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Samuel Artigo

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DOI - 10.23925/2236-9937.

2022v28p11-43

A poética do silêncio e da sede de


Deus em José Tolentino Mendonça

The poetics of silence and the thirst for


God in José Tolentino Mendonça

*Samuel Dimas

Texto enviado em Resumo:


14.11. 2022
Aprovado em Procuraremos identificar neste artigo
22.11. 2022 de que forma a poesia de José Tolentino
Mendonça concilia os pressupostos teológi-
V. 12 - N. 28 - 2022 cos da sua experiência religiosa cristã católi-
ca com a arte literária enquanto expressão da
*Doutor em Filosofia pela sua experiência mística. Numa época que vive
o desafio da superação dos antagonismos en-
Faculdade de Ciências
tre ciência e religião, razão e fé, teologia e es-
Humanas da Universidade piritualidade, podemos encontrar na teopoéti-
Católica Portuguesa ca deste autor a manifestação de uma expe-
(UCP). Professor Auxiliar riência estética que traduz o acolhimento do
da Faculdade de Ciências mistério da vida divina na condição paradoxal
Humanas da Universidade do mundo finito. O desejo de Deus não é sa-
Católica Portuguesa ciado pela voz estridente de uma intervenção
(UCP) sdimas@ucp.pt. arrebatadora, mas pelo silêncio despojado de
uma presença inefável e recriadora. A partir
deste novo olhar, introduz a sua obra num di-
álogo fecundo com a cultura contemporânea
sequiosa de benevolente serenidade e paz. O
Deus de Tolentino manifesta-se na luz e nas
trevas como doador de sentido e de amor e
não como juiz ou cobrador de impostos.

Palavras Chave: religiosidade,


silêncio, poesia, mistério

11
ISSN - 2236-9937 Teoliterária V. 12 - N. 28 - 2022

Abstract:
We will try to identify in this article how the poetry of José Tolentino Mendonça
reconciles the theological assumptions of his Catholic Christian religious expe-
rience with literary art as an expression of his mystical experience. In an age that
is experiencing the challenge of overcoming the antagonisms between scien-
ce and religion, reason and faith, theology and spirituality, we can find in this
author’s theopoetics the manifestation of an aesthetic experience that translates
the acceptance of the mystery of divine life in the paradoxical condition of the
finite world. . God’s desire is not satisfied by the shrill voice of an overwhelming
intervention, but by the silence stripped of an ineffable and recreating presence.
From this new perspective, he introduces his work into a fruitful dialogue with
contemporary culture thirsty for benevolent serenity and peace. Tolentino’s God
manifests himself in light and darkness as a giver of meaning and love and not
as a judge or tax collector.

Keywords: religiosity, silence, poetry, mystery

1. Introdução

A mais nobre literatura também transporta um conhecimento sobre


o homem, o mundo e Deus, não se reduzindo a uma forma de
entretinimento o de adorno. Contém inquietações antropológicas,
ontológicas e escatológicas, que se comunicam de forma expressiva e
simbólica através de um discurso transpredicativo analógico-metafórico.

Na relação com as formas simbólico-míticas do texto sagrado e


com as categorias teológicas da sua espiritualidade, a poesia religiosa
portuguesa contemporânea de autores como José Tolentino Mendonça,
José Carlos Pereira, José Rui Teixeira ou Ruy Ventura, enquadra-
se na via fenomenológica e histórico-hermenêutica da metafísica que
procura a sabedoria a partir da experiência integral do homem e de uma
racionalidade conjetural analógica que não se reduz à configuração
positivista do real. Na sua procura de sentido, dá particular atenção
a uma racionalidade cordial e poética alternativa ao positivismo, ao
cientificismo, ao intelectualismo e à filosofia analítica. Quanto à forma
ou ao estilo estético, sem uma escola poética própria, estes autores

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definem-se como herdeiros do simbolismo de Teixeira de Pascoaes, dos


modernismos de Fernando Pessoa e de Ruy Cinatti e do vanguardismo
experimentalista de Ruy Belo e Herberto Helder.

Neste texto, iremos desenvolver o diálogo com a obra de José


Tolentino Mendonça, procurando identificar a sua proposta estética no
contexto de uma espiritualidade que apresenta a experiência de Deus
no horizonte de um discurso analógico e trans-conceptual. De que forma
o poeta concilia as representações teológicas da sua mundividência
religiosa com a narrativa lírica de uma poética que se apresenta como
manifestação de uma contemplação mística do real? Como conciliar uma
poética do silêncio de Deus, na recusa dos intelectualismos metafísicos
tradicionais, sem ceder aos irracionalismos pietistas e fideístas?

2. A sabedoria da arte poética


Na antologia ensaística Uma beleza que nos pertence, de José
Tolentino Mendonça, a poesia aparece definida como uma arte da escuta
do dizível e do indizível, do visível e do invisível, reabilitando o silêncio e a
capacidade de atender ao mistério deslumbrante e gratuito da vida: «Se
perdermos a capacidade de abrir os olhos e de nos extasiarmos perante
o maravilhoso espetáculo do criado, perderemos o entusiasmo para o
louvor» (MENDONÇA, 2019 a, p. 108). A poesia capta o assombro e a
surpresa das coisas, numa relação desarmada e rendida com a vida em
aberto e sem predeterminações. Esta conversão do olhar proporcionada
pela luz noturna da experiência mística contemplativa aparece na
sua obra poética A noite abre os meus olhos através da interpelação
dissidente e incrédula dos poemas perante o acabado e o definitivo:

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão


de incredulidade na omnipotência do visível, do estável,
do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não
há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido.
O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em
campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade
existe no mundo para lá daquela que não pertence a

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este mundo? O poema não busca o inexprimível: não


há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o
procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não
alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema
abraça precisamente aquela impureza que o mundo
repudia (MENDONÇA, 206, p. 102).

Através da inteligibilidade analógica e conjetural da linguagem do


paradoxo e do excesso, a poesia comunica a experiência antepredicativa
e transpredicativa do mistério do Ser que está a montante e a jusante do
conhecimento objetivo e solucionante do discurso lógico-analítico. A sua
função não é encontrar soluções para os problemas nem respostas para
as perguntas, mas é revelar a radicalidade da vida que antecede esse
plano categorial da ordem histórica e nele se manifesta silenciosamente.
A racionalidade ou inteligibilidade poética estabelece uma relação
afetiva e generosa com a realidade que proporciona a autenticidade da
sua manifestação e convoca o despojamento do nosso acolhimento.
O mundo deixa de ser um lugar de domínio e de exploração para se
tornar num espaço de cuidado e contemplação. A vida deixa de ser uma
trágica e degenerada condição, porque o mal perde a roupagem ilusória
de absoluto e a morte perde a conotação apressada de aniquilação:
«A poesia dá-nos o sentido profundo da nossa fragilidade e da nossa
vulnerabilidade. E a aceitação disso»(MENDONÇA, 2019 a, p. 102).
Tudo passa a ser compreendido como uma Graça e o coração deixa de
ter espaço para ressentimentos e para a escravatura da mediocridade. O
fulgor da poesia faz aumentar o nosso desejo de participar nas relações
misteriosas do acontecer e proporciona um saudável convívio com a
ignorância e a finitude. Aponta para o que falta, dando prioridade ao
horizonte infinito e não à meta determinada. Ao arrepio das configurações
idealistas do real, a poética de Tolentino Mendonça exprime o drama
da realidade concreta de carência e privação, considerando que a «(…)
vida ferida por contingência e escassez, dolorosamente limitada é o poço
onde a manifestação de Deus se dá»(MENDONÇA, 2019 b, p. 106). A sua
poesia espiritual traduz a experiência do abraço de Deus à humanidade

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tal como ela é, na árida caminhada histórica, não admitindo que uma
ideia de vida substitua a vida real: «Mesmo quando experimentamos
a vida como um vazio, o grande desafio é acolher a voz de Deus aí»
(MENDONÇA, 2019 b, p. 106).

