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Quem são os ‘cracudos’?

Apontamentos para o estudo


antropológico de um ‘problema social’1

Marcos Veríssimo
Pesquisador do INCT-InEAC

O objetivo deste artigo é contribuir para o The aim of the paper Who Are the Crackheads?
conhecimento sobre o consumo de crack no Rio Notes for the Anthropological Study of a ‘Social
de Janeiro. Para isso, parto da pergunta: “Quem são Problem’ is to contribute to our understanding of
os cracudos?” Esta categoria designa o integrante crack consumption in Rio de Janeiro. To this end, I ask
da classe de pessoas inicialmente correspondente the question: “Who are the crackheads?” This category
aos consumidores de crack, mas ganhou contornos designates a member of the class of people which
semânticos mais abrangentes. Procuro, com ponto initially corresponded to crack consumers, but has gained
de partida em tais representações, compará-las broader semantic implications. I seek, as a starting point
aos relatos e trajetórias de alguns usuários dessa in such representations, to compare them to the reports
droga com os quais estabeleci interlocução. Espero, and experiences of some users of this drug with whom I
assim, contribuir para os estudos voltados para established a dialogue. Thus I hope to contribute toward
a compreensão de consumos e sociabilidades studies aimed at understanding acts of consumption
tidas como “problema social” nos grandes centros and sociability deemed as “social problems” in the large
urbanos do Brasil e suas periferias. Brazilian urban centers and their outskirts.
Palavras-chave: problemas sociais, drogas, crack, Keywords: social problems, drugs, crack, crack
consumidores de crack, cracudo users, crackhead

“A humanidade cessa nas fronteiras da tribo”. Recebido em: 31/05/2012


Aprovado em: 02/04/2014
Claude Levi-Strauss, “Raça e história”.

Considerações iniciais: o ‘cracudo’ como antimodelo

A
pergunta com a qual se inicia o título do presen-
te artigo não é ingênua, e nem fortuita. Começou
a ganhar corpo quando eu finalizava um primeiro
trabalho tendo como foco a temática geral do crack (VE-
RÍSSIMO, 2011). Naquela época, passei a notar que chamar
alguém de cracudo significava, mais do que qualquer coisa,
uma forma de xingamento, um termo extremamente des-
qualificador utilizado para definir a pessoa a quem assim se 1 Uma versão preliminar
quer ofender, por vezes independentemente de a mesma ser deste trabalho foi apre-
sentada na 27a Reunião
ou não consumidora de crack. Com esse significado, apare- Brasileira de Antropologia,
cia e continua aparecendo em espaços diversos, como esco- realizada em Belém, na Uni-
versidade Federal do Pará,
las e estádios de futebol, por exemplo. em agosto de 2010.

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O cracudo, diferentemente do que ocorre com outras
classes de consumidores de drogas postas na ilicitude, aglu-
tina em sua pessoa tudo aquilo que não se deve ser, de acor-
do com modelos de sociabilidade, estética e desempenho
associados a uma imagem muito difundida e verossímil de
vida coletiva. O cracudo, segundo essa visão de mundo, é o
antimodelo, o sujeito que deu errado ou que deve ser salvo
(quer queira, quer não). É aquele que, como mostra a antro-
póloga Taniele Rui, tem na abjeção de seus corpos seu cartão
de visitas, por assim dizer (RUI, 2010; 2011).
Assim, ao mesmo tempo que o consumo de crack foi
ganhando, nos últimos anos, no Rio de Janeiro e Região
Metropolitana, o status de uma epidemia, segundo as re-
presentações difundidas na opinião pública, seu consu-
midor, o chamado cracudo, foi aos poucos sendo posto
para além, não apenas das fronteiras da sociedade, mas
também da humanidade. Nesse sentido, o crack se tornou
um problema social, e o cracudo, um fantasma a ele in-
timamente relacionado. Conforme mostra Claude Levi-
-Strauss, tanto os ditos primitivos quanto aqueles que se
antointitulam civilizados, na construção de suas respecti-
vas identidades grupais, tendem sempre a localizar o ou-
tro, o diferente, o estranho, o estrangeiro, o indesejado,
para além dos limites de suas concepções particulares de
humanidade (LEVI-STRAUSS, 1993). É dessa forma que
o cracudo (o “nóia”, o “boca de lata”, o “sacizeiro”, o “cra-
queiro”) acaba sendo, nas grandes cidades do Brasil con-
temporâneo, uma espécie de radicalização da alteridade.
É por isso que, neste artigo, busco afastar-me de reifica-
ções, fantasmagorias e rotulações apressadas. Seria correto
afirmar que o consumo de crack é suficiente para, por si só,
definir a identidade do cracudo? Não sendo assim, quem é
ele? Acoplamento de um grupo definido de consumidores
a um “problema social”? Encontro de correntes oriundas de
práticas e discursos da violência, das drogas e da pobreza?
Com tais perguntas em mente, procurarei “descrever
o processo através do qual os indivíduos são designados
como tais” (LENOIR, 1998, p. 71). No presente caso, como
cracudos. Acreditando que, assim, se criam condições
favoráveis para o conhecimento qualificado de um fenô-
meno contemporâneo tornado “problema”, como também

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suas consequências. E para complexificar um pouco mais
o quadro, há muitos consumidores de crack que não con-
somem apenas essa droga, e uma boa parcela destes prefere
consumi-la juntamente com outras substâncias. Segundo
o vocabulário que aprendi com alguns interlocutores que
pude estabelecer em situações de consumo de crack, há,
circulando nos territórios por onde andam, os maconhei-
ros, os cachaceiros, os cheiradores, os cracudos, e há ainda
os desbloqueados – estes, cujo nome remete ao telefone ce-
lular sem operadora fixa, que pode receber qualquer chip,
“topam qualquer onda”, qualquer êxtase (maconha, cacha-
ça, cocaína, crack etc).
Nesse sentido, abordo, na próxima seção, alguns aspec-
tos da institucionalização do chamado problema do crack e
do cracudo no Rio de Janeiro, bem como certos ruídos prove-
nientes dos conflitos entre as ideias institucionalizadas desse
personagem e indivíduos que encarnam ou não, na empiria,
esse tipo. Para isso, utilizo o terreno minado do senso comum
e das coberturas jornalísticas como ponto de partida.

Nóia: o problema social do crack

Segundo dados apresentados pelo Instituto de Segurança


Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro em fevereiro de
2010, as apreensões de crack feitas pela polícia aumentaram
578% em 2009 (12.193 pedras) em relação ao ano anterior
(2.106 pedras). De acordo com o coordenador de saúde men-
tal da Fundação Municipal de Saúde do município de Nite-
rói, ouvido no mesmo mês pelo jornal O Globo, por conta do
crack, houve um aumento na demanda por serviço médico
na ordem de 40% na rede de atendimento aos dependentes
químicos dessa cidade. Ainda segundo o mesmo, o perfil do
usuário dessa droga é de adolescentes e adultos, na faixa dos
12 aos 29 anos, do sexo masculino (ALENCASTRO e RIOS,
07/02/2010, p. 4). Contudo, em razão da observação direta
realizada em zonas assim compreendidas, afirmo que relatos
quantificados como esses não dão conta da heterogeneidade
etária e de gênero nesses territórios. Notas jornalísticas mais
recentes, inclusive, dão conta da presença de mulheres grávi-
das nas chamadas cracolândias da cidade do Rio de Janeiro.

