção a aplicar, porque esta é uma operação diferente da decisão de condenação, sendo que
só em relação a esta última fica preterido o conhecimento destes factos. Tendo já sido decidida a
condenação do arguido, a determinação do quantum da pena a aplicar ao arguido far-se-á de
acordo com um regime aberto em que todas as circunstâncias (atenuantes ou agravantes da

168
No mesmo sentido, FREDERICO ISASCA, TERESA PIZARRO BELEZA e ANTÓNIO DANTAS.
responsabilidade do arguido) serão ponderáveis para definir a medida concreta da sanção
criminal. O Tribunal não está sujeito nesta operação ao princípio da legalidade 169, mas antes a
uma ponderação das finalidades das penas.

Já PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que o conhecimento destes factos


fica preterido em absoluto, ou seja, tal factualidade sai do processo, não podendo ser tida em
conta nem para efeitos de condenação, nem para determinar a medida da pena. PAULO PINTO
DE ALBUQUERQUE associa este entendimento a uma reforma do CPP de 2007, que alterou o
359º170, interpretando a expressão não ser tomado em conta (…) para efeito de condenação
como inviabilizando-o o conhecimento dos factos que constituem uma alteração substancial
quer para efeitos da decisão de condenação ou absolvição, quer como eventuais circunstâncias
agravantes ou atenuantes da medida da pena concreta.

COSTA PINTO discorda, dizendo que a lei não foi alterada em 2007 quanto a tal
expressão mencionada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, que diz, claramente, que os
factos não poderem ser tomados em conta (apenas) para o efeito de condenação no processo em
curso. É, por isso, também na letra da lei que COSTA PINTO apoia a sua tese, considerando
que a opinião de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE não colhe apoio nem na história
legislativa (na dita reforma de 2007), nem na letra da lei, que em nenhum momento diz que os
factos não podem ser tidos em conta para efeitos da determinação da medida da sanção criminal
a aplicar, apenas inviabiliza o seu conhecimento para efeitos da imputação de responsabilidade
ao arguido (para o condenar, sendo a medida da pena questão ulterior 171).

Nota: é fulcral perceber que, havendo o acordo do 359º/3 sobre a continuação do


julgamento pelos novos factos, a questão da autonomização ou não de tais factos quanto ao
objeto do processo torna-se irrelevante. Com efeito, este acordo tanto pode abranger factos
autonomizáveis como não autonomizáveis.

15.12. Quando é que os novos factos são autonomizáveis (359º/2)?

Nota: ver resposta a esta questão no Ponto 15. do Esquema 4 (Sumário).

A conclusão da autonomia dos factos em relação ao objeto do processo é relevante para


aferir se as alterações substanciais que surjam na instrução ou no julgamento podem sustentar a
abertura de novo inquérito (constituir eles mesmos o objeto de um novo processo) – esta

169
A não ser quanto ao limite máximo das penas em causa, inultrapassável à luz do princípio da culpa.
170
Esta alteração legislativa visou definir o destino dos factos que alteram substancialmente o objeto do
processo quando não sejam autonomizáveis face a ele, diferenciando-os dos factos não autonomizáveis.
Veja-se a sua exposição de motivos: No âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a
distinção entre factos autonomizáveis e não autonomizáveis estipulando-se que só os primeiros originam
a abertura de novo processo.
171
Ver Ponto 15.13., (iii) deste Resumo.
possibilidade é admitida no 303º/4, in fine para a instrução e no 359º/2, in fine para o
julgamento.

Só é possível que estes factos possam valer como participação criminal ao MP para
abertura de inquérito autónomo se forem autonomizáveis do objeto do processo em que surgem.
Procurando densificar a noção dada no Ponto 15. do Esquema 4, é necessário o preenchimento
de dois critérios cumulativos para que um facto seja autonomizável:

(i) O(s) facto(s) que compõem a variação substancial do objeto do processo devem ter,
de per se, um enquadramento típico, ou seja, devem por si só ser subsumíveis a um tipo
incriminador, pois só aí pode um facto, autonomamente, ser objeto de um inquérito.

Ex: a figura da premeditação não é, por si só, um crime, não existe um crime de
premeditação, esta pressupõe um tipo base (p.ex., homicídio). Um facto que se limite a ilustrar a
premeditação, ainda que constitua uma alteração substancial do objeto do processo, não é
autonomizável dele por não se subsumir, por si só, a um ilícito-típico;

(ii) Ademais, não pode(m) o(s) facto(s), se saírem do objeto do processo em que surgem
inicialmente (e no qual não podem ser conhecidos 172), alterar esse mesmo objeto, este não pode
descaracterizar-se. Saindo tal facto do objeto do processo, este poderá continuar a sua
tramitação – nesses termos um facto será autonomizável 173.

Um facto que não cumpra este critério, será parte do objeto do processo em curso, por
não ter autonomia quanto a ele, pelo que, abrindo novo inquérito quanto a esse facto, estaríamos
a investigar e a julgar o mesmo objeto, mas fragmentado por dois processos distintos, o que não
é aceitável: uma duplicação do objeto do processo gera litispendência.

