Municipalismo Brasil
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Municipalismo no Brasil:
origens, avanços pós-1988 e desafios atuais
Valdemir Pires
Introdução
Embora o projeto político das elites autoritárias da Era Vargas se caracterize por
uma profunda centralização política, administrativa e financeira – e, portanto, con-
trária ao conceito de autonomia que é subjacente ao municipalismo –, ele se baseia
numa concepção plebiscitária (Pitkin, 1967) e corporativa de representação política.
Nessa concepção, o município – matriz básica da sociedade política – está orgânica
e simbioticamente entrelaçado com o poder central. Sem mediações – de instâncias
territoriais ou político-partidárias – que distorçam essa identidade de fins, a articu-
lação entre os dois níveis está assegurada pela centralização, que aproxima e reúne
os dois polos. O município emerge, nessa perspectiva, como uma esfera comunitá-
ria – portanto pré-política – que acomoda apenas a coletividade das famílias e seus
valores ainda não distorcidos pelas instâncias de representarão (MELO, 1993, p. 4).
coincidia com a ideia de cidade, de mundo urbano: Medeiros (1947, p. 95), por
exemplo, atribuiu ao municipalismo a tarefa de se contrapor à “concentração
demográfica em certos centros urbanos”, que acarretaria “sensível desfalque nos
municípios”; Xavier (1948, p 66), reclama: “...o urbanismo, no Brasil, devorou o
país e agora também se acha dominado pela autodestruição”.
A natureza urbana, claramente favorável à modernização governamental e à
gestão do espaço citadino como tarefas do municipalismo, se imporá aos poucos,
às vezes esbarrando, outras sendo impulsionada pela conjuntura política, mas
sempre com importante papel de grupos de técnicos federais (do Departamento
Administrativo do Setor Público – DASP, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, da Comissão Nacional de Assistência Técnica – CNAT e da
Escola Brasileira de Administração Pública – EBAP, esta pertencente à Fundação
Getúlio Vargas – FGV). O foco do municipalismo na provisão de políticas pú-
blicas, tal como hoje entendidas, foi fruto de desenvolvimentos mais recentes.
A criação, em 1952, do Instituto Brasileiro de Administração Municipal –
IBAM, como entidade sem vínculos com o governo, sem fins lucrativos e tam-
pouco com natureza partidária, foi um passo definitivo para consolidar o mu-
nicipalismo em sua vertente técnica engajada na modernização dos governos
municipais e da gestão urbana, sem perder de vista a necessidade de fortalecer
politicamente o elo frágil do federalismo brasileiro. ABM e IBAM, atuando, até
certo ponto, em sintonia, contribuíram para consolidar essa trajetória.
A ABM, todavia, encetou uma espécie de municipalismo que fez escola –
reivindicacionista em relação ao governo federal, deu origem ao frentismo, de
longa vida: “...os municípios, embora melhor dotados a partir das quotas consti-
tucionais de que participam, e apesar de todas as emendas orçamentárias formu-
ladas pelos congressistas nos orçamentos federais, não estão sendo beneficiados no
sentido do desenvolvimento econômico-social” (MARANHÃO, 1960, p. 175),
afirmam suas lideranças. E seu enfoque mantinha forte componente ruralista: “...
apoiavam – embora não de forma explícita – a ideia de um Estado forte, que asse-
gurasse transferências e promovesse a modernidade. Na realidade, o centralismo
burocrático era atacado sobretudo por esvaziar as áreas rurais. Nessa perspectiva,
o conteúdo substantivo do municipalismo é a reversão do abandono das popula-
ções rurais” (MELO, 1993, p. 7).
O IBAM, por seu turno,
2 No ano seguinte, sob a mesma alegação de contenção de despesas, o governo paulista extin-
guiu a FUNDAP – Fundação para o Desenvolvimento Administrativo.
