Fichário
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FICHÁRIO
DISCIPLINA AUTOR
ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE ANNE CAUQUELIN (1934-)
OBRA
CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
interrogando-se em seguida para saber se a crítica de arte seguidas, obtém-se o que será qualificado como obra de
é ou não é estética, assim como a história da arte. 14 arte, ou, ainda, estabelecer princípios segundo os quais um
julgamento adequado será realizado a respeito da arte e do
3. UMA DEFINIÇÃO PRAGMÁTICA belo, ou, finalmente, estabelecer limites à atividade artística
assinalando o que ela não deverá tornar-se. Esse gênero
[Teorias da arte: contempla todas as teorias] de fundação, que decorre do discurso injuntivo, é ilustrado
Desse modo, poderíamos tomar as teorias da arte bem tanto por Aristóteles quanto por Kant e Adorno. Nós o
formadas – aparentadas como as teorias científicas pelo denominaremos Teorias Injuntivas. 18
fato de precederem de um sistema – apenas como uma
parte de uma atividade teórica muito mais ampla. Esse 2. ACOMPANHAMENTO
ponto de vista permite abrir o campo a discursos de
gêneros diferentes, como o dos críticos de arte, dos [Teorias Secundárias e Práticas Teorizadas]
historiadores da arte, dos semióticos, dos fenomenólogos, Indispensáveis, as fundações estariam, contudo, fadadas
dos psicanalistas, dos próprios artistas, que com ao esquecimento se as obras que produziram não tivessem
frequência teorizam suas práticas. 15 sido continuamente seguidas, acompanhadas,
comentadas por autores da mesma forma indispensáveis.
[Definição de teoria Anne Cauquellin] [...] Linguística, semiologia, psicanálise, hermenêutica,
Em vista disso, nosso caminho será na direção de uma fenomenologia, história vêm trazer sua contribuição
definição da teoria ou do teórico da arte como atividade que teórica, mantendo assim um movimento incessante do
constrói, transforma ou modela o campo da arte. 16 pensamento em torno da arte. Trata-se das Teorias
[...] Se em geral a relação da teoria com a prática Secundárias, que modelam a própria prática.
justifica sua existência, é justo essa relação que, em um Respondendo a esse apelo, e com frequência ao
domínio como o da arte, enfatiza o valor de uma teoria. 16 precedente, os artistas se dedicam também ao exercício de
uma Prática Teorizada, nutrida com comentários oriundos
[Teoria da arte: qualquer discurso com efeito prático] de todos esses horizontes. 18-19
Ao propor que se entenda por ‘teoria da arte’ qualquer
discurso cujos efeitos sobre o domínio artístico podem ser [A importância das teorias]
notados, estaremos abrindo à teoria um alcance mais vasto E, portanto, longe de considerar que as teorias sejam
do que aquele que em geral é consignado. 16 ‘adendos’ que podem muito bem ser dispensados, inúteis
conversa na maioria das vezes obscuras, parece que elas
[Teoria da arte: tipologias] são, ao contrário, o meio indispensável para a vida das
[...] E, se aceitarmos essa definição absolutamente obras, dentro do qual a arte se desenvolve e se consuma,
pragmática (as teorias julgadas de acordo com seus bem como sua respiração, fora do qual a arte
efeitos), ela nos conduzir então a caracterizar – a simplesmente sufocaria. 21
‘tipologizar’ – um leque de ações possíveis, e de fato
levadas a cabo, no que diz respeito à constituição e depois [Obra sem teoria não existe]
à manutenção ou à transformação do sítio da arte, de seus A obra ‘em si’ não existe realmente; ela se diz ‘obra’ por
princípios, até mesmo de suas regras. Em suma, ela nos meio e com a condição de ser posta em determinada forma,
conduziria a analisar tipos de ação, em vez de avaliar o de ser posta ‘em sítio’. Fora do sítio, que a teoria construiu
conteúdo conceitual das especulações. A partir de um e que as teorizações mantêm vivo, ela não é nada. 21
inventário de ações possíveis, poderíamos então
determinar um lugar para cada teoria, bem como para cada [Contradição: sítio, obra e arte contemporânea]
tentativa de teorização. 16-17 4. Poderíamos opor a esse ponto de vista o caso da arte
contemporânea, que parece de fato errar ‘fora de sítio’, e
II TIPOLOGIA DE AÇÕES POSSÍVEIS por isso permanecer sem critérios, dando a impressão de
assim escapar a qualquer julgamento ‘equilibrado’... Mas é
1. FUNDAÇÃO justamente essa luta entre um sítio que se tornou muito
estreito e a atividade artística que permite a transformação
[Teorias de Fundação (Ambientais): servem de plano do antigo sítio ou a construção de um novo sítio. [...] 21
de fundo, oferece a base para próximas teorias
(Platão)] PRIMEIRA PARTE
[...] Bem longe de alcançar ou mesmo de objetivar esses
resultados, um filósofo como Platão menciona a arte AS TEORIAS DE FUNDAÇÃO
apenas episodicamente, semeando por assim dizer grãos
de teoria, de ideias, ou, melhor diríamos, de tonalidades, [O nascimento da Estética no século XVIII]
uma ambiência na qual a arte e seu conceito – o belo – vão Quando se atribui ao século XVIII o nascimento da estética
se encontrar envolvidos. A ideia platônica do belo e a dar como ciência da arte e da arte propriamente dita
forma desde então um horizonte teórico mais do que uma considerada como autônoma em meio aos outros tipos de
teoria propriamente dita. Essa espécie de ação fundadora, atividade, está se enfatizando uma realidade ‘moderna’,
nós poderíamos chamar de Ambiental e assim incluir em resgatando o domínio artístico da indistinção que até então
seu ativo algumas teorias, ambientais também, que terão a tinha sido seu destino, enfatizando uma espécie de
mesma função. 17-18 objetivação dos discursos e das práticas, e o nascimento,
em suma, de um estatuto específico. Mas, ao se fazer isso,
[Teorias Injuntivas: teorizam mais sobre os esquece-se que o ‘nascimento’ não é unicamente um ato
julgamentos do que é arte, sobre seus métodos e de registro; ele vem de longe, foi preparado, concebido,
critérios (Kant, Adorno)] dispunha já de todos os elementos, decerto ainda pouco
Outra ação de fundação, mais concreta, é a que consiste sólidos, que constituem seu fundo genético, antes de se
em estabelecer regras de ações tais que, uma vez apresentar em cena. 23
[A Ideia (Uno) existe no mundo e o ilumina com a sua por si própria, mas somente na qualidade de elo
beleza] intermediário tornado necessário devido à estrutura do
Com efeito, as representações interiores do artista passam conjunto. 37-38
a se confundir com os princípios originários da natureza.