Marcos Veríssimo DILEMAS - Vol. 8 - no 2 - ABR/MAI/JUN 2015 - pp. 303-327 305


O problema – assim colocado – não é veiculado apenas na
grande imprensa, e nem referido unicamente ao entorno das ca-
pitais. Ne editorial da edição de 30 de outubro a 5 de novembro
de 2009 do periódico Beira Rio, editado na cidade de Resende,
no Sul Fluminense, aparece o desespero de uma mãe que aca-
bara de ter o filho assassinado, segundo seu relato por conta de
dívidas por ele contraídas em virtude de sua compulsão:

É a maldita da droga, é o crack que tá acabando com os jovens


hoje em dia. Se não fosse a droga, talvez meu filho estaria aqui co-
migo hoje” [sic], desabafa a mulher. “Ele tava devendo mais de R$1
mil, não trabalhava, só comprava fiado. Não tinha como pagar.

É, como lembra Remi Lenoir, uma das particularidades


dos problemas sociais o fato de que, não raro, encontram-
-se encarnados em grupos sociais (ou “populações”) que
enquanto tais se definem (LENOIR, 1998). Ora, no caso
do problema social do crack, ou dessa epidemia, conforme
preferem muitos, são essas “populações” os cracudos. Em
São Paulo, denominam-se craqueiros, ou nóia; em Fotaleza
são comumente chamados de bocas de lata, enquanto em
Salvador recebem o nome de sacizeiros. Ou seja, os nomes
correspondentes ao “problema” variam na medida da di-
versidade cultural brasileira.
Conforme afirma o antropólogo Edílson Silva, em seu in-
teressante estudo antropológico da produção jornalística sobre a
chamada violência urbana em relação ao tráfico e ao traficante, se
“o fenômeno violento constitui um objeto difuso; alvo, portanto,
de difícil caracterização, o mesmo não ocorre com o sujeito so-
cial tido como responsável por sua objetivação” (SILVA, 2010, p.
133). Seguindo o mesmo princípio, se a compreendida epidemia
do crack é uma abstração que jaz no terreno minado da opinião
pública, em meio à floresta de dados e números sendo constitu-
ída com a consolidação de estudos quantitativos nesse campo, o
mesmo não ocorre com o cracudo, seja como xingamento, seja
em suas várias manifestações empíricas.
A imagem é corrente: mendigos que andam pelos cen-
tros urbanos pedindo moedas e restos de comida, ou os
alucinados que povoam as cracolândias, que são dali re-
movidos à força para depois fugirem dos abrigos públicos
ou hospitais após a (ou mesmo antes da) primeira crise de

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fissura. Ao mesmo tempo, a difusão do consumo de crack
não se limita apenas a esses grupos de marginais. Encon-
tra-se muito mais espalhada pelo tecido social, ganhando
novas matizes que, não raro, embaralham as representa-
ções do fenômeno, tornado “problema”.
Afinal, quantas pessoas que fazem uso (regular ou
eventualmente) das chamadas pedras malditas não se reco-
nhecem no rótulo, e a ele oferecem resistência? Ou, dito de
outra maneira, enquanto uns se sujeitam a serem chama-
dos de cracudos, outros tantos não aceitam a sujeição. Qual
seria o limite a partir do qual um sujeito, caso queira, não
conseguiria mais tornar verossímil sua resistência ao estig-
ma? Estariam essas fronteiras inscritas (ou não) no corpo
ou no comportamento? Ou ainda na posição social do indi-
víduo em questão e sua família? Quais seriam as estratégias
e dispositivos de controle acionados no ato de manipulação
de tais fronteiras? Seriam estes de ordem penal, moral, psí-
quica, familiar, social ou ocupacional? Ou tudo isso junto?
E quando as representações sociais construídas no ter-
reno midiático parecem não dar conta de fatos por algum
motivo a eles relacionados? Como descrever, por exemplo,
uma tragédia familiar da Zona Sul carioca, tornada um fato
jornalístico, envolvendo o consumo de crack, mas na qual o
cracudo em questão, ao menos a princípio, em nada se asse-
melha à imagem dos fodidos, dos caras-chupadas, dos surta-
dos da rua? Foi o que veio a público no jornal O Globo em
outubro de 2009, com a matéria intitulada “Músico viciado
em crack mata jovem no Flamengo” (VICTOR e BORGES,
26/10/2009, p. 13), caso que teve um forte impacto na opi-
nião pública carioca, ocorrendo nele uma associação entre
consumo de crack e crime. Sugiro que nos detenhamos, por
enquanto, em alguns aspectos dessa notícia.
“Hoje vi uma pessoa boa se transformar num assassi-
no” – disse o próprio pai do protagonista. Este, uma pessoa
de classe média, 26 anos e morador da Zona Sul, em uma
tarde de sábado, ao despertar, deparou-se com sua “amiga”
deitada no chão de seu quarto. Quando foi acordá-la, notou
que não estava apenas dormindo, mas que seu corpo inerte
jazia sem vida. Naquele momento, não se lembrava de nada.
Desesperado, telefonou para seu pai, que imediatamente co-
municou o caso à polícia, que para lá se dirigiu em sua com-

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panhia. Embora o rapaz e seu pai tenham afirmado que ele e
a jovem de 18 anos encontrada morta tinham um relaciona-
mento amoroso, amigos da vítima afirmam, no entanto, que
os dois eram apenas amigos, e que ela vinha empenhando-se
em ajudá-lo a “largar as drogas”.
Contudo, foi apurado pela polícia que os dois tiveram
uma discussão no apartamento do rapaz, por volta das 8h
daquele sábado, conflito após o qual a jovem fora estran-
gulada e seu algoz fora dormir. A matéria jornalística o
apresenta como uma vítima do crack, e aponta também
que os policiais encontraram, como encontrariam em boa
parte dos lares de classe média no Rio de Janeiro, bebidas
alcoólicas e remédios com efeitos psicoativos cuja venda
é controlada. Ele próprio teria dito na delegacia que havia
fumado crack após a discussão.
Guitarrista de uma banda da Baixada Fluminense e
tido como um “ícone das noites cariocas” e “grande amigo,
pessoa com um coração maravilhoso e um talento musical
excepcional”, o rapaz nos últimos anos havia passado por
quatro internações em clínicas de reabilitação para pessoas
com problemas relativos ao abuso de drogas. Seu pai, que
atua como produtor cultural, desesperançoso da eficácia
desses tratamentos na forma como são implementados,
diante do acontecido resolveu entregá-lo imediatamente à
polícia, para que se fizesse justiça em relação ao ato que
praticou. “Ele irá pagar pelo que fez (...). Não passarei a
mão na cabeça dele, mas não o abandonarei”, afirmou. Para
ele é um equívoco daqueles que denomina como especialis-
tas o preceito segundo o qual essas pessoas com um com-
portamento enquadrado como de dependência psíquica só
devem ser internados por vontade própria. Em depoimen-
to publicado na referida matéria, advoga por uma inter-
venção mais efetiva por parte do Estado:

