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Estado-Nação, Educação e Cidadanias em Transição

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Estado-nação, educação e cidadanias em transição

Article  in  Revista Portuguesa de Educação · January 2007


Source: DOAJ

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2 authors:

Almerindo Janela Afonso Emilio Lucio-Villegas


University of Minho Universidad de Sevilla
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Revista Portuguesa de Educação, 2007, 20(1), pp. 77-98
© 2007, CIEd - Universidade do Minho

Estado-nação, educação e cidadanias em


transição

Almerindo Janela Afonso


Universidade do Minho, Portugal

Emílio Lucio-Villegas Ramos


Universidade de Sevilha, Espanha

Resumo
Começando por chamar a atenção para a pluralidade de processos históricos
e sentidos que subjazem às ideias de nação e de Estado, os autores
convocam algumas perspectivas que ajudam a esclarecer as suas diferenças
conceptuais e a perceber a construção das suas eventuais convergências,
frequentemente designadas pela expressão Estado-nação. Com o contributo
da escola pública e dos processos de violência simbólica (e até, em muitos
casos, do uso da violência física), a construção da cidadania ocorre
inicialmente em função daquele binómio político e identitário, mas vai sendo
alterada à medida em que se desenvolvem outros processos históricos,
económicos e sociais, e de democratização política e cultural. Perante as
mutações contemporâneas em curso e as suas implicações em termos
educacionais, os autores propõem a designação de cidadanias em transição
para mostrar a actual instabilidade do conceito de cidadania, agora marcado
pela redefinição do papel do Estado e pela eventual desarticulação do
binómio Estado-nação, bem como pelos processos de globalização e
transnacionalização.

Palavras-chave
Estado-nação; Globalização; Educação; Redefinições de cidadania
78 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

Estado, Nação, Estado-nação: diferenças, vínculos e


historicidades
O projecto da modernidade capitalista (enquanto projecto societal
impulsionado pela esperança de desenvolvimento social e económico
associada à revolução industrial e, simultaneamente, enquanto projecto
político e cultural induzido pelas aspirações racionalistas do humanismo
burguês das revoluções americana e francesa) foi, pelo menos no diz respeito
ao espaço europeu, construído e consolidado, em grande medida, em torno
de uma imagem supostamente unitária de Estado-nação. Por isso, embora
reconhecendo a historicidade própria destes conceitos e a imensa diversidade
teórico-conceptual e empírica que lhes subjaz, é sobretudo por referência ao
contexto europeu que desenvolveremos alguns argumentos ao longo deste
texto, procurando relacioná-los com a questão da cidadania e sua evolução e,
posteriormente, de uma forma sucinta, com as questões da Educação e da
globalização.
Estado e nação são conceitos e entidades diferentes que devem ser
compreendidos na sua historicidade própria, antes que possamos descrevê-
los nas suas articulações e imbricações. Não sendo consensuais os seus
significados e atributos, também não o são os processos históricos que
explicam a génese e desenvolvimento de cada um. Neste sentido, por
exemplo, nem todas as nações aspiraram ou aspiram a constituir o seu
próprio Estado, nem todos os Estados se constituíram na base de nações
previamente existentes, podendo igualmente haver nações sob o mesmo
Estado, quer em aberto confronto, quer mantendo tensões latentes para
ampliar o seu reconhecimento, autonomia e independência, quer, ainda,
coexistindo e mantendo especificidades históricas e convergências
estratégicas. Podem ainda existir nações (no sentido de comunidades de
pessoas que partilham a mesma identidade cultural e a mesma linguagem)
repartidas e divididas, e possivelmente marginalizadas e oprimidas, entre
diversos Estados, como é o caso dos Curdos; ou comunidades e povos com
uma forte identidade, mas sem território definido e sem Estado, como é o caso
dos ciganos. É também muito importante não esquecer todas as questões
relacionadas com processos extremamente violentos e abomináveis de
'limpeza étnica', como os que aconteceram nos Balcãs ou no Ruanda, apenas
para referir alguns dos que estão ainda muito presentes na memória colectiva.
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 79