Para Plotino, o espírito engendra as ideias a partir dele, e 2. PERIODIZAÇÃO E FINALIDADE
por uma espécie de prodigalidade as espalha pelo mundo
da espacialidade: o universo é uma obra de beleza, no qual [Os períodos da arte segundo Hegel]
resplandece a Ideia. 34 Hegel se dedicava, assim, a uma análise bastante
detalhada desses ‘momentos da arte’ apresentados pelos
[O Artista faz surgir no mundo a imagem do Divino períodos históricos e os distribui ao longo de uma linha
(Uno ou Deus)] contínua desde a pré-história (ou quase) até o limite
Para Plotino, mas também para santo Agostinho e santo previsto para seu desaparecimento. Do Egito ao século
Tomás, o belo se torna a forma ideal, manifesta na arte, e, XIX, passando pela Índia, Grécia, Holanda, Itália, França,
presente no espírito do artista que tenta lhe dar um corpo, a tal percurso correspondem também diferentes artes:
contribui para a elevação do espírito – argumento para a arquitetura, escultura, pintura, música, poesia, numa
existência de um Deus ele mesmo artista. A esfera da cadeia coincidente. 38
metafísica passa a cercar as obras de arte, que nela se
desenvolvem e nela encontram sua definição 34 [Surgimento e morte de cada período]
Nascimento e morte de cada um desses gêneros,
4. A DISSEMINAÇÃO AMBIENTAL correspondentes a um período histórico, produzem-se e
reproduzem-se sem que tenham sido causados por uma
[Platão, o belo e a arte] atividade específica dos sujeitos (os artistas), mas porque
A teoria de Platão é ambiental, no sentido de ter se nascimentos e mortes são ensejados pela determinação
disseminado em direção à arte pelo viés de uma reflexão, superior que rege a história (a da arte assim como a do
não sobre a arte, mas sobre o belo. 35 mundo): o espírito. 39
unidade do único sujeito que tem valor, aquele que fez todo teórico, o que teria sido separado, pois Apolo é também o
o trabalho: sujeito universal absoluto. 40 deus do raio, e Dionísio é o mestre dos ritos bem
orquestrados: a dupla figura é única. 46-47
3. UMA TEORIA DO SINTOMA
1. O COMEÇO ABSOLUTO
[Hegel e a renovação do platonismo/Arte como sintoma
do Absoluto] 2. A APARIÇÃO DA APARÊNCIA
No que diz respeito a Hegel, sua Estética age duplamente
sobre o domínio da arte: por um lado renova e sustenta as 3. UMA METAFÍSICA SEM METAFÍSICA
Ideias de Platão e do neoplatonismo por outro, propõe uma
visão sintomática das manifestações da arte ao fazer delas [Metafísica do Artista]
fenômenos (aparições sucessivas e efêmeras, Arte é, pois, conhecimento, mas conhecimento de outro
fantasmagóricas) ligados à história e que tornam visível tipo, muito mais antigo do que o saber do qual a arte se
seu sentido. Cada período da arte com suas produções desvia. Muito mais amplo também, e que envolve
singulares é então visto como sintoma da vida contínua, antecipadamente o esclarecimento metafísico; o ser (muito
obstinada, do espírito que, expressando-se por meio delas, embora esse vocábulo não convenha verdadeiramente
indica o estado de seu próprio desenvolvimento. 41 aqui) só pode ser captado pela atividade metafísica da arte.
Por uma metafísica do artista. É ela que ilumina a realidade
III. O HALO ROMÂNTICO do mundo, de modo que o mundo não é o ponto de partida
de uma representação pela arte, que o imitaria ou o
[A Teoria Ambiental Romântica] copiaria (como era o caso de Platão), mas sim o ponto de
Dentre essas teorias de fundação ambienta, cuja ação chegada, o que se tornou possível, o que aparece por
difusa é ainda maior pelo fato de a teoria original ter sido intermédio da arte. Esse ser no mundo, não é, pois, distinto
mal compreendida ou traída, é preciso incluir a teoria da daquilo que o artista fez aparecer. Como não há nenhuma
arte do romantismo alemão. O termo ‘romântico’ cobre, no separação entre Dionísio e Apolo, também não há
uso corrente, uma diversidade de traços díspares que nenhuma separação entre a aparência e um pretenso
representam – ao serem aplicados ao acaso – certas além. 49
propriedades que os idealistas atribuem à arte. Uma figura
do romantismo – personagem, comportamento e obra – [A separação]
forja-se assim, incluindo o gênio, o sublime, a teatralização A única separação é a que foi catastroficamente
da arte como ópera total – todas as artes e todas as introduzida pela chegada do homem teórico. Pois o que o
ciências fazem parte da obra derradeira do espírito, que teórico realiza, por intermédio do conceito, é a separação,
muda a face da ciência e a converte em poesia. A arte a colocação do imediato a distância o conceito é cinza, sem
acima da vida o artista diferente dos outros homens; a cor e sem sabor, ele é isolado, pobre; apesar de todos os
natureza, poder absoluto, falando por sua voz e se esforços, o ser lhe escapa, e a metafísica tradicional está
revelando em sua obra. [...] 42-43 justamente aí para designar o que, em vista disso, lhe
escapa. 49-50
IV. A ARTE COMO VIDA: NIETZSCHE,
4. A TRADIÇÃO VOA EM PEDAÇOS
SCHOPENHAUER
[A Dinamite Nietzscheana]
[Crítica a Sócrates e origem da arte] As oposições tradicionais da filosofia ocidental – ser e
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche, como vimos, aparência, ser e tempo, corpo e alma, ciência e arte, ideia
destina à filosofia socrática o papel de guinada teórica. e imitação, forma e matéria, sabedoria e loucura, senso e
Essa guinada é para ele uma completa catástrofe, o não-senso, verdade e erro, bem e mal – são abaladas pela