Um drogado, ou adicto, que já perdeu o senso de realida-


de e o controle sobre sua fissura, torna-se um perigo para
a sociedade, infernizando a família, partindo para roubos,
prostituição e até assassinatos, por surto ou por droga. Es-
perar que uma pessoa com a mente destruída por droga
pesada vá com seus próprios pés para uma clínica é mera
ingenuidade destes profissionais. O Estado tem de intervir

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nesta questão para preservar as famílias e os inocentes. A
internação compulsória para desintoxicação e reabilitação
destes doentes (...) é uma necessidade premente. Ou será
que todas as famílias que vivem este problema terão de
construir jaulas em casa? (Idem, Ibidem).

Afirma ainda saber que há seis anos “perdeu” o filho


para o crack, e que o mesmo, deprimido, estava frequentan-
do reuniões de um grupo de Narcóticos Anônimos (NA).
Após as internações, o jovem aparentava estar mais feliz
enquanto mantinha-se longe das drogas. Contudo, tão logo
encontrava os amigos nos espaços de sociabilidade que cos-
tumava frequentar – mediados por álcool e drogas ilícitas
– depois de algumas cervejas perdia novamente o controle
sobre sua compulsão.
Parte da descrição e interpretação veiculada pelos
meios de comunicação de massa traz em si a associação
do consumidor de crack com o alienado mental. Nesse
ponto, muitas são as vozes que se colocam no debate pú-
blico sobre o crack para dizer que o controle policial dos
consumos de drogas deve dar lugar ao controle médico
dos mesmos. Contudo, sob a forma de uma tutela, não
estaria essa forma de controle igualmente negando a con-
dição de cidadãos a sujeitos envolvidos com consumo
problemático de substâncias psicoativas?
É isso o que afirma, sob a condição de militante,
Marcelo da Rocha, representante da Associação dos
Dependentes Químicos em Recuperação do Brasil
(ADQR), a quem tive a oportunidade de conhecer em
uma das reuniões da Comissão de Políticas de Drogas
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de
Janeiro, da qual fui membro entre 2011 e 2013. Para
Rocha, é necessário recuperar a dignidade do consu-
midor problemático de drogas, sua condição de cida-
dão. O que corresponde à recusa do rótulo de adicto,
que remete à ideia de alienação, dívida, escravidão,
dependência. Em seu livro, baseado em experiência
pessoal como consumidor problemático de drogas e
como militante, Rocha oferece o relato de situações
no contexto dos confinamentos para onde se condu-
zem os ditos adictos. E questiona:

Marcos Veríssimo DILEMAS - Vol. 8 - no 2 - ABR/MAI/JUN 2015 - pp. 303-327 309


O que dizer de um livro de matemática proibido quando você
pensa em aproveitar seu tempo livre, sem atividades terapêuti-
cas, para estudar, pensando: quem sabe quando conseguir vol-
tar ao mundo sadio em sociedade eu possa fazer uma prova de
concurso público? E ser impedido de estudar em seus momen-
tos livres, no internato terapêutico, pela equipe terapêutica? E,
no entanto, nos finais de semana, ser abandonado por esta mes-
ma equipe, que vai para casa descansar e deixa 30, 40, às vezes
até muito mais, dependentes químicos em completo ócio, só
restando conversas sobre drogas e o tempo de uso delas como
passatempo? (ROCHA, 2011, p.16).

Como parte do esforço para dar conta dos problemas


aqui colocados, também fui ao baile funk do Buraco Quente,
que então (2010) ocorria no Morro da Mangueira, onde ouvi
dizer que tinha lugar uma das famosas cracolândias da cidade
do Rio de Janeiro. No espaço de sociabilidade no qual logo
me chamou atenção o poder sonoro das caixas amplificadas
dispostas em forma de paredão e o poder bélico do pesado
armamento dos grupos que então comercializavam drogas
ilícitas. Era um grande evento a céu aberto, na Travessa Sayão
Lobato, espalhando-se pelo complexo de escadas, becos e
vielas da favela2. Naquele território, o uso de drogas era não
apenas permitido, mas abertamente estimulado pelos comer-
ciantes dos produtos – ou vapores3– que, cada um ocupando
2 Com a recente instalação seu ponto específico, oferecia uma ampla e diversa gama de
de uma Unidade de Polícia êxtases psicoativos para todos os gostos e possibilidades eco-
Pacificadora (UPP) naque-
le morro, tal configuração nômicas. Maconha, de R$ 5, de R$ 10, de R$ 20, etc. Pó de R$
se alterou sensivelmente, 30, de R$ 25, de R$ 20, de R$ 10, de R$ 5, e até mesmo de R$
deixando de se observar a
ostentação de armamen- 3. Pedras (ou farelos) de crack também disponíveis em vários
tos, bem como o baile, que, preços. Isso para ficarmos apenas nas drogas mais consumi-
segundo representações
difundidas na imprensa, era das ali, sem contar o álcool, também com presença marcante.
promovido pela facção cri- Os consumidores desses diferentes tipos de barato mis-
minosa que dominava ter-
ritorialmente aquela favela. turavam-se, flertavam, nas muitas dezenas (talvez mais de
3 Vapor é aquele que re- uma centena) de bares e biroscas, jogavam sinuca, apostavam
cebe do gerente da “boca” nas máquinas de videopôquer em um intenso movimento
uma determinada quanti-
dade de unidades de droga que pude conhecer naquela madrugada adentro. Saí de lá já
a ser comercializada (ou a no início da tarde de sábado, e o trânsito de drogas, pessoas,
“carga”, conforme o lingua-
jar corrente do tráfico), fica dinheiro ainda era intenso. Mas o ponto específico daquele
no ponto de venda, comer- pequeno complexo então conhecido como “Cracolândia da
cializa e depois presta con-
ta do que vendeu. Mangueira” era bem mais restrito. Em um espaço medindo

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aproximadamente 4m x 5m, que aparentava ser o de uma ga-
ragem não acabada, com chão sem piso e dispondo de dois
sofás esfarrapados, pude ver dezenas de pessoas fumando
crack, jogados nos sofás ou mesmo no chão. Quase todas com
a aparência bastante castigada, trazendo no corpo as marcas
de distinção correntemente relacionadas aos cracudos, uns
claramente ociosos, outros com olhar muito vago. Eram pes-
soas vivendo aquela noite na onda do crack. Elas pareciam
se enquadrar no estereótipo do nóia, personagem do cenário
paulista do consumo de crack que, segundo relato ouvido nas
ruas pelo antropólogo Paulo Malvasi, “está no limiar do hu-
mano. Nem os travestis sofrem tanto preconceito” (CAPRI-
GLIONE e CARVALHO, 23/05/2010, p. 1).
Depois dessa experiência, tive a oportunidade de estar
em outros locais conhecidos como cracolândias no Rio de
Janeiro, mas nunca fiz, efetivamente, trabalho de campo em
nenhum deles. Não me parecia estar exatamente nas chama-
das cracolândias a melhor forma de seguir indagando: quem
são os cracudos? Por isso, convido o leitor a, na próxima se-
ção, acompanhar parte das trajetórias de pessoas residentes
no Rio de Janeiro e Região Metropolitana não necessaria-
mente, ou automaticamente, rotuladas como cracudos e que
fazem parte dessa população por cujas biografias o consumo
de crack já passou, em maior ou menor grau.

