Danças Do Agora - Anda 2021
Danças Do Agora - Anda 2021
Danças Do Agora - Anda 2021
Organização
FICHA CATALOGRÁFICA
21-78948 CDD-306.484
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se
incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nº 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de
14/01/2010.
ANDA Editora.
Av. Adhemar de Barros s/n
Ondina – Salvador, Bahia.
CEP 40170-110
Carmen Anita Hoffmann (UFPel)
Joubert de Albuquerque Arrais (UFCA)
Leônidas de Oliveira Neto (UFRN)
Lucas Valentim Rocha (UFBA)
Rita Ferreira de Aquino (UFBA)
DANÇAS DO AGORA:
Políticas de morte e vida em um Brasil desigual
ANDA EDITORA
Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA
DIRETORIA
Prof.ª Drª Lígia Losada Tourinho (UFRJ)
Prof. Dr. Lucas Valentim Rocha (UFBA)
Prof. Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
Prof. Me. Vanilton Alves de Freitas (UFU)
Conselho Deliberativo Científico e Fiscal
Prof.ª Drª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)
Prof.ª Drª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Prof. Dr. Marcílio de Souza Vieira (UFRN)
Prof. Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
ANDA EDITORA
Editorial
Dr. Lucas Valentim Rocha (UFBA)
Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
Drª Lígia Losada Tourinho (UFRJ)
Comitê Editorial
Drª Carmen Anita Hoffmann (UFPel)
Drª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)
Drª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Dr. Joubert de Albuquerque Arrais (UFCA)
Dr. Leônidas de Oliveira Neto (UFRN)
Dr. Marcílio de Souza Vieira (UFRN)
Drª Rita Ferreira de Aquino (UFBA)
Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
Revisão
Luciana Calado (UFPB)
Pareceristas
Dr. Thiago Santos de Assis (UFBA)
Dr. Antrifo Sanches (UFBA)
Drª Larissa Kelly de Oliveira Marques (UFRN)
Drª Rebeca da Cunha Recuero Rebs (UFPel)
Drª Carolina Natal Duarte (PPGDAN/UFRJ)
Drª Ana Vitória Silva Freire (FAV)
Dr. Joubert de Albuquerque Arrais (UFCA)
Conselho Científico
Prof.ª Drª Amanda da Silva Pinto (UEA)
Prof.ª Drª Amélia Vitória de Souza Conrado (UFBA)
Prof. Dr. Amílcar Pinto Martins (Universidade Aberta de Lisboa/Portugal)
Prof.ª Drª Ana Macara ( Instituto de Etnomusicologia – Centro de estudos em música e dança/pólo FMH;
ULisboa – FMH – Portugal)
Prof.ª Drª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)
Prof.ª Drª Elisabete Alexandra Pinheiro Monteiro (Instituto de Etnomusicologia – Centro de estudos em
música e dança/pólo FMH; ULisboa – FMH – Portugal)
Prof.ª Drª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Prof. Dr. Fernando Marques Camargo Ferraz (UFBA)
Prof.ª Drª Helena Bastos (USP)
Prof. Dr. Marcilio de Souza Vieira (UFRN)
Prof. Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
Prof.ª Drª Marina Fernanda Elias Volpe (UFRJ)
Profª. Drª Neila Baldi (UFSM)
Prof.ª Drª Pegge Vissicaro (Northern Arizona University)
Prof. Dr. Rafael Guarato (UFG)
Prof. Dr. Sebastian G-Lozano – Universidade Católica San Antonio de Murcia, ESPAÑA
Prof. Dr. Sergio Ferreira do Amaral (UNICAMP)
Prof. Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
_______________________________________________________________
Esta obra foi aprovada pelo conselho científico e comitê editorial.
ORGANIZAÇÃO
Figura 1. A Dança da Morte (1493 – Michael Wolgemy - do Liber chronicarum por Hartmann Schedel..........................................36
Figura 2. Pintura alemã do séc. XVIII, nove mulheres de diferentes classes sociais expõem a economia da salvação .............. 37
Figura 3. Epileptics Walking to the Left Hendrick Hondius I (Holanda 1573–1650) ...........................................................................38
Figura 4. Capas da edição especial da Revista Nouvelles de Danse, Bruxelas com o dossiê L'intelligence du corps volume I e II ................... 53
Figura 5. A minha dor .......................................................................................................................................................................... 106
Figura 6. Fluxo ..................................................................................................................................................................................... 107
Figura 7. Em que tempo sua dança está? ......................................................................................................................................... 108
Figura 8. Para onde o ar irá se eu estiver indo junto? ....................................................................................................................... 119
Figura 9. Para onde irei se acompanhar a não existência do ar?.................................................................................................... 120
Figura 10. Para onde irão os gritos dos asfixiados? .......................................................................................................................... 121
Figura 11. O esfarelamento do rosto que é muitos ........................................................................................................................... 122
Figura 12. O outro-si como duplo esfacelamento do rosto pandêmico.......................................................................................... 123
Figura 13. Uma mitose ôntica entre si e o outro no esfacelamento ............................................................................................... 124
Figura 14. O rosto enrugado pela doença.......................................................................................................................................... 125
Figura 15. O rosto rugoso como lugar da doença de si e do outro .................................................................................................. 126
Figura 16. A explosão rostiva ............................................................................................................................................................. 127
Figura 17. Açude seco no Sítio Riachão, zona rural de Jucurutu/RN ................................................................................................ 131
Figura 18. Aspecto da intermidialidade, corpo e vídeo em diálogo ................................................................................................. 132
Figura 19. Tecnologia digital e o ambiente de morte na intermidialidade ..................................................................................... 139
Figura 20. Aparato tecnológico ......................................................................................................................................................... 183
Figura 21. Participação em aulas ....................................................................................................................................................... 184
Figura 22. Recepção das aulas remotas ........................................................................................................................................... 185
SUMÁRIO
PREFÁCIO 11
DANÇA, SAÚDE E EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA PELO PRISMA DE UMA ARTISTA DA DANÇA 50
Márcia Strazzacappa
PREFÁCIO
“Nós temos de ter coragem de ser radicalmente vivos.
E não negociar uma sobrevivência”.
(Ailton Krenak)
Acatamos a incumbência de dialogar com as ideias do livro que agora se encontra com os/as leitores/as,
uma obra urgente para o campo do conhecimento da Dança, no que se refere ao tempo presente. O título propositivo
e instigante, compõe com as escritas atinentes às experiências de/com/em dança vividas no cotidiano de um país
que desvaloriza a vida e banaliza a morte, em meio a pandemia de Covid-19 e seu vertiginoso impacto no aumento
nas desigualdades socioeconômicas da população.
Produzir uma publicação em tal contexto foi um desafio, mas também uma convocação, no sentido do
fortalecimento das lutas sem desesperançar, reiterando nosso desejo de agir nessas encruzilhadas em que o corpo
está exposto. A este chamado, pesquisadoras/es de Dança responderam com sensibilidade, pensamento crítico
aguçado e compromisso, no que diz respeito às múltiplas formas de existência, com cidadania e dignidade.
O livro reúne textos de nomes como Alex Beigui, Ana Clara Santos Oliveira, Diego Dantas, Fabiana Amaral,
Hélia Borges, Ileana Diéguez, Lela Queiroz, Márcia Strazzacappa, Marcílio de Souza Vieira, Marcos Bragato, Mariana
Acselrad, Robson Farias Gomes, Samuel Leandro de Almeida e Taynã Fabiano do Rosário Vieira. Cada texto discute
questões específicas em meio a um amplo horizonte de crise, sustenta perguntas e aponta caminhos possíveis
através de vivências e reflexões da Dança, que contribuem para um contundente debate hoje no país.
Às autoras e aos autores, o nosso profundo agradecimento por este e por muitos outros desafios e
inspirações para a Dança, que surgem de suas experiências vividas, sentidas e que provocam nossas ações diante
de tantas inquietações decorrentes destes tempos de pandemia. Uma obra necessária, estimulante e provocadora
de reflexões próprias e posicionamentos coletivos, os quais fortalecem o campo na formulação de questões –
especialmente no âmbito da contemporaneidade, na Dança do agora.
Por fim, nesse que não é fim, o livro é um convite a quebrar silêncios e a ir além dos discursos acadêmicos
e práticas estéticas, radicalizando ações éticas que denunciam violências sem negociar a sobrevivência, tal qual
nos ensina o intelectual indígena Ailton Krenak, na epígrafe deste prefácio.
Boa leitura!
Carmen Anita Hoffmann
Joubert de Albuquerque Arrais
Leônidas de Oliveira Neto
Lucas Valentim Rocha
Rita Ferreira de Aquino
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DANÇAS DO AGORA
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
DANÇAS DO AGORA:
POLÍTICAS DE MORTE E
VIDA EM UM BRASIL
DESIGUAL
Este livro nasce do Projeto Nacional de Incentivo à Publicação de Produções Científicas em Dança,
uma das experiências inovadoras realizadas pela Associação Nacional de pesquisadores em Dança (ANDA)
no âmbito da gestão 2018-20211.
Além de proporcionar a difusão da produção de conhecimento em Dança, de pessoas associadas e
pesquisadoras convidadas do Brasil e do exterior, esta política institucional fortaleceu os laços de
cooperação entre os Programas de Pós-graduação parceiros e correalizadores dos eventos da Associação.
PPGDança/UFBA, PRODAN/UFBA, PPGDAN/UFRJ, PPGPDAN/FAV, PPGAVI/UFPEL e PPGArC/UFRN estão presentes
neste manuscrito, representados por duas pessoas pesquisadoras indicadas para as funções de
organizadoras e pareceristas para a publicação desta obra que reúne discussões da Dança hoje no Brasil.
Desde 2019, esta gestão propôs o tema “Quais Danças estão por-vir? Trânsitos, Poéticas e Políticas
do corpo”. Este tema guiou o VI Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança, realizado
presencialmente nas dependências da Escola de Dança da UFBA, em 2019, e ganhou outros contornos com
a chegada da pandemia de Covid-19 no ano seguinte.
A intensa e vibrante produção intelectual do VI Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em
Dança – edição virtual realizada em junho de 2020, foi reunida em onze e-books publicados em novembro
do ano mesmo ano. Em especial, a publicação do livro “Os desafios pandêmicos e outros modos de re-
existências nas artes” apontava o modo como a própria Associação precisava se reinventar para garantir
1
Em decorrência da pandemia de Covid-19, a gestão bienal da Diretoria e Conselho Deliberativo e Fiscal da ANDA, eleitos na
Assembleia Ordinária do V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança na cidade de Manaus (AM) em 2018, transformou-se
em gestão trienal, devido à excepcionalidade da crise sanitária e seus impactos no país.
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DANÇAS DO AGORA
a continuidade de suas atividades diante do horror de um país que, ao final de novembro de 2020, tinha
rompido a inacreditável fronteira de 170 mil óbitos.
Era o final da primeira onda, quando ainda nutríamos a esperança de um “por-vir”, um amanhã que
estava para nascer. Porém, a gestão criminosa do Governo Federal, no que diz respeito a aquisição de
vacinas e o relaxamento das medidas de distanciamento social e uso de máscaras, gerou uma segunda
onda, ainda mais avassaladora. Com o colapso do sistema de saúde em diversos estados, o Brasil tornou-
se o novo epicentro mundial de uma doença que espalhou rastros da incompetência e dos desmandos que
vitimaram a população. Os primeiros quatro meses de 2021 já apresentavam um número de óbitos pela
Covid-19 superior a todo o ano de 2020 e, em junho, chegamos a meio milhão de mortes.
Não podemos mais esperar, precisamos agir agora! A Dança do agora não fala mais sobre as
danças, mas sobre a necessidade de posicionar epistemologicamente e ontologicamente o papel da dança
nesse contexto político. O sangue que escorre nas mãos desse desgoverno não pode ser esquecido. Por
isso, lembramos que o ponto central da discussão atual é a morte. Uma política nacional de banalização da
morte e desvalorização da vida que nos leva a reflexões profundas sobre questões que são o ponto de
partida para a criação das seis seções desse livro:
- Que corpos importam? Que corpos pesam?
- No atual contexto do Brasil, em quais bifurcações o corpo é exposto a tencionar morte e vida?
- Que políticas de existência se impõem e nos são impostas?
- Como as experiências de existência reinventada e de resistência corpolitizante transformam
precariedades e vulnerabilidades em ações que fortaleçam o trabalho com a dança e o dançar dos corpos?
- Como estão (sobre)vivendo corpos e corpas que dançam suas tradições, ancestralidades e
espiritualidades?
- Quais as linhas de fuga encontradas em movimentos de luta, de resistência e de afirmação da
vida?
Estas perguntas alimentam o questionamento, a inconformidade e a indignação diante da dor, do
luto e da necessidade de manter viva a memória de tantas pessoas que foram vítimas do descaso.
Perguntas que nos mobilizam, convocando a solidariedade e o pertencimento, pois esse é o papel de uma
associação: nos fortalecer coletivamente. Nesse momento, nossa luta é pela vida, cidadania e dignidade.
Num Brasil desigual não poderíamos deixar de lado a responsabilidade social pela construção
de condições de equidade em nossas ações. A participação neste e-book nasce de uma convocatória
temática para pessoas pesquisadoras associadas à ANDA, com intuito de potencializar a Associação. Além
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
disso, sensível ao momento atual, o Comitê Editorial estendeu a chamada para publicação aos profissionais
da Dança de perfis acadêmicos e não-acadêmicos que participaram das mesas do Congresso Científico
Nacional de Pesquisadores em Dança – 2ª edição virtual, em junho de 2021.
Este livro é, portanto, uma afirmação do corpo, da vida e da dança. Ele é dedicado aos profissionais
da dança, amigos e familiares vítimas da Covid-19 no Brasil.
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DANÇAS DO AGORA
APRESENTAÇÃO 1
QUE CORPOS
IMPORTAM? QUE
CORPOS PESAM?
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
No texto Qué cuerpos importan o cómo desmontar la performatividad del silencio, Ileana Diéguez
fala sobre a vulnerabilidade e a resistência como características de ações políticas levantadas por pessoas
cidadãs, ativistas e artistas, em reivindicações sobre uma vida digna.
Essas manifestações são colocadas, muitas vezes, nas ruas e de maneira coletiva, enfrentando
forças repressivas do Estado. Essas forças disseminam teatralmente a política do medo como forma de
controle social. A autora conta-nos sobre os casos de violência, vigilância policial, prisões ilegais e
desaparecimentos que começaram em Cuba, a partir de protestos, no ano de 2021.
Sobre a importância do corpo, parte da reflexão que o corpo não é uma abstração, não é um
emaranhado de carne e osso. Ele é um tecido de relações, definido no espaço intersubjetivo onde nos
construímos. Os corpos pertencem a um tempo, a lugares, a necessidades específicas. Cada corpo é único.
Existem corpos situados, performativos, interpelados pelas condições de vida, de fala, de classe, de raça
e, pela forma em que se constituem os espaços para possibilitar a dimensão social dos corpos, seu direito
de falar, de caminhar, enfim… de ser.
O texto é um convite a quebrar nossos silêncios e a ir além dos discursos acadêmicos e das
práticas estéticas, radicalizando nossas ações éticas que denunciam as violências e estruturas perversas,
incluindo os totalitarismos de esquerda. Reforça a ideia da necessidade de vincular a exposição e a
vulnerabilidade no contexto das nossas vidas, fomentando o desejo de viver e sobreviver.
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DANÇAS DO AGORA
En principio, esta pregunta retoma la enunciación lanzada por Judith Butler para pensar los
cuerpos que importan o dejan de importar en los marcos de guerra y en los escenarios de las disidencias
sexuales. Pero esta pregunta con la que inicio quiere enfatizar otros escenarios de la lucha política hoy,
donde la “disidencia” y la “resistencia” son castigadas y donde poner el cuerpo para posicionarse implica
exponer la propia vida.
No elegimos ser vulnerables. Estamos expuestas ante los enormes aparatos legales y de control
que tienen las infraestructuras y los poderes institucionales. Nuestra corporalidad, como bien ha dicho
Butler, es performativa y relacional (BUTLER, 2018, p. 41). No tenemos un control absoluto o soberano
respecto a lo que pueda sucedernos y afectar nuestros cuerpos y vidas. Pero justamente por ello es
necesario insistir en el vínculo entre la exposición y la vulnerabilidad en el contexto de nuestras vidas y la
necesidad de generar prácticas y estrategias que nos permitan persistir o al menos canalizar el deseo de
vivir y pervivir.
La vulnerabilidad “entendida como una exposición deliberada ante el poder, es parte del mismo
significado de la resistencia política como acto corporal”. (BUTLER, 2018, p. 43). En el corpus reflexivo de
Judith Butler, siempre en diálogo con prácticas sociales realizadas por mujeres, pero que más allá del
feminismo aporta un importante pensamiento sobre formas de agencia en general; repito entonces, en el
corpus reflexivo de esta teórica se plantea la vulnerabilidad “como algo que es usado a propósito o
movilizado a modo de resistencia” (BUTLER, 2018, p. 50) para enfrentar o parar a las fuerzas policiales o
2
Conferencia impartida en el VI Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em Dança da ANDA - 2ª edição virtual, 1 de junio
de 2021.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
militares, exponiendo el propio cuerpo a la violencia directa. Pero también se plantea la movilización desde
la vulnerabilidad para “hacer valer la existencia” (BUTLER, 2018, p. 50) reclamando el derecho al espacio
público, a la protesta no-violenta y a la disidencia.
En este abanico de formas de vulnerabilidad y resistencia hemos vivido los estallidos sociales o
amplias protestas en ciudades de este continente. Son ampliamente conocidos los casos recientes de Chile
y Colombia, y muchas veces cuestionadas las manifestaciones y protestas masivas en Venezuela,
Nicaragua y Cuba. En todos los casos la ciudadanía que demanda cambios y acciones concretas a favor de
la vida digna ha tomado las calles de manera multitudinaria y ha soportado desde la vulnerabilidad de sus
cuerpos el precio de enfrentar al poder. Sabemos que ese precio implica decenas de personas violentadas,
heridas, asesinadas y desaparecidas.
La vulnerabilidad y la resistencia implican formas de acción situadas con costos muy distintos
según el lugar donde se ejerzan. Qué sucede entonces cuando la resistencia se ejerce como acción ilegal
según lo definen las fuerzas de un Estado como el cubano que castiga la toma del espacio público para
cualquier tipo de protesta pacífica. Cómo pensar la vulnerabilidad y la resistencia de personas vigiladas
por policías secretos vestidos de civil que te impiden salir de la puerta de tu casa. Cómo pensar el derecho
a exponer el cuerpo y enfrentar el poder cuando las y los manifestantes de una protesta pacífica son
detenidos y permanecen horas y días en paradero desconocido y en calidad de desaparecidas. Cómo hablar
del tejido entre vulnerabilidad, soberanía y derecho cuando las fuerzas policiales derriban las puertas de
una vivienda para secuestrar y destruir la obra de un artista, para sacar a la fuerza a personas que llevan
días en huelga de hambre y sed como forma de protesta pacífica.
Cómo pensar estas disposiciones corporales -vulnerabilidad y resistencia- en situaciones
totalitarias donde los cuerpos son sustraídos de la protesta pacífica y son obligados a permanecer
ilegalmente recluidos en sus propias casas, o internados e incomunicados en hospitales bajo la más férrea
vigilancia y la aplicación de métodos clínicos desconocidos y sin el conocimiento ni el consentimiento de
sus familiares. Esta fue la situación de un joven artista independiente cubano, Luis Manuel Otero Alcántara,
un hombre que desde el pasado dos de mayo fue sacado de su casa contra su voluntad cuando cumplía el
octavo día de una huelga de hambre y sed. Gracias a las insistentes solicitudes de habeas corpus
interpuestas por sus amigo/as se supo de modo muy general y ambiguo que había sido ingresado en el
Hospital Calixto García, en La Habana, donde permaneció durante 29 días incomunicado, con estrictas y
mínimas visitas de dos familiares. Pese a las oficiales declaraciones médicas respecto a un estado de salud
normal, Luis Manuel permaneció recluido sin que se conocieran las razones que justificaran su
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DANÇAS DO AGORA
internamiento en un hospital. Las autoridades médicas permanecieron en silencio. Nunca existió algún
comunicado médico que informara a las personas preocupadas por su estado y que eran impedidas de
acercarse por las fuerzas policiales que rodeaban la institución. En lugar de ello, circularon
extraoficialmente en las redes videos de bajísima resolución realizados con celulares y sin que se
explicitara autorización para que la persona fuera grabada y expuesta públicamente, violando toda la
normatividad médica. Estas imágenes circularon en el espacio virtual sin que se supiéramos directamente
quién las hacía, aunque podemos deducir que fueron hechas por la misma policía que lo tenía secuestrado
en una sala bajo vigilancia presencial y donde se mantenía encendido durante 24 horas un aparato de aire
acondicionado y luces que dificultaban saber en qué momento del día o la noche se encontraba3.
Luis Manuel es el coordinador del Movimiento San Isidro, un colectivo de activismo ciudadano, arte
y solidaridad comunitaria que nace hacia finales del 2018, integrado por artistas independientes y
disidentes que se opusieron al decreto 349 a través del cual se regula la vida cultural y artística en el país
y se obstaculiza el trabajo de artistas independientes. Como ha expresado Erika Guevara Rosas, directora
para las Américas de Amnistía Internacional:
La noche del 26 de noviembre de 2020 vario/as integrantes del movimiento fueron sacado/as
violentamente de su casa en medio de una huelga de hambre y sed que sostenían en protesta por la
detención arbitraria del músico rapero Denis Solís. Al día siguiente de estos sucesos los jóvenes
comenzaron a reunirse ante el Ministerio de Cultura para pedir un diálogo con las autoridades y presentar
sus demandas, exigiendo muy enfáticamente el cese de la represión a los artistas y la liberación de los
integrantes del MSI. Llegaron a ser cientos, se ha dicho que fueron más de trescientos los jóvenes que
esperaron desde la mañana hasta la noche para que un viceministro los atendiera, asumiendo también la
amenaza de represión durante el regreso de los manifestantes a sus casas. Varios policías fueron
movilizados a las inmediaciones y estaban al acecho de los manifestantes. Fue necesario que los
integrantes del M27, así se ha reconocido esta movilización, solicitaran garantías para un seguro regreso
a sus domicilios. Desde entonces la/os integrantes del MSI y los principales activistas y artistas que
3
Esta última información está basada en declaraciones de Luis Manuel Otero. Ver entrevista realizada el 31 de mayo.
20
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
encabezaron el M27 han permanecido bajo una ilegal prisión domiciliar y una estricta vigilancia policial. En
diciembre del 2020, Amnistía Internacional manifestó su profunda preocupación por: “La vigilancia y el
hostigamiento que estamos presenciando son inaceptables según el derecho internacional, pues violan los
derechos a la intimidad y, en muchos casos, constituyen privación de libertad o, como mínimo, una
restricción ilegítima de la libertad de circulación” (15 diciembre 2020).
Bajo este asedio, Otero Alcántara, residente en el popular barrio de San Isidro que el propio
gobierno ha llamado de marginal y lumpen, decide iniciar una acción radical el 16 de abril. Sentado en un
garrote vil permanecería durante ocho horas diarias y a lo largo de cinco días, convocando a las
autoridades a que accionaran el torno y lo ejecutaran públicamente, tal y como comunicó a través de las
redes sociales. Al día siguiente su casa fue allanada, sus obras fueron decomisadas y visiblemente
dañadas, y él junto a otros integrantes del Movimiento fueron violentamente detenidos. A partir de
entonces comenzó una secuencia de detenciones cada día que el artista salía a reclamar sus obras. El 25
de abril inició otra huelga de hambre y sed mientras permanecía incomunicado y vigilado. En solidaridad
con Luis Manuel y en respaldo a sus derechos, numerosas personas se manifestaron mediante una sentada
en la calle de Obispo el 30 de abril y seis de ellos, activistas y periodistas independientes, fueron
violentamente detenidos. El reportero independiente Esteban Rodríguez lleva más de un mes en prisión. La
activista Thais Mailén Franco se encuentra en la prisión de El Guatao, en silla de ruedas debido a que sufrió
una caída en la prisión, y padece fuertes arritmias sin que se le permita recibir el tratamiento adecuado.
Ninguno de los detenidos ha pasado por proceso jurídico. Están informalmente acusados de “desacato” y
“resistencia” por haber participado en una sentada como forma de protesta pacífica porque en ese
contexto las protestas pacíficas son penalizadas y se consideran como “desorden público”. Las demandas
por las cuales Luis Manuel realizaba la huelga de hambre y sed fueron: el levantamiento del cerco policial
desplegado durante meses alrededor de su vivienda, la devolución de sus obras confiscadas por los
agentes el 16 de abril y el retiro de la cámara de vigilancia colocada ante la puerta de su casa. Pero lejos de
atender estas peticiones, en la madrugada del dos de mayo cuando iniciaba el octavo día de ayuno, las
fuerzas policiales entraron a su casa y contra su voluntad se lo llevaron al hospital donde permaneció
recluido por 29 días.
El 11 de julio se inició en San Antonio de los Baños, en La Habana, un levantamiento social que en
pocas horas se extendió a lo largo de la isla en numerosas ciudades y poblados, con miles de personas en
las calles. Las razones por las cuales la gente se lanzó a la protesta fueron varias. Entre ellas estuvo la
situación por la emergencia sanitaria, la falta de medicamentos e insumos, la incapacidad de los hospitales.
21
DANÇAS DO AGORA
La situación más alarmante es en la provincia de Matanzas, inundada por el turismo que llega a Varadero,
en tan sólo diez días fueron diagnosticados 16. 447 casos desbordando la capacidad de los hospitales y
centros de aislamiento. Las personas en Cuba acuden a las redes sociales, a la donación y el intercambio,
al mercado negro, y ante la desesperación demandaban vías legales para el envío de ayuda humanitaria
fuera del control del gobierno que ha condenado estas solicitudes porque considera que se trata de una
injerencia. Pero la protesta sobre todo estaba impulsada por una situación de crisis económica y social,
por el deterioro de las condiciones de vida que se ha ido acumulando y creciendo a lo largo de años. La
dolarización de la economía y el difícil acceso a alimentos y productos de primera necesidad vendidos en
moneda extranjera, la escasez de los más necesarios productos y sus altos precios, la creciente inflación,
la precarización de la vida que ha ido aumentando la desigualdad social, la suspensión del servicio eléctrico
hasta por 12 horas diarias en algunas poblaciones -como en San Antonio de los Baños donde se iniciaron
las protestas; la vigilancia y persecución a cualquier manifestación de descontento, la represión
sistemática de cualquier gesto de disenso, la falta absoluta de libertad de expresión, fueron las causas
más poderosas que impulsaron la protesta en las que se escuchaban las consignas “Patria y Vida”, “Abajo
la dictadura”4. En horas de la tarde del domingo 11 de julio el presidente no electo democráticamente, sino
impuesto por la cúpula militar, a través de una transmisión en cadena nacional llamó a enfrentar a los
manifestantes: “la orden de combate está dada”, dijo, una frase que devino autorización para la masacre.
En horas de la noche, y como hemos leído y visto en documentos que narran las cacerías de las dictaduras
militares latinoamericanas, cientos de personas fueron sacadas violentamente de sus casas. El saldo de
personas detenidas y desaparecidas forzadamente es de más de 400, y son fundamentalmente jóvenes
entre 25 y 30 años. La principal acusación que pesa sobre ellas y ellos es desacato a la autoridad, desorden
púbico y resistencia.
Es visible cómo el poder ha puesto en marcha una gramática que evidencia su alta capacidad
represiva. El poder se manifiesta a través de un sistema representacional que es apenas la parte visible
de su ordenamiento ceremonial. A partir de la noción de teatrocracia desarrollada por Nicolas Evreinov
para definir las representaciones que apuntan a la perdurabilidad del poder, Georges Balandier desarrolló
importantes ideas en torno a las representaciones del poder, las que sin duda alcanzan su esplendor en las
sociedades totalitarias. La teatralidad sirve al poder para disponer y expandir regímenes de sumisión. En
su modo más dramático, el poder “afirma su energía” activando la violencia institucional y convirtiendo la
4
Ver publicación de Jessica Domínguez Delgado, desde Cuba, en El Toque, de la cual tomamos información. Ver referencias.
22
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
escena política en “un teatro trágico” donde la clave del drama es la muerte moral o incluso física de
aquellos a quienes habrá que sacrificar para salvaguardar la forma y los valores supremos de la sociedad
(BALANDIER, 1994, p. 24). De manera que la coreografía desplegada por unos agentes del Estado para vigilar,
detener, desaparecer y apresar ilegalmente los cuerpos indóciles de una sociedad hace parte de una
teatralidad destinada a producir y diseminar políticas del miedo como forma de control político y social.
El teórico Iuri Lotman, impulsor de la Escuela de Tartu en Estonia, estudió la semiótica del miedo
como parte de sus investigaciones en torno a la semiótica de la cultura. La cuestión del miedo plantea
problemas no tan sólo psicológicos, sino también semióticos (LOTMAN, 2008, p. 11). Cuando se sufre el miedo
se puede observar una situación de peligro considerada así por aquella parte de la sociedad que califica a
la otra. Pero esa otra parte identificada como el “objeto del miedo” debe ser una minoría a la que se le
puede dar caza. Al menos este es el constructo bajo el cual Lotman ha planteado sus reflexiones situadas
en los contextos europeos marcados por un estallido del miedo o una “cultura del miedo”, especialmente
entre la segunda mitad del siglo XV hasta principios del XVII. El objeto del miedo es un constructo con ciertas
características: además de ser una minoría organizada que alcanza la posibilidad de ser reconocida como
comunidad; es también aquello que es extraño e impropio porque representa a “las fuerzas del mal”. Se
reconoce entre esas fuerzas una comunidad conformada por hechiceras, brujas y “aquellos que en otras
situaciones culturales son atribuidos a comunidades nocivas desde el punto de vista político”, etc (LOTMAN,
2008, p.19-20). A estas comunidades peligrosas para el resto de la sociedad se les debe extirpar sin
diferenciar entre sospecha, acusación y condena (LOTMAN, 2008, p.27). No se necesitan procesos legales,
basta dejar caer sobre ellas todo el peso de un consenso moral erigido como ley. Me interesan estas
reflexiones lotmianas para pensar ciertas lógicas totalitarias con las que actúan las fuerzas represivas del
Estado en las que parecen constatarse estos relatos semióticos. Por ello pienso que estas codificaciones
funcionan para imponer una política del miedo cuando ya se ha desmontado la cultura del miedo que ese
Estado creyó consolidar. Cuando una parte importante de la sociedad cubana salió a las calles desmontó
la cultura del miedo, pero desde entonces las fuerzas del poder pretenden imponer sus políticas de
represión para causar el terror. Una política del miedo entonces implica un sistema de representaciones y
un conjunto de performatividades dirigidas a producir temor social bajo la creencia de que todo está bajo
el control de las fuerzas estatales. Las políticas del miedo operan entonces como estrategias para
perpetuar una cultura del miedo allí donde hay señales evidentes de que ya están siendo desmontadas o
de que ya no operan gracias al desacato social, porque ya se ha perdido tanto que prácticamente ya no
hay nada que perder. De allí la importancia del castigo como elemento esencial de esta política.
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DANÇAS DO AGORA
Sabemos que el arte de castigar se expresa mediante una tecnología representacional (FOUCAULT,
2005, p. 108), como ha reflexionado Michel Foucault. Como parte de este sistema, los ideólogos han
desarrollado “una tecnología de los poderes sutiles, eficaces y económicos” (FOUCAULT, 2005, p. 106) a
través de la cual perpetuar la soberanía sobre los cuerpos. Cuando el castigo opera como “una economía
de los derechos suspendidos” (18) pone en juego “la sustitución de la semiótica punitiva por una nueva
política del cuerpo” (FOUCAULT, 2005, p.107). A través del “teatro de los castigos” se establece una relación
sensible que busca especialmente intensificar dolorosamente la percepción. Sobre los cuerpos se
producen intervenciones que son parte de un sistema representacional dirigido a enfocar la alerta y a
distribuir dosificadamente el miedo. Se evita la espectacularidad y el efecto de terror masivo antaño
producido por las guillotinas. La teatralidad apela a una movilización de la escena que abandona la
frontalidad para dar paso a escenas más intimistas e intimidatorias. Se apela a estrategias de
clandestinidad que disimulen la ilegalidad. Los actores irrumpen en los espacios privados generalmente en
altas horas de la noche. La estrategia del secuestro, la desinformación y el terror que produce la dificultad
de saber qué ocurre con los cuerpos tiene un efecto: nada es lo que parece. No hay detención porque
regresas, no hay desaparición porque siempre se reservan el poder de decir al cabo de los días, dónde
están los cuerpos, pero nunca sabremos qué ocurre con ellos en esos sitios en los que se detiene el tiempo.
La práctica de la desaparición forzada hace parte de estas estrategias del terror, tal y como ha sido
utilizada por las dictaduras militares del cono sur, por regímenes totalitarios y por gobiernos que
amparados en la figura de la democracia violan sistemáticamente los derechos humanos. Si tenemos en
cuenta la información emitida por la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos
Humanos a partir de la Declaración proclamada por la Asamblea General de la ONU en su resolución 47/133,
del 18 de diciembre de 1992:
se producen desapariciones forzadas siempre que "se arreste, detenga o traslade contra su
voluntad a las personas, o que estas resulten privadas de su libertad de alguna otra forma por
agentes gubernamentales de cualquier sector o nivel, por grupos organizados o por particulares
que actúan en nombre del Gobierno o con su apoyo directo o indirecto, su autorización o su
asentimiento, y que luego se niegan a revelar la suerte o el paradero de esas personas o a
reconocer que están privadas de la libertad, sustrayéndolas así a la protección de la ley (ONU,
2009, p. 1).
El 18 de mayo del año en curso (2021) el músico Maykel Osorbo Castillo fue sacado violentamente
de su casa en La Habana por la policía política. Después de 72 horas sin conocerse su paradero, Amnistía
Internacional a través de su directora para las Américas declaró que ante el silencio de las autoridades el
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caso podría constituir desaparición forzada. También El Comité Contra las Desapariciones Forzosas de
Naciones Unidas de la ONU requirió “la acción urgente del Estado parte para que adopte todas las medidas
necesarias para buscar y localizar a Maykel Castillo Pérez y proteger su vida e integridad personal, de
conformidad con sus obligaciones convencionales”. Después de trece días sin ninguna información, el
estado cubano dio a conocer que estaba en una prisión de provincia sin que entonces mediara ningún
proceso legal. Desde el 11 de julio hay cientos de personas detenidas-desaparecidas forzadamente en Cuba,
acusadas de producir desorden público por participar de una masiva protesta pública.
Cuando Luis Manuel Otero decide sentarse ocho horas diarias en la máquina del garrote vil, más
que una performance lo que allí sucedió fue una acción radical. Un gesto desesperado desde el cual
sostener su última apuesta por una vida digna de ser vivida. El propio objeto, el garrote vil, carga una
memoria que expone su uso desde la soberanía. Alguien tiene el poder de decidir la vida de otro, de matar.
El garrote vil es una máquina de matar que data del medioevo y que introdujo España en América para
producir castigos ejemplares ante las insurrecciones. Las últimos ejecutados por este método fueron
durante la dictadura de Franco, en 1974. En la acción realizada por Luis Manuel este objeto hace parte de la
representación del castigo, aparentemente autoinfligido, pero explícitamente resultado de una extrema
presión policial y represiva. Sostener el cuerpo en la postura que pide la máquina de matar conforma una
imagen altamente provocadora porque contra todos los discursos justicieros y redentores propagados por
el Estado, la imagen de un hombre joven y negro nos traslada a un momento donde los cuerpos negros
esclavizados no importaban, como tampoco importa ahora el cuerpo y las vidas no sólo de Otero Alcántara
sino de cualquier disidente. El proceso metonímico que activa la máquina genera también analogías sobre
los cuerpos reprimidos y los cuerpos represores que directa o simbólicamente activan el aparato. Y desde
las aproximaciones que genera es una evidente interpelación que desenmascara al poder.
Cuando pienso que es una acción, un gesto, más que una performance, apelo también a la
condición liminal que la atraviesa. Si se considera como una acción desde el arte o desde “el plus
diferencial” propio del régimen artístico y los artistas, ha sido sobre todo realizada en un momento en que
el gesto por la vida toma una forma estética que es también una agencia. Por el umbral en que se posiciona,
por la agonía entre la vida y la muerte que la constituye, es una acción liminal: un llamado desesperado a
defender la vida pero de manera que pueda ser dignamente vivible. Es una acción por la vida al tiempo que
implica una señal sobre la elección de morir antes de mal vivir. Es una acción manifiesta como acto ético y
como forma estética de ese acto.
