Livro Ciencia Da Palhacaria
Livro Ciencia Da Palhacaria
Livro Ciencia Da Palhacaria
Coordenação Editorial
Editor-Chefe: Alcindo Antônio Ferla
Editores Associados: Ricardo Burg Ceccim, Márcia Fernanda Mello Mendes, Júlio César Schweickardt, Sônia
Lemos, Fabiana Mânica Mar ns, Denise Bueno, Maria das Graças, Frederico Viana Machado, Márcio Mariath
Belloc, Karol Veiga Cabral, Daniela Dallegrave.
Conselho Editorial:
Adriane Pires Ba ston (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil).
Alcindo Antônio Ferla (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil).
Àngel Mar nez-Hernáez (Universitat Rovira i Virgili, Espanha).
Angelo Stefanini (Università di Bologna, Itália).
Ardigó Mar no (Università di Bologna, Itália).
Berta Paz Lorido (Universitat de les Illes Balears, Espanha).
Celia Beatriz Iriart (University of New Mexico, Estados Unidos da América).
Denise Bueno (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil).
Emerson Elias Merhy (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil).
Êrica Rosalba Mallmann Duarte (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil).
Francisca Valda Silva de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil).
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Izabella Barison Matos (Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil).
João Henrique Lara do Amaral (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil).
Júlio Cesar Schweickardt (Fundação Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil).
Laura Camargo Macruz Feuerwerker (Universidade de São Paulo, Brasil).
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Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira (Universidade Federal do Pará, Brasil).
Quelen Tanize Alves da Silva (Grupo Hospitalar Conceição, Brasil)
Ricardo Burg Ceccim (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil).
Rodrigo Tobias de Sousa Lima (Fundação Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil).
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Sueli Terezinha Goi Barrios (Associação Rede Unida, Brasil).
Túlio Ba sta Franco (Universidade Federal Fluminense, Brasil).
Vanderléia Laodete Pulga (Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil).
Vera Lucia Kodjaoglanian (Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde/LAIS/UFRN, Brasil).
Vera Maria da Rocha (Associação Rede Unida, Brasil).
Vincenza Pellegrini (Università di Parma, Itália)
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Diagramação
Editora Rede UNIDA
Arte da Capa
Márcio Mariath Belloc
Todos os direitos desta edição estão reservados para a Associação Brasileira Rede UNIDA
Rua São Manoel, nº 498, CEP 90620-110, Porto Alegre – RS. Fone: (051) 3391-1252
www.redeunida.org.br
FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
__________________________________________________________________________________________________
P153
Ciência da palhaçaria: estudos teóricos e práticas em saúde mental/ Organizadores: Janari da Silva Pedroso,
Carolina Ventura Silva e Fernando Mateus Viégas Brandão – 1. ed. -- Porto Alegre, RS: Editora Rede Unida, 2023.
189 p. (Série Saúde Mental Coletiva, v.8).
E-book: PDF.
Inclui bibliogra a.
ISBN 978-65-5462-064-2
DOI 10.18310/9786554620642
1. Avaliação de Processos e Resultados em Cuidados de Saúde. 2. Saúde Mental. 3. Métodos Terapêuticos
Complementares.
I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.
NLM WA 495
CDU 613.86
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Ficha catalográ ca elaborada por Alana Santos de Souza – Bibliotecária – CRB 10/2738
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SUMÁRIO
Apresentação …………………………………………………………………… 08
Prefácio
A arte no horizonte do cuidado: por uma poiética da vida
Márcio Mariath Belloc …………………………………………………………….11
Capítulo 01
A função terapêutica do palhaço
Fernando Mateus Viégas Brandão, Carolina Ventura Silva e
Janari da Silva Pedroso ………………………………………………………… 15
Capítulo 02
Palhaçaria, sorriso e neuroquímica cerebral
Anderson Manoel Herculano, Mateus Santos Silva, Emerson Pinheiro,
Luana Carvalho, Patrick Cardoso e Karen Oliveira ………………………….. 30
Capítulo 03
Possibilidades e intervenções em saúde mental:
uso de recursos visuais
Ana Carolina Barata Morbach e Janari da Silva Pedroso ……………………53
Capítulo 04
Contribuições teóricas e vivências sobre ser palhaço
em contato com pessoas em situação de rua
Carolina Ventura Silva e Fernando Mateus Viégas Brandão ……………….. 67
Capítulo 05
Uma proposta para classi car e pesquisar
o fenômeno do humor com base na etiologia
Amauri Gouveia Jr. ………………….…………………………………………… 82
Capítulo 06
O trickster e o palhaço: o irracional processo de individuação
Ana Carolina Barata Morbach …………………………………………………. 91
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Capítulo 07
Pessoas internadas em instituições de saúde podem brincar a sério
com os pro ssionais de saúde?
Inês Isabel Espada Banza e Cláudio Thebas ………………………………..106
Capítulo 08
Relato fotográ co de palhaçaria na ala pediátrica do Hospital
Universitário João de Barros Barreto em Belém/PA
Gilberto Guimarães Filho ……………………………………………………… 113
Capítulo 09
Palhaçoterapia e outras maneiras de sermos bobas/bobos:
sua função em espaços vitais
Priscila Romana Moraes de Melo e Joice Aglae Brondani ……………….. 126
Capítulo 10
A integração eu-corpo na dança do ventre: relato de uma formação
Ana Paula Chagas Monteiro Leite ……………………………………………. 140
Capítulo 11
Só tenho o que sou: a (des)construção subjetiva no tornar-se palhaça
Caroline Lira Ferreira ………………………………………………………….. 152
Capítulo 12
Depressão, ansiedade e estresse no ambiente universitário:
intervenção em arteterapia
Mirian Araújo ……………………………………………………………………. 163
Organizadores ………………………………………………………………….176
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singela homenagem a todas as pessoas que foram afetadas, em algum
nível, pela covid-19.
Agradecemos a paciência e colaboração dos demais autores: sem
vocês isso não seria possível. Obrigado.
PREFÁCIO
Haroldo de Campos
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renovaria, o ato criador com cada pessoa na posição de público. Daí seu
potencial de perenidade. A obra como este pseudo-sujeito, tal como de nida
por René Passeron (1989), que renasce, que recomeça a cada encontro na
relação estabelecida com seu público a cada fruição.
Como pensar então a arte quando ela se estabelece nas relações
produzidas nos processos de atenção em saúde? Repare-se que não
estamos falando dos usos da arte no campo da saúde. Por de nição, arte
não tem uso, não serve para algum m. Tentar usá-la como uma prescrição
terapêutica seria o m da arte. Sendo assim, quem estaria nas posições de
produtor, de obra e de público nesse contexto especí co? Qual a
possibilidade e qual o estatuto de um possível coe ciente artístico? E mais,
qual o sentido de se pensar como a arte se estabelece nas relações de
cuidado em saúde?
Mesmo nessas relações de cuidado, em qualquer nível de atenção,
primário, secundário ou terciário, em consonância com Emerson Merhy
(2002), as fronteiras da produção das ações em saúde tampouco são
plenamente delimitadas e estruturadas em um único ator. Não é somente o
pro ssional da saúde que ocupa o lugar dessa produção, o protagonismo do
usuário é também de nitivo no seu processo de saúde-adoecimento-atenção
(Menéndez, 2020). Colocar o usuário na condição passiva de quem apenas
recebe o ato de saúde é rei cá-lo e colonizar com os modelos explicativos
cientí cos a sua experiência de padecimento. Estabelece-se assim como
violência e, não raramente, iatrogenia.
Se tomamos Haroldo de Campos (1969) para auxiliar-nos nessa
re exão, poderíamos dizer, tal como sua arte no horizonte do provável, que
nossa linha de in exão e direção é o cuidado, é o nosso horizonte. Sendo
assim, o produtor da arte nesse contexto deveria ser tanto o pro ssional da
saúde quanto o usuário. Mas quem seria o público dessa obra? Quem
construiria esses recomeços? Uma resposta possível e talvez mais direta é a
de que o público seria o leitor das linhas desse volume que, em contato com
as experiências aqui narradas e discutidas, completaria a tríade da criação.
Estaríamos diante do coe ciente artístico e dos recomeços em cada fruição
dos textos. Inclusive na construção futura de outras ações artísticas no
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Referências:
Arendt, H. (1958). The Human Condition. Chicago: University of Chicago
Press.
Campos, H. (2004). Galáxias. São Paulo: Editora 34.
Campos, H. (1969). A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva.
Duchamp, M. (1957). O ato criador. In: Battcock, Gregory (1986) A nova arte.
São Paulo: Perspectiva.
Menéndez, E. L. (2020). Modelo médico hegemónico: tendencias posibles y
tendencias más o menos imaginarias. Salud Colectiva [online]. v. 16, e2615.
https://doi.org/10.18294/sc.2020.2615
Merhy, E. (2002). Saúde: a cartogra a do trabalho vivo em ato. 3ª Ed. São
Paulo: Hucitec.
Passeron, R. (1989). Philosophie de la création. Paris: Klincksieck
Não foi no meu primeiro encontro com a palhaçaria que percebi que
esta arte poderia ser aplicada como ferramenta de auxílio para o
autoconhecimento e para a resolução de con itos psíquicos. Na verdade,
quando me interessei em conhecer mais sobre palhaçaria, o z por
necessidade. Junto com alguns amigos, coordenávamos um projeto social
que atuava com a população em situação de rua e eu sentia que aquele
ambiente não carecia apenas do auxílio físico que estávamos levando. Pelo
contrário, talvez, o ambiente da rua seja mais hostil porque dele é furtada a
capacidade de viver para além da sobrevivência.
Então, vendo essa necessidade e me compreendendo como um
agente possível de mudar a realidade, resolvi embarcar na viagem épica que
é aprender a encontrar a grandiosidade de ser um derrotado. Pois é
exatamente isso que você leu, o palhaço é aquele que escolhe expor sua
fragilidade, sua incapacidade, seus defeitos, para fazer o público rir e, é
nesse riso dos outros, que o palhaço encontra também o seu. O palhaço é,
por si só, um ser coletivo.
Na primeira vez que coloquei o nariz vermelho na rua, o impacto foi
imediato. Os choros, lamentos e faces de sofrimento dos que eram
assistidos por nosso projeto se transformaram instantaneamente. Não
precisou que eu ou meus amigos zéssemos piadas ou usássemos da
comicidade física, que aprendemos nos cursos, para provocar esse sorriso.
Bastou a troca de olhares, o encontro, a identi cação do nariz vermelho
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como “permissão” para que fosse acessado um lugar onde, talvez há muito
tempo, aquelas pessoas não acessassem.
Mas essa permissão foi em mim também. Permissão de, mesmo
depois de adulto, brincar, correr, sentir o suor escorrendo sem me preocupar
em como minha roupa caria manchada. Foi a permissão de me divertir sem
a menor preocupação de como essa imagem seria lida pelos outros. A
permissão de não me preocupar em ser feito de bobo, pelo contrário, é disso
que o palhaço gosta e se permite ser, um grande bobo.