Muito além dos ‘nóias’

São pessoas – muito além de abstrações e reificações


– que terão aqui descrita parte de suas trajetórias pes-
soais, e que por isso devem ter preservadas suas identi-
dades. Ganharão então nomes oriundos de antigos dese-
nhos animados. Trata-se do relato de interlocutores que
estão nas franjas do universo dos nóias, e são (ou já fo-
ram) consumidores assumidos de crack.
Toro em 2009 era um estudante de 17 anos, cursando o
terceiro ano do ensino médio em uma escola da rede esta-
dual do Rio de Janeiro, na cidade de Niterói. Aparentemente
saudável, não apresentava sinais visíveis de debilidade físi-
ca ou decrepitude. Não trabalhava e morava com a mãe, o
padrasto e um irmão. Aluno de notas medianas, mas que

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demonstrou argúcia e clareza no raciocínio enquanto con-
versávamos sobre o tema deste artigo. Bebe álcool, fuma
maconha e crack desde que passou a frequentar as festinhas
de seu círculo de amizades. Também já experimentou co-
caína, LSD e cigarros (que fuma eventualmente, sobretudo
quando bebe cerveja com os amigos).
Contra uma representação muito difundida nos meios
de comunicação, segundo a qual o crack tem o poder de
transformar aquele que o experimenta em dependente logo
nas primeiras experiências, Toro polemiza: “Tudo bem que
vicia, mas não vicia assim. Tem que estar há mais ou me-
nos um ano usando crack pra chegar ao ponto de roubar, de
matar”. Ele próprio já usava naquela época o crack regular-
mente (mas não diariamente) havia mais de um ano e meio.
Quanto aos efeitos subjetivos da droga, afirmou ainda que
“o crack é aquela coisa: sua mente vai pro inferno. Enquanto
você está fumando, a sua mente está vazia. Na hora em que
você está fumando, quanto mais você fuma, você quer mais”.
Contou-me ainda que seu aniversário naquele ano fora
comemorado entre ele, dois amigos e algumas meninas, em um
apartamento em Icaraí – bairro de classe média em Niterói –
em que um morava um dos amigos, também de 17 anos, apro-
veitando uma viagem dos pais deste. A festa durou uma noite
inteira, entrando pela madrugada, terminando no dia seguinte.
No cardápio, alguns biscoitos, queijo, salame e azeitonas. As
bebidas predominantes eram cerveja, vodka e energéticos. Po-
rém, segundo contou, passaram a noite inteira fumando crack,
seja diretamente a pedra ou o zirrê4, a atração principal de sua
4 Zirrê, ou dizirrê, é o nome
dado à mescla do crack
comemoração. Não comeram muito e, segundo ele, o consumo
com a maconha, uma for- prolongado do crack tem a função de diminuir o apetite.
ma bastante difundida
de consumo (VERÍSSIMO,
Seus familiares, na época, desconfiavam de seu envolvi-
2009). Em São Paulo, usa- mento com drogas, mas não falavam muito no assunto. Como
-se para o mesmo artigo
o nome de pitilho, ou piti
não possuía renda própria, costumava fazer o avião para os
(CAPRIGLIONE e CAMAR- amigos em troca de alguma quantidade de droga5. Certa vez,
GO, 23/05/2010).
quando ganhou uma quantia considerável de seu pai, usou-a
5 Avião é o termo utilizado para comprar cocaína no morro de São Carlos, na Zona Norte
para designar aquela pes-
soa que se ocupa da fun- da cidade do Rio de Janeiro – onde “o pó era bom e servido” – e
ção de ir buscar a droga na
boca no lugar de alguém
o fracionou para vender a seus colegas de escola por um preço
que não quer, ou que teme, que lhe oferecia mais de 100% de lucro. Assim, capitalizado,
fazê-lo, servindo de elo en-
tre consumidores e vende-
voltou várias vezes a fazer a mesma coisa, capitalizando-se ain-
dores (BARBOSA, 1998). da mais. Recentemente, deixou de fazer isso, segundo me disse.

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Toro é usuário de quase todas as drogas lícitas e ilícitas
socialmente ao seu alcance – “Quando eu vou no baile funk
eu sempre levo um maço [de cigarros]”. Porém, de acordo com
suas próprias palavras, aos poucos vinha “dando um tempo”
do crack. Ele contou que prefere maconha – e fuma todos os
dias na laje de sua casa. Demonstrou ainda um bom conheci-
mento dos movimentos das drogas no lugar em que morava:
“Aqui se chama ‘Ronaldo’, o crack daqui. A maconha é ‘Cho-
cobom’, e o crack é ‘Ronaldo’, e ‘A Favorita’ é o pó de R$ 30”.
Em sua fala, procura desconstruir alguns mitos em tor-
no do crack: “Todo mundo antes de usar o crack fala: ‘Crack
é droga de mendigo’, porque crack é o resto do pó. Mas não
é barata, é uma droga cara”. Isso porque, a despeito do preço
da unidade ser relativamente baixo, como seu efeito é muito
fugidio, o consumidor que passa os dias sob sua onda terá
que fumar muitas pedras, e, de preferência, não daquelas
que custam apenas R$ 0,50.
Ocupemo-nos agora do caso de Pancho, que, muito ge-
nerosamente falou-me de parte de sua trajetória de vida em
uma longa entrevista gravada. Na época em que este artigo
encontrava-se em avaliação pelos pareceristas da revista,
Pancho foi assassinado por pessoas supostamente ligadas ao
mercado clandestino e violento de drogas ilícitas. Vivia, na-
quela época, com a esposa e um filho pequeno, e, aos 25 anos,
trabalhava como porteiro em uma escola pública no municí-
pio de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Mas tinha também uma experiência laboral no movimento
do tráfico de drogas, ocupando diversas posições na hierar-
quia dessa organização. Teve, então, oportunidade de conhe-
cer e experimentar diversos tipos de drogas ilícitas, entre elas
o crack. Assim como Toro, Pancho não ostentava marcas de
consumo problemático de drogas em seu corpo, possuindo,
inclusive, um corpo ligeiramente atlético.
Em sua fala, relativizou a ideia segundo a qual o sujeito
que trabalha para o tráfico de drogas se torna um prisionei-
ro, não podendo optar por mudar de emprego. Apesar do ca-
ráter ilícito da atividade, esta era representada por ele como
uma alternativa de ocupação diante das portas fechadas do
mercado de trabalho para quem tem baixa qualificação, uma
vez que, “esse negócio que falam: ‘Ah... Se sair vai morrer!’ é
tudo mentira”. Desde que, obviamente, o demissionário não

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se encontre em dívida com a firma6. E nesse aspecto, aponta,
manter o equilíbrio no consumo daquilo que se deve vender
é um fato de suma importância. Segundo ele,

[q]ualquer momento tu pode sair. Eu entrei e saí quatro, cinco


vezes. Por quê? Uso droga, já usei droga, hoje eu uso bem me-
nos e... não sou viciado. Tem aqueles bandidos que deixa a droga
usar ele, e ele não usa a droga. Eu uso a droga. Então pra mim
foi tranquilo.