Inscrevendo-se ainda na diversidade de situações aqui sucintamente


enunciadas, podemos referir que há também evidência empírica
relativamente ao facto de muitas nações serem originariamente "unidades
fictícias" impostas pela força e "construídas pelo próprio poder estatal" e,
neste sentido, "seria falso e facilmente refutável conceber o Estado nacional
como produto de uma nação que o antecedesse" (cf. Hirsch, 2000; Hirsch,
2001: 60-61). Como refere Zygmunt Bauman, "Estado e nação necessitavam-
se" e, neste sentido, "se o Estado foi o culminar do destino da nação, também
foi uma condição necessária para que houvesse uma nação que reivindicasse
um destino partilhado" (Bauman, 2005). Há, todavia, outros autores que
preferem argumentar em sentido contrário, isto é, que acentuam a ideia de
que os Estados emergem gradualmente na sequência da revolução capitalista
"como fruto do esforço das nações" (Bresser-Pereira, 2007: 2).
Indo além do puramente económico, há também que ter em conta que,
em determinados momentos, foram as forças de resistência aos pensamentos
hegemónicos que permitiram avançar nos processos de construção de um
outro tipo de Estado-nação. A história dos diferentes colonialismos,
nomeadamente na África, também é particularmente importante para
percebermos as relações entre nação (ou nações) e Estados (os coloniais e
os pós-coloniais). Nos últimos anos, por exemplo, culminando uma longa luta
de resistência não apenas contra um passado colonial mas também contra
uma outra ocupação e tentativa de assimilação neocolonial, emergiu (e teve
uma grande visibilidade social) um processo de independência com algumas
características singulares. Perante uma encruzilhada de grandes dilemas
políticos, culturais, económicos e sociais, onde estão igualmente presentes
tensões actuais e desafios de futuro, assistimos ao que tem conduzido Timor-
Leste "da nação ao Estado" (esta expressão corresponde ao subtítulo da obra
recente de R. Centeno & R. Novais, 2006). Um outro caso diferente, mas
sumamente conhecido, é o que diz respeito ao sucessivo adiamento da
criação de um Estado palestiniano, apesar de ter sido construído o Estado
judaico num espaço territorial historicamente partilhado. Entre os muitos e
variados cenários que têm sido aventados para resolver o longo conflito entre
palestinianos e israelitas parece estar a ser retomado, pelo menos por alguns
sectores intelectuais, aquele cenário que já anteriormente apontava como
solução a criação de um Estado binacional Palestina-Israel. Esta ideia terá
80 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

surgido inicialmente "durante a década de 1920 no seio de um grupo de


intelectuais sionistas de esquerda" que achavam que era "essencial fundar
uma nação e não necessariamente um Estado judaico independente, e
sobretudo não à custa dos habitantes de origem" (cf. Farsakh, 2007: 7).
Aliás, neste debate sobre o Estado-nação, é também interessante
sublinhar o facto de as concepções de nação e de nacionalismo serem muitas
vezes independentes. No caso dos Estados Unidos da América, por exemplo,
apesar de não haver uma nação pré-existente, "o nacionalismo americano
conduziu à criação de um Estado" (Oommen, 1994: 13). Ou seja, dentro de
uma imensa variedade de situações históricas concretas, encontramos muitos
movimentos nacionais e nacionalismos sem um Estado pré-existente.
Seja como for, como refere Habermas, actualmente todos nós vivemos
em sociedades nacionais que devem à unidade organizacional do Estado a
sua própria identidade. Mas, como refere este mesmo autor, "foi somente a
partir do final do século XVIII que os dois componentes, o Estado moderno e
a nação moderna, se fundiram para formar o Estado-nação" (Habermas,
1995: 88).
Todas as situações atrás sinalizadas, entre muitas outras que
poderiam ter sido convocadas, mostram sucintamente o que queríamos
salientar: Estado e nação são realidades diferentes, por vezes com
precedências, sequências, percursos e protagonismos muito distintos,
podendo ou não tecer vínculos profundos e de longa duração, mas sempre
com historicidades próprias.

Estado-nação, educação pública e cidadania


Nos últimos dois séculos, a escola pública tem dado um contributo
fundamental para a construção do projecto de Estado-nação e para a
reprodução da identidade nacional. Dito de outro modo, a centralidade da
escola decorreu, até agora e em grande medida, da sua contribuição para a
socialização (ou mesmo fusão) de identidades dispersas, fragmentadas e
plurais, que se esperava poderem ser reconstituídas em torno de um projecto
político e cultural comum, genericamente designado de nação ou identidade
nacional. A intervenção do Estado teve assim um papel importante e decisivo
na génese e desenvolvimento da escola pública de massas, e esta, como
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 81

instância de violência simbólica, não deixou de ter também reflexos


importantes na própria consolidação do Estado. Pode mesmo dizer-se que a
construção dos modernos Estados-nação não prescindiu da educação escolar
na medida em que esta se assumiu como lugar privilegiado de transmissão (e
legitimação) de um projecto societal integrador e homogeneizador, isto é, um
projecto que pretendeu sobrepôr-se (e substituir-se) às múltiplas
subjectividades e identidades culturais, raciais, linguísticas e religiosas
originárias. Como refere Boaventura S. Santos a este propósito,
os Estados-nação têm tradicionalmente desempenhado um papel algo
ambíguo. Enquanto, externamente, têm sido os arautos da diversidade cultural,
da autenticidade da cultura nacional, internamente, têm promovido a
homogeneização e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas
locais existentes no território nacional, através do poder da polícia, do direito,
do sistema educacional ou dos meios de comunicação social, e na maior parte
das vezes por todos eles em conjunto (Santos, 2001: 26).

Entre muitos outros contributos diferenciados, foi também a escola


pública a impulsionar a construção do cidadão enquanto indivíduo tutelado e
predominantemente vinculado a certos interesses, valores e ideologias.
Quando isto aconteceu, tratou-se de uma concepção muito ténue de
cidadania, que designaremos de cidadania restrita à lógica do Estado-nação,
a qual, em determinadas situações e condições sócio-políticas, se
caracterizou mesmo como uma cidadania não democrática ou autoritária, na
medida em que os direitos legalmente reconhecidos e respeitados foram, por
vezes, muito escassos e constrangidos. Todavia, o projecto iluminista de
modernidade foi muito mais complexo do que isto e abriu as portas para
muitos outros desenvolvimentos políticos, económicos e culturais.
Neste sentido, há certamente também que reconhecer e valorizar o
papel activo das pessoas e dos grupos na conformação dos Estados-nação
ao longo do tempo (cf. Hattersley, 2006). Há, por isso, outras perspectivas e
processos sociais de construção da cidadania. A cidadania é também (e
sobretudo) uma conquista das classes populares e não uma mera concessão
do Estado. Portanto, são as lutas sociais que se produzem ao longo da
História, e que têm uma expressão mais forte entre os séculos XIX e XX, as
que conduzem a uma concepção de cidadania ampliada, significando agora
não apenas direitos cívicos e políticos mas também direitos sociais dos
trabalhadores e trabalhadoras, das mulheres e das pessoas que chegam a
82 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