Lembro perfeitamente da primeira vez que apresentamos um
espetáculo na rua. Tínhamos um teatro móvel que transportávamos de carro
até o ponto onde o espetáculo aconteceria e, lá, o montávamos. Quando
chegamos ao local, o céu estava carregado. Montar as tendas foi um grande
desa o com a ventania que estava acontecendo. Entre lonas e peças de
ferro caindo em nossas cabeças, ouvia risadas da plateia que já se formava
aos arredores e, de alguma forma, já havia percebido o que minha
percepção engessada ainda não havia me permitido pensar: o espetáculo do
palhaço não começa quando as luzes se acendem e a música toca, começa
quando o palhaço pura e simplesmente existe. O palhaço é, por essência, o
maior espetáculo do mundo.
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O clown exige um embate direto com aquilo que se mantêm distante do
consciente e, uma vez que essas questões se con gurem, precisam de ser
exploradas pela sua potência e não pelo seu aniquilamento, sendo
expressas em linguagem cômica (Tsallis, 2009). E é sobre esse confronto e
suas implicações no funcionamento psíquico de quem o vive e como esse
processo pode ser terapêutico que falaremos daqui em diante.
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O Palhaço é Sujeito Atento:
Um dos principais princípios do mindfulness, técnica de meditação que
possui excelentes evidências, dentre outas coisas, no controle da ansiedade,
é manter a atenção plena ao momento presente e observar como o seu
corpo e o meio interagem no aqui e agora. Essa observação de si e do
entorno é de extrema importância para o palhaço, que está sempre pronto
para interagir e transformar em piada os estímulos que recebe.
Certa vez, em uma o cina de palhaço, ouvi a seguinte frase: “palhaço
bom é palhaço atento”. Lembro de um espetáculo que assisti o qual foi
montado no quintal de uma casa de artes e, bem no início da apresentação,
dois gatos caíram no meio da cena em uma briga cinematográ ca. No exato
momento, a palhaça em cena conseguiu reconstruir sua narrativa para
interagir com aquele evento totalmente inesperado e este foi um dos pontos
altos do espetáculo, mesmo que totalmente imprevisível. Caso ela não
estivesse atenta aos estímulos do meio, não perceberia esta que foi a deixa
para que ela executasse toda sua criatividade e capacidade de improviso.
Perceba que o ponto chave do cômico é a quebra de expectativas,
logo, estar pronto para interagir com o inesperado, com o imprevisível, é
fundamental para que juntos, palhaço e público, construam atmosfera de
leveza que encontramos em todo espetáculo ou visita de palhaços. Esta
atmosfera, no plano simbólico, quando aplicada em nosso dia a dia, nos
ajuda a perceber e interagir com as adversidades do meio também de forma
mais leve.
Essa percepção do como nos portamos no espaço, física e
psiquicamente, é uma estratégia muito importante para lidarmos com a
ansiedade. Uma mente dispersa é, por si própria, uma mente ansiosa, que
tem di culdade de focar e terminar tarefas, que nos desorganiza, nos
desestabiliza. Encontrar esse foco nem sempre é tarefa fácil. Por vezes, a
psicoterapia é su ciente, mas em outros momentos precisamos lançar mão
também de psicofármacos. Que tal agora buscarmos na atividade lúdica da
palhaçaria mais uma ferramenta no nosso arsenal para lidar com a
ansiedade?
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iniciado no segundo semestre do ano de 2018. Ao todo, ministramos quatro
o cinas, duas delas (no nal de 2018 e início de 2019) foram analisadas e
conduzidas com o intuito principal de produzir resultados para serem
analisados e apresentados na forma de artigo cientí co de meu TCCM. Já as
o cinas do segundo semestre de 2019 e início de 2020 foram fruto do
Prêmio de Arte e Cultura do Governo do Estado do Pará, por meio da
Secretaria Estadual de Arte e Cultura, do qual este livro também faz parte.
As o cinas não foram formuladas e conduzidas seguindo uma única
abordagem psicológica e sim sofreram in uência de diversas delas, porém, a
que mais in uenciou tanto estruturalmente quanto loso camente foi de fato
o psicodrama, formulado e desenvolvido pelo médico romeno Jacob Levy
Moreno.
Vale ressaltar também que, por se tratar de um estudo cientí co, toda a
formulação da o cina precisou seguir a metodologia cientí ca do ensaio
clínico, tendo um per l de participantes bem de nido previamente, bem como
tempo de aula, duração da o cina e objetivos rigorosamente delimitados. Ao
todo foram realizados 10 encontros, com frequência semanal e duração total
de 3 meses.
Diante disso, irei detalhar a partir de agora a estrutura básica da o cina
e como foi o desenrolar do processo. A o cina de iniciação à palhaçaria foi
dividida em duas fases:
Fase 1: Um reencontro com a infância
Na primeira fase foram realizados exercícios de apresentação, jogos
de aquecimento, relaxamento e interiorização, bem como jogos em que eram
trabalhadas a exploração de si e do ambiente por meio da sensibilidade e da
percepção. O foco, neste momento, era o desenvolvimento e descoberta de
potencialidades individuais. Apesar da maioria dos exercícios serem
realizados individualmente, pelo fato de toda a turma encontrar-se no mesmo
ambiente já era possível incentivar a interação e o estabelecimento de um
vínculo interpessoal, criando um sentimento de grupo, de modo que fosse
possível o compartilhamento mútuo de demandas, sofrimentos e traumas.
Esse desenvolvimento de um sentimento coletivo é fundamental para o
processo de formação do palhaço pois, como explanado no início do
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sentimentos da infância. Há diversos textos que servem de guia neste
exercício, porém o que foi utilizado nesta o cina foi me repassado pelo
amigo, ator e palhaço Ruber Sarmento.
Iniciamos o exercício com os participantes deitados no chão, em um
ambiente calmo, com baixa luminosidade e ao som de uma música
instrumental suave. Neste momento o foco na respiração ajuda os alunos a
se concentrarem no momento presente, limpando a mente das perturbações
externas.
Após alguns minutos neste processo, o condutor do exercício começa
a narração pedindo que as participantes se imaginem na rua onde moravam
quando crianças. Cada comando é sucedido por um momento de silêncio,
para deixar cada um posicionar-se na memória do local desejado.
A narração estimula que cada lembrança seja trazida com uma riqueza
de detalhes, como os sons que costumava ouvir naquela rua, o clima, a
imagem da frente de sua casa e até mesmo sua bicicleta (ou a bicicleta que
gostaria de ter tido) de infância. O texto segue com o participante pegando
essa bicicleta e iniciando um pequeno passeio por aquela rua.
A memória dos vizinhos, das frentes das casas, dos buracos na pista
vai surgindo quase que sem esforço. À medida que os cenários vão se
localizando, pedimos que o aluno comece a aumentar a velocidade com a
qual pedala sua bicicleta à medida que imagina seu coração batendo mais
forte, o vento soprando com mais intensidade e o guidão da bicicleta
começando a tremer em suas mãos.
O próximo passo é imaginar que, no m daquela rua, começa a
aparecer uma rampa gigante, posicionada bem na frente de um rio muito
grande. Como uma boa criança, o próximo passo é criar coragem, acelerar
ainda mais e se lançar com toda a força na rampa, pegando impulso para o
alto até poder tocar o céu e em seguida cair em um profundo mergulho
dentro do rio.
Após tocar a água, o mergulho vai se tornando cada vez mais fundo, a
luz ao redor cada vez mais escassa, até que só reste o escuro. O mergulho
segue sendo mais fundo, até que um pequeno ponto de luz chama a atenção
dos participantes. Pedimos que cada um siga na direção do ponto de luz, o
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Esse quadro deve guardar um momento que será fundamental para o
palhaço, chamado “estado de graça”. Estado esse com o qual iremos nos
reconectar todas as vezes que formos colocar o nariz, que iremos relembrar
e reviver trazendo a mesma felicidade e euforia vivenciada todas as vezes
que estivermos como palhaços. É por isso que temos neste um momento tão
potente e terapêutico. Todas as vezes que colocarmos o nariz daí para a
frente será o momento em que também nos reconectaremos com o momento
mais feliz das nossas vidas.
Após a escolha do quadro, a narração naliza com a saída do barco,
aos poucos, segurando seu presente, retornando ao escuro o fundo do rio e
se reconectando com seu corpo presente, deitado ao chão, agora muito mais
leve e em paz. Após a realização do exercício, é comum que façamos uma
roda onde cada um possa contar um pouco da sua experiência, compartilhar
suas emoções, lembranças e saudades.
Fase 2: O nascimento do “eu palhaço”
Na segunda etapa, os participantes iniciaram as técnicas próprias do
teatro que compõem a formação do palhaço como agente cênico, em um
contexto de desenvolvimento do “eu palhaço”, voltado à descoberta das suas
características da comicidade física e psíquica que iriam compor,
futuramente, a gura do palhaço. Em 6 aulas, os participantes puderam
realizar exercícios de improvisação, experimentação corporal, descoberta do
corpo cômico entre outros.
É nesta segunda etapa também que os participantes são apresentados
à história do palhaço em suas diversas versões, fazendo um passeio pelo
oriente antigo, idade média e a sua chegada nas Américas, bem como
conhecem também os representantes da comicidade na cultura Brasileira
com enfoque na gura indígena do Hotxuá da tripo Krahô. Todas essas
referências servem de inspiração e guia para que cada participante conheça
e desenvolva suas próprias características como palhaço.
É nesse momento da o cina também que os participantes realizam
exercícios de improvisação como maneira de aperfeiçoar e treinar a
espontaneidade, tanto para benefício próprio como para a interação com o
público durante uma apresentação. São realizados também exercícios que
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mais real. É necessário que quem esteja dirigindo este exercício tenha a
sensibilidade de saber a hora de parar e a melhor maneira de estimular o
participante a vivenciar o sentimento de maneira a não se tornar violento e
aversivo.
Parece simples, mas é um exercício extremamente difícil. Imagine você
acessar, sentir e manifestar o ápice do seu amor, raiva, medo e alegria,
precisando repetir a frase “panela velha é que faz comida boa” ou “mais vale
um passado na mão do que dois voando”. O foco desse exercício é que o
aluno consiga acessar seus mais profundos e fortes sentimentos, mesmo
utilizando de uma frase neutra.
Nesta segunda fase da o cina, por volta do 7º encontro, os
participantes começam a montar um espetáculo de palhaços, que seja
simples, mas que traga em seu roteiro as vivências e experiências de cada
um dos participantes. O objetivo é que, ao nal da o cina, cada um dos
participantes possa convidar algumas das pessoas mais queridas para
compartilhar esse momento tão importante que é a nalização de uma
o cina de iniciação ao palhaço.
Costumamos também realizar um lanche coletivo ao nal do
espetáculo, no último dia de encontro, de maneira a celebrar o nascimento
de palhaços e palhaças que, certamente, nunca mais serão os mesmos. É
comum que o vínculo criado em uma o cina seja extremamente potente
entre os participantes e, não raro, os laços interpessoais são fortes e
duradouros, sendo o palhaço também um meio de promover a sociabilidade.
Considerações Finais
Este capítulo teve o objetivo a contar um pouco de minha experiência
como médico e palhaço e incentivar a busca da arte como complemento
terapêutico para pessoas em sofrimento mental. Como pro ssional de saúde
e pesquisador, consigo visualizar e constatar, por meio do método cientí co,
os benefícios que as vivências do palhaço exercem sobre a vida de quem o
pratica.