Nesse ponto, afirma, a entrada do crack no varejo das


drogas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro se confi-
gurou em um complicador a mais para aqueles com, segundo
ele, “cabeça fraca”, o que não seria o seu caso. Aqueles vende-
dores da boca de fumo que não sabem se controlar tendem,
por conta de “se entregarem” ao consumo das pedras, a dar
derrame na firma – o que consiste em não ter o dinheiro para
prestar conta do carregamento que apanharam em consig-
nação com seus superiores hierárquicos. Isso teria levado os
chefões daquela área a proibirem os vapores de usar crack,
procedimento nunca antes adotado em relação à maconha ou
à cocaína, por exemplo (VERÍSSIMO, 2011).
“Tem cara que é bandido que é igual piolho. Vai pela ca-
beça dos outros”. Seguindo o seu raciocínio, há bandidos, por
outro lado, que sabem “usar a droga” (falando assim, em abs-
trato) sem se deixar vilipendiar por seu uso, e cita o nome de
um: “Quando pegaram Fernandinho Beira-Mar usando dro-
ga? Ele já consumiu. Mas ele usava a droga, não era a droga
que usava ele [sic]”. Seu pensamento a respeito dos controles
formais e informais da droga é bastante complexo:

Então isso vai muito da pessoa. Eu bebo. Mas eu não bebo de


ficar bêbado. O cara, tanto drogado quanto bêbado, ele sabe o
que está fazendo. Quer ver? O cara tá lá cheio de crack, tá bêba-
do, vai lá e pede o cu dele para ver se ele dá. Não vai dar. Eu, por
exemplo, não usava pó. Eu usava maconha. Maconha relaxa. Fica
mais calmo. E já usei crack também, no dizirrê.
6 Firma é uma categoria na-
tiva utilizada para designar
as organizações criminosas Não adepto do uso da cocaína, fuma eventualmente o
que dominam os territórios
onde realizam o mercado de
crack, considerado seu subproduto mais adulterado. Ora ele
drogas postas na ilicitude. afirma que as piores coisas acontecem por conta do descon-

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trole dos usuários em relação aos efeitos das substâncias, ora
reconhece o poder destrutivo de algumas delas, principal-
mente o crack:

O crack, pra ser proibido eu até concordo. O crack, o pó, a loló,


que é tudo uma química. O crack é uma pedra, e você pode
misturar tanto com a maconha quanto com a binga de cigarro,
que é um vapor que solta. O crack é pior do que o pó. Ele come
seu cérebro rápido. O crack, ele é muito forte mesmo. É a droga
mais forte que tem. O pó fica abaixo dele, a loló abaixo do pó. O
crack tem uma facilidade de viciar a pessoa. Porque ele pega no
seu cérebro, e ele come o seu cérebro logo.

O uso da maconha, por sua vez, substância que era re-


presentada por ele como mais natural e menos química, em
sua opinião, deveria ser legalizado. Aponta o uso do dizirrê
por usuários de crack como uma forma de reduzir os male-
fícios à saúde.
Tomemos agora o caso de Piu-Piu, pessoa que co-
nheci enquanto viajava em uma linha de ônibus inter-
municipal de trajeto entre o bairro de Alcântara, em São
Gonçalo, e o centro de Niterói. Eu estava distraído, en-
volvido em uma leitura, quando Piu-Piu ingressou no
coletivo, oferecendo aos passageiros um saco contendo
uma caneta e uma lapiseira pelo “preço simbólico” de R$
1. Segundo logo fez questão de dizer, não vendia para si,
mas em nome da Instituição Social Manassés, comunida-
de de cunho religioso, evangélico, com matriz na cidade
de São Paulo e com uma de suas nove filiais espalhadas
pelo Brasil sediada na cidade de Itaboraí (Região Metro-
politana do Rio de Janeiro).
Em sua ardorosa performance, afirmou que “poderia
estar entrando neste ônibus portando uma arma”, mas que
seu intuito era vender aqueles kits e ajudar a sustentar aque-
la instituição, voltada, segundo ele, para libertar as mães
dos “viciados” do “mar de lágrimas” em que, não raro, se
encontram. Ele próprio tinha sido, no passado, um “vicia-
do”, mas, conforme contou, “graças ao milagre do poder de
Deus”, encontrava-se afastado das drogas havia nove meses,
e tomando para si a missão de divulgar aquele trabalho para
quem poderia estar precisando.

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Falei com ele de meus interesses de estudo e demons-
trei inclinação em adquirir seu contato para termos uma
conversa menos apressada, uma vez que ele admitiu ter “ido
fundo” no crack, antes de “se entregar a Jesus Cristo”. Afir-
mou que eu deveria tentar entrar em contato por meio do
telefone e endereço contido na filipeta da instituição, que
fazia parte do kit, juntamente com a caneta, a lapiseira e um
marcador de texto. Assim o fiz, primeiramente por telefone,
depois indo diretamente ao lugar, em Itaboraí. Lá moram
400 pessoas como Piu-Piu, sem pagar nada – ou, melhor
dizendo, pagando com o trabalho missionário desenvolvido
no interior de coletivos e nas ruas.
Após duas idas à Instituição Manásseis sem encontrá-lo,
quando pude conversar com outros consumidores problemá-
ticos de drogas (boa parte com problemas em relação ao álco-
ol), o encontrei e tive a oportunidade de entrevistá-lo. Era mi-
neiro de Belo Horizonte e tinha 34 anos. Em sua cidade natal,
frequentou a faculdade de administração, mas não concluiu
o curso. Começando pela cerveja, foi experimentando todo
tipo de êxtase psicoativo que lhe caía nas mãos, mas sempre
preferiu a cocaína. “Passei oito anos cheirando pó.” Disse-me
que, no passado (quando tinha “vinte e poucos anos”), che-
gou a perder emprego por conta do uso compulsivo da droga.
Posteriormente, contou que havia aprendido a contro-
lar a compulsão da cocaína. Até que lhe foi ofertado o crack,
e sua relação com a droga foi, segundo disse, “ainda mais
destruidora”, no sentido de ser mais “incontrolável”. “Fui
perdendo o orgulho, a vaidade, até mesmo o amor próprio...
dei muito desgosto para a minha família. Eu não era... eu não
era mais gente”. Hoje, afirma, não se sente ainda totalmente
livre dos apelos das drogas. Por isso, apesar da saudade que
sente de sua cidade, seus familiares e amigos, não pensa em
voltar tão cedo ao lugar onde nasceu e cresceu. Segundo ele,
“as tentações do Diabo seriam muitas”. Por isso ele prefere
o convívio e o pouco conforto de que hoje desfruta, junta-
mente a pessoas que, como ele, trocaram a compulsão do
uso problemático de alguma droga pelo fervor religioso.
Para ele, sua missão diária de levar “uma luz no fim do
túnel a quem se encontra na escuridão” ajuda, inclusive, a
“combater a criminalidade”. Piu-Piu, o único consumidor
de crack ouvido no âmbito do levantamento que subsidiou

