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Marcos Veríssimo
Pesquisador do INCT-InEAC
O objetivo deste artigo é contribuir para o The aim of the paper Who Are the Crackheads?
conhecimento sobre o consumo de crack no Rio Notes for the Anthropological Study of a ‘Social
de Janeiro. Para isso, parto da pergunta: “Quem são Problem’ is to contribute to our understanding of
os cracudos?” Esta categoria designa o integrante crack consumption in Rio de Janeiro. To this end, I ask
da classe de pessoas inicialmente correspondente the question: “Who are the crackheads?” This category
aos consumidores de crack, mas ganhou contornos designates a member of the class of people which
semânticos mais abrangentes. Procuro, com ponto initially corresponded to crack consumers, but has gained
de partida em tais representações, compará-las broader semantic implications. I seek, as a starting point
aos relatos e trajetórias de alguns usuários dessa in such representations, to compare them to the reports
droga com os quais estabeleci interlocução. Espero, and experiences of some users of this drug with whom I
assim, contribuir para os estudos voltados para established a dialogue. Thus I hope to contribute toward
a compreensão de consumos e sociabilidades studies aimed at understanding acts of consumption
tidas como “problema social” nos grandes centros and sociability deemed as “social problems” in the large
urbanos do Brasil e suas periferias. Brazilian urban centers and their outskirts.
Palavras-chave: problemas sociais, drogas, crack, Keywords: social problems, drugs, crack, crack
consumidores de crack, cracudo users, crackhead
A
pergunta com a qual se inicia o título do presen-
te artigo não é ingênua, e nem fortuita. Começou
a ganhar corpo quando eu finalizava um primeiro
trabalho tendo como foco a temática geral do crack (VE-
RÍSSIMO, 2011). Naquela época, passei a notar que chamar
alguém de cracudo significava, mais do que qualquer coisa,
uma forma de xingamento, um termo extremamente des-
qualificador utilizado para definir a pessoa a quem assim se 1 Uma versão preliminar
quer ofender, por vezes independentemente de a mesma ser deste trabalho foi apre-
sentada na 27a Reunião
ou não consumidora de crack. Com esse significado, apare- Brasileira de Antropologia,
cia e continua aparecendo em espaços diversos, como esco- realizada em Belém, na Uni-
versidade Federal do Pará,
las e estádios de futebol, por exemplo. em agosto de 2010.
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 8 - no 2 - ABR/MAI/JUN 2015 - pp. 303-327 303
O cracudo, diferentemente do que ocorre com outras
classes de consumidores de drogas postas na ilicitude, aglu-
tina em sua pessoa tudo aquilo que não se deve ser, de acor-
do com modelos de sociabilidade, estética e desempenho
associados a uma imagem muito difundida e verossímil de
vida coletiva. O cracudo, segundo essa visão de mundo, é o
antimodelo, o sujeito que deu errado ou que deve ser salvo
(quer queira, quer não). É aquele que, como mostra a antro-
póloga Taniele Rui, tem na abjeção de seus corpos seu cartão
de visitas, por assim dizer (RUI, 2010; 2011).
Assim, ao mesmo tempo que o consumo de crack foi
ganhando, nos últimos anos, no Rio de Janeiro e Região
Metropolitana, o status de uma epidemia, segundo as re-
presentações difundidas na opinião pública, seu consu-
midor, o chamado cracudo, foi aos poucos sendo posto
para além, não apenas das fronteiras da sociedade, mas
também da humanidade. Nesse sentido, o crack se tornou
um problema social, e o cracudo, um fantasma a ele in-
timamente relacionado. Conforme mostra Claude Levi-
-Strauss, tanto os ditos primitivos quanto aqueles que se
antointitulam civilizados, na construção de suas respecti-
vas identidades grupais, tendem sempre a localizar o ou-
tro, o diferente, o estranho, o estrangeiro, o indesejado,
para além dos limites de suas concepções particulares de
humanidade (LEVI-STRAUSS, 1993). É dessa forma que
o cracudo (o “nóia”, o “boca de lata”, o “sacizeiro”, o “cra-
queiro”) acaba sendo, nas grandes cidades do Brasil con-
temporâneo, uma espécie de radicalização da alteridade.
É por isso que, neste artigo, busco afastar-me de reifica-
ções, fantasmagorias e rotulações apressadas. Seria correto
afirmar que o consumo de crack é suficiente para, por si só,
definir a identidade do cracudo? Não sendo assim, quem é
ele? Acoplamento de um grupo definido de consumidores
a um “problema social”? Encontro de correntes oriundas de
práticas e discursos da violência, das drogas e da pobreza?
Com tais perguntas em mente, procurarei “descrever
o processo através do qual os indivíduos são designados
como tais” (LENOIR, 1998, p. 71). No presente caso, como
cracudos. Acreditando que, assim, se criam condições
favoráveis para o conhecimento qualificado de um fenô-
meno contemporâneo tornado “problema”, como também