Por m, gosto de pensar que a prática de atividades artísticas, não só
como ferramenta terapêutica, mas como modo de vida, vêm da necessidade
Referências
Bastos, R. (2018). O clown terapêutico. Juiz de Fora: Bertlebee.
Burnier, L. O. (2009). A arte de ator: da técnica à representação, elaboração,
codi cação e sistematização de ações físicas e vocais para o ator. São
Paulo: Editora Unicamp.
Lecoq, J. (2010). O Corpo Poético: uma pedagogia da criação teatral/
Jacques Lecoq. Tradução de Marcelo Gomes. São Paulo: Editora Senac São
Paulo.
Rodrigues J. F. P. S. R. (2015). “Rir-se comigo e rir-se de mim”: o arquétipo
do clown e as implicações do olhar do outro no autoconhecimento
[Dissertação de Doutorado em Psicologia]. Instituto Universitário de Ciências
Psicológicas, Sociais e da Vida – ISPA, Portugal.
Tsallis, A. C. (2009). Palhaços: uma possível re exão para a Gestalt-terapia.
Estudos e Pesquisas em Psicologia, 9(1), 139-151. https://doi.org/10.12957/
epp.2009.9140
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CAPÍTULO 2
PALHAÇARIA, SORRISO E
NEUROQUÍMICA CEREBRAL
Introdução
A comprovação da e ciência terapêutica da palhaçaria para a saúde
mental traz consigo uma importante questão sobre o efeito desta intervenção
artística nas respostas bioquímicas no cérebro dos pacientes. É importante
esclarecermos a priori que o sistema nervoso central (SNC) interpreta,
responde a sinais do ambiente e mantém as funções vitais do organismo,
utilizando uma rede de neurônios cuja comunicação é mediada por
compostos denominados neurotransmissores. Doenças neurodegenerativas
como Alzheimer, Parkinson, epilepsia e doenças psicocognitivas como
transtorno de ansiedade, síndrome do pânico e depressão têm, como base
de sua patogenicidade, mudanças nos níveis de neurotransmissores em
áreas especí cas do cérebro. Desta forma, fatores ou estímulos que alteram
concentrações de glutamato, ácido gama-aminobutírico (GABA), serotonina
e dopamina, os principais neurotransmissores cerebrais, podem promover
efeitos bené cos em pacientes que desenvolvem doenças
neuropsicocognitivas. Mas como a palhaçaria poderia afetar o SNC neste
nível molecular? Um importante elo desta causa-efeito está no mais evidente
efeito da palhaçaria, o sorriso. Os processos neuropsico siológicos
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missão consiste em uma célula pré-sináptica, responsável por liberar um
neurotransmissor e uma célula pós-sináptica, a qual expressa receptores
capazes de detectar os sinalizadores químicos liberados (Miller & Yeh, 2017).
Rodeando a sinapse, encontra-se a glia - a qual regula, dentre outros
processos, a duração da resposta ao neurotransmissor, por meio da
remoção dessas moléculas da região sináptica (Perea et al., 2009). Esse
processo de neurotransmissão é iniciado nas regiões especializadas por
estímulos visuais, sonoros ou somatossensoriais e, então, transmitidas para
o SNC, onde irão reverberar em sua neuroquímica (Hudspeth & Logothetis,
2000).
Fonte: Os autores
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mecanismos responsáveis por isso serem pobremente descritos (Acevedo-
Rodríguez et al., 2015; Hill & Spencer-Segal, 2021; Scheel et al., 2017;
Meijer et al., 2019).
Sistema Límbico
O cérebro é um órgão altamente organizado de modo que cada parte
de sua estrutura desempenhe um papel especí co nas diversas funções que
podemos realizar. Dito isso, nessa altura do texto, é conveniente o seguinte
Fonte: Os autores.
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As Emoções
Segundo o autor Antônio Damásio, as emoções podem ser de nidas
como processos biologicamente determinados, os quais dependem de
conexões cerebrais estabelecidas de forma inata e sedimentados por uma
longa história evolutiva, que oferece e garante uma função reguladora frente
às circunstâncias para garantir a sobrevivência (Carvalho, et al., 2021). As
emoções são frutos de uma complexa atividade química e neural que ocorre
no organismo a partir de uma experiência vivida, a qual está diretamente
relacionada a ativação do sistema límbico e a transmissão do sinal para
outras estruturas responsáveis pela autoconsciência e pelas expressões
comportamentais (Giotakos et al., 2020; Talami et al., 2020). Portanto, os
mecanismos das emoções são acionados de forma automática e são
acompanhados de alterações sistêmicas.
O certo é que além de sentirmos as emoções, podemos ainda as
transmitir a outras pessoas, isso acontece graças às manifestações
comportamentais das respostas emocionais. A expressão das emoções
possui um papel de grande importância na comunicação e interação social,
sendo esse um elemento da comunicação não verbal, essencial para as
relações sociais vigentes no cotidiano. Em grande parte, as manifestações
emocionais ocorrem através das expressões faciais, as quais re etem uma
alteração momentânea do estado emocional do indivíduo, visto que a partir
da nossa sionomia conseguimos transmitir o que estamos sentindo para
outra pessoa (Miguel, 2015; Arruda, 2015).
Segundo o naturalista Charles Darwin, algumas expressões faciais são
comuns e universais no homem e nos animais (Ekman, 2009). Mesmo na
infância, observamos a expressão facial como o primeiro meio de
comunicação existente, dando o indicativo de algo inato ao ser humano.
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Essa pode ser entendida como uma atividade neuromuscular que permite
transmitir mensagens. Tais mensagens ofertadas a partir de gestos faciais
possuem uma fonte densa de informação sobre o estado do indivíduo. As
expressões faciais resultam da contração coordenada dos músculos faciais,
também chamados de músculos da expressão. Esses músculos respondem
ao comando do sistema nervoso central através do VII par de nervos
cranianos, o nervo facial. Cada músculo pode ser inervado de diferentes
formas a gerar diferentes tipos de expressões faciais, como o sorriso (Ekman
et al, 1990; Ekman, 2009; Manjula et al., 2015).
No entanto, o que seria das emoções e das expressões faciais se não
fossemos capazes de percebê-los? O ato de perceber as emoções também
é um aspecto chave da emoção humana. A percepção emocional é uma
porta de entrada das informações a serem analisadas pelo indivíduo,
trazendo consigo o ato de reconhecer, sintetizar e dar signi cado às
sensações percebidas. Dessa forma, perceber a emoção do outro se torna
essencial para a regulação do nosso próprio estado emocional. Por outro
lado, somos capazes ainda de regular nossas próprias emoções por uma
série de processos biológicos, comportamentais e cognitivos que são
ativados a depender do contexto vivido (Ekman, 2009; De Gelder et al.,
2015; Arruda, 2015).
Dentre as diversas emoções sentidas, como o medo, a raiva, a tristeza,
entre outras, neste capítulo iremos dar enfoque a alegria, algo essencial para
nossas vidas. A alegria é de nida como uma emoção positiva que promove o
bem-estar e a satisfação, além de inibir pensamentos negativos. Essa
emoção costuma vir acompanhada por sentimentos de satisfação, prazer e
euforia. Na alegria, podemos observar a imagem clássica da expressão
facial do sorriso, o qual possui como traços o canto dos lábios puxados para
cima e para trás, elevação das bochechas, o semicerrar dos olhos, e o
levantamento das asas do nariz, com os dentes expostos ou não, além do
franzir da testa com a elevação das sobrancelhas (Manjula et al., 2015;
Mesquita, 2012).
No que se refere às emoções, muitos estudos apontam a amígdala
como a estrutura do sistema límbico intimamente envolvida no controle desta
O Sorriso
O sorriso é organizado a partir da ação de alguns músculos faciais,
como o músculo zigomático maior, o qual produz um movimento ascendente
da comissura labial; os músculos risórios, a qual produz a movimentação
lateral da comissura dos lábios; o músculo elevador comum da asa do nariz
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e do lábio superior, o qual é responsável pelos movimentos ascendentes da
asa do nariz e do lábio superior e o músculo orbicular dos olhos, o qual dá o
aspecto clássico de semicerrado ocular do sorriso (Manjula et al., 2015;
Mesquita, 2012).
O riso é uma expressão de grande importância para a comunicação
social, além de promover o bem-estar e melhorar o humor frente a situações
estressantes. O ato de sorrir é algo preservado na humanidade, algo
universal, presente em todas as culturas e grupos étnicos ao redor do mundo
e surge em resposta a sentimentos hedônicos, ou seja, associados ao prazer
(Savage et al., 2017). A correlação entre o riso e as demais alterações
siológicas do organismo parecem seguir duas vias independentes. Uma
delas seria a via involuntária, o “circuito” do aspecto emocional, no qual
envolveria a participação da amígdala, hipotálamo, subtálamo e o tronco
cerebral. O segundo seria uma via voluntária, com ativação de partes do lobo
frontal relacionado a motricidade, trato piramidal, seguindo para a parte
anterior do tronco cerebral. Em outras palavras, a primeira estaria
relacionada à consciência e a percepção do estado emocional, enquanto a
outra estaria envolvida com a resposta motora do riso. No entanto, ainda é
bem difícil estudar a correlação entre cérebro, o humor e o riso, pela
complexidade do assunto e di culdade em estabelecer conceitos bem
de nidos sobre esses temas (Gerbella et al., 2021; Freitas-Magalhães,
2009).
O sorriso é uma das formas de expressões das emoções de maior foco
de estudos nos últimos anos. Algumas doenças crônicas, como o câncer ou
o estresse crônico, parecem estar associados a sentimentos negativos,
como o desânimo e tristeza (Wang et al., 2020). Com isso, cabe nos
questionar, será que o riso e a alegria possuem algum benefício a essas
pessoas? (Van Der Wal & Kok, 2019). Esse questionamento vem sendo
objeto de estudo de muitos cientistas. O pesquisador William James (1958)
foi um dos primeiros a defender a premissa de que “A sionomia re ete os
pensamentos, porém os pensamentos também podem sofrer a in uência da
sionomia”. Segundo esse pensamento, ao executar o ato de sorrir,
podemos alterar nosso estado emocional e, consequentemente,
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indivíduo (Demir, 2020). As consequências do sorriso vêm sendo reportadas
em várias pesquisas que apontam para uma ação positiva sobre a dor,
doenças cardíacas e outras enfermidades (Noureldein, 2018; Morishima et
al., 2019).
Nesse contexto, a inserção e atuação de palhaços dentro de ambientes
hospitalares, além de ter como foco a integração e humanização do cuidado
em saúde, apresenta o papel de promoção do sorriso e do autocuidado aos
pacientes, possibilitando uma gama de benefícios (Lambert, 1999).
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exteriorização de um processo neuropsico siológico “orquestrado” no
Sistema Nervoso Central (Ekman et al., 1990)
Primeiramente, os procedimentos cirúrgicos e tratamentos
farmacológicos realizados nos hospitais podem aumentar de alguma forma a
ansiedade, estresse, medo, pânico e diversas perturbações emocionais e
siológicas que prejudicam diretamente a recuperação dos indivíduos
(Auerbach, 2017). Essas desordens recorrentes acometem especialmente a
crianças e adolescentes e suas consequências exigem intervenções
especí cas para ajudar esses pacientes a lidar com a permanência e os
desa os do ambiente hospitalar.
