A Ascese Nas Conferências de João Cassiano Fundamento para Um Discipulado Florescente
A Ascese Nas Conferências de João Cassiano Fundamento para Um Discipulado Florescente
A Ascese Nas Conferências de João Cassiano Fundamento para Um Discipulado Florescente
Apoio CAPES
Belo Horizonte
2014
1
Vanderlei Bueno da Silva
Apoio CAPES
Belo Horizonte
2014
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
CDU 248.1
3
4
5
AGRADECIMENTOS
6
"Ter fé significa decidir que no âmago da existência
humana há um ponto que não pode ser alimentado e
sustentado pelo que é visível e tangível, mas que
toca na fímbria daquilo que não é visível, a ponto de
este se tornar tangível para ele revelando-se como
algo indispensável à existência". (Bento XVI)
7
RESUMO
8
RÉSUMÉ
Il n'est pas possible de suivre les enseignements du Christ et y rester fidèle sans le
minimum d'ascétisme, c'est-à-dire, de vie ascétique. Avec de la discipline nous arrivons
à tout. L'objectif de ce travail c'est de corroborer cette thèse et mener dans cette pratique
ceux qui veulent faire route en tant que disciples de Notre Seigneur Jésus Christ. C'est
probablement un enseignement de la même veine, entendu par Cassien à Bethléem, qui
lui avait donné envie d'aller vivre avec les moines d'Égypte lesquels faisaient route dans
la voie escarpé du renoncement le plus élevé avec, à la cime, la perfection de la charité
apostolique. Dans les Conférences de Jean Cassien nous pouvons trouver un contenu
ascétique et mystique bien élaboré dont le but est celui présenté par cette dissertation. Et
nous dirions plus encore: dans la quête de l'Absolu, avec Cassien, au fur et à mesure,
nous nous rendons compte qu'il y a encore plus haut dans la perfection. Nous sommes
dans un monde qui nous a été donné et aussi à la suite de l' histoire du salut qui a été
proposée à nos ancêtres. Ils nous ont beaucoup apporté de leurs expériences et nous ont
aussi appris le sacrifice vivant, saint et agréable à Dieu. À leurs exemples nous pouvons
nous frayer notre propre voie, bâtir notre histoire théologale. Jean Cassien est Père de
l'Église, fils des Pères du désert, saint et pourtant bien placé, nous croyons, pour nous
montrer la route à suivre en tant que disciples missionnaires. Étant donné son esprit
ascétique, mystique et oeucuménique, il a su relié les deux monde, l'Occident et l'Orient,
dans la suite du Christ. Les méthodes suivies dans cette dissertation ce sont l'analytique
pour l'interprétation des termes et expressions; la comparative pour lire ce qui est
commum entre son temps et le nôtre dans le but d'actualisation et d'adaptation de sa
doctrine spirituelle et l'herméneutique pour interpréter ses entretiens et expérences. Pour
la rédaction du texte on a recours à la méthode systématique.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
1ª PARTE ........................................................................................................................... 18
CAPÍTULO I...................................................................................................................... 19
CAPÍTULO II .................................................................................................................... 53
10
2ª PARTE ........................................................................................................................... 80
CAPÍTULO III................................................................................................................... 81
11
INTRODUÇÃO
Todo homem é um asceta nato, que para atingir seus objetivos estipula
regras e as observa com seriedade. Hoje, mais do que nunca, encontramos pessoas que,
por motivo profissional ou outro, levam vida estreitíssima, comem frugalmente,
obedecem rigorosamente a uma rotina com o objetivo de estarem sempre atualizados.
De certa maneira, todos levam vida ascética e austera. Parafraseando os Pais da Igreja,
diríamos que é impossível chegar ao objetivo permanecendo confortavelmente sentado
em sua poltrona, a sua porta esperando que a sorte lhe venha como num passe de
mágica. Contudo, essa busca da felicidade teria sua fonte na perspectiva socrática do
cuidado de si? Seria a felicidade uma virtude entendida como perspectiva cristã de
perfeição da caridade?
O cotidiano agitado do existir humano, as preocupações temporais
prementes não permitem que o homem contemporâneo pare e reflita. Viver hoje é
enfrentar jornadas sem descanso, viradas intermináveis, noites não dormidas em busca
da eudaimonia (felicidade). A rapidez das informações, das produções e novidades
devoram sonhos, desejos, buscas, vidas. A qualidade de vida do homem moderno fica a
desejar. Sua segurança parece ser seus bens, e sua vida se pauta segundo a opinião
pessoal. Nisso ele encontra seu bem-estar. Sua vida, no hoje da história, tornou-se
paradoxal, horizontal e relativista. Voltado para as realidades imanentes, realidade
daquilo que se vê e se toca, não há mais espaço para o transcendente. Agindo de
maneira calculista, fria, partidário do individualismo, do egoísmo e muito preocupado
com as novidades, pouco se importa com a questão da verdade.
Nas grandes discussões entre amigos e até mesmo no campo da teologia, a
opinião pessoal se tornou o critério de verdade. Como opinião pessoal, cada um tem a
sua, esse modo de pensar pode levar à contradição e tomar por verdade absoluta o fato
de que não existem verdades absolutas. A razão, sobretudo em nosso mundo ocidental,
se elevou como deusa e de forma soberba espalha sua ditadura na abstração e
relatividade das ciências e técnicas modernas que engendram sofrimentos em homens e
mulheres, pequenos e humildes. Essa cultura, apesar de promover grandes avanços
científicos e tecnológicos, permanece sectária; desfrutada por pequena porção da
humanidade, uma minoria rica. Porém, pelo que se observa, não parece que, nesse
grupo, haja pessoas mais felizes.
12
A proposta de Cristo continua sendo uma solução para os conflitos do
homem e nossa conclusão é que o ser humano conduzido por si mesmo, sem o
referencial cristológico, angustia-se, torna-se um viajante sem rumo, um ser capaz de
atos de crueldade. Se deixar de lado seus sólidos princípios éticos greco-romanos,
judeu-cristãos forjados ao longo da história, prescindindo de orientação religiosa, a
cultura contemporânea risca naufragar na segurança de suas conquistas. Antes que nossa
cultura se precipite na mesma sorte de muitas sociedades antigas, seria conveniente que
o homem hodierno ouvisse as advertências dos veneráveis Pais do deserto, aplicasse sua
teologia ascética e mística.
A teologia escolástica parte das verdades que são objeto da fé, serve-se do
raciocínio para a compreensão do dom da fé do qual ela se apropria para aprofundar seu
conhecimento, escrutar os mistérios divinos. Essa teologia utiliza métodos inovadores
para estruturar sua compreensão em sistema teológico. O modo de fazer teologia dos
Pais da Igreja não era muito diferente, como dizemos, contudo, eles interpretavam as
Escrituras servindo-se do sentido histórico-literal, do alegórico, analógico e também do
13
moral. Essas quatro dimensões do sentido da Escritura ainda hoje é explorado por
alguns teólogos que percebem que no texto e na narração está o fio condutor da fé que
além de orientar o homem em sua caminhada sobre a terra ensinando-o como proceder,
abre-o à realidade celeste.
Quanto aos Pais do deserto é certo que não se retiraram para o ermo com o
objetivo de discorrerem sobre Deus, mas para encontrarem-se com Ele. Não se
preocuparam em falar de Deus, mas antes em falar com Deus, estarem noite e dia diante
daquele por quem deixaram tudo, ou seja, para viverem em sua presença. Nem por isso
eles deixaram de fazer teologia. Desse modo, a teologia dos Pais do deserto é antes de
tudo uma maneira de ser e viver, eles eram a própria teologia viva, ambulante, não
sistematizada ou encerrada em tratados, livros ou estantes de bibliotecas. Cada Pai, a
seu modo, transmitia a seu discípulo uma teologia vivida e experimentada como fruto
de seus longos anos de busca de Deus e de escuta de sua Palavra.
1
Lc 5, 4.
2
Cf. Ef 1, 4.
15
capítulo trata do aspecto histórico das concepções ascéticas e místicas no Período
Mitológico: hierofânico e órfico; no Período Clássico greco-romano: de Pitágoras a
Plotino. Do Período Medieval citaram-se os dois doutores da Igreja Agostinho e Santo
Tomás. O capítulo dois dá uma noção geral da ascese no Antigo e no Novo Testamento;
trata da relação complementar entre a mística e a ascese e das etapas da vida espiritual
com suas tradicionais vias. Procura responder à pergunta sobre a existência da ascese na
história dos pensadores antigos, sobre o fenômeno ascético e místico presente no
existencial humano. Utilizando o método hermenêutico, cita-se o exemplo dado pela
vida de alguns homens e mulheres ilustres que se serviram da prática ascética com o
objetivo de corroborar a necessidade do mínimo de ascese na vida de todo ser humano
que visa ao desenvolvimento de suas potências, ou seja, chegar a sua plenitude, à
santidade. Com o método analítico, apresenta os termos ascese e mística e a relação de
completude entre eles para melhor compreensão do objetivo do capítulo e resposta a
suas perguntas. Este capítulo contempla a leitura assídua das Sagradas Escrituras como
meio ascético de crescimento e alimento da vida mística. Esses dois capítulos foram
escritos com o objetivo de mostrar a ascese como elemento constante na teologia natural
como na teologia revelada.
Por ser antigo, nosso autor aparece como fonte inspiradora dos grandes
movimentos de vida religiosa tanto de orientação cenobítica como anacorética
posteriores a seu tempo e também como Pai da Igreja. Há como que um discipulado
riquíssimo na esteira desse autor bebendo de sua doutrina, ou seja, das Conferências e
das Instituições Cenobíticas. A ordem dominicana, durante a formação dos futuros
16
religiosos, ensinava a seus noviços o que se encontrava nas obras desse autor como
exercício de vida espiritual. São Bento as citou em sua Regra 3, Santa Teresa D’Ávila
também bebeu de seus escritos. Serviria essa obra ainda hoje como alimento para uma
vida teologal?
O quarto capítulo cujo título é "Os Pais do deserto e seus métodos ascéticos"
responde as perguntas seguintes: o que dizem os Pais do deserto sobre a perfeição da
caridade? O que de fato deve-se entender por discrição? O que João Cassiano entende
por ascese, qual é também sua teologia? É possível a perfeição ou consumação nas duas
profissões, ou seja, vida cenobítica e vida anacorética? Qual a tendência de João
Cassiano sobre os estilos de vida e qual delas considera a mais perfeita? É possível
adaptar a ascese ao lugar e ao tempo? Na tentativa de responder a essas indagações
houve recurso às conversações dos anciãos que Cassiano entrevistou e também às
leituras secundárias.
Por meio de seus escritos e também dessa dissertação, que pontuou
elementos de sua espiritualidade, Cassiano, que frequentou e recolheu dos Pais do
deserto, monges e solitários do Egito, uma seiva boa e nutritivo mel, de modo pessoal e
já analisado por ele, nos dá substratos para uma prática a atualizar, no hoje de nossa
história, de seus ensinamentos teologais, que propiciam a cada um dos que decidirem
por um discipulado autêntico e frutífero viverem esses preceitos ascéticos adaptando-os
a sua própria constituição física, local, estado de vida ou ministério.
3
BENTO, Santo. Regra de São Bento, capítulo LXXIII. Rio de Janeiro: Lumen Christi,
2008, p. 147.
17
1ª PARTE
4
TANQUEREY, A. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 4. ed. Porto: Apostolado da
imprensa, 1948. p. 01.
5
Ibid.
18
CAPÍTULO I
19
Significado do Termo
6
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 83.
20
Como em uma guerra santa, uma batalha final contra as potências do mal, a
exemplo do quarto livro dos Macabeus e das práticas da comunidade de Qumran, o
eremita também se impunha como regra a observância da abstinência sexual que para
aqueles simbolizava a prontidão para o fim da história e vinda do reino de Deus. No
monaquismo cristão e para a ascese cristã em geral este é o sentido de certas renúncias,
ou seja, a razão escatológica e o domínio de si. Também havia um sentido muito
difundido no início da era cristã que seria o do retorno ao modo de ser anterior a queda
de Adão, uma busca do estado original da humanidade, conhecido como razão
protológica.
8
1.1 Período mitológico: hierofânico 7 e órfico
Será por volta do século XII a.C que, no mundo grego, terá início a
experiência religiosa. É nessa época que, de forma progressiva, começa a tomar corpo
um conjunto de crenças míticas, que pretendiam narrar o nascimento dos deuses e a
origem do universo e dos fenômenos cósmicos. Estamos fazendo referência à Teogonia
de Hesíodo que dizia ter recebido das Musas revelação a propósito da verdade das
coisas. Surgem, então, os mitos “teogônicos” e “cosmogônicos”. O mito, do grego
mythós, "discurso, mensagem, palavra, relato imaginário", tem por finalidade tratar a
realidade a partir de uma verdade intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem
exigência de comprovações. Para se aderir ao mito bastava a crença sendo que pouco se
leva em conta a constatação racional do fato.
7
Hierofânico= hierós =sagrado, Fainein= manifestar. Manifestação do sagrado.
8
Órfico= relativo às crenças órficas, cultos mistéricos. Cf. REALE, G. História da filosofia
antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2009. v. I, p. 23-24.
21
Dessa forma, todo desejo que tinham os gregos de dar explicações aos acontecimentos
naturais do mundo que os rodeava passava pelo intermédio do divino, como sendo obra
dos deuses. A natureza era, por assim dizer, governada pela força e vontade dos deuses
que em Zeus tinham seu soberano. Eles eram responsáveis por tudo o que acontecia no
cosmo. Contudo, os deuses nem sempre viviam em paz, havia muita querela entre eles
e, por conta disso, o mundo criado estava sempre sob ameaça. Para proteger o mundo e
livrá-lo do perigo que o ameaçava, Zeus estabelece normas e leis a serem obedecidas
pelos outros deuses e também pelos homens.
9
REALE, G. História da filosofia grega e romana. São Paulo: Loyola, 2009. v. I, p. 21.
10
STACCONE, G. Filosofia da religião – O pensamento do homem ocidental e o problema de
Deus. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 13-15.
11
A antropomorfização consiste, em seu sentido mais amplo, em representar sob forma humana
seres diferentes do homem, considerados superiores a ele. ANTROPOMORFISMO. In:
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola, 2004. p. 158.
12
REALE, G. História da filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 2009. v. I, p. 41-43.
22
de reagir diante do humor dos deuses. Disso nascem os cultos populares nos quais todos
participavam com o objetivo de honrar o deus da cidade.
23
órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio no
além (a libertação); para os não iniciados há uma punição 13.
Pelo que é dito nesse trecho acima, constatamos que a profissão religiosa
órfica é partidária da dualidade do ser humano. O orfismo dá, por primeiro, uma
concepção dualista do homem, defende a imortalidade da alma e a contrapõe ao corpo
concebido como cárcere da alma. Com a fé órfica a religião naturalista entra em crise e
coloca o homem em conflito consigo mesmo. Agora terá que se mortificar, dar conta de
sua existência, indo além da estada neste mundo. De mortal que era, agora é ser imortal,
passivo de ser punido na outra vida. Terá que se disciplinar e purificar em si o elemento
divino que o habita com o objetivo de libertar a alma do corpo, que, segundo a
concepção órfica, é a sua prisão. O espírito que anima a religião dos mistérios é
contrário ao que anima a religião natural.
A crença mística dos heróis homéricos não deu conta de dar uma explicação
plausível, racional da realidade e nem a religião dos mistérios, ainda que mais interior e
espiritual, bastou para dar uma resposta adequada ao anseio de muitos homens que
almejavam uma vida religiosa com sentido mais autêntico. Essa insatisfação faz surgir
um modo de pensar que, indo além dos fatos, buscará as próprias causas, o princípio dos
mesmos para uma explicação racional da realidade: é o pensamento filosófico. Esse
pensamento, ao constatar a realidade, buscará, na totalidade, sua causa de forma lógica e
racional. É esse caráter que garante a cientificidade da filosofia.
Não será preciso abandonar o mito, pois ele não deixa de ser expressão do
desejo de saber, das insatisfações e inquietações não respondidas pela razão humana,
porém não será mais usado como único critério para a explicação da realidade. O mito
permanecerá mito. Este poderá existir como parte da literatura helênica, enriquecendo o
cabedal da cultura grega.
A reflexão filosófica, que surge por volta do século VI a.C, dará ênfase ao
logos, contestando o mito e a análise superficial das coisas, mas não deixará de se
preocupar com a realidade religiosa do mundo grego vigente bastante marcado pela
interioridade apregoada pelos cultos mistéricos. A Teogonia foi muito importante para a
filosofia nascente, contudo esta se preocupará com a questão racional, que será sua
motivação primeira.
13
REALE, G. História da filosofia antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2009. v. I, p. 23-24.
24
Durante muitos anos, a filosofia grega antiga em suas várias escolas buscou
dar resposta racional ao questionamento sobre o sentido da vida e também ordenar a
experiência religiosa. Dentre as escolas que fizeram uma revolução no mundo helênico,
destacamos o pitagorismo, o platonismo, o epicurismo, o estoicismo, o neopitagorismo
e o neoplatonismo. Como resultado prático, cada uma dessas correntes filosóficas
desenvolveu uma ética, seguida de uma correspondente prática ascética. Algumas
dessas práticas repercutiram posteriormente no judaísmo, também no cristianismo e,
mesmo hoje, influenciam fortemente a doutrina cristã. Por isso, de forma sucinta,
trataremos cada uma dessas escolas. Não entraremos em pormenores, para não fugirmos
de nosso objetivo, evitando o excesso de informações secundárias. O que queremos é
simplesmente apontar a ascese como presente na história do homem e depois sua
utilidade para o alcance de seus objetivos.
1.1.3 O Pitagorismo
Pitágoras é o fundador da escola que leva seu nome. Nasceu em Samos por
volta do século VI a.C e mais tarde parece que se mudou para a Itália. Em sua escola,
Pitágoras ministrava formação com uma nova ótica da vida dando ênfase a seu lado
místico e ascético. Por ser muito estimado entre seus seguidores, tudo que dizia
Pitágoras era tido em grande apreço. Distinguir Pitágoras dos pitagóricos é algo difícil
porque seus discípulos, que foram muitos, ensinaram suas filosofias como sendo a do
25
próprio Pitágoras, que, na realidade, nada escrevera e que provavelmente tenha limitado
seu ensinamento ao oral. Muito se questionou sobre a autenticidade dos pensamentos e
sobre o que se dizia da vida desse pensador.
Pitágoras tinha uma filosofia mesclada de ensinamentos místicos e crença
órfica; sua doutrina devia ser guardada em segredo e dela somente os adeptos podiam
participar. A ciência pitagórica não era cultivada como um fim, mas como meio para um
fim ulterior. Pregador da metempsicose, Pitágoras acreditava que a alma devia
reencarnar muitas vezes e não somente em forma humana, mas também animal para
expiar uma suposta culpa originária cometida. Ele ensina que o homem é um ser dotado
de corpo e alma, a qual, preexistindo ao corpo, seria imortal porque traz em si algo da
perfeição divina e do cosmo. Para ele, o corpo é corruptível e, por isso, o homem deve
trabalhar para libertar a alma do corpo, uma vez que a união dos dois é contrária. O
corpo é o cárcere onde a alma paga a punição por uma culpa anterior a sua estada neste
mundo.
14
Metempsicose (do grego: meta: Além de: e psiqué: alma). Crença na transmigração da alma
de corpo em corpo. Essa crença é muito antiga e de origem oriental; não se restringe à
26
O desejo de crescimento interior dos pitagóricos, que viviam como se
fossem monges, fez com que tivessem certas práticas de ascese não comum ao meio
helênico. Tais procedimentos ascéticos muito ajudaram na construção de uma
consciência moral que enriqueceu o sentido de responsabilidade pessoal. Dentre essas
práticas, o exame de consciência praticado todos os dias era comum entre os
pitagóricos, era meio de se conscientizarem dos atos praticados, dos omitidos e das
faltas.
Também era hábito no meio desse grupo a prática de abstinência de carne
porque acreditavam que, na vida animal ou dos “mamíferos de quatro patas", poderiam
se encontrar vidas humanas, uma vez que professavam a crença na reencarnação ou
metempsicose que apregoa essa forma de purificação que se daria tanto em nível
superior como em nível inferior ao do homem, dependendo do grau de perfeição em que
encontrava aquele que se desencarnou.
A ascese pitagórica era praticada com o objetivo de submeter o corpo à alma
e, por fim, conseguir a libertação completa da mesma de seu cárcere, que é seu próprio
corpo. Não havia nisso uma tendência à destruição do corpo, mas a superação do
mesmo. Tudo isso alcançado daria ao homem uma vida semelhante a dos deuses e o
transformaria em grande sábio.
A vida desse filósofo é marcada por sua grande simplicidade e pela pobreza
em que vivia, pois nada recebia em troca do ensino que ministrava. Sócrates foi sempre
modelo irrepreensível de bom cidadão, mas isso segundo o testemunho de Platão que,
no parecer de alguns, exaltou em tudo seu mestre.
Diz-se que Sócrates foi discípulo de Arquelau que por sua vez era discípulo
de Anaxágoras. Contudo, não é possível afirmar a influência deles em sua filosofia. O
que se sabe é que sua filosofia amadurecera os pensamentos desses físicos, fazendo com
que sua doutrina fosse única e influenciasse o modo de pensar ulterior por longos
séculos, com repercussão até nossos dias. Nada escreveu do que ensinara e seus
16
pensamentos nos foram transmitido por Platão e Xenofonte , seus discípulos. Na
realidade, estes últimos têm conhecimento limitado de Sócrates, pois o conheceram já
com idade avançada, mais de sessenta anos.
Sócrates ensinava por meio de conversas com todo tipo de gente que
passava nas praças e nas ruas. Não estava preocupado com o princípio de todas as coisas
como faziam os primeiros filósofos, mas com a questão do homem em relação consigo
mesmo, com o outro e com o mundo. Com ele, os valores humanos passam por uma
grande revolução. Estava preocupado em estudar a psyché entendida como a essência da
alma humana. Sócrates acreditava que o homem é a sua alma, uma vez que é ela que o
distingue de todas as outras coisas. Por isso que seu interesse se voltou todo para o
homem sem se preocupar com a natureza.
16
Xenofonte de Atenas (430-354 a.C) foi discípulo de Sócrates, soldado, economista, chefe de
família, escritor, historiador e filósofo. É uma das mais fascinantes personalidades da Grécia
Clássica. A imagem que ele dá de Sócrates é complementar à de Platão. XENOFONTE DE
ATENAS. In: HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
1018.