esquecimento da origem, a relegação do que é a essência visão nietzscheana. É pouco dizer que ele toma um
da arte, sua separação da vida, o desconhecimento de sua contrapé, na verdade ele faz voar em pedaços essas
originalidade (entendida no sentido claro de originário: o próprias oposições: é a forma da filosofia tradicional, seu
que nasce e não termina de nascer). 46 método dialético, a dianóia, que é atingida e em parte
destruída (em parte apenas, pois Nietzsche não pode se
[A origem da arte é a origem da vida] manter por muito tempo na linguagem poética, precisando
Mas essa ‘origem’ é a própria vida em sua potência de também, apesar de tudo, ’discutir’ encadear raciocínios. E
surgimento, pouco preocupada em encontrar uma forma de com frequência se vê submetido ao que quer combater). 50
se expressar (como se a potência fosse distinta de sua
manifestação e de um tempo de reflexão devesse se 5. NA PAISAGEM DE SCHOPENHAUER
interpor entre fundo e forma), e para a qual tudo está ligado
à embriaguez de seu desenvolvimento. 46 [A influência de Schopenhauer em Nietzsche]
Como acontece na maior parte do tempo com as fundações
[Apolo e Dionísio] ambientais, o que elas disseminam na paisagem é não
[...] A figura de Dionísio, seu delírio, sua loucura mística, é somente sua própria visão do mundo, mas as visões que
a própria irrupção da vida, o nascimento do mundo como
lhe serviram de fonte, nas quais elas se inspiram,
tragédia. A essa sombria violência, a esse sol negro, cruel, quaisquer que tenham sido as transformações que lhe
a figura de Apolo traz a outra vertente mística: o sonho, que fizeram sofrer em seguida. Assim, a estética de
tinge de doçura a paisagem dionisíaca. Ele põe em música Schopenhauer está presente como um pano de fundo na
o que é grito e furor, torna audíveis as palavras proféticas visão nietzschiana, e, por esse viés, ela está também
e visível o que não se pode olhar. A tragédia antiga é a presente de algum modo no domínio da arte. 51
mesma, a fusão da dupla aparição da embriaguez da vida
e da vida como sonho: a arte. Fusão íntima que não
esconde um em favor do outro nem reúne, com um artifício
[Filosofia para uma arte Vitalista: Querer-Viver] por sua vez, é presença, produção, e exige que sejam
A admiração de Nietzsche por Schopenhauer é total; por levadas em conta as condições de sua existência. 53-54
um lado, devido a sua crítica virulenta contra Hegel, seu
inimigo declarado; por outro, pelo princípio essencial de O CAPÍTULO 2
mundo como vontade e representação, o do querer-viver.
51
AS TEORIAS INJUNTIVAS
[Vontade Schopenhauriana]
Quanto à Vontade – princípio da vida universal, cega, [Injunções Ambientais]
única, à qual ninguém escapa a não ser se refugiando no As teorias ambientais traçam uma espécie de paisagem na
Nirvana na negação de um querer-viver primitivo que qual a arte tem seu lugar, mas nem por isso impuseram
regas ao trabalho artístico, inclusive para sua
sujeita o conhecimento aos seus próprios fins –, ela vai ser
encontrada, ou pelo menos seu analogon, na origem compreensão, seu julgamento ou sua percepção. Contudo,
inexcedível do homem trágico nietzschiano. A vontade são as regras, ou seja, os limites, os processos específicos,
shcopenhauriana é o princípio vital, indiferente aos sujeitos isto é, os instrumentos e operações próprios a essas
que sofrem; ela é o mundo que se segue, deixando aos atividades que confere à arte a especificidade e fundam
homens a ilusão de sua liberdade; sua energia atravessa sua identidade. 55
minerais, plantas e animais, se consuma em sua negação.
52 [Definição de teorias Injuntivas]
São outros gêneros de teoria inteiramente diferente que
[Finalidade da Vontade] vão justamente levar em conta esses requisitos, teorias
[...] O conhecimento, a ciência, a inteligência humana são que chamaremos de injuntivas, pois visam a uma prática
apenas objetivações desse querer fundamental, e tudo o que se propõe a explicitar, apresentando de alguma
que elas podem fazer é levantar por um instante o véu da maneira condições ao exercício da arte e dando uma
ilusão do conhecer, sendo, portanto, todas negativas. ordem (nos dois sentidos do termo) à multiplicidade de
Saber que o conhecimento é obtido de um fundo de expressões, de técnicas e de intenções. 55
negatividade, que a sabedoria é aceitação e renúncia ao
[Teorias que orientam a prática artística sem
fantasma de uma liberdade individual, interromper a ilusão
para compreender que a vontade é a essência do mundo, metafísica]
é essa sua tarefa. 52 Estamos deixando, pois, o mundo da metafísica – seja qual
for a maneira como a transcendência tenha sido tratada
[Arte como esquecimento da Vontade] pelas teorias ambientais – para voltar à terra, ao meio das
Assim, justamente por ser a arte uma intuição direta desse obras de arte, do público e das atividades que lhes são
querer-viver, e por ela permitir captá-lo, por assim dizer, indispensáveis para se afirmar como obras. 55-56
nele mesmo mas sem dor, exibindo-o, é ela a grande
consoladora. Pela contemplação da inelutável necessidade I. ARISTÓTELES OU AS REGRAS DA ARTE
do querer, a arte enfraquece sua violência e permite o
esquecimento. 53 [Platão e Aristóteles]
No momento em que Platão desenhava a vasta paisagem
[Leitura de Nietzsche sobre a arte de Schopenhauer/ A do belo, onde, definitivamente, a arte tinha pouco espaço,
Antiguidade Grega] Aristóteles atacava a questão de um modo bem diferente.