O psicólogo Alberto Dionigi destaca que a presença de palhaços em
hospitais representa uma forma particular de usar o humor para estimular o
bem-estar dos pacientes, principalmente crianças (Dionigi, 2018). Assim,
consideramos que o status de “felicidade” envolve fatores de natureza
siológica, bioquímica e comportamental. Esse conceito foi de nido por
Freud, quando descreveu o humor como ferramenta para enfrentar as
adversidades, fornecendo novas possibilidades ao sujeito em situações
normalmente negativas (Savage et al., 2017).
Dessa forma, a in uência positiva da palhaçoterapia aliada aos
procedimentos farmacológicos é, de fato, bené co para a saúde geral do
indivíduo? Desde Hipócrates, os médicos acreditavam que o bom humor
in uenciava positivamente o processo de cura, porém, eles não sabiam
quais eram os fatores que ajudaram os pacientes a reagirem diante de uma
enfermidade, dores crônicas e estados psíquicos patológicos (Lambert,
1999). Com o avanço da ciência, principalmente na área da neurociência, o
cérebro humano passou a ser mais bem compreendido e sistemas
neuroquímicos importantes, nos processos siológicos foram descobertos, e
seus mecanismos de ação foram descritos. Dessa forma, considerando os
conceitos básicos abordados no início deste capítulo, entendemos que a arte
da palhaçaria, utilizando do humor e estimulando o sorriso dos pacientes,
atua diretamente na modulação dos processos siológicos e bioquímicos
(Dionigi & Canestrari, 2016).
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humor é limitada. Alguns fatores são difíceis de controlar no ambiente
hospitalar como o isolamento dos pacientes de outros estímulos, di cultando
a análise do efeito da palhaçoterapia (Catapan et al., 2019). Apesar dessas
limitações na aplicação dos métodos, as evidências são claras quanto à
intervenção positiva da terapia do sorriso na recuperação dos pacientes.
Em geral, os palhaços oferecem uma forma complementar de
assistência à saúde, utilizando técnicas como música, malabarismo,
improvisação, “magia” e uso de fantoches (Esteves et al, 2014). Esse
entretenimento tem ajudado crianças e adolescentes a enfrentarem o
estresse emocional quando submetidos a procedimentos dolorosos.
Portanto, a “arte do sorriso” tem se mostrado como uma forma natural de
estimular regiões especí cas do cérebro capazes de garantir alterações
neuroquímicas necessárias para se chegar a um caminho promissor na
humanização do atendimento hospitalar e pode ser o melhor "remédio" para
recuperar a esperança dos pacientes.
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Introdução
As Metodologias visuais são um conjunto de métodos empregados na
pesquisa empírica qualitativa, cujo procedimento consiste em introduzir
recursos visuais e aplicá-los juntamente com os instrumentos tradicionais,
que utilizam o registro verbal. Os recursos podem ser fotogra as, vídeos,
pintura, desenho, colagens, entre muitas outras possibilidades (Glaw et al.,
2017). Essas metodologias foram inicialmente introduzidas nos estudos da
antropologia e ciências sociais, com o intuito de enriquecer a pesquisas de
campo (Glaw et al., 2017; Harper, 2002).
Desde o início, porém, a pesquisa etnográ ca deu especial lugar à
utilização da fotogra a. Dois eventos contribuíram para esse interesse: o
nascimento dessa tecnologia visual no início do século XIX e,
posteriormente, as primeiras experiências com a captura de imagens em
movimento, o que culminou na arte do cinema. A rápida popularização da
fotogra a não se deu somente devido aos seus aspectos lúdicos e artísticos,
mas também graças ao potencial documental e cientí co dos registros
fotográ cos (Campos, 2011). Na pesquisa etnográ ca de campo, as fotos
registravam elmente a vida de diversos povos e suas culturas, e as técnicas
empregadas davam protagonismo aos participantes, sem que os
pesquisadores precisassem se limitar aos relatos verbais, os quais poderiam
sofrer interferência do viés do pesquisador. Assim, a fotogra a tornou-se uma
fonte con ável de coleta de dados.
Apesar do pioneirismo histórico das metodologias visuais nas áreas de
estudo supracitadas, ao se examinar atentamente a história da psicologia
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ocidental, nota-se que também há uma estreita ligação entre os primeiros
usos da fotogra a e as primeiras pesquisas em âmbito psicológico. Estudos
realizados ainda no século XIX utilizavam-se da função de registro da
fotogra a para analisar relações entre a anatomia cerebral e a inteligência
(Neiva-Silva & Koller, 2002; Justo & Vasconcelos, 2009).
Contudo, até que a fotogra a passasse a ser empregada não somente
como um instrumento de registro, mas também como um recurso de
interação com a subjetividade do sujeito de pesquisa, foi necessário um
desenvolvimento da ciência psicológica no tocante ao entendimento do
mecanismo da percepção visual e seus efeitos na psique humana. Isso se
deu primeiramente em âmbito experimental. Foi o caso dos primeiros
estudos de psicofísica, realizados principalmente pelos pioneiros da ciência
psicológica, Gustav Fechner e Wilhelm Wundt, os quais investigaram os
fenômenos relacionados à experiência consciente imediata. Esses
experimentos enfocaram as percepções e sensações referentes aos
estímulos físicos, como a persistência das imagens na retina, percepção das
cores, profundidade e movimento (Goodwin, 2010; Shamdasani, 2006).
Outro psicólogo experimental de grande renome, William James,
considerava as ideias como imagens mentais, e postulava que a linguagem
humana foi desenvolvida a partir dessas primeiras imagens (Goodwin, 2010;
Shamdasani, 2006).
Os estudos experimentais, no entanto, consideravam as percepções e
sensações enquanto fenômenos conscientes. Outras correntes de
pensamento, que incluíam a psiquiatria dinâmica e psicologia profunda,
lançaram um novo olhar a esse estudo. Um dos expoentes desse contexto
foi o psiquiatra Carl Gustav Jung, que desenvolveu o estudo da percepção
consciente, mas também dos fenômenos que escapam ao limiar da
consciência, pois baseou seu pensamento na hipótese de um inconsciente
psíquico (Jung, 1986; Shamdasani, 2006).
Imagens Psíquicas
Para Jung, o estímulo exterior adentra a psique por meio de dois
processos distintos: a percepção e a apercepção (Jung, 1986, p. 288).
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uma espécie de pensamento primordial, caracterizado por formas
elementares de pensar e apreender o mundo (Jung, 1976; 1986). Nesse
sentido, não havia distinção entre sujeito e objeto, ou seja, entre “dentro e
fora”. Portanto, não eram registrados os eventos naturais em si, mas
imagens fantasiosas desses estímulos externos, que se formavam a partir da
condensação de várias percepções similares (Jung, 1960; 1986). Essas
representações puramente psíquicas da realidade foram denominadas de
imagens primordiais ou arquétipos, pelo fato de serem “o resultado do
funcionamento psíquico de toda a nossa ancestralidade” (Jung, 1986, p.
738), e passaram a constituir o substrato mais profundo da psique humana, o
inconsciente coletivo (Jung, 1986; 2013; Silveira, 1981). Devido à sua
natureza arcaica e profundamente inconsciente, os arquétipos jamais serão
apreendidos pela consciência, senão de forma indireta. Apesar de serem
conteúdos coletivos, eles se manifestam na vida individual por meio dos
produtos do inconsciente pessoal. Assim, imagens arquetípicas se fazem
presentes em sonhos e fantasias, mas também nos complexos e sintomas
neuróticos (Jung, 1986; 2015; Silveira, 1981).
O caráter arcaico e espontâneo das imagens que emergem do
inconsciente fez com que Jung atribuísse grande importância a esse
fenômeno em suas observações empíricas, realizadas por meio da prática
clínica. Ele a rmava que, para além das representações, é necessário que
as imagens que emergem sejam compreendidas intelectual e
emocionalmente, para que sejam integradas à consciência dos pacientes
(Jung, 2013). Apesar de a clínica junguiana não prever, a priori, que a
psicoterapia se utilize de uma técnica especí ca, Jung costumava solicitar, a
alguns de seus pacientes, que iniciassem algum tipo de atividade plástica,
como pintura e desenho. Isso porque ele considerava que a expressão
pictórica dá vazão às imagens arcaicas e, portanto, é capaz de diminuir a
pressão do inconsciente sobre a consciência (Jung, 2013), fazendo com que
as duas instâncias, consciência e inconsciente, possam funcionar em
equilíbrio.
Ademais, ao se trabalhar com imagens – sejam estas criadas pelo
indivíduo ou provenientes de sonhos ou de outras fontes, como a
A Fotogra a e a Memória
Outro aspecto importante é o papel que as imagens possuem perante
as memórias. Jung destacou o papel essencial da memória para a formação
do complexo do eu, pois são as recordações que dão ao sujeito a noção de
continuidade no tempo e no espaço. Da mesma forma, a memória é a
primeira função psíquica a ser ativada no contato entre a consciência e os
conteúdos inconscientes, e está estreitamente ligada às emoções e afetos
(Jung, 2015). Portanto, o contato com determinadas imagens pode evocar
vivências e emoções do passado, o que leva à integração de partes
esquecidas ou não desenvolvidas da personalidade.
Para Jung, muitas vezes, o ato de dar uma “forma visível” aos
distúrbios emocionais é muito mais e caz do ponto de vista terapêutico do
que a mera clari cação intelectual, a qual costuma ser mais abstrata (Jung,
1986). Isso porque, ao atribuir forma a conteúdos que, até então,
apresentavam-se obscuros, a consciência pode então organizar e analisar
aquilo que antes se apresentava de forma caótica e, assim, passa a adquirir
certo domínio sobre aspectos da personalidade antes não integrados.
As re exões junguianas demonstram que tanto o surgimento de
imagens espontâneas, como a utilização lúdica desta, pode ensejar o
contato com vivências profundas. Assim, o sujeito projeta na imagem
aspectos de si. Ademais, o contato com o conteúdo imagético enseja o
resgate de memórias. Nesse sentido, pode-se pensar o valor que a fotogra a
passou a representar, com a modernidade, na formação da autoimagem do
indivíduo, devido ao seu caráter de registro “instantâneo” e captura de um
momento pessoal. Essa compreensão da fotogra a, enquanto veículo de
projeção de conteúdos psíquicos, denota a característica intrinsicamente
autobiográ ca ensejada por esse meio de expressão.
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Para Dubois (1993), a foto é um “espelho da memória”, a qual, na
verdade, é constituída de fotogra as. Ademais, a fotogra a não constitui uma
reprodução da realidade, mas um instrumento de transformação do real
(Dubois, 1993). Esse pensamento se a na com a concepção junguiana,
conforme exposto, para a qual a retenção das imagens precede o registro
verbal. Além disso, a memória é constituída por uma série de imagens
carregadas de conteúdos emocionais, ou complexos de tonalidade afetiva,
os quais são ativados, ou constelados, a cada contato com o estímulo
percebido (Jung, 2015; Silveira, 1981). Esse processo faz com que a
imagem capturada ou percebida esteja sempre permeada pelo ltro psíquico
das memórias e afetos a ela ligados.