determinados Estados-nação provenientes de outros Estados-nação, ou seja,


de outras culturas e formas de vida. É importante, repetimos, não perder de
vista este aspecto, porque a construção da cidadania ou o processo de chegar
a ser cidadão e cidadã é também um processo épico e histórico que tem a ver
com a vitória frente ao poder instituído e que, seguramente, tem a ver com a
educação e com a capacidade de ter voz e usar a palavra, e de agir de acordo
com ela.
Por outro lado, há que considerar que os projectos derivados da
modernidade podem ser considerados também projectos culturais. Isto
pressupõe a valorização de propostas de educação e formação de cidadãos
e cidadãs e o desenvolvimento de uma cultura nacional. Trata-se de projectos
de autonomia pessoal e colectiva em que a educação e a cultura são
consideradas como a autêntica riqueza de uma nação. Neste sentido, como
refere a estudiosa da alfabetização Jenny Cook-Gumperz (1988), a criação da
escola de massas é simultaneamente uma conquista e uma concessão.
Apreensivos com o poder incontrolável que supunha a alfabetização das
pessoas, as classes dirigentes consentem na criação de uma escola de
massas que controle os processos de alfabetização e que, portanto, controle
os processos de construção e difusão do conhecimento, de forma desigual e
em função das supostas necessidades dos diferentes grupos e classes
sociais (cf. Cook-Gumperz, 1988). Como acrescenta esta mesma autora, o
controlo da alfabetização por meio da escola é fundamental porque a
alfabetização transmite, de alguma forma, quais são os conhecimentos que
podemos e devemos considerar válidos, e quais é que devem ser
descartados. Crowther (2006), falando de educação popular e dos
movimentos sociais, diferencia entre conhecimento útil e conhecimento
realmente útil. A educação e a alfabetização numa perspectiva libertadora,
que constitua um avanço substantivo na condição de cidadão e de cidadã,
ajuda a construir o segundo tipo de conhecimento e a destruir a falácia do
primeiro.
Num contexto histórico muito diferente do anterior, em que, entre
muitos outros factores, a crise da escola, o insucesso, o desemprego
estrutural e as desarticulações entre os processos de educação e formação
põem em causa as oportunidades das novas gerações, continuamos a
confrontar-nos com percursos e biografias que nos interrogam de uma forma
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 83

particular. Como acentuam Fragoso & Lucio-Villegas (2003), quando a


estrutura económica de uma sociedade já não responde às necessidades e
expectativas dos indivíduos isto cria uma fractura importante nos processos
formativos e uma quebra importante na noção de cidadania. Remetendo para
as semelhanças com o trabalho já clássico de Paul Willis (1988), estudos
recentes destes últimos autores mostram que continua a haver jovens que
abandonam conscientemente a escola para se dedicarem ao trabalho e que,
deste modo, entram muitas vezes no que se pode designar de círculo
perverso quando se deparam com dificuldades para aceder à condição de
cidadãos e cidadãs (cf. Lucio-Villegas & Fragoso, 2003).

Cidadania, capitalismo e Estado-providência


É também o reconhecimento formal da cidadania moderna (ainda em
sentido bastante restrito) que permite que os homens (trabalhadores) nas
sociedades capitalistas possam ser tratados juridicamente como iguais e
livres — o que, aliás, sendo uma condição inicial e necessária para o
estabelecimento (e legitimação) de relações mercantis e de exploração, não
se destina, obviamente, a resolver as reais e persistentes desigualdades
sociais, económicas e culturais. Por isso, a noção de cidadania deve também
ser discutida tendo em conta a natureza de classe do Estado e o papel que
este tem vindo a desempenhar, nomeadamente nas sociedades capitalistas.
Mais precisamente, a cidadania moderna, que se desenvolve igualmente ao
longo dos séculos XVIII e XIX, está fortemente associada ao poder do Estado,
na medida em que é este que a reconhece e garante. No seu sentido mais
restrito, a cidadania pressupõe o reconhecimento de uma relação jurídica de
pertença a uma determinada comunidade política e, como consequência, o
acesso a alguns direitos elementares directamente decorrentes da posse
legal de uma nacionalidade tutelada por um determinado Estado. Neste
sentido, se recuarmos um pouco no tempo, verificamos que esse
reconhecimento político foi, e ainda continua a ser muitas vezes, um acto
arbitrário e extremamente selectivo. Começando por fazer-se tendo sobretudo
em consideração características pessoais ou grupais, e factores económicos
e culturais (como, por exemplo, os níveis de alfabetização, a propriedade, a
raça ou o sexo), o reconhecimento da cidadania, apesar de ter vindo a
incorporar critérios cada vez mais abrangentes, tem sido historicamente um
processo baseado na inclusão de alguns e na exclusão de muitos.
84 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