28
Ninguém, antes de Sócrates, entendera por alma aquilo que ele entendeu. A
alma, para Sócrates, é a própria consciência pensante e operante do homem. É o eu
consciente, sua personalidade intelectual e moral. Para ele, os únicos valores tidos como
autênticos e verdadeiros, ou seja, a virtude e o conhecimento residiam na alma. Não
parece que Sócrates opunha a alma ao corpo do modo que faziam seus antecessores.
Assim se guardou a unidade do homem divido pelas concepções órficas e pitagóricas.
Todo o Ocidente sofrerá a influência de Sócrates na compreensão do homem.
Sucintamente podemos resumir a doutrina de Sócrates assim:
"Conhecimento de si mesmo" e "cuidado de si mesmo". Essas duas proposições devem
ser compreendidas de maneira única, ou seja, conhecimento da alma e cuidado da alma.
Não é preocupação com o nome, com a aparência externa do ser ou seu próprio corpo e
nem preocupação com a saudabilidade do mesmo, cultivo do corpo. Nada disso. É
examinar-se interiormente. Isso exige determinação, esforço, renúncia, purificações,
ascese. Disso Sócrates é um exemplo.
17
Cf. REALE, G. História da filosofia Grega e Romana – Sofistas, Sócrates e Socráticos
Menores. São Paulo: Loyola, 2009. v. II, p. 95-96.
18
Ibid. p. 93.
29
sim pelo aperfeiçoamento da alma que se dá na práxis da virtude, que é conhecimento e
ciência. A felicidade estaria na alma do homem e não nos bens exteriores.
19
Lc 10, 38-42.
20
Mt 25, 31-46.
30
divindade criadora e princípio de tudo, ou seja, Deus Pai, as obras de misericórdia, mas
essas praticadas não à moda filantrópica. Espera-se do bom cristão que o bem que
pratica seja ação fundamentada no mandamento que diz: “Amarás o próximo como eu
vos amei”.
Para a ética cristã, tudo o que se diz próprio da ética grega, ou seja, a
platônica, a aristotélica e as que se seguem é considerado intelectualista e incapaz de
acalmar a angústia humana. Somente o cristianismo seria caminho para libertar o
homem de seu mal, de sua angústia existencial.
1.1.5 O Platonismo
21
REALE, G. História da filosofia Grega e Romana – Platão. São Paulo: Loyola, 2009. v. III, p.
7-8.
31
na época, a idade de vinte anos quando conheceu Sócrates. Seu interesse por Sócrates
visava ao conhecimento e à preparação para a vida política e não o de se tornar filósofo.
Depois de muitas viagens feitas que o levaram até mesmo à Itália, Platão
retorna a Atenas onde fundou a “Academia” cujo nome vem de Academo, herói
ateniense. Ali formava muitos jovens e sábios homens na amizade da sabedoria,
versados na arte de bem viver.
A doutrina de Platão, ou seja, sua filosofia ficou conhecida como
“platonismo” e influenciou muito o pensamento dos Pais da Igreja, que buscaram em
Platão as categorias metafísicas para explicar, de forma racional, a mensagem própria da
fé cristã. Os Pais do deserto também beberam da doutrina platônica e transmitiram-na a
seus discípulos. Para Evágrio a divisão platônica da alma em intelecto, agressividade e
desejo é fundamental, pois como Platão acredita que o verdadeiro eu é o intelecto. Se
para Platão o fim do intelecto é a contemplação, para Evágrio seria o da oração
contínua. Assim, o treinamento ascético é preconizado como meio necessário para se
chegar a um estado de oração contínua.
22
HADOT, P. O que é a filosofia antiga. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 92-93.
32
[...] O que está simbolizado nesse mito? A caverna é o mundo
sensível, com suas sombras, que são as coisas. O mundo exterior é o
mundo verdadeiro, o mundo inteligível ou das ideias 23.
Estando neste mundo, a alma se depara com coisas ou realidades que lhe
fazem recordar as que vira no mundo de sua existência anterior e isso lhe causa um
certo conflito porque o corpo lhe aparece como um empecilho para alcançá-las. Daí a
luta que se deve travar contra o corpo visto como prisão da alma. Por isso uma ascese
rigorosa é assumida pelo homem platônico em vista de sua libertação. Essa ascese visa
vencer as paixões do corpo, as distrações da alma e a purificação da inteligência por
meio da reflexão filosófica, ou melhor, pela busca do conhecimento racional que lhe
fará recordar as ideias contempladas no hiperurânio. Por se dar somente com a morte a
completa libertação da alma, compete à ascese platônica libertar o homem do medo da
morte.
1.1.6 O Epicurismo
Por volta do ano 306 a.C, Epicuro de Samos (341-270 a.C) funda uma
escola em Atenas onde ensinava a existência dos deuses desligada da vida dos homens e
da natureza. Uma vez os deuses indiferentes ao homem e ao mundo, a invocação, os
sacrifícios e o culto a eles tornavam inúteis.
23
MARÍAS, J. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 54-55.
33
A filosofia de Epicuro diz que os dois elementos tidos como princípio de
tudo são os átomos 24 e o vazio. É um modo de pensar e conceber bastante materialista.
Essa corrente filosófica acredita que o verdadeiro conhecimento somente é possível
pelos sentidos, ou seja, a sensação é o critério último de verdade. Para os epicuristas, a
felicidade e o bem supremo do homem consistem no prazer. Porém, quando Epicuro diz
que o prazer é o princípio e o fim da vida feliz não se deve pensá-lo quanto comida,
bebida e mulheres. Não se trata do prazer como satisfação das paixões do homem
corrompido, mas antes é vida pacífica, a paz na alma, ausência de todo tipo de
preocupação, a “ataraxia”. Trata-se do prazer entendido como ausência de todo tipo de
dor.
24
KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
Helenístico. São Paulo: Paulus, 2005. v. I, p. 152.
.
34
Padres da Igreja e pensadores cristãos da época da escolástica muito criticaram a
doutrina de Epicuro, porém isso não causou sua morte. No período da Renascença,
haverá um reflorescimento desse modo de pensar e conceber a vida. Também, não se
pode dizer que lá no deserto não havia monges praticantes dessa filosofia. Os sarabaítas,
no fundo, tinham práticas epicuristas. Além do mais, alguns desvios criticados por
certos pais espirituais revelam que essa filosofia estava no modo de ser de muitos que
acorriam ao deserto.
1.1.7 O Estoicismo
A concepção estoica do homem e dos demais seres diz que estes são
formados de um fragmento do logos e de uma parte da matéria, ou seja, de alma e de
corpo. Quando a alma se separa do corpo acontece a morte do homem. Para chegar à
imortalidade, o homem precisa se superar, ir além de si mesmo, separar-se da matéria e
de sua identificação com o logos. Quanto à questão da liberdade, ele a obtém se aceitar
35
conformar-se com as leis do logos; se fizer a vontade de Deus e se observar os
mandamentos divinos. Ser feliz para os estoicos é viver segundo a natureza racional do
homem, isto é, viver segundo o logos. É por esse modo de proceder que o homem será
virtuoso.
O homem virtuoso é alguém que não é viciado, ou seja, essas duas coisas
não podem viver juntas e nem de forma parcial, ou seja, virtuoso e viciado, justo ou
injusto. Não há lugar para meio-termo. Os estoicos entendem a virtude como a
harmonia da alma consigo mesma. O homem virtuoso, também dito sábio, difere do
estulto ou louco que age mal e segue no vício. O sábio faz tudo conforme o bem e de
maneira virtuosa. O sábio é um asceta.
1.1.8 O Neopitagorismo
36
para se unir ao divino, buscar a purificação da alma pela penitência, reprimindo as
paixões. Visto como um profeta ou um homem superior, muito próximo a um deus, o
filósofo neopitagórico é místico a ensinar uma doutrina divina que lhe fora revelada.
Eles acreditavam em um conhecimento intuitivo vindo direto de deus e distinto da razão
discursiva. Acreditavam que, afastando-se das coisas sensíveis, o homem, de modo
individual, poderá entrar em íntima comunhão com o bem. Todo aquele que se prende
às coisas sensíveis, tomando-as por bem e esperando por elas, alcançam o bem ou se
fixam nos prazeres: engana-se e não chega à paz nem entra na morada do bem. Para os
neopitagóricos, a realidade sensível da matéria não pode se identificar ao ser. O ser é
uma realidade não sensível, não corpórea, mas imutável e eterna daquilo que não tem
corpo, do inteligível. A matéria seria desordenada, irracional e incognoscível e, por isso,
o ser não pode ser identificado com ela.
1.1.9 O Neoplatonismo
37
Plotino, nascido entre 204-205, também do Egito, na cidade de Licópolis foi
discípulo de Amônio por um período de dez anos 232-242 e é considerado o verdadeiro
fundador do neoplatonismo. Era muito intuitivo, dado à meditação e místico como
Platão. Embora não à altura de Platão e Aristóteles é, porém, considerado o último
grande pensador grego e o maior filósofo do período religioso. Seus escritos que versam
sobre o homem, a física, o cosmos, a alma, o pensamento e o Uno foram postumamente
ordenados e publicados por Porfírio.
Na doutrina de Plotino, Deus é o grau mais alto da realidade, é o Uno, o
absoluto, isto é, a origem de todo ser e de todo conhecimento. Dele tudo depende e dele
tudo deriva em escala decrescente: o Uno, o noûs, a alma, a natureza. Dele é que emana
o universo e Ele é transcendente ao mesmo. Contudo, o mundo é da mesma natureza de
Deus. Longe de Deus as coisas perecem e é Dele, do Uno, que se pode chegar até a
matéria, ao mal. De Deus nada se pode dizer a não ser pela teologia negativa.
Quanto ao Uno, ele difere do mundo material, sensível por ser transcendente,
inteligível e mais perfeito. O Uno é o próprio transcendente, gerador de dois princípios,
duas hipóstases 25: a inteligência e a alma universal, que originando nele por emanação
são potências criadoras. É a inteligência que faz com que a realidade tenha forma, que
dá origem a toda virtude. Dela provém a alma universal, a qual faz a mediação entre a
inteligência e o mundo sensível. Por meio dessa doutrina, Plotino defende o Uno como
princípio primeiro de tudo o que existe e afirma que o afastamento do mesmo leva à
imperfeição.
Do Uno emana, como foi dito, a inteligência como pensamento intuitivo e
imutável, ou seja, o noûs que nunca erra e pode conhecer o Uno, porém sem esgotá-lo.
O noûs é capaz de conhecer a si mesmo e de conhecer as ideias que são de sua mesma
natureza, ou seja, espiritual e imutável. Do Uno emana ainda a alma, a qual procede do
pensamento e esse, por sua vez, procede do Uno. A alma é divida em duas partes: uma é
extratemporal, transcendendo a matéria e a outra anima a própria matéria. Essa dupla
atividade, ou seja, a contempladora e a plasmadora da alma está presente tanto na alma
do mundo como nas almas particulares. Disso resulta que nas almas humanas,
concebidas como sendo derivação e parte da alma universal, há atividade racional, há
25
Hipóstase significa subsistência, realidade. O termo é utilizado em grego moderno com o
significado de "existência". Na filosofia de Plotino, Deus se deriva em três hipóstases - uno,
noûs (inteligência) e alma -, que ele comparava, respectivamente, à luz, ao sol e à lua.
HIPÓSTASE. In: ABBAGNANO, Nicolas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 500.
38
parcela do divino e volta para o inteligível. É pela alma universal que se dá a mediação
entre a inteligência e o mundo sensível. Porém, por punição e expiação de uma falta
originária, a alma humana tem também atividade inferior e anima sucessivamente
corpos terrenos.
Plotino acredita que a alma humana teve existência anterior à que leva neste
mundo; era alma pura ou uma espécie de deus e gozava de intuição do absoluto. Mas,
por uma inclinação pela matéria, “desejo de individualidade”, “vontade de se pertencer"
descera ao corpo, sofrera uma queda e fora encerrada no corpo como que em uma
prisão. O corpo, por ser matéria, é mau, pois é da matéria que vem todo o mal do mundo
e do homem. Dessa forma o corpo do homem é essencialmente mal e pesa sobre a alma
como erro e pecado fatal. Sendo o ser humano corpo e alma, precisará voltar-se para o
Uno que é livre de toda matéria, para se libertar da matéria.
O neoplatonismo diz que o homem é essencialmente sua alma a qual é
impassível, capaz somente de agir e que tudo o que faz depende dela. Diz que a alma
somente é livre se voltar-se para o Bem e que seu destino é voltar para o divino, donde
viera. Prega uma moral de cunho bastante ascético e místico, com ênfase dada à
contemplação. Conserva o modo grego de se referir às virtudes classificadas em éticas e
dianoéticas, ativas e contemplativas. Evidencia a purificação, a libertação, a separação
da matéria, do corpo, do sentido para a união com o Uno. Diz que o homem saiu de
Deus e é para ele que deve voltar e que o homem convertido para Deus purifica e
sublima o mundo.
Segundo Plotino, são as virtudes dianoéticas que encaminham o homem para a
purificação ética. Contudo não é por si mesmo, pela prática das virtudes mesmo
dianoéticas que o homem atinge a perfeição de seu ser, mas mediante a elevação mística
para o absoluto. É pelo êxtase, “reunião com o Uno”, no qual o homem permanece
passivo e em estado de hiperconsciência que chega a seu fim. Pelo êxtase o homem se
relaciona com a divindade, pode atingir Deus, que é concebido como sendo o
suprainteligível. Pelo êxtase, a alma se aparta de tudo que é terreno e é preenchida pelo
26
Uno . Apartar-se do terreno é despojar-se de tudo, porém não é anular-se ou
empobrecer-se, mas preencher-se com Deus, com o infinito.
26
ANTISERI, D; REALE, G. História da filosofia – Antiguidade e Idade Média. 7. ed. São
Paulo: Paulus, 2002. v. I, p. 349.
39
Esse modo de ver o homem em relação a Deus ou na dependência de Deus para
atingir sua plenificação está muito presente na doutrina cristã e, sobretudo nos
ensinamentos dos Pais do deserto. Em nenhum momento Cassiano quis mostrar o
homem como independente da ação divina, embora na Conferência XIII isso possa
parecer uma verdade. A opinião de Cassiano e dos demais anciãos é que não se pode
atingir a perfeição sem o auxílio dos meios humanos. Porém, ninguém a pode realizar
em sua perfeição sem a graça de Deus. A misericórdia de Deus é dada para os que a
querem e correm para obtê-la.
Muito jovem ainda torna-se pai e dá a seu filho o nome de Adeodato. Com
dezenove anos de idade desconsidera a religião cristã dizendo que não passava de
27
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etiene. História da filosofia cristã. Desde as origens até
Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 139-203.
28
AGOSTINHO, Santo. Confissões II, 14. São Paulo: Editora das Américas S.A –
ADAMERIS, 1964, p. 58.
40
29
"fábulas de velhas". Por essa época torna-se adepto do maniqueísmo , seita religiosa
fundamentada na razão sem o recurso da fé. Seus membros se diziam discípulos de
Cristo. Com o passar do tempo, nove anos depois, quando já era um maniqueu fiel e
tenaz anticatólico, Agostinho percebe que o maniqueísmo trazia em sua doutrina um
dualismo deficiente e se decepciona com essa seita religiosa caindo no ceticismo.
Vivendo em total descrença, Agostinho sente grande vazio em sua alma e não consegue
se desvencilhar dos vícios carnais e de seus grandes questionamentos.
O encontro com o bispo de Milão, santo Ambrósio, causou um impacto na
vida de Agostinho, que decide por tomar rumo diferente e voltar a confiar no
ensinamento católico. É o momento da virada na vida de Agostinho que contava nesta
época 32 anos. Contribuíram para acentuar tal conversão a leitura sobre a célebre "Vida
de Santo Antão" 30, a conversão do retórico Mário Vitorino e a leitura de São Paulo 31
que lhe clareou a questão da mediação de Jesus Cristo. Com esses acontecimentos
"todas as suas trevas" começaram a ser dissipadas.
Não quis ler mais, nem era necessário, pois quando cheguei ao fim da
frase uma espécie de luz de segurança se infiltrou em meu coração,
dissipando todas as trevas da incerteza. Então, marcando a passagem
com o dedo, ou não sei com que, fechei o livro 32.
29
É uma doutrina dualista, propagada por Mani (Manes, Maniqueu) filho de pais persas. Nasceu
na Babilônia, atual Iraque. MANIQUEISMO. In: Dicionário Patrístico e de Antiguidades
Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 874.
30
Cf. A vida de Santo Antão foi escrita por Santo Atanásio (295- 373), Bispo e Doutor da
Igreja.
31
Rm 13, 13.
32
AGOSTINHO, Santo. Confissões VIII, 12. São Paulo: Editora das Américas S.A –
ADAMERIS, 1964, p. 242.
41
completar sua formação teológica que considerava insuficiente; busca alimentar-se das
Sagradas Escrituras e dos escritos dos santos Padres.
Agostinho escreveu sobre a oração mostrando que é Cristo quem reza por
nós, reza em nós e a quem nós rezamos. Descreveu sobre a natureza da contemplação.
Tratou da humildade como condição necessária para o desenvolvimento da caridade,
33
Pouco se sabe sobre Pelágio. Ele era um monge britânico e nasceu em 354. Foi
contemporâneo de Santo Agostinho. Viveu em Roma de 384 a 410. Pregava que o pecado
original não existiu e que somente há pecados pessoais. Dizia também que o pecado de Adão
não enfraqueceu a capacidade humana de fazer o bem, mas é apenas um mau exemplo, que
torna mais difícil e penosa a tarefa do homem. PELAGIANISMO. In: ABBAGNANO, Nicola.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 749.
34
AGOSTINHO, Santo. Confissões I, 1,1. São Paulo: Editora das Américas S.A – ADAMERIS,
1964, p. 41.
42
sobre a vocação universal à santidade, a purificação, o ascetismo, sobre a excelência da
virgindade, o meio e o fim da vida espiritual.
Santo Agostinho foi sacerdote e bispo, mas antes fora monge e se preocupou
também com a vida ascética e mística. Mesmo enquanto bispo teve sua clausura no
próprio jardim de sua residência episcopal. O clero de sua diocese vivia de forma
comunitária, submetidos à “Regra dos Apóstolos”, na comunhão de bens, em castidade,
dentro de um ascetismo que salvaguardava a dignidade da vocação assumida e adaptado
a cada um, segundo as possibilidades. Embora adaptada às necessidades de cada um, as
exigências ascéticas da regra eram rigorosas. A regra em seu mosteiro tinha por objetivo
atualizar o gênero de vida dos apóstolos vivendo em pobreza evangélica sem nada
possuir como próprio, partilhando de acordo com as necessidades o que se tinha ou
recebia por graça divina. O amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo era a regra
suprema de seu mosteiro. As orações pautadas nos salmos eram feitas várias vezes ao
dia, além da lectio divina e do trabalho quotidiano.
Agostinho era simpatizante dos neoplatônicos e foi por eles que pode aceder
ao pensamento de Platão, o qual influenciou a teoria agostiniana ou parte de seus
argumentos teológicos. Em suas obras, Agostinho deixa transparecer a influência da
filosofia de Sócrates e Platão quanto à primazia do espírito sobre a carne. Para ele a
alma é absolutamente superior ao corpo e por isso não pode depender dele em nenhuma
35
AGOSTINHO, Santo. Confissões X, 30. São Paulo: Editora das Américas S.A –
ADAMERIS, 1964, p. 309.
43
de suas atividades, nem mesmo na sensitiva. Alicerçado no evangelho, Agostinho dá um
sentido profundo e cristão ao pensamento desses dois filósofos.
44
há necessidade de sair de si para encontrar Deus, mas voltar-se para si. É em nosso
interior que Deus habita, em nós há a presença de seu Espírito e na volta para dentro de
si encontramos Deus e podemos conhecê-lo. Somos templo do Espírito Santo.
Segundo São João, conhecer a Deus é possível pelo viés do amor. E para
conhecermos o amor de Deus é preciso amar. Na regra de Agostinho, o amor fraterno é
a norma que cada irmão deve obedecer e na qual deve se esmerar.
36
AGOSTINHO, Santo. Confissões VIII, 6. São Paulo: Editora das Américas S.A –
ADAMERIS, 1964, p. 229.
45
Domingos, São Pedro Nolasco e São João de Deus tomaram-na como regra de vida para
suas fundações. Nisso vemos a proximidade dos dois contemporâneos monges.
37
TOMÁS, de Aquino, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. II-II, qq.141-170. v.
VII. p. 187-235.
38
TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 4. ed. Porto: 1948. p. 3.
46
comportamento para Deus praticando as virtudes teologais e morais inerentes a cada
estado de vida assumido pela pessoa. É evidente que a orientação de uma vida para um
determinado fim não se dará sem uma prática ascética. Se ascese não é o termo
empregado por Santo Tomás e sim o termo abstinência como encontramos em B.
39
Mondin , devemos concordar que na práxis a abstinência não deixa de ser ascese. A
abstinência enquanto tal é uma prática ascética que, segundo alguns Pais do deserto,
sustenta outras práticas tais como o jejum, a castidade, a mortificação e inclusive o
martírio. Dessa forma, podemos dizer que, em São Tomás, encontrarmos muitas
instruções ascéticas para uma vida cristã coerente e para um discipulado florescente.
Santo Tomás tem visão unitária do homem e propõe uma doutrina ascética equilibrada.
Ele defende a vida ascética e eremítica como favoráveis a uma maior perfeição 40.
Tanto as instruções de Santo Tomás sobre a prudência como virtude
intelectual que aperfeiçoa a inteligência, quanto a leitura da segunda parte da Suma
Teológica, referente ao Tratado de Moral, dão-nos a noção da fineza das instruções
dadas pelo santo com o objetivo de aperfeiçoar a alma e fazê-la semelhante a seu
criador. Sobre a prudência, diz Santo Tomás:
39
MONDIN, Battista. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d'Aquino.
Bologna: ESD, 1991, verbete Ascetica - Astinenza, p. 65-66.
40
STOLZ, Anselme. L'ascèse chrétienne. Chevetogne: Éditions des bénédictins d'Amay, 1947.
p. 42-43.
41
TOMÁS, de Aquino, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. I-II, q.57, a.5. v. IV.
p. 124-125.
47
O trecho supracitado deixa transparecer a convicção de Santo Tomás quanto
à necessidade da união da razão e da fé. Ao falar da vida espiritual e, por conseguinte,
da vida de fé, o santo quer que compreendamos que a vivência da fé necessita da
colaboração da razão e que o homem deve estar disposto por este hábito, ou seja, de não
fazer ou colocar atos segundo o impulso ou a paixão, mas seguindo um modo reflexivo,
porque somente assim ele agirá bem, corretamente.