A popularidade e democratização da fotogra a fez com que essa se
tornasse a principal expressão visual utilizada em nossos dias, devido à
facilidade e prontidão de seu uso e, ainda, à forma instantânea com a qual
as fotos expressam a percepção que uma determinada pessoa ou grupo
possuem acerca da própria realidade. Desde os tradicionais álbuns de
família até as pós-modernas sel es, as pessoas encontram a possibilidade
de criar imagens que dizem respeito às suas existências.
Para Weiser (2015), as pessoas utilizam a fotogra a como um modo de
atribuição de sentido a um momento particular de suas existências. Além
disso, as imagens registradas pela câmera fotográ ca também são capazes
de suscitar impressões muito tempo depois de terem sido registradas. Por
vezes, as pessoas não sabem por que tiraram aquela foto em particular; uma
fotogra a que é encontrada muitos anos após seu registro pode se mostrar
diferente aos olhos da pessoa, ou esta pode rever um momento de sua vida
sob uma ótica diferenciada (Weiser, 2015).
A capacidade de cada indivíduo perceber a cena retratada em uma
fotogra a de modos, por vezes, completamente diferentes, demonstra a
singularidade dos modos de percepção, pautada por um movimento
projetivo, em que a energia psíquica é direcionada ao meio externo (Von
Franz, 1999). Por outro lado, o ato de registrar uma foto também pressupõe
uma série de escolhas por parte do indivíduo, como enquadramento,
perspectiva, uso da luz, escolha do cenário ou das pessoas a serem
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que vive. O objetivo é que o pesquisador veja o mundo a partir da
perspectiva do participante, ao mesmo tempo em que se evita a aplicação de
questionários e outros instrumentos que possam apresentar viés cultural
(Glaw et al., 2017). Isso porque a forma como que o participante decide
retratar a si mesmo diz muito sobre quem ele é (Nuñez, 2009). Esse ato de
“dar voz” ao participante também o aproxima do pesquisador, na medida em
que a informação expressa pela fotogra a ultrapassa a expressão verbal e,
também, as barreiras linguísticas e culturais (Glaw et al., 2017; Saita &
Tramontano, 2018; Steger, et al. 2013).
Com o avanço e democratização da tecnologia e o advento dos
smartphones e sel es, a autofotogra a tem se tornado cada vez mais
popular. Esse fato facilita a realização de pesquisas qualitativas que se
utilizam dessa metodologia, visto que representam baixo custo para o
pesquisador e são acessíveis aos participantes (Nuñez, 2009).
Outra metodologia oriunda da investigação etnográ ca é a entrevista
de foto elicitação, a qual consiste na introdução de uma ou mais fotos em
uma entrevista qualitativa (Harper, 2002). Nesse caso, as imagens a serem
utilizadas podem ser produzidas pelo pesquisador ou pelo participante
(nesse caso, portanto, utiliza-se também a autofotogra a). Pode-se também
solicitar ao participante que observe fotos previamente selecionadas ou
produzidas, ou ainda, que o participante escolha fotos de seu próprio acervo,
por exemplo, álbuns de família (Glaw et al., 2017; Harper, 2002). Em
seguida, solicita-se que o sujeito comente a respeito da imagem escolhida ou
selecionada.
Estudos que utilizaram a foto elicitação evidenciaram que as essas
entrevistas parecem potencializar a memória do participante quanto aos
fatos de sua vida relacionados com as imagens (Bates et al., 2017; Glaw et
al., 2017; Harper, 2002). Harper (2002) considera que a foto elicitação
expande as possibilidades da pesquisa empírica convencional, pois produz
um tipo diferente de informação, já que o contato com uma determinada
imagem potencializa as memórias a ela associadas. Essas memórias contêm
toda a potência dos afetos e sentimentos ligados ao momento em que a
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entrevistas semiestruturadas. A introdução dos recursos visuais diminui a
probabilidade de que o entrevistador imponha sua própria percepção ao
entrevistado e acrescenta novos elementos à entrevista sobre os quais o
pesquisador possui menor controle. O participante, por sua vez, sente-se
menos limitado e mais confortável em sua forma de expressão (Bates et al.,
2017; Richard & Lahman, 2015). Alguns participantes costumam relatar que
o ato de fazer fotogra as sob solicitação do pesquisador, ou de escolher
entre fotos pessoais, é um momento de prazer e de expressão pessoal e
que, já previamente à entrevista, há uma mobilização emocional ligada à
atividade de produzir ou escolher as fotos. Portanto, a dimensão lúdica
também está presente nessa abordagem de pesquisa, com toda a
capacidade que a criatividade comporta em despertar percepções e
emoções sutis (Bates et al., 2017; Weiser, 2015).
Essa facilitação da expressão tem permitido que os estudos
qualitativos em saúde mental se tornem mais inclusivos em relação a
algumas populações, como minorias étnicas e raciais, pessoas iletradas,
crianças, jovens e pessoas com transtornos mentais, além de outras
condições neurológicas que di cultem uma abordagem puramente verbal
(Croghan et al., 2008; Epstein et al., 2006; Erdner & Magnusson, 2011;
Steger, 2013). Os resultados dos estudos costumam ressaltar aspectos da
identidade desses grupos, os quais di cilmente seriam identi cados em uma
intervenção puramente verbal. Ademais, revelaram uma potência
autobiográ ca que se faz importante, especialmente em alguns campos de
estudo, como a psicologia do desenvolvimento, especialmente no
entendimento de signi cados atribuídos aos sujeitos em diferentes fases da
vida (Glaw et al., 2017). Por m, dão voz a pessoas que não
necessariamente possuem habilidades verbais desenvolvidas ou, se as
possuem, sentem di culdades em expressar estados internos usando
somente o registro verbal.
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variações de uso da fotogra a, combinada ou não com técnicas de arte-
terapia (Carr & Hancock, 2017; Halkola, 2009; Saita & Tramontano, 2018;
Weiser, 2015).
Considerações Finais
A despeito das vantagens que os estudos envolvendo as metodologias
visuais têm indicado, no campo da saúde mental, o número de estudos
publicados ainda é limitado, se comparado com os métodos tradicionais de
pesquisa qualitativa. A fotogra a e outros métodos visuais ainda têm sido
utilizados como suporte secundário, portanto, o potencial da imagem, tanto
na pesquisa como na psicoterapia, ainda não foi plenamente explorado.
A psicologia, enquanto disciplina cientí ca propõe-se à compreensão
da subjetividade. Cabe então uma re exão sobre a importância de os
estudos psicológicos não prescindirem do registro visual, pois este constitui
um modo de dar forma àquilo que, muitas vezes, é indizível. Por meio da
imagem, tem-se um acesso mais aproximado à forma de perceber humana e
aos sentidos por ela gerados. Por conseguinte, trata-se de mais um recurso
para que a pesquisa qualitativa ultrapasse fronteiras e encontre novas
possibilidades de interação, aproximação entre pesquisador e participante e
produção de novos signi cados, para além de uma visão rígida que por
muito tempo tem imperado no meio cientí co.
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Sobre Palhaçaria
O palhaço é uma das principais representações de comicidade,
reconhecido pela espontaneidade e extravagância (Bergaon, 2004;
Rodrigues, 2015). Diferente de outras máscaras do teatro, o nariz vermelho é
a menor máscara do mundo e, ao invés de auxiliar o ator a interpretar
personagens, na verdade, colocar o nariz é um ato de exposição e
expressão subjetiva (Burnier, 1994; Ferreira, 2013; Lecoq, 2010).
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 67
Como um processo de grande dedicação, ser palhaço demanda
desprendimento, coragem e muita persistência, justamente porque
revelamos a nós próprios que interpretamos (Wuo, 2014). Envolve agir com
espontaneidade, transgredir normas impostas pela sociedade e causar o riso
ao evidenciar aquilo que é considerado inapropriado, que envolve fraquezas
pessoais (Puccetti, 2009; Wuo, 2014). O processo de se descobrir em
essência, aceitar-se e revelar aos outros aquilo que se é de verdade não é
fácil, mas a vantagem é que o nariz vermelho é símbolo de permissão, pois
quando o público reconhece o palhaço, há melhor aceitação dos
comportamentos inusitados em função do imaginário social em torno de sua
gura histórica.
O riso do público representa, então, a identi cação com o sujeito
ridículo e desastrado (Bertotti et al., 2013; Rodrigues, 2015). Às vezes, o
palhaço se torna um incômodo porque percebemos o quanto nós também
podemos ser inconvenientes. Ao rir do palhaço, podemos parar para re etir
que já houve momentos em que falamos ou agimos da mesma forma que
ele. Então, reconhecemos que também somos frágeis e conseguimos rir de
nós mesmos, de nossas próprias imperfeições (Magalhães, 2007). Ao
imaginar um diálogo que demonstra bem o que é a representação do
palhaço, poder-se-ia dizer:
Público: “Nossa, palhaço, como você é ridículo.”
Palhaço: “Muito! Olha só essa roupa e essa maquiagem que estou
usando. Além disso, eu também sou tão bobo e ingênuo! Tudo isso me faz
pensar no quanto consigo ser eu mesmo e o quanto todos nós somos
assim”.
O palhaço é, em essência, o perdedor que assume a sua própria
derrota e é capaz de subvertê-la (Acs, 2018). Por meio do fracasso, revela-
se o perdedor que é feliz, o qual comove, causa o riso e, assim, representa
uma grande lição sobre a natureza humana (Lecoq, 2010). Atuar como
palhaça é saber que perder não é um problema; não se demonstra
fragilidade com isso e sim a certeza de que isso é realidade para todos.
O processo de tornar-se palhaço é de nido por Wuo (2005) como
“desformação”, que compreende desprendimento sobre a forma habitual de
O Palhaço e o Público
A presença de nós, palhaços, costuma causar diversas reações no
público que nos assiste. Isso ocorre porque o palhaço funciona da potência
no caos, isto é, ele existe a partir da sua relação com o público, afetando e
sendo afetado por ele (Ferreira, 2013). É sensível ao ambiente que atua,
focado no aqui e agora e responde aos estímulos de forma congruente com
seus afetos, bem como é capaz de transitar entre os afetos e intensidades
experimentadas nas relações (Ferreira, 2013; Masetti, 2005; Rezende &
Souza, 2020).
Evidencia-se a potência do assistir e do interagir com o palhaço, o que
está intimamente relacionado à potência do riso. O riso é responsável pela
conexão entre o palhaço e o público, o que resulta no espaço de encontro
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(Zottis, 2019). Consiste em uma reação provocada pelo sentimento de
alegria, felicidade, satisfação ou prazer e tem como principal objetivo fazer e
fortalecer relações humanas (Bertotti et al., 2013).
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 71
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atento na relação com os estímulos em sua volta, ele é capaz de elaborar
cenas engraçadas e desfechos inusitados diante de diversas situações. Na
prática isso inclui, por exemplo, criar uma bola imaginária e começar a jogar
futebol ou apostar uma corrida em que ganha quem chegar por último. A
ideia é utilizar da imaginação e da criatividade associados à espontaneidade
do palhaço.
A rua se con gura como um palco que exige muitos improvisos.