Prefigurando o aspecto trágico do conflito entre a E, de fato, ele a atacava de forma concreta, em um terreno
embriaguez e o sonho (entre Apolo e Dionísio), a visão delimitado. À sua maneira, franca, tomando uma situação
schopenhauriana, ao transportar a arte para além da razão existente e tentando dela extrair os princípios de
abstrata ao fazer dela o modo privilegiado de conhecimento funcionamento, os conceitos constitutivos. A Poética situa
da vida, é exatamente a paisagem onde vai se desenvolver a tragédia em meio às outras artes do discurso e
o pensamento trágico da arte. E o longínquo, esse lugar estabelece seus fundamentos teóricos e práticos. 56
originário que, a distância, se irradia sobre a arte presente,
está situado tanto para um quanto para o outro em um 1. UM INSTRUMENTO PARA A AUTONOMIA: A
oriente imaginário: o de Nietzsche na Grécia asiática, o de TAXONOMIA
Schopenhauer na Índia, os Uplanischads servindo de
referência à negação do querer-viver. O veículo da [Classificação dos Gêneros Literários]
embriaguez e do sonho, da energia, assim como da [...] Da mesma maneira que os gêneros e as espécies
renúncia, é a música, que é sua matéria imponderável. 53 biológicas têm seus traços próprios, que podem ser
descritos, os gêneros (genos) e espécies (eidè) literários
CONCLUSÃO têm os seus, que permitem que sejam reconhecidos. O
método de classificação adotado na biologia pode aqui
[Fundações Ambientais] também servir para distinguir dentro do gênero narrativo a
Essas fundações, que chamamos de ambientais: as Ideias espécie ‘tragédia’. Contudo, essa espécie particular é o
e o Ideal, o Espírito e seu advento, a origem e seu retorno, paradigma de todas as outras espécies e, finalmente, o
os modos estéticos de conhecimento, tudo isso delineia próprio gênero, que é o da ficção. 58
uma área, que, por ser construída com elementos díspares,
por vezes totalmente contraditórios, não deixa, ainda [Definição de arte em Aristóteles (Definição de
assim, de formar um conjunto, um meio no qual a arte pode Poiésis)]
se exercer e fora do qual ela não existiria. Mesmo assim, *A arte é, então, ‘uma disposição de produzir (poiésis)
essas fundações não oferecem preceito concreto, acompanhada de regras’. Produzir é “trazer à existência
nenhuma maneira de realizar ‘a obra de arte’, pois, de certa uma das coisas que são suscetíveis de ser ou de não ser
maneira, elas permanecem aquém ou além da obra, que e cujo princípio de existência reside no artista”.* 59
[Autonomia da arte: Kant e Adorno] mesmo tempo ambiental e injuntiva, modelando a atividade
A autonomia da arte se sustenta na distinção (já crítica) de artística para que ela possa corresponder às expectativas
Kant, fazendo do julgamento estético uma esfera de suscitadas. Amalgamando os diferentes pontos de vista a
conhecimento separada das outras espécies de partir dos quais a fundação teórica se constituiu, a vulgata
conhecimento, conceitual e moral. acumula as perspectivas e faz delas um todo, participando
É negando seu pertencimento a esses dois polos ativamente, a partir d e então, da manutenção do sítio da
do pensamento que a arte ganha autonomia. Mesmo arte. 88-89
assim, essa atitude de recuo se vê ainda submetida à
dominação de uma razão extra-estética: a que move as SEGUNDA PARTE
grandes forças dominantes de uma sociedade e se
beneficia mantendo a independência de uma arte
AS TEORIAS DE ACOMPANHAMENTO
universal, que não seria mais atingida pelos conflitos e
mostraria assim a possiblidade de resolvê-los no seio de
uma entidade bem definida, limitada à sua própria esfera. [O que faz uma produção ser obra?]
82-83 O que faz uma produção ser uma obra de arte? Como ela
exerce essa atração, como suscita o consenso, qual
3 O EFEITO ADORNO, A INJUNÇÃO VANGUARDISTA atividade preside sua produção? Quais são seus elos com
as outras atividades humanas e, por fim, como apreender,
[Adorno e a Vanguarda] decifrar o sentido de uma obra? 91
O paradigma adorniano da negatividade em ato na obra de
arte é lido como uma injunção para a arte moderna e, em [Teorizações secundárias]
parte, para a arte contemporânea, que é ter de integrar a De todas as partes, disciplinas já constituídas, carregadas
ação imperativa da vanguarda. A arte é obrigada a ser de teorizações, como que atraídas por esse espaço
crítica – traduzamos: vanguarda –, e esse imperativo se paradoxal, vêm experimentar seus métodos e fazer suas
acrescenta aos já instituídos pelas fundações precedentes. tentativas, com maior ou menor sorte. Elas constituem
E mesmo que, em parte, ela o contradiga. 84 teorizações secundárias, que surgem em seguida para
acompanhar a arte em suas manifestações e propor
explicações, seja para o fenômeno artístico em geral, seja
CONCLUSÃO para esta ou aquela obra ou movimento em particular. 91
A AÇÃO DAS TEORIAS DE FUNDAÇÃO [Subgêneros das teorizações secundárias: teorizações
práticas e práticas teorizadas]
[A aplicação das Teorias da Arte] Movidas também pela preocupação de compreender e de
Até aqui tentamos elaborar um acompanhamento das fazer compreender, existem teorizações práticas que
diversas fundações que presidem o exercício da arte, tanto comentam o trabalho dos artistas – trata-se do domínio da
teórico quanto prático. O que é preciso notar é a constante crítica de arte, bem como das práticas teorizadas: as dos
torcedura a que os teóricos foram submetidos, tanto nos próprios artistas, que frequentemente explicitam seus
comentários que lhes sucederam quando na prática trabalhos e, em suma, os teorizam. 92
artística propriamente dita, que se nutre da ambiência
teórica na qual se desenvolve. A ação teórica existe de fato, [1-Teorizações Práticas Ambientais]
mas não funciona de modo concomitante com os discursos Nas primeiras dessas teorizações, os autores dedicam-se
que a movimentam. Retraduzidas, retocadas, deslocadas, a justificar sua visão filosófica, que coloca a arte em
as teorias da arte jamais estão presentes em seus perspectiva, agindo de maneira global sobre a
aspectos originais. 87 compreensão e – para retomar nossas distinções – de
maneira ambiental. [...] 92
[O caráter Atemporal das teorias das arte]
[...] A Grécia antiga vizinha o século XVIII e o século XX, [2-Teorizações Práticas Injuntivas]
um preceito de Platão vizinha o discurso contemporâneo a [...] Já nas segundas dessas teorizações, reencontramos a
respeito das distinções entre arte e técnica, enquanto a forma injuntiva, por nós já explicitadas para as teorias
contemplação, a meditação e a transcendência penetram propriamente ditas: trata-se com efeito de avaliar as obras