FREDERICO ISASCA diz que certos factos são não autonomizáveis quando formam,
juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade
de sentido que não permite a sua autonomização. Já MARQUES FERREIRA diz que factos
não autonomizáveis são factos insuscetíveis de valoração jurídico-penal separados do objeto
do processo penal em que foram descobertos.

Nota: CRUZ BUCHO reúne uma certeira sistematização de exemplos quer de factos
autonomizáveis – v. pp. 16-18 – quer de factos não autonomizáveis – v. pp. 19 – 21. Dentro
destes exemplos, existem casos de fronteira, que geram controvérsia na sua classificação como

172
Se se der o acordo do 359º/3, esses factos podem ser conhecidos no próprio processo em que surgem,
pelo que não se chega a colocar a questão da sua eventual autonomização, na medida em que não será
sequer ponderado se devem ser objeto de novo inquérito.
173
TERESA PIZARRO BELEZA e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE consideram que, ainda que
sejam dissociáveis do objeto do processo, os factos autonomizáveis devem ser ainda uma variação dos
que constituem o objeto daquele processo em concreto, devem ainda incluir-se no âmbito do mesmo facto
histórico unitário.
factos não autonomizáveis ou autonomizáveis, a saber: (i) os factos que fundamentam um
concurso ideal; (ii) os factos que sustentam crimes complexos – v. pp. 22 – 27, CRUZ BUCHO,
onde se discutem amplamente estes casos.

15.13. Efeitos das alterações substanciais de factos

Antes de apresentarmos os efeitos das alterações substanciais de factos, devemos fazer


dois pontos prévios.

Em primeiro lugar, só se torna necessário discutir esta questão se as alterações


substanciais não forem autonomizáveis do objeto do processo 174, na medida em que as que
sejam autonomizáveis já têm uma solução claríssima expressamente prevista no CPP,
designadamente a abertura de novo inquérito, fruto da sua saída do processo.

Em segundo lugar, ainda que, nos termos do 359º/1, o Tribunal não possa conhecer da
alteração substancial de factos não tolerável, o processo também não cessa a sua tramitação. O
legislador, com a reforma deste regime em 2007, adicionou a expressão nem implica a extinção
da instância no 359º/1 e no 303º/3 precisamente para afastar todas as teses históricas 175 que
defendiam a suspensão da instância em caso de alteração substancial de factos. Assim, ficam
excluídos todos os efeitos da alteração substancial de factos que implicassem a extinção,
suspensão do processo.

Como diz PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, o tribunal deve prosseguir o


julgamento sem poder valorar a alteração substancial dos factos, sendo esta omissão de
conhecimento imputável ao acusador, que não diligenciou por uma instrução cabal e completa
dos factos imputados. Foi esta a intenção por trás da solução que a reforma de 2007 aportou ao
359º/1, que promove a realização de uma investigação completa e penaliza quem,
efetivamente, deve arcar com a responsabilidade pela sua insuficiência (o acusador e não o
arguido, que não poderá sofrer as consequências de uma deficiente investigação criminal).

EDUARDO CORREIA ou o TC, no seu Ac. nº 226/2008 consideram, no entanto, que a


circunstância de as alterações substanciais surgirem no processo na fase de julgamento não se
deve exclusivamente à inércia do MP, mas, às vezes, a vicissitudes da investigação que esta
entidade não pode dominar. Assim, CRUZ BUCHO, reconhecendo que a intenção do legislador

174
Ver Ponto 15.12. deste Resumo.
175
De salientar a tese da suspensão da instância defendida no Ac. STJ, de 28/01/1993 ou por
FREDERICO ISASCA, por exemplo (ver p. 31, CRUZ BUCHO). Podemos ainda salientar a tese da
extinção da instância por impossibilidade superveniente, à qual se aplicaria analogicamente o regime de
arquivamento do 277º/1 – tese sustentada por LEONOR DANTAS. De sinalizar, ainda a tese da exceção
dilatória inominada que conduziria à absolvição do arguido da instância e à posterior remessa do processo
para novo inquérito já com o objeto do originário processo alargado pela alteração substancial – Ac. STJ,
de 17/12/1997. Esta última tese foi, claramente, a maioritária na jurisprudência portuguesa até à reforma
de 2007.
tal como a descreveu PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, não deixa de criticar tal opção,
uma vez que, no seu entender, este regime (i) gera uma obrigação legal do tribunal fazer
prosseguir o julgamento com base numa acusação que não corresponde à realidade e, por isso,
de impor penas desfasadas dela; e (ii) que pode gerar a tentação do MP de acusar sempre pelo
mais, mesmo que sejam inconsistentes ou frágeis os indícios dos factos não autonomizáveis,
assim procurando evitar a eventual aplicação do regime da alteração substancial de factos.