Se o místico é aquele que faz experiências de Deus que vão além daquilo
que a razão pode atingir ou dizer de Deus, às vezes dando a entender que a fé não
precisa da razão, o doutor angélico freia certas extravagâncias dizendo que não se deve
agir segundo os impulsos e paixões, mas segundo um modo racional para atingir o fim
almejado. Essa aproximação da fé e da razão feita por Santo Tomás anima o homem a
buscar vida íntima com Deus no aprofundamento das verdades reveladas. Mergulhando
nas águas profundas dos textos revelados, o homem de fé retirará com o uso de suas
forças, ou seja, sua razão e esta potencializada pela graça, coisas novas e substanciais
para sua maior semelhança com o Deus que o convida a se identificar a Ele, sobretudo
na prática da grande virtude da caridade.
Para tal fim, São Tomás, na terceira parte da Suma, ensina a via segura dada
pelo Pai para a santificação do homem, isto é, o Verbo Encarnado que dissera ser
caminho, verdade e vida para aqueles que querem chegar até Deus. Desta forma, Ele
mesmo se faz graça a agir no homem, identificando-o a si com a práxis dos sacramentos
que instituíra como meio seguro para a viagem em direção à vida eterna.
Nesse sentido, pode-se dizer que a mística e a ascese estão em conexão com
a parte que trata da moral na Suma de Santo Tomás e, como disse Tanquerey, "sem
deixar de se apoiar nas outras partes. Dessa forma não erramos quando dizemos que
Santo Tomás tem muito a oferecer no campo da ascese e da mística e que é grande
mestre de espiritualidade.
42
Ibid., Suma Teológica. I-II, q.57, a.5.
48
Quando Santo Tomás fala da subordinação à lei e a prática das virtudes
como meio para se unir a Deus, está dizendo que o homem tem que se deixar purificar
pela disciplina do corpo e da alma para atingir a santidade e a união com Deus. Não se
chega a Deus pelo simples ato da vontade e nem pela ação unilateral da graça. Neste
afã, o homem tem que colaborar com Deus, que percebendo o esforço humano, opera
tudo na alma. É por um comprometimento sério do homem como um todo e no
exercício das virtudes que ele vence os vícios e entra na vida da graça. Seria, pois,
natureza e graça agindo juntas para melhor dispor o homem à santidade. Santo Tomás
não opõe a razão à fé. A razão colabora com a fé. Assim também se pode dizer o mesmo
com relação à natureza e à graça, uma colabora com a outra.
Em Santo Tomás, a ascética não é vista como fim em si. É orientada para a
mística, pois é esta que une o homem a Deus, fim último de toda busca. Vida espiritual,
segundo Tomás, não é vida extraordinária, plena de fenômenos sobrenaturais, mas vida
de comprometimento, seriedade, domínio da vontade, correção, retidão das paixões e
abertura à ação da graça. Em Santo Tomás a graça colabora para animar a prática da
ascese com uma finalidade mística, ou seja, vida de união com Deus. Não é ascese à
moda das praticas pelos atletas gregos, isto é, ascese pela ascese sem fim unitivo.
Santo Tomás faz menção às virtudes morais e teologais como necessárias a
vida de santidade, mas não se esquece de introduzir também os dons do Espírito Santo
como meios necessários para a purificação sobrenatural. As graças dadas pelo Espírito
Santo são bem para a alma e saúde também para o corpo. E quando se trata de bem da
alma e do corpo, Santo Tomás não permite confusão, pois o que é bem para a alma seria
bem também para o corpo, mas nem tudo que é bem para o corpo é bem para alma.
Alguns se perguntam se a ascese é algo a se praticar em todos os estádios da
vida espiritual ou, se na via unitiva, essa não tem mais razão de ser. A resposta de Santo
Tomás a essa pergunta é dada pelo exemplo de São Paulo, que mesmo caminhando nas
vias iluminativa e unitiva sempre praticou a ascese e até mesmo a recomendava aos que
decidiram pelo discipulado de Jesus Cristo. Para Santo Tomás, enquanto estivermos
nesta terra, a ascese será necessária e todos estão obrigados a ela. Quando lemos a vida
dos santos, com facilidade constatamos essa verdade ensinada por Santo Tomás.
49
O importante para Santo Tomás é a perfeição da caridade a qual é atingida
43
pelo crescimento na vida espiritual . Para tal crescimento, exige-se do homem que
quer se dar à intimidade divina, ou seja, ao serviço de Deus 44, deixar de lado até mesmo
o que se consideraria lícito. Isso somente é possível se houver vida ascética séria.
Os santos nos ensinaram as três vias seguras que conduzem a alma a Deus e
isso também é corroborado por mestres de espiritualidades tomistas, como o padre
45
Garrigou-Lagrange , que, em sua obra Sobre as três idades da vida interior, trata da
via purgativa como própria dos iniciantes, a via iluminativa como própria aos
perseverantes que estão em progresso contínuo e a via unitiva como a dos perfeitos que
contemplam, pela infusão dos dons do Espírito Santo, a perfeição divina
1.2 Conclusão
Nenhum homem é uma ilha e nenhum ser humano vive como se fosse uma
tábula rasa, existindo sem passado, sem influência do meio. Honestamente falando, não
criamos nada do nada. Isso é apanágio de Deus. Nossas teses e doutrinas surgem de uma
leitura reflexiva da realidade e a partir da "experiência de mundo" que temos. Não há
como ser no mundo sem sermos na continuidade. Sempre estamos avançando a partir de
algo que poderá ficar para trás, mas que servirá de trampolim para darmos um passo a
mais. Não é ruptura com a história, pois, esse modo de pensar e se comportar anula o
estar no mundo, evento que propicia fazermos nossa "história sagrada", que escrevemos
na continuidade do tempo e segundo a lembrança de nossos ancestrais.
43
STOLZ, Anselme. L'ascèse chrétienne. Chevetogne: Éditions des bénédictins d'Amay, 1947.
p. 46.
44
TOMÁS, de Aquino, Santo. Suma Teológica II-II, q.188, a. 8. In: STOLZ, Anselme. L'ascèse
chrétienne. Chevetogne: Éditions des bénédictins d'Amay, 1947. p. 43.
45
Garrigou-Lagrange, Reginald. Les Trois âges de la vie intérieure, prélude de celle du Ciel.
Paris: Cerf, 1938.
50
povos antigos sobre os Pais do deserto, sobre os Pais da Igreja e, por conseguinte, em
João Cassiano.
Cassiano é exemplo do que acabamos de dizer por ter sido filho espiritual de
vários Pais do deserto e deles ter recebido a doutrina e a base para fazer uma
experiência pessoal e única de Deus. Também não podemos omitir sua influência como
pai espiritual de muitos. Seus escritos nos confirmam isso.
51
do Todo-Outro, isto é, Deus. A teologia cristã de Agostinho e Tomás, assim como a de
João Cassiano revela esse modo de ver Deus e se relacionar com Ele. Essa teologia
surgida da leitura meditada dos escritos dos profetas, evangelistas e apóstolos
seguidores do Deus revelado ao povo judeu e aos cristãos é teologia que também
veremos presente nos ensinamentos de João Cassiano.
52
CAPÍTULO II
53
Significado do termo
46
Cf. TANQUEREY, A. Compêndio de Teologia Ascética e Mística.4. ed. Porto: Apostolado da
imprensa, 1948. §§1420-1434, p. 678- 685. A primeira noite dos sentidos se refere à purgação
ou purificação da alma e concerne os iniciantes na vida espiritual.
47
Ibid., §§ 1469-1479, p. 704-708. O matrimônio espiritual é uma união serena e duradoura.
Esta união é também conhecida com o nome de união transformante. Nela Deus e a alma unem-
se profundamente de modo sereno, íntimo e indissolúvel.
48
Participação na vida de Deus. União com Deus. A "theosis" dos Pais da Igreja.
54
progresso, Orígenes preconiza o uso de alguns meios ascéticos que, segundo ele, são
eficazes: a oração, o jejum e o estudo da Sagrada Escritura.
49
Vida religiosa solitária, retirada no deserto ou ermo.
50
Vida religiosa comunitária ou em cenóbios.
55
tipologia como modo de leitura que usa uma figura como tipo para a outra, as realidades
ou mistérios do Antigo Testamento passavam a ser “tipo” ou figura do Novo
Testamento; explicavam uma realidade pela outra. Assim, a antiga Aliança era símbolo
da nova e eterna Aliança estabelecida por Jesus Cristo; Adão, o velho homem,
responsável pela entrada do pecado no mundo, seria a figura de Jesus, o novo Adão, que
trouxe a regeneração; Eva é vista como a mãe dos viventes e como a desobediente;
Maria, ao contrário, é chamada “Mulher”, serva humilde e obediente.
Esses diferentes métodos serviam para fazer aflorar o que estava escondido
sob a pele das palavras dos Textos Sagrados. Esses homens, diariamente, alimentavam-
se da chamada “lectio divina" como meio de crescimento na fé. Devotados à vida de
intimidade divina, eram assistidos pelo Espírito Santo, o qual conduzia esses
hagiógrafos a, por meios humanos e usando de símbolos mais apropriados possíveis, a
expressarem e comunicarem as verdades e vontade Divinas. Sabendo, em última
instância, que é o próprio Deus o autor das Sagradas Escrituras, que é seu Espírito que
inspirou os autores sagrados e se faz o intérprete das Palavras Sagradas na Igreja, esposa
fiel do Cristo Jesus, que como discípula em profunda comunhão de fé, esperança e amor
segue seu divino Mestre, os Pais se davam sem desanimar à meditação de tais textos.
Dissemos que a ascética tem sua fonte nas Sagradas Escrituras, mas essas
não são um tratado sistemático de doutrina espiritual, ou seja, métodos que levam o
homem a progredir com base em exercícios específicos apropriados para tais objetivos.
O que podemos perceber é que no Antigo e no Novo Testamento há textos que se
referem a Deus, sua natureza, sua grandeza, sua onisciência, onipresença, sua
magnânima misericórdia, sabedoria, bondade e justiça. Há preceitos, conselhos, normas,
exemplos e mesmo orações que resultam de experiência de caminhada de homens,
mulheres e comunidades na busca assídua de Deus e que nos estimulam a uma vida de
maior perfeição e entrega a Ele. A título de exemplo, podemos citar vários profetas,
patriarcas e outras personagens mencionadas nas Sagradas Escrituras que, embora
frágeis, souberam reparar suas debilidades, corrigindo-se com seriedade. Além disso,
temos o Decálogo e as Bem-aventuranças, os livros sapienciais, São João, São Pedro e
São Paulo em suas epístolas que entendemos como textos, sui generis, a nos ensinar
como bem viver nosso batismo, o trato com Deus e com o próximo, recordando-nos do
culto que devemos prestar ao Deus Uno e Trino e o respeito devido ao direito de
outrem, sobretudo para com os fracos e oprimidos.
56
2.2 A ascese além das fronteiras do mero esforço
57
2.3 A autenticidade da Ascese
A ascese cristã tem na ascese de Cristo seu fundamento. Passando pela cruz
com o Cristo, o asceta encontra a justificação de sua ascese, ou seja, o servo não é maior
do que o seu senhor e em tudo o imita. Na cruz, o asceta encontra o caminho seguro que
o levará ao Mistério Pascal. É um contínuo morrer com Cristo (1Cor 15,31; 2Cor 4,10-
12), que tem no batismo seu símbolo. Segundo a catequese batismal da primeira carta
51
São Boaventura foi religioso franciscano (1221-1274), filósofo e teólogo escolástico
medieval.
52
Dionísio, o cartuxo (1402-1471). Teólogo e místico, escreveu comentários aos livros da
Escritura, às obras de Boécio, de Pedro Lombardo, de São João Clímaco e do Pseudo-Dionísio.
53
São João da Cruz (1542-1591) foi frade carmelita espanhol. Famoso por suas poesias
místicas. Foi proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XI.
54
São João da Cruz, CA, 13,1.Apud. BERNARD, Charles André. Teologia Mística. São Paulo:
Loyola, 2010. p. 150.
58
de São Pedro, todo sofrimento, renúncias e superações diárias tornam-se, na fé, eventos
Pascais, ou seja, libertação da morte e do pecado, passagem da morte para a vida.
Todos os ascetas são unânimes em dizer que pela prática da ascese de Cristo
cresce-se na virtude da caridade. A ascese cristã tem por finalidade erradicar o amor
próprio e o egoísmo do coração do homem, levá-lo à superação de si e nele fazer
progredir o amor divino; levar o homem a amar com o coração de Deus.
A vida do Cristo no homem o excita a viver aqui o que viverá na outra vida.
Contudo, o como se viverá nesta outra realidade, é assunto da escatologia, que surge
como outra justificativa para uma vida ascética. Na realidade, o cristão é, aqui na terra,
peregrino em busca da vida do céu, a Jerusalém celeste, sua pátria definitiva e, pela
comunhão dos santos, é membro da família de Deus. No Cristo somos filhos de Deus 55.
Essa filiação divina, apesar de ser dom, somente beneficia aqueles que
optam por ela, isto é, fazem a escolha de serem filhos. Não se trata de um dom que é
próprio do ser humano, inato a ele. Nada disso é imposto a ele, não está obrigado a ser
filho. A filiação vem da comunhão com o Filho Único, Jesus Cristo que leva à
comunhão de vida com o Pai e o Espírito Santo, com a Trindade. A filiação nasce da
liberdade da escolha, pois Deus salva o homem com seu consentimento e ajuda.
São Pedro exorta o cristão a assumir os sofrimentos em Cristo e com
alegria, porque esse combate de fé assegura a participação na vida e glória do Senhor e
56
o une a Deus, Trindade de amor . Essa exortação de São Pedro de cunho teleológico
57
afirma que o mistério pascal entendido como mistério de morte e de vida, apresenta
dois aspectos indissociáveis: a ascética e a mística. Por isso podemos concluir que a
ascese é parte essencial da mística, entendida como experiência do mistério pascal
vivido como “vida, paixão, morte e ressurreição” do Cristo Jesus.
55
Ef 2, 19.
56
1Pd 3, 12-19.
57
Este termo foi criado por Wolff para indicar “a parte da filosofia natural que explica o fim das
coisas”. O mesmo que finalismo. TELEOLOGIA. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 943.
59
cada vez mais aprendendo a escutar as menores sugestões de Deus em si e com toda
docilidade buscará obedecê-lo.
60
ressignifica as vicissitudes do existir e faz dos acontecimentos caminho, como se relata,
por exemplo, no livro de Jó 58.
No livro de Ester, lemos que a mesma, então rainha, jejuara longos dias e
cobrira-se de cinzas para obter de Deus a libertação de seu povo. Em Nínive 59, fizera o
mesmo toda a população, do rei ao último dos vassalos e como resultado até mesmo a
60
lei da natureza fora mudada . Também o precursor, João Batista, asceta e profeta,
levara vida espiritual alicerçada em assíduas práticas de austeridade. Por meio de jejuns,
abstinências, privações, solidão e oração, preparava o caminho do Messias. Convidara
as multidões, que iam escutá-lo no deserto, à conversão total e a preparação daquelas
vias de Deus, que não são as do homem e das quais falava o profeta Isaías 61.
No Novo Testamento, João Batista aparece como grande asceta, que, de
forma pedagógica, insere seus discípulos no mistério ascético de Cristo, o qual, por sua
vez, não dispensa a ascese, que terá sua expressão máxima na opção pela cruz. Sabemos
que aqueles que empreendem a via do seguimento de Cristo não serão poupados da
62
mesma e, de certa forma, a morte de Cristo, pela experiência do batismo, será
vivenciada pelo cristão uma vez que o batismo não somente outorga o perdão dos
pecados, isto é, a purificação, a filiação adotiva como dom do Espírito Santo, mas
também é marca e imagem da Paixão do Cristo na vida de seus discípulos como nos
ensina São Paulo na Carta aos Romanos: “Acaso ignorais que todos nós, batizados no
Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados? Pelo batismo fomos sepultados com
Ele em sua morte" 63.
São Paulo, o apóstolo dos gentios, dera ênfase à luta espiritual que o cristão
deve travar diariamente em sua vida de discípulo e missionário: “Fortalecei-vos no
Senhor e na força de seu poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para poder resistir às
insídias do diabo, pois o nosso combate não é contra os principados, contra as
58
O livro de Jó ou Job é considerado a obra prima da literatura do movimento de Sabedoria.
Também é considerado como uma das mais belas histórias de prova e fé. Este livro conta a
história de Jó, um homem temente a Deus e que o agradava.
59
Capital do reino da Assíria, na margem esquerda do rio Tigre, na antiga Mesopotâmia,
Nínive, cujo nome significava "bela", encontra-se próxima da atual cidade de Mossul, no norte
do Iraque. Na Bíblia, Jonas é enviado a Nínive para converter o seu povo e, assim, evitar a sua
destruição.
60
Jn 3, 1-10.
61
Mt 3, 1-3.
62
Mt 16, 24.
63
Rm 6, 3-4.
61
autoridades, contra as criaturas de sangue e carne, mas contra os dominadores deste
mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que povoam as regiões celestiais" 64.
64
Ef 6, 10-12.
65
1Cor 9, 24-25.27.
66
2Tm 2, 3.
67
Mt 16, 24.
68
Fl 2, 5-8.
69
Fl 1, 21.
62
Lembra ainda Paulo a necessidade que se tem, para tamanha empresa, do concurso da
Graça.
Em suas pregações, no início de sua vida pública 75e muitas vezes, Jesus fez
menção à batalha que se deve travar contra o nefasto inimigo do homem, seu verdadeiro
adversário e ensinou a seus discípulos a lutarem contra as insídias de Satanás com a
70
1Cor 15, 31.
71
Jo 15, 4-9.
72
At 4, 12.
73
Jo 6, 56-57.
74
Jo 14, 20.
75
Lc 4, 1-13.
63
76
oração, o jejum, preconizados como meios eficazes de pôr em fuga o inimigo .
Seguindo esse caminho, o discípulo chega à purificação do coração, a circuncisão do
coração segundo Jeremias 77, ou seja, a transformação do coração de pedra em coração
de carne 78.
Ensina santo Anselmo, em sua obra Cur Deus homo, que a reparação ao
pecado cometido exigiu um ato à altura da divindade ofendida. Por isso, somente Jesus,
humano e divino, poderia reparar a ofensa contra Deus. Com a mística da participação
do homem na vida de Jesus pelo mistério de sua encarnação, a ascese cristã,
aproveitando de tal possibilidade, propõe uma participação reparadora às ofensas que
diariamente o homem comete contra Deus. A vida quotidiana do homem unido ao
Cristo pelo mistério do batismo faz dele um ser capaz de Deus pela sublimidade do
múnus de profeta, sacerdote e rei recebido nesse sacramento. Ao participar da cruz de
Cristo, pela vida nesta terra assumida no amor reparador e misericordioso, acredita-se
poder participar também de sua glória, ou seja, da vida nova no Cristo 79. Mesmo ciente
que somente Jesus pode reparar profundamente o pecado-ofensa ao amor divino, o
asceta acredita que sua vida escondida e animada por Cristo, único salvador a beneficiar
por sua entrega toda a humanidade, alcança-lhe a possibilidade de tal reparação e pode
76
Mc 9, 29.
77
Jr 4, 4.
78
Ez 36, 26.
79
2Tm 2, 11-12.
64
também satisfazer as ofensas cometidas por si mesmo e pelos seus irmãos, de quem se
faz solidário.
O místico cristão descobriu que sua vida no Cristo é sal para a terra e Luz
para o mundo; sabe que viver unido ao Cristo é tornar-se irmão universal do criado e
responsável da vida em plenitude do universo, pois se seu pecado pode ter
consequências sociológicas e até mesmo cosmológicas, assim sua vida na graça
beneficia tudo o que vive e respira.
A ascese não tem fim em si. Como vimos, ela é meio para a obtenção de um
fim, que é Deus. Assim, o conhecimento das práticas ascéticas não é suficiente para
garantir por si só uma vida virtuosa, faz-se necessária a práxis. Pela prática dos
ensinamentos contidos nos manuais de ascética é que o cristão chega às vias mais
elevadas de união com Deus. Evidentemente que o conhecimento teórico da doutrina
ascética se faz necessário, mas não é suficiente. Teoria e práxis, nesse caso devem
caminhar juntas.
80
1Pd 2, 21.
81
Cl 1, 24.
82
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000. nº. 2340.
65
Referindo-se ao domínio da vontade, diz o Catecismo:
83
Ibid., nº. 1734.
84
Ibid., nº. 2015.
66
Contudo, ao adotar tais métodos, deve-se considerar que a ascese cristã
difere, quanto ao escopo, dessas outras asceses. A Yoga é exercício físico cujo objeto é
a purificação espiritual, mas a purificação almejada não se identifica com a cristã. O
mesmo se pode dizer de outras religiões com suas práticas. A purificação do cristão
surge da relação com Deus e é dom da graça. Não é fruto de simples conquista ascética.
Ela fundamenta-se em um comércio entre pessoas, isto é, para o cristão trata-se de uma
relação interpessoal e não é identificação com o próprio eu do asceta, como no
85
hinduísmo . O caminho assumido pelo asceta cristão não é uma estrada na qual ele
deve caminhar, é, antes, uma Pessoa com a qual ele deve se relacionar, à qual ele deve
se submeter, porque será dada como sentido de sua vida. Jesus se apresenta a si mesmo
como o caminho. Não é mergulho no vazio, assim como não é também imersão em um
divino desconhecido e distante, mas encontro entre pessoas. É comunhão de amor com
o "Deus Trindade" mediante um processo de conformação a Cristo, o filho único do Pai
no qual o homem criado se torna filho.
Todavia, não queremos aqui demonstrar que tais asceses não sejam
eficientes aos fins para os quais são utilizadas. Somente dizemos, que não
correspondem plenamente ao fim do cristianismo que, ao se servir de práticas ascéticas,
busca transcender aqueles fins, a saber, o bem do corpo, a aquisição de uma virtude para
a alma, um bem físico qualquer.
85
O Hinduísmo é a terceira maior religião do mundo em número de seguidores. Tem sua origem
em aproximadamente 3.000 a.C, na antiga cultura Védica.
67
A relação com Deus e com o próximo difere quanto à essência, porém as
duas são relações interpessoais. Por ser relação interpessoal, há a possibilidade de se
criar laços, de reciprocidade, de reconhecimento, de diálogo, de escuta, enfim de oração.
Sendo Deus a fonte de todo Bem e do amor puro e verdadeiro, é lógico encontrar e
buscar Nele a razão última e o sustento do amor ao próximo, pois é por conta Dele que
se ama o homem apesar do homem.