As próprias teorias da cidadania reflectem alguns desses


enviesamentos decorrentes dos valores dominantes em cada momento
histórico. Como refere Carlos A. Torres, "as teorias sobre a cidadania foram
avançadas por homens brancos heterossexuais que identificavam uma
cidadania homogénea através de um processo de exclusão sistemática, em
vez de inclusão, na política". Neste sentido, as mulheres, os membros da
classe operária e os membros de grupos étnicos e raciais específicos, "e os
indivíduos desprovidos de certos atributos e competências […] estavam, em
princípio, excluídos da definição de cidadãos em inúmeras sociedades"
(Torres, 2001: 18). No entanto, mesmo entre os indivíduos e grupos sociais
que acabam por ser 'incluídos' como resultado da atribuição da cidadania
jurídica ou formal, continuam a subsistir desigualdades profundas e diversas
que não nos podem fazer esquecer que "a noção de cidadania surge na
alvorada do capitalismo em estreita relação com práticas político-ideológicas
cuja reiteração adquire importância crucial para a dominação burguesa"
(Almeida, 1998: 24).
Neste sentido, o facto de a atribuição da cidadania tender a nivelar ou
a unificar os indivíduos enquanto sujeitos jurídicos, não significa que essa
igualdade formal não tenha servido (e ainda continue a servir) para ocultar e
legitimar a permanência de outras desigualdades (de classe, de raça, de
género), revelando assim que a cidadania foi inicialmente um atributo político
e cultural que pouco ou nada teve a ver com uma democracia substantiva e
comprometida com a transformação social.
Todavia, como construção histórica, a cidadania tem muitas outras
dimensões. Se, por um lado, o conteúdo ambivalente e contraditório da
problemática da cidadania reflecte a existência de um terreno de disputa onde
se confrontam processos sociais, políticos, económicos e culturais de
restrição e exclusão com processos de inclusão, de negociação, de
redistribuição e de reconhecimento (para um confronto entre estes dois
últimos, ver Nancy Fraser, 1995), por outro lado, enquanto construção
democrática de novos direitos, a cidadania pode ser entendida também como
uma categoria dinâmica, fortemente permeável às lutas sociais, económicas
e políticas. Dito de outro modo, só através do aprofundamento da democracia,
nos mais diversos domínios e espaços (públicos e privados) da vida em
sociedade, podemos ampliar o próprio conceito de cidadania.
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 85

Neste último sentido, e pensando, por exemplo, na função das políticas


sociais no contexto das sociedades capitalistas democráticas (considerando
nomeadamente o caso de algumas experiências bem sucedidas de Estado-
providência) pode dizer-se que estas revelam muitas das diferentes e
contraditórias facetas dos processos de construção e ampliação dos direitos
(e do próprio conceito) de cidadania. Assim, se, por um lado, as políticas
sociais podem ser interpretadas como instrumentos de controlo social e
formas de legitimação da acção do Estado e dos interesses das classes
dominantes, por outro lado, também não deixam de poder ser vistas como
estratégias de concretização e expansão de direitos sociais, económicos e
culturais, tendo, neste caso, repercussões importantes (embora conjunturais)
na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e dos grupos sociais
mais vulneráveis às lógicas da exploração e da acumulação capitalistas. As
políticas sociais (e a consequente expansão de direitos de cidadania) foram,
neste sentido, um dos pilares do Estado-providência, que se caracterizou,
sobretudo em alguns dos países capitalistas avançados e num contexto
histórico particular, pela capacidade de gerir as contradições e tensões
resultantes das exigências da legitimação democrática e da acumulação
capitalista (cf., entre outros, O'Connor, 1977; Offe, 1984; Dale, 1989).
Para além das saídas que o sistema tenta encontrar para gerir a crise
deste modelo, em particular, e a continuidade do próprio capitalismo, em
geral, estão em curso experiências e movimentos sociais alternativos que
poderão iniciar rupturas profundas e outras possibilidades (anti-sistémicas).
Há, aliás, exemplos concretos que não nos deixam esquecer os avanços da
democracia participativa. Se o caso de Porto Alegre (Brasil) é paradigmático,
e tem servido e serve de modelo a outras propostas, é porque existe o sonho
e o desejo de participar nas decisões da vida quotidiana e de que "um outro
mundo é possível", como mostram o orçamento participativo e o próprio
Forum Social Mundial. A conquista e recuperação dos direitos dos cidadãos e
cidadãs continuam a estar intrinsecamente ligadas ao aprofundamento da
democracia participativa.
86 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

