Dissertação - Um Escritor Contemporaneo
Dissertação - Um Escritor Contemporaneo
Dissertação - Um Escritor Contemporaneo
Salvador - Bahia
2021
TISSIANE DE JESUS MENA BARRETO
Salvador - Bahia
2021
Dados internacionais de catalogação-na-publicação
(SIBI/UFBA/Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa)
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
BANCA EXAMINADORA
Titulares
___________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Júlia Morena Silva da Costa – UFBA
_______________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Adriana de Borges Gomes – UNEB
AGRADECIMENTO
Antes de tudo, cabe divulgar que esse trabalho não foi feito apenas por mim. Esta
dissertação é uma grande tela pintada por várias mãos, por várias tintas, com várias cores. Por
isso, eu não saberia dizer quantas e quais pessoas passaram por aqui durante o processo de
escrita, deixando a sua marca. Tentarei mencionar aquelas que se encontram mais vívidas em
minha memória neste momento. De antemão, registro que é uma imensa alegria poder
concluir esta etapa da minha vida assim e dedicar meu profundo agradecimento a cada um que
colaborou para que eu pudesse vivenciar esse momento hoje.
À Profa. Dra. Adriana de Borges Gomes dedico minha profunda gratidão nos
múltiplos cenários da minha vida.
Por fim, ao sujeito ímpar a quem admiro tão profundamente que registrei em minha
pele: o grande perseguidor Julio Florencio Cortázar, pelas maravilhosas pistas deixadas para o
seu leitor-cúmplice na criação do projeto intelectual.
RESUMO
Esta dissertação é um estudo bibliográfico sobre o argentino Julio Florencio Cortázar (1914-
1984), intelectual, ficcionista, tradutor, professor, crítico e teórico da literatura, reconhecido
mundialmente a partir da década de 1960. Conhecido contista do realismo mágico – corrente
literária que mescla a realidade e o universo mágico –, Cortázar tem uma vasta produção
intelectual que engloba textos críticos, cartas, romances e manifestos. Esta pesquisa centra-se
no dimensionamento de Cortázar como um intelectual múltiplo, revisitando os caminhos por
ele percorridos ao longo de sua trajetória como escritor. Busquei aqui evidenciar que as
temáticas postas por Cortázar, um sujeito do século XX, permanecem presentes na
contemporaneidade. Este estudo tem como objetivo investigar a multiplicidade do autor
através de dois romances de sua autoria: Diário de Andrés Fava (1950) e O livro de Manuel
(1973), os quais, mesmo com o intervalo de 23 anos de publicação de um para outro, possuem
como narrador-personagem um homem latino chamado Andrés Fava. A partir da leitura atenta
e da análise literária das obras, procurei entender, por meio das similitudes entre as narrativas,
como a pluralidade do sujeito se manifesta em sua produção ficcional. Para tal, foram
considerados ainda os engajamentos político-sociais e metafísicos de Cortázar materializados
em seus personagens homônimos, bem como alguns acontecimentos biográficos que
compõem as narrativas e a vida do autor.
Este trabalho é a culminância de uma longa trajetória percorrida nos últimos sete anos. O
ponto de partida foi a graduação em Letras, Língua Espanhola e suas Literaturas, na
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), enquanto o ponto de chegada é o mestrado
acadêmico em Literatura e Cultura, cursado na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Durante essa jornada um grande companheiro de percurso foi essencial: Julio Cortázar. Dito
isto, saliento que a escolha do corpus desta pesquisa foi baseada no afeto que possuo pelo
escritor e pelo legado por ele deixado nos estudos sobre literatura, sobretudo de língua
espanhola.
Analisarei aqui o itinerário feito por Cortázar e, refazendo suas andanças, caminharei
por essas trilhas em busca de pistas deixadas por ele, propositalmente ou não, na jornada que
traçou de forma tão singular, atuando como um escritor múltiplo. A poética desenvolvida em
Cortázar e o caráter híbrido desse intelectual construído fora de binarismos, simultaneamente,
acopla em sua atuação múltiplos saberes. Assim, não se trata de distintos fazeres e sim de um
fazer que engloba múltiplas facetas.
1
Linha 4 do mestrado acadêmico em Literatura e Cultura da UFBA. A linha de pesquisa estuda, a partir de
pressupostos teóricos efetivados nos séculos XX e XXI, representações poéticas e ficcionais.
9
literários, mas ao longo dessa dissertação tratarei do projeto intelectual de Julio Florencio
Cortázar, ficcionista, professor, teórico e transcriador argentino, que desde o século XX já
apresentava o caráter híbrido do escritor contemporâneo. Para dimensionar o discurso plural
desse escritor tomei como fio condutor os caminhos dos seus personagens, especificamente,
Andrés Fava.
2
Visto que O exame final (1950) e Diário de Andrés Fava (1950) foram escritos no mesmo ano, e quase
simultaneamente, não cabem dúvidas de que se trate do mesmo sujeito. O diário de Andrés é, portanto, o diário
do personagem de O exame final. Não se pode afirmar o mesmo a respeito da obra de 1973, pois não fica claro
se é o mesmo personagem, inclusive seu sobrenome é dito apenas uma vez, como se tivesse “escapado”.
