Ondine Claude Debussy
Ondine Claude Debussy
Ondine Claude Debussy
UBERLÂNDIA
2017
GRAZIELLE CAROLINE ALMEIDA
UBERLÂNDIA
2017
RESUMO
Este trabalho teve por finalidade analisar como a compreensão da poética musical de
Debussy, em Ondine – prelúdio No. 8, pertencente ao segundo livro de prelúdios – pôde
fundamentar uma interpretação mais consciente da obra. Para tanto foram estabelecidas
relações entre a figura mitológica da Ondine e a peça de Debussy, traços da poética musical
na peça foram identificados por meio da análise musical e, por fim, foi elaborada uma
concepção interpretativa e realizada uma performance da obra em questão.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 4
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................................ 8
SEREIAS: ONDINE E UNDINE ............................................................................................ 8
1.1 La belle époque, simbolismo e Debussy ........................................................................... 8
CAPÍTULO 2 .......................................................................................................................... 16
POÉTICA MUSICAL EM ONDINE .................................................................................... 16
2.1 Breve análise formal-harmônica ..................................................................................... 16
CAPÍTULO 3 .......................................................................................................................... 37
PROPOSTA INTERPRETATIVA ....................................................................................... 37
3.1 O contato com a obra: diário de estudos ......................................................................... 37
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 63
4
INTRODUÇÃO
Durante a história das artes, muitos artistas utilizaram outras linguagens como
inspiração para suas obras. Na música, isso ocorreu, por exemplo, durante o período
Impressionista, com compositores como Claude-Achille Debussy. Este sempre povoou meu
imaginário e, devido à grande curiosidade que tenho por suas peças que apresentam elos entre
as artes, busco nesse estudo vislumbrar a prática interpretativa focando no prelúdio intitulado
“Ondine”, inspirado na novela Undine, de De La Motte-Fouqué, ilustrada por Arthur
Rackham.
De fato, a obra de Debussy – tão marcada pela intertextualidade1 com outras
linguagens artísticas, como a literatura e a pintura – é tida nos trabalhos acadêmicos como um
marco importante no início da história da música moderna. No entanto, é importante lembrar
que, na época em que viveu, tal compositor encontrou críticas tanto devido ao fato de sua
linguagem musical não respeitar os cânones da época quanto por sua abordagem musical estar
relacionada à literatura, imagens, símbolos e impressões.
O francês Debussy não fazia referência direta dos pontos que desejava sobressaltar em
suas composições. Não há, a princípio, uma necessidade de revelar todo o significado das
obras. Tal condição fornece certa qualidade marcadamente pessoal ao seu estilo, que primava
por conduzir seu ouvinte, assim como os intérpretes, na busca por sua própria linguagem e
simbolismo. E era justamente essa sua peculiaridade em evocar emoções, sentimentos e
sensações que lhe conferiam uma liberdade criadora, a qual, posteriormente, também permitia
diversas possibilidades de releitura e ressignificação (AGUIAR et al., 2014, p. 5).
Nota-se, assim, a importância de pesquisas voltadas para a análise de obras desse
compositor, o que, neste trabalho, une-se ao objetivo de contribuir, por meio da análise, com a
performance da obra em questão. Logo, torna-se interessante questionar qual seria o núcleo
que une o uso de mais de uma linguagem em torno de uma única obra, ou seja, qual o objeto
que Debussy almejava significar e/ou traduzir em suas obras. Por conseguinte, a
intertextualidade existente no contexto da obra Ondine incita o exercício de desvelar as
possíveis referências extra-musicais nela contidas para contribuir na criação de uma
interpretação mais consciente da obra.
1
Intertextualidade é aqui tratada como a manifestação de um processo de intersemiose, a qual ocorre “[...] na
interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais” (JAKOBSON, 1969, p. 65 apud
AGUIAR et. al., 2014, p. 3).