Globalização e reconfigurações da cidadania para além do


Estado-nação
Como temos vindo a referir, estão em curso processos sociais,
culturais, económicos e políticos que se têm traduzido na reconfiguração e
ressignificação do(s) conceito(s) de cidadania. Estes processos, com
implicações importantes no campo da educação, não são alheios às questões
mais amplas da globalização e da integração em instâncias transnacionais
como a União Europeia, nem podem deixar de ser relacionados, entre muitos
outros aspectos, com a chamada crise do modelo de Estado-nação (fordista)
e as suas mutações posteriores.
As alterações no Estado têm hoje uma expressão mais complexa no
que diz respeito, por exemplo, às funções de regulação, integração, coesão e
controlo social. Tendo sido funções gradualmente indispensáveis ao (e
dependentes do) funcionamento, expansão e consolidação do sistema
económico capitalista, têm actualmente contornos completamente novos
dado o facto de, por exemplo, muitos Estados estarem integrados em redes
mais amplas nas quais assumem de forma crescente e diversa o papel de
articulação e de mediação, quer a nível subnacional quer a nível
supranacional. Para além disto, em contexto de globalização e de crescente
internacionalização do capitalismo, são os próprios Estados nacionais que
estão em competição, e este facto, por si só, tem implicações amplas porque,
"na medida em que avança a globalização, a luta pelo 'posicionamento'
capitalista converte-se […] num objectivo político prioritário, para o qual
parece não haver alternativas" (cf. Hirsch, 2001: 21).
Existem muitas e amplamente divergentes perspectivas em confronto
sobre o fenómeno da globalização, podendo mesmo falar-se, de forma mais
rigorosa, de globalizações (cf. Santos, 2001). Algumas destas perspectivas,
que sustentam e aprofundam um contínuo e interessante debate em torno das
raízes históricas da globalização/mundialização e da sua evolução, bem como
das suas dimensões sociológicas, ideológicas, económicas, políticas e
culturais, tem particular interesse para a compreensão das reconfigurações da
cidadania (ou das cidadanias em transição).
O que ocorre na fase actual de globalização e transnacionalização do
capitalismo mostra que estamos perante a emergência de novos factores e
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 87

processos (económicos, políticos e culturais) que trazem consigo as


incertezas em relação aos direitos sociais conseguidos na esfera nacional,
deixando também em aberto outras possibilidades para uma nova geração de
políticas e direitos que possam actualizar as conquistas da cidadania
democrática, agora na esfera de outras instâncias e contextos que
transcendem o próprio Estado-nação, embora podendo e devendo articular-
se com este. Neste sentido, se, por um lado, "o conjunto dos processos e
interconexões regionais e globais em curso gera restrições crescentes à
cidadania democrática de base territorial soberana" também, por outro lado,
"abre possibilidades efectivas de ampliação de uma cidadania democrática de
base cosmopolita" (Gómez, 2000: 14). Estas possibilidades, no entanto, só
agora começam a ser equacionadas, sendo por isso necessário estar atento
a todos os debates em torno de desenvolvimentos possíveis e a todas as
experiências sociais e políticas que surjam como alternativas credíveis nesta
fase de transição.
Porém, falar de crise do Estado-nação não nos deve levar a pensar
nem na morte anunciada do Estado como organização política nem, muito
menos, no anacronismo da ideia de nação, mas antes, numa forma de
enunciar a existência de novos factores subnacionais, globais e
transnacionais que condicionam os campos da autonomia relativa dos
Estados e que, entre muitas outras expressões concretas, podem traduzir-se
em tensões e desconexões, mais ou menos evidentes, entre, por um lado, as
identidades culturais, linguísticas, étnicas, religiosas e raciais e, por outro, as
soberanias territoriais. Neste sentido, como chama a atenção Arjun Appadurai
(1997: 37-38),
o território como base para a lealdade e o sentimento nacional está cada vez
mais divorciado do território como lugar da soberania e controlo estatal da
sociedade civil. Os problemas de jurisdição e lealdade estão cada vez mais
desvinculados. Isto não é um bom presságio sobre o futuro do Estado-nação na
sua forma clássica, na qual os dois são imaginados como coexistentes e
sustentando-se mutuamente.

Não obstante isto, continuarão a persistir as contradições entre o local


e global, entre tendências centrífugas (e eventualmente totalizadoras das
consciências e das condutas) e as reacções localistas de busca e afirmação
das identidades e da sua defesa frente às tentativas de imposição de um
modelo unificador e despersonalizador das pessoas e das comunidades. De
88 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

qualquer modo, como lembra R. Robertson, talvez seja pouco rigoroso


separar a questão do nacionalismo e da identidade nacional da questão da
globalização:
[…] a globalização, quando vista da perspectiva da glocalização, é um processo
autolimitativo, precisamente porque envolve uma adaptação sempre crescente
às circunstâncias particularistas. Paradoxalmente, quanto mais a globalização
(no sentido homogeneizante convencional) avança, mais 'localizada' se torna
(Robertson, 2006: 117).

A todos estes aspectos contraditórios, instáveis e plurais, podemos


acrescentar ainda o facto de se verificar ao mesmo tempo uma crescente
desconexão (decoupling) entre direitos e identidade, dois componentes
principais da cidadania (cf. Soysal, 1999). Mais concretamente, o espaço
nacional parece estar a deixar de ser o lugar dos direitos e deveres
individuais. Os direitos (embora nem sempre equacionados na sua
complexidade ou raramente discutidos na sua concepção dominantemente
ocidentalizada), passaram a ser frequentemente referenciados aos chamados
direitos humanos universais e, deste modo, passaram a ser mais abstractos e
legitimados ao nível internacional e transnacional. No entanto,
paradoxalmente, enquanto a fonte de legitimidade dos direitos tende a mudar
para níveis acima ou para além do Estado nacional, as identidades
permanecem particularistas e localmente definidas e organizadas. Aliás, a
problemática dos direitos humanos é apaixonante, sobretudo numa época de
permanente confronto global multicultural onde ocorrem muitas confusões
relativas aos seus sentidos e às suas concretizações em realidades sociais
muito distintas. Sem cair no relativismo de algumas narrativas pós-modernas,
poderemos e deveremos considerar criticamente a não universalidade dos
direitos como um facto importante a ter em conta e que nos pode ajudar a
equacionar as incompletudes inerentes às diferentes culturas e experiências
históricas (cf., a este propósito, Santos, 1997).
Entretanto, e apesar de já começarmos a ouvir falar da possibilidade
de uma "democracia cosmopolita internacional" e de um novo "direito
democrático cosmopolita" (cf. Held, 1997), os mecanismos de regulação
supranacional ainda são pouco permeáveis a uma agenda política
democrática que signifique assumir a questão da cidadania em bases mais
amplas do que aquelas que correspondem tradicionalmente aos espaços e
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 89