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DANÇAS DO AGORA
más absoluto silencio ante las violaciones de los patriarcas adjetivados “de izquierda”? Cuanto nos alcanza
la performatividad del silencio que imponemos sobre aquellos asuntos y problemas que justificamos desde
consignas ideológicas. Ello me ha conducido a preguntarme si lo que nos importa es una política de afectos
ideológicos, o lo que nos moviliza es la necesidad de defender la vida. Como ha sugerido Judith Butler,
“vivimos con normas de reconocimiento muy limitadas” y “tenemos la obligación de cuestionar nuestras
ideas acerca de qué vidas merecen ser protegidas, qué vidas son vidas humanas” (BUTLER, 2011, p. 57).
Entonces, la pregunta sobre “qué cuerpos importan” implica también pensar nuestra
responsabilidad como personas que más allá de supuestos saberes “especializados” tenemos una práctica
de alcance público. En nuestro medio la idea de la especialización ha hecho un importante recorte de
nuestra voz y de nuestras propias performatividades. Parece que el ejercicio público de nuestra palabra
es ante todo académico, estético, pero no ético. Me refiero específicamente al acto y a la palabra
responsable que nos vincula a las y los otros.
Las reflexiones de Mijaíl Bajtín en torno a la teoría del acto como figura esencial de una filosofía de
la vida lo llevaron a analizar las distintas acciones que en carácter de “especialista” o incluso como
“representante” de un grupo, de una tarea, de una institución, etc, asumen las personas. Esa
representatividad o actividad que se realiza como “especialista” desde el punto de vista de Bajtín sería
una impostura si se realiza como mera actividad técnica, o si no se realiza como implicación absoluta y
como acto responsable. La separación entre esos dos planos de la acción –la técnica, la especializada o
representativa, separada de la responsabilidad ética- fue lo que lo llevó a afirmar: “la crisis contemporánea
es básicamente la crisis del acto ético contemporáneo. Se ha abierto un abismo entre el motivo de un acto
y su producto” (BAJTÍN, 1997, p. 61). De manera que no es posible plantear la ética como un valor agregado
a las prácticas políticas, intelectuales o artísticas. La ética es un acto que se da en la frontera con el/la
otro/a, ante un otro concreto, en nuestras respuestas y responsabilidades específicas. Esta esfera en la
que se tejen nuestras relaciones y responsabilidades con las y los otros es un escenario fundamental para
mantener vivo el sentido de nuestras prácticas. Cuestión que me interesa articular al planteamiento de
Bauman y Donskis (2015) en torno a la adiaforización del comportamiento, como “la capacidad de no
reaccionar o de reaccionar como si algo le ocurriera no a personas, sino a objetos físicos, a cosas o a no
humanos. Las cosas que pasan son insignificantes; no nos pasan a nosotros o no pasan con nosotros”. La
adiaforización como retirada temporal de la propia zona de sensibilidad, está inevitablemente vinculada a
la idea de “ceguera o insensibilidad moral”. Bauman insistió en usar la palabra “insensibilidad” en una
dimensión metafórica para dar cuenta de cierto comportamiento humano o indiferencia adaptada hacia
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DANÇAS DO AGORA
las tribulaciones de otras personas, una postura que él resumía en el gesto de Poncio Pilatos de lavarse las
manos. Esta salida del ámbito de la esfera de implicaciones éticas fue pensada por Bauman como
pretendida inmunidad al dolor. La capacidad de sentir dolor es una señal del cuerpo ante situaciones de
riesgo que pueden ser tratadas y quizás curadas. La ausencia de dolor es también asociada a un estado de
enfermedad ante la que es difícil una curación. Desde esta reflexión sobre los síntomas clínicos, podemos
pensar que la inmunidad al sufrimiento de los otros implica que como cuerpo social estamos tan enfermos
que hemos perdido la capacidad de percibir el peligro. “El dolor moral es despojado de su saludable papel
de advertencia, alerta y agente activador” (BAUMAN, 2015).
Entonces, me pregunto cómo podemos contribuir al desmontaje de la adiaforización que es
también el desmontaje de la teatralidad del poder y sus políticas del miedo; el desmontaje de la
performatividad del silencio ejercida por quienes callan amparados en justificaciones “políticamente
correctas”. Cómo no ser parte de esta escena representacional de un teatro de Estado si en nuestros
comportamientos y silencios expandimos la teatralidad del poder y sus tecnologías del castigo.
Castigamos callando, diseminando una performatividad del silencio que inevitablemente alcanza y expone
a sus animadores. En qué medida somos espectadore/as pasivos de estas teatralidades del poder o somos
performers de ese silencio cómplice.
¿Cómo hacer de nuestras prácticas formas de acción interesadas en el desmontaje de estructuras
perversas que pueden pervertir nuestros propios discursos y formas de vida? ¿Cómo no pensar cuál es el
presente de los cuerpos hoy bajo los totalitarismos de las llamadas "izquierdas" que devienen cómplices
de aquello que callan? ¿Cuál es el presente de los cuerpos secuestrados, desaparecidos, encarcelados sin
derecho a un proceso legal, por disentir? ¿De qué hablamos cuando nombramos la palabra "resistencia" al
mismo tiempo que te encarcelan por resistir ¿Se puede imaginar la vida de las personas secuestradas en
sus propias viviendas, vigiladas, impedidas de salir a la vía pública porque piensan diferente? ¿Podemos
por un segundo imaginar qué está sucediendo con las cientos de personas detenidas y forzadamente
desaparecidas a partir del levantamiento del 11 de julio en Cuba? ¿Cómo sostener que el derecho a tener
derechos depende de la ideología que profeses? ¿Cómo defender los derechos humanos más allá del
partido o el mito que mejor acomode a cada unx? ¿Cómo no repetir la complicidad por silencio o convicción
tan lamentada en tiempos aciagos? ¿Qué vidas, qué cuerpos importan?
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DANÇAS DO AGORA
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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Acesso em: 31 mai. 2021.
PRENSA LATINA, Cubadebate, Afp, Ap, Reuters, Europa Press y Sputnik. “Díaz-Canel: la orden de combate
está dada: ¡revolucionarios a las calles!”, La Jornada. Disponível em:
https://www.jornada.com.mx/notas/2021/07/12/mundo/diaz-canel-la-orden-de-combate-esta-dada-
revolucionarios-a-las-calles/. Acesso em: 12 jul. 2021.
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DANÇAS DO AGORA
APRESENTAÇÃO 2
EM QUAIS BIFURCAÇÕES
CORPOS E CORPAS ESTÃO
EXPOSTOS(AS) QUE TENSIONAM
MORTE E VIDA?
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DANÇAS DO AGORA
O ONTEM DA DANÇA:
POUCOS FAZEM POUCOS ASSISTEM
Marcos Bragato
O ontem da dança ou qualquer coisa que requer conhecimento especializado é o hoje do amanhã.
A máxima histórica “poucos fazem poucos assistem” deve ter atenção necessária para os que da profissão
de dança dependem e para os que dependem da exposição de seus experimentos para a cena. Essa máxima
parece difusa pelo tecido social e um de seus desdobramentos se encontram na disponibilidade de lugares
e teatros voltados à dança. Isso implica a aceitação da dança como profissão.
Com a agudização das restrições impostas pelo distanciamento social, que nos afeta desde março
de 2020, embora haja transposição para o mundo da tela, deverá ocorrer o que se chama de pressão
seletiva. Uma das operações biológicas da relação entre organismo e ambiente, pode ser transposta como
seleção cultural. Por isso, o ontem insiste em reaparecer quando não se espera pelo reaparecimento.
Uma imagem pública que atravessa os tempos, mas é levada ao extremo na formação do cortesão,
em lugares os quais reinos prosperam, especialmente em países europeus como França e Rússia, e a Índia.
Com a nobreza, são “poucos” os que podem apreender e transmitir embora o campesinato consiga
formular um outro registro, um outro glossário de passos e gestos, de acordo com suas festas e
cerimônias. Em períodos de guerra e de mortes aos milhares a arte se vê no espelho da “impossibilidade”.
Os desdobramentos no ambiente no século 20 são as tentativas de esgarçamento dessa máxima,
mas o atalho da especialização se coloca com vantagens e desvantagens para os que da dança vivem e
sobrevivem. Frente ao avanço de suportes que nos conectam a qualquer lugar em qualquer temporalidade
que fraciona tempo/espaço, antes não presenciado, parece sugerir a dança teletransportada sob auspícios
do audiovisual.
Estamos, então, num “novo começo” o qual a presencialidade não mais importará e a discussão
sobre a manutenção e a disponibilização do palco uma realidade a ser transposta? É a morte de um estado
de situações que pedem proximidade ou é a vida para o que dela vive e sobrevive? São questões que
merecem respostas, no entanto há de se esperar para o que poderá se ajustar no ambiente da cultura face
às possíveis restrições genéticas.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
A pressão seletiva irá se ampliar porque o ontem apresenta as dificuldades. No caso em questão,
o da exposição das experiências artísticas quando poderemos nos aproximar. Quando podermos nos
reaproximar não esqueçamos a ininterrupta ação da seleção cultural. E inserir a profissão vinculada à
dança como a última na lista de prioridades deve ofuscar os olhos; os olhos ofuscados pelo sinal vermelho
intermitente do semáforo do descaso e de mais uma “morte” em sua coleção de enterros. Como o
fechamento e o veto da exposição das intervenções artísticas em dança. Essa sim é a Morte!
Desde já, cabe atentar à manutenção de uma produção artística. Ela impõe restrições típicas da
tessitura e das decisões sobre quais estratégias que se quer adotar quando pavimenta ações cênicas.
Episódios históricos podem nos ajudar no entendimento do estado de coisas, em quais bifurcações o corpo
que dança pode estar exposto.
As primeiras notícias, em dezembro de 2019, vindas de Wuhan, cidade do interior da China,
anunciam sete pacientes internados com pneumonia. Sabemos o que sucede: milhões de infectados e
milhares de mortos pelo SARS-Covid 19. O afastamento é a regra porque a lufada virótica se dá por
transmissão especialmente pelo ar, aerossol.
Em situações extremas, pandemias e guerras, os humanos precisam atentar para a morte porque
a vida parece, paradoxalmente, chamar atenção de outro cotidiano. Também as artes foram afetadas. Não
poderia ter sido diferente.
Sarabandas (BOURCIER, 2006) é nome de uma dança lasciva e vivaz gerada anteriormente no
cenário da peste no estertor da idade média. A nomeação se refere especialmente a corpos febris
insuflados pela peste bubônica, assim chamada devido aos visíveis “bubões”, gânglios linfáticos inchados,
ou “peste negra” devido à cor das manchas que produzia em diversas partes do corpo.
Toma conta de parte do continente europeu de 1347 a 1351 e mata milhares de pessoas, no período
da guerra dos cem anos entre França e Inglaterra. Espalha-se pelo mundo durante o século 14, mata parte
da população mundial e por volta de 1/3 da população europeia, especialmente nas regiões do
mediterrâneo e parte da Europa Ocidental, e retorna diversas vezes para aniquilar populações (BYRNE,
2012).
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DANÇAS DO AGORA
A peste é uma combinação da peste bubônica e da pneumonia e atingiu toda a Europa matando
metade da população da Europa em 1450 (FRITH, 2012; BENEDICTOW, 2005; BYRNE, 2012).
A peste negra é provocada pela bactéria Yersinia pestis correntemente encontrada nas pulgas e
roedores. Quando transferida para humanos se manifesta como uma praga bubônica, pneumônica e
séptica dependendo da concentração de patógenos no sistema linfático, pulmão ou corrente sanguínea,
(BYRNE, 2012; FRITH, 2012).
Na Idade Média, a morte é uma “ameaça” próxima mais que hoje depois da invenção da penicilina.
Dificilmente as pessoas vivem após os 30 anos. A nutrição pobre em elementos necessários ao processo
enzimático e a guerra constituem o cenário propício às doenças. A morte, então, passa a ser um tema
urgente.
Figura 1. A Dança da Morte (1493 – Michael Wolgemy - do Liber chronicarum por Hartmann Schedel
Essa representação, como outras, são erguidas sob o impacto da Peste Negra quando lembra as
pessoas de quão frágeis são nossas vidas e quão vãs são as glórias da vida terrena. Isso é impacto da
cosmovisão cristã.
A dança macabra tem traços religiosos, a mais popular nos séculos 14 e 15. Inicialmente parece
grassar espontaneidade, mas se transforma no formato processional. Escancara a obsessão do período
para com a morte. A igreja procura interditar quando postula para o sepultamento temor, tremor e
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decência (KRAUS; HILSENDAGER; DIXON, 1991). Há aumento da popularidade da dança macabra com paródias
grotescas de funerais e explosões frenéticas de dança durante o período da Peste Negra (1347-1373).
A dança macabra, tema recorrente na baixa idade média ocidental, é um tema predileto dos
artistas visuais, mas, de fato, realizam-se manifestações de um gosto excessivo pela dança,
especialmente durante serviços religiosos, e documentos relatam a loucura de assembleias se tornarem
possessas. Por isso, a carola, tão popular, não é mais uma manifestação da alegria e torna-se, em muitas
ocasiões, uma dança macabra, uma mania de dança (BOURCIER, 2006), e, também a conhecida como danças
de São Vito; também, danças de êxtase da massa.
Figura 2. Pintura alemã do séc. XVIII, nove mulheres de diferentes classes sociais expõem a economia da salvação
Sua sucessora, produto de uma epidemia de dança, é chamada de dançomania. O frenesi toma
conta dos corpos num tempo para dançar e morrer (BOURCIER, 2006).
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DANÇAS DO AGORA
As pessoas reunidas em cemitérios das igrejas para cantar e dançar responde a um tema de
pregação bem antigo, que apresentava a morte como uma motivação para viver dentro dos preceitos
cristãos. O costume de se dançar e cantar nos cemitérios, a partir do século 14 (BOURCIER, 2006), difunde-
se para mostrar que a vida é uma carola conduzida pela morte quando a carola, em forma circular, é
dançada para celebrar e comemorar episódios permeado pela positividade. Seja entre camponeses ou
entre a emergente nobreza dançante, a carola se altera para um ambiente embebido pela negatividade.
Não podemos esquecer: o ser humano tem característica que o torna foco principal da exploração
viral. Ela está presente nas estratégias sociais, e ajudam a enformar a dinâmica da situação do hospedeiro
do vírus.
Face a isso, 10 cientistas evolucionistas (SEITZ et al., 2020) se posicionam sobre os
desdobramentos dessas estratégias frente às restrições extremadas como é a contaminação pelo SARS –
COVID 19 a uma espécie eminentemente social: o indivíduo depende do grupo e, por sua vez, depende de
outros grupos. Entender como a evolução tem moldado nossa mente social fornece pistas como age a
seleção cultural.
SELEÇÃO CULTURAL
Nesse viés, não há rompimentos. Há alterações: algumas visíveis a olho nu, outras imperceptíveis
no desenho formativo rumo à especialização sob ação de processo semelhante que ocorre na biologia.
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Esse processo se resume na atuação da seleção cultural em operar de modo assemelhado ao da seleção
natural para gerar diferenças culturalmente herdáveis entre os indivíduos e adequadas entre grupos ou
mesmo operar na esfera das variantes culturais, independentemente dos efeitos que as variantes
culturais têm na adequação da aptidão de indivíduos
O modelo teórico proposto pelos evolucionistas abrange a noção de natureza humana (CARROLL,
2011), ao contrário dos defensores da tábula rasa de que cada indivíduo é uma folha em branco a ser
preenchida pela história de vida da vivência em seu mundo social (PINKER, 2004).
Por isso, carregamos a habilidade da abstração metafórica a qual nos leva a solucionar
capacidades originalmente vocacionadas para a solução de problemas físicos e coordenação social
(PINKER, 2010). A habilidade ajuda a explicar a existência da cognição sem recorrer ao sobrenatural ou às
forças exóticas evolucionárias (Ibid.).
Ao empreender determinado recorte analítico sobre fatos incrustados na realidade, e realidade
aqui significa regularidade de eventos, tomar-se-á a necessidade da conciliação dos chamados universais,
formas básicas do comportamento humano – reprodução, desejo por sexo, status – com os traços
individuais/a história de vida, os caracteres que fazem uma pessoa seja aquela pessoa.
O recorte está inserido no projeto Consiliência (WILSON, 1999), a necessidade de se utilizar de
achados de áreas diversas para se analisar um determinado fenômeno. Áreas como arqueologia,
antropologia física, psicologia evolucionista e, especialmente, as áreas voltadas aos estudos do
selecionismo cultural como a Teoria Memética e Teoria Gene-Cultura (LINQUIST, 2010). As referidas teorias
são conflitantes: a primeira, alude a um fluxo de informação eminentemente cultural; a segunda, pontua
por uma via de mão dupla entre genética e cultura como fenômenos epigenéticos (LUMSDEN; WILSON, 1981).
A memética é inaugurada por Richard Dawkins, em 1976, quando no último capítulo de O Gene
Egoísta (DAWKINS, 2007) propõe uma segunda entidade replicadora, e não apenas o gene. O meme, cuja
existência molda o ambiente cultural, e não obedece às restrições do fluxo genético, tem desenvolvimento
especialmente com as análises da psicóloga britânica Susan Blackmore (1999) e o filósofo estadunidense
Daniel C. Dennett.
A base do impulso memético é a competição entre memes, entre ideias, comportamentos,
instruções para se fazer alguma coisa para serem copiados e os vencedores alteram o ambiente em que
os genes são selecionados. Os memes são transmitidos de pessoa a pessoa por imitação. Como
replicadores, os memes devem ser algo capacitados de sustentarem o processo evolutivo de
hereditariedade, variação e seleção (DAWKINS, 2007).
39
DANÇAS DO AGORA
A teoria gene-cultura, por sua vez, postula por processos coevolutivos entre a informação cultural
e o ambiente genético. As iniciativas de Charles Lumsden e Edward Wilson (1981), concentradas no
Culturgen desaguam nas formulações de outra dupla baseadas em modelos matemáticos nas pesquisas
sobre os traços culturais.
Nessa formulação, o antropólogo Robert Turner Boyd e o biólogo Peter Richerson (2010),
estadunidenses, avançam na proposição da teoria da dupla herança ou conhecida como teoria gene-
cultura. Grosso modo, a teoria define o comportamento humano como um produto de dois diferentes e
interagentes processos evolutivos: evolução genética e evolução cultural. Neles, há constante
retroatividade: alterações podem levar a mudanças culturais as quais também atuam para alterar a
seleção genética, no clássico feedback.
Como somos espécie culturalmente acumulativa, os fatos não podem ser entendidos deslocados
da espécie evolutivamente que somos. E espécie culturalmente cumulativa significa se ater a pontos os
quais são desenhados por comportamentos que se acumulam o suficiente para serem mais complexos; os
que conseguiram ultrapassar as restrições impostas pela evolução cultural (PAGEL, 2012).
Os chamados traços culturais são aqueles traços fenotípicos cujo desenvolvimento depende da
aprendizagem social: práticas, habilidades, crenças, desejos, valores e artefatos (MAMELI; STERELNY,
2009). O truísmo de que tais traços mudam não ajuda no entendimento da evolução cultural porque,
acoplada à descendência com modificação, o que muda pode não se constituir em “bom” para quem a
hospeda.
Os traços alterados são empilhados sobre outros traços, mas isso ainda não explica profusamente
a evolução cultural. Há que atentar para a “mão oculta” sobre as alterações quando traços culturais são
modificados e retidos ao ser transmitidos a outros por meio da aprendizagem social. A se observar o papel
das artes em ambiente de crise e de afastamento, e os desdobramentos no comportamento a elas voltado.
Somos animais particulares porque somos uma espécie cultural evoluída, e espécie cultural
evoluída implica em características fortemente moldadas pela atuação da seleção cultural (McELREATH;
HENRICH, 2006) no protagonismo da imitação via aprendizado social. Isso deve ser considerado por
historiadores.
A dimensão da temporalidade arguida desde Leslie A. White (2009) e, recentemente por Tim Ingold
(2002), sobre a diferença entre história da cultura e evolução cultural, sobre história e evolução, perde a
razoabilidade quando pactuamos que estamos inseridos em uma cadeia evolutiva; quando observamos
que certas propriedades podem ser vislumbradas nos mundos macro e micro.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Não faz mais sentido diferenciar um do outro: a sequência histórica como um composto de
eventos “únicos” e processos evolucionistas como série de ocorrências. Tim Ingold alega que ações
humanas devem ser vistas como “incorporativas” e não como “inscritivas”, no sentido que elas são
envolvidas nas formas da paisagem e dos indivíduos “vivos” porque a natureza não é a superfície da
materialidade que a história humana está inscrita (INGOLD, 2002). Parece não atentar às variantes culturais
como parte da natureza por ela moldadas, e a natureza poder ser “ajustada”, ao ligar e desligar
determinada informação por restrição ambiental.
Como outros autores, Ingold postula a história como um encadeado de alterações em propriedades
subjetivas e em estruturas de percepção e cognição. No entanto, uma explicação evolutiva nos reinsere
no comportamento de uma espécie cultural, e no ponto em que tal comportamento transmitido se acumula
o suficiente para ser mais complexo e adequadamente adaptado ou mal adaptado do que qualquer coisa
que um único indivíduo, sozinho, poderia conceber em sua vida.
Quão tamanha é a alteração no equipamento humano, o corpo, desde a saída do homo sapiens do
continente africano por volta de 60 mil anos atrás e passar a fazer arte há 40 mil anos? Quais alterações
dão se a ver no comportamento humano? Quais são as possibilidades de ampliação do repertório cognitivo
e da inteligência corporal? O know-how cultural, que se acumula ao longo de gerações e se transmite de
pessoa a pessoa.
Evoluímos em pequenos grupos, e muitas fragilidades estavam na ordem do dia. Não estamos
preparados para estratégias de longo prazo (SEITZ et al., 2020). A ameaça da fome, a fragilidade frente a
ação de outros animais e, especialmente, a exploração por estranhos. Isso pode ser visibilizado na corrida
armamentista entre traidores que necessitam entender os outros para enganá-los e detectores de
traidores que precisam entender os outros para detectar a traição.
Esquecemos evolutivamente em pensar claramente nas ameaças de longo prazo, como as
pandemias e as pandemias de ideias que nos limitam. Não evoluímos para nos antecipar ao ataque de
qualquer espécie. Trabalha-se a solução no instante em que ela nos apresenta.
Há quem crê no monitoramento da evolução cultural (SEITZ et al., 2020). Defendem como um
insight do pensamento evolucionista a concentração em interesses que transcendam os interesses
individuais, os corporativos e os nacionalistas.
Esses interesses chamados pelos autores de “nível inferior” podem “minar” do que realizar
contribuição para o bem comum. Perguntamos: qual a extensão desse insight? Não defendem a metáfora
da “mão invisível”, mas como podemos nos rebelar se o curso dos fatos escapa do controle?
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DANÇAS DO AGORA
As estratégias de curto e longo prazo nos fornecem os sinais principais das alterações a que
estamos sujeitos. Os arqueólogos, por exemplo, ficam surpreendidos ao saberem que as culturas da era
do gelo poderiam, apesar dos desafios de sobrevivência, tomar providências para os artistas criarem
trabalhos de grande complexidade e habilidade.
Talvez essa surpresa se dê porque ainda compartilham a opinião dominante de que o trabalho
artístico é um luxo herdado das cortes. Um entendimento de que as artes são um complemento para a
sobrevivência, em vez de algo fundamental para a vida humana; de poucos para poucos assim parece ser
para a crença de arqueólogos (PILIKIAN, 2021). Portanto, assim que o coronavírus aparece a noção popular
sustenta que a expressão física da arte pode ser suspensa temporalmente. Parece uma corrida
armamentista entre traidores que necessitam entender os outros para enganá-los e detectores de
traidores que precisam entender os outros para detectar a traição
No entanto, como reforça William Calvin (1998), o darwinismo exige muito mais do que apenas
reprodução e competição. Em sua acepção, uma Máquina Darwiniana deve possuir seis propriedades
básicas: 1) A Máquina envolve um Padrão: Inicialmente, é o caso clássico da cadeia de bases de DNA
denominada de gene mas, também, o meme como um padrão cultural; 2) As cópias são de algum modo
constituídas por esse padrão: A divisão celular. As pessoas cantarolam ou assoviam uma canção ou um
refrão musical ou fazem uso de gírias, entre tantas outras cópias possíveis; 3) Os padrões mudam, às
vezes. Há erros nas cópias. A unidade da informação cultural sofre mutação; 4) As competições entre
cópias ocorrem pela ocupação de um espaço ambiental limitado. A mente humana; 5) Um meio ambiente
multifacetado influencia o relativo sucesso das variantes. Essa tendência pode ser chamada de seleção
natural; 6) A geração seguinte compreende as variantes que sobrevivem até a idade reprodutiva. A
longevidade da unidade de replicação cultural. (CALVIN, 1998).
No entanto, as “invenções” ou “urdiduras” da cultura humana dependem, como os vírus, da
maquinaria de replicação que foi construída e mantida direta ou indiretamente pelo processo genitor da
evolução biológica (DENNETT, 2006) ou como quer Dennett (1998) a “infosfera”, a esfera da informação por
uma constante interatividade, de acordos e conflitos informacionais.
Derek Hodgson (2017), por sua vez, inquire de modo apropriado quando pergunta: Por que é
importante compreender o papel das artes? São três as respostas por ele fornecidas: as artes como meio
adequado à avaliação cognitiva dos humanos modernos, ao papel custoso a elas dedicado porque requer
esforço e recursos que poderiam ser direcionados às atividades de sobrevivência e a dedicação, sem óbvia
retribuição, desloca prazer quando se produz arte.
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Por isso, pode-se especular que as artes têm sido fundamentais à manutenção da coesão grupal,
especialmente quando expande as populações. Antes do aparecimento das artes, essa coesão estava em
litígio. Requerer, a partir deste momento, um outro lugar para o que se entende como produção cênica de
dança é esquecer a cadeia evolutiva.
Esquece-la, quando se pede afastamento, é desproporcional ao fundamento de sua operação, a
relação palco-plateia. Essa relação é gerada em ambiente hostil à profissão, a corte, mas retoma seu papel
que, agora, está restringido.
A dança humana é ubíqua. Fez e se faz presente em todas as partes da terra, pelo menos naquela
na qual participo por prazer ou temor. Mas quando faz parte de determinada cerimônia – religiosa ou do
calendário – isso se configura como atuação social.
Autores (FINK et al., 2021) sugerem a dança humana como o lugar a desencadear informações
sociais relevantes, em sua evolução. A ubiquidade entre os humanos é a prova inconteste da facilitação
de estabelecimento de laços sociais e, talvez, protagonista em determinado período quando religião e
dança estão interconectadas e quando nos rituais estão entrelaçadas. Por isso, propõe-se a evolução da
dança de movimentos cotidianos, mas não comunicativos, para o lugar comunicativo de sinalização social
como coordenadora de ações entre integrantes de um determinado grupo (FINK et al., 2021).
Adaptativa ou subproduto da evolução, a dança humana pode ser antevista nas diversas culturas
e diferentes períodos históricos. Reúne diversidade e variação na qualidade enformada. Assim mesmo, os
humanos têm a capacidade de dançar especialmente no período anterior à maturidade sexual (FINK et al.,
2021).
Justamente o comportamento de flerte e acasalamento podem estar na origem dos mecanismos
que evoluíram para facilitar a existência da dança humana, e deve oferecer benefícios ao indivíduo em
intricado comportamento (HAGEN; BRYANT, 2003). Isso pode ter transformado a dança em crescente
popularidade pelas sociedades (FINK, et al., 2021) porque a dança oferta intercâmbio social com alto grau
de confiança.
No entanto, quando se desloca para o palco outra realidade se impõe ao mesmo tempo: os ajustes
para povoá-lo, a invenção de novos membros e a expansão de uma profissão que teima não existir. Frente
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DANÇAS DO AGORA
às dificuldades de adesão da nobreza que o digam os filhos da criadagem do palácio dos czares russos nos
séculos 18 e 19 (HOMANS, 2012).
Um pacote que aumenta com o advento dos modernismos, mas, simultaneamente, e
paradoxalmente, restringe a ação de especialistas. Assim mesmo, a profissão transpassa as barreiras por
portar a tecnologia mais antiga – o corpo.
De todo modo, sem a proximidade não pode se instaurar a cadeia dos sistemas de sinalização,
tanto como ação social ou como ação cênica, fundamental para uma espécie com inteligência social como
a nossa. No caso da especialidade, uma interação entre a estratégia do artista e uma presumida
preferência do espectador para gerar uma espécie de feedback que tem promovidos deslocamentos
múltiplos na história da dança.
A prática de dança requer uma coordenação interna, como qualquer coisa viva, a despeito de
artistas defenderem o tom anárquico, ela carrega um “relógio interno” necessário à cooperativa
coordenação social. O antagonismo permeia os desdobramentos dessa prática, mas mantém as atividades
da área, como todas outras e em crescente segmentação, como uma especialização e como profissão.
Há o apontamento de que traços anteriores persistem na especialização como a propriedade da
dança em fazer as pessoas a se sentirem socialmente próximas, ao partilharem metas e atenção com os
outros (LALAND et. al., 2016). Mas há propriedade dependente da especialização como a competência e,
talvez, a compreensão de atentar para ritmos para sincronizar movimentos.
Talvez esse seja o fardo a carregar os que dela vivem e sobrevivem, o da propriedade de se
manterem socialmente próximas. Parece ainda patente a não aceitação, com os indícios da imagem
pública, que a dança tem seções diferenciadas. Isso quer dizer o flagrante escárnio para com tal
especialização, uma postura desatenta para com a realidade dos fatos. O ontem hoje opera.
Está em jogo a sincronia com o andamento da seleção cultural, algumas vezes irreversível. Na
contramão disso está o encerramento da Sala Paulo Emílio Salles Gomes do Centro Cultural São Paulo, à
exposição de iniciativas cênicas experimentais como o protótipo dessa resistência em atentar para com a
dança em relação equânime com outras materialidades artísticas.
O ontem escancara o aumento das dificuldades do amanhã. Quando nos aproximar, a pressão por
locais de exposição e apresentação tenderão a aumentar consideravelmente. Isso sim é a Morte! Ou
melhor: são muitas pequenas mortes! Intempéries acrescentadas pelos entendimentos, os vírus de ideias
de que a dança cênica é feita por poucos para poucos.
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A seleção cultural produz alterações gritantes quando a dança se distribui para o palco. Nele,
acompanha as transformações da instalação humana na terra e, entre elas, como produto da
especialização a tarefa do “faça você mesmo”. Hoje, a tarefa, dos que dela vivem e sobrevivem, espalha-
se em vieses vistos também em outras artes. Não observar os detalhes do panorama incorre na resistência
de presença de unidades informacionais, mas pode também significar um desejo corporativo, essa
resistência da existência dos detalhes.
A dança não tem a tarefa de providenciar as ferramentas para serem utilizadas na vida cotidiana.
Essa é uma tarefa da ciência, mas isso não significa que a produção em dança não possa ajudar em outra
frente.
Eliminar o palco significa, talvez, eliminar tipos de colaboradores adequados à realidade cênica.
Eliminar a cena próxima significa, talvez, uma reinauguração, e especular sobre a reação da mídia mais
antiga, o corpo. Eliminar salas, significa, talvez, ceder à sanha do popularesco e daquilo que opera com
dualidades. Podemos nos revoltar com a seleção cultural?
O mundo pandêmico escancara as desigualdades na imagem pública de que a dança é feita por
poucos para poucos. A precariedade se acentua. Ela existe sob as restrições da não-existência de lugares
ou a rara existência de lugares a se expor.
O ontem anuncia o amanhã ou como ironicamente sugere Pilikian (2021): deixe os teatros e as salas
de exposição e os cinemas permanecerem fechados até que se desintegrem ao pó. Algo novo surgirá das
ruínas!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Poucos fazem poucos assistem” parece nos perseguir, juntamente com a instalação da dança
como profissão estendida nas cortes, especialmente na monarquia de Luís XIV (1638-1715).
Paradoxalmente, enquanto estimula a área e a inclusão de novos membros apresenta limites à expansão
como agrupamento social. Quando a “mão invisível” da seleção cultural empreende rumo à especialização
de novas tarefas humanas, a dança se espraia pelo estamento social médio. A tão propalada
democratização anunciada por artistas estadunidenses a partir de 1960, e desagua em diversos vieses
pelo palco.
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DANÇAS DO AGORA
Não observar a profusão vivida pelas artes cênicas significa se ater em temas superados pela
evolução cultural, como o encerramento de salas destinadas a área nas quais o “faça você mesmo” pode
ganhar surpreendentes respostas. Tal entendimento vigora desde ontem e deverá se agudizar quando
podermos nos aproximar.
Para os que vivem e sobrevivem da dança a instância do produto artístico cênico encaminha rumo
à especialização. Isso irá requerer outras estratégias de reaproximação, mas a ação da seleção cultural
deixa o palco como lugar por vocação, por excelência. Esquecer essa vocação diminuirá o tamanho do
território de atuação dos que vivem e sobrevivem, amanhã.
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DANÇAS DO AGORA
O presente texto foi produzido mesclando os apontamentos originais que haviam sido feitos ao
preparar minha participação na mesa de encerramento do Congresso da Associação Nacional de
Dança/ANDA e a comunicação em si ocorrida no dia 4 de junho de 2021. Embora ciente de que o registro da
mesa esteja disponível ao público pelo Canal do YouTube da Associação, ter escrito sobre o que falei no
frescor daquela noite foi importante, pois me permitiu apresentar os fundamentos, logo, tornar mais
evidente aqui, algumas colocações que foram feitas lá.
BACKGROUND
Assim que aceitei o convite feito pela professora Lígia Tourinho, passei a refletir sobre qual
poderia ser minha contribuição para a mesa que tinha como tema "Dança, Saúde e Educação em tempos
de pandemia", ainda mais ao saber que iria compartilhar a mesa (ou deveria dizer, a tela) com a professora
Hélia Borges, docente da Faculdade Angel Viana, profissional com formação e atuação nos campos da
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
filosofia e da psicanálise e que a mediação seria do professor Diego Pizarro5. Estava igualmente ciente de
que o Congresso da Associação Nacional de Dança/ANDA seria totalmente online e que faria uma
homenagem a um dos ícones vivos da dança e da formação em dança no Brasil: Angel Vianna.
"Dança, Saúde e Educação" são três grandes áreas com as quais trabalho há muitos anos, de forma
pontual, como docente da Faculdade de Educação da Unicamp, tendo atuado na formação de licenciados
em dança do Instituto de Artes e, mais recentemente, atuando na formação de médicos na Faculdade de
Ciências Médicas. Quanto à Angel Viana, embora ela não tenha sido sujeito direto de minha investigação no
doutorado, tendo em vista que o recorte foi o estado de São Paulo, a pesquisa destacou em sua conclusão
a importância do casal Viana (Klauss e Angel) como precursores nacionais de técnicas corporais que
contribuíram para a consolidação de "corpos que pensam" no Brasil. Diante deste cenário, supus que minha
contribuição para a discussão da noite seria destacar os estudos e as investigações no campo da educação
somática. Afinal, não é a educação somática um espaço de interseção entre a saúde, a arte e a educação?
De fato, ao revisitar minha tese de doutorado6 ficou evidente o quanto a educação somática se
configura como espaço de articulação entre saberes da saúde, da arte e da educação. Acreditava, até
então, que meu encontro com estes campos ocorrera apenas por ocasião da referida pesquisa, porém,
identifico no presente que a aproximação já estava anunciada há mais tempo, quando ainda era
pesquisadora do LUME. A convite do fundador do referido grupo de pesquisa e coordenador de graduação,
professor Luis Otávio Burnier, colaborei com o Departamento de Artes Cênicas desenvolvendo atividades
de consciência corporal para atores. Posteriormente, essas atividades se tornaram uma disciplina básica
obrigatória para o primeiro ano de graduação, denominada "Fundamentos Técnicos do Corpo", incorporada
no PPP do Curso quando houve a reformulação do Bacharelado. Minha dissertação de mestrado7 analisou
as bases da criação desta disciplina, que apontava uma preocupação com o bem-estar corporal e com a
5
Diego Pizarro defendeu sua tese de doutorado pela UFBA em com o título "Anatomia CorPoÉtica em (de)composições: três
corpus de práxis somática em dança".