5
Tomando-se como base a arte impressionista, segundo Reis (1999, p. 19 e 22) havia
entre os artistas certo sentimento de ardor por uma rebelião, porém, esta estaria disfarçada na
sutileza poética da expressão. Assim, os artistas abordavam temas como a natureza, a
intimidade, aspectos superficiais urbanos e etc. Isso pode ser visto nas pinturas de Claude
Monet, Renoir, Sisley, Pissaro, Cézanne, Berthe Morisot, Degas e outros, mostrando – ainda
que implicitamente – um novo modo de encarar a arte e sua linguagem, o que é caracterizado
como um "estado de espírito", nutrido a partir de uma manifestação espiritual coletiva na
França do século XIX.
2
No original: “This general literariness of French music invites us to inquire further into the particular case of
Debussy. What was the effect of these literary associations on Debussy’s music? Did it go any deeper than the
title page? Did the poets influence Debussy’s ideas on music - what it is, what it can do? How did these ideas
affect his music?” (WENK, 1976, p. 6).
3
A questão da subjetividade está vinculada não apenas à maneira pessoal com a qual Debussy trabalhou as
relações entre as linguagens artísticas na composição de Ondine, mas também à maneira como a intérprete
coloca as referências artísticas em diálogo na sua performance.
6
aqui se apresenta não é uma interpretação musical finalizada/fechada, pois à medida que se
vivencia o fenômeno sonoro, o mesmo pode ser reconstruído de novas maneiras no futuro.
Desse modo, assim como Almeida (2011), entendo a interpretação musical a partir da
subjetividade criada por meio do encontro dos elementos descritos na partitura com a
experiência já vivida pelo intérprete, incorporando também qualidades que não estão no texto
musical. Trata-se, portanto, de um processo aberto e colaborativo que não tem origem apenas
no compositor – o que, em Ondine, se evidencia no fato da obra traçar um diálogo baseado
nas influências do novelista La Motte-Fouqué e do ilustrador Arthur Rackham com Debussy.
Aqui ressalto minha inclusão neste trabalho enquanto pesquisadora e também como
sujeito, uma vez que fica ao meu cargo a vivência e registro dos passos metodológicos
descritos acima, objetivando construir, de forma consciente, o fenômeno sonoro da prática
interpretativa de Ondine (Debussy).
8
CAPÍTULO 1
SEREIAS: ONDINE E UNDINE
movimento. Segundo Shibatani (2008, p. 5), Jean Moréas publicou, no ano de 1886, a
seguinte definição sobre o movimento "simbolista":
4
No original: “In this art, scenes from nature, human activities, and all other real world phenomena will not be
described for their own sake; here, they are perceptible surfaces created to represent their esoteric affinities with
the primordial Ideals” (MORÉAS, 1886 apud SHIBATANI, 2008, p. 5).
10
5
No original: “algo que se cuenta como sucedido o existente sin que nos sea posible comprobarlo”. (FUENTES,
1973, p. 107).
6
No original: “es una realidad cultural, excesivamente compleja, que podemos interpretar con perspectivas
múltiples y complementarias”. (FUENTES, 1973, p. 107).
7
Um dos poços e fontes da mitologia Nórdica. Fonte: verbete Poço de Urd (Wikipedia).
8
A princípio, as Harpías eram seres com aparência de belas mulheres aladas. Posteriormente, foram
transformadas em divindades maléficas com corpo de ave de rapina. Fonte: verbete Harpías (Wikipedia).
11
transmitida para o mundo ocidental através de Roma, tal criatura passa a se mostrar como
símbolo da mulher sedutora, conforme a concepção homérica.
Assim, nem sempre as Sirenas foram apresentadas com traços característicos de aves.
De acordo com Molino (2000), Derceto – uma Deusa sirenita da Lua na mitologia Assíria-
Babilônica9 – aparece como a primeira divindade feminina com cauda de peixe, mencionada
por Diodoro de Sicilia (século I a.C.) e Luciano (século II d.C.). A mitologia grega transborda
de seres aquáticos, como Nereo 10 – futuro Poseidón, pai das Nereidas 11 e Sirenas – e seu filho
Triton.
É lógico pensar que essa confusão em torno da fisionomia das sereias (mulheres
metade pássaro ou metade peixe) se deve a circunstâncias não concretas que, provavelmente,
ocorreram na Idade Média. É provável, ainda, conforme Dorofeeva (2014, p. 4) supõe, que
essa confusão tenha ocorrido, em parte, pelos diferentes textos em circulação sobre esse
assunto, ocorrendo contradições entre os mesmos.