Claro que temos de perguntar que real é esse sem as ideias?


Sem as ideais que centram a ação na iniciativa gnóstica e impositiva
do sujeito cognoscitivo? Nesse caso sim, porque «Não és tu que trilhas
a dura montanha / em busca da planta da vida / mas sim ela que se
incendeia / para que de longe a avistes» (MENDONÇA, 2017, p.72).
Concordamos que o realismo ingénuo deva ser substituído, não pelo
idealismo, mas pelo ideo-realismo que pressupõe uma relação com a
realidade que não é o resultado da pura subjetividade humana, mas
cujas múltiplas significações resultam da criação hermenêutica de novos
sentidos, seja pela vida lógico-científica, seja pela via analógico-poética.
Concordamos que a realidade tem uma textura não geometrizável, mas
que, ainda assim, não seria sem a razão. Não há sensações puras nem
ideias puras, tudo se desvelando nessa comunhão ancestral anterior
às categorizações e classificações intelectualistas. Para o poeta isso
significará sempre o rasgar da vida no abismo de uma queda infinita,
muito para além dos pequenos fracassos e tropeções ou desvios da
quadra, denunciados pelas ideias, tal como nos enuncia através de uma
analogia com o secretismo da estratégia militar:

O poema segue as premissas da guerrilha urbana.


Jamais revela identidades e endereços. Estabelece
que pontos de contacto não sejam escritos, apenas
memorizados. Cancela dos seus arquivos nomes legais
e ilegais e toda a espécie de informação biográfica,
mapas e planos. Não permite a ninguém conhecer a
globalidade dos elementos em campo (MENDONÇA,
2017, p.74).

A poesia é a linguagem do Excesso e do Mistério que penetra a Vida


e que dinamiza o pensamento e as emoções. A poesia é a linguagem
da multiplicidade e da diferença, da inquietação e do desassossego. A

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poesia não aceita a quietude das visões dogmáticas e acomodadas do


real e das suas relações previsíveis, porque procura os novos sentidos e
significações em que o ser se manifesta no seu ímpeto de super-abundante
comunicação amorosa. O poeta, tal como tordo, tem o olhar sempre no
horizonte e percorre distâncias inacabadas «sem calcular / a despesa
do regresso / pois a sua festa é celebrada assim» (MENDONÇA, 2017,
p.68). Por isso, a poesia também é a linguagem da fé que não satisfaz a
nossa sede, mas intensifica-a e aprofunda-a: «(…) a fé ajuda-nos a ver
na sede uma forma de caminho e oração» (MENDONÇA, 2019, p.107).
Nesse âmbito, os poemas de José Tolentino revelam a abundância do
silêncio e da privação como o verdadeiro lugar da manifestação de
Deus, máxima relação pessoal de ser: «dizer-te é inclinar-me / sobre o /
silêncio» (MENDONÇA, 2006, p.33). Os seus poemas «São muito mais
a fratura, o espaço da falta, o tempo da ausência do que propriamente o
lugar epifânico de uma presença» (MENDONÇA, 2019 a, p.109).

A poesia deste autor exprime, não o ideal de uma perfeição, mas


a fraqueza da vida real assente no paradoxo de uma experiência
espiritual em que a fé se fortalece na sede, resistindo e aprofundando-
se nos sofrimentos, afrontas e angústias. É o drama da existência na
dor das angústias e no auxílio invisível da graça que nos eleva para
a alegria da luz e para a tranquilidade da planura: «A cicatriz das tuas
derrotas / é o tapete que te leva /ao prado onde floresce / o jacinto azul»
(MENDONÇA, 2017, p.67). A dificuldade de uma vida espiritual e poética
em Deus não está na fragilidade e na vulnerabilidade, mas na rigidez
da autossuficiência e do orgulho. A sede educa-nos na esperança. Ao
contrário da arrogância do cientificismo e do racionalismo filosófico,
fundada nas certezas da demonstração argumentativa, a arte poética
traduz a insegurança dramática da vida e a sua disponibilidade para a
iniciativa surpreendente do Amor:

Tinha passado toda a noite


ele mesmo se sentia perdido
diante dessa presença sem palavras

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que lança trevas nos símbolos


e torna os argumentos
insustentáveis. (MENDONÇA, 2006, p.134)

Na experiência nómada da fé, traduzida pela poesia, o encanto


no instante das pequenas coisas prefigura a densidade da eternidade,
porque o tempo deixa de ser uma limitação do bem e do amor. A arte
continua a ser a manifestação sensível da verdade, da beleza e do bem,
e a arte poética que sacrifique o conteúdo ético, espiritual e cognoscitivo
à forma pela forma acaba por se esvair e secar como a árvore sem
a seiva das raízes. Só por si, a perfeição técnica e a inovação das
formas não fazem a arte, que tem como condição provocar uma emoção
estética que eleve o homem e não provocar o repúdio ou o transtorno
pelo aviltamento ou violação da sua humanidade. A correlação entre a
arte, a ética e a fé está bem expressa nesta abordagem. A poesia tem
um carácter salvífico se houver coerência entre a palavra e a ação: «É
possível o poema salvar, se num determinado contexto o poema for dito
por um justo ou for lido por um justo. São os justos que salvam o mundo.
Se o poema for uma forma radical de justiça, o poema salva. Se não, há
de ficar como ornamento» (MENDONÇA, 2006, p.107).

A auto-realização ou humanização, que se efetiva no contexto


histórico-cultural, encerra um desígnio divino, e a poesia manifesta
esse plano criador de ordem espiritual que antecede a ordem ético-
religiosa das diferentes culturas e civilizações. Os valores traduzem
a concretização histórica desse plano transcendente ou metafísico e
a poesia tem a função de construir e comunicar as vias insondáveis
dessa relação. Por isso, o autor rejeita a mercantilização da arte em
nome do valor irrecusável da sua experiência vital, partilhando com
Rilke a ideia de que «só são poetas se disserem “Se não escrever,
morro!» (MENDONÇA, 2020, p.123). A realização integral do homem
no processo de se tornar aquilo que é, de acordo com o plano divino
de um inefável projeto em desenvolvimento, exige a consciência da
radicalidade da experiência estética que apreende a graça sobrenatural

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no seu movimento original de proximidade ou vizinhança e apreende


o mistério do ser no estremecimento imprevisto da sua manifestação
afetiva: «O amor é um acordo que nos escapa / premissas traficadas
sem certeza noite fora / em casas devolutas, em temporais, em corpos
que não o nosso» (MENDONÇA, 2012, p.24).

Neste sentido, embora herdeiro da forma estética de autores


modernistas, neo-realistas, experimentalistas e surrealistas, como
Fernando Pessoa, António Ramos Rosa e Herberto Helder, o padre e
teólogo José Tolentino Mendonça pertence a uma linhagem poética de
carácter metafísico em que o divino surge sob a forma de misteriosa
interrogação e paradoxal presença ausente, como se evidencia em
autores como Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Fernando Echevarría, Ruy
Belo, Cristovam Pavia, Armando Silva Carvalho ou Daniel Faria. Não se
trata de uma metafísica logicista, especulativa e abstrata, fundada na
exclusividade do intelectualismo, mas de uma metafísica que apresenta
o mistério do Ser como fundamento da realidade fenoménica do mundo
que não se justifica a si mesma. Deus manifesta-se ou comunica-se
espontaneamente nas suas criaturas e na linguagem poética que traduz
essa natural vivência ou relação, antes de poder ser vislumbrado ou
apontado na frieza de um qualquer argumento: «Nesse tempo / ainda
era possível / encontrar Deus / pelos baldios. / Isso foi antes / de
aprender a álgebra» (MENDONÇA, 2006, p.12). Desta maneira, o poeta
madeirense estabelece uma correspondência entre a experiência crente
e a experiência poética, considerando que as duas se fundamentam na
mesma vivência silenciosa de espera e atenção que atravessa o drama
da existência:

As palavras que expressam o poético são as mesmas


palavras que expressam a indagação crente, a
construção da experiência crente. É como se fosse uma
única experiência. A experiência crente também é um
exercício de atenção. Também é um tempo de espera. Tal
como a poesia. O silêncio inerente à experiência poética
é, penso eu, o silêncio inerente à experiência de Deus, à
experiência crente. (MENDONÇA, 2019 a, p.110)

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No silêncio da luz noturna o homem tem a capacidade de ver a


verdadeira realidade, comungando o júbilo de as coisas serem na graça
da infinitude de Deus: «(…) ver não é habitar / o espanto de as coisas
serem?» (MENDONÇA, 2006, p.26). Na luz das trevas que vivifica a
palavra poética, o homem acede às regiões do ser que estão para além do
óbvio, em que se manifesta o espírito de Deus. A disponibilidade interior
do poeta que não reduz a realidade atribulada do cosmos à sua dimensão
visível é traduzida pela belíssima imagem das mãos vazias: «as mãos
vazias são selvagens na sua beleza / duras mesmo se vulneráveis / são
o esconderijo ideal para guardares relâmpagos / e verdades ferozmente
concisas» (MENDONÇA, 2017, p.63). As mesmas coisas e os mesmos
acontecimentos que preenchem a nossa vida quotidiana adquirem novos
sentidos iluminados pelo amor e pela esperança de quem se entrega:

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado


na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,


atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam


leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só. (MENDONÇA, 2006, p.181)

3. O carácter poético do discurso teológico


sobre o silêncio misterioso de Deus
Por isso, o autor defende que «O discurso teológico por excelência é
feito pelos poetas» (MENDONÇA, 2019 a, p.107), uma vez que Deus não

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é passível de objetivação conceptual ou de conhecimento lógico-analítico


segundo a noção cartesiana das ideias claras e distintas. O acesso a
Deus pessoal que não se reduz ao mundo nem à indeterminação da
vacuidade, porque que é ao mesmo tempo transcendente e imanente,
só é possível pela via analógica de uma racionalidade mistérica e
trans-conceptual. Essa trans-racionalidade encerra o discurso poético
da metáfora e do oximoro, porque a obscura claridade de Deus não se
capta na obediência aos princípios lógicos do modelo aristotélico: «Deus
é cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível;
transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível» (MENDONÇA,
2019a, p.55).

Deus revela-se no silêncio das palavras, porque é Mistério. Reside


no silêncio a verdadeira oração, porque por ele nos centramos em Deus
e não nas nossas ideais ou limitadas representações de Deus: «prende
na boca / o silêncio e mergulha com ele / até ao fundo / nisto consiste a
devoção verdadeira / tudo o mais é vaidade» (MENDONÇA, 2017, p.33). O
que de mais significativo conseguimos partilhar dá-se através do silêncio:
o mistério de nós mesmos. O Deus rico de misericórdia parece sempre
ausente nas injustiças do mundo: «(…) o drama do silêncio de Deus. A
dificuldade de fazer convergir finito e infinito, graça e liberdade, provisório
e definitivo, o presente e o amanhã» (MENDONÇA, 2019a, p.56). Numa
afinidade com a experiência mística e com a sabedoria oriental que não
optando pelos modelos especulativos ocidentais desenvolve uma arte
de ser e de viver, o poeta recusa a excessiva intelectualização da fé e
prefere a força simbólica das coisas simples em que se revela a força da
graça: «Precisamos de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado
e divino que é a vida, por mais frágil que seja» (MENDONÇA, 2019a,
p.189). Ora, é precisamente na sua obra escrita sob a inspiração de M.
Bashô e de Jack Kerouac, após uma viagem ao Japão, que apresenta a
sua Escola do Silêncio na forma do haiku ocidental para advertir que o
silencia não significa vacuidade: «O silêncio só raramente é vazio / diz
alguma coisa / diz o que não é» (MENDONÇA, 2013, p.15).

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O silêncio do mistério de Deus manifesta-se no devir da solidão: «É


precisamente quando estamos mais sós, quando somos nós próprios,
sem subterfúgios nem evasões, que Deus se faz mais perto de nós»
(MENDONÇA, 2019a, p.195). A solidão voluntária, que não implica
humilhação e ausência trágica, faz parte da vida espiritual, porque se
torna o habitat do encontro mais profundo connosco e com os outros,
direcionando-nos no sentido da fonte divina da vida: «O que por palavras
nos está oculto / no silêncio crepita / em intimidade» (MENDONÇA,
2013, p.20). A vida espiritual não é uma conquista que temos de dominar
e preservar, mas é um dom a partilhar e a solidão poética educa-nos
nessa generosidade. Em alternativa a uma vida possessiva de ação
e resultados, uma vida generosa e desprendida feita de espera e de
sonho: «Silêncio: / encontrámos na encosta / flores ainda sem nome»
(MENDONÇA, 2013, p.25).

O silêncio previne o risco de um mergulho numa vida inautêntica feita


de aparências e éticas provisórias e promove o caminho da santidade, que
não é um ideal extraordinário atingível apenas por uma ação heroica, mas
é a normalidade do bem na anónima experiência do quotidiano. Previne
também a redução da espiritualidade a um bem-estar intimista e privado,
sem correspondência nas ações públicas e políticas. Previne a incidência
na severidade, intolerância e lamento, e promove o crescimento na gratidão,
despojamento e confiança. E promove a amizade no respeito pelos limites
e pelo desconhecido do outro sem qualquer reivindicação de posse,
como testemunho do próprio Deus que nos visita sem constrangimentos
através do que nos é próximo: «É fundamental entendermos a vida
como mistério de visitação. A cada hora somos visitados, e desse
reconhecimento depende a paz do nosso coração, depende o vigor da
nossa esperança»(MENDONÇA, 2019a, p.18).

A amizade encerra a extraordinária forma de relação que expõe


o outro sem quebrar a reserva e violar a solidão: «A amizade não só
guarda o silêncio, mas ela é guardada pelo silêncio» (MENDONÇA,
2019a, p.20). Ao contrário do conhecimento dogmático que reivindica

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a posse da verdade e a claridade da certeza, o conhecimento filosófico


da inteligibilidade poética é fundada no silêncio e na amizade, como
aproximação mistérica à verdade porque só Deus possui plenamente
a sabedoria. Ser sábio significa reconhecer a nossa ignorância perante
a realidade infinita de possibilidades, significa compreender que somos
peregrinos e a poesia traduz essa abertura e humildade: «Deus ultrapassa
tudo / nada se pode dizer / A tua oração seja / a prece do silêncio/ (…) A
Palavra que Deus pronuncia / é silêncio» (MENDONÇA, 2012, p.36). A
poesia é o conhecimento do amor que se traduz pelo encantamento do
inesperado e da descoberta do horizonte permanente: «O amor é mais
uma exposição do que uma posse; é mais uma suplica de que um dado; é
mais uma sede do que uma barragem; é mais uma conversa de mendigos
do que um diálogo de triunfadores» (MENDONÇA, 2019a, p.23).

A sabedoria da arte poética é o excesso do amor que extravasa todas


as medidas numa dádiva salvífica não compaginável com o acordo, a
prudência, o calculismo e o pacto da negociação: «O desejo do amor é o
escondimento» (MENDONÇA, 2019a, p.24). É um risco desmedido cujo
vocabulário implica a perdição: «Amar é dar o nosso amor ao outro sem
controlar aquilo que o outro pode fazer com o nosso amor» (MENDONÇA,
2019a, p.25). A poesia é a exposição da nossa vulnerabilidade que
desarma o poder de quem gosta de exercer o domínio e o controlo: «De
facto, Deus não colocou o homem como senhor da criação, mas como
seu pastor» (MENDONÇA, 2019a, p.28). Como salienta Heidegger, o
homem não é o senhor do ser, reduzindo-o ao plano dos entes e das
categorias humanas, mas é o seu ouvinte, porque o Ser é mistério,
ocultando-se ao mesmo tempo que se revela.