6
A tese Fondements et enseignements des techniques corporelles pour les artistes de la scène au Brésil dans le XXème siècle
foi posteriormente traduzida e publicada em livro pela Papirus (2012, reimpressão em 2017) com o título: "Educação Somática e
Artes Cênicas: princípios e aplicações".
7
Dissertação de Mestrado em metodologia de ensino, intitulada « O corpo em-cena ». Faculdade de Educação, Unicamp 1994.
http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/253831 Para mais informações sobre as atividades desta disciplina, indico
o artigo “Dos pés à cabeça e do centro para as extremidades: notas sobre um corpo cênico em construção”, na Revista Percevejo
Online, UNIRIO, 2010 e o capítulo “Por uma anatomia lúdica na construção de um corpo cênico” no livro organizado por Joana
Tavares e Nara Keiserman intitulado O corpo cênico entre a dança e o teatro, 2013.
51
DANÇAS DO AGORA
saúde de futuros artistas cênicos (atores e atrizes), visando a diminuição de lesões físicas, à época, tão
recorrentes junto aos e às estudantes ingressantes.
A preocupação com a saúde corporal de artistas cênicos seguiu permeando minhas investigações,
ao pesquisar técnicas corporais na formação de profissionais do espetáculo vivo, ou seja, de teatro, dança
e circo. Ao longo do desenvolvimento do doutorado na Universidade de Paris 8, debruçando-me sobre as
denominadas "técnicas do corpo" (MAUSS, 1934), passava os dias fechada na biblioteca da Cité de la
Musique, (o acervo de dança encontra-se agora no Centre National de la Danse em Pantin). Foi nesta
biblioteca que entrei em contato com o dossiê "A inteligência do corpo" numa edição especial em dois
volumes (vide imagem abaixo) da revista Nouvelles de Danse. Entre os artigos do dossiê, o mais
emblemático, sem dúvida, foi o artigo assinado pela professora da Universidade do Quebec, Sylvie Fortin
intitulado "Educação somática: novo ingrediente da prática em dança".
Já tive outras oportunidades de dizer o quanto este artigo foi um marco em minha pesquisa ao ter
conseguido finalmente dar um nome àquelas práticas que muitos vínhamos realizando há tanto tempo e
que eram, por falta de uma expressão mais adequada, denominadas "prática alternativas", "consciência
corporal", "técnicas corporais alternativas", dentre outros. O impacto do artigo foi tamanho que mesmo
ainda na condição de estudante de doutorado, ousei entrar em contato com a autora para lhe pedir
permissão para traduzir o referido texto, explicando-lhe que acreditava que seria importante para que
outros/as pesquisadores/as pudessem encontrar seus pares. O artigo foi traduzido e publicado no Caderno
do GIPE-CIT da Universidade Federal da Bahia/UFBA em 1999 e se tornou um emblema na disseminação do
conceito de educação somática no Brasil.
52
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Figura 4. Capas da edição especial da Revista Nouvelles de Danse, Bruxelas com o dossiê L'intelligence du corps volume I e II
Foi apenas em 2008, ao ler a introdução da obra "Danse et Santé - du corps intime au corps social",
que compreendi o investimento de Fortin na reestruturação do curso do Departamento de Dança da
Universidade do Québec em Montréal. Em 1987, quando ela ainda dançava, sofreu uma severa lesão nas
costas durante uma turnê. Ela afirmou que "deve sua cura graças a um programa personalizado que
compreendia, entre outras intervenções para além da medicina tradicional, um trabalho de percepção em
educação somática e de reforço muscular" (FORTIN, 2008, p.1). Mais tarde, já docente da graduação em
Dança, foi testemunha de muitos estudantes sofrendo lesões típicas do métier. Assim, a partir de sua
experiência pessoal como artista da dança e como docente, convenceu colegas professores a integrar dois
aspectos na formação em dança: a educação somática e o reforço muscular.
Além de Sylvie Fortin, entrei em contato com outros/as autores/as que assinaram artigos na
revista Nouvelles de Danse. Foi um processo demorado, tendo em vista que na década de 1990 a Internet
estava ainda engatinhando. Enviei correspondência pelo correio convencional e enquanto aguardava as
respostas, aprofundava meus conhecimentos sobre o assunto por meio da leitura atenta das bibliografias
dos referidos artigos, quando existentes no acervo da Cité de la Musique. A cada leitura, acrescentava
mais reformadores do movimento em minha lista. Acabei por realizar entrevistas (áudio e escritas) com
educadores/as somáticos e com alguns/mas de seus/suas discípulos/as.
53
DANÇAS DO AGORA
Para a presente comunicação, gostaria de destacar três aspectos8 que demonstram as tensões
decorrentes da delicada relação no que tange a intersecção entre dança, saúde e educação:
Mabel Todd (1880-1956) criadora da Ideokinesis, tinha um estúdio em Nova Iorque no qual recebia
inúmeros artistas entre bailarinos e bailarinas de companhias profissionais, atores e atrizes de teatro e
cinema9, além de profissionais liberais. As pessoas que procuravam seu estúdio tinham algum tipo de
queixa física, porém, a maior insatisfação era com a forma como profissionais da saúde tratavam seus
respectivos casos. Mabel Todd agia de forma intuitiva. Havia uma escuta, uma observação aguçada e
muita experimentação. Seu trabalho empírico acabou sendo legitimado por uma de suas alunas, Lulu
Sweigard (1895-1974) que defendeu uma tese de doutorado na qual realizou um estudo com 200 indivíduos
que frequentavam os cursos de reorganização postural de Todd. Com a comprovação científica de seu
método, Todd passou a receber cada vez mais alunos e adeptos, porém foi por conta do sucesso que ela
acabou sendo processada pela Associação Médica nova iorquina (o equivalente ao CRM brasileiro) por
prática ilegal da medicina. Mabel Todd deixou vários discípulos, além de Sweigard, como André Bernard,
John Reland, Pamela Matt e Barbara Clark.
Durante a década de 1950, quando Miss Todd foi perseguida pela lei, [Barbara] Clark decidiu
mudar a ênfase terapêutica de seu trabalho para a educação. Começou, então, a trabalhar
com artistas da dança. A aplicação de seu trabalho na dança, portanto, passou primeiramente
pelos cuidados com lesões. os artistas da dança entravam em contato com seu trabalho a fim
de obter a cura de traumatismos (STRAZZACAPPA, 2012, p. 96, grifos nossos).
Irene Dowd, outra educadora somática e assistente de Sweigard, ao ser entrevistada para minha
pesquisa afirmou de forma categórica que o que ela fazia era educação. Se havia um lado terapêutico em
seu trabalho ou se havia uma melhora na performance corporal de seus clientes, isso era consequência,
não finalidade. Diante de afirmações tão firmes, cheguei a pensar se sua fala não seria uma forma de se
proteger de qualquer tipo de processo jurídico como ocorrera com sua Todd.
O brasileiro José Antônio Lima, médico de formação e atuante no campo da dança, publicou no
dossiê Entrelugares do Corpo e da Arte da Revista Pro-posições, um artigo pautado em sua tese de
doutorado (LIMA, 2010a) no qual afirma: "ainda que os preceitos da educação somática tenham fundamento
8
Para quem tiver interesse, aconselho a leitura da tese no original em francês, com suas 465 páginas. O livro publicado pela
Papirus apresenta uma síntese das principais ideias da tese.
9
A título de curiosidade e para evidenciar o sucesso do trabalho de Mabel Todd, Marilyn Monroe era uma das frequentadoras de
seu estúdio e afirmava que o livro The thinking Body era sua bíblia.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
em preceitos científicos que também norteiam os conhecimentos da área das ciências da saúde, a
educação somática não é terapia" (LIMA, 2010b, p. 53). Mais adiante, cita o Código Deontológico do R.E.S.10:
A educação somática não é em si uma terapia. Ainda que possa claramente haver benefícios no
plano terapêutico, ela não pertence ao campo médico. Ela não detém o discurso sobre a
patologia, não estabelece diagnóstico, não faz tratamento nem mesmo prognóstico de
resultado, seja no plano físico, psicológico ou comportamental (R.E.S. apud LIMA, 2010b, p.54).
Como médico e educador, agrada-me sustentar a tese de que toda ação terapêutica só se
completa ao manifestar-se também como ação pedagógica, educativa, assumindo, como
contrapartida, que toda ação educativa só estará completa se apresentar como resultado
circunstancial uma faceta terapêutica.
Por mais que isto possa parecer contraditório com o que foi dito antes, com relação à definição
de terapia, cumpre entender que a ideia traz como analogia: a ignorância como doença a ser
tratada e o processo educacional como método terapêutico a ser aplicado (LIMA, 2010b, p.62).
Como veremos mais adiante, se a ignorância é uma doença, há uma epidemia no Brasil.
Após esclarecer o background que sustenta meu pensamento, gostaria de esclarecer que um dos
pontos mais importantes quando se estuda, ensina e/ou pratica qualquer uma das principais técnicas de
educação somática, é justamente reconhecer o estado presente do próprio corpo e do corpo daquele que
se coloca diante de você para a prática. Assim, ciente de que a mesa de encerramento do congresso
ocorreu logo após a longa assembleia da associação, não poderia me furtar de agir de acordo com aquilo
que defendo. Logo, para adentrar o tema da mesa "Dança, Saúde e Educação em tempos de pandemia"
convidei o público ouvinte a ser um agente de sua própria reflexão por meio de uma ação simples, porém,
importante e urgente: espreguiçar. E foi pelo espreguiçar que iniciei minha fala-gesto, propondo ao público
que se levantasse da cadeira e começasse a se movimentar, afinal, não se pode apenas falar
10
sigla para Regroupement pour l`Éducation Somatique.
55
DANÇAS DO AGORA
sobre/acerca/de educação somática, ignorando a condição daqueles e daquelas que nos ouvem. E,
enquanto o público se espreguiçava, li o poema11 abaixo como forma de anunciar meu lugar de fala.
Antes da pandemia,
11
Inspirada no poema da estadunidense Anita Wadley intitulado "Apenas brincando": "Quando eu estiver, no quarto, construindo
um edifício de blocos,/ Por favor, não diga que eu estou "apenas brincando”./ Já que, entenda, eu estou aprendendo enquanto
brinco/ Sobre equilíbrio e forma. (...)."
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
É por meio do olhar de uma artista da dança que tem seu corpo como laboratório e empresta seus
saberes de dança, corpo e educação somática a outras áreas do conhecimento que passo a tecer a
discussão sobre dança, saúde e educação em tempos de pandemia.
O tema da mesa permite levantarmos várias questões possíveis, a começar pela definição dos
termos aí presentes. Dança, a que dança nos referimos? Dança espetacular? Dança na escola? Dança como
manifestação popular? Saúde, qual o conceito de saúde? Seria a saúde apenas a ausência de doença(s)? E
educação? De que educação falamos? Educação formal? Educação não-formal?
DANÇA
Defino Dança como sendo "movimentos humanamente organizados segundo uma intenção
estética" (STRAZZACAPPA, 2007). Esta definição foi cunhada em 2007 para ser apresentada por ocasião da
57
DANÇAS DO AGORA
32a reunião nacional da ANPED em Caxambu/MG, ou seja, foi pensada para esclarecer um público leigo,
formado majoritariamente por pesquisadores e docentes do campo da educação. O que sustentou aquela
definição era o desejo de desmistificar a prática da dança como uma linguagem artística para poucas
pessoas, exclusiva para algumas iluminadas, que nasceram com corpos ideais ou que tinham "dom". Se
para a música, a matéria prima é o som, usando a mesma analogia para a dança, pode-se inferir que a
matéria prima da dança é o movimento. Então, faz-se necessário mover-se e, sobretudo, explorar
movimentos, para se chegar à dança. Ao trabalhar, à época, com a formação de professores e professoras
para atuarem na educação formal, ou seja, na escola de educação básica, era recorrente o pensamento de
que a dança não caberia na escola para além das festividades do calendário cívico. Isso porque para a
grande maioria do professorado, a dança era tida como uma coleção de passos a serem apreendidos por
meio de repetição dos gestos da professora dentro de uma determinada música. Não se aprendia a dançar
pela dança. Aprendia-se uma coreografia pré estabelecida para uma comemoração pré datada, finda a
qual, a dança desaparecia da escola. Independente dos diferentes estilos e técnicas presentes em
território nacional, sigo defendendo a existência da dança na vida das pessoas, como veremos mais
adiante.
SAÚDE
Quanto ao conceito de Saúde, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa diz que "saúde
substantivo feminino, 'estado de são', 'salvador' XIII. Do latim salus."(CUNHA, 2007, p. 708). E ao buscar a
etimologia de salus encontramos que esse termo designava "o atributo principal dos inteiros, intactos,
íntegros''.
Já o Dicionário Houaiss (2002, p. 399) define o verbete como “Estado do organismo são. Estado de
boa disposição física e mental. Força, vigor”.
Porém, dentre as diferentes definições, gosto mais desta abaixo dada pelo Dicionário Oxford
Languages12
12
https://languages.oup.com/google-dictionary-pt/
58
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
pois compreendo a saúde como fluxo, como movimento. Movimento necessário para se conseguir
um equilíbrio dinâmico. Explico:
Há alguns anos atrás, especificamente por ocasião do recebimento de um diagnóstico, me coloquei
a refletir sobre este conceito. Havia feito exames periódicos de rotina. Não havia absolutamente nenhuma
queixa, nada de anormal, nenhum incômodo, nem dor, porém, um papel repleto de letras e números
acompanhado por uma coleção de imagens em preto e branco anunciavam a presença de uma doença
séria. Estaria, então, doente? O mal de doenças silenciosas é que elas chegam sem fazer alarde e, por
vezes, quando finalmente mostram sua cara, pode ser tarde demais. Anuncio aqui o bom de ter um
conceito mais amplo de saúde é reconhecer que faz parte de um quadro saudável, realizar exames de
rotina mesmo quando "tudo vai bem". Reconheci naquele momento que são múltiplas as saúdes: saúde
física, mental, espiritual, emocional, afetiva, relacional, familiar, social, profissional e financeira. Mais
recentemente, especificamente no último ano, adicionei mais uma: saúde intelectual (diante de tanta
ignorância!).
Assim, como uma definição muito pessoal de saúde, compreendo a capacidade que o indivíduo
tem (ou desenvolve) de encontrar um equilíbrio dinâmico entre estes diferentes aspectos que compõem
sua vida, sua forma de ser e estar no mundo.
EDUCAÇÃO
Para definir educação, reporto-me ao grande educador brasileiro Paulo Freire, cujo centenário é
celebrado no presente ano. Para Freire, a educação é uma ação humana, é uma forma de intervenção no
mundo, logo, de transformação. Gosto quando ele afirma sobre o nosso inacabamento, como seres que,
mesmo adultos, estamos sempre aprendendo. Nós somos porque "estamos sendo", afirma (FREIRE, 1996,
p.). O gerúndio que é tão presente na língua brasileira, isto é, na língua portuguesa falada e escrita no Brasil,
é um tempo verbal que indica movimento. E é exatamente o que há em comum (e que me é caro) nas
59
DANÇAS DO AGORA
definições de dança, de saúde e de educação. E é justamente a ausência de movimento uma das questões
mais sérias da pandemia, próximo ponto a ser aqui tratado.
PANDEMIA
Aparentemente, a palavra pandemia seria a mais fácil de ser definida, afinal, trata-se de um termo
técnico ligado a uma classificação dada pela Organização Mundial da Saúde. Quando uma doença
encontra-se disseminada em nível mundial, utiliza-se o prefixo grego PAN, que indica "tudo, todos".
Diferentemente da epidemia, em que EPI significa "em cima de", referindo-se ao caso de doença localizada
em uma determinada região. Assim, identifico que em território nacional está ocorrendo a pandemia
causada pelo CoronaVírus e, no Distrito Federal, uma epidemia causada pela ignorância dos gestores. Essa
última, localizada, tem agravado o quadro da anterior, generalizada.
Embora a Covid-19 esteja disseminada no mundo todo, estaria ela sendo sentida por todos e todas
da mesma forma?
Não. A pandemia evidenciou as diferenças.
A pandemia da classe média não é a mesma vivida pelo trabalhador de serviços essenciais, como
não é a mesma da trabalhadora (mulher) que, além do emprego fora que traz o sustento para a família,
tem de cuidar da casa, dos pais idosos, dos sogros, dos filhos, dos netos, vive o dilema entre pegar
transporte coletivo ou caminhar horas a pé para não pôr em risco sua saúde e a vida daqueles com quem
vive e convive. No campo da educação, a pandemia vivida por docentes universitários não é a mesma de
professoras e professores da educação básica. A pandemia nas escolas públicas não é a mesma das
escolas privadas. Dentro do país, a diferença das classes sociais, daquelas pessoas que puderam seguir
seu trabalho de forma remota e daquelas que perderam seus empregos; daquelas pessoas que podiam
pedir alimento para entrega em domicílio justamente porque tinham saldo no banco e, sobretudo, porque
tinham um endereço para entrega.
A diferença entre os países, na postura de seus governantes diante da crise sanitária, nas ações
de combate à disseminação do vírus, nos tratamentos dados aos enfermos, no suporte financeiro para as
famílias menos favorecidas, no apoio à ciência para o desenvolvimento de vacinas, dentre outras ações. A
pandemia não evidenciou apenas as diferenças entre ricos e pobres. A pandemia escancarou que a
ignorância não é uma questão de classe social.
60
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Há anos transito nos entrelugares: entre a arte e a docência; entre a dança e o teatro; entre a
educação e a medicina e mais recentemente no entrecruzamento da arte, da educação e da saúde.
No Departamento de Artes Cênicas, no curso de bacharelado em Teatro, era responsável pelas
disciplinas de técnicas corporais - logo, eram os conhecimentos de corpo oriundos da prática de dança que
adentravam o mundo do teatro. No curso de licenciatura em Dança, ministrava as disciplinas pedagógicas
de didática do ensino de dança e os estágios supervisionados, trazendo os conhecimentos do campo da
educação para a formação em dança. No curso de Pedagogia, compartilhava uma disciplina intitulada
"Educação, Corpo e Arte" na qual apresentava elementos da dança e do teatro para a formação de
professores/as de crianças da Educação Infantil ao Fundamental I.
Desde 2010, no entanto, venho trabalhando na Faculdade de Ciências Médicas, como membro de
uma equipe transdisciplinar que visa a humanização dos profissionais do campo da saúde, atuando a
princípio numa disciplina voltada para habilidades de comunicação. Empenhados neste trabalho,
acabamos desenvolvendo uma metodologia ativa de aprendizagem que se intitula MEET, um acrônimo para
Medical Education Empowered by Theater. Foi com este trabalho específico que vi a mais consistente
integração entre os conhecimentos de dança (espaço, corpo, ritmo), de teatro (jogos teatrais e teatro
Fórum de Augusto Boal) e de educação na formação de profissionais do campo da saúde (médicos,
enfermeiros, fonoaudiólogos, farmacêuticos, dentre outros).
O que estes diferentes espaços e essas variadas formações têm em comum? - o corpo. Porém, o
corpo visto na medicina - biológico e funcional - não é o mesmo do teatro - expressivo e como "suporte
para a criação teatral" (PAVIS, 2003, p. 75); o corpo na educação, preferencialmente dócil (FOUCAULT, 1983)
não é o mesmo da dança - sensorial e movente.
A aproximação mais direta com interlocutores que não compartilham do mesmo léxico tem
permitido reflexões verticalizadas sobre algumas práticas corriqueiras a artistas da dança, que
geralmente passam despercebidas. A pandemia, ao colocar todos e todas em condição de imobilidade,
também acabou por evidenciar a importância dos "conhecimentos tácitos, construídos amiúde" como
apontado acima no poema, ou seja, a importância de se colocar o corpo em movimento, um saber que
acompanha os artistas da dança há muito tempo.
61
DANÇAS DO AGORA
E para seguir fazendo jus àquilo que acredito e defendo, deixo aqui registrada a forma como a
mesa foi concluída: em movimento. Propus ao público que, em pé, com o peso bem dividido entre os dois
apoios, realizasse pequenas vibrações com o corpo. Ao se ficar em pé e vibrar o corpo, aguça-se a
sensação de peso. A verticalidade nos dá o aqui e agora, nos confirma o tempo presente. Ao final de um
minuto vibrando, pedi ao público que colocasse a mão sobre o peito para sentir o ritmo cardíaco e a
respiração, ambos sinais de vida. Sim, precisamos de quando em quando (e sobretudo nestes tempos
sombrios que atravessamos) reafirmar que estamos aqui, presentes, vivos. Sem preparo prévio, acabei
com este gesto por evocar a presença de Dona Clotilde, minha personagem clownesca. Ela sempre se
despede do público pedindo a todos para colocar a mão no coração e, em seguida, canta "Carinhoso" de
Pixinguinha. Mesmo sem tê-la incorporado, Dona Clotilde esteve entre nós. Com essa canção, a mesa foi
encerrada, ofertando um canto como um sopro de esperança.
62
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Danse, n. 28, v. I, Bruxelles Contredanse, 1996. (Dossier L`Intelligence du corps).
FORTIN, S. Educação Somática: novo ingrediente para a formação prática em dança. Caderno número
2 UFBA: GIPE-CIT, 1999.
FORTIN, S. Danse et Santé - du corps intime au corps social. Montréal: Presses de l`Université du
Québec, 2008.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1983.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
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MAUSS, M. (2003) Les techniques du corps. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 2003.
PAVIS, P. Dicionário do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
STRAZZACAPPA HERNÁNDEZ, M. M. O corpo em-cena. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de
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STRAZZACAPPA, M. Educação Somática e artes cênicas: princípios e aplicações. Campinas: Papirus,
2012.
TODD, M. The thinking Body. 3. ed. New York: Dance Books, 1997.
63
DANÇAS DO AGORA
APRESENTAÇÃO 3
QUE POLÍTICAS DE
EXISTÊNCIA SE IMPÕEM
E NOS SÃO IMPOSTAS?
64
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
de resgatarmos a força crítica aos assujeitamentos colonizadores. Com isso, é possível uma retomada da
força da experiência do vivido com a emergência de pontos de fuga e contra as limitações impostas por
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Em semana de Fórum Social Mundial 2018, em Salvador, na Bahia, Brasil, organizei e realizei; à
frente de vários coletivos, um Evento de dois dias na natureza, chamado “Desenfeitiça Brasil” com ciência,
política e arte, em que performance, poesia, música, roda de conversa, mesa temática com o cientista
político Professor Luiz Gonzaga de Souza Lima de sua obra: “Refundação do Brasil, por uma
sociedade biocentrada”.
Em tempos de estado de exceção; golpismo midiático e de comoção nacional, com a execução da
vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, e marchas fúnebres dentro do Fórum, em uma compressão
espaçotemporal veloz, tais fatos foram decisivos para a escolha do foco do compartilhamento de pesquisa
em andamento.
Esse artigo é escrito no espírito de – Um outro mundo é possível, do WSF13/FSM – Fórum Social
Mundial 2018: “Resistir, Transformar, Criar”, que aconteceu na cidade de Salvador; cuja dimensão foi, mais
uma vez, de escala planetária. Encontramo-nos em crise, emergência climática, o planeta em uma terceira
fase globalizada, em um nível que avança no pós-simbólico, no entendimento de que nossos problemas se
tornaram mais e mais comuns ao de todos os outros países do outro lado do mundo, que passa por uma
avalanche de transformações, abaixo e acima, do Equador, entre senhores do mundo e corpos
anunciados14. Vivendo dois mundos simultâneos, das suas necessidades vitais, e das necessidades dos
senhores de seu tempo. Entre a espera do desejo e o desejo da espera (BAUMAN,1999, p. 87).
Como apresenta o cineasta Cao Guimarães em seu último filme “Espera”, 2018, que teve avant
première na Mostra “Tudo é Verdade 2018”, Cao pergunta: “O que o expectador espera que ocorra sem a
sua ação?”15.
Como que inertes, parados e apáticos, numa platéia... perdidos nesse tiroteio pós simbólico e hipercultural
13
WSF World Social Forum, aconteceu pela primeira vez no Brasil em 2001, seguindo-se 2003, 2005, 2009. Em 2018, Com previsão
de alcance de 30 mil pessoas, houve superação da expectativa e perto de 100 mil pessoas atenderam ao Forum.
14
Entre opressores e oprimidos, pertencentes à linguagem contemporânea que faz luz à estrutura midiática e de cybercutura.
15
Posicionada a câmera diante de corpos parados, sentados, flagrando diversas situações em espera, no dia a dia, o
documentário explora, nas cenas, os tempos em suspensão que nos conduzem a uma reflexão, a cerca do tempo que é
empregado em esperar que alguma coisa aconteça sem a participação daqueles que olham o mundo, como se de fora dele.
67
DANÇAS DO AGORA
(HAN, 2019), diante talvez, de um tremendo simulacro do teatro das operações de guerra hibrida. Há
indicadores na sociedade atual e agora16, de intensificação binária no emaranhado de novos compósitos
cognitivos gerados, sem ficar evidenciada a condição estendida do corpo, que interessam para discussão
do que se passa. Em relação aos entendimentos que prevaleceram antes, de sociedade, de cognição, e em
certa medida afetam em grande escala, “o que move as pessoas”17. Entre o ensino e a pesquisa de
Somática em múltiplos contextos e configurações espaço-temporais, nos perguntamos:
Em quais bifurcações o corpo está exposto nesse momento atual que tencionam morte e vida? Que
políticas de existência se impõem e nos são impostas?
Como Zygmunt Bauman conta em seu livro Globalização (BAUMAN,1999, p. 85), o corpo inclui novas
regras da reprodução para a reprogramação constante a vagar às pressas entre tentações e atrações, e
perambular por aqui e por ali, movendo-se por uma espécie de nomadia indistinta. Byung-Chul Han, em
Hiperculturalidade, dialoga com Zygmunt Bauman, a experiência do peregrino é desorientada, vagueia a
esmo, a sua migração incerta e insegura, enquanto o turista hipercultural mira em busca de um
contramundo, navega sem saudade, nem destino. (HAN, 2019, p. 76) De que corpo é este, que estamos
falando?
Como turista ou vagabundo, submerso a este paradoxo que os autores nos introduzem, no Brasil
estão os excluídos ou refugiados, moradores de rua, de ocupação, “os sem teto’, os terceirizados da
incorporação excludente (SOUZA LIMA, 2012, p. 9), do trabalho alienado (FRANCO, 2011) com dimensões de
trabalho forçado, num espetáculo de esquecimento e não pertencimento. Um corpo necessitado.
De permanência em pé, em longas filas, em posição sentada, entre longos períodos de
deslocamento, em pé ou sentados, inviabilizados socialmente de perambularem como turistas ou
vagabundos; na sua precarização social, invisibilizados. Desta maneira, para além dos turistas
hiperculturais ou peregrinos que perambulam; na categoria acima, vagam como fantasmas, não
contabilizados. Há, decerto, um conflito entre as necessidades vitais do qual o corpo é sinalizador, às
demandas impostas pelo modus vivendi contemporâneo em seu ritmo alucinante de delírio coletivo. Um
Corpo moído.
16
Há estudos mostrando aumento exponencial nos últimos anos, de síndromes, distúrbios, anormalidades, de fundo piscológico,
como sofrimento e violência psíquica à que submetidos, na pandemia, ou devido à emergência epidemiológica, transtornos
mentais, compulsivos de hiper-reatividade emocional, ansiedade, irritabilidade, déficits transitórios ou permanentes que
desorganizam o seu mundo e a sua vida.
17
Pina Bausch, pioneira artista alemã da Tanz Theater, submetia os seus dançarinos a extensos processos autobiográficos em
treinamentos intensos de desconstrução de condicionamentos, cuja questionamento central seguia a sua inquietação de se
interessar, não por como as pessoas se movem, mas pelo que move as pessoas.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Um ano antes do início da pandemia por corona vírus, a OMS divulgou relatório em que 7 entre as
10 principais causas de óbitos são doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). A predominância de óbitos
ligados ao agravamento proveniente das crônicas, aponta que, associada, quando dois ou mais males
interagem, caracteriza-se como sindemia, em que as DCNTs estão relacionadas aos quadros mais graves
levando à maior letalidade. Segundo o estudo, obesidade, desnutrição e mudanças climáticas estão
associadas.18 Tais aspectos, fazem alusão a um corpo com excesso de, ou falta de, no plano alimentar, num
regime co-mórbido, ou, envenenado e intoxicado pelo alimento e pelo seu próprio ambiente. Um ano depois,
no Brasil, 55% da população avança em insegurança alimentar19. Um corpo minado.
Em seu Livro, Ladislaw Dowbor, narra em detalhes, como o grande capital financeiro improdutivo
traz em seu bojo, a arquitetura de destruição de um tempo civilizatório, com pensamento unicamente
centrado na economia de mercado (DOWBOR, 2018). A sociedade tecnológica produz seu eixo engrenado
num corpo-máquina a seus disparadores e dispositivos, que, retro-alimentado por eles, padece. Um corpo
consumido.
Valendo-me da intensa compreensão de BMC®, viso tratar com a lente somática a observação de
tais questões, pela lente da corporalização20. Tendo em conta o nosso sistema nervoso, do processo crítico
de reentrada (EDELMAN, 1999), remapeamentos dinâmicos, sinais multimodais da periferia para o centro
sem clausura neural, plasticidade neural, toda a categorização perceptiva implicada.
A somática BMC® como libertária e a dança somática como expressão instintiva liberta para o
corpo. Não um projétil comandado por instrução e controle, com um script do teatro das operações da
sociedade do espetáculo, de um corpo anunciado, que não pode ser, mas deve se vender. Um corpo
recuperado.
Por debaixo do sonho da supramodernidade de Balandier (1999, p. 88) de não trabalhar para viver,
nem viver para trabalhar; entre o mundo do andar de cima e o mundo do andar de baixo, migra-se por
diversos lugares, consumidos pelo desejo ou pelo desejo de consumir. Do tempo fabril, pré-industrial, para
o tempo febril, pós-industrial, de consumo: “uma estética do consumo, em que sociedades se formam
apenas até segunda ordem.” (BAUMAN, 1999, p. 105) arrastados pela produção do efêmero, do volátil, e do
insustentável (BAUMAN,1999, p. 86). Corpos precarizados.
18
O joio e o trigo, jornalismo investigativo sobre Alimentação, Saúde e Poder.
19
Que provoca fome oculta. Ter acesso a um grupo restrito de alimentos, no qual a pessoa não consome todos os nutrientes
necessários. Famintos por alimento real. Estima-se hoje (2021) existirem 112 milhões de brasileiros nessa condição.
20
Desde 2004 faço investigações a cerca de Embodiment. Ver Artigo Coleção Hummus (2004), Concinnitas (2010), Transciclopedia
(2020).
69
DANÇAS DO AGORA
Pela malha tecnológica da web, move-se vertiginosamente sem sair-se do lugar, produzindo um
continuum de operações cerebrais inestancáveis de simulação de movimento, sem correspondência de
movimentos externalizados no entorno imediato. Interroga o corpo, essa forma de estar, que é posto a
prova, nessa perspectiva somato-tecnológica. O corpo engrenado padece e adoece desentendido do que
se passa, na penumbra do desgaste de seus esforços. Um corpo solapado.
A cultura do simulacro é predecessora à hiperculturalidade e a cultura do sedentarismo é
predecessora à da co-morbidade. As alças de simulação de movimento no cérebro envolvem um sem
número de ajustes a essa nova realidade, em que os acionamentos não se dão de fato, o corpo move-se
muito menos no espaço-tempo. O fundo do olho é o cérebro-dedos, afeito à sua próxima guinada, auto-
excludente de movimentos centro-periferia-centro não simulados, e periferia-centro-periferia,
simulados; de maior compressão espaço-temporal, significativamente influindo sobre a maestria do auto-
movimento. Um corpo encolhido.
A conquista do auto-movimento se dá bem no início do desenvolvimento humano, no primeiro ano
de vida, e depende do desenrolar da linguagem performativa pela tríade entre movimentos, contato e
sentidos no corpo, aponta a minha pesquisa21.
Como se dão os esforços de quem não trabalha para viver nem vive para trabalhar? Como esse
corpo se carrega entre a espera do desejo e o desejo da espera? Como opera no entorno imediato ou
remoto? Como Bonnie B. Cohen, criadora do BMC® afirmaria, a energia está na pergunta.
Bauman aponta que, a espera, retirada do querer e, o querer, retirado da espera, torna a
capacidade do consumo, esticada muito além dos limites estabelecidos por quaisquer necessidades
naturais ou adquiridas; também a durabilidade física dos objetos do desejo não mais é exigida.
(BAUMAN,1999, p. 90). Fica exposta a mudança do marco “ver para crer”, para um novo marco “precisar...
sem ver... nem crer”. Um corpo auto-enganado disparador dos dispositivos engendrados pelo sistema. Um
corpo tolhido.
Vivendo em multidão, em alta mobilidade, com alta conectividade de dados eletrônicos;
asujeitados ao trabalho alienado; arremessado a funções fugidias abaixo de detecção consciente;
atravessado por legiões de objetos visuais; informação em alta velocidade; ultrapassa-se as implicações
de como o trabalho, quer mental ou braçal, modifica o Sistema Nervoso Somático22, para co-
22
A visão do sistema nervoso segundo a visão da anatomia experiencial de BMC® é mais sofisticada do que a divisão do sistema
nervoso como exposta pela estrutura de pensamento proposta no campo da medicina.
70
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
A classificação psiquiátrica alterou a denominação da doença maníaco depressiva para transtorno e distúrbio bipolar, que é
24
uma condição mental grave caracterizada pela alternância de humor entre a depressão, de momentos de profundo desânimo e
mania, marcada por episódios de intensa euforia.
71
DANÇAS DO AGORA
Esses corpos movediços, precarizados, extenuados, bipolares, movem-se cada vez mais em
círculos cada vez menores, com acionamentos sensório-motores mais vulneráveis, fragilizados ou até
mesmo debilitados de sua própria potência. Nessa condição adulterada, com certeza se instalam
malestares e caminhos para doenças empáticas ao macro-sistema. Um corpo abaulado.
A imaginar quais limites esbarra essa condição sócio-cognitiva, qual feição salta aos olhos a
terminar somaticamente o sujeito em seu contexto sensitivo (SEBEOK,1999) dessa forma? “A cultura da
sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado” (BAUMAN, 1999:90).
Quais deslimites dessa opacidade? Um Corpo obliterado.
Souza Lima (2012) nos agracia com o conceito de software social moderno produzido pelo
espetáculo de esquecimento. Luiz Gonzaga nos invoca a proteger o software social da vida. O fato deste
paradigma civilizatório de produção da escassez, da morte, do planeta ser consumido por toda a ganância
envolvendo ‘um’ espetáculo do esquecimento e transformar-se na sociedade do cansaço, do psicopoder,
da necropolítica, poderia nos ajudar a compreender quem sabe, porquê na atividade artística haveria certo
grau de redundância e literalidade presentes nos campos de criação na cultura de massa. Pergunto se o
corpo pilhado por essas fontes; ilhado por essas margens; e, de certo modo, encolhido em seu repertório;
venham reproduzir, mais ou menos em maior esquecimento, regidos por excitação, aceleração maior de
que, certos aspectos da criação, tornado remotos, numa estética do liso (HAN, 2020).
Ou, se contrariamente, adentrável aos processos somáticos em contexto artístico, ao procurar
estender os limites da plasticidade em seu sentido criativo e não destrutivo, encontremos certamente
resposta ao próprio cerne da natureza da criatividade, no trabalho somático, como canalização, que
necessariamente permita, a superação desses disparadores e dispositivos; de certo modo resistir à eles e
então, de certo modo, transformar e decerto criar. Um corpo em fagocitose.
Para além da distinção entre turista e/ou vagabundo, hipercultural, peregrino, e a imensa
categoria não contabilizada de seres famintos pelo consumo, “precisam ser mantidos acordados e em
alerta sempre, continuamente expostos a novas tentações, num estado de excitação incessante e
também, com efeito, em estado de perpétua suspeita e pronta insatisfação. (BAUMAN, 1999, p. 89). Corpos
cooptantes. Somaticamente falando, esse disparador, equivale no organismo, desde uma
descompensação ‘motórica’25 de um estado assustado até o mais grave sentimento de fundo (DAMÁSIO,
1999), um estado permanentemente alarmado. “Há uma ressonância natural entre a carreira espetacular
25
Compreensão utilizada em BMC® para apontar quando ação está desvinculante ou desvinculada do organismo, internamente
falando.