12
As Sirenas ainda eram tidas, por alguns escritores, como filhas de Fórcis. Assim,
13
aqui temos instaurada uma confusão entre Sirenas, Harpías, Górgonas e Nereidas, visto que
tais figuras apresentavam desde alterações em seus atributos físicos como, também, em sua
própria genealogia (FUENTES, 1973, p. 114).
De uma forma geral, as Ondinas 14 são habitantes da água doce de mananciais, lagos e
rios. Um ponto interessante ressaltado por Molino (2000) é referente ao traço da
personalidade sedutora das sereias que trazem à morte o homem seduzido. Isso fez com que,
durante a Idade Média, as Sirenas fossem uma representação frequente nos capitéis, no espaço
do coro e outras partes das igrejas como um modo de alusão à tentação e a perdição por meio
da imagem dessa criatura.
Portanto, como todos os mitos, o das sereias é atemporal e difere de acordo com as
culturas que o recriam. As transformações pelas quais as mulheres pisciformes foram
submetidas não modificaram a inquietante ambiguidade de sua natureza, em uma
ambivalência conceitual e imaginativa (MUÑOZ, 1992, p. 252-253).
9
Fonte: verbete Derceto (Wikipedia).
10
Deus das ondas do mar. Fonte: verbete Nereo (Wikipedia).
11
São as cinquenta filhas do Deus Nereo, com aspecto de sereias. Fonte: verbete Nereida (Wikipedia).
12
Deus marinho na mitologia grega, pai das Górgonas e irmão do Deus Nereo. Fonte: verbete Fórcis
(Wikipedia).
13
Criaturas da mitologia grega, representadas como monstros ferozes de aspecto feminino, com grandes presas e
pele coberta por escamas. Fonte: verbete Górgona (Wikipedia).
14
Espírito da natureza (ninfas da água), uma espécie de sereia de espetacular beleza. Fonte: verbete Ondina
mitologia (Wikipedia).
12
15
Fonte: verbete Undina novella (Wikipedia).
16
Compositores como Machaut, Jannequin, Couperin, Rameau, Rousseau, Berlioz e Boulez escreveram seus
próprios textos, fazendo uso de títulos descritivos e escreveram extensivamente sobre música. É perceptível certa
veneração da palavra como um elemento essencial na cultura francesa (WENK, 1976, p. 6).
13
Todavia, o cavaleiro que se casa com Undine, antes fora apaixonado por Bertalda, uma
moça que conhece em um torneio. Porém, Huldbrand tem sua atração diminuída quando
Bertalda exige que ele empreenda uma expedição pela floresta como recompensa para ter sua
mão em casamento. É aí que ele conhece Undine e passa a viver as antíteses da terra e da
água.
17
No original: “clad in rich garments” (FOUQUÉ, 1909, p. 16).
18
No original: “with eyes full of the color of lake and sky” (FOUQUÉ, 1909, p. 17).
19
No original: “wist not whether it might be illusion or reality” (FOUQUÉ, 1909, p. 16).
20
No original: “We, and our like in the other elements, vanish into dust and pass away, body and spirit, so that
not a vestige of us remains behind; and when ye human beings awake here after to a purer life, we abide with the
sand and the sparks of fire, the wind and the waves. For we have no souls. The element in which we live
animates us; it even obeys us while we live; but it scatters us to dust when we die” (FOUQUÉ, 1909, p. 62).
15
CAPÍTULO 2
POÉTICA MUSICAL EM ONDINE
A proposta deste capítulo é analisar a maneira pela qual é possível conceber uma obra
por meio de uma trama de relações sígnicas que se somam ao discurso composicional,
estabelecendo, então, relações de um processo criativo em que o tradutor faz uso,
primeiramente, de seu pensamento e depois, transformado em som, imagens e espaço,
configura a tradução intersemiótica.
Logo, proponho o pensar na relação que se segue entre o compositor e o material no
processo de chegar à obra, levando-se em consideração as três linguagens artísticas
envolvidas na obra Ondine, de Debussy.