na opinião, que por sua vez também retém o imperativo concretamente, de estabelecer classificações, de esboçar
crítico. 88 qual é o sentido, de tal sorte que o público possa se
localizar dentro do labirinto da arte, orientar-se e ‘ver o que
[A mistura de teorias, ideias e conceitos no mundo da é para ser visto’. 92
arte]
Essa ampla mistura é o meio de vida de que se nutrem os [Definição de Secundária]
movimentos, as doutrinas, assim como as obras, as Essas ações não são, pois, ‘secundárias’ no sentido de
avaliações públicas e os julgamentos privados. Nem o uma menor importância muito ao contrário, elas têm um
princípio de contradição nem o rigor exegético valem aqui, efeito direto sobre nossos julgamentos e sobre o destino
dentro do mundo da arte. 88 das próprias obras. É preciso tomar aqui ‘secundárias’
como ‘aquilo que secunda’, que intervém a posteriori para
[Teorias da arte, rumor teórico e vulgata] uma ação de socorro. 92
[...] É que as teorias fundadoras agem à maneira de um
rumor teórico, que reina incontestável sobre a recepção da
arte, impondo-se de alguma maneira ao público (no qual é
preciso incluir tanto os críticos quando os teóricos da arte)
e condicionando tanto a produção das obras quanto sua
compreensão. Esse rumor, que pode ser chamado de
‘vulgata’, age como as teorias que ele divulga, de forma ao
horizonte temporal que pretende ser global, apesar de sua imagem. A questão será elaborar o mais rigorosamente
recente conversão a um certo localismo. 112-113 possível os códigos de decifração que nos permitam
compreender a língua nas conversações comuns e de
II. EIXO SEMIOLÓGICO transportá-los a outros objetos. Encontrar um sistema de
transformações, de tal maneira que seja possível
[Virada Linguística] transcodificar uma mensagem contando com um suporte
A expressão ‘virada linguística’ serviu bastante, e serve determinado em outro conjunto, é esse o objeto da
ainda, para designar sob o mesmo rótulo movimentos pesquisa da semiótica geral. 116
bastante diversos. Desse modo, vimos aparecer o método
hermenêutico de Schleiermacher como uma mudança no 2. UMA LÓGICA DO SIGNO
estudo interpretativo dos textos, vimos a hermenêutica
mais recente se interessar pela estrutura da linguagem, [A lógica da arte]
pelo papel do diálogo, pela palavra viva, assim como pelos Deliberadamente antimetafísicas (os enunciados da
topos - e em especial pela metáfora. [...] Tudo isso faz metafísica são símiles-enunciados, desprovidos de sentido
pensar que a reflexão linguística – no sentido amplo – é a se os passarmos pelo crivo da análise lógica), as análises
preocupação dominante de todas as teorias, tanto das que que acabamos de citar requerem o apoio do retorno ao
tratam das obras de arte quanto das que têm por objeto o rigor, à elucidação da linguagem, seguido os preceitos do
comportamento humano. 113 Círculo de Viena, iniciado por especialistas em lógica, cuja
figura principal é Ludwig Wittgenstein, no que diz respeito
1. A TENTAÇÃO SEMIOLÓGICA ao assunto de que estamos tratando. 118
[A lógica determina a distinção artística do objeto] prova cabal de que nenhuma lógica pode romper
É, portanto, em termos de propriedades lógicas (e não de duradouramente a fortaleza estética é que a proposição
propriedades perceptivas) que as obras de arte serão vem do próprio fundo da argumentação lógico-pragmática.
distinguidas das outras obras que não seriam artísticas. E de seu mais prestigioso defensor. A mística é essa esfera
Essas propriedades se manifestam em torno da função do inefável, do indizível, que é a da ética e da estética: ela
simbólica cuja exemplificação é fornecida pela obra. Essas compreende o mundo todo, o próprio mundo, cuja unidade
duas propriedades – simbolização e exemplificação – são não pode ser captada sob a forma dessas proposições
suficientes para identificar uma obra como sendo de arte. fragmentadas da linguagem, seja qual for o esforço feito
(A exemplificação é a interpretação metafórica de uma pela gramática para coloca-las juntas. O inefável da arte
qualidade expressiva pertencente à obra; o trabalho limita, pois, a arte da linguagem, que não é exercida a não
conceitual que realizamos para fazer a distinção entre uma ser com a condição de sua própria negação... E descobrir,
obra que é e outra que não é consiste em apresentar à vista de maneira triunfal, no Wittgenstein lógico, um
a simbolização e coloca-la se exemplificando na obra. 121- Wittgenstein místico ou mesmo teológico. 124-125
122
[Uma realidade que não pode ser captada pela lógica]
[A arte na linguagem] Outra interpretação que permanece mais perto dos ‘fatos’
A teorização – que, com a voga da filosofia analítica, tende (fatos que se constituem em quadro para a lógica) acabaria
a ocupar o terreno teórico atual – recusa-se a colocar a por nos mostrar que, se algo deve ser calado – a unidade
questão da arte em termos de ‘O que é arte?’ do mundo ou o mundo como unidade –, é pela
(essencialismo) ou ‘Qual o valor de tal obra?’ (empirismo), impossibilidade de colocação de uma proposição dizendo
ou ainda ‘Qual é o significado da palavra arte?” o que é, e ao mesmo tempo o que ela é. Existe aí uma
(semantismo), mas pergunta: ‘O que faz a arte na limitação interna ligada ao próprio fato de falar, o que deixa
linguagem? Qual é seu emprego efetivo? Qual é o fora do campo da palavra um mundo que se mostra e que
funcionamento efetivo desse conceito?’. 122 se expressa como inexprimível. 123
produzidos no palco da arte, conjuntamente. Um carrega o desempenhando assim o papel de acompanhamento que
outro, e vice-versa. 129 sempre foi reivindicado pela crítica. 132-133
dará lugar à biografia do artista, à classificação de suas 2. O MODELO DO PARADOXO CRÍTICO: DIDEROT
obras neste ou naquele movimento, às explicações dos
litígios entre o artista e suas galerias, seus marchands, ou [Origem da Crítica Moderna]
a sociedade em seu conjunto. 135 O exercício e, podemos dizer o ofício de crítico surgem,
com o papel e a postura que lhe são atribuídos hoje em dia,
1. PARA NOVO OBJETO NOVA CRÍTICA? somente na época em que a Estética foi constituída e que,
paralelamente, a arte e o artista adquiriram um estatuto
[Crítica de Arte para produção Virtual tecnológica] senão autônomo, pelo menos reconhecido como situado à
Mas há ainda um local mais secreto, onde a descrição do parte das outras atividades sociais, ou seja, na metade e
crítico, mesmo que a ele se dedique, fracassa de modo no final do século XVIII, para florescer e tomar vulto no
estrondoso: esse local é o da arte tecnológica século XIX. 141
contemporânea. É preciso ter em mente, com efeito, que o