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do agora, ocasionada pela tecnologia compressora do tempo, e a lógica da economia orientada para o
consumidor” (BAUMAN,1999, p. 89). A vertiginosa produção do efêmero leva a graus mais profundos de
desconexão e do esquecimento, sendo que “as consequências culturais e psicológicas da polarização são
enormes (BAUMAN,1999, p. 98).
Que inflexões somáticas surgem para a dança a partir desta natureza-cultura, trazendo a tona
menores chances no caldo genético (RIDDLEY, 2003) para a criação?
Nessa direção, sem tempo, sem contemplação, sem pausa, parte do trabalho somático se
perderia, ou se inviabilizaria, devida à própria natureza dessa falta de ressonância natural no sentido
inverso, dizer respeito ao sistema nervoso Parasimpático.
A compulsão; moldada aí, a nomadia da mobilidade incessante do espetáculo do esquecimento
(SOUZA LIMA, 2012); o “último homem” de Niezsche vagueia com a necessidade de se encher de coisas e
sentir-se feliz por dentro. “... caso esteja se sentindo mal: coma!...” (BAUMAN,1999, p. 90) “consuma e sinta-
se bem é assim o análogo social psicopatológico da depressão, com seus sintomas gêmeos em choque:
nervosismo e a insônia.” (BAUMAN,1999, p. 91). Corpos colapsados.
Ultra-sedentário, obeso, portador de dor crônica e superdotado como corpo-máquina, no passo
em que nossa sociedade reforma-se em grande proporção, “Um bocado de tensão acumula-se em torno
de busca de segurança ...o efeito geral é a autopropulsão do medo” (BAUMAN,1999, p. 125). ...O próprio
trabalho como prisão...” (BAUMAN,1999, p. 127). Até segunda ordem, não optante, a compulsão à comida, o
nervosismo e a insônia se tornam operadores patogênicos do ser. Um corpo descompensado.
Como se mapeia o deslimite, como se navega a desterritorialização?
Move-se muito menos do que o necessário, come-se muito mais do que necessário, medicalização
disparada desmedidamente. Corpos desesperados.
Tal problema incide sobre o que está se passando internamente no sistema nervoso, afetando
Sistema simpático e parassimpático duplamente. Não parar de agir e não conseguir sair da operação de
vigília voluntária, voluntariamente, “sem cartas de navegação e com todas as bóias de sinalização
submersas e mal visíveis...” (BAUMAN,1999, p. 93). Um corpo em camisa de força.
Como Bauman aponta, o corpo inclui novas regras da reprodução para a reprogramação constante
à vagar às pressas e perambular por aqui e por ali.
A carta de navegação é dada por reprogramação constante à atender as demandas e exigências
do momento, do script, ou do falso desejo em propagação responsista diante de tudo quanto é estímulo
visual, e, diante de todos, a todo instante, sem poder vir a tona. Corpos atados.
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DANÇAS DO AGORA
Para a somática BMC®, está em jogo conduzir processos com permissão e exploração deste corpo
submerso em seu sistema nervoso autônomo e neurovegetativo, para aflorar a expressão em que
emergem princípios funcionais-criativos de auto-organização, reorganizando o ser pela tríade sentidos,
movimentos e contato, por corporalização. Corpos-mentes empoderados.
Em termos somáticos, um deslimite funcional acompanha um distúrbio musculoesquelético.
Situado nas entranhas, o seu emaranhado de implicações vai além do campo das categorias perceptivas,
para o da cognição corporalizada.
Processos de natureza somática, na abordagem BMC®, não se restringem ao complexo muscular
de suas alças motoras em ação, de natureza musculoesquelético articular. Processos de natureza
somática, antes de tudo, dizem respeito a uma soma maior que as partes em ação, à enveredar por uma
jornada interior, de onde, as amarras que impedem liberação de fluxo energético, que jorram das
entranhas, sejam desarmadas.
Entre turistas e vagabundos; um corpo moído, um corpo extenuado, um corpo encolhido, quando
rotinas cognitivas binárias passam a frente em alta frequência em espaço-tempo comprimidos, o
encolhimento do ser parece abolir o fluxo no espaço-tempo (BAUMAN,1999, p. 96). Essa é uma das
considerações que fazemos para a prática somática de BMC® pensada como reencontro profundo consigo
por corporalização, em suas múltiplas configurações espaço-temporais.
A partir dos estudos realizados entre os cosmosentidos de BMC® e as ciências cognitivas: a
corporalização do alfabeto de movimentos com princípios evolutivos, constrói padrões vitais que criam as
primeiras rotinas cognitivas e auto-organiza padrões de movimentos complexos que criam as primeiras
complexificações de domínio cruzado (QUEIROZ, 2006, 2013).
Ante tal confinamento, muitas vezes sem qualquer questionamento ou criticidade, interessou
perguntar no posdoc, as modificações nos marcos do desenvolvimento por movimentos de seu detrimento
repertorial e agravamento vulnerável.
Neste segundo pós-doutoramento, feito na UNIFESP 2016-2017, junto ao LEVI - Laboratório
vulnerabilidades infantis e plataforma internacional de saberes inclusivos, apontei as seguintes inflexões:
constrições crescentes, diminuição em graus de habilidades e perda significativa na conquista de auto-
movimento, propensão desnecessária a acidentes e redução progressiva repertorial de movimentos;
insatisfação, reduzida estima, encolhimento do ser em função do ter; todos, indicadores de maior
vulnerabilidade, propensão à deficits, obesidade e sedentarismo, no tenro desenvolvimento de
movimentos, já no primeiro ano de vida.
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Quando profissionais de dança começam a questionar o que ocorre com crianças recém saídas da
tenra primeira infância, a se perguntar o que ocorre com elas, que a dobra dos joelhos e a altura de retirada,
em relação ao solo, parece ineficiente, entre 4-7 anos, que a criança não tem interesse em brincar, ou
mesmo de permanecer em ambientes ao ar livre, sem galgar alturas com os braços acima da cabeça, de
braquiação ineficiente, preso a vetores de jogos virtuais na consígnia dedo-visão, bem antes do tempo, e,
isso dando-se bem mais cedo na vida, do que era de costume, estamos encontrando algo diferente de
cinquenta anos atrás.
Em observação dos adultos, sobremaneira, há males que ecoam provenientes de um
desenvolvimento falho na primeira infância. Adentrando evidências de novos deficits, embora, às vezes,
suspeitas sem comprovação, são rotulados como novos males na educação infantil, como o TDAH26, por
exemplo.
No ambiente escolar, bebês-crianças mantidas até o horário da saída alojadas e confinadas,
crianças passando por dificuldades de suas necessidades naturais e básicas de mobilidade e locomoção,
engatinham sentadas e alcançam menor base repertorial na transição entre os marcos do
desenvolvimento preconizados.
Posto em perspectiva adulta, de que controles remotos dependem as operações mais correntes e
decorrentes no corpo atado por seu ambiente isolado, restrito, encolhido?
Dada a atual ênfase dada ao cérebro, reduzindo o agir à conexão mãos-olhos, impulsionada por
combinações binárias densamente compactadas, prematuras, mais precoces ou antecipadas, assim
explodiu exponencialmente as vulnerabilidades em adultos, crianças, bebês.
Como Bauman nos alerta; do adulto à criança, nos tempos atuais, não é inconsistente dizer, que
prevalesce um certo medo de se mover.
Que descrição somática isso assume?
A alta mobilidade urbana, induz a não ambientes de ‘ser-estar’. O ser se move entre brechas a não
ocupar, não poder parar, nem interromper o fluxo. Os espaços claudicantes dessa mobilidade incessante
não parecem nada bons para nem adultos nem crianças permanecerem. Corpos entrincheirados.
O alto confinamento em pandemia, induz a ambientes reclusos, em mal-estar. O ser se move
pouco, sente tensão, sem interromper o trabalho dobrado, uma certa asfixia. Corpos enclausurados.
26
Classificação psiquiátrica recebida para problemas proveniente de atividade incessante por conta da criança, recebeu o
nome de hiperatividade pequena ou inabilidade de concentração, recebeu o nome de déficit de atenção. Ver publicação
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DANÇAS DO AGORA
A partir daí é plausível afirmar haver certa redução repertorial de movimentos, uma vez que o
corpo fique recluso, com reduzida conquista do auto-movimento e, passa a se tornar evidente, como um
efeito dominó em cascata, um maior acanhamento de movimentações.
Nos entendimentos somáticos de BMC®, a tríade sentidos-movimento-contato atua na base da
percepção-ação (NOÉ, 2004), dela com a “logística GPS” dos proprioceptores nas juntas, e sensores
espalhados, se rastreia o que acontece. Entre sentidos e percepção, ocorrem os limiares tudo-ou-nada das
sinapses em registros de caminhos neuronais das movimentações ascendentes e descendentes em fluxo
incessante pelo tronco cerebral, via de acesso aos mapeamentos de reentrada no cérebro, que se alteram
e se complexificam à medida que o corpo é exposto a novas situações. Menos exposto a novas situações,
adentra maior zona de redundância repertorial, de menor monta.
A sinalização de reentrada amofina-se, detendo-se entre as mesmas, anteriores. Essa descrição
somática ajuda a problematizar a inibição em curso para uma maior aprendizagem de movimentações não
simuladas. Lembrando Bauman: “A cultura da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento,
não o aprendizado” (BAUMAN,1999, p. 90). O Sociólogo polonês nos convida a pensar se o aprendizado do
corpo pela auto-educação, em BMC® por corporalização dos sistemas corporais, implicaria um certo
distanciamento disso tudo, a começar pelo romper com o confinamento espacial.
A auto-organização de padrões complexos se dá quando ramificada mais e mais a partir das
rotinas cognitivas de movimentos residentes que foi construída por predisposições em uma base pré-
existente.
Realçando uma vez mais ao que Bauman faz referência e, ... a imaginar quais limites esbarra a
plasticidade neuronal; que feição salta aos olhos e termina somaticamente o sujeito – asujeitado -, em seu
contexto sensitivo (SEBEOK,1995), em maior grau afeito ao esquecimento de si, em prol dos dispositivos e
disparadores do consumo?
Numa perspectiva histórica, o legado somático traz a tona uma práxis transformadora intensa.
Um corpo exposto à retomada de seus processos por meio de corporalização dos sistemas de BMC®,
mergulha em processos imersivos autênticos que não maquiam nem deslizam pelos deslimites e
desterrritorializações recorrentes. Dessa teia, podemos chegar à consciência, da qual seu operador central
possibilita transformações profundas (QUEIROZ, 2013).
A consciência, que parece estar disponível, mas não acessível, em sua intrincada descrição
contemporânea como operador do cérebro e, como conquista da espécie, parece menos ainda acessível
para ser saboreada em massa.
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Na reflexão que me propus a fazer, com as enormes consequências do atual modus-vivendi, deste
paradoxo exposto por Bauman; confluem investidas pelo conceito bourdieusiano27 de habitus, para pairar
sobre as torrenciais modificações cognitivas: “Os habitus, construídos, ou em transição, são tentativas de
adaptação humana” (FRANCO, 2011, p. 185), impregnando-o com o prisma da via de corporalização proposta
por BMC®.
Como a práxis somática, sonhada como ferramenta de mudança social, à luz do que, Thomas
Hanna, pioneiro da Somática, vislumbrava em 1976, ajudaria o ato de criar e recriar um modo de
ser mais pleno? (FRANCO, 2011, p. 185).
Sem escapar da associação entre somática e terapêutica, é importante lembrar que, improvisar
somaticamente em dança gera mudança de percepção e de estado. A dança somática permite facilitar um
caminho para um corpo se tornar fonte de sua potência e presença. Como isso acontece é um mistério,
como nos lega, e como nos diz Bonnie Baindbridge Cohen, criadora do BMC®, precisa confiar no processo.
Em que pese a auto-descoberta nos processos exploratórios, os processos de atenção e intenção
perfazem o meio pelo qual se passa da tentativa-e-erro da experimentação para a corporalização mais e
mais integral dos conteúdos experimentados. Também tais processos, de atenção e intenção, tecem a
malha fina da qual é feita, em parte, o processo que leva à maior consciência e auto-consciência.
Com o despertar dos sentidos que a prática somática promove, como mover-se com o corpo para
não encolher o ser?
Tomando como exemplo e como referência o fenômeno de um processo que nos acontece entre
10 e 12 meses, lá atrás, enquanto tenros infantes, que varia muito ao certo, o fenômeno se dá, ao
reconhecer o dedo indicador, vizinho ao dedão que era chupado no útero. Já existe uma memória ancestral,
que a acompanha, e vai auto-organizar a pinça opositora, e a partir daí passa a enveredar por ações
minúsculas, muito perto ao alcance dos dedos, muito mínimas mesmo, quase microscópicas. Este
fenômeno se dá junto ao fenômeno de reconhecimento do espaço o longe, e instintivamente passamos a
investir em alcançar o espaço, por movimentações cada vez maiores à pontos mais distantes, que
atravessam toda a kinesfera do espaço imediato para um espaço além, com um deslocamento de corpo
inteiro, muito além das fronteiras de seu território, com novos reflexos de respostas de equilíbrio para o
além ser o além mar, com os reflexos de respostas espaciais para além da kinesfera, nesta navegação.
27
fazer sociologia bourdieusiana é fazer aberto e bom uso de tais noções a partir dos desafios impostos pelos novos
problemas que emergem e tomam a atenção e o interesse do pesquisador
77
DANÇAS DO AGORA
Primeira vez na vida. Inaugural. É a primeira vez que o organismo calcula para si, num certo nível
de consciência já maior, o que está aqui e o que não está, calcula com o olho o que está perto e o que está
longe, o que tem à mão, e o que não tem, o que pode alcançar, e o que não pode, o que imediatamente
apreende e o que demorará um pouco mais a apreender, o que pode por à boca, e o que não pode, haja
visto o ambiente todo ser muito maior que si e não caber. O limite do corpo quando está num lugar, o limite
do corpo quando sai de um lugar, entrar em mobilidade por lugares, o limite do corpo de estar dentro deles.
A noção de entorno, como um limite, e de ambiente, outro limite.
Saímos internamente de onde estamos e alternamos entre este confinamento do espaço imediato
interior à nossa kinesfera, e alternamos navegando entre o perto e o longe, literalmente falando, do
domínio simples para o domínio cruzado (LAKOFF; JOHNSON, 1999).
Entre aprender um novo limite, entre ir e vir em seu próprio território, no espaço pessoal, sem
dissolução de conflito no espaço geral do ambiente - não como deslimite, nem como desterritorialização -
mas ao contrário, como ampliação e expansão de seu primeiro território, agora em fluxos mais arriscados
em distâncias maiores permite expressar-se e chegar a um detalhamento mais profundo das duas
instâncias eco-sistêmicas dentro de novos limites. O cálculo, é um cálculo matemático corporalizado.
Nesse momento o organismo se redimensiona, o seu dentro-fora-dentro, e com isso, surge um novo lugar
de fala somato-cognitivo. Minha pesquisa considera a hipótese de que este seja um princípio funcional-
criativo para o organismo.
O IEA USP, Cidades Globais, em seminário já realizado em meados do ano passado, que contém
dados atualizados de interesse. Trouxe resultado de um estudo ligado aos impactos da Pandemia e aos
objetivos ODS da agenda 20-30 da ONU, e lançou o guia cidades sustentáveis para as eleições de 2020.
A população da cidade de São Paulo, quando perguntada sobre o que ela mais precisa nesse
momento de pandemia, resultou dizer que, o que ela mais deseja e precisa, nesse momento, serem as
áreas verdes, e as áreas ao ar livre na cidade, locais em segurança para levar a família, evitando ao mesmo
tempo o confinamento e a aglomeração. Referência talvez, que parece não perder de vista, nesta
população, a necessidade humana de espaço e de natureza, de segurança e de liberdade de movimentos,
corporalizada no primeiro ano de vida, que resta como a plataforma cognitiva corporalizada mais antiga
para a vida toda. Um corpo que não prescinde de ficar ao ar livre com outros corpos.
Tais façanhas, parecem, ainda mais recomendáveis, ao corpo em prática somática para criação
em performance em Dança. Alternar esforços constritos ao fundo do olho-cérebro-dedos ao qual está
afeito pela sociedade de consumo, para perceber esse corpo submerso, passando à estratégias mais
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expansivas e mais sofisticadas das explorações em dança envolvendo o deslocamento por inteiro das
categorias dos sentidos e percepção, associada a maior risco e expansão, tendo em vista reflexos de
equilíbrio e espaciais, em jogo improvisacional.
Envolve também sair do disfarce do livre exercício da vontade (BAUMAN, 1999, p. 92) para uma
ampliação de escolhas do real. Resta, sob tal disfarce, na ocupação incessante do corpo movediço
consumido pelo consumo, uma inescapável e franca derrapagem sobre a vontade. Com contornos e limites
que se sobrepõem à medida que a experiência convida à outro lugar de fala.
Para que possamos encontrar arranjos provisórios e soluções adaptativas não somente
funcionais, senão criativas, e para que a somatização opere transcendendo o bio-mecânico, os
automatismos, o esquecimento e o racional, a auto-entrega de embeber-se na fonte das categorizações
perceptivas alojadas (enbedded) nos princípios da ontogênese e da filogenêse, parece fundamental,
aliando a minha hipótese, de que, tais princípios, criados por Bonnie Bainbridge Cohen, se tratem de
princípios, ao mesmo tempo que funcionais, criativos.
Mover-se com o corpo para não encolher o ser, nasce das implicações repertoriais atuais
evidentes, para buscar nos parâmetros de mudança e, do trabalho com as diferenças, uma teia de
referenciais e ferramentas dialógico-dialéticas propulsivas e propositivas.
Em procedimentos artísticos, para que possamos encontrar operadores não somente na escala de
reprodução em massa de condicionamentos comportamentizados, os princípios senão funcionais, mas
criativos, aos quais BMC® instaura e recorre, evolutivamente falando, neste diálogo com Zygmunt Bauman,
nos permitiria a uma potência em que desejo com espera, satisfação, transcendência e presença possa
ocorrer.
Há que se fazer canalização necessária para tal, nas praticas somáticas ensejadas.
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DANÇAS DO AGORA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Globalização, as consequências humanas. Rio de janeiro: Zahar Editora, 1999.
DAMÁSIO, Antonio R. The feeling of what happens. New York: Harcourt Brace & Company, 1999.
DOWBOR, Ladislau. O Capital Improdutivo – A nova arquitetura do Poder. São Paulo: Outras Palavras,
2017.
COHEN, Bainbridge B. Sensing, Feeling and Action. Mass: Contact Editions, 1993.
COHEN, Bainbridge B. Sentir Perceber e Agir. São Paulo: Edições SESC, 2015.
LAKOFF, George; JOHNSON Mark. Philosophy in the flesh. New York: Basic BooK, 1999.
LAKOFF, George; JOHNSON Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Vera Maluf (GEIM), Coordenação:
Mara Sophia Zanotto. São Paulo: Educ, 2002.
NOË, Alva. Out of Our Heads. New York: Hill and Wang, 2009.
SOUZA LIMA, Luiz Gonzaga, A refundação do Brasil, por uma sociedade Biocentrada. São Carlos:
Editora RiMa, 2012.
STOKES, Beverly. Amazing Babies. Toronto: move Alive Media, 2002. (Sobre BMC®)
RIDLEY, Matt. Nature via nurture - Genes, experience and what makes us human. London: Fourth State
P., 2003.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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DANÇAS DO AGORA
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA
IMPLICAÇÃO ENTRE A ARTE E A CLÍNICA
Hélia Borges
potência do coletivo. Por outro, um movimento diverso quando vemos surgir, nas transformações,
movimentos redutores e opressivos que se expressam regidos pela lógica mitigadora do código, lógica do
poder se afastando da força inicial de potência. Assim, num ato reprodutor de si, reprodutor da lógica
fascista, esses movimentos passam a funcionar como opressores, atacando os discursos que se colocam
como marginais à sua lógica, provocando constrangimentos e silenciamento.
Podemos afirmar, a partir daí, que uma prática colonizadora do pensamento, como prática de
poder, se encontra associada à exclusão das intensidades materializadas pelas sensações, ritmos – ou
seja, da corporeidade –, na medida em que é justamente por essa exclusão que o olhar fica impossibilitado
de oferecer receptividade à alteridade.
Ressalto que o processo de colonização que se dá sobre os corpos, afetos, inteligência,
imaginação, através de dispositivos oriundos dos saberes/poderes, torna-se um impeditivo para a
construção de um pensamento que, desde uma perspectiva crítica se constitua como ato criador. Tais
dispositivos de poder tomam de assalto espaços mais privados e inconscientes que vão sendo invadidos,
produzindo um efeito de esvaziamento da capacidade crítica – capacidade que permite sair da repetição
do mesmo, repetição não diferencial expressiva das leituras mediocrizadas de um mundo sem horizontes.
M’Bembe (2020), em seu livro Políticas da inimizade, reflete sobre nossa experiência
contemporânea do existir a partir das questões raciais, chamando-nos atenção para a construção de
mundo que se estabelece tendo em conta as práticas de colonização recorrentes desde a modernidade,
quando a sociedade de guerreiros característica da Idade Média teria sido substituída por sociedades
democráticas. Nestas, a pacificação teria aparentemente imperado, banindo a violência física e a
brutalidade; o Renascimento se caracterizaria, então, pelo autocontrole, pela contenção e pela civilidade
como uma nova forma de governo dos corpos.
Esse autor ainda nos diz que:
A violência dos corpos teria sido substituída pela força das formas. A regulação dos
comportamentos, o controle das condutas, a prevenção da desordem e da violência iriam se
efetuar dali em diante por meio de rituais plenamente aceitos. (M’BEMBE, 2020, p. 36).
Os comportamentos passam, desta forma, a ser regulados pelas sanções jurídicas e reprovação
moral. Mas, como nos mostra M’Bembe (2020), nesse novo modo de funcionamento, o que toma lugar como
operador é o estado de exceção. Caracteriza, então, esse processo de constituição do campo social como
uma comunidade de separação em que conviveriam duas ordens: uma comunidade dos semelhantes
regida pela lei da igualdade, e uma comunidade dos dessemelhantes, ou sem partes, também instituída
83
DANÇAS DO AGORA
por lei – a lei da desigualdade – em que seriam despossuídos de direitos. Preconceito e lei (supressão da
lei) como operadores embasavam o preconceito racial.
Tal funcionamento, no qual a lei tem sua origem e se institui como fora da lei, será o solo onde as
políticas de terror tomam de assalto as práticas discriminatórias de exclusão. Agora o matar se institui,
eliminando as populações que colocam em risco a existência de uma comunidade: vazios fundadores, de
preservação e de extermínio.
Criar o inimigo pelo desejo mestre como desejo de extermínio será o lugar para se constituir a
própria existência. M’Bembe (2020) nomeia de políticas da inimizade justamente a prática recorrente em
instituir normalizadores hegemônicos de exclusão do dessemelhante, mas agora tendo como destino o
extermínio. Um governo do terror em que a repressão é substituída pela matança.
Conhecemos bem a realidade atual do nosso país, onde o Estado paralelo governa, as milícias
tomam o poder e outras muitas violências são exercidas sobre os direitos da população. Assim também no
mundo globalizado, em que testemunhamos populações em toda parte se exterminando, migrantes que
não encontram acolhida em novas terras, entre outros fenômenos.
Para continuar sua análise, M’Bembe (2020) busca na angústia de aniquilamento elementos para
sua análise. A angústia de aniquilamento é um conceito oriundo de construções psicanalíticas e oferece
um interessante mergulho nas produções subjetivas para desenvolver sua tese em relação aos processos
de extermínio e silenciamento executados pelos colonizadores.
Proponho, aqui, lançar alguma luz sobre tal conceito, a partir de um olhar clínico da psicanálise.
Podemos dizer que, ao elaborar esse conceito, alguns clínicos / teóricos da psicanálise se voltam para a
pequena infância, ressaltando vetores de força estabelecidos pelo pequenino no encontro com o mundo.
Forças vitais que se alimentam do encontro com a experiência com o ambiente.
No início da vida, existe um campo aberto às experimentações, no qual, através de uma motilidade
contínua, entre os movimentos excitados e relaxados, o mundo vai sendo apropriado, e também pela
produção de imagens, a psique se instala no corpo. Tais forças, que fazem o bebê gritar, se encolher, se
expandir etc. – ou seja, manifestar seus impulsos – está incondicionalmente atrelada ao ambiente. É a
fricção com o novo ambiente, aquele que proporcionará ao infans sua força afirmativa de existência, ao
permitir que as forças de ligadura se estabeleçam em direção à vida.
No bordado incessante que se constitui em continuidade com o mundo, forças agressivas e forças
amorosas se estabelecem entre o bebê e os objetos do mundo. É a integração das forças agressivas e
amorosas em direção ao objeto que libera a subjetividade para maior resistência aos processos de
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assujeitamento, na medida em que, como consequência, por sair das idealizações, perdemos o lanço com
a onipotência e nos tornamos potentes para a realização, para lidar com a realidade, podendo aproximar o
sentir do dizer. Poder dizer se torna um ato ético / poético, a partir do encontro afirmativo com a
sensorialidade do corpo. Desobstruímos o desejo de suas amarras colonizadas.
Mas na impossibilidade de agregá-las, pela recusa em perder os objetos idealizados que
funcionariam como amparo, as forças agressivas se dirigem para o que, estranho, se torna ameaçador a
um eu em rudimento. Portanto, a lógica seria livrar-se do ódio depositando-o no inimigo, ou seja, naquele
que passa a ser identificado como ameaçador. Aqui a angústia de aniquilamento se estabelece no sentir-
se à mercê de tais forças de destruição, já que, pela projeção, as forças agressivas percebidas como
destrutivas se depositam no outro, transformando-o em inimigo.
Nas políticas de inimizade, a angústia de aniquilamento vem justificar as ações de extermínio,
convocando os impulsos agressivos, que se tornaram violência em direção ao outro. M’Bembe (2020)
chama atenção para a angústia de aniquilamento que acometia os colonizadores, revelando a lógica
paranoica que se institui na mente fascista do colonizador e seu desejo de destruição de todo um
ecossistema visando ao extermínio:
Em 1989, no livro precursor As três ecologias, Guattari (1990) já nos alertava pela limitação imposta
por um pensamento sustentado no poder falo-centrado, colonizador que caracteriza a extração do lucro
e que na contemporaneidade se manifesta nas biopolíticas / necropolíticas. Tais práticas subjetivantes
que envolvem a ameaça à própria vida, em uma sociedade voltada para o poder das elites, se constituem
através de um pensamento dissociado das intensidades encarnadas das afecções. Agora o lucro é extraído
pelo consumo da vida, são as práticas biopolíticas / necropolíticas extraindo dos corpos a força que
promove a maquinária do poder.
É preciso devolver a cabeça ao corpo e/ou o corpo à cabeça, para que se restaure a capacidade de
um pensamento crítico, ético, que permita reconhecer o direito do outro existir e, no limite, preservar a
vida em extensão e intenção.
Cultura de descerebrados, ser sujeito é se tornar ofuscado pelos preconceitos e construções
ideativas evocadas pelas representações, na medida em que se encontram tomados pelo já categorizado,
pelo que já está predefinido e justificado, perdendo-se a possibilidade do contato com a multiplicidade da
existência. Reforçam-se, assim, as práticas colonialistas produzindo um enlace psíquico, em que as
formações do inconsciente ajustam o desejo pelos conteúdos representados a partir do código
estabelecido pelos colonizadores.
Portanto é preciso fazer, da clínica, crítica evidenciando os caminhos estéticos visando apreensão
de novos sentidos. Desobstruir o desejo de suas amarras colonizadas, restaurando a potência dos corpos,
abrindo os canais perceptivos, liberando os antolhos. Aqui se insere Angel.
É importante colocar em relevo o trabalho excepcional de Angel Vianna ao produzir questões
importantíssimas para uma prática clínica que se deixa conduzir por devolver o sujeito à sua existência,
ou seja, aquele que fala da sua relação com o mundo onde está inserido, trazendo à cena um inconsciente
que não é o inconsciente da interioridade, mas que vem com o atravessamento do mundo, nos encontros
e agenciamentos com as proposições do mundo.
A arte contemporânea se conjuga na abertura de suas relações disciplinares e artísticas,
transversalizando seus conhecimentos e performatividades. Deste modo expressa que o ato de afetar,
que caracteriza a experiência estética, se constitui nos entremeios dos encontros. Nos encontros com as
expressões estéticas oriundas das manifestações artísticas, transduzimos as experiências,
corporificando-as, e num movimento transituacional característico, captamos a complexidade
acotencimental do momento.
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DANÇAS DO AGORA
[...] na mais pequena infância inscrevem-se no corpo múltiplos estímulos exteriores sutis (um
som, uma cor, uma brisa, uma mudança de temperatura) em órgãos internos, de tal forma que
um afecto de órgão (um prazer, uma dor) passam a valer como signo. Signos não linguísticos,
mas em que vai progressivamente assentar toda a futura construção da linguagem [...].
Compreende-se assim que o corpo [...] se torne um reservatório extraordinário de signos e de
linguagens diversas – linguagens de sons, de cores, do toque e do contato[...]. As vibrações do
mundo gravam-se sutilmente nos órgãos. (GIL, 2016, p. 26-27).
Colocar o corpo em abertura sensível, pelos trabalhos clínicos que levam em conta a dimensão do
indizível das marcas, nos propicia os desdobramentos necessários, ao deslocar as contrações e
constrangimentos que sufocam o corpo e impedem a pensabilidade. Atos clínicos que removem as
barreiras construídas pelas operações colonizadoras dos preconceitos impeditivos de vida. Liberar o corpo
de suas amarras, liberar a vida que pulsa em nós mesmos.
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No início do século XX, Freud, em desafio ao estabelecido, acordou para o campo intensivo de um
corpo erótico que afirma a existência e implica, portanto, o desejo como força ativa. São os vetores de
colonização que privilegiam o conhecimento racional, o discurso da lógica da razão consciência que irão –
pouco a pouco, no desenvolvimento – apagando a capacidade de conhecer o mundo fora do que se
estabelece como sujeito. Sujeito assujeitado à lógica do significante, em que a força das imagens se esvai
diante do significado.
Nessa medida, liberar um corpo de suas amarras se dá através das ressonâncias, das conexões
empáticas, das conexões estésicas vividas no encontro. Seriam essas linhas que, na dimensão clínica, se
fazem necessárias para acessar os modos de existência em seus ritmos, via pequenas percepções (cf. GIL,
1996) nas modulações e gradientes característicos, favorecendo o deslocamento do olhar habituado ao
código, das formas instituídas para acessar a opacidade inatingível, inexaurível e irredutível do que se
coloca fora do já semiotizado.
As pequenas percepções se realizam através da experiência de contágio, na qual o que é percebido
se dá no campo sutil do encontro com o objeto – portanto, fora de uma perspectiva macro do visível. Aqui
o invisível se coloca como possível. Trata-se de pensar o campo intensivo dos corpos em transformação.
Uma existência atravessada pelo modo sombrio de ser, um obscuro captado pelo corpo; são as
micropercepções, campo assemiotizado – experiências estéticas que se realizam pelo deslocamento,
presentes nos gestos e na força poética rítmica para além do discurso codificado.
As pequenas percepções são os vetores de apreensão que se viabilizam por um campo micro
vivido nos entremeios dos encontros em que topamos com os movimentos imperceptíveis. Fora das
formas. Movimentos imperceptíveis ao universo macro do campo codificado. As pequenas percepções nos
conectam aos seres a serem, ou seja, ao que se coloca fora das organizações instituídas dos corpos;
conecta-nos aos estados larvares, estados em germinação que compõem o ato de existir no tempo,
estados de criação.
Na captação realizada a partir das intensidades sensórias, a corporalização é o elemento que, no
encontro clínico, ativa no observador sua visão reticular, que se sustenta na capacidade de captar as
mudanças sutis ocasionadas, colocando em cena o afeto que evoca as alterações físicas, emocionais e
mentais decorrentes dos encontros, nas relações estabelecidas. Tal perspectiva, descentrada e
transdutiva, favorece o acesso ao caráter inacabado que confere plasticidade ao ser, caráter que revela
a permanência no adulto de seu estado larvar, pois nos encontros corporalizados, para além do
representado, acessamos os campos de germinação do existir.
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DANÇAS DO AGORA
Tal processo é vivido na imersividade – campo da germinação do ser, estado larvar dos começos
da vida. Essa perspectiva implica novo modo de observar a relação, privilegiando os atravessamentos, as
colisões, os espaços contínuos, os contágios. Torna-se possível, assim, acessar um campo onde a emissão
de signos seja experienciada como um campo de fricção em que os restos de vida fazem sua aparição. É
fomentada uma prática que busca os sinais de vida para além do discurso, apontando o encontro sensório
como vetor expressivo do encontro.
Ferenczi foi um psicanalista húngaro, contemporâneo de Freud e bastante ligado ao grupo de
Viena. Foi um clínico e também um teórico importante para os estudos psicanalíticos, foi marginalizado
durante muito tempo, por sua insistência na importância dos afetos, das experiências sensórias como
ativadores do trabalho clínico. Construiu muitas questões sobre a prática clínica na época e criou
impasses, pois revelou as práticas de poder e assujeitamento que poderiam se estabelecer nos encontros
clínicos.
Em suas considerações, num ato transgressivo à interpretação de sentido colada à visão
familialista edipiana, aponta dois vetores fundamentais para sairmos da lógica do EU vigente na leitura
calcada no significante paterno. Seja o apontamento que faz no que se relaciona ao campo que se
estabelece além do recalcamento – isto é, o que se coloca na experiência constitutiva a partir das
mundificações não codificadas. Seja formular que nos sintomas emergem os trajetos da construção do
desejo – trajetos esses que, fora de uma imposição do proibido, germinam as potências de construção de
um novo campo, de um processo que se dá nos lugares de travessia, nos lugares de passagens.
Não acabamos nunca de nascer. O corpo do infans que nos habita é anárquico, um feixe de
vibrações, um corpo afetivo intenso, que traz consigo uma vitalidade não orgânica, forças e potências
imperceptíveis que podemos perceber em sua vivacidade. Acessá-lo estaria na capacidade de poder
experienciar as micropercepções através dos movimentos, que expressam suas marcas pelas
articulações.
Angel Vianna, em sua prática criativa de corporalização, propõe contramétodos – se assim
podemos dizer – que afrontam, com suas linhas revolucionárias, as forças que buscam subjugar e
assujeitar, fazendo-as explodir. Restaura, por suas ações, algo de nomadismo. Suas experimentações de
diluição e apropriação do corpo-ambiente implicam a possibilidade de descobrir um corpo que, apropriado
de si, se torna mais forte, para na errância não se submeter às produções de sentido que nos marginalizam
de um centro normalizador.
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Restaurar a potência clínica. Afirmar, portanto, a necessidade de resgatar a força crítica aos
assujeitamentos colonizadores, favorecendo a emergência de pontos de fuga frente às limitações
impostas que reduzem a experiência do vivido. Uma luta incansável na busca de novos recantos para que
se torne possível a ruptura com esse triste horizonte, assim como estar na máxima foucaultiana da eterna
guerrilha contra nós mesmos – nós que, no contexto neocapitalista, nos subjetivamos e, portanto, nos
encontramos vulneráveis a sermos capturados pelos laços narcísicos do poder.
Somos todos herdeiros desse imbróglio, e ao menor descuido repetimos – mesmo sem perceber –
práticas de legitimação do verdadeiro discurso, obturando a clareza de que a clínica só pode ser realizada
na promiscuidade ativa dos encontros e na resistência aos modelos opressores de um sistema que
convoca para si estados de violência em relação aos que manifestam a potência vital de desvio.
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DANÇAS DO AGORA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, H. Sopros da pele murmúrios do mundo. Rio de Janeiro: 7 Letras Editora, 2019a.
BORGES, H. A clínica contemporânea e o abismo do sentido. Rio de Janeiro: 7 Letras Editora, 2019b.
GIL, J. Imagem nua e pequenas percepções. Estética e semiótica. Lisboa: Relógio D’Água Editores,
1996.