Além disso, apresento uma análise musical e intersemiótica de Ondine. A análise
como um todo está voltada, inicialmente, aos aspectos intrínsecos, sem perder de vista a
possibilidade de relações com os aspectos extrínsecos, no caso, associando-se, especialmente,
às ilustrações de Rackham e à interpretação de Ondine.
De modo detalhado, a análise musical se deu a partir de uma segmentação formal mais
geral da obra, seguida pela identificação de seu percurso harmônico. Depois, passou-se à
análise de aspectos que vão em relação aos detalhes, identificando motivos principais, o que
resultou em uma análise formal mais minuciosa.
Já na análise intersemiótica da música, correlaciono as ilustrações de Arthur Rackham
com determinados motivos ou seções musicais de Ondine, entendendo como se relacionam
esses elementos narrativos (texto e imagens) oriundos da relação extramusical e, como a partir
deles é possível trabalhar e desenvolver melhor os aspectos intrínsecos.
Em Ondine, estão presentes muitas ideias musicais distintas que se repetem em trechos
diferentes, em fragmentos, às vezes expandidas e/ou transpostas. Por isso, descrevo abaixo
oito trechos musicais (A a H):
• Trecho A:
Nos compassos 1 a 6, ouve-se um pedal em dó# (compassos 1 e 2) e depois em lá
(compassos 3 a 6). Acima do pedal, há a alternância de acordes com segundas e quartas justas
17
• Trecho B:
No compasso 11, há a indicação au Mouvement. Chega-se ao lá do baixo com a
articulação de apojaturas de cinco notas descendentes, indicadas com scintillant, segundas
aumentadas e a alternância de uma célula de fusas, continuadas pelo baixo nas notas ré e lá e
depois lá e mi, em Rubato nos compassos 14 e 15.
• Trecho C:
Essa quinta (notas ré e lá) continua como pedal até o compasso 20, enquanto as outras
vozes fazem uma linha melódica em segundas com dobramento de oitava e um pedal em lá
19
nas vozes intermediárias (compassos 16 e 17). Esse motivo configura-se como uma
progressão de movimento escalar trazendo a nota sol#, logo, apresentando um ré lídio.
Os compassos 18 e 19 apresentam duas células com as notas fá, mib e réb que
aparecem em movimento de 9 fusas ou oitavadas em semicolcheias. Esses compassos
preparam a entrada dos compassos 20 a 25, que indicam uma nova seção e se distribuem em
três planos.
• Trecho E:
Aqui acontece a primeira mudança harmônica da obra, saindo da armadura de clave de
ré maior e passando para a de mi bemol maior. Dos compassos 32 até 37, também temos 3
planos:
Ostinato em quintas aumentadas no baixo;
Sons sustentados, formando, juntamente com a nota si do baixo, o acorde de mib(5+);
Linha melódica com notas repetidas em segundas menores caminhando para um trítono
ascendente e depois de uma segunda menor para uma terça maior descendente.
• Trecho F:
No compasso 44 há novamente uma mudança de armadura de clave, agora para si
maior, conduzindo uma progressão dos acordes diminutos: A#°; G°; E°; C#°, que servem de
preparação para si maior.
O trecho começa com a indicação de Rubato, apresentando um ostinato em trítono (mi
e lá#) e quarta justa (lá# e ré#), no plano intermediário. Outro trítono (dó# e sol) e quinta justa
(fá# e dó#) estão presentes no plano mais grave, enquanto o plano agudo faz a linha de um
fragmento de D (compassos 30 e 31 novamente), agora com aumentação rítmica.
21
Aqui temos o acorde de fá sustenido enarmonizado em sol bemol para dar sentido à progressão em terças.
25
Essa progressão de dominantes pode ser entendida também como uma preparação para
si maior, considerando-se que é análoga à progressão de acordes diminutos ocorrida
anteriormente:
• Trecho G:
No compasso 54 volta au Mouvement, com um ostinato no baixo composto por um
cromatismo e pedal de segundas, enquanto a linha superior faz um trecho da seção D
(compassos 30 e 31) em fragmento transposto, mas no ritmo original. Nos compassos 60 e 61
um cromatismo ascendente leva a um pedal de sib (indicação pp súbito); depois, nos
compassos 62 a 64 há a volta do trecho B (compasso 11) transposto com o pedal de sib no
baixo.