Lembro-me do momento em que fomos realizar o nosso primeiro espetáculo
na rua, durante uma ação com temática de festa junina. Tínhamos pensado
previamente em cada cena, ensaiamos e nos dedicamos muito, a nal era a
nossa primeira apresentação. Havia uma cena especí ca em que os
palhaços dançavam e foi durante esse momento que uma moça em situação
de rua levantou-se e começou a dançar conosco. De início, camos
desesperados ao perceber que tudo que ensaiamos poderia estar perdido,
mas logo percebemos que aquilo não necessariamente era um problema.
Com esse imprevisto, o público acabou se divertindo ainda mais, inclusive
rindo bastante com os nossos semblantes de desespero.
Surge, então, a ideia da Palhaçaria como contribuição para saúde
mental. Assim, permite-se o acesso à arte para pessoas que geralmente são
menosprezadas, o que inclusive con gura um ponto de semelhança entre a
pessoa em situação de rua e o palhaço, pois ambos, de certa maneira, estão
à margem da sociedade. Na rua, muitas vezes as pessoas são tratadas com
desrespeito, com inferioridade e até consideradas culpadas pela sua
condição social (Sicari & Zanella, 2018) e quando esses sujeitos entram em
contato conosco, veem seres imperfeitos que são capazes de ressigni car as
suas vivências ao subverter a lógica do perdedor, por meio do ridículo e suas
imperfeições humanas, o que resulta em riso naqueles que o assistem (Acs,
2018; Bertotti et al., 2013; Lecoq, 2010; Rodrigues, 2015)
Assim, em um mundo de exigências em buscar felicidade e perfeição,
chegamos como palhaços na rua, ambiente em que as pessoas estão
vulneráveis e excluídas socialmente, e evidenciamos inadequações, um
modo desajustado de ser (Achcar, 2016). O palhaço não é pessimista e sim
realista; não nega a existência do pior, mas busca, por meio da comédia,
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transformar a tragédia (Dunker & Thebas, 2019). É tragicamente cômico, ou
seja, o momento trágico do palhaço serve como alegria para aquele que
assiste. Ele erra, continua insistindo, erra novamente, não desanima e,
enquanto isso, a plateia cai na gargalhada.
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 73
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aprendizado emocional (Dunker & Thebas, 2019). Reconhecemos a outra
pessoa como fonte de potencialidades e de aprendizagem sobre dor e
alegria, conteúdo muito importante que transpassa a subjetividade do
palhaço (Silva, 2021).
O palhaço mostra para a pessoa em situação de rua que até ele, que é
palhaço, não está o tempo inteiro alegre (Lecoq, 2010). Inclusive, às vezes
alguns palhaços adicionam uma lágrima na própria maquiagem, com o
objetivo de lembrar o público de que ele também passa por momentos de
tristeza, mas é capaz de transformar a dor em comicidade. Esta forma de se
maquiar é inspirada no arquétipo de Pierrot, o qual contribuiu para o que hoje
compreende-se como palhaço (Ramalho, 2009; Rosa, 1985; Silva et al.,
2022) e é exempli cado na imagem a seguir.
Fonte: Google
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 75
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Figura 5 - Palhaços Ruaceiros prontos para apresentar a cena de autoria
própria para pessoas em situação de rua. Autor:
Conclusão
Diante das experiências e das temáticas discutidas, reitera-se a
importância da presença do palhaço em diversos ambientes de atuação, em
especial na rua, tendo em vista as diversas potencialidades e contribuições
de se trabalhar com o público em situação de rua. Tais contribuições são
direcionadas não apenas para as pessoas em situação de rua, mas também,
e principalmente, para o palhaço, que aprende a escutar e dar apoio, bem
como passa a conhecer uma realidade de exclusão, semelhante à sua.
São muitas as contribuições do encontro do palhaço com a pessoa em
situação de rua: desde o riso espontâneo diante daquele ser estranho e
desastrado até um momento de escuta de vivências únicas e dignas que
transpassam pessoas grandiosas. A aproximação é facilitada pelo
reconhecimento entre os dois seres: reconhecem que um precisa do outro
naquele momento. E eles tem muito a ensinar um para o outro.
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 77
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CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 81
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CAPÍTULO 5
Em uma cena do lme “Uma cilada para Roger Rabitt” (Zemeckis &
Spielberg, 1988) a namorada do personagem é questionada: “O que você viu
neste coelho?”, e, ela responde: “ele me faz rir”. Confesso que minha vida
amorosa sempre dependeu muito disto. Seligman e Csikszentmihalyi (2001)
apontam algo que sempre é bom lembrar: sabemos muito da psicologia do
comportamento desviante e pouco do comportamento cotidiano das
pessoas. Entre estas as coisas que sabemos pouco está o humor. Fazer rir é
uma arte compartilhada por quase todas as pessoas. O humor é fonte de
resiliência, formação de grupo por identi cação e segregação, formação de
hierarquia e aprendizagem em diversas situações cotidianas (Meyer, 2000,
Ziv, 2010). A palavra tem sua origem no termo latim humore ( uido)
(Michaellis, 1998) e seu uso original ainda persiste, na biologia, no nome do
Humor vítreo do cristalino, por exemplo. Em português, no sentido
comportamental, usamos a palavra humor com dois sentidos diferentes: por
um lado, o humor se refere a variação do ânimo de uma pessoa, de suas
disposições, que colorem a vida e que são in uenciadas pela variação das
experiencias cotidianas - aquilo que em inglês se refere como mood (cuja
etimologia se dá por uma modi cação do saxão mod, que se refere a
coragem ou mente , conforme nos conta o Oxford Dictionary (2021); por
outro lado, usamos humor para se referia a reatividade cômica de uma
pessoa, ou seja, o que a faz rir. Neste sentido, próximo do inglês Humour.
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 83
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Figura 1 - Uma proposta de modelo explicativo para o humor.
Fonte: Autor
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 85
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Um ato humorístico é um ato de comunicação entre animais. Portanto,
precisa de um emissor e um receptor. Mesmo quando rimos à toa de um
cereal que “é a cara” do ex-presidente norte-americano Donald Trump, temos
um emissor involuntário de uma mensagem. Mas para observar o ato
humorístico de fora, como poderíamos descrevê-lo? Imaginem uma cena
humorística. Digamos que a quero como um dado para pesquisa. Ora, na
díade humorista/plateia, temos o comportamento de um e de outro e tal
díade pode ser observada em separado ou em comum.
Assim, temos o que faz o humorista e como a plateia reage ao longo
do tempo. A plateia determina o valor humorístico do ato do ator ou palhaço.
O palhaço tem a intencionalidade de controlar o afeto da plateia. Assim, a
observação e o valor cômico do ato só pode ser estabelecido na observação
da díade.
Observando a plateia: A plateia pode fazer pouco: sorrir, gargalhar,
ignorar, jogar ovos, chorar ou mesmo ir embora. Estes atos são facilmente
classi cáveis (uma sugestão de classi cação da reação da plateia está na
tabela 1, nela, um referencial semântico de observador externo é usado).
Mas como observar o comediante?
10
20
30
40
Fonte: Autor
Linguístico
Físico (marcar
Tipo (marcar Tipo
intensidade 1-3)
intensidade 1-3)
10
20
30
40
Fonte: Autor
Comediante 1
Exagero
linguis co sico
3
2
2
Aliteração Incongruência
1
0
Congruência Violação
Fonte: Autor
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 87
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ti
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Comediante 2
Exagero
linguis co sico
3
2
2
Aliteração Incongruência
1
0
Congruência Violação
Fonte: Autor
Análise de dados pode facilmente ser feita pela análise de área dos
polígonos obtidos e sua relação +1, da seguinte maneira: [tipo de humor =
(área de polígono linguístico/área de polígono físico) +1]. A relação permite a
classi cação do tipo de humor em mais ou menos linguístico. A análise do
tipo de estratégia é feita pela observação dos eixos, que pode ser
complementada pelas observações qualitativas do tipo de piada feita por
tema.
Uma análise mais qualitativa pode ser realizada apenas pela
observação das guras obtidas nos eixos. A análise das plateias pode ser
feita pela média dos momentos de reatividade registrados, sendo importante
discriminar o momento (pré ou pós ato cômico). No caso de uma observação
temporal, um grá co de linha do tipo EEG ou de frequência acumulada pode
ser útil para uma análise mais qualitativa. Por m, a relação entre tipo de
humor x plateia pode ser feita por correlações simples, como a de
Spearman.
Referências
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Introdução
Na história das sociedades humanas, tem-se uma variedade de relatos
mitológicos, os quais são narrativas de teor simbólico que, comumente, são
consideradas meras histórias fantásticas, ou simplesmente o modo pelo qual
uma determinada cultura apreende os fenômenos físicos que a rodeiam. Ao
contrário, porém, essas histórias constituem testemunhos vivos da vida
psíquica dos povos que as conceberam (Campbell, 2008; Kerényi, 2015;
Eliade, 1972). Esse é o caso da gura que será introduzida e analisada neste
texto, e que pode ser considerada uma das mais antigas manifestações
mitológicas da humanidade: o trickster.
O termo “trickster” deriva do inglês e pode ser traduzido, no português
brasileiro, como “embusteiro”, ou “pregador de peças” (Santos, 2016). Ele é
empregado para denominar uma entidade de caráter divino ou semidivino,
que pode se apresentar em forma humana ou animal, ou ainda em forma
híbrida. As tradições que o descrevem costumam trazer algumas
características em comum que tornam fácil a sua identi cação. Ele
apresenta, em geral, comportamento impulsivo; em algum momento das
narrativas, desa a os tabus e normas civilizadoras da comunidade, ou ainda
quebra as regras diretamente estabelecidas pelos deuses (Santos, 2016;
Queiroz, 1991). O trickster o faz utilizando-se de um truque – daí o seu nome
– geralmente de forma mal-intencionada, mas acaba por produzir,
involuntariamente, um efeito positivo ou construtivo para a coletividade.
Sendo assim, ele desestabiliza o sistema e, ao mesmo tempo, o renova
(Balieiro et al., 2015).
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 91
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Outra característica marcante do trickster é o seu caráter de
mensageiro entre o mundo dos deuses e o dos humanos e, ainda, entre os
vivos e os mortos, e por isso é geralmente considerado um psicopompo, ou
aquele que acompanha as almas dos mortos até a nova morada (Balieiro et
al., 2015; Hyde, 2017). É, portanto, uma entidade mediadora, que ultrapassa
as fronteiras, com ou sem autorização dos deuses.
Algumas guras mitológicas que se encaixam nessas características
podem ser citadas: Hermes ou Mercúrio, na mitologia greco-romana; Exu, na
mitologia Yorubá, cultuado também nas religiões afro-brasileiras; Loki, das
narrativas nórdicas, e na mitologia hindu, Ganesha, o deus com cabeça de
elefante, em sua forma mais arcaica. Todas essas entidades possuíam a
característica de serem responsáveis pela comunicação entre humanos e os
deuses; pregavam peças nos próprios deuses e, também, nos humanos; em
algumas narrativas, traziam benefícios indiretos para os deuses e acabavam
por propiciar a organização do cosmos (Balieiro et al., 2015; Kerényi, 2015;
Gabani & Serbena, 2015; Vallier, 2011). Essa mistura de astúcia e inocência
são os traços marcantes do trickster, que então se caracteriza por ser uma
gura ambígua e contraditória. Ademais, a presença desse personagem
costuma anteceder a gura do herói fundador da civilização, conforme
constatado pelo estudo de diversas mitologias ao redor do mundo. Essa
característica de dualidade trapaceiro-herói apresenta nuances diferenciadas
a depender da cosmogonia a ser estudada (Santos, 2016).