crítico, ao textualizar uma obra, faz dela de alguma maneira [Profissionalização da Crítica e Diderot]
uma prática, assume ou imita a técnica do artista, torna-se [...] Os primeiros passos na via da crítica moderna estão
seu clínico. Ele conhece sua linguagem, os instrumentos, ainda ligados ao exercício da literatura: escritores e
os métodos – diz-se com frequências, maldosamente, que filósofos a ela se dedicam, assim como seus confrades,
o crítico é um artista frustrado, mas também sem jornalistas, poetas ou gente do teatro. E, uma vez que toda
conhecimentos sobre o ofício e, sendo assim, incapaz de arte tem seu começo atribuído a alguém, concordou-se em
descrever ou fazer um julgamento. Mas os objetos designar Denis Diderot o primeiro dos críticos de arte
artísticos produzidos pelas novas tecnologias são modernos. Essa escolha de Diderot como instaurador da
impenetráveis à crítica na medida em que obedecem a crítica é interessante por si mesma, pois mostra bem o que
regras de produção ainda desprovidas de valor legal até o esteticistas, artistas e público esperam da crítica: uma
momento na esfera da arte. 136 reflexão sobre a arte tanto quanto um julgamento de gosto,
o estabelecimento de uma relação entre a atividade
[Mudanças do Moderno ao Contemporâneo] artística – sobre a qual não se sabe suficientemente o que
[...] O catálogo de exposição que avaliava generosamente abarca – e o mundo tal como ele segue normalmente, a
a história privada da vida do artista, o resumo elogioso das apresentação menos de uma obra do que de uma maneira
obras expostas e a elegante moral extraída do conjunto, de se comportar, uma ligação de coisas e de costumes. Em
tudo isso precisa agora ser concebido de outra maneira pra suma, espera-se uma espécie de teoria prática a partir de
as ‘tecnoimagens’. A vida do autor é substituída pela um objeto concreto, exposto à vista de todos. 142
composição de uma equipe; as intenções e as escolhas do
artista dão lugar ao projeto devidamente atualizado de [Os Salões de arte e os critérios das obras]
utilizar este ou aquele equipamento ou suporte. 138 A instituição do ‘salão’, exposição oficial realizada a cada
dois anos (exceto algumas interrupções) desde 1667 e cuja
[Crítico Curador] entrada é gratuita, torna públicas as obras, subtraindo-as
Talvez, aliás, como pensa e pratica J. L. Boissier, o ‘novo por assim dizer da contemplação privada dos únicos
crítico’ venha a ser o curador de exposição, o que escolhe, proprietários afortunados, mas coloca-as também à prova
seleciona sustenta, orienta a produção a partir das vias que de um julgamento moral: elas não devem nem chocar o
lhes parecem fecundas. As quatro edições de Artifices, bom gosto, nem ferir o bom senso, que é, como se sabe, o
nesse sentido, já fazem parte de uma nova crítica, cuja senso moral, mas, ao contrário, deve servir às luzes da
dimensão mostram na medida em que designam, razão e guiar as consciências ao bom caminho. O que os
sustentam e colocam à disposição do público obras censores da Academia Real fazem, no início da operação,
tecnológicas. E, no caso, menos como exposição de para discriminar as obras que serão apresentadas e as que
artistas singulares do que como demonstração do que serão recusadas o crítico repete na outra ponta da cadeia,
pode a arte tecnológica em seus diversos aspectos: redes comentando e escolhendo ele também dentre o que está
(Internet), imagens sintetizadas, virtualidade e hipermídias. exposto. 142-143
139-140
[Endereçamento ao Público]
[A crítica de arte se submete a visões filosóficas de Essas obras, pois, precisam ser devidamente esclarecidas
mundo] pelo filósofo e endereçadas ao público. Esses
Mas, antes que esse papel, essa definição, esse lugar no endereçamentos, que algumas vezes adquire ares de
circuito de produção de arte sejam reconhecidos, aceitos e regeneração, é a maneira de agir da crítica. É assim que
sobretudo experimentados, uma crítica positiva das novas Diderot vê seu papel (que é de ver e fazer ver) ao mesmo
tecnologias, mesmo que muito parca, faz-se sobretudo tempo que ele vive. Entre o ver e o viver, a relação deve
recorrendo às grandes visões do mundo, à ideologia do ser equilibrada, e é quanto a esse equilíbrio que os Salons,
progresso, da democracia e da técnica, na qualidade de o Traité du beau, o Ensaios sobre a pintura amoldam-se ao
ajuda à universalidade do saber (e do conhecimento de leitor-espectador. 143
arte). Ela permanece bastante longe das próprias coisas.
Seus autores são teóricos ‘generalistas’, filósofos ou [Crítica Descritiva e Moralista]
símile-aparentados, cujas reflexões são solicitadas para É assim, pois, que toda crítica deve ser descrição, mas
preencher o vazio teórico da crítica de arte no que concerte descrição moralizada, ou seja, teorizada, e poderíamos
à arte contemporânea. Eles expressam então seus pontos precisar: endereçada. Essa característica muito
de vista sobre a evolução do mundo, mais do que sua ‘diderotista’, que tem duplo ou triplo ‘endereço’, é o elo
própria ligação com a realidade da arte contemporânea. entre a obra e seu espectador, e o espectador-crítico de
140-141. arte e seu público. De fato, a obra ‘é endereçada’ de tal
maneira ao crítico que ele se deixa absorver por ela (é o
sinal de que o endereçamento da obra alcançou seu
objetivo); e essa absorção que o crítico descreve aos
leitores deveria absorvê-los por usa vez (o que seria o sinal promotor; depois teoriza a pintura modernista, o que em
de que a crítica alcançou seu objetivo). 144 seu vocábulo significa vanguarda, mas também e
sobretudo retorno à verdadeira essência da pintura, suas
3. FORTÚNIOS E INFORTÚNIOS DO MODELO singularidades, sua identidade: a planeidade. Com efeito –
e este é seu aporte teórico –, Greenberg apregoa a
[Permanência do modelo de Diderot] especificidade de cada arte: a arte em geral deve ser
O modelo Diderot, instaurado, não sofrerá grandes vanguardista, trata-se de uma qualidade geral de toda arte
alterações, mesmo que os termos do paradoxo não sejam que está de acordo consigo mesma, que reconhece e
mais os mesmos – a dupla oposição aprofunda sua relação com sua especificidade. Ninguém
objetividade/subjetividade substituiu a dupla pode negar que a especificidade da pintura, sua mídia (seu
sentimento/razão – e mesmo que os termos debatidos – local próprio), é a bidimensionalidade; assim, ser pintor é
em outras palavras, as hipóteses teóricas em nome das trabalhar o mais perto possível dessa bidimensionalidade,
quais o crítico estabelece suas avaliações – mudem com o reconhece-la, deixa-la expressar-se em toda a sua pureza.