responsabilidades dos diferentes Estados-nação. Tendo em conta a situação


que nos é mais próxima, isto significa, por exemplo, que "ainda há muito
caminho a percorrer para se chegar a um projecto de cidadania europeia, já
não falando de uma cidadania mais universal na era da mundialização"
(Puhle, 2000: 32-33).
No que diz respeito à União Europeia, a posição de alguns autores vai
precisamente no sentido de procurar pensar as possibilidades que se abrem
neste novo espaço político, dado que "o Estado-nação já não pode mais
fornecer a base apropriada para a manutenção da cidadania democrática no
futuro que se anuncia" (Habermas, 1995: 87). A este propósito, em texto mais
recente, Jürgen Habermas defende uma posição eurofederalista tendo em
vista aumentar a capacidade de acção política da União Europeia e a sua
base de legitimação democrática. Assim, por exemplo, as políticas sociais
redistributivas e de solidariedade, que se têm circunscrito sobretudo ao âmbito
do Estado-nação, deveriam agora apoiar-se numa base mais ampla para
abarcar todos os cidadãos europeus, e isso só parece ser possível se se
desenvolver uma cultura política partilhada e se se resolver, entre muitos
outros, o problema do défice democrático derivado do facto de a União
Europeia estar "submetida a uma regulação política muito débil a cargo de
autoridades legitimadas indirectamente". Neste sentido, ainda segundo este
autor, as perspectivas em relação às políticas sociais não são optimistas mas
poderão ser alteradas se a União Europeia evoluir para uma federação
porque esta teria maior força política para decidir medidas correctivas dos
mercados e estabelecer mecanismos de regulação redistributivos. A partir
dessa evolução política seria também possível abrir novas perspectivas em
relação a uma "cidadania mundial" (cf. Habermas, 1999). Esta é certamente
uma proposta polémica e muito discutida em certos círculos intelectuais e
políticos, mas há outras perspectivas sobre a questão do aprofundamento da
cidadania no contexto europeu que não implicam necessariamente a
constituição de uma federação. No entanto, como o objectivo deste texto é
mais circunscrito, não as vamos considerar neste momento.
Se nos situarmos para além do próprio contexto europeu, como chama
a atenção Virginia Vargas (2001), existem hoje movimentos sociais de
tendências transnacionais que são extremamente heterogéneos e
contraditórios, e a partir dos quais poderá resultar uma "sociedade civil
90 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

global". Esta, porém, do mesmo modo que as sociedades civis nacionais, não
será uma sociedade homogénea porque conterá tendências autoritárias,
racistas, sexistas, antidemocráticas, assim como conterá também tendências
democratizadoras. Neste sentido, acrescenta esta mesma autora, interessa
sobretudo dar ênfase à acção daqueles movimentos democráticos cujas
dinâmicas representem um terreno de disputa, não somente frente às lógicas
excludentes dos espaços globais oficiais mas também frente aos traços
excludentes e autoritários da sociedade civil global em formação:
Obviamente, as cidadanias globais e a formação das sociedades civis globais
não estão desligadas das dinâmicas de poder e dos hegemonismos existentes
no interior dos países e entre os países a nível global.[…] As formas que pode
assumir a cidadania global relacionam-se quer com as formas como os
homens, mulheres e colectividades se inserem nos espaços globais, quer com
as formas através das quais as exclusões e subordinações nacionais se
expressam e visibilizam no espaço global. Os efeitos ambivalentes da
globalização, que ao mesmo tempo excluem e integram, também modificam,
potenciam ou renovam estas dinâmicas de exclusão/inclusão.

Novos desafios às políticas de educação


Uma vez que os processos de globalização e transnacionalização do
capitalismo têm várias dimensões, expressões e consequências, parece
evidente que estas terão também de ser consideradas quando se equacionam
os desafios actuais relativos ao campo da educação e das políticas
educativas.
No período posterior à II Guerra Mundial, em que, sobretudo nos
países capitalistas democráticos, se consolidou o chamado modelo político de
Estado-providência — modelo este que não teria sido possível se não se
vivesse num período histórico em que os Estados detinham ainda uma ampla
autonomia relativa na configuração das suas políticas —, a educação escolar
pública (sobretudo a correspondente à escolarização básica) pôde, em muitos
casos, ser reivindicada no espaço nacional como um direito universal (cf., por
exemplo, Afonso, 1999). Neste sentido, a sua contribuição não apenas
repercutiu positivamente na consolidação da cidadania democrática,
tendendo a facilitar o acesso ao mercado de trabalho, a mobilidade social
ascendente e o usufruto de bens materiais e simbólicos, como, igualmente,
permitiu ampliar as bases de legitimação política e a coesão social.
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 91