• Trecho H:
Do compasso 65 ao 74, o baixo faz pedal em ré, porém há movimentos ondulatórios
com os arpejos das tríades de ré maior e fá# maior, que seguem até o final.
Considerando o baixo em ré, pode-se interpretar que esses arpejos na verdade
expressam um acorde de ré maior com sétima maior, cuja quinta se alterna entre justa e
aumentada (notas ré – fá# – lá [lá#] – dó#).
Alcança-se, por fim, um acorde de ré maior, que não soa conclusivo.
27
Diante do exposto, podemos afirmar que Ondine é um prelúdio marcado por idas e
vindas de um conjunto de ideias musicais, em que as partes que o constituem se sucedem e
alternam de um modo peculiar.
Os trechos acima descritos, quando organizados, se apresentam da seguinte forma no
decorrer do prelúdio:
28
22
As ocorrências de (D) expressam momentos em que o elemento D aparece fragmentado ou com alguma
alteração.
23
Usa-se a expressão “fio condutor” como referência a um material melódico-rítmico que é recorrente na peça.
29
Dessa forma, em Ondine, vejo que o artifício de utilizar esse fio condutor contribuiu
para dar continuidade às seções/cenas – apesar das eventuais interrupções, que não incomuns
no discurso musical de Debussy. Além disso, a reaparição transformada desse material que
desempenha o papel de fio condutor contribui para a sugestão de que houve mudanças de
ordem psicológica associadas aos personagens da narrativa de La Motte-Fouqué.
24
Podemos interpretar as artes como línguas diferentes entre as quais temos por sua
“tradução” um novo pensar sobre um material, transformando-o em um material expressivo
diferente, resultante de uma invenção de efeitos artísticos. (SOURRIAU, 1988, p. 21 apud
QUARANTA, 2013, p. 163). Para Quaranta (2013, p. 165), esse novo material criado a partir
de um processo de transformação entre as linguagens é gênese de um processo de
interpretação, ou seja, um processo de significação entre os dois (ou mais) sistemas
semióticos diferentes.
Um caminho para compreender a relação entre texto, imagem e música no contexto da
obra Ondine é por meio do conceito de tradução intersemiótica, que “consiste na interpretação
dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais” (JAKOBSON, 1969, p. 65
apud AGUIAR et. al., 2014, p. 3). Roman Jakobson foi o primeiro a formular uma definição
que designasse a relação entre signos verbais e não verbais, ou seja, entre diferentes sistemas
que não se restringissem somente à significação dos signos verbais (GORLÉE, 2007;
CLÜVER, 1997, p. 43; PLAZA, 1987; apud AGUIAR et. al., 2014, p. 3).
Com efeito, a novela Undine, de La Fouqué e as ilustrações de Rackham, ao se
configurarem como referências para a composição de Ondine, de Debussy, expressam essa
justaposição do fenômeno intersemiótico, por meio de uma dialética simbólica que tem como
inspiração a dualidade feminina representada por Undine, enquanto sereia (ninfa da água) e
mulher.
Assim, torna-se interessante pensar a música em sua relação com as outras artes,
buscando entender questões tais como as formuladas por Hugo von Hoffmannsthal, que
seguem: “Mas como é que duas artes se encontram para a realização de uma obra mais
24
Utilizou-se o termo “línguas” (e não “linguagens”) para designar as artes, enfatizando a ideia de tradução.
30
perfeita? Há um equilíbrio natural entre essas duas artes ou esse equilíbrio nunca chega
verdadeiramente a conseguir-se?” (POMBO, 2001, p. 40 apud AGUIAR, 2004, p. 137).
Nattiez (2004a, apud BRAGANÇA, 2008, p. 19) indica a existência de dois tipos de
remissões presentes na música. Na primeira, remissão intrínseca, o sentido musical está
presente no próprio discurso musical, referindo-se às relações entre as estruturas musicais, ou
seja, à sintaxe musical. Já o outro tipo de remissão é a extrínseca, na qual associações
semânticas e extramusicais estão conectadas à música de maneira emocional, sentimental e
ideológica, sendo pertencentes ao compositor, intérprete e/ou ouvinte.