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este artigo que se disse atualmente afastado do crack, é um
devoto dedicado que, por hora, afirma ter medo de voltar
aos espaços de sociabilidade domésticos e recair no que in-
terpreta como erros do seu passado.
Papa-Léguas, nosso último interlocutor a figurar com
parte de sua história de vida neste trabalho, é aquele que,
aparentemente, mais se assemelha (muito em função de sua
magreza e pelas roupas sujas e surradas) aos estereótipos do
cracudo. Afirma, contudo, que o estado de suas roupas tem
mais a ver com seu trabalho de pedreiro do que com o con-
sumo de crack. Atualmente, vive em um casebre situado no
denominado Complexo do Salgueiro, área tida como foco
de violência e criminalidade em São Gonçalo, segundo as
representações corretes no imaginário das populações da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tem 23 anos.
Em um passado recente, chegou a encontrar-se visceral-
mente envolvido com o consumo de crack, tornando-se uma
espécie de cracudo exemplar das representações correntes.
Chegou a ficar cerca de três meses sem sair da Cracolândia
da Coruja, a maior e mais famosa da cidade de São Gonça-
lo. Suas lembranças desse período não são boas. Conta que,
na cracolândia, aqueles que vivem permanentemente por ali
não conversam e nem riem, e que as comunicações entre as
pessoas se limitam a sons quase sempre monossilábicos, sem
maiores demonstrações de emoção, e tendo como única mo-
tivação a aquisição, manutenção ou usurpação de crack.
Em sua forma de interpretar a própria trajetória, afir-
ma que houve um momento decisivo, de virada em sua vida.
Foi quando em uma daquelas horas de fissura mais intensa,
abordou desesperadamente uma pessoa que estava, como ele,
perambulando pela Cracolândia da Coruja, e pediu dinheiro
– “Qualquer trocado”. A pessoa retrucou dizendo que estava
sem nenhum tostão e também procurava por dinheiro e cra-
ck. Depois olhou em seus olhos – fato raro em um lugar em
que os olhares vagos não encontram as pessoas, as atravessam
sem nenhuma expressão significativa, onde as pessoas não
conversam – e disse: “Vai embora daqui, garoto!” Ao que ele
teria respondido: “Quem é você pra me dar conselhos, se está
na mesma situação que eu?” E o outro retrucou: “É por isso
que eu falo, cara... sai daqui! Eu não consigo mais me libertar,
por isso estou te falando pra ir embora daqui. Isso não é vida”.

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Papa-Léguas teria pensado então: “Eu não quero fi-
car assim, não”. E contou que reuniu todas as forças para
abandonar aquela relação visceral com o consumo de cra-
ck, embora continue fumando praticamente todos os dias,
juntamente com seu companheiro de obra, que aparece no
meu trabalho anterior sobre a temática com o pseudônimo
de Jerry (VERÍSSIMO, 2011).
Certa vez, foi ao movimento com R$ 20 para com-
prar todo o valor em pedras de crack. Lá chegando, o va-
por lhe ofereceu uma pedra bem maior pelo valor de R$
50. Como não tinha essa quantia, disse que não poderia
ficar com a mercadoria, mas que diria a seu amigo, Jerry,
para ver se ele se interessava. Ao ouvir o nome de Jerry,
o vapor, que o conhecia, orientou-o a levar a pedra para
este, que, caso a quisesse, poderia pagá-la depois, e assim
foi feito7. Decidiram, então, dividir o produto e a dívida,
cada um dando R$ 25 pela pedra especial – e de qualida-
de superior, segundo afirmaram.
Após consumirem uma parte, Jerry se despediu, por vol-
ta das 22h, com o intuito de ir para casa. Propôs levar a parte
de Papa-Léguas consigo, para que este não a usasse toda em
vez de descansar e dormir antes de mais um dia de trabalho8.
Acontece que ele recusou o favor, preferindo ficar ele próprio
de posse de sua mercadoria, afirmando ainda que guardaria
aquela grande quantidade para o consumo dos dias seguintes.
Assim que Jerry partiu, deixando seu amigo no barraco, este
separou uma parte da pedra para usar mais um pouco e en-
7 Jerry, que não só estava
presente quando Papa-
terrou o restante no chão de barro do cafofo, colocando ainda
-Léguas narrou essa história um tapete sobre a cova. Consumiu aquele quinhão e, sem de-
como foi quem o instigou
a contá-la, ressalta, orgu- mora, começou a sentir a sensação de perseguição que usual-
lhoso, que isso é indício do mente os consumidores dessa droga relatam sentir. Imaginou
quanto ele próprio é res-
peitado na boca de fumo, que alguém tinha entrado ali sem que ele visse, desenterrado
condição que os tidos como e roubado a valiosa pedra.
cracudos nunca consegui-
riam, segundo ele, manter. Cavou novamente em busca de seu tesouro, conferiu
8 Ambos afirmaram que,
que estava ali e, antes de enterrá-lo novamente, tirou mais
no que tange a isso, Jerry é uma parte para mais umas bafadas9. Isso se repetiu diversas
infinitamente mais contro-
lado do que Papa-Léguas.
vezes naquela madrugada. Quando Papa-Léguas deu por si,
9 “Bafar” é como os cracu-
a fissura havia se tornado insuportável e a droga havia sido
dos de São Gonçalo desig- toda consumida. O dia já clareava e ele não havia dormido
nam o ato de consumir a
pedra pura, em cachimbos
nem um minuto sequer. Em pouco tempo, Jerry estaria ali
improvisados. para chamá-lo para o trabalho.