86
Ricardo de São Victor, religioso místico, falecido em 1173, é conhecido hoje como um dos
pensadores religiosos mais influentes de seu tempo.
87
Santa Teresa de Ávila ou Teresa de Jesus (1515-1582) foi uma religiosa e escritora espanhola,
famosa pela reforma que realizou na Ordem dos Carmelitas e pelas suas obras místicas. Foi
proclamada Doutoura da Igreja pelo Papa Paulo VI.
88
São João da Cruz (1542-1591). Ver p. 49.
68
que o cumprimento com o dever ou mesmo uma vida cristã fervorosa sem a consciência
reflexa de seus atos religiosos é suficiente para a visão de Deus. Esquecem que há
necessidade de um itinerário que propicie o avançar sempre e continuamente na relação
com Deus até chegar a uma verdadeira personalização da fé.
Muitos santos viveram vida cristã de forma medíocre, diziam eles, até o
momento em que se deixaram tocar e conduzir por uma relação pessoal, singular com
Deus. Santa Gertrudes (1256-1302) dissera que até seus vinte e cinco anos ainda vivia
em uma louca cegueira; Teresa d’Ávila passara vinte anos em um mosteiro sem o
mínimo de progresso na vida espiritual, Santo Agostinho também lamenta o tarde amar
89
Deus. Nos relatos de santa Teresinha do Menino Jesus , encontra-se escrita sua
lembrança de quando começou, de fato, sua vida espiritual de pessoa humana que se
considera responsável pela própria vida diante de Deus:
No início de minha vida espiritual, por volta de meus 13, 14 anos 90.
89
Teresinha do Menino Jesus (1873-1897) foi religiosa carmelita descalça. É doutora da Igreja.
90
TERESINHA DO MENINO JESUS, Santa. Manuscritos autobiográficos, A, 74. Obras
Completas. São Paulo: Loyola, 1998. Apud. BERNARD, Charles André. Introdução à Teologia
Espiritual. São Paulo: Loyola, 2005. p. 114.
69
quem opera tudo, e para que essa vida seja vida teologal outro não é o responsável
senão Deus mesmo: “Minha Graça te basta”.
Apesar de Deus estar na origem e no fim de todo ato de amor, quer seja o
amor que se devota a Ele, ao próximo ou a si mesmo, Ele não despreza a contribuição, o
auxílio e a colaboração do homem, até porque não se trata de um Deus narcísico que se
ama no homem. Ele espera do homem a acolhida de sua graça e sua colaboração que se
tornou eficiente pelo mistério da encarnação. Santo Agostinho ensina que Deus sempre
requer a colaboração do homem quando se trata de sua salvação. Quando o assunto é o
crescimento na vida espiritual o concurso do homem é necessário para que Deus opere.
Começando a vida espiritual ou entrando na via dos principiantes, a
purgativa, é mister a prática de exercícios de penitência para vencer as dificuldades
próprias de quem está iniciando a subida, ou como já dissemos, usando a expressão de
Santa Teresinha do Menino Jesus, quando orientava sua irmã de sangue e também
coirmã no Carmelo, Celina; iniciando essa descida, visto que ela apela para a senda da
humildade, são necessárias para, como já dissemos, purificar a alma de seus vícios
adquiridos no passado e torná-la apta a resistir às tentações que sobrevirão na
caminhada, muita determinação e seriedade. Com o jejum, a mortificação dos sentidos,
domínio das paixões, renúncia aos prazeres mundanos, a prática das esmolas e das obras
de misericórdia, as tentações são vencidas, a mente começa a ser sossegada e inicia-se o
fortalecimento das três potências da alma: memória, entendimento e vontade.
91
O teólogo Charles André Bernard ensina que, ao se decidir por começar
vida espiritual, o principiante se empenhará em conhecer e cumprir a vontade de Deus
em relação a si. Para isso, é muito importante o recolhimento da alma e a prática da
oração contínua e pessoal, que lhe revela os diversos impulsos de sua alma. Aqui
estamos falando do primeiro grau na vida espiritual. Um mundo novo se abre a sua
frente e a graça divina lhe favorece o autoconhecimento. O autoconhecimento leva-o a
uma visão justa de si e o impele à vivência mais intensa da caridade, que, por sua vez, o
faz descobrir a importância e a dificuldade das relações interpessoais. Esse mundo
espiritual que se descortina não é algo fácil de enfrentar, é por isso que se fala de
obstáculos e repugnâncias à vida interior. Nesse estádio da vida espiritual, ou seja, ainda
na via purgativa, vale recorrer a exercícios como aos exames de consciência, à confissão
frequente e o esforço contínuo na prática das virtudes. O cultivo do silêncio favorece
91
BERNARD, Charles André. Introdução à teologia espiritual. São Paulo: Loyola, 2005.
70
uma vida mais interior e a oração meditativa o ajudará a uma vivência mais autêntica
das propostas e verdades da fé presentes na mensagem evangélica. É o momento em que
se precisa unir tanto a vontade quanto a memória e a inteligência para que se deixem
iluminar, inflamar pelas palavras sagradas e não deseje outra coisa senão adorar, servir,
amar a Deus acima de tudo e de todos. Embora, nesse estádio, a alma ainda não consiga
um profundo recolhimento interior e deva se servir, como dizia Santa Teresa de Jesus, a
doutora mística, de imagens, estampa e leitura piedosas para unificar as faculdades no
único escopo, ela já percebe em si mesma um caminhar mais autêntico segundo os
preceitos cristãos.
Uma vez avançando este estádio, a pessoa não deve desanimar diante dos
obstáculos que, muitas vezes, surgirão e com determinação e seriedade não parar em
meio ao caminho nem deixar de lado as práticas necessárias de purificação. Com
intenso fervor, mais recolhida e meditativa, outra etapa se apresentará à alma para ser
vivida e vencida em vista de uma vida de intimidade divina. Silenciosa, introspectiva e
pacificada a alma entra no segundo grau, ou seja, via iluminativa. Percebe-se aqui que a
pessoa se mostra mais segura de si, mais piedosa, fervorosa na prática interior e exterior
de culto a Deus. É um estádio onde até o menor pecado venial não tem mais lugar.
Nessa via, a alma tem condições para estar mais concentrada e permanecer por um
tempo mais longo voltada para os assuntos divinos. Na sua vida quotidiana, busca em
tudo imitar a humanidade de Cristo e exercitar-se em todas as virtudes cristãs. Agora é
mais íntima de Deus e seu fervor e piedade leva-a à plenitude do amor. O perigo nesta
via é o de não encontrando mais satisfação na meditação, abandoná-la acreditando que
perde seu tempo com ela.
71
intimamente a Ele. A participação assídua à eucaristia e aos sacramentos se tornam
meios seguros para a inabitação, a sustentação e o progresso de sua vida mística. A vida
mística cristã é, em sua essência, sustentada pelos sacramentos, é mística sacramental,
visto que, por meio dos sacramentos, sobretudo da reconciliação e da eucaristia pode-se
experimentar a união e efusão profunda da graça segundo o que dizia também o Pai da
Igreja santo Efrém.
Passando para o terceiro grau, chamado grau dos perfeitos que, na realidade,
seria a via unitiva, à qual chegam muitas almas depois de passarem pelos dois primeiros
graus ou caminhos de purificação e via iluminativa de que trata a tradição platônica 92 e,
de modo cristão, Dionísio Areopagita, a alma adquiriu as condições para avançar cada
vez mais. Vale dizer que, nesta etapa, ainda a alma deve colaborar com a graça e não
relaxar em sua determinação. Embora o progresso esteja garantido, a alma não tem
garantida a possibilidade de não retroceder.
Resumindo o que dissemos a propósito do progresso que a alma faz ou
sofre, uma vez que o autor primeiro de tudo é Deus, podemos afirmar que em várias
escolas espirituais, quando se trata das etapas da vida espiritual, sempre se dá ênfase as
estes três elementos: a purgação, a iluminação e a união.
93
Retornando à etapa chamada de via unitiva , que revela uma vida mais
íntima e extática com Deus; ou uma etapa na qual a alma vive sob o olhar amoroso de
Deus, vale lembrar que, vendo-se e sabendo-se na presença do Senhor, a pessoa
experimenta um amor sem igual pelas coisas celestes. Decidida por pagar amor com
amor, ela se inebria por ter maior compreensão dos dons do Espírito Santo e por ser por
Ele informada. É a contemplação infusa, "visão intelectual" que vem de Deus,
acompanhada de um claro entendimento e amor pelas coisas divinas. Nesse estádio, a
alma vai sendo purificada e une-se cada vez mais à divindade até ser completamente
transformada e ter suas "potências" 94 suspensas à menor manifestação de Deus.
95
A esse estádio segue o chamado "desposório espiritual" , estádio em que a
alma tem os sentidos suspensos e a mente completamente absorvida por Deus. Essa
92
Já fizemos menção à tradição platônica, em páginas anteriores, quando tratamos sobre o
platonismo.
93
Terceira via à qual se chega pelo processo de caminhada espiritual. As duas anteriores são:
via purgativa e via iluminativa.
94
As potências da alma são aqui entendidas como: memória, inteligência e vontade.
95
Esse desposório é também conhecido como matrimônio espiritual pelo qual alguns místicos
passaram e descreveram, haja vista, Santa Teresa de Jesus.
72
União Transformante ou o famoso "Matrimônio Espiritual" é entendida como sossego e
total intimidade com Deus. A pessoa que está vivendo esse tipo de união é sólida em
suas decisões, vive de forma intensa a santidade e desapega-se completamente de todo
criado. Muitas vezes expressa, e até mesmo com lágrimas, a dor que sente pelos
pecados de sua vida pregressa. A visão continuada da humanidade de Jesus lhe é
estímulo e consolo e em sua vida terrena experimenta o gozo e a alegria da vida celeste
96
e divina. Sobre esse modo de viver Santa Teresa D’Ávila e Santa Verônica Giuliani
são bons exemplos, pois aquela vivia na terra e tocava o céu e a outra vivia no céu e
tocava a terra.
96
Santa Verônica Giuliani (1660-1727). Foi monja capuchinha e grande mística. Era
estigmatizada.
97
Anna Catarina Emmerich foi uma freira Agostiniana, mística, visionária. Foi beatificada, em
3 de outubro de 2004, pelo papa João Paulo II.
98
Religioso dominicano que viveu em Lima, no Peru.
99
Religioso franciscano conventual (1603-1663). Esse religioso tinha frequentes êxtases.
100
Era prostituta; após a conversão se retirou para o deserto, nas imediações do rio Jordão.
Morrera em 522 em altíssimo grau de santidade.
73
Dona Catarina de Cordoña, eremita que Santa Teresa D’Ávila conhecera e de quem
disse:
101
Santa Teresa de Jesus. As fundações. Leitura orante e missionária. São Paulo: Loyola, 2012.
p. 231-232.
102
Religioso capuchinho (1887- 1968). Era estigmatizado.
103
São João Clímaco nasceu em 580. Ele foi um monge do Monte Sinai e morreu por volta do
ano 650.
74
essas etapas de caminho, via, itinerário, "marga" para o hinduísta, "tarika" para o sufí
islamita e "magga" para o budismo.
104
Teólogo espanhol. Nasceu em 1934. Foi professor emérito de Fenomenologia da Religião na
Universidade Pontifícia de Salamanca em sua sede de Madri.
75
105 106
também entendem Karl Rahner e Bernhard McGinn quando utilizam a palavra
mística em sentido amplo como "mística da quotidianidade".
Percebe-se por aí que o místico é uma pessoa que fez uma experiência única
e singular que constitui um fenômeno completo cuja origem é uma presença real. Ele é a
pessoa que viu, ouviu e degustou a Presença do Mistério de forma toda particular. Não
satisfeito com o que ouve dizer ou os ensinamentos dogmáticos das religiões, busca
uma relação pessoal, singular e única com o Mistério. Dando consentimento a essa
Presença, começa um longo processo místico que envolve os estados de sua consciência
e sua dimensão afetiva.
A experiência mística pode trazer também tal profundidade no
conhecimento de si e das coisas que em face da verdade daquilo que é o ser e da
efemeridade das coisas criadas venha o místico experimentar um profundo vazio. Foi
assim que acontecera com o pai da fé, Abraão e também com Jó que, num momento
dado da vida, se perceberam a si mesmos, na presença de Adonai, como sendo pó e
cinza.
Um assunto que sempre volta em todos os autores espirituais é a questão do
arrependimento da vida de pecado e também a necessidade de um guia, isto é, um
diretor espiritual para orientar o homem ao longo de seu caminho de crescimento
teologal. Certos autores chegam a afirmar que sem um mestre espiritual o homem fica à
mercê de satanás que se aproveita da situação para levar a pessoa, por uma completa
desobediência, à perdição, tomando ele mesmo a direção daquela alma.
Deixar-se conduzir como um cadáver pelas mãos de quem o leva é uma arte
ensinada pelos autores cristãos quando tratam da direção espiritual. Isso, porém, foi, de
107
certa forma, aperfeiçoado por São João da Cruz e Santa Teresa D'Ávila que
asseveraram que o mestre tem que ser experimentado, sábio e santo para evitar que sua
direção cause mais males que benefícios à alma dirigida. O mestre espiritual deverá ser
um homem sábio e de muita discrição, experimentado e conhecedor do que é puro e
verdadeiro espírito. O verdadeiro mestre espiritual sabe que o principal agente, guia e
movedor das almas é o Espírito Santo e não ele mesmo. O mestre espiritual apesar de
105
Karl Rahner (1904-1984).Sacerdote jesuíta de origem germânica e influente teólogo do
século XX.
106
Bernhard Mcginn nasceu em 1937. É teólogo, historiador e estudioso da espiritualidade.
107
João da Cruz e Teresa D'Ávila foram religiosos carmelitas do século XVI.
76
ser importante e indispensável é somente um instrumento, nada mais que um meio na
orientação da alma. Sua absolutização é perniciosa.
Sendo Deus o fim de todo místico, sua arte será manter sempre seu coração
atento a renunciar a tudo que possa distraí-lo de seu escopo. Por isso, a renúncia e o
desprendimento do mundo ou de qualquer coisa que possa desviar sua atenção do único
necessário serão praticados com afinco por ele. É luta contínua que se trava contra a
carne, seus apetites e desejos para superar toda avidez e cobiça com a finalidade de
colocar suas potências a serviço do conhecimento de Deus.
Para impedir que o desejo de posse domine aquele que decidiu por uma vida
de maior intimidade Divina, os mestres espirituais ficam atentos às questões
relacionadas à paciência, à gratidão, ao temor e ao desprendimento. Pelo
desprendimento o asceta leva vida de pobreza radical e não espera senão em Deus que
suas forças sejam refeitas, Ele que se tornou seu sustento, seu repouso e seguro refúgio.
Pela pobreza radical o asceta se esvazia de si mesmo, deixa de lado a autossuficiência
para ser preenchido somente por Deus. Para os "sufís" 108 para os quais, quando o pobre
é verdadeiramente pobre, ele é Deus, o esvaziamento do ser está simbolizado na vasta
sala vazia da Mesquita que, por sua vez, plenifica do nouminoso aquele que a visita.
108
Praticantes do sufismo, que é uma corrente mística e contemplativa do Islão.
109
Dois livros deste místico que tratam sobre a vida espiritual nos seus vários graus.
77
Para São João da Cruz, a purificação, sobretudo em seus graus mais
elevados, é expressa e conscientemente passiva; sou purificado, não sou eu quem me
purifico; somos salvos, não me salvo a mim mesmo. A purificação não é somente uma
fase do processo místico, ela se dá durante toda a vida mística com a finalidade de fazer
com que o entendimento e a vontade superem sua forma ordinária de pensar e desejar e
que a pessoa, por inteira, se eleve sobre o jeito comum de ser. Somente assim é possível
o contato com essa realidade absolutamente transcendente e absolutamente não
imanente ao homem. Não se pode confundir uma relação com Deus como a que se tem
com um objeto qualquer, nem como a que é objeto de nossos pensamentos, de desejo ou
de contato com o sujeito humano.
2.9 Conclusão
110
O que por hora escrevemos foi trabalho entregue para a cadeira de Espiritualidade do ano
2012 retirado de: VELASCO, Juan Martin. El fenômeno místico. Estudio comparado. Madrid:
Trotta, 1999, p. 289-300; 301-317.
78
Sagradas Escrituras e que há uma diferença entre a ascese que se pratica em outras
religiões e a que é praticada pelo asceta cristão. O objetivo foi o de dizer que a ascese
cristã tem no Cristo seu fundamento, ou seja, não é possível, ser filho sem o Filho e não
se pode falar do Cristo omitindo a cruz que responde ao sim salvífico do Cristo e faz do
asceta também um participante desse mistério de amor pela humanidade. Tomando
algumas personagens do Antigo e do Novo Testamento buscou fundamentar o esforço
que todo homem que busca a Deus deve fazer e enfatizou a luta espiritual que deve ser
travada diariamente para vencer o homem velho, carnal em vista do testemunho que se
deve dar enquanto discípulo de Cristo. O presente capítulo tratou também das etapas da
vida espiritual servindo-se das terminologias: via purgativa, via iluminativa e via unitiva
e mostrou que a experiência é um aspecto central na mística a qual é um fenômeno que
marca a vida de quem a faz deixando um antes e um depois na vida ordinária do
homem, o qual não será mais o mesmo. Mostrou que o amor efetivo no trato direto com
os irmãos é forma segura de experiência de fé.
79
2ª PARTE
80
CAPÍTULO III
Por ser empreendedor e devido aos seus dotes intelectuais, não seria difícil
imaginar que, além do latim, língua em que escrevera suas obras e do grego, língua de
que se servia para se entreter com os Pais no Egito, sobretudo com o Abade José,
Cassiano tivesse conhecimento do copta, por conta de sua longa estada no Egito; do
dialeto utilizado na região de Roma onde esteve por alguns anos e do "Roman" (francês
antigo), visto ter terminado seus dias em Marseille, na antiga Gália, hoje conhecida
como França. Disso tudo podemos concluir que sua cultura era vasta.
81
A experiência que João Cassiano adquiriu no mundo copta trouxe benefícios
para o monaquismo do Ocidente, sobretudo, o da região Provençal. Graças a sua cultura
greco-romana, Cassiano possibilita a transferência da sua herança monástica recebida
dos solitários do Oriente.
111
Aqui podemos confirmar que Cassiano falava também o grego como língua materna. Cf.
Conf. XVI, 1. vol. 3, p. 13.
112
JOÃO PAULO II, papa. Carta encíclica Ut Unum Sint, 54. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 70.
82
3.1. João Cassiano e o Monasticismo
Não se pode dizer que o Egito inteiro se tornou cristão e que houve conversão
maciça ao cristianismo, pois muitos camponeses e parte da elite grega e romana
83
continuaram pagãos, apesar da proibição oficial do paganismo por parte do imperador
Teodósio. Entretanto, será nesta parte do mundo cristão que a vida eremítica terá sua
maior expressão. Peculiar será o modo de ser cristão e viver o cristianismo neste país,
pelos camponeses e povo egípcio. O mesmo acontecerá também com outros países
convertidos, que terão sua maneira única de ser cristãos e de conceber o Cristo. Por isso
é que, nos seis primeiros séculos, a Igreja fará um esforço enorme para obter uma visão
única de Cristo, com o combate as chamadas heresias.
Por volta de 350 d.C, o Egito exibe muitas Igrejas cristãs e às margens do rio
Nilo são construídos grandes mosteiros. Os desertos da desembocadura do Nilo, o delta
do Nilo, o baixo e alto Egito serão povoados por anacoretas. O fluxo, ou seja, a
anacorese feita para essa região do mundo cristão é espantosa.
É no Egito do século III que surge Pacômio, que pede a um eremita para fazer
dele monge. Como discípulo, Pacômio iniciou vida anacorética dentro da tradição de
alguns Pais do deserto que também o precederam. Aliás, antes de Pacômio muitos
anciãos já habitavam os ermos do Egito. O primeiro monge, ou eremita de quem se tem
informação, vivera antes de Antão no deserto da Tebaida. Seu nome era Paulo de Tebas,
um anacoreta de origem egípcia que, fugindo da perseguição do imperador Décio, viveu
mais de oitenta anos nesse deserto, até sua morte, por volta do ano 338. Na "Vita Sancti
Pauli primi eremitae", São Jerônimo relata sua história 113.
São Pacômio que vivera até 348 d.C, era um ex-soldado das legiões imperiais
que após conhecer o cristianismo e o testemunho exemplar de muitos homens e
mulheres seguidores da religião cristã, decide se fazer cristão e entrar para a vida
eremítica. Sob a orientação paternal de Palemôn, ou Palemão, um eremita de vida muito
austera vivendo no deserto da Tebaida, Pacômio inicia uma vida de muita penitência e
de mudança de costumes. Para receber Pacômio em sua companhia, Palemôn o desafia
dizendo que muitos já tinham vindo até ele, mas não suportaram as austeridades da vida
que ali era levada porque "o serviço de Deus é muito difícil". Para se ter ideia da
dificuldade da vida eremítica, basta escutar o que Palemôn disse a Pacômio a propósito
da frugalidade nos seus hábitos, dos jejuns diários que observava. No verão passava a
pão e sal, sem vinho, com longas vigílias e, às vezes, até a noite toda. No inverno,
Palemôn comia a cada três dias.
113
Cf. Migne PL 23,17–28.
84
Disposto a ser submetido à prova, Pacômio inicia sua vida anacorética com
Palemôn e com ele viverá vinte anos. Por volta de 320, Pacômio funda o primeiro
cenóbio. Esses mosteiros, ou colônias de monges vão rapidamente crescer e causar uma
superpopulação nas periferias do Egito.
Quando Pacômio ainda era vivo, havia sete mil monges vivendo segundo a
regra que ele escrevera, além de dois mosteiros femininos com quatrocentas monjas,
fundado por ele a pedido de sua irmã. Conta-se que após sua morte e em fins do século
V os que seguiam o exemplo de Pacômio eram cerca de cinquenta mil monges
espalhados em vários mosteiros do Egito. Segundo Paládio, autor da História lausíaca,
que morou no Egito entre os anos 388 e 399, apenas nas redondezas de Alexandria,
havia dez mil monges 114.
114
ROYO MARIN, Antonio. Los grandes maestros de la vida espiritual. Madrid: BAC, 2012, p.
63.
115
DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo: Quadrante, 1988,
p. 506.