Esta mudança de paradigma da adequatio ontologista entre o


pensar e o ser para a inadequação entre o pensar e o ser atravessa
não apenas a reflexão filosófico-teológica do século XX, como também
o sentido da sua arte poética, tal como se traduz em Leonardo Coimbra
quando ele define o homem como um mendigo do ser ou em Tolentino
quando radica o pensamento no silêncio do Mistério: «O silêncio

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tende a soterrar o pensamento / mas também dele / o pensamento


vive» (MENDONÇA, 2013, p.33). É nesse sentido que o poeta procura
valorizar a espiritualidade da sede e do desejo por contraposição com a
espiritualidade em que tudo está estabelecido, previsto e assegurado: «A
experiência do desejo não é um título de propriedade ou uma forma de
posse: é antes uma condição de mendicância. O crente é um mendigo
da misericórdia» (MENDONÇA, 2019a, p.162).

Estamos perante uma poética do silêncio e da ausência de Deus,


no reconhecimento de que o desejo que a dinamiza é insaciável porque
aspira ao que não pode ser possuído ou perfeitamente inteligido, porque
é Mistério: «Os que se amam dão-se a beber não da abundância, mas
da própria indigência e escassez. Amar é avizinhar o outro da minha
sede, esse outro nome possível para descrever o desejo»(MENDONÇA,
2019a, p.49). Nesta tensão entre atração e distância, que perpassa a
relação existencial, o desejo do outro procura desmentir a sua ausência
e aproximá-lo de nós: «Na corda bamba / entre silêncio e silêncio / a
vizinhança de Deus» (MENDONÇA, 2013, p.38). O máximo que se
consegue é a vizinhança, porque o outro nunca é redutível ao eu,
a diferença nunca se desfaz na identidade e, por isso, a linguagem
hermenêutica que melhor traduz esta relação é aquela que permanece
no âmbito da metáfora. O desejo permanece na alteridade do amor,
traduzida pelo sentimento da saudade ou da privação, porque nunca
seremos Deus: «O silêncio não é ausência ou negação / como ensinam
os antigos / é privação» (MENDONÇA, 2019a, p.39).

Deus é invisível, nunca ninguém O viu, e a sua verdade está sempre


em dinâmica revelação: «Temos de aceitar as representações, acolhê-
las, perceber o seu significado e ultrapassá-las. Temos de escrever o
poema de Deus para apagar o poema de Deus. E de apagar o poema
de Deus para escrever o poema de Deus» (MENDONÇA, 2019a, p.58).
O Deus de Tolentino Mendonça é um Deus que dança, que está no devir
da existência e nas interrogações do nosso silêncio, fazendo da sinfonia
inacabada do nosso júbilo a alegria da sua presença: «Muitas vezes Deus

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prefere / entrar em nossa casa / quando não estamos» (MENDONÇA,


2013, p.40). Mas a proximidade da presença de Deus que nos encoraja
para uma vida bela e autêntica, seja na graça ou na fraqueza, na
abundância ou na privação, não evita o sentimento de distância, porque
Deus é infinitamente Outro: «É verdade que, tanto crentes como não
crentes, bebemos o silêncio de Deus nas próprias mãos» (MENDONÇA,
2019a, p.60). Perante esta noção de um Deus invisível que não pode
ser conhecido pela racionalidade lógico-analítica, o risco de cairmos no
fideísmo pietista de Kant ou vitalista de Miguel de Unamuno é grande e
essa tentação não deixa de aparecer por vezes na teopoética de Tolentino
Mendonça quando, por exemplo, defende que «A mais louca pretensão
cristã não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente
a fé na ressurreição do corpo» (MENDONÇA, 2019a, p.162).

Ora, nós sabemos que a maior especificidade da religião cristã é


a sua apropriação das categorias filosóficas gregas numa síntese não
isenta da contaminação gnóstica helenista, mas que elevou o discurso
sobre a relação entre Deus e o mundo para além da configuração mítica
e mágica da indiferenciação, procurando estabelecer uma inteligibilidade
razoável ou analógica acerca da sua presença transcendente. É neste
plano metafísico da causalidade e da participação, da presença e
da manifestação, que se pode estabelecer o diálogo entre a teologia
e a ciência, sem concordismos supersticiosos e sem antagonismos
preconceituosos, numa relação de sábia complementaridade.
Efetivamente, o maior perigo da arte poética reside no abandono
da metafísica e no enclausuramento num mero jogo de palavras e
significações adornadas por figuras literárias de complexo recorte, mas
sem densidade ontológica e pertinência hermenêutica. A não ser que se
reduza a relação com o divino à experiência apofática da mística em que
silêncio e sabedoria surgem em oposição, como é enunciado no seguinte
poema: «O silêncio declara-se incapaz / de interpretar / renunciando
assim ao estatuto de saber» (MENDONÇA, 2013, p.35).

Não nos parece que na globalidade da sua obra seja este o

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entendimento do poeta. O silêncio de Deus não significa a sua absoluta


obscuridade e indeterminada transcendência, mas sim o reconhecimento
do seu Mistério que se traduz por uma presença fontal no mundo e por
uma relação pessoal com o homem experiencial na oração. A poesia é a
linguagem da oração que está a montante de qualquer expressão cultural
ou religiosa e que traduz esta nova conceção da relação com Deus.
No entanto, a noção kantiana de que estão condenadas ao fracasso as
tentativas para provar e conhecer a existência de Deus através da razão
teórica, levou a mentalidade moderna a remeter o divino para o plano
da fé, entendida esta de forma errónea como irracional ou iluminação
sobrenatural justaposta à razão natural. A legitimidade da sua tese na
recusa dos ontologismos de autores como Espinosa e Malebranche
encerra a mácula de acentuar a cisão artificial que já existia na filosofia
medieval entre razão e fé. A filosofia medieval de autores como Santo
Agostinho, Santo Anselmo ou São Tomás de Aquino, estabelece a
distinção entre fé e razão, sobrenatural e natural, mas defende a sua
conciliação e correlação. A modernidade de Descartes, Hume e Kant,
para além da distinção, desenvolve uma oposição. Ora, hoje o caminho
é, não apenas de superação da cisão e antagonismo, mas também da
distinção estabelecida nos termos tradicionais, porque não pode haver fé
que não seja também razão e não pode haver razão pura sem elementos
do âmbito da crença, da afetividade ou da imaginação. A fé enquanto dom
e graça do Espírito de Deus encerra uma racionalidade ou razoabilidade,
sem a qual não poderia ser acolhida pelo homem, seja no sentido da
configuração mítica, seja no sentido da configuração lógica ou mistérica
do real. Não é possível conceber uma distinção entre teologia revelada
e teologia racional, como se a primeira não fosse um produto cultural do
homem que inclui a faculdade racional. Não há nenhuma experiência
humana que não inclua a razão, pois esta faz parte da sua estrutura
essencial. E por isso, Kant associa a fé à razão prática de ordem moral
e espiritual.

Mas esta posição, como forma de legitimar a crença na existência

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de Deus para dar sentido ao drama da existência finita humana, não


resolve a dificuldade. Associar a crença na existência de Deus ao
exclusivo plano axiológico da ética, da estética e da espiritualidade
não significa separá-lo da razão teórica, porque esta está presente em
todas as dimensões da experiência humana. Todas as dimensões da
humanidade incluem o plano da compreensão ou da inteligibilidade:
também é assim na estética, na ética e na religião. Não pode haver
experiência da fé sem a razão cognoscitiva, como não pode haver fé
sem a emoção e sem a sensibilidade. Separar o conhecimento do amor
não é uma possibilidade. Não podemos associar a distância de Deus
exclusivamente ao plano da verdade e da cognoscibilidade e associar
a sua proximidade exclusivamente ao plano do amor, como também
reconhece Tolentino Mendonça quando recorre às noções metafísicas
de infinito e de alteridade relacional para justificar esta dialética entre
ausência e presença: «Mas a proximidade de Deus que experimentamos
não elide, nem pode elidir, o sentimento da distância que o crente sente
em relação a Deus, porque Deus é infinitamente Outro» (MENDONÇA,
2019a, p.64).