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Conclusão: ansiedade e alheamento

Após esse breve percurso, estamos aptos a afirmar, se-


guindo a trilha há muito aberta por Howard S. Becker, não
ser o cracudo meramente aquele que usa crack – e que nem
mesmo um uso eventual pode ser o suficiente para alguém
ser socialmente rotulado como tal. Afinal, todo comporta-
mento desviante é criado em referência (ou em resistência)
aos padrões socialmente aceitos. O desvio é, portanto, resul-
tado do processo de interação social:

Quero dizer (...) que os grupos sociais criam o desvio ao


fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar
essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como mar-
ginais e desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não
é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma
consequência da aplicação por outras pessoas de regras
e sanções a um “transgressor”. O desviante é alguém a
quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; compor-
tamento desviante é o comportamento que as pessoas
rotulam como tal (BECKER, 1977, p. 60).

A partir disso, pensemos então no caso do crack e


do cracudo. Em primeiro lugar, o crack é um produto do
proibicionismo, criado nos EUA para dar conta de um
mercado posto na ilegalidade (e por isso) sem o menor
controle formal de sua qualidade, povoado por pessoas
mais empobrecidas, diante de uma demanda por um ar-
tigo relativamente caro até então: a cocaína (SOMOZA,
1990). Por outro lado, o próprio cracudo, na medida em
que é assim rotulado, acaba encarnando em si o objeto da
ação do Estado, seja pela via repressiva, por meio do apa-
relho policial, seja pela via assistencialista, levada a cabo
pelos operadores dos sistemas de saúde, assistência social
e organizações desse cunho. Aos antropólogos interessa-
dos no fenômeno, cabe, entre outras coisas, descrever e
interpretar as ações e representações que se enfeixam na
ideia de cracudo (bem ou mal realizada, bem ou mal en-
carnada em sujeitos de carne e osso), contribuindo assim
para os que queiram compreender o fenômeno do consu-
mo de crack, com maior profundidade.

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A contribuição da antropologia para a compreensão desta pro-
blemática [falando das drogas em geral] consiste em mostrar como
existem n maneiras de utilizar as substâncias em pauta, em função
de variáveis culturais e sociológicas. Estas não só se somam como
complexificam as distinções que possam ser registradas ao nível
da análise bioquímica. Poder-se-á perceber, inclusive, porque cer-
tas substâncias são mais toleradas do que outras mesmo quando
em termos de sequelas pudessem ser até mais graves e violentas.
Seria o caso, por exemplo, do alcoolismo e do uso regular de bar-
bitúricos. O objetivo do cientista social deve ser procurar entender
a relação entre o consumo de drogas com uma visão de mundo
e estilo de vida ou, em outros termos, com uma construção social
da realidade específica (VELHO, 1980, p. 356).

O sociólogo Michel Misse disse a respeito da sujeição


criminal que ela

constitui-se na representação social dominante, o que se pode-


ria chamar de um fantasma social, um inimigo interno específico
cujo perigo será representado como tanto maior quanto maior for
sua incorporação por membros da sociedade (MISSE, 1999, p.172).

No mesmo diapasão, acredito poder falar aqui nos ter-


mos de uma sujeição cracuda. Esta, assim como o “fantas-
ma criminal”, também tem a prerrogativa de possuir forte-
mente a “característica singular de participar, por oposição,
da construção social da normalização do individualismo”
(MISSE, 1999, p.172) .
O cracudo é, pois, um grande antimodelo de compor-
tamento por meio do qual as agências do Estado e a família
(que por sua vez se manifestam sob múltiplas configura-
ções) procuram enquadrar as subjetividades, sobretudo das
parcelas jovens dos distintos grupos sociais. Em um imenso
painel de arte grafite pintado em um grande muro próximo
à rodoviária de Niterói, encontra-se materializada essa ideia:
sobre um fundo de tonalidade sombria, uma montanha de
crânios (alguns fantasmagóricos), há meninos, todos negros
ou mulatos, um deles fuma crack. Gravitando em letras gar-
rafais a inquiridora frase: “Você é um craque na vida ou sua
vida é um crack?” Por meio do trocadilho, fica a noção de
que ou esta figura abstrata do jovem se engaja em modos

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controlados por outrem de construção de sua subjetividade,
ou a ruína e a morte violenta é o que o espera na próxima
esquina. Mas o que seria, afinal, ser craque na vida? Entre
ser craque e ser cracudo – eis a mensagem subliminar – não
haveria meio termo? Quem não conseguir ser um craque
(nos esportes, nas artes, ou mesmo nos estudos), quem for
um jovem mediano, se transformará em bandido? Em coi-
tado? Em cracudo?
Não quero afirmar que não existe relevância na proble-
mática do crack em específico ou a do abuso das drogas em
geral, e sim problematizar algumas formas naturalizadas de
descrever e interpretar essas questões tão contemporâneas.
Para isso, nosso foco não pode estar voltado apenas para as
formas problemáticas (ou extremamente problemáticas),
que certamente existem, de uso de substâncias psicoativas
(lícitas ou ilícitas), e sim para os agenciamentos institucio-
nais e pessoais, formais e informais, que regulam as formas
de sociabilidade vigentes nesses complexos universos. Foi
isso o que busquei em minha interlocução com Toro, Pan-
cho, Piu-Piu e Papa-Léguas. E também com Jerry. Como
propõe Vargas (2006, p. 10):

[É] preciso levar em conta a ‘onda’ e suas alter-ações, é preciso


também não perder de vista que, como ações de outrem, aquelas
produzidas sob o modo de auto-abandono são, por definição, sur-
preendentes ou imprevisíveis. Levando isso em conta, o proble-
ma das drogas fica assim reconfigurado: a questão decisiva não é
mais a do controle, ou a da emancipação, mas a da qualidade das
misturas ou das composições. Em outros termos, não se trata de
nos livrarmos das drogas, tampouco de nos livrarmos a elas, mas
de saber qualificar os modos de vida (e de morte) que com elas se
agencia. Para isso, no entanto, é preciso ainda realizar outro movi-
mento e reconhecer que não há apenas um modo de viver a vida
(ou de experimentar a morte) e que, entre outros modos possíveis
de atualizá-la (modos estes que não envolvem os mesmos riscos,
nem realizam os mesmos eventos), uns preferem fazer da vida
uma experiência que deve durar em extensão (mesmo que para
isso seja preciso mobilizar uma série de drogas), enquanto outros
consideram que vale mais a pena viver a vida intensamente (mes-
mo que para isso seja necessário mobilizar outra série de drogas,
ou então as mesmas drogas, mas de outras maneiras).