O Ciclo do Trickster
Entretanto, uma mitologia em particular auxiliou o antropólogo francês
Paul Radin na compreensão da natureza do trickster e de seu paralelo com o
desenvolvimento não somente da cultura, mas da psique humana. Em seus
estudos da etnia norte-americana Winnebago, que resultaram na publicação
da obra The Trickster: A Study in American Indian Mythology (1956), Radin
descreve as narrativas que ilustram o desenvolvimento do mito do herói
naquela cultura, as quais o autor organizou em quatro ciclos: o primeiro ciclo
é representado pelo ser que é denominado Wadjunkaga. Com a mentalidade
de uma criança, ele é ao mesmo tempo ingênuo e malicioso, e não
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 93
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engravidar – e, após passar por várias peripécias, termina por adquirir
consciência de si e de seus atos. Para Radin, o trickster representa um
momento anterior àquele em que a humanidade se tornou diferenciada da
natureza, ou seja, simboliza a transição para o nascimento da sociedade e
dos indivíduos como seres sociais. Dessa forma, a função desse mito é a de
perpétua construção e desconstrução dos valores sociais adquiridos ao
longo do tempo por aquela cultura. O autor observa ainda que, apesar de já
parcialmente aculturados e tendo sofrido in uências cristãs, os Winnebago
mantinham o culto do trickster em suas cerimônias de guerra, e que a função
deste era a de promover a sátira direcionada ao próprio ritual, tão sagrado
para os Winnebago, e a quebra dos tabus referentes àquela ocasião.
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 95
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Gabani & Serbena, 2015). Ademais, várias representações do trickster estão
presentes na cultura contemporânea, por meio de desenhos animados,
quadrinhos, cinema e mídias em geral. Assim, a necessidade de reviver o
mito é comum até mesmo nas sociedades mais complexas (Queiroz, 1991).
As narrativas norte-americanas demonstram ainda que, apesar de seus
defeitos e trapaças, esse ser acaba por manifestar uma consciência crítica e
o desejo de aprender e se desenvolver. Isso ocorre devido ao caráter oposto
e, ao mesmo tempo, complementar que o trickster exerce em relação à
gura do herói (Jung, 2012). Portanto, ao seguir o ciclo natural da expansão
da consciência, o trickster acaba por se desenvolver até atingir o status de
herói-salvador, aquele que é capaz de libertar seu povo e reestabelecer a
conexão deste com os deuses (Nichols, 1997), não sem antes ser punido
pela hybris, ou excesso de arrogância e autocon ança (Henderson, 2005).
Em alguns casos, ele se apresenta até mesmo como um herói-embusteiro,
capaz de auxiliar e ao mesmo tempo criar di culdades para o povo; contudo,
ele tenderá a passar por uma transformação que lhe dará o status de
salvador (Von Franz, 1990).
Essa relação compensatória entre o trickster e o herói se faz presente
nos mais variados contextos: Jung cita, como exemplo, o próprio Javé do
antigo testamento, o qual apresenta algumas características do trickster,
como a impulsividade e crueldade, traços que se desenvolvem gradualmente
rumo à humanização representada pela gura de Cristo, no Novo
Testamento (Jung, 2012). Essa temática chegou a ser explorada
detalhadamente na obra Resposta a Jó (1952), na qual Jung examina a
gura de Javé enquanto representação do próprio inconsciente, que
necessita da experiência da humanidade para se desenvolver (Hopcke,
2012; Jung, 2003). De modo semelhante às narrativas bíblicas, essa
dinâmica encontra paralelo com lendas, contos de fadas, na literatura e nas
artes (Nichols, 1997; Queiroz, 1991).
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 97
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com o Louco, o acesso à vitalidade criativa proveniente dos instintos e,
consequentemente, acesso a novas ideias.
No terreno das tradições populares, tem-se o exemplo da Commedia
dell’Arte italiana que imortalizou os personagens do Arlequim, Pierrot e
Colombina, além das trupes de saltimbancos em geral que se espalharam
pela Europa durante as festividades da Idade Média e Renascimento (Jung,
2012; Santos, 2016; Von Barloewen, 2010). Esses artistas utilizavam o
humor para fazer uma contraposição à cultura rigidamente religiosa e servil
do mundo feudal (Ramalho, 2009). É desses tempos a primeira referência ao
termo pagliaccio, do italiano, que deriva da veste forrada de palha que os
cômicos usavam para amenizar o impacto com o solo durante as
performances vigorosamente corporais. Era comum que esses folguedos
ridicularizassem os senhores feudais, e acabaram por constituir um meio de
expressão próprio das massas populares marginalizadas. Ao ironizar a
própria situação de servidão e miséria, a população encontrava uma
permissão temporária para subverter, ainda que temporariamente, as normas
sociais vigentes, a exemplo do que se tem até o presente, com as
festividades carnavalescas (Jung, 2012; Ramalho, 2009).
Entretanto, as origens do palhaço são bem mais antigas, e remontam
há cerca de quatro mil anos. Têm-se registros da presença de palhaços e
bobos na quinta dinastia do Egito e, também, nas cortes da antiga China
Imperial (Bala, 2010). Outras culturas, como a do Tibet, mantêm palhaços
sagrados em seus ritos até a atualidade (Tof n, 2019).
Essa estreita relação da palhaçaria com os poderes institucionais,
sejam esses políticos ou religiosos, a exemplo do já comentado bobo
medieval, remonta à mesma necessidade dos Winnebago de não
esquecerem o seu trickster e incluí-lo mesmo em suas mais sagradas
cerimônias (Bala, 2010; Ramalho, 2009). Assim, a repetição terapêutica do
mito tem a função de manter presente, e sobre o controle da consciência,
tudo aquilo que é da ordem do irracional e, ao mesmo tempo, renovar a
ordem social por meio da potencialidade criativa trazida por esse arquétipo.
CIÊNCIA DA PALHAÇARIA – 99
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infância (Henderson, 2005), desa o este que, se não for superado, impedirá
a formação de um ego equilibrado e maduro. A ocorrência do arquétipo do
herói corresponde ao primeiro estágio de diferenciação da psique individual
em relação à psique coletiva, o que constitui o processo de individuação
(Henderson 2005, Jung; 2012).
Nos casos, porém, em que o sujeito se identi ca demasiadamente com
o ego, isso se torna prejudicial para a personalidade, que se torna rígida e
unilateral. Nesse caso, é importante o contato com o arquétipo do trickster,
pois ele propicia a função transcendente, a qual é a integração dos
conteúdos inconscientes à consciência (Jung, 1986). Isso porque, na ótica
junguiana, o ego é um complexo que se forma durante os anos da juventude,
e constitui o centro da vida consciente, com função prevalentemente
adaptativa. Contudo, o ego não é o centro da personalidade, e sim o Self, o
qual representa a totalidade da psique (Jung, 2014; Clarke, 1993). Daí a
importância de o trickster ser experienciado dentro da clínica, pois ele traz o
imprevisível. Muitas vezes, ele se manifesta por meio de um sintoma que
rompe a estagnação do ego, pois o trickster interior não se preocupa com as
fronteiras egóicas, relativas à noção de certo e errado (Hyde, 2017).
Individuar-se não signi ca alcançar a perfeição, mas sim a totalidade da
expressão da personalidade (Silveira, 1981), e nesse sentido a
despreocupação do trickster em relação a normas ou cânones morais
vigentes, ou mesmo o desconhecimento destes, podem ser ferramentas de
crescimento, ao expandir a consciência para além do familiar e do previsível.
Para Bala (2010), o palhaço como expressão do trickster enseja a
importância do humor enquanto função do Self, pois este está ligado à
atividade criativa. O humor, então, pode agir como uma ponte entre
importantes elementos inconscientes que ainda não foram integrados à
personalidade. Essa ideia vai ao encontro da noção junguiana segundo a
qual o inconsciente é uma fonte de potencialidades criativas latentes (Jung,
1985). Ademais, o humor permite o afrouxamento das fronteiras rígidas do
ego e, portanto, possibilita ao indivíduo uma maior aceitação de seus
aspectos de sombra, sendo a risada e ironia instrumentos dessa função
(Bala, 2010). Assim, quando o indivíduo se encontra em um impasse, ou
O Palhaço-Terapeuta
A a nidade da palhaçaria com as artes dramáticas deriva de sua
origem comum com essas artes. A palhaçaria terapêutica é um trabalho que
tem crescido nos últimos anos, inicialmente impulsionado pelo trabalho de
Patch Adams nos hospitais (Farneti & Tschiesner, 2016). Apesar de ainda ser
praticada majoritariamente em ambientes hospitalares como promotora de
saúde e portadora de humanização das práticas médicas, especialmente em
crianças, essa terapia também tem sido experimentada para além desse
contexto, por meio de o cinas terapêuticas que promovem o
autoconhecimento dos participantes, as quais podem se valer de muitos
recursos para esse m, como técnicas dramáticas, arteterapia e psicodrama
(Carp, 1998; Ramalho, 2009).
Desse modo, a palhaçaria constitui uma ferramenta valiosa da clínica
ampliada, pois trabalha a expressividade dos participantes. Jung (1985)
destacou a importância da expressão artística na clínica, não somente
Considerações Finais
O espontâneo ato de brincar e o caos aparente que emergem das
ações do palhaço, ainda que aparentemente não pareçam ter conexão com
o destino nal do trickster – o desenvolvimento rumo à expansão da
consciência – possuem na verdade uma grande correspondência com esse
mito, pois a palhaçaria exerce uma importante função compensatória da
atitude consciente, o que mantém o perene dinamismo necessário à uidez
da personalidade, sem a qual o processo de individuação não se faz
possível.
Portanto, a identi cação consciente com o próprio palhaço é da maior
importância, para que o inconsciente não “pregue peças” no indivíduo, à
semelhança do trickster. Desse modo, a pessoa pode se bene ciar
psicologicamente dessa rica fonte de recursos pessoais e permanecer ciente
de que, dentro de si, moram o racional e o irracional, e que ambas as
dimensões são necessárias para uma psique equilibrada e capaz de
enfrentar os desa os do cotidiano.
Referências
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Talvez seja o local onde é mais fácil e difícil brincar, por todos os
motivos que pesam quando a saúde falha e nos obrigam a depender de
outros para as actividades de vida diárias mais básicas. Convencer alguém
nesta situação (independentemente da sua idade) a se "distrair"/brincar pode
ser muito complicado por diversos motivos: apatia, depressão, dor,
desorientação, alterações motoras, entre outros.
Mas brincar talvez seja a melhor desculpa para alterar as rotinas, para
fugir aos diagnósticos, às dores, sejam elas físicas ou psicológicas. Sim,
brincar está acima das soluções farmacológicas, porque nem só com
medicação se faz o alívio da dor.