Nas últimas décadas, porém, numa fase de transnacionalização do


capitalismo e de redefinição do papel do Estado, as prioridades têm vindo a
ser redireccionadas para a acumulação e para a promoção da competitividade
económica entre os próprios Estados (cf. Antunes, 2001; Afonso, 2001). Estas
prioridades, segundo diferentes autores, passaram também a ser pensadas
criticamente pelas suas repercussões não apenas nas formas, garantias e
processos de trabalho (agora em mutação acelerada relativamente àqueles
que foram consolidados ao longo da modernidade industrial), mas também
nas formas como, doravante, tendem a ser equacionados e garantidos os
direitos dos trabalhadores (e dos cidadãos em geral) no contexto do "Estado
nacional de competição" (Hirsch, 2001).
Neste novo contexto, as reformas educativas e a reestruturação dos
sistemas educativos voltam a ser pensadas à luz de mudanças mais globais
no sistema capitalista, não sendo, por isso, de estranhar o retorno à ideologia
do capital humano ou, num sentido mais genérico, à apologia de uma
reconexão mais forte entre o mandato das políticas educativas e as supostas
necessidades dos sistemas produtivos e da competitividade económica,
dirigidas agora para mercados e espaços económicos que transcendem cada
vez mais o âmbito (e a capacidade de regulação) dos Estados nacionais.
Mas a questão da cidadania democrática (junto com a coesão social)
também reemerge contraditoriamente neste novo contexto, sobretudo quando
se pretende que ela seja um antídoto para a crescente vulnerabilização
neoliberal dos direitos que, entre outros aspectos, é traduzida pelo aumento
das desigualdades e da exclusão social. Certamente que é também em
relação a estas aspectos que devemos questionar-nos sobre o lugar e o papel
da escola (cf., a este propósito, por exemplo, Afonso & Antunes, 2001).
Numa época em que o predomínio do pensamento único começa a ser
fortemente questionado e confrontado, a expressão de muitos movimentos
sociais a nível global ganha uma nova dimensão democrática porque as
velhas questões das desigualdades de classe, de género, de raça, de etnia
(que, entretanto, se acentuaram) continuam por resolver, juntando-se agora
aos problemas cada vez mais globais do meio ambiente, do multiculturalismo,
da paz, da segurança, dos direitos humanos — em ambos os casos
apontando para agendas capazes de remobilizar novas lutas sociais pela
(re)configuração da(s) cidadania(s) numa sociedade de risco (sobre este
último conceito, ver Ulrich Beck, 1998).
92 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

É neste contexto que nos parece também ser urgente assumir a escola
como lugar de confronto de hegemonias. Na linha de Gramsci, vários autores
como H. Giroux (1990) e Williams (2004) chamam a atenção para os espaços
onde se confrontam aspectos decisivos das nossas vidas quotidianas. Aliás,
para Giroux, o essencial é considerar a escola como um espaço público de
democracia e de cidadania, sendo que estas não somente se ensinam como
também devem praticar-se. Por outro lado, para Williams, se a escola é
construtora de significados, a partir dos quais compreendemos a sociedade e
damos sentido ao mundo, então é necessário mudar a estruturação da escola
e os significados que ela produz. Assim, muitas das experiências e
concepções modernas de democracia participativa e de educação para a
cidadania continuam a fazer sentido. Como assinala Williams, "se o homem e
a mulher são essencialmente seres que aprendem, criam e comunicam, a
única organização social adequada à sua natureza é a democracia
participativa" (Williams, 2004: 194). Neste sentido, o modelo educativo
coerentemente ético parece ser aquele que conduz à autonomia, na linha da
educação libertadora de Paulo Freire. De alguma forma, trata-se de resgatar
modelos anteriores que voltem a colocar no centro o desenvolvimento e a
emancipação das pessoas e das comunidades. Ou seja, devemos olhar para
trás para ver o futuro. E é também aqui que ganha sentido o papel e o lugar
da educação e da alfabetização no século XXI. O paradigma dominante é
cumulativo, aquele que Freire (1985) designava de "bancário". Trata-se de um
modelo que, na linha da actual proposta de aprendizagem ao longo da vida,
visa acumular conhecimento (e não saberes) — conhecimentos que são
claramente instrumentais, funcionais e adaptativos porque supostamente
direccionados para aumentar a empregabilidade. Neste sentido, algumas
perspectivas dominantes, como refere Licínio Lima,
parecem ignorar que, em última instância, não há vida sem aprendizagem,
incorrendo no risco de denegar a substantividade da vida ao longo da
aprendizagem e de abandonar os objectivos da transformação da vida,
individual e colectiva, em todas as suas dimensões (2007: 19).

No entanto, é preciso não esquecer que somos seres sociais e que


não existe processo educativo que não seja social. Hoje, mais do que nunca,
há que recordar as palavras de Bogdan Suchodolski quando escreve que
Estado-nação, educação e cidadanias em transição 93

a educação deve assumir uma função muito mais difícil mas muito mais justa:
deve promover a convicção de que a vida pessoal só adquire valor e plenitude na
medida em que o homem e a mulher participarem na edificação de uma autêntica
vida social, e esta, por sua vez, só prospera e se fortalece quando consegue
penetrar nas motivações mais profundas da acção individual (1975: 51).