Não se pode associar a distância ao plano espistemológico do


conhecimento ou da verdade (impossibilidade da metafísica) e associar
a proximidade ao plano ético do amor e ao plano espiritual da fé, como
fez Kant, porque a experiência humana do ser e do Ser de Deus faz-
se na correlação de todas a faculdades humanas. O amor também tem
um valor cognitivo e o conhecimento também tem um valor afetivo.
Quer isto dizer que por vezes há uma certa contradição entre aquilo
que é apresentado na poesia em oposição à metafísica e aquilo que
é apresentado nos ensaios teológicos com o recurso a categorias
metafísicas. Esta dissonância não é constante, mas surge como uma
tónica que está em consonância com a orientação do movimento da
teopoética e com a orientação estética experimentalista e surrealista
dos mestres já bastante afastada da poesia metafísica do simbolismo de
Teixeira de Pascoaes e do modernismo de Fernando Pessoa. Associar

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a santidade à ausência de interrogação ou inquietação metafísica não


parece corresponder à realidade: «A verdadeira ciência da santidade /
é viver / sem porquê» (MENDONÇA, 2013, p.73). Porque, tal como nos
descreve Santo Agostinho nas suas Confissões, toda a intensificação da
vida espiritual resulta de um grave questionamento interior que encontra em
Deus o seu refúgio, não sendo o deus maniqueísta capaz de dar a mesma
satisfação que dá o Deus cristão. Discernimento que é proporcionada por
distintas lógicas de fé ou de crença ou por distintas teologias.

O acolhimento da graça sobrenatural dá-se na unidade heterogenia


do homem sem separação de faculdades, porque a manifestação de Deus
não se dá ao jeito de uma justaposição do espírito em relação à matéria ou à
maneira de uma intervenção extrínseca. Em vez de falarmos de oposição
ou correlação entre fé e razão, espiritualidade e teologia, devemos falar de
uma razão mistérica que inclui o plano do conhecimento lógico-analítico
e o plano do conhecimento analógico-conjetural, correspondendo a fé a
um dom espiritual que o homem acolhe na integralidade do seu ser: pela
inteligibilidade analógica e conjetural compreendemos a sua conotação
inefável e indizível acerca de dimensões como a metafísica, a protologia,
a sacramentologia, a liturgia ou a escatologia; pela inteligibilidade lógica,
analítica e experimental, compreendemos a sua conotação fenoménica
e epistemológica acerca de dimensões como a antropologia, a física, a
biologia, a psicologia ou a cosmologia. O problema está em não podermos
separar o conhecimento, qualquer que ele seja, da experiência sensível
e, dessa maneira, não havendo uma experiência sensível de Deus não
o podemos conhecer, como por vezes alude Tolentino usando a mesma
lógica kantiana de associar o silêncio e a visão ao conhecimento da
experiência e de associar a fé à ausência da experiência sensível: «A
maior parte das vezes, experimentamos apenas o desencontro de Deus,
o Seu extenso silêncio. Buscamos Deus sem O ver, acreditamos n’Ele
sem o experimentar, escutamos a sua voz sem verdadeiramente O
ouvir»(MENDONÇA, 2019a, p.73).

Sim, não o podemos conhecer no registo da objetividade empírica

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(positivismo), mas isso não significa que o não possamos conhecer


num outro plano da ordem metafísica através da experiência espiritual.
A experiência do homem não se resume ao plano material sensível.
Se não houvesse qualquer tipo de experiência de Deus na unidade de
razão, emoção, imaginação, crença, não seria possível afirmarmos a sua
existência, mas se essa experiência fosse de evidência sensível e objetiva
não haveria como o recusar e o ateísmo ou agnosticismo passariam a
ser sinónimo de pura ignorância, tal como é ignorância afirmar que o
planeta Terra não é redondo. Afirmar a existência de Deus sem qualquer
experiência racional e emocional é reduzir a fé a uma crença irracional,
acreditando nele como se pode acreditar num unicórnio. Esvaziar a fé da
razão e do conhecimento é reduzi-la ao plano imanente da subjetividade
humana, como pura criação da imaginação e da vontade, ou da natureza
sensível no sentido panteísta e animista da totalidade indiferenciada.
No capítulo Vida Monástica da sua obra A Papoila e o Monge, o poeta
no registo da experiência mística sobre o silêncio e a indizibilidade de
Deus começa por fazer uma associação tipicamente oriental do nada
ao divino «Os que se assemelham a nada / assemelham-se / a Deus»
(MENDONÇA, 2013, p.51) e depois estende-a ao registo monista de
tudo se identificar com Deus: «Em Deus tudo é Deus / uma simples folha
de erva / não é menor do que o infinito» (MENDONÇA, 2013, p.97).

Ora, estas afirmações apenas se podem compreender no contexto


teísta, e não panteísta, se pressupuserem uma sólida reflexão metafísica
sobre a estrutura analógica do real e o seu discurso trans-conceptual
acerca da identidade que não exclui a diferença e acerca da imanência
que não exclui a transcendência: «Na orla do mundo o absoluto existe
/ mas apenas de modo análogo / pode ser dito» (MENDONÇA, 2013,
p.164). Esta diferença ontológica subjacente à noção cristã de Criação,
por distinção com a noção grega de emanação degradativa da unidade
divina na pluralidade existencial, é assinalada, não apenas pelo uso
do conceito de «analogia», mas também através da preservação do
conceito de “semelhança”: «Em Deus tudo se assemelha: a tua prece e

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o canto / da rã» (MENDONÇA, 2013, p.92).

Tolentino Mendonça pertence a uma escola filosófico-teológica


que revaloriza a dimensão imanente da ação divina, afastando-se dos
dualismos deístas tradicionais e, por isso, não podemos estranhar que a
representação poética da relação com o divino se traduza pelo carácter
da sua «expressão» e «manifestação» sensível no mundo: «A primavera
a zumbir / com os seus olhos azuis de papoila: / novas e belas as vestes de
Deus» (MENDONÇA, 2013, p.94). A dimensão natural não é uma ilusão
nem é uma oposição à dimensão sobrenatural da realidade, mas é a sua
manifestação existencial e sensível que não anula a diferença dialógica
ou relacional: «Ver Deus em toda a parte / como se ele estivesse ali / e eu
aqui» (MENDONÇA, 2013, p.78). Embora formalmente expresse muitas
vezes um certo distanciamento da especulação filosófica metafísica está
assim comprovado que a sua poética encerra um carácter metafísico
teísta, servindo-se explicitamente da sua nomenclatura.

Mas por outro lado e simultaneamente, a poesia de Tolentino


Mendonça sublinha que a razoabilidade da nossa afirmação da existência
de Deus não resulta apenas da reflexão analógica e conjetural metafísica
acerca das relações de causalidade, participação, criação e manifestação
entre a realidade infinita do Criador e a realidade contingente e finita das
criaturas, nem resulta apenas das experiências ética e espiritual como
participações na alegria, na justiça, no amor e na esperança de Deus,
mas resulta também da experiência estética ou sensível da existência
mundana que se constitui como comunicação insondável do próprio Deus,
quer na vulnerabilidade e na carência da incompletude como sentimento
de dependência e de procura de sentido, quer na harmonia abundante da
vida e da beleza: «Contra o mundo domesticado dos discursos, a beleza é
a inevitabilidade de uma experiência» (MENDONÇA, 2019a, p.31).