85
Há indicio de que, já no século I e II, havia na Igreja ocidental, instituições de
virgens semelhantes às já existente no Oriente 116. Eram grupos de cristãos que morando
com a família e participando da vida social gozavam, da parte das comunidades cristãs,
onde estavam inseridos, de respeito e admiração. Esse modo de vida vai paulatinamente
evoluindo com regras precisas e correções feitas por alguns Pais da Igreja sobre os
jejuns, a oração, as saídas inúteis, as esmolas, o serviço aos enfermos, os exercícios de
vida em comum como a récita dos salmos e a leitura dos textos sagrados, até tomar
forma de abandono da família e reclusão na solidão, na mais estreita pobreza,
ocupando-se de Deus e de sua salvação eterna 117.
É dentro dessa tradição monástica que Cassiano faz suas pesquisas coletando
suas entrevistas ou Conferências; relatos que instigam às mudanças na vida cenobítica,
sobretudo da região Provençal da Gália.
Uma vez que a Igreja do Concílio Vaticano II, ou pós-Conciliar, vê nos Pais do
deserto uma riqueza e um vigor novo que "elevam o homem todo à contemplação das
118
coisas divinas" e que mantém a Igreja dinâmica e profética ainda hoje queremos
apresentar Cassiano como mestre por excelência capaz de conduzir a essa vida em Deus
e para Deus.
116
ROYO MARIN, Antonio. Los grandes maestros de la vida espiritual. Madrid: BAC, 2012, p.
51.
117
Idem, p. 53.
118
CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Unitatis Redintegratio 15. Petrópolis: Vozes, 1966, p.
320.
119
Conf. XIV, 1. vol. 2, p. 184.
86
isto é, o da ciência prática, correção dos costumes e purificação dos vícios. João
Cassiano está preocupado em levar o monge à compreensão da natureza dos vícios e ao
comprometimento com a sua erradicação. O monge que empreende tal ascese o faz
enquanto discípulo de outro monge mais experimentado, um ancião que o instruirá na
arte da purificação do coração. Estar sob a orientação de um ancião é o ensinamento
dado por Pinúfio em vista de mais perfeitamente o monge levar a vida cenobítica 120.
120
Institutions Cénobitiques, 4, 40. Paris: Les éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 183.
87
3.3 Vida de João Cassiano
Cassiano viveu dezoito anos em Scythia, sua terra natal; dois anos em
Belém; vinte anos no Egito; quatro anos em Constantinopla; dez anos em Roma e
vinte anos em Marseille, onde morrera com 75 anos mais ou menos.
121
Conf. XIV, 9. vol. 2, p. 194.
122
CASSIEN, Jean. Conférences. Paris: Les Éditions du Cerf, 1955. SC 42, p. 8. Aqui
assumimos as informações dadas por E. Pichery na introdução de Sources Chrétiennes (SC).
123
DI BERARDINO, Angelo. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Tradução de
Cristina Andrade; Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 268.
88
sensível e romântica, ainda muito tomada pelos arroubos da juventude. Essa cultura, por
ser mundana, não o ajuda no seu processo de desprendimento e ascensão espiritual.
João Cassiano tinha em grande estima sua família que era bastante religiosa
e que em tudo apoiava sua decisão. Sabia que, a menor necessidade, seus pais viriam
suprir com abundância e prazer seus desejos. E por serem seus progenitores de
comportamento tão piedoso comungavam dos anseios espirituais do filho propiciando
assim todo progresso que lhes era possível. A lembrança da beleza das paisagens de seu
país, da possibilidade de reclusão em tão esplendido cenário e em região próxima à
cidade o faziam sonhar. Acreditava que, em meio a tal sítio, tinha a chance de ser
modelo para seus conterrâneos e os instigaria a uma vida de maior entrega a Deus.
Chegava mesmo a pensar que a vida eremítica em sua pátria daria mais fruto à Igreja e
que estaria ali fazendo um grande trabalho missionário na messe do Senhor. Talvez
esses arroubos nada mais fossem que um modo de evasão da alma face às austeridades
do deserto que por hora habitava.
A sociedade que vira Cassiano nascer era uma província romana com traços
orientais. O latim e o grego, sobretudo nesses séculos IV e V, se completavam nas
124
Conf. XIV, 12. vol. 2, p. 199-200.
125
Conf. XXIV, 1. vol. 3, p. 260.
89
relações pessoais desse povo. Cassiano herdou essa dupla cultura que muito o ajudou a
ir e vir nesses dois mundos e trazer para o Ocidente a herança religiosa e espiritual do
Oriente. Ainda “puer”, atraído pelo ideal monástico, com seu amigo Germano, dirige-se,
por volta de 378 à Palestina e ingressa na vida cenobítica de um dos mosteiros de Belém
onde permanecerá até 380.
126
Pinúfio é um Pai do deserto de quem vamos tratar em seguida.
127
Conf. XX, 1. vol. 3, p. 139.
128
Conf. XVII, 5. vol. 3, p. 46.
129
Institutions Cénobitiques 4,31. Paris: Les éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 171.
130
Conf. XI, 1.vol 2, p. 105.
90
No mosteiro onde estavam, em Belém, como foi dito acima, certa vez, foi
acolhido ali um desses monges cujo nome era Pinúfio, homem de grande virtude. Por
não encontrar mais em seu mosteiro a possibilidade de viver de forma mais humilde e
simples, devido ao reconhecimento e respeito que lhe devotavam seus companheiros,
esse santo homem busca asilo em um mosteiro da Palestina, onde acreditava poder
passar incógnito.
131
Institutions Cénobitiques 4, 31. Paris: Les éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 169 e 171;
Conf. XX,1. vol. 3, p. 139.
91
los "das paixões da juventude", fosse costume de alguns pais, pois o abade Teonas conta
que foi seu pai que lhe arrumara casamento 132. Vemos também que o abade Sarapião e
o abade Pafnúcio entraram para um cenóbio ainda quando adolescentes 133.
João Cassiano, mais tarde, depois da experiência feita junto aos solitários do
Egito, entende que será muito difícil viver em um mosteiro de regra mitigada e de vida
pouco edificante. Falará da mediocridade da observância monástica da comunidade
onde ele vivia em Belém. Lamenta ter que retornar à vida pouco séria que se levava em
sua comunidade de origem, pois sabe que nela não há meios e nem interesse da maioria
por uma vida mais autêntica e que propicie maiores progressos espirituais aos
religiosos.
132
Ver tal tese confirmada na conversação do Abade Teonas. Conf. XXI,1.vol. 3, p. 155.
133
Conf. XVIII, 15. vol. 3, p. 104.
134
Conf. XVII, 10. vol. 3, p. 50.
135
Conf. XI, 1. vol. 2, p. 105.
92
[...] Fizemos uma promessa diante de todos os irmãos, na gruta
santificada pelo esplendoroso nascimento de nosso Senhor do ventre
da Virgem, e a ele mesmo tomamos por testemunha. [...] Não
obstante, cumpriríamos nossa promessa, ainda que com algum atraso,
se não soubéssemos que a afeição dos nossos superiores, pondo-se de
comum acordo com sua autoridade, nos ataria então com vínculos
indissolúveis e que nunca mais nos seria dada a permissão de retornar
a esta região 136.
136
Conf. XVII, 5. vol. 3, p. 46.
137
Ibid.
138
Conf. I, 1. vol. 1, p. 19.
93
monges. Eles respondem dizendo ser irmãos pelo espírito. Estavam ligados pela
sublimidade do elo fraterno, possível pela nobreza da causa 139.
Interessante esse diálogo com o Abade José. Há nesse colóquio um tratado
sobre a amizade, que faz relembrar Aristóteles em sua Ética a Nicômaco. Faz alusão ao
valor da verdadeira amizade e dos meios que a sustenta.
É esse elo que faz com que esses dois amigos estejam sempre unidos na
práxis do ideal monástico e também juntos viajarem pelos desertos do Egito em busca
dos mais excelentes varões ascetas e exemplos de santidade para serem por eles
ajudados em seus propósitos de conhecer “os fundamentos e as instituições da vida
espiritual” e atingirem uma vida de perfeição, verdadeira causa das visitas empreendidas
a esses Pais do deserto 140.
Tendo recebido a permissão para partirem, os dois amigos vão para uma
região do Egito bastante inóspita, de solo não fértil, toda rodeada por lagos salgados ou
o próprio mar. O único meio de sobrevivência dos habitantes desse local vinha do
comércio marítimo. Lá chegando, desembarcam em Tenessos.
139
Conf. XVI, 1. vol. 3, p. 13.
140
Conf. XVI, 1. vol. 3, p. 14.
141
Conf. XI, 1.vol. 2, p. 105.
142
Conf. XI, 2. vol. 2, p. 106-107.
143
Ibid.
144
Institutions Cénobitiques 11,18. Paris: Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 445.
94
grande penitência. Era humilde, sóbrio e despojado. De posse de um cajado e uma
pequena sacola de peregrino acompanhará Cassiano e Germano até as ermidas de sua
diocese, que ficava em Panefisi.
Nas imediações de Panefisi, moravam alguns anciãos e também o abade
Pinúfio, asceta conhecido por sua profunda humildade e amigo de Cassiano. Como já
foi dito, estivera refugiado, no mosteiro de Belém. Nessa estada na região, a saudade e a
afeição que alimentava por esse velho amigo lhe fez procurá-lo.
145
Conf. XX, 2. vol. 3, p. 140.
95
mais as condições necessárias para ser exemplo a futuros monges. O velho eremita
receia vir a ser a causa de arrefecimento do fervor dos iniciantes. Cassiano replica
dizendo que mesmo os jovens mais robustos não seriam capazes de levar vida tão
estreita e que está muito edificado com o que por ora pode ver. Insiste com o ancião
para que lhe dê a graça de uma entrevista e o auxilie em seu progresso espiritual. Pede-
lhe que leve em consideração pelo menos o esforço feito relativo à longa viagem
empreendida para chegar até ele.
Ainda nesse lugar, Cassiano se entretém com os abades Nesteros e José aos
quais atribui as Conferências XIV e XV e XVI e XVII respectivamente. Entrevistando o
abade José pôde lhe colocar sua situação de negligência quanto às promessas feitas a
146
Conf. XI, 4. vol. 2, p. 107.
147
Cf. Conf. XI, 6. vol. 2, p. 109.
148
Ibid.
96
seu abade e dar resolução a seu problema de consciência, pois ainda estava no Egito
sem voltar, de imediato, a seu mosteiro, como havia prometido a seu superior. O Abade
José tranquiliza sua consciência dizendo que é impossível ao homem realizar todas as
suas vontades e decisões, além de dizer também que toda ação deve proceder da
reflexão, da calma e não das emoções ou sentimentos. Viver dessa forma é imitar os
santos homens e mulheres das Sagradas Escrituras.
149
Conf. XVII, 25. vol. 3, p. 72.
150
Conf. XVII, 25. vol. 3, p. 76.
151
Conf. XVII, 25. vol. 3, p. 78-79.
97
Quites com suas consciências, Cassiano e Germano permanecem no Egito
152
por alguns anos ainda . Tentam enviar missivas para justificar a longa demora nesse
país, contudo retardar o retorno já não era mais possível, pois já havia sete anos que
estavam longe de casa. Depois disso, retornam à Palestina onde a comunidade de
origem os esperava. Agora estavam de fato quites com a promessa feita e seus
superiores estavam satisfeitos com eles. A estada na comunidade reacendeu a caridade
fraterna entre os irmãos e um novo pedido de inserção nas comunidades do Egito já é
possível ser aceito pelo abade. A tentativa é feita e a resposta é positiva. Cassiano e
Germano mais que depressa tomam o caminho para o Egito pela segunda vez.
Parece, pelo que diz o texto, que esta estada de Cassiano e Germano em
Diolcos é precedida por uma visita a Panefisi onde viviam os três anciãos que Cassiano
conhecera com a ajuda do bispo Arquébio. Será que este relato de Cassiano e Germano
em Diolcos data da primeira estada no Egito? Não foi mais tarde, isto é, somente na
segunda ida ao Egito que Cassiano e Germano foram a Diolcos? Por que ele faz menção
de ter estado em Panefisi e logo em seguida ter ido para Diolcos quando da segunda
estada no Egito? Ora, a estada em Panefisi se deu quando os dois jovens monges
estiveram no Egito pela primeira vez, chegando por Tenessos 154. E Diolcos, segundo o
texto, é visitada quando da segunda estada no Egito. Essa exposição de Cassiano ficou
um pouco confusa.
152
Conf. XVII, 30. vol. 3, p. 81.
153
Conf. XVII, 30. vol. 3, p. 82.
154
Conf. XI, 1. vol. 2, p. 105.
98
Depois de termos visto e entrevistado os três ilustres anciãos, cujas
conferências me coube, bem ou mal, escrever [...] tornou-se mais forte
nosso desejo de visitar as províncias mais remotas do Egito. [...]
Assim foi que chegamos à aldeia denominada Diolcos, localizada
numa das sete desembocaduras do rio Nilo 155.
Após vagarmos por muito tempo à deriva, com nossos olhos curiosos
buscando por toda parte esses sublimes gigantes da virtude deu-se-nos
a ver por primeiro, como um farol em posição eminente, o abade
Piamun. Dentre todos os anacoretas que em tal lugar habitavam, era
ele simultaneamente o ancião e o presbítero 156.
155
Conf. XVIII, 1. vol. 3, p. 85.
156
Conf. XVIII, 1. vol. 3, p. 85-86.
157
Conf. XVIII, 5. vol. 3, p. 91.
99
158
isto é, o despojamento completo e a pobreza perpétua . Essa forma de vida
perseverando na obediência da profissão que abraçaram, submetendo-se diariamente
suas vontades à orientação de um ancião faz com que estejam mortos no Cristo,
crucificados para o mundo e sejam mártires vivos.
158
Conf. XVIII, 7. vol. 3, p. 95.
159
Conf. XVIII, 6. vol. 3, p. 92.
160
Conf. II, 2. vol. 1, p. 59.
161
Conf. XVIII, 4. vol. 3, p. 88-89.
100
Depois de entrevistarem os santos varões de Diolcos, Cassiano e Germano
partem, ou melhor, retornam para o deserto de Panefisi e de lá seguem para Cétia, local
onde a vida solitária é estimada e praticada sob as orientações espirituais de Evágrio
Pôntico.
162
Conf. XVIII, 16. vol. 3, p. 113.
163
Institutions Cénobitiques 4, 43. Paris: Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 185.
164
Conf. XX, 2. vol. 3, p. 140.
101
Porém, os dois amigos ainda estão animados a penetrarem mais a fundo os ermos e
encontrarem os habitantes do deserto de Cétia.
165
Conf. XX, 12. vol. 3, p. 154.
102
permanecia por longo tempo, e onde os próprios anacoretas, muito
raramente e não sem grande dificuldade, conseguiam encontrá-lo 166.
João Cassiano e Germano ficaram mais ou menos vinte anos no Egito e dali
seguiram para Constantinopla em 399, justamente no ano que morrera Evágrio Pôntico,
monge no deserto de Nitria e mais tarde no das Celas que teve grande influência em sua
espiritualidade e na dos monges de Cétia. Em sua doutrina espiritual influenciada pelos
167
ensinamentos de Orígenes , Evágrio pregou a meditação das Escrituras como meio
para descobrir seu sentido profundo. Os ensinamentos desse mestre espiritual
direcionam a ascese dos monges do Egito para a contemplação. Sua doutrina prega a
prática de uma ascese estreita de profunda reclusão para chegar à apatheia, ou seja, ao
domínio das paixões e, por conseguinte, à contemplação do Deus invisível.
168
Em Cétia, muitos monges haviam aderido à heresia do antropomorfismo
que penetrou a teologia da maioria desses habitantes do Baixo Egito e isso pela
ignorância deles. Tiveram, então, esses monges dificuldades para aceitar a condenação
feita por carta, pelo bispo Teófilo de Alexandria por ocasião da Festa de Páscoa de 399.
Acreditavam que maior heresia cometia o bispo em negar o que se dizia nas Sagradas
Escrituras a respeito da figura humana de Deus projetada no homem Adão. Por isso
decidem não acatar suas ordens e teologia. Somente o mosteiro de Pafnúcio a aceitou.
166
Conf. III, 1. vol. 1, p. 90-91.
167
Cf. Comentário de D. Abade Joaquim de Arruda Zamith, Osb às Conferências de VIII à XV,
p. 10.
168
Conf. X, 5. vol. 2, p. 83. O Abade Isaac, precisamente nessa Conferência, faz menção a essa
heresia tratando de sua origem e sua consequência.
169
Conf. X, 2. vol. 2, p. 79-80.
103
explica a origem desse erro e trata da conversão de Sarapião retornando à fé da tradição
católica por exposição brilhante de um diácono de nome Fotino 170.
170
Conf. X, 3. vol. 3, p. 81.
104
Por meio de seus escritos, vamos percebendo a grande e rica experiência de
nosso autor: João Cassiano é escritor, teólogo, mestre espiritual, fundador, diplomata e
esteve com os mais célebres Pais do deserto. Sua experiência diplomática o colocou a
par das grandes questões da Igreja do século V, de suas necessidades e dificuldades.
Por seu espírito alvissareiro, sua rica espiritualidade e como resultado de seu
árduo esforço, a vida monástica de seu tempo experimentou uma grande aragem
173
renovadora, reflorescendo em estreitas observâncias em vários mosteiros da França
com estilo diferente do que se praticava até então. Cassiano foi o responsável por
ordenar de forma clara os ideais ascéticos e espirituais dos movimentos religiosos de
seu tempo.
171
ANCILLA, Soeur Marie. Saint Jean Cassien - Sa doctrine spirituelle. Marseille: La Thune,
2002. p. 18.
172
SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja. Século IV-VIII. São Paulo: Loyola, 2002. p. 237.
173
Prefácio às Conferências de XVII a XXIV. vol. 3, p. 83.
174
Prefácio para as Conf. XI à XVII. vol. 2, p. 103.
105
surgiram num determinado tempo e lugar com destinatários precisos e portadoras de
uma teologia que ainda está se fundamentando, ou seja, em vias de formação.
175
Conf. XXIV, 1. vol. 3, p. 259.
106
As obras de Cassiano foram escritas a pedido de bispos e monges que
habitavam a região da Provença francesa. Há também sete livros escritos a pedido do
papa Leão Magno contra Nestório cujo título é: "Da Encarnação de Nosso Senhor".
Nos oito últimos capítulos dessa obra, João Cassiano apresenta, para aqueles
que buscam a pureza do coração, um pequeno tratado sobre os meios de combater os
oito vícios que Evágrio havia codificado: a gula, a fornicação, a avareza, a cólera, a
tristeza, a acídia, a vanglória e o orgulho. Essas últimas colocações já são um preâmbulo
da doutrina do "homem interior", a qual será tratada nas Conferências. Quanto à
referência aos oito vícios, o assunto será retomado na entrevista feita com o abade
Sarapião, mais precisamente na quinta Conferência. Na realidade vamos muitas vezes
encontrar nas Conferências complementação do que já se mencionou nas Instituições
Cenobíticas.
3.4.2 As Conferências
176
Préfacio das Instituicões Cenobíticas, 3. Paris: Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109, p. 25.
107
177
dicionário Patrístico ou ainda Conlationes Patrum (Conferências dos Pais) ou
Collationes são relatos ascético-místicos, “conversações mais ou menos fictícias”,
seguindo a apreciação de Michel Spanneut, provenientes de entrevistas com alguns
célebres Pais do deserto, tanto do Egito como da Palestina, tratando dos mais diversos
assuntos sobre espiritualidade, a vida e as virtudes que devem ser praticadas por um
monge.
As Conferências tornaram-se difundidas por conta das variadas traduções
existentes. Houve bem cedo uma tradução grega de várias delas. No fim da Idade
Média, Denys, o Cartuxo, escreveu uma adaptação em latim bastante simples das
mesmas, a qual é muito recomendada por conta de sua exatidão. No século XIV, o
carmelita Jean Golein fez a primeira versão em língua francesa das Conlationes que foi
publicada no começo do século XVI. No século XVII, Nicolas Fontaine (senhor de
Saligny) realizou a acalentada ambição de Arnaud d'Andilly de traduzir Cassiano. Essa
versão apareceu em Paris em 1663 com exceção da 13ª Conferência. Em 1868 e 1872, em
Paris, surgiram novas versões feitas pelo dominicano Cartier e por Combès respectivamente. As
178
conferências foram traduzidas também para o alemão, o inglês, o espanhol e o italiano .
Recentemente tivemos uma tradução em língua portuguesa (Brasil) pela Sra. Aída Batista do
Val 179.
177
DI BERARDINO, Angelo. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs - Tradução de
Cristina Andrade; Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 268.
178
Cf. Introdução das Conferências I-VII. Paris: Les éditions du Cerf, 1955. SC 42. p. 72.
179
Cf. CASSIANO, João. Introdução às Conferências - I a VII. Juiz de Fora, MG: Edições
Subiaco, 2011. vol. 1, p. 11.
108
Uma vez que vossa fé e vosso fervor não se puderam contentar com os
doze volumes sobre as Instituições Cenobíticas, escritas como me foi
possível, em memória do bem-aventurado bispo Castor, e também
com as dez Conferências dos Pais do deserto de Cétia, por mim
organizadas, por solicitação dos bispos Heládio e Leôncio, eis agora
sete Conferências escritas no mesmo estilo e que considero de meu
dever vos dedicar. Eu as ouvi de três Pais que residem em outro
deserto, os primeiros que consegui visitar. Assim podereis conhecer,
por meio destas, o prosseguimento de minha viagem. Além disso, elas
completarão o que meus escritos precedentes podem ter contido de
obscuro ou de incompleto sobre o tema da perfeição. Se não
conseguirem estancar a sede realmente santa que vos anima, outras
sete Conferências, que devo remeter aos santos das ilhas Stecades,
satisfarão, espero, vossos ardentes desejos 180.
180
Prefácio de Cassiano para o grupo de Conferências de XI a XVII, vol. 2, p. 104.
109
Cétia, obtidas mais tarde, aparecem em primeiro lugar no tomo. Cassiano preferiu
colocar as dez Conferências recebidas dos eremitas de Cétia no primeiro livro de sua
obra, talvez para seguir melhor o propósito de formação dos futuros monges. Como ele
dirá, “elas completarão” os seus escritos, ou seja, darão continuidade aos temas já
tratados em suas entrevistas precedentes, isto é, já enviadas.
181
Conf. XVI, 1. vol. 3, p. 13.
182
Prefácio de Cassiano para o grupo de Conferências de XI a XVII, vol. 2, p. 104.
183
Uma colônia monástica para os mais avançados na vida ascética surgiu nessa região por volta
de 338. Ali habitavam cerca de 1500 eremitas. Foi denominada "deserto das Celas”, do grego
kellas (kellíoné, o diminutivo), em latim "cellas" e em português celas. Há quem prefira a
transcrição "Célias", mais próxima do grego.