Estávamos em 2015 quando pela primeira vez que fui invadida por esta
ideia. Através das redes sociais, encontrei a palavra "PlayMonday" e logo a
seguir "Transformadores de Instantes". Do outro lado do Atlântico, um grupo
de pessoas estava a usar as segundas-feiras para ir para a rua surpreender,
convidar e aliciar com uma brincadeira quem com eles se cruzava, de forma
a que isso permitisse a comunicação, a escuta e o envolvimento. Mas não
tinha que ser só na rua, o PlayMonday propunha que a brincadeira podia
acontecer também no local de trabalho, numa sala de espera de um
consultório, em casa, ou em qualquer outro sítio. A única condição era que
tinha que ser uma brincadeira de bom trato. Ao comando deste projeto
estava Cláudio Thebas e após algumas trocas de mensagens, depois de me
apresentar, contar que era enfermeira e que achava que ia ser muito bom
poder adaptar este projecto à realidade de uma Instituição de Saúde, nasceu
1O grupo recebeu três prêmios: em 2013 o Prêmio Cidadão Orgulho de Ser do Pará, do grupo RBA; Em
2014 a Comenda Municipal Gaspar Vianna de Contribuição à Ciência, da Câmara de Vereadores de Belém;
Prêmio do próprio HUJBB, onde alguns membros do coletivo eram em um turno palhaço e no outro
voltavam para o internato ou outras práticas da graduação em saúde
2 Em 1988 o ator e diretor Marton Maués ministrou a disciplina de palhaço para alunos e ex-alunos da
ETDUFPA e surge o grupo Palhaços Trovadores com o espetáculo Sem peçonha eu não trepo neste
açaizeiro. Espetáculo que tratou sobre lendas e mitos da Amazônia (uirapuru, boiúna, boto etc.) utilizando
de trovas e canções populares, misturando humor e lirismo. (Maués, 2004). Os Palhaços Trovadores foram
pioneiros ao trabalhar com a arte do palhaço na cidade de Belém do Pará, apresentando-se em teatros
tradicionais, mas também em ruas, praças com linguagem popular. A disciplina de Palhaço é parte da grade
regular da graduação e do curso técnico em teatro na Escola de Teatro e Dança da UFPa (ETDUFPA), fato
que gerou a existência de diversos coletivos e artistas que trabalham com a arte do palhaço em teatros,
praças ou hospitais.
Esta prática acontece no HUJBB, local que pôde ser pensado pela tese
de doutorado de Aderli Tavares, chamada “Doutora, eu vim tentar a sorte”: o
atalhar no Hospital Público João de Barros Barreto”, que nos ajuda a situar o
papel do hospital e os símbolos que este carrega na cidade.
O título é a expressão muito repetida por pessoas que chegam no
HUJBB em busca de consulta sem prévio agendamento pelo SUS. Assim diz
Tavares (2016, p.47):
Os entrevistados, ao descreverem o Barros Barreto, o
colocaram em dois ciclos diferentes: o do hospital como
matadouro e do hospital como de recuperação de doentes. A
imagem do hospital em que as pessoas iam para morrer foi
predominante, a das histórias de pessoas conhecidas que
morreram no hospital. (...) O hospital e o necrotério localizado
próximo ao hospital formavam um complexo de prédios e
construíam parte da paisagem do bairro. Presenciar a retirada
de cadáveres e o enterramento de corpos de desconhecidos foi
fator que desencadeou medo no casal sobre o Instituto Médico
Legal (IML) e sobre o Hospital Barros Barreto.
estas crianças viam - por vezes os pais também. A câmera também era um
objeto que gerava curiosidade.
Pensando nisto, con gurei a câmera de forma que as crianças
conseguissem fotografar sem di culdades: foco no automático, deixando a
câmera identi car automaticamente o objeto principal. Tempo de exposição
no automático e con gurava o ISO e a abertura do diafragma de acordo com
a iluminação, de modo a garantir tempos curtos de exposição para que as
fotos não cassem tremidas
Figura 5 - Pernas-de-pau.
Figura 6
Figura 7 - Bolhas
Figura 9 - Ninho
Figura 13 - Dança.
Figura 15 - Altos.
Referências
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Tavares, A. G. (2016). “Doutora, eu vim tentar a sorte”: o atalhar no hospital
público joão de barros barreto [Tese de Doutorado em Antropologia].
Universidade Federal do Pará
3 Palavra inglesa usada para se referir às características ou em referência ao “clown” – palhaço em inglês
4 Para saber mais sobre a relação do clown com as máscaras do bufão e zanni, ler: Brondani (2012).
5 Nos referimos aqui no masculino, pois neste período, ao que tudo indica nos documentos, eram somente homens que
realizavam este papel no circo, somente mais tarde houve a inserção da mulher desempenhando este papel no circo. Na
Europa foi com Annie Fratellini e no Brasil foi Maria Eliza Alves, mas, aqui, ainda vestida de homem – o palhaço
Xamego.
6O documentário encontra-se dividido em quatro partes no canal do YouTube “Infinitomaisum”, pelo link: https://
www.youtube.com/user/infinitomaisum/featured
7 Para saber mais sobre a relação do clown com as máscaras do bufão e zanni, ler: Brondani (2012).
8 Para saber mais acesse: http://palhacossemfronteiras.org.br/
9Termo utilizado pelas autoras aos pro ssionais da saúde e da palhaçaria na intervenção do projeto em
questão. Para saber mais, ler: Brito et al, 2016.
10 Acesse: https://doutoresdaalegria.org.br/
11Centro hospitalar infantil de preferência em Assistência, Ensino e Pesquisa em oncologia e hematologia
pediátrica, criado em 1978 na cidade de Campinas-SP.
12 É um coletivo que atua desde 2009, visando explorar correlações entre arte e saúde. Para saber mais, acesse: http://
blogdatrupe.wordpress.com/breve-historico/
13Tradução Joice Aglae: “Il Clown e l’Augusto sono prima di tutto una necessità all’interno del Circo: i loro numeri
permettono allo spettatore di respirare lo spettacolo normalmente.” (VIGANÒ, op. cit., p. 23).
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A INTEGRAÇÃO EU-CORPO
NA DANÇA DO VENTRE:
RELATO DE UMA FORMAÇÃO
Ana Paula Chagas Monteiro Leite
14De acordo com Perls et al. (1997) awareness é caracterizada pelo contato, sem este não pode acontecer. Na
awareness ocorre sentir (sensação/percepção), excitamento e formação de gestalten, sendo o seu
funcionamento adequado o reino da psicologia normal, e qualquer perturbação neste sistema configura
psicopatologia.
17Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scielo (Scientific Electronic Library Online), INDEX-PSI (Index Psi
Periódicos Técnico-Científicos), Repositório Institucional da Universidade Federal do Pará (UFPA), PePSIC
(Periódicos Eletrônicos de Psicologia) e CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior).
18No original: Trabajar con personas mientras corpori can su sí mismo nos ayuda, como terapeutas, a
concretar ciertas nociones abstractas del sí mismo, la experiencia y el ser, y aumenta nuestra apreciación
de la persona como un todo”. (Kepner, 2000, p.7).
19 Projeto iniciado em 2018 fundamentado na Fenomenologia e objetivando integração e criação a partir de
atividades para potencializar processo criativo, autoconhecimento e diálogo e prevenção em saúde integral.
20 No original: Dancing explores the body, allowing the integration of physical health through movements, as
well as socialization that occurs in the classroom. This fact may have in uenced the results of the body
stigma scale, minimizing the shame about the own body by wearing the belly dance costumes and by
performing feminine movements during the activity. (Carminatti et al., 2019, p. 467)
Re exões
As experiências apresentadas rati caram a certeza da importância de
estudar estas vivências, con gurando meu objeto de pesquisa no doutorado
em Psicologia e, igualmente, melhorando minha atuação pro ssional clínica.
Minha própria vida mudou, “tomou corpo”. Torno-me integrada a cada nova
experiência, e o mesmo desejo de propiciar às pessoas que querem fazer da
DV uma oportunidade de autoconhecimento.
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Mirian Araújo
OFICINAS
Objetivo Trabalhar vínculo, e apresentação do grupo.
Papel canson A3, recortes de revistas, lápis gra te,
Material
lápis de cor e tintas guache.
Iniciou-se com exercício de respiração e um exercício
de “quebra-gelo”, em que cada participante segurou
uma ponta de um novelo de lã, jogou o novelo de lã
Atividade para outro participante, formando uma teia, e se
apresentou para os demais; logo em seguida foi
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explicado como a teia é importante para a criação de
vínculos na vida.
A colagem é um trabalho importante e muito
Observações estruturador. Que será descrito posteriormente. A
Adicionais proposta foi que o indivíduo montasse algo que o
representasse.
Após a realização de toda a vivência, abriu-se a
Discussão
discussão do grupo (ACAMPORA, 2016).
Trabalhar exploração através de sua representação
Objetivo
facial, desbloqueio para desarmar os participantes.
Considerações Finais
A Arteterapia vem se apresentando como uma ferramenta fundamental
no alívio dos distúrbios psicossomáticos, contribuindo para amenizar os
efeitos negativos da ansiedade, depressão e estresse. Logo, é um meio que
contribui para a promoção da saúde e bem-estar, possibilitando também o
desenvolvimento nos âmbitos pessoal e da criatividade, tanto em questões
objetivas, na forma de circunstâncias que exijam caminhos alternativos,
quanto subjetivas, em questões de crescimento e superação. Sendo assim, a
Arteterapia seria, além de uma forma de tratamento, uma ação preventiva,
ou seja, disponibiliza ao sujeito o processo criativo que, por ser acionado nas
sessões, torna-se um recurso para a rotina, permite mudanças nos campos
afetivo, interpessoal e relacional. Além de melhorar o equilíbrio emocional e
elevar a autoestima.
A experiência com recursos artísticos possibilita que os sujeitos
vivenciem as inseguranças e con itos de forma branda, ou seja, com menos
sofrimento emocional. Permitem também canalizar, de maneira positiva, os
con itos emocionais existentes tanto no âmbito pessoal como interpessoal,
muito e caz quanto a grupos de pessoas com desequilíbrio emocionais em
curto espaço de tempo.
A abordagem junguiana, com a Arteterapia e materiais adequados,
auxilia no processo criativo e fornece suporte para que a energia psíquica
plasme símbolos em diversas criações. Dessa forma, mostra-se os estágios
da psique e se permite uma comunicação entre o inconsciente e o
consciente, colaborando, assim, na resolução dos distúrbios afetivos e na
estruturação da personalidade.
Desta forma, considerando o exposto, novas adaptações para que
docentes com conhecimento de Arteterapia possam se utilizar de estratégias
que permitam a transformação dos alunos por meio das atividades criativas e
artísticas seriam de grande valor no contexto educacional.
Mirian Araújo
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santo Amaro (1995).
Tem experiência na área de Psicologia, com Especialização em psicologia
Junguiana FACIS-IBEHE - 2001 – 2003, Especialização em Medicina
tradicional Chinesa (acupuntura ) FACIS-IBEHE 2004 – 2006, Especialização
em arte terapia sedes Sapientiae 2016. Mestrado na Universidades
Ibirapuera - Curso em andamento com conclusão em 2019.
E-mail: liarau@globo.com