3
O autodenominado Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, organizado pelo filósofo Bertrand Russell e
mediado pelo filósofo e escritor francês Jean Paul Sartre, investigou as políticas externas dos Estados Unidos e a
intervenção militar no Vietnã.
10
origem do escritor. Ser revolucionário não era incumbência apenas das classes oprimidas, era
preciso considerar autores que, “por origem e por evolução cultural” (CORTÁZAR, 1998, p.
332), também são lidos. Uma vez que, para Cortázar, deve-se tratar das mesmas questões
tanto no tribunal quanto na ficção: se falar de vida, morte, amor, ódio, justiça, liberdade e
opressão. Considerando que “as diferenças são de ordem estética, mas o fundo é o mesmo e se
chama América Latina”. (CORTÁZAR, 1998, p. 330)
Ainda no texto supracitado, ele aponta que o hibridismo literário se constrói com o
autor nascido para escrever e, que, portanto, é “incapaz de modo geral de mostrar-se eficaz em
outros terrenos, esse intelectual é por assim dizer a garantia moral de sua própria obra e deve
apresentar, a cada instante e sem a menor vacilação, as provas de que tal garantia é
justificada”. (CORTÁZAR, 1998, p. 335)
Antes de seguirmos, faz-se necessário uma breve apresentação. Afinal, como definir o
sujeito Andrés Fava? Trata-se de um intelectual portenho que traz em si elementos
4
Cortázar acreditava veementemente no duplo, entendendo-o como desdobramentos do “eu”. Em entrevista a
Ernesto González Bermejo (1978, p. 33-34), ele revela suas experiências com o duplo, colocando-o como uma
vivência sua desde a infância.
11
autobiográficos do autor. É militante de questões literárias, estéticas, teóricas, críticas, sociais
e políticas, compartilha dos engajamentos do escritor, modificados no decorrer dos anos e
acompanhados pelos personagens.
Considerando que o escritor tratado neste estudo é crítico e teórico da literatura, sua Obra
Crítica (1998) - dividida em três volumes - é forte apoio teórico para esta dissertação. Com
isto, pretendemos construir uma interlocução entre suas construções teóricas e ficcionais,
12
observando as migrações que ocorrem entre campos discursivos distintos e integram um
mesmo projeto intelectual.
Como orientação para analisar a práxis docente de Cortázar, utilizarei duas produções:
Aulas de Literatura: Berkeley (1980), registro de um curso ministrado por ele na universidade
norte-americana, e a sua carta Esencia y misión del maestro5, na qual aponta as orientações
necessárias para uma prática docente emancipatória, justa, humanista e libertadora.
Além disso, o aporte teórico conta com reflexões de Walter Benjamin, Evando
Nascimento, Irlemar Chiampi, Davi Arrigucci Jr, Michel Foucault e Saúl Yurkievich – críticos
que colocamos em diálogo com a poética cortazariana.
No terceiro capítulo, nomeado “O jogo que valia a pena jogar era o da realidade: uma
leitura de O Livro de Manuel”, explicito questões da poética cortazariana relacionadas com a
política, assim como analiso os possíveis elementos de uma escrita de si e a presença do
realismo maravilhoso em suas obras.
5
Em língua portuguesa traduz-se: “Essência e missão do professor” (tradução minha).
13
2. CORTÁZAR: UM INTELECTUAL MÚLTIPLO
O acervo intelectual deixado por Cortázar inclui poesias, contos, ensaios, romances,
traduções, entrevistas, músicas, cartas e textos de crítica e teoria literária. A partir de um olhar
mais atento, é possível visualizar alguns pontos de intersecção nos quais suas produções
14
literárias e críticas se cruzam, atravessadas ainda por sua atuação enquanto tradutor.
Convém ressaltar que em 1951, por razões de ordem pessoal, e por não concordar com
o governo de Juan Domingo Perón, Cortázar optou por seu autoexílio, partindo da Argentina e
renunciando ao cargo de professor universitário. O autor mudou-se definitivamente para a
França com apenas uma bolsa de estudos, e rapidamente instalou-se em Paris. Na capital
francesa trabalhou como tradutor na Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura – Unesco e na tradução da obra de Edgar Allan Poe, que acaba por
influenciar ainda mais sua poética, principalmente no que se refere aos contos.
Antes de mais nada, vale destacar que a ida de Cortázar para a França, país onde
desenvolveu estudos sobre a literatura francesa, foi um acontecimento há tempos desejado por
ele e não lhe foi nem um pouco penosa. Pelo contrário, sua destreza com a língua permitia
acessar os mais variados textos literários, facilitando sua inclusão entre a elite intelectualizada
francesa, através de uma bolsa de pesquisa. Segundo Carvalho (2014, p. 52) “Em agosto de
1951, Cortázar já cuidava dos procedimentos necessários para a sua estadia em Paris, onde
assumiria a bolsa de estudos oferecida pelo governo francês, à qual concorrera e fora
contemplado, para pesquisa em literatura francesa [...]”.