tempo. 145 “(...) a essência do modernismo está relacionada ao uso
dos métodos característicos de uma disciplina com o
[Os críticos de arte modernos] objetivo de criticar essa mesma disciplina”. 148
Ainda que Denis Diderot tivesse realizado a façanha de ser
ao mesmo tempo filósofo, escritor e crítico, dificilmente [As razões do sucesso de Greenberg]
reencontraríamos mais tarde uma constelação como essa. A influência então exercida por ele (que é tido como
A população de críticos será recrutada sobretudo entre os ‘fazedor de reis’) deve-se a diversos fatores: 148
jornalistas, romancistas e poetas. Os escritos estéticos de
Baudelaire, que são textos teóricos, acompanham e [1. Demanda]
sustentam suas críticas pontuais [...]. Pouco a pouto a Nos estados unidos do pós-guerra, mesmo que haja
crítica se torna um ofício, enquanto o crítico é o colecionadores e galerias, o número de críticos de arte é
intermediário entre artista e público, e a imprensa passa a restrito, e seu concurso é muito solicitado, pois os
ser o órgão de transmissão obrigatório. 145-146 movimentos artísticos andam tão depressa que marchands
e colecionadores sentem-se perdidos: falta-lhes um guia
[Disputas: Filósofo x Crítico] que marque com sua chancela (e é frequentemente um
Assim, ao contrário do que ocorre com as teorias nome, uma etiqueta) um certo tipo de procura artística e o
propriamente ditas assinadas com brilho pelos nomes de grupo de artistas que o praticam. 149
filósofos, excetuando-se algumas assinaturas célebres, é
uma multidão de jornalistas e articulistas, de nomes mais [2. Especialização]
ou menos caídos no esquecimento hoje em dia, que faz e 2. O crítico então não é mais apenas um jornalista que
desfaz a cotação dos artistas. Eles lutam em suas fileiras e segue os acontecimentos e escreve artigos na imprensa
orientam definitivamente o trabalho do pintor e o gosto do especializada; ele deve teorizar a prática, mais exatamente
público. É todo um meio a envolver desse modo o trabalho escolher teorizar uma prática, e para isso impor-lhe um
da arte, meio que milita, luta, se dilacera, invctiva e no qual nome? É o caso de Greenberg com o nome de formalistas,
estratégias e artimanhas são lei. [...] 146 dado por ele a ‘seus’ artistas. A prática da crítica, entendida
dessa maneira, tem também, como toda arte, sua
[O fim do modelo de Diderot] especificidade e, na qualidade de disciplina, deve criticar-
Enquanto dura a possibilidade de uma descrição se a si mesma. Permanecer vigente. 149
endereçada, ou seja, moralizada, porque o sujeito a ela se
presta com a figuração, depois com o lento movimento de [3. Criação de Artistas]
abstração que também pode ser descrito, o modelo de Ter ‘seus’ artistas, o que significa, de um lado, patrocinar
Diderot desempenha seu papel: ele mantém o balanço um movimento, ser o primeiro na hierarquia e o inventor,
exato entre subjetividade do crítico (entusiasmo, emoção, de outro promover e colocar seus simpatizantes no cenário
moral do belo) e objetividade (informação precisa, ensaio internacional: o crítico faz seus pintores, o que quer dizer
de classificação, proposições teóricas). Mas esse modelo que faz também seu público, que tem suas revistas, seus
torna-se inutilizável diante da arte contemporânea, pois, de contatos com as galerias etc. Enquanto Castelli, o grande
fato, o crítico não pode manter a posição paradoxal do galerista norte-americano, que também ‘faz’ seus pintores,
modelo Diderot, metade descritivo e racional, metade nem sempre consegue impor suas escolhas, Greenberg,
sentimental e apreciativo. 146-147 por outro lado, trabalhando em um nível superior, cria seus
simpatizantes, ou seja, cria as condições para o sucesso
4. UM CASO DE CRÍTICA MUITO INFLUENTE: de seus pintores. De fato, ele governava o mundo. 149
GREENBERG
[Trabalho teórico de Greenberg]
[Greenberg e o formalismo] Pois o trabalho teórico é dotado de poder particular que é
Outro modelo poderia substituí-lo que fosse mais ser considerado ‘objetivo’, alheio a caprichos, humores e
autoritário, com uma influência mais direta sobre a gostos subjetivos. 150
produção dos artistas e suas reputações, escolhendo não
mais o paradoxo diderotista, mas, sim, um dos ramos do [Crítica e História da Arte]
dilema: o formalismo rigoroso das proposições. 147 Com isso, a crítica remete à história da arte como contexto
indispensável e se coloca ela mesma diretamente, com o
[A obra crítica de Greenberg] movimento que ela envolve e assina, dentro da história, em
O maior crítico do século XX segundo alguns, o deão dos suma, dentro da tradição em marcha. Barbara Rose, que
críticos do pós-guerra na opinião de Rubin, começou por foi no começo discípula de Greenberg, fala da “(...) nova
impor a pintura norte-americana, destronando a Escola de consciência que o crítico tem de seu papel histórico, de seu
Paris, com a action painting, da qual se faz o defensor e
desejo de ser assimilado ao estilo que a história consagrará estão dentro do sítio), mas de que direito se trata? Qual é
como a vanguarda de um período determinado”. 150 o estatuto desses textos? Justificativos, explicativos,
pedagógicos (‘cursos’ professados, como por exemplo os
[Greenberg defende seus artistas] do Bauhaus), tratados (por exemplo, os de Kandinsky) ou
Vê-se com isso a inflexão que o crítico impõe ao trabalho de interesse documental para futuros historiadores da arte
de ‘seus’ artistas e dos que, atraídos por sua importância, (por exemplo, as cartas ou os ‘apontamentos’ de Durer),
tornam-se formalistas para ser defendidos por ele... É da categoria da confissão e da meditação (‘apontamentos’,