Marcos Veríssimo DILEMAS - Vol. 8 - no 2 - ABR/MAI/JUN 2015 - pp. 303-327 321


Entre viver intensamente e pouco ou uma longa vida
controlada, dos interlocutores que conheci nessa investiga-
ção, quanto mais facilmente associados à imagem do cra-
cudo, mais parecem preferir a primeira alternativa. Aquele
a quem se chama em geral dessa maneira é ansioso. Jerry,
que fuma crack todo dia, é, como vimos, pedreiro (no caso,
“dono” da obra e chefe de Papa-Léguas), está, como tam-
bém já vimos, sempre com a roupa surrada. Para se diferen-
ciar das imagens de consumidores problemáticos de drogas
que jazem para além das fronteiras do humano em uma
cosmologia que faz sentido para muita gente, usa de várias
estratégias comportamentais e discursivas. Uma delas, por
exemplo, é nunca se mostrar ansioso. Sua “tranquilidade”
parece ser minuciosamente ensaiada. Outra é alardear que
tem duas esposas e sustenta duas casas.
No episódio em que Papa-Léguas passa a noite inteira
fumando sua grande pedra de crack, Jerry levou para casa
sua pedra do mesmo tamanho. E só terminou de consumi-
-la cerca de uma semana depois, mesmo fumando todos os
dias. Piu-Piu, por sua vez, me disse que encontrou a paz (li-
vrando-se da “ansiedade cracuda”) na igreja – segundo suas
próprias palavras, “nos braços do Senhor” – e no trabalho
missionário nos coletivos, fervorosamente executado.
A antropóloga argentina Maria Epele, em seu interes-
sante estudo sobre o consumo de paco no conurbano bonai-
rense, publicado em livro intitulado Sujetar por la herida:
Una etnografía sobre drogas, pobreza y salud, soube inter-
pretar com maestria os dilemas identitários vivenciados por
esses consumidores desse outro subproduto da cocaína, em
grande medida análogo ao crack. O consumidor de paco
(nome que vem de pasta-base de cocaína, pa-co), o paquero,
é aquele que não consegue mais tornar verossímil perante os
outros a sua condição de pessoa digna e independente – ou
mesmo normal (EPELE, 2010).
Diferentemente do que ocorria com o antigo consumidor
de cocaína, o consumidor de paco que perambula nas ruas do
conurbano não consegue (em grande parte dos casos, nem
mesmo tenta) dissimular essa condição. Além disso, as lógi-
cas econômicas envolvidas na venda e consumo do produto
acabam desencadeando grandes e pequenos roubos e furtos.
Segundo a autora, a frequente troca dessa droga pelos tênis

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usados pelo consumidor fissurado no momento, além de
deixá-lo descalço nas frias noites argentinas é também pro-
dutora do que a autora denomina efeito tienda – uma vez que
os calçados trocados vão se acumulando na casa do transa10
que os aceita como moeda de troca, e posteriormente ficam
dispostos, à venda, como uma tienda (unidades de comércio
conhecidas no Rio de Janeiro como brechó).

Estar desprotegido, desalinhado e entregar esporadicamente roupa


(roubada ou própria) por drogas, também fazia parte dos cenários e
do folclore da cocaína. No entanto, essa prática era mais ocasional e,
em alguma medida, excepcional. Estava longe de produzir o “efeito
tenda” que o transar PB/paco inaugurou (EPELE, 2010, p. 132).

Assim, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro ou no


conurbano bonaerense, o cracudo ou o paquero é aquele que
se deixa ver fissurado, sujo, pedindo. É ficar alheio, colocando-
-se fora do universo de regulações e autorregulações às quais a
maioria das pessoas adere. Regulações e autorregulações que lhe
permitiriam, quando fosse preciso, dichavar – que na linguagem
corrente dos consumidores de droga no Rio de Janeiro significa
dissimular, disfarçar com sucesso o seu consumo ilegal. Ou seja,
o que Toro consegue fazer, aparentemente sem muito esforço,
enquanto afirma que pretende “ir dando um tempo” (deixar de
consumir o crack), coisa que Pancho já tinha feito por comple-
to, derrubando, com seu exemplo, a crença difundida no senso
comum, segundo a qual basta uma tragada (ou melhor, bafada)
para que o sujeito caia de vez na triste sina do cracudo.
Pois quem são, afinal, os cracudos? Das trajetórias pes-
soais aqui apresentadas, aquela em que melhor podemos
procurar e encontrar a encarnação da fantasmagoria social
comumente relacionada aos usos do crack é a de Papa-Lé-
guas, aquele que mais visceralmente parece ter aderido ao
consumo desse subproduto da cocaína em um determina-
do momento de sua vida. Mas, por outro lado, não seriam
diretamente os níveis de consumo que explicariam como
alguém adere a esses rótulos ou consegue deles se desvenci-
lhar. Todo dilema parece estar na possibilidade de agencia-
10 “Transa” é o nome pelo
mento de tais controles por parte dos indivíduos que ade- qual é conhecido, no con-
rem ao consumo dessa substância especialmente marcada texto argentino, o sujeito en-
carregado de comercializar
no imaginário social contemporâneo. drogas postas na ilicitude.

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Tornar-se cracudo implica a partilha de códigos, con-
dutas, práticas corporais, em territórios de uso bastante es-
pecíficos – e, logo, a participação em uma trama social ainda
mais ampla que mescla uso, tráfico, ações de assistência e
repressão (RUI, 2013). Nesse sentido, não parece aleatório
que os mais “controlados” são também os que estão rela-
tivamente afastados dessas interações, aqueles que obtêm
sucesso em indicar e praticar os limites desse controle com
alguma verossimilhança, a exemplo de Jerry. Portanto, ser
ou não ser chamado de cracudo parece não remeter somen-
te a uma prática corporal ou a um modo de uso, mas a toda
uma dinâmica social e espacial, que, uma vez transformada
em abstração, em fantasmagoria, ressurge sob a forma de
xingamento ou antimodelo.
Apresentar ao leitor diferentes formas sob as quais
indivíduos distintos se aproximam e/ou se afastam de tais
abstrações, não raro transpassando de um lado a outro as
fronteiras das representações do humano e do não humano,
foi aqui uma tentativa de subsidiar futuros trabalhos acadê-
micos e intervenções políticas mais qualificadas disso que
se coloca contemporaneamente como um “problema social”
de monta. Espero ter conseguido concluir esse objetivo.

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RESUMEN: El propósito del artículo ¿Quiénes son MARCOS VERISSIMO (marcusverissimus@yahoo.


los ‘cracudos’? Notas para el estudio antropo- com.br) é pesquisador associado do Instituto Nacional
lógico de un ‘Problema social’ es contribuir al de Estudos Comparados em Administração de Confli-
conocimiento sobre el consumo de crack en Río de tos (INCT-InEAC). É doutor e mestre pelo Programa de
Janeiro. Para ello, partimos de la siguiente cuestión: Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universi-
“¿Quiénes son los “cracudos”?” Esta categoría designa dade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil). Tem es-
al miembro de la clase inicialmente correspondiente pecialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal
a los usuarios de crack, pero ganó contornos semán- e Segurança Pública pela UFF e graduação em ciências
ticos más generales. Con el punto de partida en estas sociais pela mesma universidade.
representaciones, intento compararlas con los rela-
tos y trayectorias de algunos de los usuarios de esta
droga con los cuales establecí una interlocución.
Espero así aportar para los estudios encaminados a
la comprensión de consumos y sociabilidades con-
siderados como “problema social” en los principales
centros urbanos de Brasil y sus periferias.
Palabras clave: problemas sociales, drogas, crack,
consumidores de crack, cracudo

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