Mesmo ao ser recriada, “não existe peça ou obra musical que não se ofereça percepção
sem um cortejo de remissões extrínsecas, de remissões ao mundo. Ignorá-las levaria a perder
uma das dimensões semiológicas essenciais do fato musical total” (NATTIEZ, 2004a, p. 7
apud BRAGANÇA, 2008, p. 20).
A tradução é, segundo Quaranta (2013, p. 166), uma atividade que atravessa o
contexto puramente linguístico, ampliando-se para o campo da intertextualidade, partindo da
suposição de que existem tipos peculiares de correspondências entre diferentes qualidades de
textos, por exemplo. Por conseguinte, o leitor (intérprete/compositor) experimenta novamente
as conexões que vinculam a originalidade do texto, porém em uma nova perspectiva a cada
(re)leitura.
Apoderar-se de ferramentas imagéticas estabelece ao compositor ou aquele que faz a
análise intersemiótica, a necessidade de haver o estabelecimento de uma esfera de
correspondências entre a materialidade musical e componentes externos à própria música, que
são o impulso do processo composicional.
Salzman (1988, apud FELIPE e GUERRA, 2012, p. 2) considera um erro desprezar as
ideias poéticas (não musicais) presentes nas ideias musicais de Debussy, pois suas intenções
poéticas também podem ser compreendidas de forma musical.
Pensando-se na maneira como se dá a tradução intersemiótica, podemos inferir que o
artista estrutura os elementos a serem traduzíveis e, portanto, passa a se configurar como
responsável por esse processo que tem como objetivo a tradução. Segundo Edward T. Cone
(apud AGUIAR, 2004, p. 132), uma canção, por exemplo, se define como uma recriação que
tem como componente um poema. Para ele, não se trata de uma interpretação musicada do
poema, pois o compositor se baseia na interpretação que ele se apropria após a leitura do
poema, para, depois, transformá-lo em música. Assim, ainda conforme Cone, o que se ouve
em uma canção não é mais o poeta, mas sim o compositor, pois o poema é somente
31
na misteriosa poesia da noite, nos milhares de ruídos anônimos que emanam das folhas
acariciadas pelos raios de lua.” (GRIFFITHS, 1997, p. 10). Diante disso, ressalto que Ondine,
produzida após os trabalhos escrito e ilustrativo, aparece como a junção de todos os signos
envolvidos no processo de construção da história de Undine, caracterizando-se, então, como
um resultado da intertextualidade entre as artes.
Ao ouvir a peça podemos identificar, mesmo que somente a partir de seu título,
elementos musicais que suscitam a evocação de imagens aquáticas. Essas imagens, no início
da música, nos aparecem de uma maneira um tanto quanto singela e, no decorrer da obra,
evoluem, alcançando uma carga dramática maior que, ao final, se dissolve, como bolhas de
oxigênio dentro d’água subindo em direção à superfície.
O que descrevi acima constitui apenas um resumo – grosseiro, talvez – da narrativa de
Undine. Quando o ouvinte de Debussy tem contato com a história por trás de Ondine torna-se
muito mais natural e prazerosa a correlação entre o som e as imagens por ele sugeridas.
Entretanto, ressalto que aqui minha intenção não seria correlacionar cada imagem com
determinado trecho ou motivo musical, já que, conforme Quaranta (2013, p. 166), o
compositor escolhe certos elementos com determinada iconicidade que façam alusão de forma
direta ou indireta, a alguns traços da narrativa verbal, sendo trabalhados de forma mais livre.
Desse modo, nessa obra de Debussy, o que temos é uma mescla de elementos
traduzidos que evocam a narrativa ilustrada de Rackham. É por isso que se torna mais
plausível a correlação somente de algumas imagens com trechos da música que sugiram de
forma inconsciente, e não de forma direta, a cena sonora.
Fazendo referência às ilustrações da novela na música de Debussy, apresento como
primeiro exemplo dessa simbiose a ilustração intitulada “Soon she was lost to sight in the
Danube”25. Nesse momento da narrativa, a personagem Undine tem uma discussão às
margens do Rio Danúbio e é, então, surpreendida por seu tio Kühleborn e levada de volta para
as águas.