nesse sentido que se pode falar dos ‘efeitos reais’ de uma diários) ou promocionais e polêmicos (textos para
prática teorizada como a exercida por Greenberg, teórico, catálogos, manifestos, respostas a entrevistas), o estatuto
no domínio da arte em geral: artistas, bem como galeristas, de textos de artistas é difícil de ser determinado: são eles
marchands, críticos de arte, historiadores e esteticistas. ‘marginais’, pré ou posfácios, ou são parte integrante da
151 obra? São testemunhas verídicas e confiáveis ou
destinam-se a esconder o que parecem revelar? Uma vez
[Crítico e Publicitário de Artista] mais aqui, é no uso que se faz deles que poderíamos nos
Essa estruturação é útil aos críticos que quiserem se tornar basear para achar o fio da meada. 154
‘influentes’ e reconhecidos, mas é negligenciada por
críticos menos exigentes que se contentam em fazer de [Arte Não-Visual: Escrita]
alguma maneira publicidade de artistas. Atitude É de tal maneira tênue que a obra torna-se abstrata, não
evidentemente tida na mais baixa conta por alguém como responde mais aos cânones das teorias fundadoras e
Greenberg, que a trata de jornalística e que, é preciso escapa à interpretação disciplinar e até à investigação dos
confessar, é a atitude mais comum. 151 críticos. A arte contemporânea – sem falar da própria arte
conceitual que se serve dessa ambiguidade para com ela
[Problemas da Crítica Contemporânea] fazer obra – defronta-se com essa necessidade de tornar
Em conclusão, como observamos em relação às visível não o mundo invisível, mas sua própria obra. É ela,
dificuldades de constituição como crítica da nova crítica, a a coisa, que tem necessidade de visibilidade (a
necessidade da teoria se faz sentir agudamente: quando possibilidade de ser vista por um público), e para isso é
não é encontrada onde deveria, quando não há nenhum preciso que seja transportada para o registro do escrito, do
princípio nem critério para avaliar, julgar ou colocar no ‘dito’, e portanto da leitura. 156
lugar, dois fenômenos ocorrem simultaneamente em
relação à crítica? Por um lado, o silêncio e, portanto, a [A escrita passa a ser considerada como parte da obra
desinformação; por outro, um discurso geral de tendências, do artista visual]
que inicia debates de sociedade nos quais – e isso não é [...] O texto do artista adquire um estatuto inteiramente
um acaso – é colocada a questão do sentido ou do não- diferente ou, mais precisamente, o traço que o unia até
sentido da arte, questão sem verdadeira resposta – ou que pouco tempo, de maneira bastante frouxa, à obra reforça-
pode ser solucionada somente como a questão do se, torna-se necessário, passa a fazer parte do dispositivo
movimento: caminhando. 152-153 artístico. Dispositivo que tende cada vez mais a tomar a
forma de um texto-objeto. 157
[Diderot e Greenberg: a impossibilidade de usar esses
modelos na Arte Contemporânea] III. RUMOR TEÓRICO
Os dois modelos, o de Diderot e o de Greenberg, embora
continuem de fato a trabalhar como modelos dentro do [Teoria em torno da Prática e Rumor em torno da
imaginário crítico são, contudo, mal adaptados às Teoria]
exigências de uma crítica contemporânea em processo de Das teorias de fundação às teorias de acompanhamento,
se fazer. O primeiro porque seu ‘endereçamento’ não pode aos escritos de artistas e de críticos, o discurso envolve a
mais ocorrer, seu alvo (o burguês culto) não está mais em prática da arte. Mesmo considerando, como muitos, que
condições de trazer à baila os conhecimentos adquiridos, essa prática seja pura intuição e inspiração, não-conceitual
os que lhe foram úteis e os que ainda são; ou então porque e não-intelectual, a teorização está sempre presente,
a crítica, caso continue sendo feita, aceitando o endereço, teorizando justamente essa ausência voluntária de teoria.
obtém um resultado muito reduzido em relação ao alvo Isso pode parecer um sofisma, como também parece
visando, que é a comunidade, maciçamente. Seu passeio paradoxal o casamento ‘rumor-teoria’... 158
pode, pois, ser atraente e de bom-tom, mas fica
inteiramente à margem do que está acontecendo. O [As teorias e os rumores (senso comum)]
segundo porque a autoridade de que fez prova na Elas erigem-se com efeito sobre um fundo filosófico, um
qualidade de ‘fazedor de reis’ era exercida sobre um misto de platonismo (reproduzir é ruim, pois nos afasta da
pequeno número de pessoas, trabalhando em conexão verdade) e de neoplatonismo (tornar visível o invisível é
cerrada, dentro do mesmo mundo; ora, repetir essa glorificar o Um; o homem completa e aperfeiçoa a natureza
dominação passa a ser improvável diante do número, da de maneira natural. Na qualidade de teoria ambiental,
diversidade e da hibridação ou mestiçagem das práticas vimos essas proposições no início deste trabalho. A elas se
atuais. 153 misturam uma teoria do gênio herdada de Kant e do
romantismo e uma teoria da história, que deveria se
II. UMA PRÁTICA QUE É PENSADA OU ‘ISTO NÃO É UM contrapor mas que na realidade se junta, e a hipótese,
LIVRO’ metafísica, de um mundo invisível que nos cerca e nos
instiga a descobri-lo, mesmo diante do fato de que o
[Caderno de Artista] sublime por definição é indizível e informulável... 159
Desde os ‘cadernos’ de Da Vinci, da correspondência, de
Poussin, do diário de Delacroix, os textos de artistas vêm [Doxa: ouvir dizer]
se tornando numerosos, adquirindo direito de cidadania no [...] Para a filosofia clássica, é o último degrau do
domínio da estética (como as obras de seus autores, eles conhecimento, o conhecimento por “ouvir dizer”. O ponto