184
Conf. VI, 1. vol. 1, p. 183.
110
meios para conseguir a ciência espiritual. Elas continuam o assunto das Conferências
anteriores, segundo o que se pode ler em seu prefácio quando Cassiano diz que
esclarecerá o que ficou obscuro nas conversações anteriores referente à questão da
perfeição 185.
Após ter dado à luz, ajudado pela graça de Cristo, dez Conferências
dos Pais, que compus como possível me foi, para satisfazer às
exigências dos bem-aventurados bispos Heládio e Leôncio, dediquei
outras sete ao bem-aventurado bispo Honorato, cuja honra é dita de
sobejo por seu nome e seu mérito, e a Eucherio, venerável servidor de
Cristo. Creio que devo agora vos dedicar um igual número, a vós,
santos irmãos Joviniano, Minérvio, Leôncio e Teodoro, já que o
último de vós instituiu nas províncias gaulesas, com todo o rigor das
virtudes antigas, aquela santa e egrégia disciplina cenobítica. E que os
demais, também vós, instigaram os monges, com suas lições, não só a
buscar antes de tudo a profissão de cenobita, mas também a desejar
com ardor as sublimidades da solidão 186.
185
Prefácio de Cassiano para as Conferências de XI a XVII, vol. 2, p. 104.
186
Prefácio de Cassiano para as Conferências de XVIII a XXIV. vol. 3, p. 83.
111
Esses monges, apesar de levarem vida cenobítica, têm em grande estima a
reclusão silenciosa dos ermos que nas obras de Cassiano são retomadas, preconizadas
por vários Padres entrevistados.
Das sete últimas Conferências temos cinco pronunciadas por cenobitas, ou
seja, recolhidas por Cassiano de relatos de religiosos vivendo em comunidade que,
187
todavia, acentuam um grande isolamento em celas. São eles: abade João , abade
188 189
Pinúfio , abade Teonas . Os dois outros colóquios foram recebidos de anacoretas,
ou seja, eremitas, solitários retirados em lugares ermos tais como: Piamun, do deserto
de Diolcos, situado nas imediações da desembocadura do Nilo; e o abade Abraão, que
supostamente habitava esse mesmo deserto.
187
A ele se atribuiu a Conferência XIX. Era cenobita de Diolcos, no Egito.
188
É atribuída a ele a Conferência XX. Esse monge era de um mosteiro situado nas imediações
de Panefisi, no Egito.
189
Cassiano atribuiu a ele as Conferências XXI, XXII, XXIII. Vivia, supostamente, no cenóbio
de Diolcos.
190
Este é o termo que Cassiano emprega como central na sua doutrina espiritual. Cf. Prefácio
das Conferências de XI a XVII.
112
seja, da caridade perfeita, para que chegue a essa bem-aventurada vida. Eles pretendem
orientar as ações e o desejo do cristão para esse fim. É por isso que Cassiano anima seus
leitores a suportarem a solidão, os jejuns, as vigílias, os trabalhos, as privações, longos
estudos e o exercício de todas as virtudes, embora considere tudo isso como secundário
e somente como meio que poderão ajudar na prática da caridade, virtude essencial e
primeira a ser buscada e vivida no dia a dia com os demais irmãos e com Deus.
Cassiano chega a dizer que não há problema se para a prática da caridade se venha a
negligenciar um exercício secundário.
O maior empenho ascético deve ser feito em vista daquilo que propicia a
vida no amor a Deus e aos irmãos, dirá João Cassiano. É nisso que o cristão deve se
aplicar com toda sua energia. Nenhuma ascese é valiosa por si mesma. No caso do
cristão, todo exercício espiritual tem que levar à pureza de coração, entendida como
caridade perfeita, fim último de seus esforços e no qual está todo benefício para o
homem. Ele dirá que a ascese é um instrumental necessário à profissão de cristão, mas é
um instrumento secundário, não é o bem último. Contudo, dirá ele, é preciso exercer
essa prática. O cristão asceta precisa ter o domínio desse instrumento para chegar a seu
escopo assim como o pintor tem domínio do pincel e das cores para a apresentação de
uma bela paisagem. Conhecer a ascese como teoria, pouco ou nada se aproveita. O
manuseio das práticas ascéticas é o que leva à perfeição da arte de amar.
191
Conf. I, 7. vol. 1, p. 26-27.
192
Conf. I, 7. vol. 1, p. 27-28.
113
Em sua obra, João Cassiano mostra que a espiritualidade cristã deve voltar-
se para um só fim: a pureza de coração, a perfeição da caridade. Para ele, a vida eterna
somente é possível se neste mundo usarmos os instrumentos que temos para a prática do
amor. Se a vida eterna é a visão de Deus, essa visão será possível pelo conhecimento de
Deus que vem pelo viés da caridade, entendida não somente como obras de
misericórdia, mas como contemplação de Deus, a qual favorece e antecipa o Reino, o
fim almejado. A contemplação é uma forma de amor que vê Deus. Das virtudes
preconizadas por ele, a caridade toma o primeiro lugar e é o caminho seguro para a
contemplação divina. A contemplação, que nasce da caridade ou pureza de coração, é
ato que durará pela eternidade, pois as obras de misericórdia cessarão quando da posse
da vida eterna, onde não haverá mais necessidade delas.
Cassiano dá valor maior à vida solitária, embora não despreze e nem
subestime a vida cenobítica. Ele a favorece porque pensa ser meio mais seguro para se
dar à práxis da contemplação, entendida por ele como meio de união com Deus e via
certa para a vivência da perfeição da caridade. João Cassiano afirma que a anacorese
favorece os colóquios com Deus, um trato mais íntimo e familiar que leva à união com
ele 193.
João Cassiano no Egito: Chegada em Tenessos (380). Em seguida vai para Panefisi,
(volta para Belém?) Diolcos, retorna a Panefisi, Cétia, Celas, Cétia. Foge para
Constantinopla (400-404), Roma (404-414), Marseille (415-435).
193
Conf. II, 2. vol. I, p. 59.
114
3.5 Conclusão
João Cassiano revelou que é na práxis que dizemos o amor que se tem por
alguém ou por algo. Lendo as Conferências, vamos percebendo o quanto Cassiano ama
a Deus e o quanto tem zelo pela salvação dos homens. Apesar de suas Collationes
estarem voltadas para a vida dos eremitas e cenobitas não deixam de ser um relato de
amor a Deus e aos irmãos. Por meio delas ele anima qualquer cristão a empreender a
senda da santidade.
116
CAPÍTULO IV
194
At 4, 34-35.
195
Conf. XVIII, 5. vol. 3, p. 89.
196
Conf. I, 1. vol. 1, p. 19.
197
Conf. III, 1. vol. 1, p. 91.
118
A fama de Pafnúcio era muito grande nos desertos do Egito. Muitos ascetas
tinham-no como modelo de santidade e citavam-no em seus colóquios. Um exemplo
disso é a lembrança que Piamun tinha dele e a citação de seu nome em sua entrevista
exalta suas virtudes, fazendo remontar a sua adolescência. Piamun dizia que os mais
consumados Pais eram unânimes em reconhecer a seriedade, a constância, as muitas
virtudes que em Pafnúcio eram como inatas, embora fruto de uma assídua entrega às
práticas mais seletas de penitência.
198
Acostumados a tal vida, ali continuavam como religiosos, mas vivendo, de forma relaxada, a
disciplina monástica.
199
Conf. XXI, 9 e 11. vol. 3, p. 166-168.
119
proposta como segunda decolagem e seu objetivo é atingir maior perfeição na entrega
de si.
Como já vimos, a ascese não é um fim em si. É meio que prepara a alma
para, sem mesquinharia, nada reservar para si e tudo entregar ao Cristo como num
sacrifício de holocausto onde não se poupa nada da vítima, mas tudo é oferecido,
consumido numa doação total. Não se pode esquecer que o asceta cristão é homem que,
após longa reflexão, concluiu que sua vida penitente perpetua a entrega súbita do mártir;
portanto sua vida abraçada com seriedade no cotidiano é vida de mártir.
200
Conf. IX e X. vol. 2, p. 43 a 102.
201
Conf. IX, 1. vol. 2, p. 43.
120
Dividida em dois blocos, a exposição sobre a oração é um modo pedagógico
de ensinar a necessidade da oração contínua e os meios para adquiri-la. Aqueles que
pretendem fazer avanços na vida de oração poderão encontrar nessas conversações
muita utilidade. Acreditamos que seriam de grande proveito para os grupos de oração
das paróquias. É possível aproveitá-las para a formação pastoral de vários grupos, uma
vez que pouco ou nada se recolhe do que se planta se não houver a ação da graça divina
como chuva a irrigar toda ação do semeador.
Em sua obra, percebemos que João Cassiano não estava simplesmente
preocupado em narrar o estilo de vida de alguns ascetas coptas cenobitas ou eremitas,
tão pouco desejoso de contar uma memória de viagens, mas em fornecer meios para o
crescimento espiritual dos que almejam vida teologal. Suas entrevistas pretendem
fundamentar sua doutrina, que ele enriquece com a contribuição de outros mestres e
202
ascetas doutos, sobretudo da escola de Alexandria , como Evágrio Pôntico e
Orígenes, cuja teologia e doutrina monástica aparecem nos ensinamentos dos Pais do
deserto por ele mencionados. Ainda podemos perceber que Cassiano se serviu dos
escritos de São João Crisóstomo, que lhe ordenara diácono em 404 em Constantinopla e
com quem ele e Germano criaram profundo laço; serviu-se ainda dos escritos de São
Basílio, São Jerônimo e outros autores conhecidos.
202
O nome de "escola de Alexandria" remete de uma parte a certa prática da exegese e, de outra,
a questões propriamente teológicas, sucessivamente ligadas à origem mesma do cristianismo
alexandrino, à crise origenista, à luta contra o arianismo, e depois à crise nestoriana. As duas
grandes escolas [Alexandria e Antioquia] de intrepetração bíblica no início da igreja cristã
incorporaram o neoplatonismo e convicções filosóficas de Platão dentre os ensinamentos do
cristianismo e interpretaram grande parte da Bíblia alegoricamente. Seus expoentes máximos
foram os teólogos Clemente, Orígenes e Dídimo, o cego. Teve pouca influência sobre as
manisfestações do Egito cristão, em particular sobre o monaquismo de Antão, Pacômio e de
seus seguidores (à exceção do grupo de Cétia e Cellas, cujas principais figuras foram Macário e
Evágrio). Cf. ALEXANDRIA. In: LACOSTE, Jean Yves. Dicionário crítico de teologia. São
Paulo: Loyola, 2004. p. 85.
121
Cassiano além de ser autor da antiguidade, é reconhecido pela ortodoxia de sua
doutrina, tem aprovação eclesiástica e é santo da Igreja Católica com sua festa
celebrada, no Ocidente, em 23 de julho e no Oriente, em 28-29 de fevereiro.
Para João Cassiano todo aquele que aspira a uma vida em Deus, à visão de Deus,
a uma vida perfeita, "ao estádio mais elevado da teoria" deve se dispor com ardor à
203
ciência prática , que entendemos como ascese, ou seja, um verdadeiro combate que
terá que travar para adquirir as virtudes e lutar contra os vícios 204.
A ascese de João Cassiano visa à perfeição da caridade e ele dirá que, para
atingir esse fim, o cristão tem que considerar dois elementos importantes dos quais deve
observar com docilidade e alegria as práticas. E mais, tem que assumir tais exercícios
como algo prazeroso. Seriam eles: o conhecimento da natureza dos vícios com os meios
para eliminá-los e o discernimento da ordem das virtudes. Chegar ao conhecimento das
virtudes, o qual Cassiano entende como segundo grau da ciência prática e atingir a
contemplação dos mistérios celestes que ele entende como o estádio mais elevado da
teoria, se torna impossível se não houver conhecimento da natureza dos vícios e o
empenho na sua erradicação.
Segundo Cassiano, todo mundo é habitado por vícios. Eles estão presentes
no coração de cada pessoa e estabelecem guerra a todo gênero humano, ou seja, todo
homem é sempre atacado por eles. Não obstante, todo mundo ignora seus próprios
vícios. Para lutar contra os vícios, o combatente diagnosticando as doenças que eles
causam, atacará aquele vício que mais vezes o assalta, o mais insistente e frequente. A
astúcia para vencê-los é não combatê-los todos de uma só vez. Entretanto, como foi
dito, ao atacar os vícios, deve-se começar pelo que causa mais dano à pessoa e os outros
203
Conf. XIV, 3. vol. 2, p. 184-185.
204
Conf. XIV, 1. vol. 2, p. 184.
205
Ibidem.
122
se enfraquecerão porque todos os vícios estão ligados uns aos outros como por um
liame de parentesco. A arma que Cassiano indica como remédio excelente contra esses
males é o jejum, a oração, as meditações espirituais, as vigílias e lágrimas derramadas
com o objetivo de pedir a Deus que extinga tais ataques.
Neste afã, triunfar sobre os vícios não é possível com o simples esforço. Há
de se contar com a graça divina. É sempre Deus quem dá a vitória. Aqui Cassiano é
partidário da teologia de santo Agostinho que ensina que em tudo e para tudo se deve
contar com a graça. O homem deve se abrir à ação de Deus que, agindo, livra-o de si
mesmo, de seus caprichos, da dureza de seu coração e de sua mente incapaz de bem
julgar.
[...] não convém que nos apoiemos em nossas forças, mas unicamente
no auxílio do Senhor, sem o qual não poderemos vencer tão poderosos
inimigos. É preciso, pois, cada dia, atribuir-lhe o mérito de nossa
vitória 208.
206
Conf. V, 14. vol. 1, p. 166.
207
Conf. III, 20. vol. 1, p. 119-120.
208
Conf. V, 15. vol. 1, p. 169.
123
terapeutas espirituais. Já bem cedo, instruem os iniciantes no combate aos vícios, antes
que apareçam seus efeitos nefastos. A tática é a do combate que travavam os
gladiadores, nas arenas, contra as feras. Eles ensinam que os vícios podem ser
eliminados por ordem de grandeza e um por um e que a cada vício vencido deve-se
começar uma nova batalha até que todos os vícios sejam retirados dos vários recantos
do coração. Desta forma, o cristão, depois de vasculhar cuidadosamente todo seu
interior, usando das mais variadas armas espirituais contra as perniciosas paixões,
obterá a vitória.
Como para a saúde corporal, a saúde espiritual pede muita atenção aos
sinais visíveis para que o diagnóstico seja certo. Assim, um bom mestre espiritual é
excelente ajuda para um correto discernimento. Uma vez detectado o mal, fica mais
fácil dar o remédio necessário. Entretanto, diz Cassiano, é preciso saber que os vícios
são vencidos de forma diferente, ou seja, obedecendo a uma ordem que varia de pessoa
para pessoa porque o assalto dos vícios também se dá de forma e intensidade diferentes
para cada pessoa. Para cada pessoa, o modo e os meios de combate são únicos. Essa
tática de luta é personalizada e o lutador não pode ficar sem o seu mestre espiritual.
209
Conf. V, 14. vol. 1, p. 166-167.
210
Conf. V, 27. vol. 1, p. 181.
124
esclarece as dúvidas de Germano e Cassiano sobre as variadas formas em que se
escondem as paixões no coração humano, da afinidade que existe entre um vício e outro
e o poder de sua devastação na alma.
[...] não é nos outros, mas em nós mesmos que reside a raiz e a causa
de nossos males.[...] Ele quer que nós vivamos em paz sabendo que a
perfeição do coração se conquista mais pela paciência que pela
distância dos homens 213.
211
Conf. V, 27. vol. 1, p. 181.
212
Conf. V, 4. vol. 1, p. 152.
213
Institutions Cénobitiques 9, 7. Paris: Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109. p. 375.
125
4.2 Cassiano e a ascese como ciência prática
Para Cassiano os vícios existem tanto no corpo como na alma, são carnais
ou espirituais segundo o estímulo que poderá vir ou de um fator externo ou de fator
interno. Os vícios carnais dependem dos instintos da carne, que encontra seu prazer e
satisfação na prática dos vícios que, por sua vez, são alimentados pela satisfação que a
carne encontra neles. É um círculo vicioso. São tão insistentes que poderão vencer,
embora contra a vontade, as almas mais tranquilas e empenhadas em combatê-los.
Alguns vícios existem no ser humano por conta do próprio instinto carnal,
ou seja, pelo simples fato de sermos de natureza humana. Para que se concretizem,
precisam de uma ação corporal. Um exemplo claro disso são a luxúria e a gula, que
podem aparecer sem o estímulo da alma, mas que, por precisarem de matéria extrínseca
e do corpo para serem alimentadas, para tomarem forma concreta, ou seja, se
consumarem, são consideradas carnais. Por isso a cura se dá quando se utiliza como
remédio a mortificação corporal, o jejum, as vigílias e fuga das ocasiões propícias.
Outros vícios que se passam na alma, como a vanglória e a soberba, não
necessitam da colaboração do corpo para serem vencidos, basta somente o propósito do
214
Conf. IV,17. vol. 1, p. 141.
126
espírito, dos pensamentos. Não há necessidade de afligir o corpo ou das antigas
disciplinas porque a alma sozinha dá conta de eliminá-los.
Esses vícios são de dois tipos. Alguns têm relação com a natureza,
como a gula; outros não, como a avareza. [...] Alguns recebem seu
estímulo de uma causa externa, como a avareza e a ira; enquanto a
preguiça e a tristeza provêm de um fator interno 215.
Como já nos disse Cassiano, cada um desses vícios é raiz que faz brotar
outros vícios como, por exemplo: A pessoa gulosa vai comendo, comendo e buscando
cada vez mais os mais apetitosos pratos e iguarias refinadas, vai de gole em gole até
chegar à embriaguez; a luxúria leva a pessoa a piadas de mau gosto e obscenas,
palavrões, zombarias, a mentiras, fingimentos, traições; a soberba gera o desprezo, a
desobediência, a murmuração e a maledicência.
215
Conf. V, 2-3. vol. 1, p. 149-150.
216
Conf. V, 16. vol. 1, p. 171-172.
127
Cassiano não se esqueceu de mencionar as virtudes e de como discernir as
que são mais importantes e urgentes a se praticar, visto que também geram outras
virtudes, assim como um vício engendra o outro.
A pureza de coração que vem por uma prática de vida espiritual assídua e
séria engendra a vida virtuosa que faz com que o homem se assemelhe a Deus o qual é a
virtude. É levando vida virtuosa, ou seja, é pela prática que o homem participa da vida
divina. Deus é ontologicamente virtude e, por isso, se pode confirmar que o homem,
vivendo de forma virtuosa, vive em Deus e de Deus. Deus oferece ao homem, por pura
graça, a possibilidade de viver de sua vida e unido a si pela prática da virtude a qual o
assemelha a Ele.
Esta proposta foi feita ao gênero humano por ocasião de sua criação e
também após a queda, onde antes de dar a sentença de morte, por primeiro, Deus
oferece o caminho de salvação pelo anúncio da vinda de seu Filho ao mundo. Pela graça
o homem é chamado a participar dos bens celestes, que são as virtudes, ou seja,
realidades que transformam a alma, que existem em Deus e que lhe são próprias,
sobretudo a virtude da caridade, da qual o apóstolo João tratou como ontológica a Deus:
"Deus é amor".
Por conta dos esforços, do labor para a aquisição das virtudes e de sua
prática assídua, elas se tornam tão íntimas ao homem, inerente a ele, que se tem a
impressão que são próprias da natureza humana; porém não são. Na realidade, elas são
um dom de Deus ao homem, são manifestações da misericórdia divina que não cessa de
assistir a condição humana com sua graça, sobretudo quando a alma colabora com Deus
na durabilidade do tempo para a sua perfeição. Deus trabalha o homem do interior para
o exterior pela ação de seu Espírito. As virtudes são dadas ao homem pelo Criador e por
graça.
Pela prática das virtudes, o homem vai tomando o comportamento de Deus,
vai se assemelhando a ele em sua bondade e misericórdia. Elas restauram no homem a
imagem perdida do Cristo, pelo pecado. Do Cristo recebemos essas virtudes que ele
praticou em sua perfeição e como exemplo a imitar. As virtudes são em nós a expressão
do Reino vindouro. Poderemos mesmo julgar com clareza se, em nós, habita Cristo ou
não, se praticamos ou não as virtudes, sobretudo as teologais. O amor e a prática da
verdade, das virtudes, instauram em nós o Reino de Cristo; a prática da injustiça, dos
vícios, prepara em nossos corações o reino de satanás.
128
Tudo isso se passa no âmago de nossa alma, depois que o diabo dela
já foi expulso, e os vícios que ocasionou não mais reinam ali. Como
consequência estabelece-se em nós o Reino de Deus. [...] Por sua vez,
o Apóstolo assim descreve a natureza de tal reino: O Reino de Deus
não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no
Espírito Santo (Rm 14,17) 217.
217
Conf. I, 13. vol. 1, p. 35.
218
Conf. XI, 7. vol. 2, p. 110.
219
1Cor 1, 5-7.
129
da graça divina que se obtém pela oração.
220
Conf. XXIII, 11. vol. 3, p. 241-242.
221
Conf. XIV, 3. vol. 2, p. 185.
130
222
Assim, para Cassiano, adepto do sinergismo , a caridade é qualificada
como virtude infusa e também adquirida. Ela é a ciência prática por excelência e tem
que estar presente na práxis de todas as virtudes para que deem bons frutos e sejam
realmente boas. Apesar de ser dom de Deus, a caridade é dada ao homem como semente
e precisa ser desenvolvida por ele. Sabendo disso, o cristão que tomou a decisão de
levar vida teologal, em tudo e de vários modos possíveis, pode colaborar para que
cresça em si a caridade e ele possa vivê-la em grau heroico.
223
Soeur Marie-Ancilla comentou o termo perfeição que em São João
Cassiano é muito explorado. Aproveitando seu trabalho, vamos também mencionar esse
vocábulo que sabemos ser base e fundamento da obra de nosso autor. Depois trataremos
de outro termo e também virtude que nos parece muito importante, a saber: a discrição.