25
“Logo perdeu-se a visão dela [de Undine] no Danúbio” (tradução minha).
33
Um segundo exemplo aparece com a ilustração “He could see Undine beneath the
crystal vault”26. Nesse caso, Undine acabou de beijar Huldbrandcom o beijo da morte e,
depois de descer para as profundezas da água, é vista sentada, por seu tio. Aqui é perceptível a
dualidade de sereia versus mulher, pois a personagem se senta e, enquanto uma sereia
aproveita esse momento; porém, enquanto mulher, é visível na ilustração sua desolação, como
se no fundo ainda tivesse a alma de uma humana apaixonada.
26
“Ele podia ver Undine abaixo da abóboda de cristal” (tradução minha).
35
CAPÍTULO 3
PROPOSTA INTERPRETATIVA
leitura “inaugural”, lembro-me de ter apresentado dificuldades com muitos trechos mais
rápidos da peça e, como tinha outro repertório para ler, acabei deixando-a de lado.
Meses se passaram e, finalmente, no final de abril retomei o estudo da mesma como
acordado em meu cronograma de pesquisa. Entretanto, para minha surpresa, não apresentei
tamanhas dificuldades como anteriormente. Em aproximadamente uma hora de estudo, nessa
(re)leitura, já estava conseguindo executar a obra sem que fosse necessário ficar
interrompendo para rever notas e ritmo na partitura.
Assim, já que esses elementos básicos estavam fluindo bem nessa segunda leitura, me
preocupei em já anotar na partitura dedilhados nos trechos (ver nos exemplos musicais
abaixo) em que meus dedos não conseguiam se encaixar “automaticamente”.
Havia, além dos trechos destacados acima, outros momentos da peça nos quais minha
mão ainda não conseguia executar com naturalidade, mas sabia que, com o passar dos dias, os
movimentos ficariam mais naturais e, portanto, não se fazia necessário buscar dedilhados para
os mesmos.
Feito isso, ainda nessa segunda leitura, toquei mais uma vez a peça e, então, passei a
separar os trechos em que deveria estudar formas. Aqui, aplico as formas em trechos musicais
compostos pelos mesmos intervalos (ou semelhantes) e, por isso, para facilitar a assimilação
do corpo posso estabelecer um mesmo padrão de dedilhado – o que não implica,
necessariamente, que esse dedilhado seja idêntico ao outro, mas sim com o mesmo
funcionamento e aplicabilidade técnica.
Abaixo indico os trechos em que fiz esse tipo de trabalho técnico, primeiramente
tocando as notas em blocos de acordes, depois realizando algumas variações rítmicas e, por
fim, executando conforme indicado na partitura.
mesma a fim de afirmar o local correto da mão no próximo grupo, ou seja, minha mão deveria
chegar antes de executar o som da nota.
Isso pode ser visto nos trechos a seguir:
Finalizada a (re)leitura nessa tarde de abril, permaneci por duas semanas fortalecendo
o estudo dos elementos abordados acima: dedilhados, formas e saltos. Enquanto isso, também
adquiri maior fluência no andamento e, inclusive, consegui memorizar alguns trechos,
principalmente aqueles que eu ainda estava trabalhando tecnicamente.
Na terceira semana de estudos, tive aula com minha professora de piano que me
sugeriu destacar as articulações indicadas na partitura pelo compositor nos seguintes trechos:
Passada mais uma semana de estudos individuais, executei, novamente, a obra para
minha professora na quinta semana. Nesta, eu estava apresentando dificuldades para executar
o seguinte trecho:
Tal trecho, composto por mais de uma voz em ambas as mãos, estabelecendo uma
polifonia, exige que o pianista defina uma hierarquia entre essas vozes, destacando as
principais. Para isso, é necessário um trabalho de rotação do pulso, principalmente, na mão
direita, até para não forçar a mesma, uma vez que uma boa abertura entre os dedos também é
necessária nesse trecho.