Nas experiências do amor, da beleza e do gosto, fazemos a


experiência sensível e afetiva de Deus e a poesia é uma das linguagens
estéticas que nós temos para dizer as expressões dessa relação. Deus

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é experienciável de forma sensível no simples facto de existirmos e de


vivermos, tendo consciência disso, e, por isso, na unidade da sensibilidade
e do entendimento: «Acredito num Deus imiscuído, engajado, detetável
até pelo impreciso radar dos sentidos (…)» (MENDONÇA, 2019a, p.59).
Compreendemos que tudo é manifestação de Deus, sem ceder ao
panteísmo, pela compreensão analógica e paradoxal dessa presença
manifestativa ou dessa contínua ação criadora que é, ao mesmo tempo,
transcendente e imanente, identidade e diferença. Nesse sentido, somos
convidados a reformular a experiência de Deus dizendo que «Deus é o
caminho (…) Deus é a água que corre, Deus é o rosto da criança, Deus
é a intacta porção da luz, Deus é o dia que rasga a noite» (MENDONÇA,
2019a, p.174), mas Deus também é Mistério que sustenta o nosso ser
cuja experiência de escuta e procura não encontra resposta e satisfação
na imanência (MENDONÇA, 2020, p.52).

É na unidade da compreensão metafísica e científica, filosófica e


teológica, estética e ética, mística e religiosa, sensível e espiritual, que
o mistério da relação do homem com Deus é depurado dos desvios
irracionalistas da superstição, do mito, da magia, do fideísmo, do
ontologismo e do panteísmo, e é depurado dos desvios racionalistas do
deísmo, do agnosticismo, do maniqueísmo, do dualismo, do secularismo,
do cientificismo e do positivismo. Com frequência, a arte poética
foi colocada ao serviço da cisão fideísta e pietista da modernidade,
constituindo-se como a linguagem da irracionalidade religiosa e espiritual
contra a linguagem da racionalidade filosófica e teológica. Ora, acontece
que a poesia, nas suas dimensões analógica, conjetural, imaginal,
metafórica, deve ser entendida como o discurso trans-racional ou trans-
conceptual das ordens atemática e transpredicativa da experiência
radical do Ser ou do Mistério de Deus, estabelecendo a síntese mistérica
e simbólica superadora da oposição entre mito e logos. Compreendemos
que a nossa experiência de Deus não se situa no plano animista das
religiões antigas da natureza, pela compreensão da relação analógica
de dependência e autonomia entre o Criador e as criaturas e pela

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compreensão da relação espiritual. A experiência de Deus é da ordem do


afeto na morada interior do homem: «As grandes experiências humanas
estão do lado do inefável, do intraduzível, do sem-nome, do silêncio»
(MENDONÇA, 2019a, p.119).

No pressuposto da cisão kantiana, iniciada em Locke e D. Hume,


alguns movimentos da nova teologia que procuram um discurso
renovado sobre Deus em diálogo com a cultura e em rutura com o auto-
centramento das perspetivas escolásticas e dogmáticas, estabelecem
uma oposição entre teopoética e teologia metafísico-hermenêutica,
contrapondo imaginação e conceptualização, fé e razão, religião e ciência,
e caindo numa certa irracionalidade fideísta. Ora, essa não é a solução
para se resolverem os problemas de uma teologia substancialista ainda
prisioneira da contaminação gnóstica e da imagética mítica, que faz da
liturgia um ritual mágico ininteligível para o homem científico e técnico de
hoje. O mundo está criado em proporção com o nosso conhecimento, está
comensurado connosco porque encerra uma racionalidade resultante do
desígnio criador. O nosso cérebro está programado para compreender
a natureza, embora a cada compreensão outros problemas surjam
numa complexidade, beleza e diferença inimagináveis, remetendo para
a infinitude da bondade de Deus. O mundo é bom e compreensível,
permitindo o desenvolvimento científico e a oposição ao ceticismo, porque
até a sua dimensão material inerte, biológica e vulnerável expressa a
beleza e a bondade de Deus: «Só a vulnerabilidade nos eleva à altura do
infinito à maneira de uma dança, onde a gravidade é vencida pela graça»
(MENDONÇA, 2019a, p.211).

Em vez de uma distinção antagónica, seria útil estabelecermos


uma complementaridade entre a teopoética e a teologia metafísica
a partir do pressuposto epistemológico de uma inteligibilidade trans-
conceptual e analógica e de um discurso transpredicativo metafórico
que supera o dualismo da escolástica decadente e do gnosticismo e que
recupera a dignidade da reflexão sobre a imanência de Deus, tal como
acontece com o panenteísmo de  Sallie Mcfague, com a correlação entre

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transcendência e imanência de Jürgen Moltmann, ou com transcendência


imanente e imanência transcendente de Béla Weissmahr, superando a
visão maniqueísta da coeternidade entre o inferno e paraíso negada
por autores como Karl Rahner. O poeta socorre-se das dialéticas entre
ausência e presença, silêncio e voz, distância e proximidade para
caracterizar a paradoxal relação de Deus com o mundo e com o homem:
«Sem a proximidade primordial nem seriamos gerados. Mas também
sem a separação e a distinção progressiva a nossa existência não teria
lugar» (MENDONÇA, 2020, p.40).

4. A arte como experiência da beleza e da bondade do mundo e a


poética da esperança na redenção cósmica
A arte tem a capacidade de provocar uma emoção positiva sobre a
vida e sobre o mundo. Na exuberância da emoção estética aprendemos a
agir sem a contenção do medo e sem a travagem do cálculo. Controlamos
a suspeita da dúvida e afastamos a obsessiva desconfiança de que a
realidade é uma ilusão dos sentidos. Aprendemos a arriscar no tempo
e a usufruir do espaço, numa confiança ilimitada no dom da vida e nas
formas da existência: «Há uma verdade na beleza do mundo que somos
chamados a hospedar» (MENDONÇA, 2020, p.68).

A arte pode constituir-se como uma prevenção contra o pessimismo


gnóstico dos dualismos maniqueístas que estabelecem a contraposição
entre o espírito e a matéria, a alma e o corpo, o sobrenatural e o
natural, o divino e o mundano. A inteligibilidade da arte está menos
contaminada pelo ideário moralista da culpa e pela metafísica da cisão
que vê na temporalidade uma degradação ou degeneração da perfeição
absoluta. A arte poética tem a capacidade de vislumbrar o Deus
vulnerável e mais próximo à relação, o Deus do silêncio que se esvazia
para acolher a alteridade na abundância do seu Amor. A arte valoriza
a relação emocional com Deus, que no contexto grego foi negada,
porque o divino estava reduzido ao plano inteligível da imutabilidade por

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contraposição com a temporalidade associada ao precário e ao mal. A


forma material da realidade não é uma degradação de Deus nem uma
derivação de um princípio mau. Toda a realidade sensível exprime a
beleza e a bondade de Deus. O poeta adverte para a necessidade de
recuperarmos a experiência originária de Deus que ama a sua criação,
manifestando-se nela, redimindo-a e plenificando-a. Por isso, o poeta
lamenta que ainda estejamos presos a este intelectualismo e posiciona-
se na perspetiva contemporânea existencialista: «Preocupamo-nos
mais com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a
sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Acudimos mais à
razão que ao sentimento (…) Nós intelectualizamos demasiado a fé»
(MENDONÇA, 2020, pp. 188-190).

A arte promove uma atitude contemplativa num olhar para além de


nós que excede a cerca das nossas ocupações imediatas. Permite-nos
superar o âmbito da imposição e conquista intelectiva e técnica para
acolher o que surge como inexplicável dom. Conduz-nos a transmutar
a voragem impiedosa, consumista e dispersiva do chrónos no tempo
vagaroso, gratuito e oportuno do kairós. Liberta-nos da visão quantitativa
e vertiginosa do sem tempo para uma visão qualitativa e graciosa do
tempo para. Pela arte poética não nos deixaremos devorar ou engolir
por Cronos na correria ofegante dos dias e na ilusão das convenções
economicistas e cientificistas. A arte poética ajuda-nos a não adiar a vida
para uma ocasião que nunca se proporciona, centrando-nos na relação
essencial de admiração, exultação e saudação.

A arte seduz-nos para além de uma vida de convicções e práticas


e educa-nos na atenção à beleza das coisas simples, como a frescura
de uma aragem numa tarde quente, ou a cor forte de uma buganvília
numa parede de cal. A experiência poética educa-nos na unidade do ser
e da beleza que nos atrai para fecundar a esterilidade da racionalidade
predicativa fora de qualquer código, artificio ou método, e estabelecer a
vida que nos pertence: «A beleza é uma metafísica concreta, uma teologia
visual, um ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível,

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encarnação do espírito, forma sensível daquilo que é suprassensível»


(MENDONÇA, 2019a, p.31).