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APRESENTAÇÃO 4
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DANÇAS DO AGORA
Os três artigos que compõem esta seção atravessam-se no que os singulariza como dúvidas
investigativas para um coletivo possível, diante de tantas vidas perdidas que precisam serem dançadas
em luto e em luta no ser artista em tempos pandêmicos e no estar corpo artista pandêmico.
Uma perda pessoal transformada em dança audiovisual é tensionada no artigo Dançar o luto: entre
a perda, a crise social e a afirmação da vida, de Ana Clara Santos Oliveira, da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL). A autora propõe uma reflexão com o morrer, tecendo espaços sensíveis onde a fala e o
silêncio intersticiam-se. Neste texto, suas pessoalidades demarcam um repensar crítico da experiência da
pandemia de COVID-19, percebendo-se no luto individual para ressignificar o dançar como afirmação
coletiva da vida. Nele, a autobiografia é um testemunho comprometido com esses tempos distópicos para
se/nos questionar: em que tempo sua dança está?
Já uma crise de muitos eus tecnologizades é mobilizada no artigo Crise do a si ser em uma dança
digiperformada, de Robson Farias Gomes, da Universidade de Brasilia (UnB). O autor apresenta um debate
em torno das subjetividades em transformação, a partir de uma performance sobre o rosto, a
autoidentificação e sua desintegração na contemporaneidade. Para tanto, o texto problematiza a
aproximação entre ontologia, artista e arte; redimensiona o estado pandêmico do ser ou estar dos corpos
artistas e suas obras e, assim, evidencia o que chama de “crise do a si ser” numa produção artística onde
se amalgamam o digital e o performativo.
E, por último nesta seção, temos a discussão sobre uma dança videografante como
tensionamento entre videodança, intermedialidade e estética política, no artigo A intermidialidade e a
estética política na videodança fendas no tempo ou feridas rasuradas, de Samuel Leandro de Almeida e
Alex Beigui, ambos da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Trata-se de um texto que denuncia as
necropolíticas atuantes em uma comunidade do município da região do sertão do Estado do Rio Grande do
Norte, através de uma obra de videodança em processo, com uma metodologia criativa perpassada pela
micropolítica e ikuopolítica.
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O FIM E O COMEÇO
Esperança, terminalidade, finitude e infinitude do ser. Eis que o fenômeno biológico natural da
morte é um acontecimento social que evoca a memória e a saudade nos vivos. A voz, o cheiro, o gesto, o
fazer, a representação, os sentimentos e toda a dimensão da pessoa morta, agora compreendida na
categoria de ente querido, são perpetuados no coração dos que vivem. Quando a pessoa falecida consiste
na figura materna, cuja simbologia é dotada do amor incondicional, o recordar presentifica de algum modo
a conservação da história do ente querido e a relação com este construída, na medida em que a
transformação das perpetuações acontece em novas narrativas do/no corpo vivo.
O final e o início são metáforas arquitetadas conscientemente a fim de projetar uma introdução
sensível para a ausência-presença de vidas, trazendo a perspectiva da dança. Com efeito, o temor da
morte, o tabu do luto e o próprio ciclo de vida-morte-vida recebem um tratamento da efemeridade da arte
e expressam as nossas noites mais densas. Distante dos que procuram desenvolver uma antropologia da
morte ou teorias da psicanálise sobre o luto, busco encontrar a criticidade nas formas de contar os afetos
da esfera corporal via movimento-pensamento. Assim, vigora uma enunciação manifestada pela
experiência catártica que, organizada no corpo e descrita por meio de um repertório específico, chamamos
de dança – o lugar de continuidade em incessante transmutação.
Nessa direção, dada a experiência de luto advinda da morte da minha mãe em razão do novo
coronavírus, acrescida da recordação das alterações dos ritos de despedida mais comuns em nossa
sociedade, das perdas em massa em um curto intervalo de tempo e dos atravessamentos das condições
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DANÇAS DO AGORA
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em dança concede um significado criativo ao viver. Por isso, “Proponho que possamos aprender não só
com os espaços de fala, mas também com os espaços de silêncio” (HOOKS, 2013, p. 232).
Por mais que estejamos experimentando tempos de horror e que, muitas vezes, o que está posto
nos estagna, o fluxo da vida não faz pausas e necessita seguir o seu caminho. Ao encontro disso, está a
dança, que persistentemente nos move como ação desobediente dos acontecimentos do mundo e como
linhas de fuga para preservar o viver. A dança insurge entre fascismo, caos, feridas, sofrimento, solidão e
dados estatísticos de mortes. Embora meses tenham se passado desde o início desse cenário assustador,
ainda precisamos implorar os cuidados para com o outro e para com nós mesmos. No Brasil, necessitamos
igualmente lutar de modo constante contra o negacionismo no combate à pandemia, as fakes news
relacionadas à saúde, a insistência na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra o
COVID-19 e o movimento antivacina.
Além disso, vivemos em meio a uma banalização das mortes e a um cenário em que a solidariedade
é cada vez mais rara. A solidariedade, que pode ser compreendida como “o regime de comprometimento
com o corpo social do qual fazemos parte” (SAFATLE, 2020), oferece um sentimento de pertencimento, de
sobrevivência e de defesa da sociabilidade, reconhecendo que a vida de um depende da vida do outro, isto
é, de uma proteção mútua de afirmação da existência humana que vai além da noção de afinidades.
Diante desses fatos, desde o ano de 2020, quando foi identificado o primeiro caso de infecção por
coronavírus no Brasil, instaurou-se uma batalha. De um lado, o obscurantismo escancarado de muitos na
lida com o COVID-19. De outro, a trajetória em prol da ciência, voltada, inclusive, a descomplicar as
informações veiculadas nos meios de comunicação.
Ante o exposto, pergunto: como é possível mover-se agora? Como dançar as lágrimas, a perda e
a saudade? Como articular alianças em colaboração com artistas por vezes inferiorizados? Como dançar
sem menosprezar marginalizados e oprimidos, ou seja, aqueles mais atingidos pelas desigualdades
sociais? Como amparar outras mulheres, em especial em circunstâncias desumanizantes, já que o cuidado
com a mulher é essencial perante circunstâncias de risco? “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito
subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente
na obscuridade” (SPIVAK, 2010, p. 28).
Em meio ao notório aumento do feminicídio, do trabalho doméstico e de outras estruturas
degradantes que afetaram o corpo feminino na pandemia, não podemos ficar indiferentes ao cuidado para
com a mulher. Nos dias que correm, notamos a presentificação do alargamento da violência contra
mulheres, sobretudo as mais oprimidas socialmente, como afrodescendentes e indígenas. Esse
97
DANÇAS DO AGORA
processos criativos em dança. Como aporte teórico, dialogo com autores da dança, da saúde e das ciências
sociais.
Era uma vez uma menina que habitava uma cidade do interior e que tinha a necessidade de amar.
Era uma criança alegre que cresceu e se tornou adulta e que, em 2020, quando completara 67 anos, tornou-
se uma estrela. Ah, sobre o amor, ele permaneceu. A tentativa de descrevê-la é uma iniciativa para o não
esquecimento ou para um retorno a fim de jamais abandonar os seus detalhes. Da mesma forma, é uma
iniciativa para a identificação da perda real, voltada, no entendimento freudiano, ao reconhecimento como
parte do desejo de reconstrução da perda pelo ego até que o sujeito vivo alcance o esgotamento total.
Quando este acontece, o luto dilui-se.
Poderia também escrever muitas lembranças... Há tanto para contar! A última vez que nos vimos
foi em uma videochamada, uma despedida, tão emocionante, tão vívida, tão bela! Não sabia o que estaria
por vir. De modo seguro, meses antes de sua partida, o último abraço. Certo dia, em setembro de 2020, o
celular toca, evidenciando a ligação de uma prima próxima. Houve um estranhamento, pois, nos dias de
hoje, as pessoas não costumam realizar ligações, e a palpitação então aumentou, já entrevendo o anúncio
que viria: minha mãe havia necessitado dos cuidados da UTI.
A partir disso, vieram o desespero, a angústia, o choro, o terror – os piores dias do primeiro ano
pandêmico. Pé na estrada e quilômetros de distância; a família precisava estar junta. Ao entrar na casa
materna, não foi possível sentir a presença física da minha mãe... Ela parecia já estar distante. A noite caiu,
veio o sol, o calor do meio-dia, a esperança do pôr do sol... Todos os dias, chegava um boletim médico.
Orações, rezas, mantras, pensamentos, ligações dos familiares distantes, mensagens dos amigos... De
fato, a esperança nunca morre! Não me foi permitido vê-la na unidade de terapia intensiva. Queria tocá-la
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DANÇAS DO AGORA
e entregar o seu terço nas mãos adormecidas. Mas de que forma? O COVID-19 não autoriza sentir a pele do
outro... Nem de longe pude passar. Dúvidas? Todas, inclusive quanto aos inexplicáveis termos médicos. O
que eu conseguia decifrar era revertido no apego por uma melhora, uma saída, uma luz de que ela voltaria
para o seu quintal.
Ela estava estável, mas o estado era grave. Nunca houve intercorrência. Houve melhora na
oxigenação, na pneumonia... A gasometria com boas trocas, e uma melhoria no leucograma, mas... Oh, mas
é sempre oposição ou adversidade. Dias se passaram... Até que, em um domingo ensolarado, que parecia
alegre e marcado pelo cantar dos pássaros, talvez uma verdade inventada... As mulheres chegam com a
notícia, eram as minhas tias e primas... Parece que as mulheres nasceram para o acolhimento... Sim, é
verdade! Então, foi mais ou menos assim que a estrela partiu, sem pedir licença para ninguém... Chegou a
sua hora, o seu grande acontecimento. A estrela moveu-se para o céu, fez o seu voo... E uma nova história
começa! Aos vivos: o tempo do luto, o choque, a boca seca, as carnes trêmulas, as alterações de apetite,
a raiva, a impotência, a confusão, a instabilidade, o choro, a preparação, as flores, o ritual limitado, a
despedida, as homenagens, a impossibilidade dos abraços, as recordações, a saudade...
Suportaríamos ancorar o luto, seja por perdas de um ente querido, seja pelas perdas do cotidiano
de nossas vidas em muitas perspectivas – filosóficas, antropológicas, psicológicas... Evidentemente,
minha visão espiritual sobre o processo do luto não faz parte deste trabalho. Também não é meu intento
dar conta da complexidade do luto, pois existem pesquisadores de outras áreas que se ocupam com
profundidade do assunto. Em vez disso, posso apontar sutilmente a experiência do luto reforçando um dos
aspectos que mais o marca: o tabu. Confirmo, portanto, que a pessoa enlutada vivencia o luto enfeitado
de tabu.
A etimologia da palavra tabu é polinésia, sendo o seu significado o de assumir os mistérios, as
impurezas, os impedimentos e as inconveniências. Para os freudianos, o tabu é uma instituição social.
Desde os rituais fúnebres, a depender das escolhas familiares, espirituais e/ou culturais, o luto insere-se
como um fenômeno inacessível, cheio de restrições e proibições que cercam a liberdade do sujeito. Tais
desautorizações do luto geralmente se impõem em função da cultura ou do próprio indivíduo; todavia, são
encaradas naturalmente pelos enlutados e pela sociedade. Ambos, tendo sido convencidos de que não se
pode tratar o assunto abertamente, não desobedecem às regras pelo temor temático ou pela crença de
estarem sujeitos à punição. Desse modo, a dança como local também de militâncias se insere na
desobediência do corpo ao falar do luto, rompendo o tabu.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Ao olhar o luto de frente, isto é, ao que muitos denominam como acolha suas emoções, mostramos
os aspectos escondidos, os elementos da esfera sensível e a subjetividade. Suponho que dialogar com o
luto passa por enxergar o sofrimento psíquico, indo na contramão das amarras que impedem a libertação
humana. “Quando reconhecemos esse sofrimento, ele quase sempre se encolhe. Quando negamos, ele se
apodera da nossa vida inteira” (ARANTES, 2016, p. 107).
Ao discorrer sobre como acontece o luto, o psicanalista Christian Dunker expõe, virtualmente28,
que Freud ilumina a superação da perda como uma experimentação do conjunto de ações psíquicas
constituídas no trabalho de luto, no qual o corpo projeta simbolicamente no interior do eu aquilo que foi
perdido. O luto teria o seu fim quando surgem novas possibilidades do amar. Para tanto, é fundamental a
concretude da perda, já que o contrário causaria uma identificação com a perda oriunda dessa recusa de
realizar o estatuto simbólico do que foi perdido. Em termos práticos, podemos dizer que tratar o luto pelo
olhar da dança é reconhecer a importância do impacto da dor no sujeito, ali onde o real e o simbólico se
articulam.
Da fase simbólica, o luto passa para outras fases que podem abarcar o julgamento social no
enlutado, a culpa, a raiva, a inquisição, as rivalidades e os bons afetos. Todo esse estado corporal de
sentidos, quando estruturado na dança, permite uma não superficialidade e um valor maior que o do puro
real, pois o corpo dançante tem a oportunidade de sentir, refletir e transcender a dor. Para o psicanalista
supracitado, o processo do luto tende a se articular com lutos anteriores, ocasionando um luto acumulado.
Se o corpo vivo não gerencia os afetos, inclusive os sentimentos dos lutos precedentes, pode ser
conduzido a uma devastação de símbolos. Embora a dança não substitua o campo da psicologia, configura
um apoio criativo do sujeito para a elaboração de suas perdas.
Assim, versar acerca do luto na dança é pensar sobre a temporalidade da dor, a sensação do
enriquecimento humano perante a perda e a dissolução de tabus para a reintegração do sujeito e de suas
histórias com o outro ausente-presente. É, ainda, estar em contato com aquilo que não temos mais: o olhar
da pessoa sobre nós como criação da referência de quem somos. O que cabe à dança é ora reconstruir o
sentido do ser alimentado pela pulsão de vida, ora cavar uma saída no meio do caos. “Por isso dizemos que
existe um trabalho, algo ativo, construído em direção a uma nova vida. Cavar a saída da caverna do luto
demanda ação, força, esforço” (ARANTES, 2016, p. 106).
28
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0Kz7jsXo6B4. Acesso em: 26 de mai. 2021.
101
DANÇAS DO AGORA
No meio do luto individual, obtive um maior cruzamento com a crise sanitária, epidemiológica e
psicológica. Efetivamente, minha experimentação da pandemia recebeu uma dose extra do turbilhão de
dores. É incoerente comparar a sensação dos profissionais de saúde da linha de frente ou dos cientistas
que se dedicaram arduamente para formular vacinas com a visão das famílias que perderam seus amores
ou dos trabalhadores mais subalternizados que não puderam fazer valer o Fique em casa. Ademais, são
sofrimentos tão singulares que não é meu intuito fazer aqui uma analogia. Descompromissada com as
comparações, encaro o acontecimento do luto para além do meu interior. Na condição de pesquisadora,
tenho a obrigação de refletir acerca do cenário que ultrapassa meu próprio solo.
Com efeito, é frequente o debate sobre as consequências do novo vírus sobre as populações mais
oprimidas como as mulheres, principalmente as negras, indígenas, mães solos, pessoas com deficiência
ou em outras situações de vulnerabilidade. Com franqueza, vidas ameaçadas fizeram-se presentes ao
longo da história. Um exemplo característico bem próximo é o extermínio dos povos originários e dos
negros no Brasil, cujas histórias ainda são narradas sob uma perspectiva eurocêntrica, que nega o direito
dessas comunidades de habitar o planeta, em uma recusa do direito à respiração. “A humanidade já estava
ameaçada de asfixia. Se houver guerra, portanto, ela não será contra um vírus em particular, mas contra
tudo o que condena a maior parte da humanidade à cessação prematura da respiração” (M’BEMBE, 2020, p.
09).
Na lógica capitalista, a pandemia não fez mais que aflorar a dicotômica cruel entre a tutela da vida
e a ordem econômica, forçando os debates acerca do desafio político-social contemporâneo. Ouvimos
frases polêmicas e degradantes de negação da vida que muito nos envergonham. Entre salvar vidas e
salvar a economia no Brasil desigual, a priorização da segunda opção implica decidir quem deve ser
descartado. Se analisarmos fontes históricas, a exemplo das afrodiaspóricas, veremos que os mais
ameaçados foram sempre as mesmas raças, as mesmas classes e os mesmos gêneros. Na prática, todos
os sujeitos podem ser atacados pelo vírus, mas determinados grupos sociais – os outros – são, sem dúvida,
tratados como sub-humanos29 e, logo, in-humanizáveis. Isso significa que a pandemia não atinge a todos
de modo igual. Conjecturo, portanto, que cumprir o isolamento social em uma periferia não é semelhante
à vivência de fazê-lo em um condomínio deslumbrante.
29
O sociólogo e educador Miguel Arroyo utiliza os termos “sub-humanos” e “in-humanizáveis” para falar dos outros, os mais
segregados na sociedade. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/yntcdQPN9668CrYfmw6QTcQ/?lang=pt. Acesso em:
28 de mai. 2021.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Assim, uso o termo necropolítica, postulado por Achille M’Bembe (2011), que argumenta ser o poder
um sistema definidor dos que podem viver e dos que devem morrer e do jeito que viverão e morrerão. “A
soberania é a capacidade de decidir quem tem importância e quem não tem, quem está desprovido de
valor e quem pode ser facilmente substituído e quem não pode” (M’BEMBE, 2011, p. 46). Apoiada nos estudos
acerca de biopolítica de Foucault, ouso afirmar que a necropolítica descreve o processo de dominação do
Estado e as formas contemporâneas de subjugação da vida à autoridade da morte.
Para ilustrar tal aspecto, cito o fato de que aqueles considerados como não compatíveis morrem,
ou seja, de que a morte de pessoas negras e pertencentes a comunidades indígenas é naturalizada. Nesse
cenário, a raça constitui um aspecto demarcador da destruição máxima de pessoas e da construção de
“mundos de morte, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são
submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de mortos-vivos” (M’BEMBE, 2016, p. 146).
Em função de tudo isso, é comum afirmarmos que, no Brasil, vivemos uma crise sanitária,
epidemiológica e psicológica, onde os serviços de saúde entraram em colapso juntamente com o
descrédito na ciência e o mal-estar crítico ocasionado pela política de desamparo social. Ante o
alastramento da impossibilidade de mudar a realidade, somado ao capitalismo e à ideia de que nem todas
as vidas realmente importam, o corpo foi submetido à negligência, especialmente os corpos inferiorizados
em humanidade.
A calamidade coletiva, sem precedentes, despertou fenômenos sociais que fortificam a questão
da opressão nos contextos com maior iniquidade, sendo salvaguardada uma parcela de grupos sociais,
cujo labor foi transferido ao modo remoto, ou as classes alta e média, que, nos diferentes acordos do novo
normal, garantiram a superioridade nos direitos de conservação da vida. Enquanto isso, os outros foram
lançados com mais intensidade para a precarização do trabalho, com raras opções de proteção e dignidade
humana. Nasce, então, a expectativa forjada de uma normalidade apoiada no reforço excludente dos
esquecidos sob a ótica da colonialidade.
A colonialidade é uma forma de dominação histórica e cultural da Modernidade, ou seja, uma
matriz do sistema capitalista ocidental e patriarcal. Isso significa dizer que a colonialidade transcende o
colonialismo, pois ela não desapareceu com a Independência, e, mesmo com o colonialismo histórico de
ocupação de terras camuflado, a lógica de relação colonial permanece determinando os modos de vida na
atualidade.
A colonialidade consiste em uma nova feição do colonialismo, porém suas camadas são mais
traiçoeiras porque se encontram no centro de relações sociais, econômicas e políticas, muitas vezes
103
DANÇAS DO AGORA
fantasiadas por ideologias de direitos humanos universais ou do não preconceito perante a lei. A esse
respeito, existe uma frase que diz: “é hora de declarar incumprida uma das grandes promessas modernas.
O homem branco jamais aceitou a igualdade. Novas lutas precisarão impô-la” (SANTOS, 2018).
Para declarar novas explorações, a colonialidade ocorre como “saudade do colonialismo, como se
fosse uma espécie em extinção que tem de ser protegida e multiplicada” (SANTOS, 2018). À título de
esclarecimento, nos grupos oprimidos e explorados, a pandemia tem um vínculo com as estruturas
racistas e com a história da luta de classes, de modo que esses sujeitos possuem menor amparo no que
concerne à saúde e às formas de afirmação da vida. Eis um exemplo do colonial! “Um dos elementos
constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder” (QUIJANO,
2000, p. 342).
Essa colonialidade do poder dispara a distopia atual e, assim como esta, não trabalha sozinha, mas
em níveis emaranhados. De acordo com Luciana Ballestrin (2013), a colonialidade do poder controla a
economia, a autoridade, a natureza, os recursos naturais, o gênero, a sexualidade, a subjetividade e o
conhecimento. Inaugura, então, o decolonial, que, em um país com a latência de desigualdades, aparece
para sulear a humanização, questionando “o tripé colonialidade do poder, saber e ser como forma de
denunciar e atualizar a continuidade da colonização e do imperialismo, mesmo findados os marcos
históricos de ambos os processos” (BALLESTRIN, 2013, p. 110).
Com o legado do colonialismo validado pela colonialidade do poder, do conhecimento e do ser,
vivemos uma pandemia estimuladora dos motivos pelos quais o vírus afeta as pessoas de modo distinto e
desigual. Portanto, ante a sentença estamos todos no mesmo barco, devemos questionar: quem são esses
todos? É inegável que, no Brasil distópico, mulheres como as trabalhadoras negras subalternizadas,
brancas precarizadas e indígenas fazem parte de um corpo social que, na condição de servidão, são
afetadas não só pelo vírus, mas também pela sociedade racista, machista e classista.
O aumento da colonialidade na pandemia não apenas ampliou a opressão e a exploração dessas
mulheres, como também alargou o debate acerca das batalhas femininas por uma revolução social. Na
possibilidade de superar a colonialidade desse gênero, María Lugones (2014) convoca o feminismo
decolonial, que outrora reconhecia a luta contra o reducionismo biológico patriarcal criado para colocar a
mulher em desvantagem: “estamos nos movendo em um tempo de encruzilhadas, de vermos umas às
outras na diferença colonial construindo uma nova sujeita de uma nova geopolítica feminista de saber e
amar” (LUGONES, 2014, p. 950).
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Para além da narrativa de opressão das mulheres, o feminismo decolonial oferece fontes que
permitem às mulheres entender a sua realidade e os obstáculos que impedem o seu crescimento, o que
implica, por conseguinte, compreender a interação complexa da economia, do sistema racializante e do
imaginário social. Em vez de pensar somente o sistema global capitalista exitoso na degradação dos corpos
e das culturas, “quero pensar o processo sendo continuamente resistido e resistindo até hoje” (LUGONES,
2014, p. 942).
Nas múltiplas tensões da teia dança-luto-vida, a partir da experiência de viver o luto, transpasso
rumo ao mergulho na crise sanitária, epidemiológica e psicológica provocada pela pandemia de COVID-19.
Assim, gestei três processos de criação no estilo tribal de dança do ventre, que nutriram caminhos de
reflexões e travessias poéticas essenciais para o (re)inventar e o (re)existir.
O primeiro processo recebeu o nome de A minha dor30. Ocorrido no mês de outubro de 2020, refere-
se a um trabalho de improvisação em dança para a finalização da disciplina de Perspectivas anticoloniais
em diálogo com a Educação, de 52 horas-aula, cursada como eletiva no Programa de Pós-Graduação em
Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. Considerando o princípio nenhum a menos, a avaliação
da disciplina foi realizada tendo em vista as dificuldades específicas de cada aluno.
Diante disso, A minha dor foi apresentada como trabalho final na impossibilidade de uma escrita
usual. Foi desenvolvida a partir de uma prática artística improvisacional, na qual a experiência do sensível
moveu as emoções, os sentimentos e as percepções, em uma escrita da realidade vivida como um
“escreverdançando ou dançarescrevendo” (FERNANDES, 2013, p. 20).
Essa proposta, sistematizada na canção Te desejo vida, da artista Flávia Wenceslau, foi conduzida
por meio da exploração de movimentos baseados no que se move, de que maneira se move e para que se
move. O viver o luto e o apelo à afirmação da vida em tempos de negacionismo da realidade foram os
principais objetivos dessa improvisação dançada. É interessante pontuar, ainda, que as técnicas do estilo
tribal foram articuladas às experimentações corporificadas pelos acontecimentos do mundo, sendo
selecionadas para a eliminação de alguns caminhos e a permanência de outros. “No corpo, a dança também
30
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Yzi5oPIowdI. Acesso em: 29 de mai. 2021.
105
DANÇAS DO AGORA
começa por abdução. Dessa ignição brotam hipóteses motoras que o corpo escolherá percorrer e que
resultarão na dança-pensamento” (KATZ, 2005, p. 52).
Essa dança-pensamento dançada em casa foi registrada em um vídeo de aproximadamente
quatro minutos e, posteriormente, publicada no meu canal do YouTube e em minhas redes sociais. Motivou
o convite para participar da palestra intitulada Viver a perda, dançar o luto, do Grupo LABSENSI –
Laboratório de Sensibilidades do Curso de Medicina, da Universidade Federal de Pernambuco, campus
Caruaru.
Já o segundo processo de criação em dança foi o ensaio fotográfico movente realizado no Parque
Municipal de Maceió, Alagoas, em 2021. Fluxo foi capturado pelo olhar sensível da fotógrafa Juliana Barretto,
em uma busca por deixar correr os aspectos de uma nova fase da experiência do dançar o luto, ancorando
bases do estudo do estilo tribal de dança do ventre à mesclagem expressiva da dança moderna e
contemporânea. Por intermédio desse processo, “as lembranças, memórias, recordações são
resinificadas, transformadas no decorrer da manipulação material da linguagem coreográfica consciente,
por meio da atuação simbólica do inconsciente” (LEAL, 2012, p. 95). As perguntas que guiaram a estética
dessa dança foram: como viver sem a ausência-presença? Como registar/dançar a afirmação da vida?
Como dançar a esperança na atualidade? Como subverter as lógicas de opressão e dominação do corpo,
sobretudo do corpo feminino, no sistema-mundo do capital? O que pode o corpo que dança?
106
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Figura 6. Fluxo
O terceiro trabalho artístico, por sua vez, nomeado Em que tempo sua dança está?31 e realizado
em 2021 no mirante São Gonçalo, localizado na cidade de Maceió, originou um vídeo-coreográfico de quatro
minutos apresentado no evento Caravana Tribal Nordeste. As imagens e a edição do vídeo foram
construídas juntamente com Juliana Barretto, e a música Força estranha, composta por Caetano Veloso e
cantada por Gal Costa, foi escolhida para retratar experiências e temporalidades do sujeito a partir de
metáforas e certezas.
Foi adotado, nesse processo criativo, o ato de improvisar na tentativa de diluir e aterrar a
sensibilidade, bem como o exercício da repetição como recurso de pesquisa coreográfica, pois “A repetição
auxilia o intérprete criador a transformar em forma estética uma matriz, uma célula, um tema de
movimentos” (LEAL, 2012, p. 91). A repetição foi selecionada como opção cênica do movimento consciente
a fim de provocar mudanças qualitativas no repertório, refinando a técnica e propiciando ao público uma
maior aproximação com a dança, uma vez que “A repetição nem é a permanência do Uno nem a semelhança
do múltiplo. O sujeito do eterno retorno não é o mesmo, mas o diferente” (DELEUZE, 2000, p. 126).
Esse terceiro trabalho esteve mais conectado com o que comumente se espera do estilo tribal:
saia longa e rodada, choli (blusa indiana) e flores. Cada elemento presente foi escolhido como um reforço
31
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MM6Gclb8SEk. Acesso em: 29 de mai de 2021.
107
DANÇAS DO AGORA
a algum impulso interno ou a alguma sensação, a exemplo da imagem de Frida Kahlo e de feministas
anticoloniais. Nesse sentido, a dança não existe de forma individualizada, mas exposta à experiência de
mundo. “Essa movimentação absorve fronteiras, cria um outro espaço de atuação e permite um fluxo de
continuidade entre diferentes modos de perceber e dialogar no mundo” (SETENTA, 2008, p. 62).
A coreografia desse processo foi gravada a partir de ângulos distintos. Tais ângulos foram: um
mais amplo e aberto, que capturou toda a dimensão coreografada; um de enquadramento específico, que
registrou a ideia de imagem de baixo para cima, tendo o sol como plano de fundo; um de frente para o sol,
em oposição à câmera, que concedeu uma iluminação corporal; e, por fim, um ângulo fechado, que
objetivou enfatizar os detalhes faciais e alguns gestos especiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo foi desenvolver uma reflexividade no âmbito dança-luto-vida, que, a partir
do luto vivido por mim, é ampliada para a crise sanitária, epidemiológica e psicológica ocasionada pela
pandemia de COVID-19. Para tanto, foram usados como parâmetros a crítica contra as formas de
subjugação do corpo e a exposição de três processos criativos em dança ocorridos nos tempos de desastre
coletivo. Diante da diversificada crise social, da dolorosa perda individual do grande feminino-mãe e do
discurso de que o coronavírus atinge a todos igualmente, sem distinção de raça, gênero ou classe, vimos
108
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
neste texto que o estilo tribal de dança do ventre pode configurar uma rota de resistência criativa, como
se fosse um grito, um respiro e uma permanência.
Tendo isso em vista, espero que a dimensão crítica favoreça os enfrentamentos das formas de
colonialidade e dos efeitos dos modos de produção capitalista, que geram lógicas de dominação e
alienação do/no corpo que dança. Assim, desejo que este texto possa alimentar o fluxo da vida e o campo
da nossa sensibilidade e que, de igual modo, possa iluminar a memória das vidas vítimas de COVID-19 e,
quem sabe, servir de identificação para outros sujeitos e outras áreas de conhecimento ou de âncora para
seguirmos firmes no cotidiano de nossas vidas.
109
DANÇAS DO AGORA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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110
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos
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111
DANÇAS DO AGORA
CRISE DO A SI SER
EM UMA DANÇA DIGIPERFORMADA
Robson Farias Gomes
O SER E A PANDEMIA
Perguntamo-nos quem somos a cada segundo pandêmico ao qual estamos submetidos nos
últimos um ano e meio (2020-2021/1). Quantas (des)formações. Inúmeras (des)identificações de si em meio
a tantas subjetividades perdidas, feridas, estilhaçadas. “O que sou? O que posso ser? O que devo estar?”
são as questões norteadoras deste estudo cênico-teórico, de vida e, ainda, ontoperformativo vivenciado
na Pandemia de COVID-19 na segunda década do século XXI.
Desde o surgimento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), até o presente momento32, são registradas
449 mil (quatrocentas e quarenta e nove mil) redes de subjetividades perdidas, mortas e talvez
assassinadas por um despreparo organizacional de enfrentamento à crise sanitária no país. Isto significa
um abalo patológico sistêmico na rede de subjetividades brasileira, quer por quem fora afetado
diretamente pelo contágio viral quer por quem minimamente acompanha as redes de noticiários.
O ser, neste sentido, encontra-se desestabilizado. O que fizemos de nós enquanto seres humanos?
Atingimos a plenitude deste conceito ou apenas nos afundamos em um abismo existencial que, de
imediato, questiona-se a respeito de sua (des)humanidade para consigo e com o outro?
O ser, a partir dos estudos filosófico-ontológicos, perpassa historicamente por eventos de (i)
unidade (a questão do Ser-Uno), cuja relaciona-se com a perspectiva do Uno que se dá à derivação de si
para constituição do real em filósofos como Parmênides de Eleia (SPINELLI, 2003), Platão (SILVA, 2010),
dentre outros, em sentido geral da fundamentação abstrata da realidade; (ii) do Ser enquanto Ser
propriamente dito, co-problematizando os problemas das maneiras de como o ser se diz, em Aristóteles
(REALE, 1994), por exemplo; e (iii) um devir relacionado a uma dinamicidade do/no ser no prisma do
movimento da vida, tendo, a título de exemplo, as problematizações nietzschianas (LODETTI, 2007) ou,
ainda, deleuzo-guattarianas com inspirações espinosistas (BARBOSA, 2020) na contemporaneidade.
32
Última atualização dos dados deste texto. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/, acesso em: 24 de maio de 2021.
112
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Em História e Ontologia (1999, s/p) o pensador brasileiro da relação entre ontologia e estética,
Benedito Nunes, afirma que:
Em cada época, uma pré-compreensão do ser se nos antecipa: oposição entre criador e criatura
na Idade Média, oposição entre res cogitans e res extensa na Idade Moderna, o Cogito, a
substância pensante conformando o indivíduo em sua humanidade, como sujeito de
conhecimento e de direitos, e depois convertendo-se em vontade de potência, na época
moderna avançada, quando se dá o fastígio, a dominância da técnica.
O globo interrelacionado, desta feita, evidencia-se como tal em nossos tempos a partir de
demandas de ordem de co-existências, a qual em literal contágio viral coloca em questão o ser em toda
sua complexidade – uma crise do a si ser enquanto estatuto ontológico –, isto é, no que se problematiza o
sujeito desde o ponto Uno da existência até a individualização exacerbada de uma contemporaneidade
falida e esfacelada de si mesma. Assim, como o ser tem se relacionado, em especial, consigo mesmo-outro
em momentos de uma nítida e clara vinculação de si com os demais?
Para além de uma adaptação animalesca ao ambiente (ORTEGA Y GASSET, 1963), o humano
enquanto ente reformula sua vivência nas mais diversas atmosferas e circunstâncias. Mingua o acaso para
que crie outros estados para além de um uno dado. O humano em si e para além de si passa, aqui, a ser
problematizado como aquilo ou aquele que pode a si reconfigurar em virtude de novas ambientações;
como aquele que faz a si mesmo em interconexão com o Todo: um Homo Faber de si, especialmente em
momentos de crise.
O ser dado no humano é tomado como aquele que se inventa, produz, refaz, desfaz, alçando, nesta
via, a mescla com o ambiente em discursos de subjetividade abertas e em movimento.
O tempo, o contexto, o clima ou um vírus influem diretamente nas transformações do que se seja
enquanto humano enredado por humanidades tanto dissidentes quanto conformadoras.
Este conflito entre o dado e o (trans)res-significado de si em liames de sequer compreender o que
se está sendo por um tempo ou por uma vida trata-se do ponto central de investigação desta escrita
ontoperformativa, isto é, de natureza ontológica e performada em dança.
Os distúrbios ontológicos do ente afetado por uma pandemia é, a partir daqui, demarcado como
um ente artista e artístico – enquanto ser e quanto obra de si no/em movimento – na perspectiva filosófica
contemporânea da diferença e do devir, a saber, em liames deleuzo-guattarianos no traçado conceptual
da obra de arte enquanto monumento efêmero. Em paralelo, a perspectiva imanente da feitura e do ser a
si em dança de Mendes (2010) é interrelacionada artístico-filosoficamente com a deformação identitária
113
DANÇAS DO AGORA
do corpo que dança no absoluto paradoxo do vir-a-ser do artista-obra. De tal modo, na mescla de tais
aspectos constitucriamos um ensaio digiperformado de uma dança que seria pura a firmação de si na
desconfiguração de sua identidade.
A abundância de paradoxos pelos quais nos encontramos envolvidos gerou uma poética sobre si,
mas que tem a ver tanto com o todo quanto pelo que sequer passa pelo subjetivo. O ambiente social
penetra-nos de modo tão outro que as entranhas subjetivas do que minimamente pensamos ser “nosso”
ou “aquilo que somos” encara uma problemática de corpo-sujeição para além de uma individualidade ou
pessoalidade interna. O que somos, no fim das contas, encontra-se de quase todo pré-empreendido por
uma máquina de construção identitária em massa, o que coloca em xeque toda e qualquer nova
intervenção de/em si e no mundo por vias de aproximação artística, científica ou filosófica.
O ser que dança é, portanto, aquele ou aquilo que dialoga consigo, com o mundo e com o plano de
imanência na medida em que o segundo, nas relações biopsicossociais o influencia em medida
assustadoramente maior do que o primeiro ou o último a si próprio.
UM SER PANDÊMICO
114
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
termos cartesianos do Cogito, passando, desta forma, a ser tomado como subjetivação. Segundo Cassiano
e Furlan (2013), disto advém a tessitura de processos de subjetivação como linhas e fluxos:
[...] pois se trata mais de um processo do que de um dado ou ponto de partida essencial, nisto a
importância do estudo das linhas, isto é, das relações de forças de sentidos em que nos tecemos
em sociedade e mundo, e que, como veremos, também nos escapam, esboçando assim outras
experiências de sentido ou simplesmente caotizando as já formadas (CASSIANO; FURLAN, 2013,
p. 373).