48
Outro aspecto técnico trabalhado nessa aula foram as inflexões das notas de duas em
duas utilizadas na mão esquerda do trecho a seguir:
Este é outro trecho produzido a partir da polifonia entre as vozes, porém com um
diferencial no deslocamento de sua métrica, pois, apesar de estar escrito em compasso
composto (6/8), as colcheias inseridas na mão esquerda lhe conferem, auditivamente, uma
métrica ternária simples. Assim, a execução mais clara das inflexões de dois (entre as
semicolcheias da mão esquerda) ajudam na fluidez da métrica juntamente com os apoios
marcados nas colcheias.
49
O estudo desse trecho foi sugerido pela professora por meio de duas etapas: na
primeira, exagerar na execução das inflexões, levantando a mão do teclado; segunda, tocar
sem fazer tanto movimento na mão, porém com a dinâmica mais p na esquerda, introduzindo,
depois, a mão direita que apresenta a melodia principal desse trecho.
Dessa maneira, continuei o estudo do pulso e das inflexões nessa e na sexta semana de
leitura da obra para, então, dar início à elaboração da minha concepção interpretativa da obra,
tendo por embasamento, tanto as indicações de fraseado, dinâmica e articulação já previstas
na partitura, quanto pela minha concepção pianística e também poética da peça.
28
Indica que o trecho musical deve ser executado de modo ligeiro e alegre, como que brincando. Fonte: verbete
scherzando (Dicionário Online de Português).
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diminuo tanto o andamento, já que, por se tratar de um motivo recorrente no decorrer da peça,
preferi cair mais bruscamente o andamento em outros momentos em que ele aparece.
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Com esse termo me refiro ao ajuste de intensidade das vozes de forma a ressaltar uma melodia principal.
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Segue abaixo a legenda das cores e sinais utilizados na elaboração do mapa interpretativo:
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este trabalho pude compreender como a poética musical de Debussy, em Ondine,
fundamentou uma interpretação mais consciente da obra. Nessa perspectiva, a compreensão
da poética aflorou como integralizadora do processo interpretativo de uma obra decorrente de
uma tradução intersemiótica, de modo que as minhas intenções e concepções como intérprete
se voltaram à referência dos elementos inerentes a essa tradução.
Considerando as referências associadas a Ondine, uma interpretação musical pautada
unicamente nos elementos presentes na partitura poderia revelar-se limitada, já que o texto
musical por si só não revela necessariamente todos os aspectos constituintes do discurso. Com
isso, saliento a incompletude da partitura para a compreensão das imagens musicais, as quais
deveriam se nutrir das relações entre a novela de La Motte Fouqué, as ilustrações de Arthur
Rackham e a obra em questão.
Assim, a relação mútua entre análise e performance revelou-se de forma palpável na
realização desta pesquisa, reforçando que os aspectos norteadores da produção artística
apresentam-se de maneira intrínseca na relação entre o papel de analista e de intérprete. De
forma geral, foi possível entender o potencial expressivo da obra, assim como compreender
seu processo interpretativo obtido com base nas informações originárias nas outras linguagens
artísticas que a permeiam.
Logo, tendo como base todo o decurso teórico-interpretativo realizado, os métodos de
análise somaram à minha prática interpretativa, agregando ferramentas na preparação e
planejamento da performance musical. Além disso, esta pesquisa abre possibilidades de
desdobramentos à interpretação da obra abordada, podendo, inclusive, suscitar processos de
criação inspirados nessa obra.
Por fim, esta pesquisa pode ser um componente para o acervo ainda escasso de
trabalhos acadêmicos que tratam da relação intersemiótica entre música, texto e imagem
voltada a um objetivo musical.
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REFERÊNCIAS
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comunicação. Revista Fórum Media, 6, 127-137. 2004.
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BLAMIRES, David. Telling Tales: the Impact of Germany on English Children's Books
1780-1918. Open Book Publishers, Copyright 2009.
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pesquisa em música. Rio de janeiro: 7 Letras, 2010, p. 9-62.
GRIFFITHS, Paul. A Música Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 10p.
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255.
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SHIBATANI, Naomi. Contrasting Debussy and Ravel: a stylistic analysis of selected piano
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<https://en.wikipedia.org/wiki/Undine_(novella)>. Acesso em: 30 abr. 2017.
WENK, Arthur. Claude Debussy and the poets. Berkeley, University of California Press,
1976.