3 De acordo com o artigo 41 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), até o ano de 2006 deve-
riam ter promulgados seus Planos Diretores as cidades I – com mais de vinte mil habitantes;
II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o Poder Público
Municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no §4º do art. 182 da Constituição Fe-
deral; IV – integrantes de área de especial interesse turístico; V – inseridas na área de influên-
cia de empreendimento ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional
ou nacional”.
4 Trata-se de um mecanismo que permite ao governo federal não transferir aos Estados e Muni-
cípios 20% das receitas com todos os tributos federais que compõem os fundos de participa-
ção desses entes. Criada em 1994, com o nome de Fundo Social de Emergência (FSE), essa
desvinculação foi instituída para estabilizar a economia logo após o Plano Real. A denomina-
ção DRU data de 2000.
Para conciliar (...) objetivos a priori antagônicos – ajuste fiscal com ampliação do
gasto social – (...) reformas institucionais impuseram constrangimentos à autonomia
decisória dos governos municipais em nome da coordenação federal sobre a gestão
fiscal e sobre a execução descentralizada das políticas, por meio da imposição de
limites de gastos e do direcionamento de recursos disponíveis aos municípios para
programas prioritários selecionados pelo governo federal (VASQUEZ, 2012, p. 263).
5 Com isso, por meio de sorteios anuais, a CGU fiscaliza as despesas municipais e detecta nu-
merosas fraudes, abrindo procedimentos e processos contra os gestores locais.
Assim, a grita por mais recursos segue sendo uma bandeira municipalista.
Mas o dado novo é que o problema não é conjuntural: está ossificado na lógica
do federalismo fiscal brasileiro, no qual a disparidade de porte e de capacidade de
manejo de recursos e políticas dos municípios é gritante. De fato, há municípios
e municípios, no Brasil: desde muito pequenos (até vinte mil habitantes, a imensa
maioria) até enormes (com populações na casa dos milhões, uns poucos). E sem
um tratamento diferenciado quanto às suas responsabilidades e destinação de re-
cursos não poderá haver solução municipalista no país9.
Ao municipalismo renovado compete não apenas buscar recursos pontual-
mente – seja para que as prefeituras consigam fazer algum investimento, seja para
recompor caixa frente a crises –, mas entrar na discussão e propor alternativas ao
atual arranjo federativo, de modo a de fato beneficiar o município em termos de
receita disponível, dando-lhe braços e pernas para que venha a ser de efetivo ente
federativo. O que não será possível sem que haja tratamento diferenciado quanto
às responsabilidades atribuídas e eventuais formas de apoio no caso dos pequenos
e muito pequenos.
O municipalismo renovado, além disso, ao invés de apoiar acriticamente a
criação de novos municípios, o que fraciona os recursos disponíveis e gera, no
mais das vezes, novos entes frágeis, deve se focar na busca de mecanismos de co-
laboração regional e de divisão de tarefas, entre si, visando um processo paulatino
de solidariedade quotidiana – para além da simples filiação em associações – entre
municípios.
9 Pires et. al. (2012) discutem essa problemática a partir da análise do quadro financeiro dos
municípios da região administrativa central do Estado de São Paulo.
10 A respeito, ver coletânea de Keinert, Rosa, Meneguzzo (2006), que trata do assunto na área
da Saúde.
Governos locais dialógicos, que não se furtam a submeter suas propostas ao crivo
dos cidadãos-eleitores-contribuintes-demandantes de serviços e políticas públi-
cos, ou a deles solicitar sugestões para a administração, são a marca da gestão pú-
blica contemporânea de qualidade, responsiva e promotora do desenvolvimento
socioeconômico sustentável (Brugué, 2009). São construções em processo, que
deixarão no passado os atuais governos centralizadores, auto-referenciados, aves-
sos à tendência de democracia participativa, em contexto de questionamento da
democracia representativa tradicional. Tais governos avançam impulsionados por
reivindicações de segmentos organizados da sociedade e/ou por iniciativas de go-
vernos comprometidos com padrões de governabilidade e governança pública fo-
Conclusão
Referências
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