Aqui se pensa a coadunação paradoxal de traços já inseridos nas constituições subjetivas com a
transfiguração destes que, neste passo, eclodiriam em novas produções singulares. Cassiano e Furlan
(2013) ainda indicam um esquema que leva em consideração, no pensamento dos filósofos franceses, três
aspectos constituintes do que se é: (i) linhas duras, (ii) linhas maleáveis e (iii) as linhas de fuga. A primeira
dada nas dualidades sociopolíticas estratificadoras; a segunda relacionada enquanto possibilitante das
variações justamente no que contribuiriam para desestraficações relativas e, por último, o terceiro
aspecto que diz respeito às desestratificações absolutas.
Neste contexto, no recorte desta pesquisa, incidimos nas dobras possíveis dos tecidos identitários
a partir da perspectiva deleuzo-guattariana, em especial no que pensam o caos como princípio imanente
de desestratificação do dado nos modos de vida, pois seria no “campo do virtual ou da dimensão do
possível onde se jogaria com o atual” (CASSIANO; FURLAN, 2013, p. 376), na constitucriação de um ensaio
digiperformado envolvendo dança e fotografia questionando e criando uma questão própria de um (não-
)rosto da/na performance dançada.
Dentro desse emaranhado des-auto-identificatitório, segundo Langaro e Benetti (2014, p. 200) a
crise mais ampla da modernidade incidiria justamente na “construção da subjetividade contemporânea,
ou seja, na própria constituição do sujeito”, tendo em vista o vazio e o desamparo de si nas buscas
constantes de significações do que se seja. Esse emaranhado desencadearia inclusive processos de
sofrimento psíquico que percorre linhas de intensidade entre o ser e o estar, o coletivo e o individual, o
prazer momentâneo e a demanda de cuidado social. Dito de outro modo, o “Narciso” passa a colidir com o
corpo sociopolítico o qual lida com personalidades a serem assumidas por si.
O contexto pandêmico de COVID-19 insere problemáticas ontológicas pertinentes quanto ao estar
vivo e em vida nestes termos. O choque entre o pessoal e o coletivo leva o ser humano a outros níveis de
reflexão sobre si mesmo e sobre si outro em que não se está demasiado interessado em explicações
lógicas a respeito de sua existência ou do sentido do seu estar no mundo. A variedade de tentativas de
115
DANÇAS DO AGORA
explicações a respeito da própria existência em vida encontra caminhos religiosos, terapêuticos, por vezes
analítico-filosóficos, mas também artísticos, sensíveis e abertos aos afetos quer tristes ou alegres.
O que se deseja e o que se reprime, o que se é e o que se almeja ser enquanto ente procura fissuras
para além do lógico-racional de explicação ontológica também previamente dados. Há uma espécie de
rebelia por parte do ser pandêmico dado sua conjuntura de amalgamada desgraça social.
Uma dança imanente, como pensa Mendes (2010) – identitária e de desreconhecida de si – que se
deixa ser na iminência de vir-a-morrer em definitivo, leva-nos, enquanto “corpos”, “corpas” e “corpes” à
ainda mais extremas formas de vida, ou seja, à outras constitucriações daquilo que se acreditava
enquanto ente dado no social em outros arranjos identitários, uma vez que o que já se foi um dia não se
pode mais ser de mesmo modo depois de tudo o que se está vivendo. O corpo pandêmico urge nas
emergências do calor do esgotamento. Este corpo se percebe necessariamente outros corpos ante tanto
“faça” e “seja” do nosso tempo.
Num estilo de vida capitalizado, onde a vida vale pouco mais de 500 (quinhentos) ou 1000 (mil) reais
(média de preço de um cilindro de oxigênio hospitalar), cada sujeito mal sabe ou reconhece seu papel no
mundo a não ser o de gerar lucro e mais lucro para outrem invisível. A interdição geral das relações de
macro aglomeração enquanto também mercadoria (assim como seu contrário) faz a vida ser vista na
polaridade de seus extremos.
Esta polaridade de vida (para alguns) e morte (para muitos) resultou, dentro deste estudo, em uma
série digiperformada de uma dança estática: viva, pois ela mesma quer se criar outra, mas morta porque
tudo em si encontra-se parado, hirto e estacado.
A performance-ser denominada “SOU” é uma reflexão em artes/dança a respeito deste modo
precário de vida que se encontra sufocado enquanto tudo o que é: enquanto ser.
Se o oxigênio é vendível, comprável, mercadologizado, então a vida não passaria de uma mera
mercadoria de valores dentro do contestável. Os aparelhamentos precários das condições de vida hoje (os
quais nos recusamos a enumerá-los) marcam uma reflexão ontológica latente no que tange a um corpo-
precário enquanto ser em existência também precária.
Com base em visualização panorâmica desses aparelhamentos, na situação de pandemia de
coronavírus, não se trata apenas de sequer não podermos ser/estar plenos, mas de sua impossibilidade
por inteligibilidades dominantes como as que ainda insistem e dizem ser o vírus um castigo de algum Deus,
ou de que sua (não) convicção religiosa atrairia a doença, ou ainda a de que com positividade a vida será
melhor depois da pandemia enquanto sequer há o pão para manter o corpo biológico vivo.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
O SER-ARTISTA PANDÊMICO
Como performar enquanto ser-artista-pandêmico? Com tantos motivos para paralisar, o que
ainda move? Como autorretratar aquele que não percebe mais em si um rosto? Como permanecer vivo e
querer ser em meio a um cemitério tão grandioso?
Uma das poucas estratégias prudentes de partilha artística de si nos últimos tempos tem sido a
digiperformance, nomenclatura autoral atribuída à uma performance digital de múltiplas linhas midiáticas,
isto é, de partilha intermídia de um fluxo artístico único, pessoal e idiossincrático em uma perspectiva
imanente do performar em dança em diálogo/contato com outras linguagens (MENDES, 2010).
Uma digiperformance encontra-se distante, mas muito próxima, pois penetra quem vê, mas
também se deixa ser vista por binóculos. Uma digiperformance encontra-se no campo do paradoxo: da
presença, da distância, do ser, do estar, do não-estar, do querer e do partilhar. Partilhas que envolvem
facções de si irreconhecíveis por si mesmas, mas que de tão abstrata se faz ver como plena tentativa de
estar em algum lugar e sendo alguma coisa.
Estar lá e não estar. Não estar. Está (GOMES, 2019).
A vida para além do oxigênio gera rostos e rostidades que trepidam por dentro complexos
identitários em uma constante reinvenção de si para além de um rosto pré-formado, estratificado, ou
mesmo para além da pretensão de um rosto quer compreensível ou aceitável.
Brito (2017, p. 143) propõe, em leitura de Deleuze e Guattari, que “um rosto não é encontrar ou
procurar, nem equivale a fomentar um conceito, mas ele passa por maquinismo e por um conjunto de
vigilância”, assim como “fomenta resistência, cava espaço de invenção, produz seus desdobramentos”.
Uma constante produção de si, de subjetividade que encontra num não-rosto algo que
razoavelmente possa ser seu ou a si ser em período crítico de si e do outro. As substâncias, as essências
e as identidades já entraram em crise. Há neste ensaio a defesa de uma contínua mutação de forças, um
movimento constante em lutas que culmina num eterno “tornar-se” e nunca em um “tornado”, finito e
estático. Não há como ter lugar, mas há luta para que se seja alguma coisa e esteja em algum canto não
somente dentro de uma estatística (44901 (quatrocentos e quarenta e um mil e um), por exemplo).
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DANÇAS DO AGORA
Há o conflito, portanto, de ser inteiro e fragmentado ao mesmo tempo, um nada, mas tudo, um
número e uma vida. Há um anonimato tão denso que mesmo que se procurasse um rosto descoberto nada
seria visto. Há um abismo no lugar do rosto.
Agonia.
Agonia, agonia.
Agonia e agonia!
Para onde o ar foi? O que essa pele que cobre o rosto e faz com que eu me sinta me perdendo de
vez? O que sinto ao fechar os olhos e esperar tudo escurecer? O que sinto? O que sou? O que deveria estar
sendo? O que sinto?
Agonia.
Agonia, agonia.
Agonia e agonia!
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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DANÇAS DO AGORA
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
As autoimagens a partir do segundo ensaio de “SOU” remetem à fragmentação do ser ante a uma
unidade rostiva. Na partilha de si consigo e com outro um pouco do outro que deixa de existir faz com que
“eu” deixe de existir um pouco também. O esfarelamento do rosto é trazido como “cuí” 33, isto é, como
frações circulares, átomos, migalhas de múltiplas existências em uma.
33
Palavra amazônica para farelo, pó, farinha muito fina.
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DANÇAS DO AGORA
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O terceiro ensaio traz consigo o acúmulo do a si ser como ato de crise de uma autoidentificação
em atmosfera pandêmica. O corpóreo ebule, a pele empola, explode, eclode, cria cistos, incômodos e
relevos. O dentro para fora em toda sua cólera. Um furor vindo à tona de uma pele irritada que carrega
consigo dores que não só suas. Uma doença que assola e pulula um sujeito adoentado.
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DANÇAS DO AGORA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os apenas 03 (três) ensaios, de 07 (sete) ao todo, expostos no corpo deste texto expõem a latência
de uma performance que problematiza o rosto, a autoidentificação e sua desintegração numa
contemporaneidade de múltiplas complicações, dentre elas, a de COVID-19. Entretanto, estas discussões
percorrem uma vida-artista (www.estudiorogo.com) com trabalhos artístico-performativos nesta mesma
linha de empreendimentos cênico-teóricos.
Por fim, em tais conjunturas as subjetividades se comprimem ou se esgarçam, sendo, nestes
ensaios, trabalhadas em sentidos ontológicos que fazem colidir as identidades com as diferenças,
subjetividades e massificação de rostos de modo a se ressaltar a dificuldade última de uma instalação
rostiva que se possa chamar de “eu”.
Neste trabalho foram expostos, em suma, quatro pontos que auxiliam no movimento dessa
problematização: o primeiro quanto à aproximação entre ontologia, artista e arte; o segundo referente ao
ser ou estar em estado pandêmico; o terceiro como vinculante do ser ao artista e sua obra como
autoproblematização na pandemia e, por fim; o quarto ponto indicando a crise do a si ser evidenciada
propriamente na produção artística dos referidos ensaios digiperformados.
Como as intempéries influenciam na autoidentidade ou de uma constitucriação dela, são questões
que movem, neste sentido, vida e dança, tendo em vista que, como afirma Brito (2017, p. 147): “o rostoé o
produtor de uma redundância, ele é a moldura, a tela, o quadro no qual os desenhos significantes são
postos que neutralizam comunicações violentas, rebeldes”, coadunando com o pensamento de Deleuze e
Guattari (1996, p. 32) de que o rosto, o identitário, “escava o buraco de que a subjetivação necessita para
atravessar”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DANÇAS DO AGORA
A INTERMIDIALIDADE E A ESTÉTICA
POLÍTICA NA VIDEODANÇA FENDAS NO
TEMPO OU FERIDAS RASURADAS
Samuel Leandro de Almeida
Alex Beigui
DO PROCESSO CRIATIVO
O processo criativo se inicia através do contato com alguns conceitos políticos, tais como,
micropolítica, ikupolítica, tanatopolítica e biopolítica. Sendo assim, em uma viagem para visitar o interior
onde nasci, me deparei com um cenário que dialoga com os autores estudados. A partir do encontro entre
paisagem conceitual e paisagem cartográfica ocorreu o processo criativo. A videodança em destaque
nesse estudo intitula-se Fendas no tempo ou feridas rasuradas.
A comunidade em que vivi parte da minha infância e adolescência se chama Sítio Riachão,
se localiza no município de Jucurutu, interior do estado do Rio Grande do Norte. A microrregião geográfica
onde a cidade se situa é chamada de Vale do Açu com um clima semiárido. Segundo o site Weather Spark
(2016), este tipo de clima na região é constituído pela escassez total ou parcial de chuva durante 8 meses
do ano, às vezes, se estendendo por muito mais tempo.
Diante disso, ao retornar à comunidade me deparei com a seca de um açude no entorno
do Sítio, reconstruído em 2019 pela prefeitura. O açude tem profundidade de mais ou menos 3 m, extensão
de mais ou menos 1000 m² quando em uso a sua capacidade máxima. Com o período de estiagem e sua
consequente seca, ele se tornou uma poça de mais ou menos 10 m² de extensão e menos de 1 m de
profundidade. Assim, a paisagem seca e morta ao redor do açude me tomou de sobressalto e, com o
contato com os estudos e pesquisas acerca das políticas de morte, observei a existência de um diálogo
entre a paisagem cartográfica, as políticas de morte e o processo de criação em questão. Refletindo sobre
quais ações poderiam ser tomadas pelo poder público para manter o açude com reserva de água por mais
tempo, deparei-me com a urgência de refletir de modo crítico a indiferença também como uma espécie de
morte.
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Assim, a Figura 1 nos mostra a paisagem craqueada da terra seca, a pouca água do açude, as
árvores e arbustos mortos ao redor dele. Estes elementos, pela sua configuração geográfica e espacial,
apontam para uma dramaturgia da videodança que reflete o deixar morrer da tanatopolítica, perpetuada
por uma política da indiferença. E para contrapor ao peso da morte composta pela paisagem seca e
infrutífera, escolheu-se preencher o espaço com a criação artística, intervenção de resistência cuja
potência priorizou a qualidade de movimento de impulso erótico (pulsão de vida), advindo da improvisação
em tempo real, com peso leve, fluência livre e espaço multifocal, qualidades de movimento apresentadas
por Fernandes (2006) nos impulsos de transformação labanianos. O impulso erótico se opõe diretamente e
frontalmente ao impulso de tânatos, o que não impede que um nasça do outro e que entre eles
possibilidades gerativas ocorram.
DA VIDEODANÇA E INTERMIDIALIDADE
Para dar prosseguimento, faz-se necessário explanar acerca da videodança enquanto um produto
intermidiático e a potencialização dos diálogos abordados neste estudo através desta configuração
estética. Ela é um produto midiático que se origina a partir das características que convergem das mídias
corpo e vídeo. Há algumas perspectivas possíveis para o entendimento da videodança enquanto um
produto intermidiático. Aqui abordamos duas delas, cujo entendimento atravessa a noção de videodança
para Spanghero (2003, p. 37), a partir da qual o termo “[...] engloba três tipos de prática: o registro em
131
DANÇAS DO AGORA
estúdio ou palco, a adaptação de uma coreografia preexistente para o audiovisual e as danças pensadas
diretamente para a tela”. Destas práticas, definidas pela autora, entendemos e aplicamos o conceito de
intermidialidade na terceira classificação por ela proposta:
Assim, a videodança apresenta características híbridas entre a dança e o vídeo, necessitando ser
criada com um diálogo entre as mídias, o que possibilita uma criação em dança potencializada pelo vídeo
através da edição, da captura de imagem e dos recursos existentes na ilha de edição. Construindo uma
relação intermidiática desde o pensamento estruturante da obra até sua apresentação enquanto produto
final. Como podemos observar na Figura 2 abaixo, o corpo e o vídeo se mesclam e se confundem,
possibilitando a exposição de dois espaços simultaneamente na mesma imagem. O corpo orgânico vivo e
a paisagem morta bifurcam-se, colocando-se em justaposição e tensionando as pulsões acima
destacadas: Eros e Tânatos.
Desse modo, é mister entender o conceito de Intermidialidade adotado nesse estudo. Trata-se de
um conceito desenvolvido em duas perspectivas, uma norte-americana e uma alemã. Na perspectiva
norte-americana o estudo do conceito é voltado para a prática de produtos originados entre linguagens
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artísticas, ou seja, o campo das interartes. Já na alemã, a perspectiva é voltada para o entendimento de
objetos conectados por relações midiáticas. Nesta última, muitos produtos e práticas são entendidos
como mídias, então, adotamos ela, pois, podemos pensar o corpo e o vídeo como mídias em um campo
mais estendido. Nesse sentido, também optamos por trabalhar com o conceito de Intermidialidade,
proposto por Rajewsky (2012). A autora conceitua os estudos intermidiáticos em duas perspectivas, uma
de sentido amplo e outra de sentido restrito.
A perspectiva de sentido amplo entende que a Intermidialidade acontece em qualquer fenômeno
que ocorra entre mídias, a partir do prefixo “inter” e a compreende como uma “categoria ou condição
fundamental” de acordo com Rajewsky (2012). No entanto, por esta categoria ser abrangente “[...] não nos
permite derivar uma única teoria que se poderia aplicar uniformemente a todo assunto heterogêneo [...]”
(RAJEWSKY, 2012, p. 18). Desse modo, pode-se observar a videodança, nesse contexto, como um fenômeno
que existe a partir da interação entre duas mídias, porém, por ser uma categoria ampla, compreender a
videodança através dela não possibilita caracterizar precisamente o fenômeno estético e intermidiático,
pois o fenômeno estético da videodança além de necessitar de mais recursos para a sua realização, ele
aumenta a complexidade da relação.
A segunda perspectiva, o sentido restrito, aborda a “[...] intermidialidade como uma categoria
crítica para a análise concreta de produtos ou configurações de mídias individuais e específicas [...]”
(RAJEWSKY, 2012, p. 19). A autora ainda classifica essa categoria em três subcategorias, a saber: a
transposição midiática, a combinação de mídias e as referências intermidiáticas.
Segundo Rajewsky (2012), a transposição midiática é a conversão de um objeto de mídia em outra
mídia, como por exemplo, adaptações cinematográficas. A combinação de mídias diz respeito aos
fenômenos multimídias, mixmídias e intermídias, sendo “[...] determinada pela constelação midiática que
constitui um determinado produto de mídia, isto é, o resultado ou o próprio processo de combinar, pelo
menos, duas mídias convencionalmente distintas [...]” (RAJEWSKY, 2012, p. 24). Por fim, as referências
intermidiáticas são definidas pelas menções de uma mídia em outra, uma cena teatral em um filme, por
exemplo.
Neste sentido, entendemos a videodança como uma combinação de mídias e, portanto, como uma
prática intermidiática. Devido à característica híbrida, a videodança combina a mídia corpo e a mídia vídeo
gerando um novo produto midiático e estético. Além disso, este produto é atravessado pelas
configurações de ambas as mídias e proporciona novos olhares para o corpo e para o vídeo. Logo, a criação
estética em videodança é composta pelo pensar do/o corpo em movimento junto com a imagem e suas
133
DANÇAS DO AGORA
possibilidades de modificação após a captura. Nesse sentido, torna-se oportuno lembrar a concepção de
paisagens sonoras de Gertrude Stein, cuja influência marcante encontra-se presente nos espetáculos de
Bob Wilson.
Para o entendimento da combinação de mídias, recorremos a três teorias para pensarmos
as singularidades de cada mídia. A teoria de classificação dos media de Pross (1971), trazida para o Brasil
por Baitello Junior (2001), a teoria corpomídia de Katz e Greiner (2005) e a teoria do sistema midiático de
Kittler (2019). Assim, podemos colocar as mídias em perspectivas distintas e entender o diálogo através
da combinação que acontece na videodança.
Segundo Baitello Junior (2001), Harry Pross categoriza as mídias em três divisões: a mídia
primária, a secundária e a terciária. A primária diz respeito ao corpo de onde toda comunicação se origina
e para onde retorna. A secundária ao tipo de suporte utilizado pelo emissor de uma informação, ou seja,
para se comunicar o emissor envia uma informação através de uma ferramenta específica na qual o
receptor não precisa de suporte para receber a informação. Exemplos desse tipo de mídia são a escrita, o
desenho, imagens. Por fim, a terciária abarca toda mídia existente a partir do desenvolvimento da
eletricidade, das quais para a informação ser recebida e emitida, tanto o receptor quanto o emissor,
precisam de ferramentas para o seu transporte.
O corpo como mídia primária cria, media, troca e recebe toda informação existente no mundo.
Como dito por Pross (1971 apud BAITELLO JUNIOR, 2001, p. 2) “toda comunicação humana começa na mídia
primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com
seu corpo; toda comunicação humana retornará a este ponto”. Desta forma, destaca-se a primeira mídia
presente na criação em videodança, o corpo, importante à dança e à comunicação como produtora e
receptora das informações do ambiente.
A segunda mídia da videodança, o vídeo, constitui-se como uma possibilidade da mídia terciária.
Essa enquadra toda tecnologia proveniente da eletricidade, além da necessidade da utilização de suportes
pelo emissor e pelo receptor para a realização da comunicação. Pode-se pensar na mídia terciária como o
cinema, a televisão, o telefone, o rádio, o vídeo etc., neste sentido, as mídias digitais, que atravessam
nosso tempo, caracterizam-se como mídia terciária por serem mediadas pela eletricidade.
Na verdade, a grande mídia terciária do nosso tempo é a eletricidade, o mediador de todas as
outras possibilidades de geração, transmissão e conservação de mensagens. Graças aos sistemas e redes
elétricos puderam ser desenvolvidos todos os grandes sistemas contemporâneos de comunicação
terciária. Estes sistemas se caracterizam pela relativização do espaço (até sua anulação), tornando
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Transmitindo através de uma plataforma mainstream de vídeos, o YouTube, uma videodança atravessada pelas questões
34
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Diante desse contexto, identificamos o corpo e o vídeo como duas mídias distintas que
dialogam e convergem constituindo a videodança pela perspectiva kittleriana. Por meio dessa
convergência são possibilitadas insurgências e rompimentos estéticos na criação artística, disseminados
em rede pelas plataformas de vídeo e redes sociais. Desse modo, como destacado acima, os
atravessamentos políticos de pequenas comunidades são levados para espaços mais amplos de
visibilidade, esgarçando as fronteiras geográficas.
Podemos perceber que as tecnologias atuais trazem em sua história os terríveis estigmas das
guerras. Ou seja, carregam consigo a morte de milhões de sujeitos e subjetividades. No entanto, neste
trabalho, propõe-se utilizar as mídias para expor e denunciar políticas de morte presentes no sertão
nordestino, especificamente, na região do sertão do Estado do Rio Grande do Norte. Assim, busca-se
evidenciar através da obra, em processo, as necropolíticas atuantes no município e na comunidade, onde
ela surge com mais força rivalizando com ação climática e seu impacto.
A morte se faz muito presente no dia a dia dos sujeitos do semiárido do sertão brasileiro, seja a
morte dos animais devido a fome, seja a da vegetação pela escassez de água, seja ainda pela violência
policial que atinge a população. Então, os sujeitos que constituem as comunidades criam modos de
insurgências para lidar com essa realidade que os atravessa.
Desse modo, dialogo com alguns pensadores para estabelecer linhas artísticas de fuga no
combate à política de morte que nos assombra. Portanto, proponho uma interseção entre a Ikupolítica de
Nascimento (2020) e a micropolítica de Rolnik (2020) para criar uma poética híbrida política em
contraposição a tanatopolítica discutida por Tiburi (2008, 2018).
A tanatopolítica é uma contraposição anterior à biopolítica de Michel Foucault. Ela consiste em um
regime de poder que faz morrer e deixa viver, “o regulamento oculto da morte dos outros” (informação
verbal)35. Ela é anterior à biopolítica e legisla sobre a vida nua, a vida não politizada, ou seja, aquela não
importante para a política. Então, o poder atua diretamente nesses corpos, nessas vidas, possibilitando,
35
Conceito apresentado por Márcia Tiburi na Palestra Tanatopolítica: regulamentos ocultos da morte dos outros, realizada no
Café Filosófico do Instituto CPFL em 2008.
137
DANÇAS DO AGORA
viabilizando ou facilitando sua morte, seja através da invisibilidade de suas questões ou de sua dizimação
enquanto corpo social.
Para Tiburi (2018) vale refletir na perspectiva de que a tanatopolítica ainda hoje não só atua nos
corpos, como também, é uma das linhas de atuação do fascismo presente no nosso cotidiano. Ela dissimula
suas armas em discursos nacionalistas ou em ações pseudoprotecionistas. Logo, o cálculo sobre a morte
ainda existe e atua de forma mais velada, deixando morrer os corpos despolitizados. A guerra bélica cede
espaço para uma guerra civil cujos campos opostos nunca lutam em pé de igualdade.
Mas o fascismo está também – mais velado – na condição miserável em que são deixadas
milhões de pessoas sob a fome. A velha tanatopolítica (a política dos grupos que decidem sobre
a morte do outro) – aquela que nas teorias de Foucault poderia ter sido superada – retorna à
cena e se mistura à moderna biopolítica como controle sobre a vida em um tempo em que o
nome “vida” nos obriga a pensar mais (TIBURI, 2018, p. 4).
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Para isso, temos que melhorar os métodos que nos permitam manter a alma viva. Temos que
fazer valer o amor capaz de enfrentar o ódio. Mas tem que ser amor mesmo, amor de verdade.
O amor não é um sentimento ou uma postura fácil. Ele dá trabalho. É evidente que o ódio é mais
fácil de sentir, não exige esforço, ao contrário, causa muito prazer. Talvez estejamos mais uma
vez na guerra entre “Eros” e “Tanatos” – o desejo de vida contra o desejo de morte. A negação,
a destruição são compensações fáceis. Além disso, a sensação de que se está vivo quando se
odeia é imensa. E é isso também o que temos que superar (TIBURI, 2018, p. 3).
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DANÇAS DO AGORA
Nesse caminho, Fendas do tempo ou feridas rasuradas propõe também um diálogo com
Nascimento (2020), quando o autor apresenta a noção de uma ikupolítica36 através do resgate das
experiências sensoriais frente ao ambiente e à comunidade. A partir de uma reconstrução da memória do
corpo que habita a comunidade, como também, a união da comunidade e uma celebração da vida.
Assim, apesar do corpo-água ser retirado da comunidade sem a preservação necessária, mas
compreendendo que a preservação deveria vir de agentes do poder, propomos a presença deste corpo na
rede, no sentido de que a virtualização dele potencializa sua existência e denuncia a falta de ação do poder
público. Uma ação na inação, um movimento estético político no estático da ordem.
Desse modo, como propõe Nascimento (2020), há uma transformação da necropolítica em
ikupolítica, ao deixarmos de ser o inimigo, o Eles para ser morto e nos tornamos o Nós, através das
revivências das memórias e das conexões eróticas estabelecidas com o ambiente e a comunidade.
Passamos de agentes passivos da morte a agentes ativos de levante amoroso contra a violência odiosa.
Em outras palavras, a travessia de inevitabilidade de Tânatos para a transformação de Eros. Para o autor:
Identificamos que o que movimenta a construção da obra é a força do desejo gerada pelas
insurgências micropolíticas da comunidade as quais não se deixam abater com as políticas de morte que
a rodeia, a aprisiona, a limita, a oprime. Neste sentido, há uma reverberação no corpo que impulsiona a
atividade criativa em uma dança afetada micropoliticamente pelo ambiente, um corpo vibrátil e um
corpomídia. Segundo Rolnik (2020, p. 3), a força do desejo é a “[...] força vital que move a existência
individual e coletiva”, assim, estar presente na comunidade, vivenciá-la novamente resgatando memórias,
promove uma pulsão vital que propicia a própria criação.
Além disso, a interação do corpo com o ambiente propicia complexidade e transformações em
ambos. Logo, dialogamos com Santana (2002, p. 22) “[c]omo sistemas abertos, o corpo – ou a dança –, a
tecnologia e o próprio mundo estão em constante troca, modificando-se e tendendo à complexidade”.
Então, o corpomídia e vibrátil se torna um modo de gerar complexidade, modificando mutuamente a si
36
Ikupolítica é um conceito proposto para se contrapor à Necropolítica. A morte pela necropolítica é violenta, ela assassina e
retira o corpo abruptamente. A morte pelo toque de Iku, a ikupolítica, é calma, amorosa, ela retira a ligação com o corpo e deixa
o espírito na memória da comunidade enquanto ancestral. A ikupolítica não rompe com a vida, ela a transforma.
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mesmo e ao ambiente. Um sistema aberto em constante diálogo com o ambiente desértico, vibrando e
constituindo sua subjetividade.
Destarte, percebemos a obra artística sendo desenvolvida através de uma micropolítica ativa na
qual a ação sobre os corpos da comunidade cria uma desestabilização dos afectos e perceptos que
impulsionam a criação artística através do desejo. Então, os gérmens que habitam o corpo são expressos
através do vínculo com a comunidade, como explana Rolnik (2020), sobre o processo de germinação pela
micropolítica ativa.
Com isso, o mundo larvário que nela habita terá gran-des chances de germinar: é na ação do
desejo que se plasmará a germi-nação. A ação desejante, neste caso, consistirá num processo
de criação que, orientado pelo poder de avaliação dos afectos (o saber-do-corpo), irá
materializá-los em imagem, palavra, gesto, obra de arte, modo de existência ou outra forma de
expressão qualquer. E se essa operação conseguir se realizar plenamente, ela dará uma
consistência existencial ao mundo de que tal germe é portador, ao dotá-lo de um corpo sensível.
Por não ser um representante da experiência que lhe deu origem, mas sim um transmissor de
sua pulsação, tal corpo terá um poder de conta-minação de seu entorno. É que sua presença
viva convoca ressonâncias nas subjetividades que o encontram, abrindo a possibilidade de que
elas também se sustentem na desestabilização, de maneira tal que um pro-cesso de criação
possa nelas se desencadear levado por seu próprio desejo. O mundo virtual que as habita se
atualizará, por sua vez, em outras tantas imagens, palavras, gestos, obra de arte, modos de
existên-cia ou outras formas de expressão quaisquer (ROLNIK, 2020, p. 14-15).
141
DANÇAS DO AGORA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAITELLO JUNIOR, Norval. O tempo lento e o espaço nulo: mídia primária, secundária e terciária. In: FAUSTO
NETO, Antônio et al. (Org.). Interação e sentidos no ciberespaço e na sociedade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. Disponível em: http://www.cisc.org.br/portal/index.php/pt/biblioteca/viewdownload/7-
baitello-junior-norval/10-o-tempo-lento-e-o-espaco-nulo-midia-primaria-secundaria-e-terciaria.html.
Acesso em: 22 fev. 2021
FENDAS no tempo ou feridas rasuradas. Videodança. Produção e Direção: Samuel Leandro. 2021. Publicado
pelo canal Samuel Leandro. Disponível em: https://youtu.be/yiyEP7r_KG8. Acesso em 24 fev. 2021.
KATZ, Helena; GREINER, Christine. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine. O corpo: pistas para
estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
KITTLER, Friedrich A. Gramofone, filme, typewriter. Tradução de Guilherme Gontijo Flores, Daniel
Martineschen. Belo Horizonte: Editora UFMG. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Da necropolítica à ikupolítica: para os terreiros, o problema não é morrer
pelo toque de iku, mas ser morto por elementos violentos que nos retirem da comunidade. Revista Cult.
2020. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/da-necropolitica-a-ikupolitica/. Acesso em 22
fev. 2021.
SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú Cultural, 2003. Disponível em:
https://www.academia.edu/463865/A_dan%C3%A7a_dos_enc%C3%A9falos_acesos. Acesso em: 21 fev.
2021.
TANATOPOLÍTICA: regulamentos ocultos da morte dos outros. Palestra de Márcia Tiburi em 03 de outubro
de 2008. Publicado pelo canal Instituto CPFL. Disponível em: https://vimeo.com/26935920. Acesso em: 24
fev. 2021.
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APRESENTAÇÃO 5
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DANÇAS DO AGORA
Em A falta que a festa faz ou por que a dança é essencial, Maria Acselrad (UFPE) propõe uma
reflexão a respeito dos impactos da pandemia de Covid-19 nas festividades, rituais, performances
coletivas de grupos de tradição popular.
Partindo do questionamento acerca do que pode ser considerado essencial em tempos de
pandemia, a autora sustenta o papel das danças para o convívio social e dinâmicas comunitárias ao colocar
em relevo sua implicação com ancestralidade, espiritualidade, valores éticos e princípios estéticos. Deste
modo, Maria Acselrad defende que as danças “amplificam a experiência do que é estar vivo, em comunhão”
(p.147).
Diante desta compreensão, como não dançar? Como viver em isolamento? Como dançar em meio
a tanta dor? Perguntas que vão se desdobrando ao longo do artigo, o qual aborda as experiências de
resguardo, mutirão e solidariedade das danças que resistem - inclusive apesar do Estado. Expondo um
complexo jogo de forças que se atualiza, mas não cessa, Maria Acselrad nos mostra que compreender a
sobrevivência das tradições pode ser uma chave importante para mover pesquisas sobre, com e através
das danças.
O artigo O corpo que samba: uma corporeidade etnográfica, de Fabiana Amaral e Thaynã Fabiano
do Rosário Vieira (UFRJ) é um convite para construção de uma historiografia a partir do corpo como
documento, cuja leitura pode revelar fatos e memórias capazes de produzir outras narrativas e
imaginários coletivos de populações com vivências periféricas e subjugadas.
Fabiana Amaral e Thaynã Fabiano se debruçam sobre o corpo que samba e apresentam uma
metodologia para leitura etnográfica a partir de 3 T’s: transportador, transgressor e transitividade. A eles
se soma o transe, que juntamente com os conceitos de festa e alacridade oferece uma nova perspectiva
para produção de conhecimento em dança.
“O corpo que samba é historiográfico, pois carrega histórias, documenta acontecimentos, relata
eventos, tornando-se, também, etnográfico” (p.164). Seus saberes-fazeres insurgem contra o
epistemicídio em uma afirmação sincopada da vida - ontem, amanhã e hoje.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Com a rotina ligada aos calendários festivos alterada, inúmeras danças populares e tradicionais
brasileiras, de norte a sul, do sudeste ao nordeste, passando pelo centro-oeste foram profundamente
impactadas pela realidade imposta pela pandemia da covid-19, que ao impedir o encontro das pessoas e a
ocupação das ruas, alterou rotinas ligadas à produção e sobrevivência material, movimentação da
economia local, integração comunitária, continuidade das tradições, evocação da ancestralidade, culto à
espiritualidade.
Sabemos que a preparação e a realização das festividades, dos rituais, das performances
coletivas de grupos de tradição popular renovam sentidos e significados, evocam símbolos, integram um
conjunto dinâmico de relações sociais, mobilizam valores éticos e princípios estéticos, amplificam a
experiência do que é estar vivo, em comunhão. Essas danças, por natureza, coletivas, relacionais,
interativas, adeptas do contato próximo, muitas vezes, vivenciadas através de manifestações culturais
de longa duração, são constitutivas de um tipo muito específico de convivência social. Dançadas ao longo
da vida, muitas delas, são responsáveis por marcar o tempo, por meio de cosmologias que articulam ciclos
de vida e morte, plantio e colheita, ruptura e reintegração, início, fim e recomeço. Num país como o Brasil,
cujo imaginário se apoia na realização dessas festas, a dança marca presença, como forma de oração,
como prece, como pressuposto. Hoje, muitas dessas danças encontram-se completamente marcadas pela
realidade pandêmica que vivemos.
De acordo com o Observatório Antropológico: festas na pandemia (2021) grandes e pequenas
festas com presença da dança foram suspensas, adiadas ou tornadas restritas. As festas de Nossa
Senhora do Rosário, com seus ternos de congado, marujos e catopês, em Minas Gerais, as Festas do Divino
em Pirinópolis, Goiás, o ciclo ritual do Bumba-meu-boi, no Maranhão, o Festival dos Bumbás de Parintins, no
37
Este artigo baseia-se em fala apresentada na mesa de abertura do 6º Congresso Científico da Associação Nacional de
Pesquisadores em Dança, ANDA 2021, intitulada “Como mover a Dança em tempos de Pandemia?”. Agradeço às contribuições de
Climério de Oliveira Santos, Rannier Venâncio, Alan Monteiro, Rayana Santana, Eleonora Gabriel, além de Eliel Fernando e Jeane
Ferreira para compilação de alguns dados e depoimentos publicados aqui.
147
DANÇAS DO AGORA
Amazonas, os bailes de Fandango no litoral do Paraná e Santa Catarina, os forrós, os cocos, as quadrilhas
juninas do São João, de Pernambuco e Paraíba. O samba de roda, do recôncavo Baiano, os reisados do Ceará,
os guerreiros de Alagoas. As escolas de samba, do Rio de Janeiro e São Paulo. Os blocos, afoxés, maracatus,
caboclinhos, dentre tantas e tantas outras manifestações de carnaval pelo Brasil à fora. Todas em pausa.