João Cassiano busca explicar nas Conferências seguintes o que parece ter
ficado obscuro em Conferências anteriores e um termo que ele quer esclarecer melhor é
o relacionado à “perfeição”, muito necessário para um discipulado florescente e
frutífero. Cassiano ensina o que viveu e como os Pais do deserto, sua vida é sua
doutrina pregada e ensinada. Seu esforço e empenho foram tanto na aquisição das
virtudes que se tornara mestre nessa arte e, a muitos que lhe pediram, pode ensinar os
rudimentos desse afã. João Cassiano escrevera para tal “As instituições cenobíticas”,
que são normas práticas, “aspecto exterior e visível da vida dos monges” para o homem
que quer avançar na senda da perfeição e “As Conferências”, como conteúdo espiritual
para o homem interior ou “modo invisível de viver do homem interior” como ele
mesmo mencionara no prefácio do primeiro livro das Conferências.
222
Conceito-chave da teologia ortodoxa da graça, em que designa a cooperação (o grego
sinergia é sinônimo do latim cooperatio) do homem com a obra da salvação operada nele por
Deus. A teologia católica nada tem a objetar contra o sinergismo dos orientais: ela é também
uma teologia da cooperação. Cf. SINERGIA. In: LACOSTE, Jean Yves. Dicionário crítico de
teologia. São Paulo: Loyola, 2004. p. 1670.
223
Soeur Marie-Ancilla nasceu em Perpignan, França, em 13 de agosto de 1945. Escreveu vários
livros e artigos sobre os Pais da Igreja, a tradição dominicana e também sobre o contexto
espiritual contemporâneo.
131
Sobre o verbete perfeição, vale dizer que Cassiano terá compreensões
224
diferentes, porém complementares, segundo cada “Abba” frequentado junto aos
monges do Egito. Podemos dizer que o termo não é empregado sozinho, mas com um
complemento, ou seja, Cassiano fala de perfeição da caridade que em sua obra é
sinônimo de pureza de coração. Compreende que a perfeição é possível pela práxis da
caridade e que a mesma atinge seu ápice quando é relação de encantamento, arroubo,
arrebatamento, ou seja, contemplação. A perfeição que vem pela ciência prática, ou
seja, a caridade, seria expressa pelas obras de misericórdia que apagam uma multidão de
pecados e garantem a vida futura. Nesta vida, são elas tidas como excelentes meios para
desenvolver e alimentar essa virtude, enquanto que a perfeição que se obtém pela
contemplação tem na oração e colóquios íntimos com Deus seu crescimento e alimento.
A perfeição que se obtém pela caridade enquanto obras de misericórdia estaria limitada
pelo tempo, espaço, circunstância. Na vida eterna elas não terão mais razão de ser
porque não haverá mais ninguém necessitado entre os eleitos. Na realidade esse é um
meio indireto de conhecer Deus e de amá-lo.
A perfeição que vem pela via da oração e do trato pessoal com Deus, além
de ser a melhor parte, como dissera Jesus a Marta 226, perdurará pela eternidade e é via
direta de conhecimento e amor. Dizendo isso, não queremos banir a primeira como
sendo desnecessária, mas simplesmente com o intuito de estabelecer uma ordem de
valores, fazer com que se perceba que, num corpo apesar de o ar ser o mais necessário,
ele não poderá viver também se não beber e comer.
224
Nome dado aos que dirigiam alguns cenóbios ou viviam isolados nos ermos.
225
Conf. I, 10. vol. 1, p. 32.
226
Lc 10, 38-42.
132
João Cassiano atenta para uma realidade trans-histórica, ou seja, que vai
além do histórico no tempo e no espaço, que transcende a estada nesta terra e as obras
de misericórdia. Ao entrarmos na vida dessa outra realidade é o que permanecerá.
Enfim, caridade e contemplação seriam como uma antecipação da vida eterna, uma
realidade do Reino de Deus.
227
Conf. I, 10. vol. 1, p. 32.
228
Institutions Cénobitiques 4,43. Paris: Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109. p.185.
133
temor de Deus e sua dileção, e nada existe de mal senão o pecado e a
separação de Deus 229.
[...] Depois, lançando-se sobre a terra viva e sólida de nosso coração,
como se costuma dizer, ou melhor, sobre aquela rocha de que fala o
Evangelho (cf. Lc 6,48), os inabaláveis alicerces da simplicidade e da
humildade, essa torre de nossas virtudes se poderá erigir, de maneira
indestrutível e segura e, em virtude de sua própria solidez, elevar-se
até o mais alto dos céus 230.
Sem essas virtudes, nosso coração não poderá ser a morada do Espírito
Santo, que, noite e dia, forja o homem novo e espiritual. É pela caridade que a alma
conhece a Deus, permanece Nele e adere a seus mandamentos. João evangelista ensinou
que quem ama conhece a Deus, é amado por Deus 231. Se há, pois, experiência de Deus,
ela se situa na ordem do amor: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, meu Pai o
232
amará, nós viremos a ele e nele estabeleceremos nossa morada” . Essa verdade
revelada é que levou Santo Agostinho a dizer no livro VIII, 12 do De Trinitate: “Tu vês
a Trindade quando vês a caridade”. E a santa judia, Teresa Benedita da Cruz, Edith
Stein, explica o pensamento agostiniano: “Deus é amor, esse é o ponto de partida de
Agostinho e já é em si a Trindade. De fato, fazem parte do amor um amante, um amado
e, por fim, o próprio amor. Quando o espírito se ama a si mesmo, o amante e o amado
são uma só e mesma coisa, e o amor que pertence também ao espírito e à vontade torna-
se um com o amante. Assim, o espírito criado que se ama a si mesmo torna-se uma
imagem de Deus. Contudo, para se amar a si mesmo, ele deve conhecer-se. O espírito, o
233
amor e o conhecimento são três e um” . Quanto mais intenso é o amor, mais penetra
em Deus, pois, ele é o princípio do conhecimento espiritual.
Como já dissemos, a perfeição é termo que aparece várias vezes nos escritos
de João Cassiano. Ele buscou, com afinco, o caminho da perfeição, da mais alta
perfeição. Já vimos a resposta sobre o que seria de fato a perfeição, porém vamos agora
229
Conf. VI, 4.vol. 1, p. 188.
230
Conf. IX, 2. vol. 2, p. 44.
231
1Jo 4, 8-16.
232
Jo 14, 23.
233
STEIN, Edith. Em busca de uma doutrina. In: BERNARD, Charles André. Teologia Mística.
São Paulo: Loyola, 2010. p. 134.
134
ver o que alguns abades, monges do Egito, dizem a propósito do termo, pois essa
mesma perfeição é praticada de forma diferente face ao contexto em que se encontra o
asceta. Vamos recorrer cada conferência, as vinte e quatro, pesquisando, escutando
esses Pais. Nossa finalidade é fazer emergir seus pensamentos presentes nesses textos
apresentados por Cassiano. Citaremos algumas entrevistas que consideramos mais
importantes ditas por alguns Pais do deserto visitados por Cassiano e Germano. Mas,
por primeiro veremos em que se apoiaram os Pais para falarem da perfeição e dos
perfeitos.
Possuir uma mão esquerda significa ter tentações, desejos da carne, paixões,
horror à vida virtuosa, privação de fervor espiritual e disso, dirá Cassiano que todo
homem tem experiência. Porém, o ambidestro faz de seu lado esquerdo um caminho
para crescer nas virtudes. Ele aproveita os ataques dos vícios para se aplicar mais e mais
nas virtudes de forma que seus vícios se tornem a mola propulsora de suas virtudes. O
homem ambidestro é aquele que, em toda adversidade, nas vicissitudes da existência,
agradece ao Senhor por visitá-lo com tamanho carinho, é aquele que aprendeu a
conviver com o mal.
234
Conf. VI, 10. vol. 1, p. 194.
135
dando graças a Deus em ambas as circunstâncias, pudermos colher
igual fruto de uma e outra situação. (Fl 4,11-13) 235.
Também é mister saber que santo não é aquele que nada tem, mas aquele
que não retém nada para si. A comunidade cristã, tida como exemplo e exaltada nos
236
Atos dos Apóstolos , não se caracterizava pelo fato de viver na miséria, sem nada
possuir, mas por ter tudo em comum e não haver necessitados entre eles. Era a caridade
que o Apóstolo havia preconizado como meio seguro de santidade e salvação dos
membros da comunidade cristã.
235
Conf. VI, 10. vol. 1, p. 198-199.
236
Cf. At 4, 32-34.
237
Conf. I, 6. vol. 1, p. 26.
136
O abade Pafnúcio coloca a renúncia do coração como a mais sublime e a
que o cristão deve perseguir e diz que de nada vale a renúncia unicamente exterior. Ele
adverte sobre o pouco valor de um ato meramente exterior sem a adesão da
profundidade do ser, porque esse modo de proceder não leva à perfeição.
O santo Apóstolo jamais teria falado desse modo se, em espírito, não
tivesse previsto que alguns, depois de terem distribuído aos pobres
todos os seus bens, seriam incapazes de galgar o árduo cume da
perfeição evangélica e da caridade, por terem conservado em seus
corações os antigos vícios, e os costumes desregrados, vítimas da
própria soberba e da falta de firmeza. Sem nenhum empenho na
purificação de tais vícios, tornaram-se para sempre impossibilitados
de atingir a caridade de Deus que jamais passará. Ora, não
conseguindo chegar ao segundo grau da renúncia, também não
poderão alcançar o terceiro que lhe é superior 238.
238
Conf. III, 7.vol. 1, p. 102.
239
Cf. Mt 19, 21.
240
Cf. 1Cor 13, 4-7.
241
Conf. III, 7. vol. 1, p. 103.
137
da perfeição, porque sujeitou ao império da razão o seu corpo e suas paixões repelindo,
sem dificuldade, o que é mau e buscando tudo o que é bom. O centurião é a imagem do
homem que dominou sobre os vícios e toda sorte de assalto dos pensamentos, os quais
agem como serpente a rodear nosso “Éden”, nosso jardim interior.
[...] E o que nos relata Mateus: Eu, que estou debaixo de ordens e
tenho soldados sob o meu comando, quando digo a um “Vai!”, ele vai,
e a outro “Vem”, ele vem; e quando digo a meu servo: “Faze isto”, ele
o faz (Mt 8,9).[...] Às más sugestões ordenemos: “Ide” e elas irão; e às
boas, diremos: “Vinde” e elas virão. Ao nosso servo, isto é, ao nosso
corpo, prescreveremos observar as leis da castidade e da abstinência, e
ele obedecerá sem nenhuma rebeldia, e não mais o veremos suscitar
em nós os aguilhões hostis da concupiscência, mas, sim, sujeitar-se a
servir a nosso espírito em todas as coisas 242.
O abade Sereno diz que há uma diferença a ser considerada entre perfeitos e
imperfeitos. Os primeiros vivem a virtude da caridade de forma intensa e como algo
inato em si que lhes dá segurança no crescimento e na perseverança da santidade. Além
disso, a caridade amadurece o comportamento humano fazendo-o senhor de suas
paixões, seus sentimento e sentidos. Já no homem imperfeito, em quem a caridade não
está arraigada, a fragilidade dessa virtude não permite escapar das insídias do homem
velho e de cair no pecado. O imperfeito é um homem em quem a caridade ainda não
formou suas raízes profundas, é imaturo e volúvel.
242
Conf. VII, 5. vol. 1, p. 218-219.
243
Conf. VIII, 25. vol. 2, p. 42.
138
leva o homem a trabalhar arduamente contra os vícios e a desenterrar da alma os
resquícios e as ruínas das paixões; pela prática assídua das virtudes, colocam-se os
alicerces da humildade e simplicidade para elevar a torre espiritual que terá como
cúpula a perfeição. Essa torre, por ter sido edificada sobre tais fundamentos, não será
jamais destruída ou sequer abalada nem pelo dilúvio das paixões nem pelas violentas
torrentes das perseguições 244.
244
Conf. IX, 2. vol. 2, p. 44.
245
Conf. X, 8. vol. 2, p. 87.
139
O segundo meio ensinado por Queremom que faz repudiar os vícios e leva à
prática da caridade perfeita é o desejo do reino dos céus, a esperança de um dia viver
nas alegrias de uma vida sem sofrimento nem dor, sem injustiça ou miséria. Pela
esperança o espírito se desapega do mundo presente, assegura-se das recompensas
eternas e para tal se submete às mais austeras disciplinas e privações.
246
Conf. XI, 7. vol. 2, p. 110-111.
140
que levam vida cenobítica e guardar o olhar fixo no Senhor seria o que pertence à
prática dos eremitas, porém, insiste ele, são poucos os que são verdadeiramente
perfeitos. Ele afirma que a perfeição integral, consumada é um dom de Deus dado a
poucos uma vez que perfeito na prática da caridade somente é aquele que, com
magnanimidade de alma, não se desola e nem se abate face aos sofrimentos e ao
isolamento da vida solitária e ainda com grande alegria suporta a debilidade, as
fraquezas e quedas de seus irmãos de caminhada. Ter esse comportamento e saber ser
ambidestro nas duas profissões, ou seja, tanto nos tormentos da solidão quanto na
máxima penitência que é a vida em comum é algo muito raro ou impossível.
Cassiano havia dito que a prática da caridade é uma ascese que leva à
perfeição ou à semelhança com Deus, mas que são poucos os que atingem essa virtude
em grau elevado. Porém, citou quatro grandes Pais do deserto: Moisés, Pafnúcio e os
248
dois Macários que souberam muito bem conciliar o amor a Deus e aos irmãos
praticando a caridade em maior perfeição. Esses Pais amaram e praticaram o
recolhimento no segredo dos ermos mais que qualquer outro solitário. Animados por
esse ideal não buscavam a companhia de nenhuma criatura, mas iam pouco a pouco se
embrenhando nos mais profundos e inacessíveis desertos. Quando, todavia, os irmãos
acorriam a eles, eram solícitos em recebê-los e ajudá-los em suas necessidades com
tanto empenho e paciente caridade que pareciam ter praticado a arte da acolhida toda
vida e desde a mais tenra idade.
247
Conf. XIX, 9. vol. 3, p. 64.
248
Macário, o Egípcio, era discípulo de santo Antão e Macário de Alexandria foi amigo de
Evágrio. Esses dois foram os mais célebres com este nome e morreram por volta de 390.
141
combinava mais maravilhosamente com a pureza eremítica ou com a
vida em comum 249.
Ora, o monge está sujeito às mesmas faltas que condena nos outros
com desumana e rigorosa severidade. Com efeito, o rei inflexível cairá
na desgraça (Pr 13,17. Ora, Quem se faz de alguma maneira surdo aos
gritos do pobre não será ouvido quando ele mesmo clamar (Pr 21,13)
254
.
[...] Não há outro caminho para ascendermos à verdadeira perfeição.
Porque Deus nos amou, em primeiro lugar, tendo como único objetivo
a nossa salvação. E assim que urge amá-lo, também, unicamente por
reciprocidade ao seu amor. Esforcemo-nos, portanto, com intenso
fervor, para passarmos do temor à esperança, e da esperança à
caridade de Deus e ao amor das virtudes; emigremos por amor ao
bem, e permaneçamos fixos nesse amor, tanto quanto for possível à
natureza humana 255.
249
Conf. XIX, 9. vol. 3, p. 64.
250
Mt 5, 44-45.
251
Gl 6, 2.
252
Lc 23, 34.
253
1Cor 13, 4-7.
254
Conf. XI, 10. vol. 2, p. 116.
255
Conf. XI, 7. vol. 2, p. 111-112.
142
4.3.3 Segundo Cassiano, a contemplação pede ascese
256
Mt 5, 8.
257
Conf. I, 15. vol. 1, p. 41-42.
143
comportamento amoroso, concorre a disposição de cada pessoa e sua abertura ao
Espírito Santo, além da ação da graça que é dada a cada pessoa de modo e intensidade
diferentes.
A contemplação, ou melhor, a oração contemplativa tem como fundamento
a Palavra de Deus, elemento essencial para aprofundar o Mistério da fé em vista de uma
transformação de comportamento e de mentalidade. A meditação atenta e contínua da
Sagrada Escritura favorece o nascimento de uma consciência segundo o Mistério da fé.
Observando os Pais do deserto e o modo de orar por eles ensinado, entendemos a
meditação não como análise intelectual e científica dos textos escriturísticos, agudez
intelectual como o que se pratica em uma academia, mas como encontro com uma
pessoa que está na origem inspiradora da Palavra divina, a qual é acolhida na intimidade
do orante por conta de sua dignidade e santidade. Não é uma atividade puramente
intelectual, cerebral, segundo a expressão de Santo Inácio de Loyola em seus exercícios
espirituais, n. 2: “Não é o saber que satisfaz e sacia a alma, mas o sentir e o saborear as
coisas interiormente”. A lectio divina é uma atividade que leva o orante a ser aquilo que
ele recebe dela, ou seja, a Palavra encontrada e assimilada transforma o orante e uma
vez caída na terra de seu coração não volta sem ter dado seu devido fruto.
Os Pais ensinam que não é sem esforço que se obtêm as virtudes. Por
conseguinte, a obtenção da oração contemplativa virá também pelo meio da colaboração
do homem, uma ascese pessoal que tem que ser assumida e que o levará a atingir esse
degrau da oração. A fórmula clássica de compreender os estádios da vida de oração, ou
seja, Lectio Divina, Meditatio, Oratio e Contemplatio deixa entrever a existência de
degraus a serem galgados na vida de oração. Para isso, concorre a disposição de assumir
nesse caso também uma ascese, uma estrada a fazer que vai exigindo sempre mais
daquele que se colocou no caminho. Se a oração sustenta a ascese, essa é necessária
para que aquela se desenvolva.
144
258
um lugar deserto. Lá, Ele orava” . A oração é entendida aqui como saída do mundo
velho, saída da terra da escravidão adâmica para entrar na terra nova do Cristo, onde
corre leite e mel, o mundo novo de Deus; sair de um mundo para entrar em outro, ou
seja, saída do mundo de pecado para entrar naquele de Deus, saída do profano para
entrar no sagrado. Essa união com Deus se realiza precisamente por uma vida de oração.
Sobre a oração e o seu valor na vida do cristão, o abade Isaac consagra dois
encontros 260 e ensina quatro modalidades de preces fundamentadas no ensinamento de
São Paulo: “Antes de tudo, peço que se façam súplicas, orações, intercessões, ação de
261
graças” . Porém, uma pergunta surge: o orante deve assumir essas quatro espécies
simultaneamente, de modo que estejam sempre e em qualquer condição presentes em
262
sua oração ou ele deve apresentá-las separadamente, cada uma ao seu tempo ? A
resposta dada esclarece que essas modalidades de preces são tidas como fontes fecundas
de ardorosas e fervorosas orações que todo cristão pode fazer sem se preocupar com a
ocasião ou o dia, mas segundo o estado de sua alma.
258
Mc 1, 35.
259
1Ts 5, 17.
260
Conf. IX e X. vol. 2, p. 43 a 104 e Conf. XXIII, 5 do abade Teonas.vol. 3, p. 231.
261
1Tm 2, 1.
262
Conf. IX, 9. vol. 2, p. 53.
263
Conf. IX, 9. vol. 2, p. 56.
145
súplicas convêm mais a principiantes, sem, contudo, excluí-las da vida dos perfeitos 264.
E, para melhor esclarecimento sobre as denominações usadas por Paulo, o abade Isaac
comenta cada tipo de prece: súplicas, orações votivas, intercessões e ação de graças
informando como convém entendê-las 265.
Por fim, Cassiano diz que essas modalidades de orações são recomendadas
de forma bastante particular, porque o próprio Senhor Jesus as praticou, assim como
seus discípulos e que elas podem ser feitas juntas, reunidas em uma só oração ou ditas
separadamente:
264
Conf. IX, 9. vol. 2, p. 56.
265
Conf. IX, 11-14. vol. 2, p. 54-56.
266
Conf. IX, 17. vol. 2, p. 58-59.
267
Pr 16, 25.
146
mas que, por fim, desembocam na morte. A experiência dos Pais do deserto diz que o
demônio engana quando se reveste com o manto da santidade, pois ele odeia o vigor da
discrição que procede das palavras dos anciãos 268.
A discrição é virtude que dá a devida medida à vida de penitência, levando o
cristão a perceber que toda mortificação não é fim em si, mas meio de disciplina que
incomoda sem destruir. Assim o abade João, homem experimentado na virtude da
discrição, ensinou pela vida que levara que toda imprudente penitência pode ser
conselho do diabo que ataca o homem no campo da saúde do corpo para enfraquecê-lo
no espírito. Alquebrado pelos jejuns e abstinências, vigílias intermináveis e austeras
disciplinas, o cristão perde o ânimo e a energia vital de que necessita para, enquanto
estiver nesta realidade terrena, batalhar contra o adversário que o rodeia noite e dia,
segundo diz São Pedro 269.
268
Conf. I, 20. vol. 1, p. 51.
269
1Pd 5,8-9.
270
Conf. I, 21. vol. 1, p. 52.
147
A discrição ensina a perceber a autenticidade das doutrinas e máximas
filosóficas; a ilegalidade dos pensamentos que pretendem ser piedosos, mas que não
passam de superficiais ideologias, ouro impuro. Leva a perceber quando o ouro puro das
Sagradas Escrituras tem a impureza de uma falsa interpretação. Ela revela os
pensamentos corroídos pela ferrugem da vaidade pessoal que espalham a heresia e os
vícios com pretensão de novos ares e que, pelo brilho exterior, são veiculados como
ouro puro, mas que, na verdade, não passam de cobre vil que empobrece e desnuda os
que por eles foram seduzidos. Ela ensina a fazer tudo sem buscar a glória humana e a
vasculharmos com a luz do Evangelho o âmago da alma para não deixar que nela
fiquem resquícios dos pensamentos funestos que a assaltaram.
Pelo que podemos perceber, essa virtude nada tem de terreno e a existência
dela na vida, não somente do monge, mas do homem cristão é de suma importância,
mesmo se este já esteja acostumado a percorrer caminhos não tortuosos. Mas como
sabemos que a estada neste mundo é um caminhar em noites escuras, com momentos de
densas trevas, ter como instrumento de batalha o discernimento dos espíritos evita
cairmos em precipícios e armadilhas mortais.
O abade Antão, depois de ouvir vários pareceres sobre um caminho mais
seguro para chegar à perfeição, entendida como vida com Deus, assegura que a falta da
271
Conf. II, 1. vol. 1, p. 58.
148
discrição faz com que a busca não obtenha o sucesso esperado. Muitos tentaram chegar
a Deus por caminhos diversos, mas não conseguiram o que pretendiam de forma
perfeita e por fim caíram em grandes erros. Seus intentos terminaram por conduzi-los ao
engano, à queda gravíssima, pois, ludibriados, tiveram um fim catastrófico, além de
272
causarem grande dor e sofrimento aos que os rodearam . A falta da discrição não
permite que a pessoa persevere até o fim, entre na estrada correta para não cair nos
excessos. O excesso de fervor, que não considera a justa medida e os limites do ser ou o
relaxamento, que engana com o falso pretexto de que já se tem o domínio de seu corpo
são os dois extremos que devem ser evitados.