Através do olhar poético que vê a natureza como uma criação e


manifestação de Deus que está destinada à plenificação da glória
celestial, podemos vencer a exploração selvagem dos recursos do
mundo e voltar a reconhecer o aroma das flores. Julgo que a vida poética
é uma vida frugal centrada no desejo de ser e de viver livre do cárcere
do desnecessário. O regresso à natureza exige esse despojamento e
com ele regressamos aos sentidos: «Deus vem ao nosso encontro pelo
mais quotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos.
Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida»
(MENDONÇA, 2019a, p.179). Mas a presença de Deus não se traduz
por um providencialismo fantasioso e mágico que nos desresponsabiliza,
porque a criação desenvolve-se com a nossa colaboração.

Por isso é necessário purificar as representações e imagens de


Deus que muitas vezes não passam da projeção das inseguranças e
medos da humanidade, vivendo a gratuidade relacional e amiga da sua
presença, sem a necessidade de sacrifícios ou o medo de punições, e
sem a expectativa de recompensas: «(…) persistimos numa imagem de
Deus que exige de nós sacrifícios, quando o Deus de Jesus Cristo quer a
vida justa, a vida plena, a vida levada à sua alegria»(MENDONÇA, 2019a,
p.61). Tolentino Mendonça é uma das vozes culturais mais reconhecidas
do Cristiniano contemporâneo que recusa a visão gnóstica, maniqueísta
e legalista romana de um Deus justiceiro que centra a sua ação na
contabilização das faltas e boas ações do passado para condenar
ou salvar eternamente no futuro, e centra-se na relação de amor que
alimenta o presente de cada um.

Esta mudança de paradigma centra-se numa nova abordagem ao


texto revelado pelo abandono da exclusividade da hermenêutica histórico-
crítica e pela adoção de uma abordagem narrativa, no reconhecimento
de que a personagem de Jesus não nos é apresentada de forma

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linear e acabada, mas em estado de construção. Através da exegese


narrativa, em diálogo com autores como Greimas, Paul Ricoeur, Metz ou
Alonso Schökel, o poeta conclui que «(…) a verdade bíblica é solidária
com o seu meio expressivo, já que fé e linguagem intrinsecamente se
reclamam» (MENDONÇA, 2004, p.20). Recuperando o património
do raconto, arte que serviu a judeus e cristãos para expressarem a fé
bíblica, a narratividade é identificada como a forma literária do kérygma
que explicita um sentido teológico.

Não é possível aceder à verdade da fé cristã sem reconhecer a sua


profunda estrutura metafórica ou narrativa. Só dessa maneira é possível
superar as posições historicistas, dogmáticas ou espiritualistas que
submetem a verdade do sentido bíblico a um subjetivismo devoto de
cariz mítico. O reconhecimento das formas poéticas de uma narrativa
bíblica que inclui o narrador que conta a história, os personagens, a
intriga, o tempo e o espaço, permite superar dificuldades aparentemente
irresolúveis que os concordismos cientificistas e os dogmatismos
historicistas procuraram resolver de forma extrínseca. O texto deixa de
estar aprisionado ao seu contexto original porque encerra uma dinâmica
autónoma que manifesta ao leitor uma grande potencialidade de
significados e uma pluralidade de leituras. A revelação bíblica consiste na
substituição do tempo cronológico pelo tempo kairológico da salvação,
o qual se comunica de forma poética e parabólica em torno de noções
centrais como hospitalidade, perdão, silêncio, e amor. Ora, estas noções
bíblicas presentes no episódio de Lc 7, 36-50 ecoam em toda a poética
de Tolentino de Mendonça como faróis que orientam o leitor na sua
aproximação à significação do texto:

Através da terra o amor


torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes

O amor vive na ponta dos cabelos

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O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso


qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma

Os inocentes que se amam dizem


teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite

Os inocentes que se amam


por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio. (MENDONÇA, 2006, p.195)

A consequência mais radical e fascinante desta abordagem narrativa


é a valorização do evangelho da misericórdia, que o poeta diz ainda
estar por descobrir numa cultura gnóstica e legalista que se habituou
a cultivar a imagem de um Deus justiceiro, intransigente e castigador.
Em alternativa o poeta salienta que a justiça de Deus não é punitiva,
mas iluminada pela misericórdia que consiste no reencontro, na arte de
curar, na experiência do perdão e no excesso do amor: «Crer em Deus
é, portanto, crer na misericórdia» (MENDONÇA, 2019b, p.136).

No horizonte da parábola do filho pródigo ou do pai misericordioso,


é verdade que Deus pai respeita a liberdade do filho na sua opção pela
separação, mas também é verdade que pelo seu excesso de misericórdia
ou compaixão, acolhe-o e salva-o reintroduzindo-o na intimidade da
sua casa, mesmo sem merecer. Recebe-o com um banquete, numa
analogia ao banquete do paraíso celestial. Incapaz de regressar apenas
pelos seus pés, Deus antecipa-se e pela ação da graça transporta-o
ao colo do seu amor: «A misericórdia é isso. Não é esperar que o outro
faça o caminho: é antecipar-se e carregá-lo aos ombros como a outra
parábola do bom pastor nos ensina (Lucas 15:4-7), aceitando as suas
feridas, as suas vulnerabilidades e reintroduzindo-o na esperança,
sinónimo da festa» (MENDONÇA, 2019b, p.133). Embora saiba que o

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filho procedeu de forma errada, abraça-o e cobre esse mal redimindo-o


ou transformando-o com o seu amor. Perante a indignação do irmão
leal e justo, o pai diz «tínhamos de fazer uma festa», para nos fazer
compreender que há uma obrigação que nasce da esperança e do desejo
de relançar a vida. Por compaixão e numa decisão de incondicional
amor, Deus redime a nossa vulnerabilidade e não deixa ninguém de fora,
mesmo que isso implique ir ao seu encontro, obrigando-o a regressar.
É a imagem mais adequada para explicar a redenção universal em que
por infinita misericórdia Deus todas as criaturas serão transfiguradas na
abundância e excesso do seu amor, tornando-se descabido admitir a
condenação eterna. Mesmo na eventual resistência de algum filho, o
pai sabe o que é melhor e no esplendor da sua irrecusável presença
atrai a si os corações mais endurecidos, conduzindo-os à conversão.
Na condição existencial da vida terrena essa resistência pode não ser
totalmente vencida, mas no além morte Deus será tudo em todos e todos
os seres serão n’Ele glorificados.

Mas o pai misericordioso não se deixa capturar


pelo juízo. Ele vê no espelho da misericórdia que o
filho regressa como quem vem de uma guerra, todo
estilhaçado, maltratado e ferido. Ora, se não há excesso
de amor que ajude a curar as feridas, que dê um novo
horizonte, que seja uma alavanca não há solução. O
filho não poderia entrar em casa pelos seus pés. Ele
precisava de ser levado ao colo pelo amor do pai. A
misericórdia é isso. (MENDONÇA, 2019b, p.133)

A misericórdia tem como alcance último a verdade da vida imortal


da pessoa, a qual é esperada na existência terrena de acordo com a
promessa de Deus. A poética da esperança é específica do teísmo
cristão, constituindo com a fé e a caridade o âmago da mensagem paulina
aos Coríntios (1.ª Coríntios 13, 13). Concebidos como dons da Graça de
Cristo, pela fé o homem adere livremente a Deus e às suas verdades
reveladas, pelo amor constrói a ordem social justa e boa com o objetivo da
perfeição e da felicidade, pela esperança aguarda a plenificação na vida
eterna depois da morte terrena. Estas três virtudes teologais resumem

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a doutrina do teísmo cristão e constituem as estruturas invisíveis da


obra poética de Tolentino Mendonça, tal como se pode comprovar pela
leitura do seu texto Esperar contra toda a esperança, escrito em diálogo
com a encíclica Spe Salvi de Bento XVI e com as teologias de Dietrich
Bonheffer, Françoise Mies, Eberhard Bons e Jürgen Moltmann.