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
obrigações religiosas, uma vez que muitas dessas tradições envolvem uma relação com o sagrado,
também não puderam, deixar de ser realizadas, em alguma medida, sob pena de que as forças invisíveis
que movem tais danças se voltassem contra seus dançarinos e dançarinas. Mas tudo precisou ser feito de
modo adaptado, com número reduzido de pessoas, uso de máscara, distanciamento físico, prioridade para
rituais ao ar livre.
Muitos desses grupos também puderam contar com a memória corporal de uma vida inteira
dançada, juntos. Afinal, o corpo ainda é a nossa maior tecnologia. Se projeta para o futuro, assim como
para o passado. É próprio de muitas tradições populares alternar o tempo de dançar com o tempo de não
dançar. O movimento também é feito de quietude. Tais danças encontram-se ligadas a ciclos festivos.
Então, foi como se o tempo de não dançar tivesse sido ampliado, distendido.
A noção de resguardo foi aqui acionada. O resguardo é uma prática que envolve um conjunto de
precauções e cuidados, mobilizados a fim de que a energia envolvida antes de dançar determinadas
danças possa ser preservada, concentrada e direcionada de modo eficaz, evitando com isso o perigo de
doenças, acidentes e encontros indesejáveis.
Se não era possível fazer o São João, o Carnaval, a Festa de Reis agora, comecemos a pensar nas
festas do próximo ano, concentremos e direcionemos nossa energia para isso. "É um tempo para
amadurecer ideias", nas palavras de Eliel Fernando, do Caboclinho Tupinambá de Goiana. Esse discurso se
tornou recorrente entre alguns grupos. O que não se sabia é que ele teria que ser continuamente evocado.
Afinal, a perspectiva de uma solução para a pandemia não estava no horizonte. Como ainda não está, até
o momento da escrita deste artigo.
Foi quando se apresentou uma forma pouco conhecida de interação, para os grupos de cultura
popular: a dança pela tela. A explosão das lives e dos podcasts, a realização de debates, cursos, oficinas,
apresentações, demonstrações, a realização de eventos virtuais, de uma forma geral, que tomou conta da
internet também se apresentou como uma alternativa possível para difundir o trabalho de mestres e
mestras, fazendo-os chegar virtualmente, bem mais longe do que muitos deles já haviam chegado
presencialmente, possibilitando também a produção, a constituição e a renovação de um acervo
documental, uma memória digital sobre muitas dessas danças, agora disponíveis para um público mais
amplo.
149
DANÇAS DO AGORA
As redes passaram a ser as nossas ruas. Um espaço, ao menos, onde se podia falar sobre as
danças, ativar memórias e, às vezes, mover um pouco nossos corpos apartados, ao som da música possível
de ser feita ali no momento. Tais corpos, às vezes, um tanto desenquadrados e desencontrados, por conta
do delay, com sua imagem travada e fragmentada por conta das quedas de conexão, passaram a ocupar
esse lugar do encontro possível.
Se, por um lado, as danças se tornavam pequenas na tela, por outro lado é como costuma dizer a
grande maestra argentina de dança Cristina Turdo, "a tela é como o buraco de uma agulha por onde sempre
se pode passar alguma coisa".
Por este buraco da agulha passou, por exemplo, o mutirão, forma de agenciamento coletivo tão
próprio das culturas populares e tradicionais. O mutirão enquanto forma de organização solidária,
amparada pela ideia de ajuda mútua, foi ativado em nível local, estadual, nacional e global, renovando e
reforçando a importância dos laços familiares, de vizinhança, de amizade, de afeto e de identificação.
Através de vaquinhas, campanhas de arrecadação, distribuição de cestas básicas, projetos de
financiamento coletivo, muito tem sido feito para dar o suporte necessário a esses mestres e mestras da
cultura popular e tradicional.
A articulação entre artistas, professores, grupos de pesquisa, companhias de dança, coletivos,
associações em torno da criação de redes de apoio assegurou uma sobrevivência menos dramática para
muitos daqueles que não puderam contar com o apoio do Estado ou da iniciativa privada. Lembrando que
muitos desses artistas populares já sobreviviam, mesmo antes da pandemia, de forma extremamente
precária, graças a empregos informais, seja no comércio local, na indústria, nas plantações, em serviços
domésticos, na construção civil, ou ainda graças à aposentadoria e aos benefícios concedidos pelas
exíguas políticas assistenciais do governo federal, hoje em dia, praticamente, restritas ao auxílio
emergencial. A verdade é que o retrato da desigualdade se imprime nas nossas danças populares e
tradicionais com impressionante nitidez.
Cito aqui algumas iniciativas, fruto da mobilização da sociedade civil organizada, como o projeto
Sustenta a pisada, o projeto Alimenta o terreiro, o projeto Conversas com a cultura viva, o projeto Pergunte
ao mestre, o projeto Papo de guerreiros, o projeto A mulher na dança e na luta, os projetos do Coco de
150
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acauã e Folguedos paraibanos, o projeto Encontro com mestres populares, o projeto Rodas culturais
virtuais38, entre tantos outros.
Com a Lei Aldir Blanc novos e antigos desafios se apresentaram para os representantes dessas
tradições. De acordo com a Secretaria de Cultura, do Estado de Pernambuco, o recurso destinado a este
segmento premiou tanto as trajetórias e atividades artísticas e culturais de mestres e mestras, coletivos,
grupos e comunidades pernambucanas; bem como propostas de registros audiovisuais sobre mestres e
mestras, cujos proponentes fossem pernambucanos. De acordo com as informações disponibilizadas no
Portal Cultura PE40, o valor total de R$ 6.750 milhões, foi dividido entre esses dois eixos, contemplando
cerca de duzentos e cinquenta iniciativas, entre pessoas e grupos, das mais diferentes tradições, mas
também produtoras de vídeo e cinema com projetos audiovisuais sobre mestres e grupos das mais
diferentes tradições. A partir das informações disponibilizadas publicamente, no entanto, pode-se
perceber que do total assegurado, apenas R$ 3.120 milhões foram acessados, restando 3.630 milhões de
reais. Os motivos que justificam essa "sobra", podemos sintetizar aqui, a partir do tanto que pudemos
escutar.
Se já era difícil antes, agora com a pandemia, como se inserir no campo e na concorrência dos
editais públicos, como enfrentar a complexidade burocrática destas “políticas on-line”, como disputar
recursos junto a produtores experientes da indústria do vídeo e do cinema, como decifrar informações
pouco claras, em plataformas "intuitivas", como cumprir prazos tão exíguos para realização e
comprovação dos projetos, lembrando que este auxílio vem assegurar o direito à sobrevivência de
pessoas, especialmente, marcadas pelos impactos da pandemia. E que estes recursos estão bem longe de
serem suficientes. Tudo fica explícito nas palavras de Jeane Ferreira do Caboclinho Sete Flexas de Goiana:
"Com a pandemia a gente não tem direito a nada (...), só alguma mesquinharia que o governo oferece, que
38
Esses projetos, promovidos por associações, coletivos e grupos de pesquisa, ligados a agentes culturais, artistas, produtores,
pesquisadores e universidades públicas, foram localizados através de redes sociais, como instagram e whatsapp. Agradeço a
Rannier Venâncio, Alan Monteiro e Eleonora Gabriel pelo acesso a algumas dessas informações.
39
O título desta seção faz referência a um artigo meu intitulado “Dançar no mundo, dançar o mundo: a peleja das danças
populares e tradicionais contra o Estado” in: Graduações em Dança no Brasil: o que será, que será? (2016).
40
Essas informações foram encontradas no site http://www.cultura.pe.gov.br/, acessado no dia 1º de junho de 2021.
151
DANÇAS DO AGORA
eles acham que é muito, mas a gente sabe que pra manter um grupo (...) não tem como manter, a gente
vai lutando".
Artistas, pesquisadores e, também jovens ligados a essas tradições, caíram em campo,
novamente, para mediar e minimizar as dificuldades encontradas no caminho de acesso a esses recursos.
Por isso, nunca é demais lembrar de um tempo, não muito distante, em que o acesso e a democratização
aos recursos públicos, sem falar no reconhecimento e na valorização das culturas populares e tradicionais
se refletia em uma miríade de políticas públicas, comprometidas com uma lógica em que o protagonismo,
a possibilidade de inscrição direta, não apenas pela via escrita, mas também por meio da gravação de
áudios, evitava que muita gente ligada às danças populares e tradicionais ficasse à margem das políticas
de cultura, como já o são em relação a tantas outras políticas públicas41.
41
Me refiro aqui à experiência da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, criada em 2003, ligada ao falecido Ministério
da Cultura, cujo objetivo era o de desenvolver políticas públicas voltadas para a democratização do acesso aos recursos,
publicando editais, realizando consultas, promovendo seminários, articulando ações, que incluíram também a criação de
prêmios para as culturas populares, culturas indígenas, culturas quilombolas, entre tantos outros segmentos culturais.
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de exploração instaurado com a colonização das Américas, do fato de que a maioria das avós e bisavós
dessas danças se constituiu a partir de movimentos de resistência. Consideradas práticas heréticas e
pagãs essas danças ocuparam, durante muito tempo, o lugar daquilo que precisava ser combatido ou
cristianizado (MONTEIRO, 2011).
A compreensão do “mundo como combate”, já foi apontada por alguns autores, como uma
dimensão estrutural da estética popular. “O conflito, o confronto, a honra, o desafio, as relações
agonísticas fazem parte das histórias de vida desses dançarinos e dançarinas, cuja subjetividade é
constituída pelo embate com o adversário e com as adversidades” (LAGROU; GONÇALVES, 2013: 360).
É preciso, portanto, mais do que nunca reconhecer as forças que movem e continuam movendo
essas tradições. Refletir sobre sua capacidade de resistência, assumindo diferentes formatos, dinâmicas,
sentidos de ser implica em compreender a sua historicidade, seus deslocamentos e transformações.
Implica também escapar dos riscos de um arcaísmo, ou seja, de uma "visão de que certos fatos
contemporâneos chegaram até o presente como eram no passado" (CAVALCANTI, 2009, p. 110-111). Isso
significa que a continuidade também é feita de rupturas, de momentos de silêncio, quietude, paragem ou
de resguardo. Compreender como se perpetuam nossas tradições populares, cujas condições de
realização sempre foram tão adversas, e agora ainda mais, implica compreendê-las em meio a processos
de transformação social, que envolvem diferentes formas de resistência, num jogo de forças, em
constante tensionamento. Esse jogo não terminou. Até o momento nas redes, desde o último sábado nas
ruas42.
42
No dia 29 de maio, e novamente, nos dias 19 de junho e 3 de julho de 2021, a população brasileira, em meio à pandemia da
Covid-19 foi às ruas protestar contra o governo federal, reivindicando vacina para todos, auxílio emergencial e o impeachment
do presidente Jair Bolsonaro. Num momento em que o país atingia o trágico número de 500 mil mortos pelo coronavírus, a
palavra de ordem que se viu na maioria das capitais do país, assim como em diversas cidades de interior foi: “Quando um povo
vai às ruas em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”. Difícil saber quem é mais perigoso, mas
que têm trabalhado juntos, numa parceria nefasta, no Brasil, isso é inegável.
153
DANÇAS DO AGORA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACSELRAD. Maria. Dançar no mundo, dançar o mundo: a peleja das danças populares e tradicionais contra
o Estado. In: Organização: Instituto Festival de dança de Joinville e Thereza Rocha. Graduações em
dança no Brasil: o que será que será? Joinville: Nova Letra, p.117-126, 2016.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de. Tempo e narrativa nos folguedos do boi. In: (org.) CAVALCANTI, Maria
Laura Viveiros de Castro; SANTOS, José Reginaldo dos. As Festas e os Dias: ritos e sociabilidades
festivas. Rio de Janeiro: ContraCapa, p.93-104, 2009.
LAGROU, Elsje; GONÇALVES, Marco Antonio. “L’art populaire brésilien: un art de la relation”. In:
Perspective, la Revue de l´INHA, p. 355-363, 2013.
MONTEIRO, Marianna. Dança Popular: espetáculo e devoção. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
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43
Não temos o objetivo de excluir a particularidade nem pacificar as questões desses complexos culturais cariocas em prol de
nosso trabalho; mas cabe dizer que, apesar das diferenças, esses povos que agrupamos em um “balaio de gato” possuem
marcas comuns que os localizam em dado momento histórico e em um certo território. Formando eles, assim, um mosaico de
nichos que, de longe, formam um conjunto de populações relegadas, periféricas e subjugadas, mas que, de perto, são variadas
e diversas.
44
Entidade afro-carioca que aparece em outros estados do Brasil, mas aqui é personificado na figura do malandro boêmio,
caracterizado por seu sapato bicolor, terno alinhado, e chapéu panamá. Muitas vezes também pela cor vermelha e branca. Ver
mais em ALKIMIN, 1997.
45
Referenciado, aqui, pela própria entidade.
155
DANÇAS DO AGORA
pois nos possibilita enveredar por um rio que podemos personificar como sendo a História, facilitando o
processo de nossa análise. Já lançamos mão da perspectiva de que não iremos contar a História nem do
velejador ou a do rio, mas a da canoa, comungando, assim, com Benjamin (1981) e o Caboclo da Pedra Preta
(SIMAS, 2019), com a proposta de escovar a História a contrapelo ou, ainda, contar a História das pedrinhas
miudinhas, respectivamente. De forma explícita, nosso objetivo é discorrer sobre a história que quase
ninguém conta, do fato pequeno, que parece ter quase nenhuma importância, mas que, na verdade, pode
resguardar a chave de todo o macroprocesso. Aqui, não há espaço para efemérides, não de forma
canônica, mas sim para discorrer acerca de fatos e memórias que transbordam do corpo e estão ali
expostos a quem souber lê-los.
Outro ponto nesse processo diz sobre investigar gramáticas não-normativas para que produzam
ferramentas para ampliar a percepção desses corpos como documentos únicos. Propomos ler suas
movimentações como possibilidades de mimodramaturgias46, que remontam a uma construção que vai
além do pessoal, alcançando a coletividade. Estar atento a esses micromovimentos ou processos é algo
que demanda atenção e abertura. O discernimento do que é cotidiano ou exótico é um fino ajuste que pode
ser alcançado através de uma disponibilização total de si, concomitante à busca de informações dos
contextos – social, econômico, político, cultural etc. – daqueles corpos.
Por este prisma, estar atento para que não se conte um conto da história se faz necessário, pois
estamos, frequentemente, embebidos de uma “empatia com o vencedor” (BENJAMIN,1981), que nos faz
operar nessa lógica sem que possamos nos dar conta. (Re) construir, por exemplo, em nosso imaginário,
que o processo de abolição esteve envolto por violências excruciantes com marcas sentidas ainda hoje, e
continua sendo complexo e doloroso, pois ultrapassa o campo do livro de história e significa um empenho
em reler todos esses fatos, quadros, músicas, danças e palavras com outros olhares. Decorre, ainda, de
sermos analfabetos (SIMAS; RUFINO, 2019) para tais percepções. (Re) inventar – em nossa concepção de
“outsider” (ELIAS; L.SCOTSON, 2000) – o corpo do originário como resistente, em contraposição ao
preguiçoso, o homem preto enquanto sensível no lugar de reprodutor sexual, de um belo que fuja do padrão
eurocêntrico. Todos esses exemplos sugerem um convite para que se reestruturem as relações,
ultrapassando o campo da disciplina e alcançando outras compreensões alternativas para pessoas que
vivem numa sociedade que elenca símbolos dos vencedores como constitutivos únicos de sua identidade
46
“(...) Gestos de mãos, paradas, aceleradas, caídas bruscas, sugestivos requebrados dos quadris, constituem uma espécie de
significantes miméticos para um significado (já recalcado) que tanto pode ser a história de uma aproximação ou um contato
quanto qualquer outro fato em que o corpo seja dominante” (SODRÉ, 1998).
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e história. Sendo assim, esse não é um processo simples e confortável, porém necessário para se poder
enveredar por caminhos historiográficos mais saudáveis.
Considerando a perspectiva historiográfica a partir de Michel de Certeau (2008), nossa proposta
se alinha ao conceito de lugar social, sendo o lugar a partir do qual se cria um discurso. Esse lugar sofre
pressões a partir das quais os métodos historiográficos são construídos e permitem criar análises
particulares do lugar de onde o historiador parte. Certau (2008) frisa ainda a relevância do não-dito nesse
discurso, o que condiciona o desenvolvimento das argumentações. Por isso a necessidade de estar aberto
(a) a novos modos de construir uma historiografia, e essas novas construções podem também partir do
corpo, como propomos aqui. Corpos que se apresentam com corporeidades diversas e, no presente texto,
entende-se como corporeidade todo o constructo histórico, social, econômico, filosófico e demais
processos que constituem o ser como individuo uno e particular dentro de um mosaico de performances
culturais e cênicas. Portanto, tudo aquilo que lhe é, foi ou será encruzilhado marcam-no enquanto
performance identitária única.
Estar aberto (a) a rever modos de historiografar não diz apenas sobre a ação de ir até o espaço e
ao sujeito47 de estudo, mas de um despojamento de todo um arcabouço teórico e político, se deixando
afetar atentamente pelos eventos ali empreendidos, pelos sujeitos-corpos que falam e dizem mais do que
nós estamos instrumentalizados para perceber. É mergulhar no rio da História, sabendo do risco do
afogamento. E, então, a partir dessa relação dialógica, criar ferramentas que possam abarcar a
investigação. Nesse sentindo, é preciso estar atento aos fatos a sua volta, saber escolhê-los (GEERTZ, 2019)
– de acordo com os rastros deixados pelos corpos ou grupos estudados – possibilitando uma contação de
histórias mais verossímeis àquele modo de vida, elencando critérios acerca do corpo-canoa, que não
podem ser ditados como regra ou normas pelo observador.
A nossa proposição aqui de compreensão de corpo-canoa parte de pessoas autoras cujos corpos
são diversos em cor, raça, sexo, gênero, orientação sexual, mas que se cruzam a partir das vivências
47
Optamos, por uma questão de posicionamento político, pelo uso do termo sujeito, em lugar de objeto, pois o “(...) estudo da
ação social lida com as interações entre os indivíduos, vistos não como mônadas isoladas, mas como sujeitos ativos, atuando
em redes e grupos sociais, num processo contínuo de mudança e reinvenção social” (WHYTE, 2005). Ver mais em WHYTE, 2005.
157
DANÇAS DO AGORA
periféricas de uma cidade de muitas realidades, como o Rio de Janeiro48. São múltiplas condições
periféricas, como a distância do eixo cultural da capital (Centro – Zona Sul), problemas de trânsito e
violência, escassez de recursos, e o samba surge então não apenas como um ritmo e uma dança, mas
como uma realidade vivida, uma possibilidade de insurgência em uma realidade de muitas formas
opressora.
O corpo que samba é, inevitavelmente, a) Transgressor – corpo-ritmo, subverte uma lógica de
tempo posta, criando a partir das fendas nessa estrutura, tornando-se imprevisível; b) Transportador –
corpo-memória, constituindo-se como um território de tensão entre um passado ancestral e futuro
indeterminado; c) Transitivo – corpo-terreiro, onde se torna uma conexão aberta e sensível entre os planos
ultra-físico (Orun) e físico (Aiyê). Quando essas três características se amalgamam em uma só presença
temos uma atitude de ruptura da realidade normativa, através de uma fenda no espaço-tempo. Ou o que,
carinhosamente, chamamos aqui de Transe, estado afetivo que possui como capacidade um desligar desse
corpo, tornando-o um corpo entre, deixando-o em uma linha tênue entre estar fora de si e ter consciência
total do corpo.
Sodré (2006) diz que alegria seria “(...) uma maneira de extravasão afetiva, provocada pela
concordância de todos os sentidos... surge de uma temporalidade própria, diferente da cronológica, como
na celebração festiva, quando a alma ganha autonomia e força...”. Resguardadas as devidas proporções,
a ilustração delineia muito bem a repercussão que o Transe gera no corpo que samba, tornando-o um só
com o espaço que o habita e produzindo uma lógica de tempo própria que distorce a percepção, fazendo
com que alguns segundos pareçam horas e horas pareçam segundos.
Sendo assim, podemos dizer que o corpo que samba é alegre a partir de determinadas condições.
Isso é relevante, pois serve como aporte para entender como uma população que sofre tantas violências
– reais e simbólicas – continua sorrindo. Não nos referimos a uma alegria que pode ser entendida como
uma felicidade, mas a uma alegria de um povo que “diz sim à vida nos seus problemas mais árduos e
estranhos” (NIETZSCHE, 2002 apud SODRÉ, 2006), que aprendeu que o que passou, passou, e o que virá é um
mistério, portanto prende-se ao presente, vivendo o mundo da forma como é possível. O que, também, não
quer dizer que esse povo se tornou resignado às adversidades, mas que entende que “(...) uma vez perdido
48
Aqui abrangendo também a Baixada Fluminense. Essa compreensão se dá pois, em sua maioria, os municípios da Baixada
apresentam movimentos pendulares de fluxo diário de pessoas com a capital do estado, que se deslocam para trabalhar e/ou
estudar. Esses municípios anteriormente eram considerados cidades-dormitório, tendo em vista que se considerava não terem
condições econômicas e de emprego para manter parte de sua população fixa. Entretanto esse conceito de cidade-dormitório
tem sido questionado, por isso aqui focamos na conurbação da capital fluminense com os municípios da Baixada para refletir a
proximidade periférica dos corpos que vivenciam o samba.
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o controle do curso dos acontecimentos exteriores (...) é preciso se perder o ‘medo’ (...) para se ter
‘controle’ interno (...)” (SODRÉ, 2006). Ou seja, compreende que é preciso aceitar o real e criar regras
diversas para jogar, esse novo jogo que se desdobra, iniciando-se uma complexa rede de relações que se
atualizam desde a escravização de corpos negros na diáspora africana até a atualidade.
Em síntese, esse corpo, sobrevivendo a microviolências cotidianas, entende que a realidade está
posta e que é necessário atravessar por ela (com ou sem luta, mas assumindo que esta existe), se valendo
então da alegria – Alacridade (SODRÉ, 2002) – como ferramenta para driblar essas agruras, para rasgar a
realidade e criar um espaço próprio (por exemplo, escolas de samba). Onde ele é rei ou rainha, e seu corpo
tem voz, podendo dizer, sem ser silenciado. Daí a importância da festa, quer seja fabricada ou não, há uma
inversão da estrutura social que permite a esse corpo um sentimento de enlevo que lhe é negado
cotidianamente. Ali, ele ou ela são os donos da bola (DA MATTA, 1997).
É curioso pensar que um saber-fazer tão ordinário resguarda mecanismos secretos tão complexos
que, quando observados com atenção, nos parecem estranhos, interessantes e inusitados. Pensar que o
corpo que samba, além da sua movimentação, deve possuir uma inteligência que não lhe é pré-ensinada
diz sobre algo que ele apenas visualiza, e de algum modo apreende em nuances, operando seu uso nas
normas da tentativa e do erro. Se entendermos esses corpos que dançam como o complexo de saberes
que são, logo eles possuirão normas ou chaves de acesso que apenas serão passadas ou entendidas no
fazer desse saber. Ou seja, o corpo que samba só aprende a usar o aspecto ou característica correta à sua
dança a partir da lógica do risco. Esses aspectos ou faces são atitudes corporais aos quais os corpos que
dançam o samba recorrem para dar conta de seu fazer. Respeitando momentos e rituais corretos, esses
comportamentos dão potência à sua dança. São mudanças musculares que dão conta de presentificar o
corpo do passista no espaço.
Mais do que isso, essas características e aspectos remontam a marcas históricas e
particularidades que invertem a lógica criada sobre esses corpos por toda uma historiografia colonializada,
branca e ocidental. Portanto, o acionar desses gestuais, mais do que os movimentos cinesiológicos,
etnografam algo que já ocorreu e que aqueles corpos documentaram e hoje presentificam.
159
DANÇAS DO AGORA
Propomos, para dar um possível acesso a essa leitura etnográfica do corpo, uma metodologia
extraída pelo autor Thaynã Fabiano – após uma série de mergulhos e vivências no universo do samba e
sendo um corpo que samba –, que sugere categorizar, através de características cruzadas em aspectos
sociais, corporais e culturais, um possível modo de localizar particularidades da performance dos corpos
e compreender melhor seu campo de atuação e leitura sobre uma forma diferente de fazer etnografia: os
3 T’s do samba. Esse etnografar que propomos foi possível ser percebido – embora não contabilizado em
termos estatísticos, por ser uma metodologia em processo –, pois o corpo que samba é substancialmente
Transportador (1º T). É um corpo que carrega uma história e, por mais que não esteja explícita, ela está ali.
Mais do que isso, é uma estrutura física que trabalha, depende e existe, somente, do e no coletivo.
Portanto, pensar que, além de uma história individual, que é narrada no presente – que dá conta daquele
corpo em particular – há, também, uma história coletiva, que é rememorada no tempo presente, e nisso
se resguarda a chave para entender essa característica do samba. Compreender que o corpo que samba
é uma encruzilhada entre um passado ancestral49 e um futuro simbólico, que se negociam e tensionam
entre uma história já escrita e um futuro que ainda é um mistério. Ou seja, um evento criativo que permite
reinvenções e recriações de dinâmicas corporais constituídas a partir desse passado ancestral, dessa
história entranhada em suas peles, dedos, cabelos, lágrimas e sorrisos. Uma ancestralidade que fala
através de novos caminhos sem esquecer quem ou o que é, se atualizando através do ritual do corpo50.
Também Transportador, pois esse corpo age na função de salvaguarda de uma cultura muitas
vezes invisibilizada por um processo de apagamento simbólico que atinge o complexo patrimonial negro
(arte, filosofias51, epistemes, modo de viver o mundo e o trabalho etc.) a partir de intensas políticas
públicas, muitas vezes amparadas pela lei52. Portanto, a manutenção do quadril na dança do samba, por
exemplo, é crucial, pois mantém viva a história desse corpo ressignificando-o a partir daquilo que o
escravizava. Nesse caso, o mexer das panelas nas cozinhas que reverberava dos braços indo até o quadril,
tirando do espaço festivo uma possibilidade de vida para aquela realidade de morte. Agindo em uma bela
49
Que está vivo, simplesmente por sua existência ou ainda pela consciência, pois lembrar ou falar desse ancestral é mantê-lo
vivo, na memória e espiritualmente
50
Vale ressaltar que a consciência do fato e do ato de rememorar, falar ou lembrar não é pré-requisito; pois, a lógica afro-
brasileira não passa pelo local da crença, mas da existência como necessidade para a vivacidade desse ancestral. Portanto, ter
consciência ou não de um antepassado não o torna menos vivo, pois não somos nós que precisamos saber deles, e sim eles de
nós. Por este prisma, mesmo o ato inconsciente pode anunciar o rito de uma manutenção ancestral.
51
Termo usado como possibilidade de localizar esses saberes, conhecimentos e visões de mundo em nosso pensamento
ocidental.
52
Remoção de favelas, destruição da Praça XI, criminalização do jogo do bicho, a lei de vadiagem entre outras adversidades
ligadas ao cotidiano e formas de sociabilidades do pobre carioca.
160
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
estratégia, assim como Exu já o fizera, sendo “(...) aquele que fuma cachimbo e toca flauta” (SIMAS; RUFINO,
2019). Por isso, o samba. Por isso, há vida. Devido a sua característica de romper realidades, ele é
importante; seus sons e corporeidades não somem ou morrem, apenas se transformam. Isso porque a
dança do samba faz parte do paradigma africano Arkhé (SODRÉ, 2002), que através do rito mantém a
tradição, mas, também, se abre para novas ações (destino). Sua musicalidade (podendo ser entendida
como ritmo), cria “(..) uma configuração simbólica, conjugada à dança, constitui[ndo] ela própria um
contexto, uma espécie de ‘lugar’, ou cenário sinestésico e sinergético...” (SODRÉ, 2006). O que o corpo que
samba faz (a partir de uma estrutura passada através da tradição), senão reinventar um modo de vida
(através da dança) que diz sobre um presente ao mesmo tempo que é conversadora de um passado e
constituinte de um futuro?
Outra característica do corpo que samba é que ele é naturalmente Transgressor (2º T). A priori,
porque subverte uma lógica do corpo colonizado dentro de várias perspectivas, tais como ritmo,
corporeidade, movimento, contação de uma história. A dança do samba no pé ocorre, temporalmente, no
vazio (espaço entre um som e outro). O fenômeno dessa dança ocorre entre as duas batidas, dividindo-as,
cada uma, em 4 micro-tempos (semicolcheias). Samba-se no espaço do silêncio, entre um tempo e outro;
território que forma o terreno da modalidade. Infringindo, assim, a lógica de uma música e corpos
colonizados que respondem, basicamente, a estímulos sonoros marcados e previstos (no som há
movimento e no silêncio há pausa), mostrando que pode ser quebrado, de distintas formas, aquilo que foi
normatizado e normalizado.
Uma subcaracterística dessa transgressividade do samba é o inesperado. A resposta do passista
ao ritmo é livre, mas não apenas isso, é, também, imprevisível. Ligada a várias questões, mas,
principalmente, à individualidade e ao contexto de criação desses corpos que produz essa marca na
corporeidade dessa dança. A imprevisibilidade é algo culturalmente visto como uma das características
constituintes do povo carioca, consistindo em respostas inusitadas e criativas às adversidades. Essa
atuação acontece no plano do real e extrapola, contaminando o corpo que samba (num plano simbólico),
pois opera cotidianamente nesse espaço de negociação entre perdas e ganhos. É um corpo que se camufla
atrás de uma falsa anuência, pois entende a importância de saber barganhar num espaço urbano que
navega pela canonização de certos símbolos, imputados como importantes para nossa história. Esta que,
muitas vezes, diz sobre uma narrativa normativa, que produz apagamentos de outras narrativas, que julga
parte de uma cultura de menor valor e sem importância (CANCLINI, 2013). Personificando a corporeidade,
161
DANÇAS DO AGORA
consideramos aqui essa tendência de tornar o desencantado em encantado53, como feito por aqueles (as)
que lutaram em Canudos (ROSA, 2019) e no Paraguai, que encantam aquela tristeza e descrença no país e
criam a favela54 (CARVALHO, 1987).
A Transitividade (3ºT) é outra característica que surge através da pesquisa nesse corpo. Nessa
esfera se estrutura, uma conexão importante provocada que se torna território entre os planos da
fisicalidade (Aiyê) e da metafisicalidade (Orun). O corpo que samba entra em um estado de transe, onde se
torna terreno da tensão entre algo sagrado e algo profano, de uma negociação Exusíaca e Oxalufânica55
que dão vida a esse corpo, fazendo-o entrar em uma condição de profunda concentração e mergulho tão
fundo em si que deixa de ser um corpo e torna-se um acontecimento no espaço-tempo. Extrapola seu
corpo e preenche o espaço. Essa circunstância do corpo não tem a ver com uma inconsciência do passista,
mas sim com uma total consciência e vida dele. Passando a ser uma dança sensitiva, ao caminhar que é
lançado mão de cada sentido para aquele corpo produzir nexo naquele espaço.
Assim, esse corpo utiliza-se de seu axé para operar nos rompimentos lógicos de restrição e
terreirizar espaços. Produzido em um transe que o teletransporta a um universo particular que extrapola
seu corpo, tornando-se espaço e tempo. Ganhando importância, para além de um recipiente vazio para
alma. Portanto, o corpo que samba, que pode ser como uma metonímia desse fenômeno, quando pisa em
um local energizado (como a Sapucaí, por exemplo), características fisio e cinesiológicas do seu corpo são
acionadas em conjunto, fazendo-o tomar proporções ampliadas, tornando-se parte do ambiente. Seu
corpo parece assistir tudo de fora, no mesmo instante que sabe que está dentro, fazendo cair por terra o
modo raso que temos de entender o corpo e o mundo como algo dicotômico (NIETZSCHE, 2007). Fazendo-o
entender, então, que seu corpo pode mais do que dizem, e que o samba lhe basta para se alegrar e
esquecer de todos os processos diários de castração do corpo.
53
Simas e Rufino nos contam que essa característica estaria ligada a questão de terrerizar dado espaço, transformar algum
local em funcional para o público ali e se tornar um local possível de arrebatar os corpos permitindo que o axé rode (SIMAS e
RUFINO, 2019).
54
Morro da providência, considerada a primeira favela carioca.
55
Penso que uma das possibilidades decoloniar um pensamento é lançar mão de conceitos populares que estão ao nosso alcance
e pensar Exu e Oxalá, ao lugar de Dioniso e Apolo, traz uma relação mais profunda visto que ambos ainda são cultuados e vivos,
ao contrário dos deuses gregos (SIMAS e RUFINO, 2019).
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CONCLUSÃO
Após perpassar por essa série de informações, nos deparamos com a realidade inescusável de que
o corpo que samba está para além de ser somente um expositor coreográfico, alcançando potencial para
se abrir como um campo de leitura da memória e conservação da história de um povo. Convida-nos a novas
propostas historiográficas, tendo o complexo corpóreo como ponto de abertura. Com esse alargamento
de gramáticas não-normativas acerca da coreografia e performance do samba, podemos perceber o
quanto ele é documental e o quanto há para auscultar. Assim, consideramos entender que as esferas dos
3T, enquanto ferramentas metodológicas de acesso, não podem ser pensadas separadamente e, quando
compreendidas simultaneamente, podem contar muito sobre as Histórias subterrâneas e não canônicas.
O alinhamento desses três pontos ativa o que chamamos Transe, como abertura de mundos,
presentificação e afirmação de vidas, mas também como ferramenta e proposta de mergulho na História
do e a partir do corpo, instaurando, assim, o que chamaremos de Corporeidade Etnográfica do Samba. E é
a partir dessa instauração que poderemos observar a formação de aspectos, ou seja, formas como essa
corporeidade propõe e territorializa essa História: cotidiano, incorporado e performático.
O aspecto cotidiano diz sobre o caráter festivo desse corpo, rememorando as formas de se brincar
e negociar os espaços a partir de uma cidadania da festa. O incorporado reflete o campo da religiosidade
desse corpo dialogando e demonstrando fatos sobre suas transformações e processos de mesclagem e o
performático diz sobre a face combativa desse corpo na malandragem, capoeiragem, guerrilha, feitiçaria.
Cada um deles possui características importantes e necessárias para sua aplicação e entendimento, falam
sobre contextos e necessidades específicas. Tais aspectos não são o objetivo final desse artigo, carecendo
ainda de investidas e procedimentos de utilização mais maturados, apenas apontam para o quão rico
podem ser os desdobramentos e aprofundamentos a partir de metodologias que considerem a presença
do corpo como documentação fértil.
Devemos, também, nos ater ao fato de que a dança não opera somente no campo espetacular e
da teatralidade. A História é outra das diversas possibilidades de se pensar uma perspectiva que a dança,
entre outras, a do samba, pode abarcar. Ignorar o corpo que samba enquanto documento historiográfico
e etnográfico é a prática efetiva do epistemicídio. É enxergar esse corpo somente a partir de uma lógica
ocidental, que vai aos poucos minando, pacificando e invisibilizando suas questões. É perceber o quanto o
samba no pé vai sendo abandonado ao lugar subalterno e marginal a outros saberes. Todavia, o samba no
terreno das ideias – como no campo real – ludibria as regras ressignificando-as. Se reafirma a partir de
163
DANÇAS DO AGORA
novas amarrações e redizendo o já dito de forma diferente, fazendo voltar ao mandingueiro a mandinga
ali mandingada. Assim, o “saber-fazer” (SIMAS; RUFINO, 2019) do corpo que samba nos revela e desvela
intricados pontos numa trama – convenientemente colocada para que não percebamos, naqueles corpos,
uma forma de fazer historiografia.
O samba é uma importante fonte da expressão sociocultural dos interesses sociais. O corpo que
samba é um complexo sobreposto de processos históricos que o constituem enquanto corpo
presentificado. Sendo assim, ele é um terreno onde um passado ancestral e um futuro simbólico se
colocam. Nesse encontro produz-se uma circularidade energética a ponto de torná-lo corpo-presença. O
corpo que samba é historiográfico, pois carrega histórias, documenta acontecimentos, relata eventos,
tornando-se, também, etnográfico. Ele documenta, dando pistas de onde veio e para onde vai, de quem o
dança e de quem o renega. Por isso, podemos dizer que o corpo que samba é Exusíaco56 em uma das suas
formas mais extraordinárias e simples: a de mensageiro. Vem a ser a Voz do Morro (KETI, 1955) e dar
notícias daqueles que já se foram, mas estão presentes, vem a ser voz de resistência de um povo que
sempre sofreu, mas nunca desistiu.