272
Conf. II, 5. vol. 1, p. 64.
273
Mt 6, 22-23.
274
Ef 4, 26.
275
Pr 11, 14.
276
Pr 25, 28.
277
Hb 5, 14.
278
Pr 24, 3-4.
149
A discrição ensina o homem a não se conduzir por si mesmo, por seus
próprios julgamentos. Ela liberta o cristão da autossuficiência e o abre para acolher o
conselho de um irmão mais experimentado e os ensinamentos dos mais antigos 279. Ela
ilumina o olhar interior para ver o que é de Deus e o que vem do espírito adversário.
Afina o sentido humano para avaliar como peritos o autor, a autenticidade e origem das
vozes que nos falam.
Essa virtude avalia os pensamentos que nos assaltam o espírito e nos revela
se sua origem é Deus, o demônio ou o nosso próprio eu. Por ela sabemos que os
pensamentos divinos, vindo até nós por ação do Espírito Santo, são os que nos elevam a
maior intimidade com Deus e a acolhermos, com vontade forte, os atos de vida os mais
salutares. Os pensamentos que têm origem no demônio encaminham o homem para os
vícios com o objetivo de macular a imagem divina nele existente e precipitá-lo
definitivamente em suas ciladas e armadilhas de morte. Segundo São Paulo, o demônio,
em suas astúcias, toma forma de anjo de luz para apresentar o mal disfarçado de bem 280
e enganar o homem com propostas estéreis. Sua perspicácia faz com que se deturpem as
Sagradas Escrituras com palavras que sob aparência de ouro, porém falsificado, têm
sentido nocivo e promotor de morte, haja vista o que dissera para ludibriar nosso
Salvador: “Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para
que não tropeces em nenhuma pedra” 281.
279
Instituitions Cénobitiques 4,37. Paris : Les Éditions du Cerf, 1965. SC 109. p. 179.
280
2Cor 11, 14.
281
Mt 4, 6; Sl 90, 11-12.
282
Conf. I, 20. vol. 1, p. 49-50.
150
O terceiro princípio que rege nossos pensamentos é o próprio eu conduzido
pelas lembranças e memórias do que se faz, fez e ouviu. O próprio eu, ou seja, eu
mesmo desejo e posso desejar elevar meus pensamentos para que sejam mais espirituais
ou mais carnais. A lembrança das coisas divinas ou mundanas em mim vem do que
ouvi, li e meditei. Por isso, do empenho que se deve ter pelas obras que afinam a alma
tais como o jejum, as vigílias, meditações e orações.
A discrição faz apelar para o valor patrístico dos ensinamentos que são
dados verificando se neles há a autenticidade do que disseram os Antigos Pais católicos,
legítimos moedeiros aprovados pela Igreja, únicos ensinamentos autorizados e seguro
caminho para o magistério.
Dizem os Pais que as serpentes venenosas não deixam sinal que permita
reconhecê-las e, por isso, o benzedor não tem como agir, ou seja, enquanto se esconde o
pecado de estimação, o veneno age na alma e o pai espiritual não encontra a palavra
correta da Sagrada Escritura que poderá ser útil, isto é, os Pais apelavam ao método
antirrético. Com a ajuda da madura avaliação dos mais velhos, ou seja, dos mestres
espirituais o diagnóstico é feito, o mal é reconhecido, o remédio é prescrito e a cura é
certa.
151
como foi libertado por sua confissão ao abade Theon de uma dor que trazia por
esconder um pãozinho para comer fora de hora. Sua confissão confiante o libertou do
cativeiro em que vivia subjugado por conta de seu silêncio.
Os Pais são unânimes em informar que o meio para se livrar do mal, dos
vícios, das insídias do inimigo é a humildade, entendida como submissão a um diretor
espiritual experimentado, um ancião, como dizem. Porém, os velhos diretores de almas
do deserto alertam para o seguinte: não é pelo simples fato de ser ancião ou por ter
cabeça branca que tal pessoa já esteja apta para conduzir almas. Muitos jovens se
deixam conduzir pelo modelo de vida e inovadoras doutrinas de certos velhotes que de
experiência profunda e santidade nada têm. O malvado inimigo usa as cãs desses seus
servos como prova de autoridade para aquilo que dizem, mas seu objetivo é iludir um
grande número de pessoas e conduzi-las à aridez, frieza espiritual e "mortal desespero”
283
. Esses anciãos podem ser dignos de admiração por serem portadores de anos
provectos, mas envelheceram na tibieza e no relaxamento. Estimá-los e imitá-los é um
perigo. São cristãos mornos, como diz o Evangelho, em quem o fogo do Espírito Santo
há muito se extinguiu.
283
Conf. II, 13. vol. 1, p. 75.
284
Conf. II, 13. vol. 1, p. 76-80.
152
Apolo aplicou a Palavra que diz: "Não deixes de livrar os que são arrastados
à morte, nem de salvar os que estão sendo exterminados" 285. Lembrou bem as palavras
de Nosso Senhor Jesus Cristo quando disse que não devemos esmagar o caniço já
quebrado e nem apagar a mecha fumegante 286.
285
Pr 24, 11.
286
Mt 12, 20.
287
1Rs 3; At 9, 6.
288
Dt 32, 7.
153
[...] ninguém, confiando em suas próprias concepções e decisões, é
capaz de chegar ao cume da perfeição. Mais ainda, quem assim
procede acaba por cair nos capciosos artifícios demoníacos 289.
289
Conf. II, 24. vol. 1, p. 87.
290
Nesta época, a França era conhecida com o nome de Gália (La Gaule romaine).
291
Conf. X, prefácio. vol. 2, p. 104.
292
Conf. X, 3. vol. 2, p. 106-107.
154
Embora João Cassiano tenha buscado aprofundar seus conhecimentos na
soleira de grandes eremitas, não faz comparações entre as duas formas de vida, ou seja,
anacorética e cenobítica como sendo uma superior à outra. Ele se refere antes ao comum
ideal de vida procurado, porém de diversos modos.
Sabemos também que o deserto foi lugar buscado por algumas mulheres
que, por motivo de segurança, camuflaram sua identidade. Assim, esses homens e
mulheres apostaram nisso e, para alcançar tão perfeito ideal, levaram vida estreitíssima
na superação dos “vícios carnais”.
293
Conf. XIV, 4. vol. 2, p. 185-186.
294
Conf. I a VII. Prefácio. vol. 1, p. 18.
155
preenchimento de um desejo profundo de maior perfeição na prática da vida cristã e
intimidade divina. E isso era o que animava os antigos ascetas ou os primeiros eremitas.
Não se separavam do mundo para encontrar o paraíso ou lutar contra o demônio, mas
antes para seguir Jesus Cristo e imitá-lo. A propósito, Cassiano mesmo nos dirá a razão
porque procurara o ermo:
295
Conf. I, 1. vol. 1, p. 19.
296
Conf. III, 2. vol. 1, p. 92.
156
É preciso se separar do mundo se alguém quer servir a Deus. É preciso
abandonar o mundo, não digo materialmente, mas espiritualmente;
não é com os pés que se avança, mas com a fé 297.
297
Hom. In exod., 3, 3.
298
Conf. XIX, 5. vol. 3, p. 120.
299
STOLZ, A. L’Ascèse chrétienne. Chevetogne: Ed. Des Bénédictins d’ Amay, 1948. p. 55.
157
história. A vida eremítica sempre foi vista como meio excelente quando em relação com
outras formas de vida. Foi São Basílio Magno que, reformando o monaquismo, o
orientou definitivamente para o cenobitismo, porque acreditava que a vida das
primitivas comunidades cristãs da era apostólica era modelo ímpar para o simples fiel e
também para todo asceta. São Basílio insistia sobre a necessidade da caridade fraterna e,
segundo ele, a vida cenobítica era a que mais favorecia essa prática.
Mas, parece que São Basílio queria muito mais e considerava que nem a
vida da Igreja primitiva e menos ainda a vida eremítica seriam apropriadas à prática da
caridade, segundo sua compreensão. Exaltando a vida em comum, São Basílio recorre à
doutrina de São Paulo sobre o corpo místico de Jesus Cristo no qual um membro
participa da vida do outro e um auxilia o outro na obtenção do mesmo escopo. Ele vê na
vida em comum o oportuno lugar da prática dos dons pelos quais uma alma foi
beneficiada. É na vida em comunidade que se dá a ocasião de viver os dons recebidos
do Espírito Santo e de fazê-los desenvolver.
Sem embargo, isso não é desmentido pela vida eremítica, uma vez que
somente são aptos ao deserto os homens que já atingiram uma vivência alargada da
caridade fraterna e se tornaram capazes de irem além dos muros de uma prisão. O
deserto é local para ser habitado por homens que vão além da aparência, do meramente
horizontal e que creem que um dia deverão amar sem a possibilidade de obras de
misericórdia. A solidão dos ermos abriga corações livres que carregam em si o universo
e suas aspirações, apresentando-o dia e noite ao Pai com súplicas, preces e hino de
louvor e glória. Além disso, vale dizer que o eremita assume o martírio como programa
de vida e do alto da cruz lança constantemente o grito do Crucificado: "Pai, perdoa-lhes!
Eles não sabem o que fazem" 300!
301
D. Stolz, em sua obra sobre a ascese cristã , diz que apesar das
insistências de São Basílio, a Igreja do Oriente sempre destacou a superioridade do ideal
eremítico. E as preferências de cada Igreja por uma ou outra forma de ascese se
explicam pelas mentalidades diferentes que veem o problema sob óticas teológicas
díspares. Uma valoriza a questão moral e outra a Theosis 302.
300
Lc 23, 34.
301
STOLZ, A. L’Ascèse chrétienne. Chevetogne: Ed. Des Bénédictins d’ Amay, 1948. p. 52.
302
Theosis na teologia cristã e particularmente na teologia da Igreja ortodoxa significa
divinização, deificação ou criação divina. É o processo de transformação pelo qual passa o
homem que decidiu viver os ensinamentos de Jesus Cristo e chegou ao grau da união com Deus.
158
303
Simeão de Tessalônica (+1428) disse que Jesus Cristo é o ideal do
eremita e, ao afirmar isso, ele queria dizer que o fim do eremita é a "divinização", isto é,
a assimilação de forma mais perfeita ao homem-Deus, Jesus Cristo. Na mentalidade
teológica grega e da Igreja oriental a Theosis ou "deificação" como perfeição última do
homem é uma das teses fundamentais e é entendida não como panteísmo onde tudo é
Deus ou tudo, por fim, se dissolve em Deus, mas como participação na natureza divina
em virtude da graça santificante presente na criatura.
A ideia que a teologia grega faz de Deus tem influência da filosofia
neoplatônica, sobretudo quanto à simplicidade e unidade divinas. A absoluta
transcendência de Deus, o fato de se elevar sobre todas as coisas que se multiplicam, se
diversificam e se transformam, faz de Deus, que é "Ser primeiro", uma realidade
absolutamente simples, una e imutável. O homem dividido e mutável, pela mortificação
de suas paixões, esforço ascético contínuo e ação da graça de Deus vê nascer em si,
como fruto, a imagem da simplicidade e unidade divinas. Quanto mais se realiza a
"deificação", mais o homem se iguala à perfeita simplicidade de Deus, o qual não busca
nada fora de si, mas que se basta a si mesmo. Evidentemente que uma teologia que dá
tal ênfase à ideia da "deificação" e concebe Deus como um ser único, simples e se
bastando a si mesmo considerará como ideal de perfeição cristã o homem
completamente libertado das paixões e voltado à imitação, a mais perfeita possível, da
unidade e simplicidade. Tal seria precisamente o ideal do asceta eremita.
303
Simeão de Tessalônica foi monge, prelado e escritor religioso bizantino do século XV.
Morreu em 1428. Foi bispo de Tessalônica de 1416 até sua morte.
304
STOLZ, A. L’Ascèse chrétienne. Chevetogne: Ed. Des Bénédictins d’ Amay, 1948. p. 54.
159
e a doutrina da primazia da vida eremítica na ascese cristã. Seriam, pois, as tendências
teológicas de uma e de outra Igreja que explicam a predominância de uma ou outra
forma de vida ascética nas respectivas Igrejas. Todavia, as duas tendências se acordam
quanto aos princípios doutrinais da vida ascética e monástica e reconhecem a
superioridade da vida eremítica.
305
http://www.vatican.va/phome_po.htm. PIO XI, papa. Constituição Apostólica Umbratilem.
8/07/1924 aprovando os estatutos dos cartuxos (As XXI). Disponível em www. vatican.va.
Acesso em 18-dez-2013.
160
se questionar esse modo de proceder como sendo exclusivo e próprio somente para um
estilo de vida, ou seja, o dos anacoretas, sem nada servir aos demais cristãos vivendo no
mundo, na faina quotidiana dos grandes centros. Diríamos que isso não procede, não
seria verdade, pois entendemos que a vida ascética é necessária para todo mundo,
sobretudo para os cristãos; é arma para a batalha de todo ser humano que pretende a
perfeição em qualquer área, mesmo profissional. O que muda são as circunstâncias e os
meios para atingir seu alvo. Ao fazermos apelo a essas formas extremadas de vida
ascética, queremos simplesmente mostrar a sua verdadeira essência que deve ser salva e
fomentar, por conseguinte, em meio ao mundo, mesmo no cotidiano das grandes
metrópoles, uma vivência séria das verdades evangélicas.
306
Fl 4, 8-9.
161
para um discipulado florescente, uma vida cristã autêntica. Aqui vemos a necessidade
de uma consciência da originalidade cristã que, apesar de reconhecer as verdades
contidas em outras culturas, ou seja, religiões não cristãs, defende a fé no Cristo como
supremo bem e busca maior aprofundamento do conteúdo da Revelação. É por isso que
Paulo aconselha os seus a desconfiarem das palavras barulhentas, sondarem-nas por
primeiro, e, antes de tudo, fazerem o que eles o viram fazendo.
307
Hb 12, 1-8.
162
sedentas de vida cristã perfeita. Dessa variedade de possibilidades nasceram suas
Conferências, que nada mais são que um convite à vivência do estado perfeito dos
anacoretas e monges do Egito. Essas conversações que por ele foram adaptadas para a
vida nos mosteiros do Ocidente, sobretudo para o de Marseille e de Lérins podem ser
adaptadas ainda hoje para os que querem levar vida eremítica ou de busca do absoluto
de Deus.
308
Conf. I a VII. vol. 1, p. 17.
163
Cassiano a não citar Evágrio, substituindo cuidadosamente toda
expressão que poderia evocar o vocabulário evagriano por outras,
geralmente com matizes bíblicos. O êxito que obtiveram suas obras
monásticas através dos séculos se explica sem dúvida pela grande
unidade e riqueza de sua doutrina como também pelo entusiasmo e
estilo com que as transmite 309.
4.7 Conclusão
Em nossos dias, o homem vive muito acelerado, não tem tempo para refletir,
pensar, equilibrar sua vida. Corre o risco, por isso, de se estilhaçar de dentro para fora.
Temos que encontrar o rumo, pois “os que viajam sem rumo só conseguem o cansaço
da jornada, jamais o avanço em sua caminhada”, dizia o abade Moisés, Pai do deserto
309
Conf. I a VII. vol. 1, p. 9-10.
310
Cf. 1Tm 6,16.
311
Hb 11, 1.
164
de Cétia, no Egito, ancião muito famoso pela prática da ascese e de sua vida
contemplativa.
Assim como tudo se aprende na vida, levar a cruz, amar a cruz é consequência
de um grande aprendizado que nos é possível pela ascese e o aprofundamento místico
do sentido do ser humano no mundo, e isso Cassiano foi mostrando-nos
progressivamente nos colóquios feitos com cada Pai do deserto.
312
MOLTMANN, Jürgen, O Espírito da Vida : Uma pneumatologia integral. Cap. X. São Paulo,
Vozes: 1999, p. 196.
313
V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE.
Aparecida. 3. ed. CNBB-Paulus-Paulinas, 2007. p. 76.
314
Mt 16, 24-26.
165
O papa Francisco disse: “Em virtude do Batismo recebido, cada membro do
povo de Deus tornou-se discípulo missionário. [...] Cada cristão é missionário à medida
315
que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus” . Disse ainda o papa
Francisco que "devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um
aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. [...] Seja
como for, todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor
salvífico do Senhor, que, sem olhar as nossas imperfeições, nos oferece a sua
proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido a nossa vida. O teu coração sabe
que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te
ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros" 316.
Ao dizer que "a nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a
missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas
317
continuarmos a crescer” , o papa corrobora nossa tese sobre a necessidade, ainda
hoje, de ascese para que nossa ação de discípulos missionários dê os frutos do Espírito e
não os nossos.
O capítulo que ora concluímos teve por objetivo mostrar a ascese nas
Conferências de João Cassiano considerando a que ele mesmo praticou, a que os Pais do
deserto por ele visitados ensinaram e a que todos podem praticar e devem fazê-lo por
conta do ideal que almejam. Mostrou que a vida anacorética e a vida cenobítica são
modos peculiares de viver a ascese, modo aos quais nem todos estão obrigados ou
chamados, mas que responde a proposta que tínhamos de tratar da ascese nas
Conferências de João Cassiano. Por ver a ascese como ciência prática que se serve de
exercícios interiores e exteriores, ou seja, luta contra os vícios com o objetivo de
reformar os atos e o modo de viver cotidiano para a aquisição das virtudes que propicia
o crescimento espiritual e uma vida de caridade perfeita, Cassiano preconiza o jejum, as
meditações, as vigílias, as orações com lágrimas para alcançar o ideal cristão. Ele não se
esquece de considerar que tudo isso deve vir acompanhado da graça divina, sem a qual
o homem nada pode. Ele ensina também que para caminhar de modo acertado é mister
escutar sempre uma pessoa experimentada na prática dessas virtudes. Esse modo de
proceder ele considera como fazendo parte da discrição ou discernimento dos espíritos
315
FRANCISCO, papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do
Evangelho no mundo atual. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2013. nº 120. p. 101-102.
316
Ibid., 121. p. 102-103.
317
Ibid., 121. p. 103.
166
que não permite ao homem estar sozinho no mundo como ser autossuficiente, mas estar
sempre em relação, mesmo que optando pela vida solitária.
Acreditamos que a leitura das obras dos Pais do deserto seria bom alimento
intelectual, espiritual na formação de nossos jovens que ainda se deparam e se batem
contra os mesmos demônios que aqueles conheceram e venceram. Esses antigos
anacoretas ainda são excelentes mestres espirituais aptos a reorientar o homem
contemporâneo.
167
5 CONCLUSÃO
O asceta cristão adere a uma ascese que está a serviço da vida e todo esforço
não visa a destruir o corpo, mas simplesmente incomodá-lo e alertar para outra realidade
que não a puramente horizontal; por isso sua ascese se adapta ao tempo e às
necessidades. Acreditamos que assim deve ser toda ascese que pretende ser caminho
para chegada ao fim único, que é a vida em plenitude, defendida por nós como existindo
em Deus.
168
cotidiana e a ensinavam a seus discípulos teve como objetivo apoiar nossa tese e as que
praticaram e ensinaram os Pais do deserto visitados por João Cassiano, o qual mostrou o
quanto o homem necessita de seriedade, esforço físico e espiritual em sua vida para
chegar a seu objetivo.
Dissemos que o ser humano é ser de horizonte, ser livre, ser de abertura;
capaz de relação, de escolha, criar laços, amar, ser amado, acolher o dom. Tudo isso por
acreditarmos que o homem é possuidor de uma alma espiritual e imortal. Porém, a
169
cultura na qual o homem se encontra hoje, fruto da modernidade, traz em si o perigo da
autossuficiência, pode levá-lo a se levantar contra Deus como potência e por fim ignorá-
lo; evidentemente que há exceções. Percebemos que muitos já não se importam mais
com a retidão, a honestidade, a verdade absoluta. Há uma ruptura com o passado e com
a ética recebida dos ancestrais com a pretensão de novos horizontes, novo mundo, novas
éticas. Se está reconstruindo o que desconstruiu pouco se sabe, mas o que é certo é que
cada homem passou a ser a medida de si mesmo e da verdade, considerando tudo como
sendo relativo. Por pensar assim, vamos cometendo os mais desastrosos e cruéis atos. A
corrupção, se não crêssemos no contrário, parece fazer parte do DNA desta sociedade.
Acreditamos que isso está acontecendo porque também dentro desta cultura
massificante existem homens levando vida ascética no sentido inverso, a qual é
partidária de uma existência humana com dimensão única, ou seja, somente terrena;
nada para além do histórico, nada de trans-histórico.
170
somente meios para ajudar a vivência da caridade perfeita. Eles poderão ser deixados de
lado ou negligenciados quando a situação pedir a atenção generosa ao próximo.
Em sua obra, João Cassiano mostra que a espiritualidade cristã deve voltar-
se para um só fim: a pureza de coração, a perfeição da caridade. Para ele, a vida eterna
somente é possível se, neste mundo, usarmos os instrumentos que temos para a prática
do amor.
A ascese nas Conferências de João Cassiano nos fez apreender sua teologia
que está subjacente aos ensinamentos dos anciãos do deserto. Cassiano é partidário da
teologia do sinergismo e ensina que o homem é colaborador de Deus na sua salvação.
Diz que embora tenha o homem pecado, a queda não retirou dele a capacidade de fazer
o bem e ser bom, visto que isso é dom inerente à condição humana, recebido na criação.
Para ele, após a queda, o homem adquiriu a capacidade de também fazer o mal, mas isso
não faz do homem um ser incapaz de atos bons. Fazer o bem é um modo de ser do
homem que fora criado assim. Porém, o bem que o homem faz não lhe é argumento para
exigir de Deus a vida eterna ou a vida com Ele. Sendo a graça de Deus inteiramente
gratuita, nada que faça o homem lhe merecerá ou lhe dará direito sobre os dons de Deus
que de per si ultrapassam todo mérito humano e são infinitamente mais valiosos que
todo ato humano. Assim a graça de Deus colaborando com o livre arbítrio continua
sendo dom. Deus não se vê constrangido a acolher o homem porque faz o bem, aliás, ele
foi criado assim, mas Deus o acolhe porque é livre, independente do homem.
171
necessidade de ascese para uma vida de discipulado florescente que visa a despertar no
discípulo a compreensão nítida de que trabalha em uma “vinha” que não é sua e que
deverá prestar contas de suas posições, relações e negociações em nome do seu dono,
seu proprietário. Enfim deverá dar conta de sua administração.
172
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