No seu entender, a esperança não pode ignorar os absurdos do


drama histórico pelo que terá de se sujeitar à prova da desesperança
traduzido por São Paulo com a expressão «esperar contra toda a
esperança» (Rm 4, 18). Não a esperança imediata e utilitarista, mas a
esperança profunda, humilde, silenciosa e crucificada que dá sentido à
vida, garantindo ao crente a infinita possibilidade de um destino glorioso
sem sofrimento e sem morte. Esta esperança em Deus remete, ao
mesmo tempo, para o presente no sentido de preservar e suportar a
vida e para o futuro no sentido de um horizonte transcendente meta-
histórico. Ou seja, remete para a verdade de uma salvação que já está
em curso no quotidiano do dia-a-dia e para a verdade da salvação futura
no cumprimento escatológico da história: «Os cristãos vivem no tempo.
Eles são membros de uma comunidade escatológica que se configura
como uma realidade futura já iniciada, mas que aguarda ainda a sua
consumação final e é, por isso, inseparável do presente histórico»
(MENDONÇA, 2015, p.16).

Este presente de questionação e tribulação põe à prova a esperança,


que não se constitui como uma exaltação imaginária ou ficcional que nos
subtrai ao devir histórico, mas como algo que se exercita na paciência
e na resistência ao mal e ao absurdo. Enquanto seres inacabados e
incompletos temos na esperança a graça espiritual que nos remete
para possibilidades desconhecidas: «A ação do Espírito Santo é uma
prova de que uma nova era já começou e que a sua consumação final
não tardará. Os gemidos e a fadiga são um indício eloquente de que a
condição presente da criação se resolverá num estádio glorioso, que
incluirá a redenção do cosmos» (MENDONÇA, 2015, p.22). A redenção
não se resume à alma, no sentido dualista e gnóstico do pensamento
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grego, ou à carne, no sentido fenomenológico da subjetivada afetiva de


Michel Henry, mas estende-se ao homem na sua totalidade pessoal de
soma, psique e pneuma e estende-se a toda a Criação, naquilo que pode
ser denominado por uma redenção universal e integral.

Pela cumplicidade da vida contemplativa, a esperança exprime-se


na humildade e na magnanimidade, na doçura e na benevolência, na
paz e na serenidade, surgindo inseparável da alegria, da dor e da graça.
Por ela vivemos na tensão e dinamismo do presente a prefiguração da
vida futura. A esperança conduz-nos para além do plano reduzido das
nossas evidências e visões parcelares e num movimento de expansão
antecipa a plena consumação do homem e do mundo na vida gloriosa
do amor total de Deus. Em diálogo com o filósofo Sören Kierkegaard, o
poeta caracteriza a esperança como um viver o drama da vulnerabilidade
e da incompreensibilidade do desígnio da criação na respiração longa e
distendida da ininterrupta promessa de Deus(MENDONÇA, 2015, p.37)

Através do seu poema Escatologia traduz o modo como podemos


conceber essa vida futura e definitiva de excesso e infinita misericórdia,
que já é a vida presente:

E, por fim, Deus regressa


carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder

Eis que Deus sobe a escada íngreme


mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente

Qual de nós dois é a sombra do outro?


Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore (MENDONÇA, 2012, p.51).

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5. Conclusão: o sentimento libertador da ausência presente de Deus


O cardeal José Tolentino Mendonça é um dos mais ilustres
representantes da cultura lusófona no âmbito da relação entre
espiritualidade e metafisica, não apenas pela qualidade da sua obra
de ensaísta, poeta e hermeneuta, mas também pela capacidade de
promover o diálogo entre a teologia e a literatura, a religião e a cultura,
tal como viria a ser reconhecido pelo Papa Francisco. Promotor de uma
nova forma de fazer teologia no CITER - Centro de Investigação de
Teologia e Estudos de Religião da Faculdade de Teologia da Universidade
Católica Portuguesa, o poeta desenvolve uma profunda cumplicidade
entre a arte literária e a reflexão teológico-filosófica no pressuposto de
que devemos construir um entrecruzamento entre o tempo da graça
e o tempo da calamidade, dando lugar ao inesperado e ao diverso,
hospedando a diferença e a surpresa na esperança de que o futuro trará
a plenitude do Amor (MENDONÇA, 2020, p.115). A filosofia e a teologia
apresentam-se como atividades criadoras do máximo sentido e através
da literatura manifestam a sua linguagem natural de carácter metafórico
num caldeamento espiritual que não se aprisiona nas repetições e
cálculos, mas que se abre ao inesperado no respeito pelas diferenças
(GONÇALVES, 2011, p. 694)

A partir de uma visão dinâmica, flexível e aberta da realidade, o


poeta religioso considera que o homem vive em permanente trânsito
podendo encontrar no futuro o sentido para os absurdos do drama
presente. O autor tem uma missão particularmente importante nessa
perspetivação, comunicando através da palavra ainda não dita que
todos somos infinitamente amados por Deus e que todos podemos ser
protagonistas da beleza da escuta, do cuidado e da compaixão. A poesia
consiste numa navegação interior que não se conforma com os limites
da linguagem conceptual e das ideias de uma época e abre as mãos ao
mistério misericordioso do Infinito, seduzindo o homem para a beleza
divina (VILLAS BOAS, 2021, p. 19).

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A tentação para o irracionalismo fideísta é travada por uma


espiritualidade bem consolidada no conhecimento vivencial da tradição
teológica e da hermenêutica bíblica que o Cristianismo desenvolveu em
diálogo constitutivo com a filosofia e a ciência. Nesse sentido, a sua poesia
nunca deixou de ser metafísica, embora pelos caminhos renovados da
experiência fenomenológico-hermenêutica que, no horizonte relacional
da radicalidade histórica, conduzem à vivência de uma transcendência
imanente apenas comunicada pela linguagem analógico-metafórica do
paradoxo e do excesso.

Deus habita hoje nas páginas de poesia e no imaginário dos seus


autores também sob a manifestação indizível de silenciosa ausência
(TEIXEIRA, 2017, p. 19), como se uma presença arrebatadora
dispensasse a necessidade do nome, estilhaçando os limites do
conceito e do rito. Mas o facto de serem transbordados não significa que
sejam aniquilados, porque a sua significação vai mediando a presença
do Mistério nas circunstâncias da História. A ausência explícita do
semantema na poesia espiritual de autores como Tolentino Mendonça
não traduz a ausência de Deus de um mundo secular, mas significa o
reconhecimento de uma Presença maior que não está presa ao templo
sagrado ou ao formulário mágico, mas arrebata todos os lugares do
Cosmos e da experiência humana afetiva e intelectiva sob a forma de
Esperança.

Os novos conceitos para racionalizarem a experiência atual da


ininteligibilidade de Deus são uma exigência de autenticidade. Deus não
pode ser possuído e delimitado em sistemas filosóficos e teológicos,
mas pode ser interiorizado e amado por meio de palavras e gestos
de significação filosófico-teológica mistérica. A presença real de Deus
não está confinada a um espaço objetivo e cousificado pelos limites
mágicos de madeiras nobres e metais preciosos. O Deus de Tolentino
está na liberdade infinita da metáfora que é a vida desconcertante do
homem despojada do auxílio de Deus para as tarefas do mundo. É nesta
ausência explícita que se evidencia a verdade da sua Presença, intuída

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no pressentimento de quem se sente existir quando a face é tocada por


uma brisa suave.

A poesia que hoje revela este Deus também é teológica e filosófica,


mas a racionalidade desta significação teológico-filosófica é mistérico-
metafórica e não puramente lógico-analítica. A racionalidade poética
desta experiência religiosa trans-conceptual revela-nos um Deus que
nos acolhe e liberta no mais profundo abismo de nós mesmos de forma
absolutamente gratuita.

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