56
“Adjetivo derivado das características do Orixá, chamado na nação de Ketu, de Exu. Uma de suas funções é de mensageiro
entre os orixás e entre Orun (plano ultra-físico) e Aiyê (plano metafísico)” (SIMAS e RUFINO, 2019).
164
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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167
DANÇAS DO AGORA
APRESENTAÇÃO 6
168
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
As mudanças provocadas pela pandemia da Covid-19 promoveram uma fuga em busca de novos
espaços que se tornaram um marco da dança no Brasil. No âmbito escolar-universitário essa busca foi uma
saída a fórceps dos alunos e professores das salas de aulas presenciais da universidade e que findou
transformando suas casas em um espaço escolar. Esse mesmo espaço, também foi para os artistas e
diretores de teatro um lugar de acolhimento para suas novas performances artísticas que
transformaram suas casas em cenários de espetáculos aberto ao público digital, em “lives” e
videoconferências.
Esse movimento de transformação dos ambientes físicos não foi apenas um detalhe
geográfico. Num Brasil tão desigual, como garantir acesso à internet? Com garantir aporte financeiro
para os artistas? Some isso ao fato de não termos clareza sobre como (ou se) encontraríamos nossos
locais de espetáculo e salas de aula para o retorno.
Uma dura realidade que se encaminhava no contexto artístico nacional e tencionou linhas de
fuga que se encontram por meio de dois textos dessa seção do livro. Um deles contempla a transcrição da
fala de trecho da Mesa Como mover a dança em tempos de pandemia, proferido pelo Diego Dantas, diretor
artístico do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro Dantas e mediada pela Dulce Aquino – UFBA durante o 6º
Congresso da ANDA ocorrido entre os dias 02 e 04 de junho de 2021. O outro texto é o artigo Dança do
agora: reverberações de uma dança em tempos de pandemia na Gaya Dança Contemporânea, de autoria
do Prof. Marcilio de Souza Vieira (UFRN).
O primeiro texto trata sobre a realidade do local de dança pelos profissionais da área que se viram
afugentados a lutarem pela permanência do local de trabalho, prestes a ser desapropriado ao mesmo
tempo em que precisaram lutar para a subsistência e permanência na vida – não apenas artística, mas
carnal.
No segundo texto, toda a realidade do aluno-professor nesse período de ensino remoto é
dissecada pelo autor que traz a visão do docente e os relatos dos alunos, explicitando a principais
dificuldades como também a potencialidade do ensino remoto.
169
DANÇAS DO AGORA
Agradeço pelo convite para participar deste momento tão especial, promovido pela ANDA, saúdo
as mais velhas e os mais velhos que estão presentes e que já falaram aqui, Dulce querida, Deputada Jandira
Feghali, Deputada Alice Portugal, Matias, e, também, aos mais novos que podem estar aqui comigo,
compartilhando tela, mas, também, aos que estão nos ouvindo pelas plataformas digitais, a partir de suas
casas ou de onde estiverem.
É muito importante estar com vocês, neste encontro promovido pela ANDA, com a possibilidade
de contribuir com alguns pensamentos e algumas experiências, a partir da perspectiva da direção artística
do Centro Coreográfico da cidade do Rio de Janeiro, neste momento em que estamos consolidando, olhando
para nossas práticas, para o nosso passado, olhando para trás e desejando avançar, já que temos a
iminência de tantas construções positivas para nossa dança, para as artes, especialmente com a Lei Aldir
Blanc, com a Lei da Dança, com os projetos de leis que estão por aí. Precisamos, todos nós, dar as mãos,
para fortalecer esses processos. Como Jandira e Alice muito bem pontuaram, nossa mobilização é
fundamental, porque tudo isso significa que podemos vir a ter melhor qualidade de vida, algo que está tão
difícil nos últimos tempos. Estamos lutando, mesmo, para construir bem-estar, porque o mal estar se
instalou de uma forma que não gostaríamos que houvesse se instalado tanto.
Trazendo a temática da mesa, que é como nós, artistas da dança, estamos sobrevivendo e criando
possibilidades de trabalho durante a pandemia, venho compartilhar com vocês as experiências do Centro
Coreográfico, especialmente porque, em 2019, dentro de todo esse contexto de processo, nós estivemos
na iminência de não ocuparmos mais o prédio que ocupamos hoje. Nós, aqui no Rio de Janeiro, numa
mobilização que, certamente, alcançou muitos pares no Brasil todo, recebemos a notícia da iminência da
troca de endereço do nosso espaço, um espaço que, hoje, já tem 4.000 m2, três salas de 45 m2 , apropriadas,
construídas para a dança, pé direito alto, Teatro Municipal Angel Vianna, que funciona dentro do Centro
Coreográfico, que foi adaptado e transformado na gestão da nossa querida Carmem Luz, quando foi sua
diretora artística, com a querida, então Secretária Municipal de Cultura, Jandira Feghali. Conecto-me à fala
de Jandira e, também, à homenagem feita a nossa querida Angel Vianna, dizendo que nós, do Centro
170
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Coreográfico, temos, também, a construção desse legado, de pensar a diversidade que a Angel nos traz, a
presença dos artistas e do público pessoa com deficiência nesse espaço, que é o Centro Coreográfico,
juntamente com os artistas das danças negras, da dança contemporânea, do balé clássico, de todas as
linguagens e vertentes da dança, num espaço cultural de convivência, trocando, construindo e
aprimorando seus projetos estéticos e dando sequência neste contexto pandêmico em que estamos.
Ressalto a grande importância da Lei Aldir Blanc, na sustentabilidade desses artistas. Nós, aqui no
Rio de Janeiro, como Centro Coreográfico, fizemos uma grande força tarefa, na ocasião da formação dos
cadastros municipais, para podermos dar visibilidade aos nossos quantitativos de fazedores, de artistas,
de profissionais da dança, trabalhadores da dança, como bem nos lembrou Matias. Juntamos nossa rede
de contatos (Centro Coreográfico, Escola de Dança da UFRJ, Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio de
Janeiro), uma rede de, aproximadamente, dez mil contatos. Sabendo que, muitas vezes, as lives não
alcançam a todos, disparamos toda a tramitação da Lei Aldir Blanc, usando mensagens por aplicativo de
WhatsApp e e-mail, para que as pessoas se cadastrassem e mostrassem o volume, o quantitativo da
dança, na cidade do Rio de Janeiro, nessa região em que Centro Coreográfico está inserido, para
construirmos e brigarmos, sim, pelo que o Matias comentou, por essa relação de respeito aos incisos da
Lei. Porque a Lei foi clara, tinha incisos 1, 2, 3, cada ente federativo teve suas responsabilidades, mas nós,
também, enquanto coletivo, enquanto trabalhadores, precisamos fazer o controle social e estar junto às
Secretarias e aos entes federativos, cobrando que os passos sejam dados. É claro que muitas outras
instâncias estiveram junto, como o Colegiado Estadual da Dança do Rio de Janeiro, e dialogamos muito com
pessoas do Brasil inteiro, promovendo e, num determinado momento, realizando uma série de
transmissões ao vivo de espetáculos maravilhosos de muitas companhias de dança da cidade, através das
redes sociais do Centro Coreográfico, tudo isso viabilizado pelos editais, pelas linhas de inscrição, pelos
incisos da Lei Aldir Blanc.
Mas, a pandemia continua. Estamos, agora, revendo. Enquanto diretor artístico do espaço, estou
imerso em grupos de estudos, para construirmos ações presenciais possíveis. Sei que a pandemia ainda
está aí, mas estamos num momento de estarmos junto com técnicos, de percebermos como as nossas
ações, mesmo que com gestos mais discretos, sutis, podem se construir e trazer à visibilidade a
importância desses espaços culturais, dos equipamentos culturais, como espaços que vão promover o
encontro entre as manifestações artísticas e o grande público. Esse encontro não pode ser presencial no
momento, mas temos outras possibilidades de aproximações que podem ser feitas e esses grupos de
estudo estão aí para isso, para irmos construindo essas relações, porque muitos empregos foram
171
DANÇAS DO AGORA
extirpados, neste contexto de pandemia. Não podemos nos esquecer dos nossos colegas técnicos de
teatro! Toda essa relação afetiva de trabalho precisa ser preservada, através das nossas inteligências,
dos nossos conhecimentos. Vamos construindo essa relação e fortalecendo os nossos espaços como
espaços de patrimônio.
O Centro Coreográfico é um espaço cultural mantido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, através da
sua Secretaria Municipal de Cultura. Foi inaugurado em 2004, sendo o primeiro da América Latina, com,
aproximadamente, 4.000 m2. Foi projetado para criação, produção, desenvolvimento, intercâmbio, estudo,
apresentação, documentação, memória e difusão da dança. Localiza-se no bairro da Tijuca, numa antiga
fábrica de cervejas, tombada pelo patrimônio histórico. Esse tombamento era temporário e não garantia
projetos ou a função do Centro Coreográfico. A partir da mobilização que tivemos aqui, dada a iminência
da nossa troca de endereço, os vereadores Cesar Maia, Tarcísio Motta e Célio Luparelli entraram com o
projeto de lei 1903/2020, que foi aprovado em segunda discussão, este ano, e, segundo consta, já é lei.
Então, o prédio em que funciona o Centro Coreográfico, hoje é tombado pelo patrimônio histórico da cidade
do Rio de Janeiro e a lei garante a função do Centro Coreográfico da cidade do Rio de Janeiro, como
equipamento cultural público, que contempla as especificidades da dança, na sua diversidade, ali,
garantidas, nesse espaço. Trago essa notícia com muita alegria, mas digo que o trabalho continua e me
conecto, novamente, à fala de Matias, para explicar que construímos esses marcos legais, mas que, sem
a nossa efetiva ação, eles podem ser apenas marcos e leis pontuais. O que vai garantir a nossa
continuidade e o entendimento do nosso caráter de trabalhadores intermitentes é a nossa ação efetiva.
Embora muitas pessoas não gostem dessa palavra “intermitente”, gosto de usá-la para nos conectarmos
com legislações que existem pelo mundo, já que nos reunimos nesses eventos e nossa visibilidade nos
espetáculos, nas grandes temporadas, acontece, mas, em grande parte do tempo, profissionais da dança
estão estudando, aprimorando seus corpos, seus pensamentos, assistindo espetáculos, construindo,
trabalhando na dimensão da educação, da formação e nem sempre esses processos são visíveis. Uma
grande parte desses processos é invisível, como, por exemplo, o meu trabalho de diretor artístico: eu
apareço aqui nas lives, nas conversas, estando junto em eventos ou quando meu nome aparece numa ficha
técnica. Mas, eu digo que, talvez, de 85 a 90% do meu trabalho é invisível, porque construir uma
programação, disparar seiscentos e-mails, diariamente, para que os parceiros fiquem atentos à Lei Aldir
Blanc, às questões do Centro Coreográfico, da dança, na cidade do Rio de Janeiro, gera muito trabalho, que,
em si, não traz a visibilidade da qual estamos falando, mas traz frutos, que, ali, na frente, colheremos. Esse
caráter é muito importante de ser preservado!
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Não quero me estender muito, porque sei que muitas pessoas estão aí para falar. Quero, mais uma
vez, agradecer a grande oportunidade de encontro e convido a todos a acessarem as redes sociais e o site
do Centro Coreográfico. Estamos, neste momento, repensando as nossas presenças: como estar presente
em todos os campos, no presencial e no virtual, mas repensando. E muitas coisas estão por vir. Muito
obrigado, gratidão a todos e excelente quarta-feira!
173
DANÇAS DO AGORA
DANÇA DO AGORA:
REVERBERAÇÕES DE UMA DANÇA
EM TEMPOS DE PANDEMIA
NA GAYA DANÇA CONTEMPORÂNEA
Marcilio de Souza Vieira
A pandemia causada pelo Covid-19 promoveu mudanças em todo o mundo, gerando modificações
na estrutura organizacional do ensino superior no que diz respeito ao ensino, a pesquisa e a extensão. A
extensão foi afetada certa maneira uma vez que muitos projetos não foram adiante e outros conseguiram
se inserir no formato remoto instituído pelas Instituições de Ensino Superior para que esses projetos de
relevância para a comunidade acadêmica e extra universidade não cessassem suas atividades e
continuassem a contribuir com a missão extensionista.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) não foi diferente e alguns projetos de
extensão iniciados no início de março de 2020 foram encerrados abruptamente e outros tiveram que se
adaptar à nova realidade instituída pela pandemia de contexto mundial. Com a Gaya Dança
Contemporânea, coordenada pelo autor desse texto, é um projeto de extensão permanente (UFRN, 2017)
do Departamento de Artes da UFRN não foi diferente. Coordenadores57 e alunos bolsistas58 tiveram que se
adaptar ao ensino remoto e continuar as atividades extensionistas sem prejuízo para o projeto.
A extensão universitária59 é um tipo de atividade que pode influenciar positivamente na formação
dos discentes, no aperfeiçoamento dos docentes e na sociedade de modo geral, levando à população um
57
O projeto Gaya Dança Contemporânea é coordenado pelos professores Marcilio Vieira e Larissa Marques, docentes do Curso
de Dança da UFRN.
58
O projeto foi contemplado em 2020 com 16 bolsas de extensão da Pró-Reitoria de Extensão da UFRN. Além dos integrantes
bolsistas com remuneração, a companhia atende a alunas/os bolsistas voluntários que são oriundos dos cursos de Dança e
Teatro e pessoas da comunidade.
59
Pode-se entender a Extensão Universitária como um processo que, pautado no princípio da indissociabilidade, e atuando de
maneira interdisciplinar, científica, educativa, cultura e política, promove interação transformadora entre a sociedade e a
universidade (FORPROEX, 2010). Ela está prevista na Constituição Federal de 1988 que prevê a indissociabilidade entre pesquisa,
ensino e extensão nas universidades (BRASIL, 1988) e, também, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que em seu
artigo 46, inciso VII, define, dentre as finalidades do ensino superior “promover a extensão, aberta à participação da população,
visando à difusão das conquistas e dos benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas
na instituição” (BRASIL, 1996).
174
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
60
Com essa resolução ministrei para o curso de Dança da UFRN o componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso I.
61
Essa resolução normatiza os semestres 2020.1, 2020.2, 2021.1 e 2021.2.
175
DANÇAS DO AGORA
Assegurada pelas resoluções citadas, a Gaya Dança Contemporânea, ao retomar suas atividades
foi aprendendo conjuntamente como era ter aula e ensaios de repertórios existentes nesse formato
remoto que se diferencia da Educação a Distância (EaD). Levamos em consideração naquele momento as
condições psicofísicas dos integrantes da companhia, assim como suas condições socioeconômicas para
a assistência das aulas-ensaios, uma vez que a maioria dos bolsistas são oriundos do interior do Estado do
RN e com a parada das atividades na UFRN tiveram que retornar a seus municípios de origem, visto que as
176
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
177
DANÇAS DO AGORA
Essa rede de criação com videodanças foram exitosas, pois nos tirou da comodidade das
apresentações em palco e nos levou a estudar sobre videodança e sobretudo como construir dança em
formato de vídeo. Assim, em 2020 criamos alguns trabalhos nesse formato que estão no canal do Youtube
da companhia e tivemos interesse em participar de alguns festivais nacionais e internacionais de
videodança.
Dentre as videodanças criadas e em circulação no Youtube estão Poemas Dançados62, Poemas
Dançados II63 e Poemas Dançados III64, além de Corpo Isolado65 e Para quando o verão chegar66, todas criadas
no período da pandemia. Também nesse período, em comemoração aos 30 anos da companhia foi lançado
o documentário Trinta67.
As videodanças tiveram a coreodireção dos diretores da companhia, edição de um integrante da
companhia e poemas de Clarisse Lispector (compostas por urgências e despedidas); voz off de Geisla
Blanco (Poemas Dançados e Para quando o verão chegar), Sebastião Salles (Poemas Dançados II), George
Holanda, Melissa Lopes, Geisla Blanco, Paulo Sérgio Filho (Poemas Dançados III) e música instrumental Chad
Crouch e Tiago Landeira.
REVERBERAÇÕES
Apesar dos alunos do projeto Gaya estarem assegurados por resolução, percebemos que alguns
deles estavam enfrentando problemas emocionais e financeiros em virtude da pandemia, o que fazia
muitas vezes solicitarem para não fazer a aula-ensaio em algum dia da semana em que o projeto ocorre
em virtude dos “bicos” que ocorriam no horário dos ensaios ou até mesmo por não estarem se sentindo
bem emocionalmente.
Percebido esses impedimentos de participação, uma vez que grande maioria deles recebem uma
bolsa remunerada PROEX e que, de acordo com as normativas dos projetos de extensão da UFRN, uma das
formas de recebimento dessa bolsa é por meio da participação nas atividades desenvolvida pelo projeto;
no final do semestre letivo de 2020.2, passados três semestres remotos, fizemos uma pesquisa via Google
62
https://www.youtube.com/watch?v=VZjYXfvnr-k&t=14s
63
https://www.youtube.com/watch?v=dkVNNyyBlEA&t=16s
64
https://www.youtube.com/watch?v=448TFJOM5QU
65
https://www.youtube.com/watch?v=rpbnquYE4Hk&t=27s
66
https://www.youtube.com/watch?v=v6Wi5QLAWe0&t=109s
67
https://www.youtube.com/watch?v=tyaSMS5ukuQ&t=196s
179
DANÇAS DO AGORA
Forms para saber como esses alunos estavam e para darmos conta, em relatório parcial, das atividades
desenvolvidas durante a pandemia.
No questionário perguntamos: como está sendo sua participação no projeto Gaya Dança
Contemporânea nesse período de pandemia? Quais os desafios encontrados durante esse período para
participar do projeto de extensão?
Alguns respondentes disseram que a aprendizagem no projeto de extensão estava sendo
produtiva, que era essencial para continuar exercitando o lado de artista/criador; uns responderam que o
ensino remoto está sendo surpreendente apresentando novidades a cada aula-ensaio.
Houve respostas como um período difícil devido as condições socioeconômicas, a manutenção de
internet para as aulas-ensaios do projeto e dos cursos de graduação, e também desafiadora, pois os
integrantes bolsistas voluntários disseram que quando necessitam fazer os “bicos” precisam faltar as
aulas-ensaios.
Percebemos que a maioria das respostas para a participação no projeto são exitosas, tiradas as
dificuldades de alguns. Outros respondentes disseram:
A Gaya tem tentado estabelecer uma relação mais próxima dos integrantes. As ferramentas
digitais têm possibilitado encontros e é a partir desses encontros que estamos nos
experimentando no universo da videodança. Apesar das dificuldades enfrentadas devido a
pandemia, a Gaya tem demonstrado resistência nesses períodos tão sombrios. Eu enquanto
integrante trans me sinto nesse ato de resistir e existir dentro do grupo. Tem sido imprescindível
estabelecer diálogos nos dias de hoje. (Geisla Blanco)
Minha participação no projeto Gaya Dança Contemporânea tem sido uma grande e rica
experiência de aprendizagem na dança. Durante a realização de aulas e projetos de cenas cada
atividade proporciona uma diferente reflexão. Nesse ano de 2021 pude oferecer ao grupo uma
oficina de expressão corporal, assim como, também participando de aulas propostas pelos
demais integrantes. Além de poder dar continuidade a processos de criação de espetáculos
iniciados em anos anteriores. (Luiz Eduardo Costa)
primeira autora dirá que nesse processo de mudanças geográficas para a aprendizagem em dança, as
relações corporais se modificaram, e dentro de um contexto de práticas de dança nas quais o corpo é
elemento fundamental para o conhecimento pessoal, coletivo e do mundo, “[...] foi necessário adentrar
outros caminhos para que as mediações em dança continuassem a ser provocadoras de experiências”
(STEIL, 2020, p. 101) e complementa dizendo que os estudantes de dança em formação “[...] forçadamente
tiveram que compreender o significado da arquitetura destas novas salas de aula que se estabeleciam,
em casa, sem que o afeto se perdesse” (STEIL, 2020, p. 101); já a segunda autora comenta que juntamente
com todas essas novas experiências digitais, estamos sendo praticamente forçados a acolher o mundo
corporativo neoliberal em nossos cotidianos privados. Para Marques (2020, p. 262) “[...] Nossas casas
viraram ‘homeoffices’ e os estudantes fazem ‘homeschooling’” e complementa dizendo que “[...] agora
temos dentro de casa novos horários, rotinas demarcadas, tarefas estipuladas, espaços guiados pelo
empreendedorismo; muitos lares cederam à produtividade, às metas, às competências, à otimização do
tempo, à superação dos obstáculos”. (MARQUES, 2020, p. 262)
Ainda sobre os desafios encontrados durante a pandemia para a participação nas aulas-ensaios,
outros respondentes afirmaram que:
Meu maior desafio durante as aulas remotas foi quando eu tive que dar aulas para o grupo
quando solicitado, pois, as vezes é difícil acompanhar se as pessoas estão fazendo o exercício
corretamente, já que não dá para corrigir da mesma forma que no presencial, fora isso, tudo
corre bem. (Hozana Matias)
Encontrar uma boa conexão, ou até mesmo ter condições para conseguir não só uma conexão
de internet de qualidade, como também equipamentos que viabilizem uma gravação de vídeo
com qualidade. Transformar a casa num ambiente de trabalho. Alto cuidado psicológico.
(Rodrigo Carlos)
A internet, a perda de familiares e amigos, ver todas as tragédias que estão acontecendo, e a
desmotivação que as vezes surgem. (Paulo Sérgio Gurgel)
Ainda seguiram outras respostas como internet ruim, movimento/barulho da rua para poder se
concentrar na aula-ensaio, celular para suportar a feitura das videodanças; ter disposição para se dedicar
as aulas-ensaios e manter a concentração para não desanimar da atividade sugerida e ter dinheiro para
poder suprir as necessidades de internet. Esses fatores interferiram, certa maneira, no processo de
ensino-aprendizagem e no fator psíquico desses estudantes.
Com relação a condição socioeconômica evidenciada nos comentários dos integrantes da Gaya
Dança Contemporânea, assim como a ajuda da UFRN com auxílio internet, pontuamos que esse é um desafio
181
DANÇAS DO AGORA
grave enfrentado pelo grupo de estudantes participantes do projeto. Maciel, Lima e Gimenez (2016)
apontam que o fator econômico ganhou espaço no debate estudantil, e que os suportes tecnológico e físico
não podem ser excluídos das políticas de permanência universitária. A situação financeira dos discentes e
a falta de auxílio estudantil ou bolsa de auxílio social, afeta diretamente o meio pelo qual estes têm acesso
à internet, pois esse serviço no Brasil ainda não é gratuito e de qualidade e o acesso ao mesmo exige uma
renda mínima destinada para isso.
Cunha, Silva e Silva (2020), salientam que a questão da desigualdade social presente no Brasil foi
mais exposta nessa pandemia. Em seu trabalho, os autores afirmam que o uso das TICs na educação, tem
um alto potencial, porém falta investimento e infraestrutura para sua implementação menos exclusiva.
Para eles, ainda que grande parte dos discentes possuam um aparelho smartphone de boa qualidade,
fatores externos, como o acesso à rede de celular e uma internet de boa qualidade, dificultam o acesso ao
ensino remoto.
Foi perguntada ainda como estava sendo o processo de criação em dança para o formato remoto.
Sobre esse questionamento os participantes informaram que os processos de criação precisaram ser
adaptados, e é justamente nessa busca por estabelecer uma conexão necessária da dança, que em
muitas das vezes surgem novas possibilidades de se desenvolver uma criação em dança. Mesmo longe,
estavam presentes por meio da tecnologia e conectados por meio do movimento. O corpo passava a
compreender melhor a realidade em que se encontravam para poder manifestar vontades e desejos
que antes não eram tão presentes. Outros responderam que é um mundo ainda novo, mas é um
universo que ganhará cada vez mais força dentro do grupo, no sentido que é um caminho
extremamente cheio de possibilidades e que pode continuar trazendo bons resultados.
Ainda questionamos qual aparato tecnológico era usado para a feitura das aulas e se a
universidade tinha dado algum incentivo financeiro para além da bolsa PROEX para o ensino-
aprendizagem nesse formato remoto. Sobre o aparato tecnológico, conforme representado no gráfico
abaixo, 12 respondentes disseram estar usando o celular para as aulas-ensaios da Gaya Dança
Contemporânea, assim como para as aulas dos cursos de graduação; 06 se utilizam de notebook e
apenas 01 pessoa usa computador ou tablet. Para o questionamento do incentivo por parte da UFRN, 10
pessoas disseram que as vezes tem essa ajuda, 07 que sim, obtiveram ajuda por parte da universidade
e 02 que não receberam ajuda alguma.
182
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Como pode ser observado no gráfico acima, apesar da maioria dos discentes terem acesso e
utilizarem o notebook e o smartphone como ferramenta de acesso à internet, um número considerável
utiliza somente o Smartphone. Essa realidade é apontada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
-PNAD- (BRASIL, 2018), que destaca, de 2016 a 2018, um crescimento de 3,1% do uso dessa ferramenta em
todo o Brasil. O uso do aparelho celular como principal ferramenta de acesso aos estudos deve ser
considerada com atenção ao se pensar nos métodos e aplicativos que serão necessários para ter acesso
as aulas e atividades, e no formato que estas atividades serão exigidas e executadas, pois sabemos que o
smartphone, apesar de ser um recurso mais acessível que o notebook, possui limitações operacionais de
uso com relação ao ensino (SILVA et al, 2020).
Ainda foi perguntado quais as dificuldades encontradas para a feitura das aulas-ensaios e 12
pessoas disseram ser o espaço da casa, 05 consideram a internet ruim, 01 o aparelho celular e 01 a falta de
interesse em fazer tais aulas-ensaios. Na seara das perguntas, quisemos saber, numa escala de 0 a 10, se
os integrantes participavam de todas as aulas-ensaios. Eis as respostas: 06 pessoas disseram participar
100% das aulas-ensaios, 08 respondentes informaram que participam 90% dos encontros remotos, 03
pessoas inquiridas confirmaram participar apenas 80%, 02 indivíduos disseram participar 60% e 01 outro
apenas 30% das aulas-ensaios ocorridas no mês. O gráfico abaixo ilustra o percentual das respostas:
183
DANÇAS DO AGORA
0 20 40 60 80 100 120
1 2 3 8 6
Ainda sobre a questão anterior, o espaço da casa apareceu como uma das dificuldades da
participação nas aulas-ensaios, uma vez que esse espaço, quando reduzido, tem que ser dividido com os
demais membros da família. Silva et. al (2020) vão dizer que a “falta de espaço favorável” para as aulas
está diretamente relacionada com a questão da dispersão da atenção e uma influencia diretamente a
outra. Essa dificuldade mais uma vez expõe as desigualdades sociais e estruturais que prejudicam a
promoção de uma igualdade maior no processo educacional, visto que a maioria dos discentes não dispõem
de um espaço saudável para estudar em seus domicílios.
Sobre a recepção desse formato de aulas-ensaios remotos, 02 respondentes, conforme gráfico
abaixo, disseram que têm sido excelentes, 15 que é um bom formato e 02 que as aulas-ensaios nesse
formato remoto são regulares.
184
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Ficou evidente também nas respostas dos integrantes da Gaya Dança Contemporânea que apesar
da importância e vantagens indiscutíveis do ensino presencial, o problema não é a utilização do ensino
remoto, e sim, a forma como este foi implementado, sem planejamento, capacitação e estruturação das
mínimas condições viáveis de suporte entre as principais partes envolvidas nessa modalidade de ensino,
os discentes e os professores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa rápida adaptação a uma nova realidade, reorganizando as atividades principalmente com o
uso das tecnologias digitais mostra-se muito importante num momento em que boa parte dos docentes e
discentes encontravam-se desestimulados. No projeto de extensão permanente Gaya Dança
Contemporânea as atividades adaptadas para o ensino remoto, buscou ressignificar as práticas
pedagógicas e os espaços de compartilhamento de saberes e práticas instituídos na companhia desde sua
criação.
No que diz respeito a extensão universitária na UFRN, onde a Gaya Dança Contemporânea está
alocada e, como consta no Plano de Desenvolvimento Institucional, a Política de Extensão da UFRN foi
pensada para “[...] reafirmar o seu compromisso social, mediante a ampliação e a qualificação das ações
185
DANÇAS DO AGORA
186
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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DANÇAS DO AGORA
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
LISTA DE AUTORIA
Alex Beigui Artista e pesquisador, possui Pós-doutorado em Dramaturgia pela
Université de Lausanne - Suíça (Bolsista/CAPES); Doutorado em Letras (Dramaturgia Comparada -
Literatura Brasileira) pela USP (Bolsista-FAPESP); Mestrado em Artes Cênicas pela UFBA (Bolsista-CAPES).
Atualmente atua como Professor Permanente (Coordenador) do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da UFOP - PPGAC e no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem da UFOP-
PPGEL. Líder do Grupo de Pesquisa no CNPq: DRAMATIC - Grupo de Pesquisa em Dramaturgia: Teorias,
Intermídias e Cena cultural. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9638277622683373 ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0955-948X
Hélia Borges Doutora IMS / UERJ; Pós- Doutora pelo Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia Clínica PUC-SP. Psicanalista. Membro do Grupo de pesquisa Sandor Ferenczi. É
professora da Faculdade Angel Vianna da Graduação e da Pós-Graduação. Trabalha, principalmente, com
189
DANÇAS DO AGORA
seguintes temas: psicanálise, filosofia da estética: arte - em especial a dança, o movimento e processos
de subjetivação. Livros publicados: Movimento, o Corpo e a Clínica (2016); A Clínica Contemporânea e o
abismo do Sentido (2019); Sopros da pele, murmúrio do mundo (2019). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8537262505464557 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0252-5284
Lela Queiroz PHd, Profª Drª PPGDC UFBA/UNEB/ IFBA/ UFFS/ SENAI SEMANTEC/ LCCC e
Dança UFBA, Lider GPDC-3 CNPq/Coord. Projetos. Educ. Somática e Pract. BMC® Intern.e Especialista IDME/
Md.e Drª em PPGCom. & Semiótica PUCSP. Pósdoc UFRGS/2008 e UNIFESP/2017. 3Livros, inúmeros cáp e
dezenas de artigos Qualis.Fluxonomista 4D, Educadora Gaia, Yoga Sivananda Int. Artista performer Prêmios,
Ações Performances e Intervenções públicas. Associada ANDA, BMCA e ISMETA. lela@ufba.br Lattes:
https://lattes.cnpq.br/5096613307854478 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9656-6436
190
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
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DANÇAS DO AGORA
ÍNDICE REMISSIVO
ações éticas, 11, 17 extensão universitária, 174, 175, 185, 187
ANDA, 3, 4, 5, 7, 13, 14, 18, 50, 51, 147, 169, 170, 187, festa, 146, 159, 163
188, 190, 191 história, 39, 40, 41, 44, 95, 97, 100, 102, 104, 136, 137,
artes, 13, 35, 40, 42, 43, 45, 46, 63, 116, 143, 170, 187 155, 156, 160, 161, 163, 165, 166
ARTISTA, 50, 117 historiografia, 146, 157, 159, 164
bifurcação, 33 imaginário, 105, 147, 156
biopolítica, 103, 130, 135, 137, 138 intermidialidade, 94, 132, 133, 139, 142, 143
Centro Coreográfico, 169, 170, 171, 172, 173, 189 jogo, 44, 74, 79, 146, 153, 155, 159, 160
cognição, 39, 41, 68, 74, 88 Lei Aldir Blanc, 151, 170, 171, 172
comunidade, 83, 84, 94, 98, 130, 137, 138, 139, 140, 141, LUGAR DE FALA, 55
143, 165, 174, 175, 186 luto, 14, 94, 95, 96, 98, 99, 100, 101, 102, 105, 106, 108
corpo, 11, 13, 14, 15, 17, 33, 35, 41, 44, 45, 50, 51, 52, manifestações artísticas, 86, 171
55, 56, 57, 61, 62, 63, 65, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, memória, 14, 77, 95, 109, 139, 140, 149, 158, 160, 163,
75, 76, 77, 78, 79, 82, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 94, 172
95, 96, 97, 98, 100, 101, 103, 104, 105, 106, 108, 109, metodologia, 51, 61, 94, 142, 146, 160
110, 111, 114, 115, 116, 128, 129,131, 132, 133, 134, 135, morte, 2, 4, 11, 14, 33, 34, 35, 36, 38, 68, 72, 80, 95, 96,
136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 146, 148, 149, 103, 110, 116, 130, 131, 137, 138, 139, 140, 141, 143, 147,
155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 148, 160
175, 181, 182, 187, 188, 191 música, 6, 58, 67, 107, 150, 161, 179
corporeidade, 83, 146, 157, 161, 163 necropolítica, 72, 103, 140, 143
COVID 19, 38 pandemia, 11, 13, 33, 50, 55, 56, 57, 60, 61, 65, 68, 69,
crise, 11, 13, 40, 60, 65, 67, 94, 96, 102, 103, 105, 108, 71, 75, 78, 94, 96, 97, 102, 104, 105, 108, 113, 116, 128,
112, 113, 115, 117, 125, 128 146, 147, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 169, 170, 171,
dança, 6, 11, 14, 15, 33, 34, 35, 36, 37, 43, 44, 45, 46, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 186, 187,
51, 52, 53, 54, 57, 58, 60, 61, 63, 65, 69, 73, 75, 77, 188
79, 87, 88, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 105, 106, pandêmico, 45, 82, 94, 96, 99, 112, 115, 116, 117, 128,
107, 108, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 128, 132, 171, 178
134, 135, 140, 143, 146, 147, 148, 149, 150, 152, 154, percepção, 41, 53, 76, 77, 79, 139, 156, 158, 188
155, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 169, 170, 171, performance, 25, 54, 67, 78, 94, 115, 116, 117, 128, 157,
172, 175, 176, 177, 179, 180, 181, 182, 187, 188, 189, 160, 163
190, 191 periferia, 69, 70, 102
danças populares, 147, 148, 150, 151, 152, 154 políticas públicas, 152, 160
diferenças, 33, 39, 60, 79, 128, 155 presencial, 20, 171, 173, 181, 185
digiperformance, 117 profissão, 34, 35, 43, 44, 45
discursos, 11, 17, 25, 26, 28, 33, 83, 113, 138 rede, 112, 135, 137, 140, 142, 159, 171, 178, 179, 182, 189
Educação, 7, 33, 50, 51, 52, 55, 57, 61, 63, 105, 129, representação, 36, 95
174, 176, 187, 190 resistência, 14, 17, 33, 44, 45, 84, 91, 109, 117, 131, 153,
educação somática, 51, 52, 53, 54, 55, 57 164, 168, 180
encruzilhada, 33, 160 ritual, 100, 147, 160, 167
Ensino Superior, 174 samba, 146, 148, 155, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164,
equipamentos culturais, 171 165, 166
espaços culturais, 171 Saúde, 33, 50, 51, 55, 57, 58, 60, 69, 175
Estado, 17, 19, 20, 23, 25, 28, 29, 58, 82, 84, 94, 103, seleção cultural, 34, 35, 38, 39, 40, 44, 45, 46
137, 146, 150, 151, 152, 154, 176 sobrevivência, 11, 42, 85, 96, 97, 146, 147, 150, 151
etnografias, 152 tanatopolítica, 130, 131, 135, 137, 138
evolução, 38, 40, 41, 42, 43, 46, 136 trabalho artístico, 42, 107
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
tradição, 146, 147, 148, 161 videodanças, 177, 178, 179, 181, 186
vida, 2, 4, 11, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 22, 25, 26, 27, 28, 30, violência, 17, 33, 68, 82, 83, 85, 91, 97, 137, 140, 158
33, 34, 35, 36, 38, 39, 41, 42, 45, 47, 58, 59, 60, 62, virtual, 13, 15, 18, 20, 33, 115, 141, 173
65, 68, 70, 72, 74, 75, 78, 82, 84, 86, 87, 88, 90, 94, vírus, 38, 42, 44, 60, 69, 82, 96, 102, 104, 113, 116, 148,
95, 96, 97, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 112, 153
113, 115, 116, 117, 118, 128, 131, 137, 138, 139, 140, 146, vivência, 39, 98, 102, 113
147, 149, 153, 157, 158, 160, 162, 166, 168, 169, 170 vulnerabilidade, 17, 74, 96, 102
videodança, 94, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137,
139, 178, 179, 180
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