Nota: postos que estão estes dois pontos prévios, sinalizamos os (ii), (iii) e (iv) do
Ponto 16. do Esquema 4 (Sumário), que nos discriminam os efeitos das alterações substanciais,
conforme as fases processuais em que elas surjam.

a) Se a alteração substancial se der no inquérito, esta será normalmente absorvida pelo


objeto do processo, ainda livremente variável em função da lógica inquisitória subjacente a esta
fase. Isto apenas implicará uma maior duração do inquérito, pois a investigação incidirá sobre
mais factos. Se necessário, terá o MP de pedir uma prorrogação do prazo de investigação;

b) Se uma alteração substancial surgir na instrução, a primeira conclusão a tirar é a de


que esta fase não pode ser suspensa em função dessa ocorrência (303º/3, in fine). Além do mais,
regra geral, não se reformulará, por meio de pronúncia, o objeto do processo fixado na acusação
com base em tal alteração (303º/3).

Se os factos forem autonomizáveis face ao objeto, sairão do processo e geram a abertura


de novo inquérito (303º/4).

Questão duvidosa será saber se podem tais alterações ser introduzidas no objeto do
processo, por via de acordo entre todos os sujeitos processuais, em semelhança ao que se
encontra estabelecido no 359º/3, já que esta norma se encontra prevista para a fase de
julgamento, não logrando previsão expressa para a fase de instrução. O problema que se coloca
é saber se o 359º/3 pode ser aplicado por analogia à fase de instrução. A doutrina tem vindo a
aceitar tal analogia, dizendo que mais do que por raciocínio analógico, pode o 359º/3 ser
aplicado à instrução por raciocínio de maioria de razão - se no julgamento, que é uma fase
essencial do processo, pode haver esta incorporação da alteração substancial por acordo,
então na instrução, fase preliminar e preparatória do julgamento (onde o objeto do processo
ainda não se cristalizou plenamente), também poderá haver esse mesmo acordo. Mais a mais,
uma alteração substancial de factos que ocorra na instrução tem de ser arguida, sob o véu da
nulidade, no prazo de 8 dias. Se tal nulidade não for arguida, sanar-se-á, numa ficção de
consenso tácito entre os sujeitos processuais quanto à admissibilidade daquela alteração. Se se
ficciona um acordo tácito nestes termos (arguido não se opõe, por inércia, à alteração
substancial, pelo que se infere a sua aceitação da mesma), não há razão para não admitir um
acordo expresso entre os sujeitos processuais (arguido, MP e assistente) que permita a
incorporação da alteração substancial no objeto do processo na fase de instrução.

Ex.: feita a acusação por homicídio simples, prova-se na instrução uma premeditação na
consumação do crime, fazendo-se a pronúncia por homicídio qualificado. Esta nova imputação
agrava a pena máxima aplicável ao arguido, pelo que esta alteração de factos será substancial
(1º, f)). Sendo substancial, o seu acolhimento na pronúncia gera uma nulidade da decisão
instrutória, arguível em 8 dias (309º/2). Se nada for arguido nesse prazo, a pronúncia contendo
estes novos factos convalida-se (sanação da sua nulidade por decurso do prazo) e o tribunal de
julgamento pode, legítima e legalmente, conhecer o homicídio qualificado por premeditação.

c) Quanto à fase de julgamento, já estudámos os efeitos da alteração substancial de


factos no Ponto 15.11 deste Resumo. Nota: recuperar o Ponto 14., (ii), c) do Esquema 4
(Sumário).

Pode haver acordo176 de todos os sujeitos processuais quanto à introdução no objeto do


processo da alteração substancial, algo previsto no 359º/3 e 4.

Não existindo acordo, é chamada à colação a divergência doutrinária entre PAULO


PINTO DE ALBUQUERQUE e COSTA PINTO quanto ao alcance da preterição do
conhecimento dos factos, o primeiro defendendo uma preterição absoluta do conhecimento dos
factos (saída liminar do processo); o segundo defendendo que tal preterição apenas se refere à
decisão de condenação (de imputação de responsabilidades criminais ao arguido) e não à
determinação do quantum concreto da pena.

Corre no sentido da argumentação de COSTA PINTO a ideia de que o nosso sistema de


apreciação da medida pena é aberto, ou seja, não vinculado a ditames oriundos do princípio da
legalidade. A medida da pena não influi na questão de saber se o indivíduo é ou não
responsável. Assim, também a alteração substancial de factos não conta para decidir se o
indivíduo é responsável ou não, apenas para definir a medida concreta da sanção a aplicar-lhe,
caso ele seja responsabilizado por algum crime.

176
Cumpre frisar que o acordo do 359º/3 não se refere à prova desses factos para efeitos de decisão fáctica
final, mas apenas quanto à admissibilidade da incorporação no objeto do processo da alteração substancial
de factos invocada. Será, portanto, um acordo de que a alteração substancial pode ser conhecida e objeto
da decisão final.

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