Por outro lado, numa dimensão mais ampla, também é necessário criar
outros pólos democráticos a nível nacional e global, e isso só será possível se
os processos de "múltiplas democratizações" (Vargas, 2001) se converterem
em parte fundamental das agendas dos movimentos sociais e,
acrescentaríamos nós, em eixos estruturantes das políticas educativas. Na
sequência dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, as análises mais
lúcidas têm vindo a relembrar que muitos dos problemas que alimentam os
ressentimentos e as hostilidades entre povos e culturas derivam da "opressão
das identidades" e de muitas outras graves desigualdades sociais,
económicas e educacionais que ocorrem em muitas regiões do mundo.
Inscritas no âmbito das novas formas de regulação (a que neste texto
não dedicámos espaço), as políticas educativas (ocidentais e
ocidentalizantes) têm também a sua cota parte de responsabilidade,
sobretudo quando favorecem os processos de acumulação e de controlo, o
predomínio das exigências cientificistas ou técnico-instrumentais e a
despolitização da educação, a competição meritocrática baseada numa mera
igualdade formal de oportunidades, a obsessão avaliativa pretensamente
neutra e homogeneizante, a emulação individualista e a selectividade
darwinista e discriminatória, esquecendo outros valores, conhecimentos,
experiências, culturas e visões do mundo que é urgente e necessário
aprender a convocar e a confrontar criticamente para que seja possível
aprofundar e ampliar a democracia e perceber melhor as cidadanias em
transição.
Sem essa consciência, a democracia que temos continuará a adaptar-
se facilmente às mudanças contemporâneas, mesmo que para isso se
esvazie de conteúdo para melhor se articular com o capitalismo e com as
novas formas de regulação nacional e transnacional. As cidadanias em
transição incluem concepções, percursos e projectos muito ambivalentes e
contraditórios, tanto regulatórios como emancipatórios. Não se trata apenas
de repensar o Estado, a nação ou as identidades em contexto de
94 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

globalização. Novos e velhos dilemas e problemas coexistem. O retorno


gradual às políticas sectoriais e particularistas de inclusão e de gestão das
diversidades; a defesa de um mínimo de cidadania como condição de ordem
social; a cidadania cognitiva e a criação e concepção de novos direitos ou a
ampliação (paradoxal) de outros; e a extinção, retracção, privatização e
partilha de direitos já existentes, entre muitos outras dimensões, constroem
(novas) agendas económicas, políticas, culturais, éticas e educacionais.
Neste sentido, pode perguntar-se para que lugar transitarão as cidadanias
(enquanto cidadanias em transição) se forem concretizadas políticas
educativas que pretendam vir a educar-nos, não apenas para a partilha de
direitos já adquiridos mas também, e sobretudo, para a aceitação de uma
(supostamente inevitável) futura redução de direitos?

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Estado-nação, educação e cidadanias em transição 97

NATION-STATE, EDUCATION AND CITIZENSHIPS IN TRANSITION

Abstract
Starting by calling attention to the plurality of historical processes and
meanings that underlie the idea of nation and State, the authors deal with
some approaches that help to clarify conceptual differences and to understand
the construction of possible convergences often referred by the expression of
nation-State. With the contribution of the State funded school (public school)
and the processes of symbolic violence (and even, in many situations, of the
use of physical violence), the construction of citizenship initially occurs
depending on that political and identitarian binominal; however it has been
changing as far as other historical, economic and social processes and
political and cultural democratization are under development. Facing
contemporary shifts in progress and considering its implications in educational
terms, the authors propose the expression citizenships in transition to stress
the present instability of the concept of citizenship, now framed by the
redefinition of the role of the State and the possible disarticulation of the
binominal nation-State, as well as by the processes of globalization and trans-
nationalization.

Keywords
Nation-State; Globalization; Education; Citizenship redefinition
98 Almerindo Janela Afonso & Emílio Lucio-Villegas Ramos

ESTADO-NACIÓN, EDUCACION Y CIUDADANÍAS EN TRANSICIÓN

Resumen
Comenzando por llamar la atención sobre la pluralidad de procesos históricos
y de significados que subyacen a la idea de nación y de Estado, los autores
señalan algunas perspectivas que ayudan a esclarecer sus diferencias
conceptuales y a percibir la construcción de sus eventuales convergencias,
normalmente designadas por la expresión Estado-nación. Con la aparición y
desarrollo de la escuela pública y de los procesos de violencia simbólica (e
incluso, en muchos casos, el uso de la violencia física) la construcción de la
ciudadanía se desenvuelve inicialmente en función de aquel binomio político
e identitario, pero va siendo alterada en la medida en que van desarrollándose
otros procesos históricos, económicos y sociales, y de democratización
política y cultural. Ante los cambios actuales y sus implicaciones en términos
educacionales, los autores proponen la noción de ciudadanías en transición
para mostrar la actual inestabilidad del concepto de ciudadanía, sujeto, en
este momento, a la redefinición del papel del Estado y a la eventual
desarticulación del binomio Estado-nación, así como a los procesos de
globalización y transnacionalización.

Mots-clé
Estado-nación; Globalización; Educación; Redefiniciones de ciudadanía

Recebido em Janeiro, 2007


Aceite para publicação em Maio, 2007

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Almerindo Janela Afonso,
Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga,
Portugal. E-mail: ajafonso@iep.uminho.pt

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