Sem dúvidas, o que se tem de peculiar nesse contexto é a disputa pelo poder revelada
entre os agentes estatais e a intelectualidade que buscava impor-se diante dos mandos e dos
desmandos de Perón. Considerando tal situação, Klinger observa a ausência de neutralidade
entre os envolvidos:
A postura instaurada por Cortázar remete à reflexão de que ele não deixava de cruzar
as identidades em si mesmo. Sua condição flexível diante das diversas potencialidades –
escritor, professor, ativista político, teórico – fomentou a sua consolidação enquanto sujeito
múltiplo, que percorre os diversos campos sem estabelecimento de hierarquias e divisões.
Ricardo Piglia (1996) refletiu sobre a condição inata do escritor enquanto crítico.
Para o autor, não há, mesmo estando em voga tal diferenciação, como separar as interações
que se concentram nesse indivíduo. Isto é,
Nesse sentido, o tema que gostaria de tratar aqui com vocês tem a
ver com o tipo de relação que se pode estabelecer entre a prática de
17
literatura e a reflexão sobre a literatura. Assim, poderíamos dizer que
o escritor está nesses lugares que acabei de nomear – o do professor,
do crítico e do estudante. (PIGLIA, 1996, p. 47)
Ora, em muitas obras escritas por Cortázar, as indicações de trânsitos entre professor,
escritor e crítico são evidenciadas. Por exemplo, ao escrever e divulgar sua carta aberta
intitulada Esencia y misión del maestro (1939), o autor explicita o que seria, para ele, a
essência e a missão do professor, abrindo ainda para o entendimento da própria noção de
cultura. Para ele, esta missão seria uma atitude inerente ao ser humano, despertado de forma
natural, após um longo estudo daqueles que alcançaram amplificar a visão diante da realidade,
questionando-a, sobretudo.
O docente não somente deveria apreciar as qualidades intelectuais, como também
deveria se abrir para as emoções, de forma que não deve interessara um professor somente
suas ciências, mas também a sensibilidade perante a arte. No fragmento da carta dedicada aos
novos professores, os recém-formados, após duas lições (sendo a primeira a consciência de
que a realidade está fora das salas de aulas e a segunda diz, que após a primeira lição, os
novos professores ganham uma missão para cumprir), Cortázar continua:
O homem é inteligência, mas também é sentimento e anseio
metafisico, além de sentido religioso. O homem é um composto; da
harmonia de suas possibilidades surge à perfeição. Por isso, ser culto
significa atender, ao mesmo tempo, a todos os valores e não apenas
aos intelectuais. Ser culto é saber o sânscrito, se quiser, mas também
se maravilhar ante um crepúsculo; ser culto é preencher fichas sobre
uma disciplina que se cultive com preferência, mas também, se
emocionar com uma música ou um quadro, descobrir o íntimo
segredo de um verso ou de uma criança. E ainda assim, não
conseguir especificar o que se deve entender por cultura; pois as
tentativas resultam inúteis. Talvez se compreendesse melhor meu
18
pensamento concebido neste conceito da cultura: a atitude
integralmente humana, sem mutilações, que resulta de um longo
estudo e de uma ampla visão da realidade. (CORTÁZAR, 1939, p.
2, tradução minha).6
A carta supracitada apresenta um professor crítico e consciente de sua função – e
missão – e mais: engajado em atrair mais docentes na busca por um fazer pedagógico mais
crítico e humanístico, Cortázar inspira os novos professores. Com o passar dos anos, o
escritor publica o livro de contos Bestiário (1951) e os romances Divertimento (1949) e
Diário de Andrés Fava (1950). Entretanto, a obra que o torna conhecido mundialmente é O
jogo da amarelinha (1963), que compila textos teóricos dentro do enredo do romance e
configura-se como o ápice da sua produção romanesca até então. Em verdade, o autor
experimenta ao longo de sua trajetória enquanto ficcionista nuances dentro do seu fazer
literário que vão, por fim, compor a poética da obra de 1963.
Na década seguinte, após estreitar os laços com Cuba, Cortázar publica O livro de
Manuel (1973), firmando seu compromisso político e o apoio a líderes como Fidel Castro,
Salvador Allende e Carlos Fonseca Amador. Cortázar integrou o Tribunal Internacional
Russell, que estudava e julgava as violações dos direitos humanos na América hispânica. O
posicionamento político do intelectual é sabido por todos os estudiosos do tema e explicitado
por ele em distintos momentos: como no prefácio da obra de 1973 no qual registra sua afeição
pelo sistema político socialista, que seria um passo essencial para a emancipação da América
em relação à Europa e aos Estados Unidos; e em entrevista à rede de televisão ao falar sobre a
Nicarágua, declarando que o socialismo é destino da América latina, “movido pelo amor”.
6
No original: El hombre es inteligencia, pero también sentimiento, y anhelo metafísico, y sentido religioso. El
hombre es un compuesto; de la armonía de sus posibilidades surge la perfección. Por eso, ser culto significa
atender al mismo tiempo a todos los valores y no meramente a los intelectuales. Ser culto es saber el sánscrito, si
se quiere, pero también maravillarse ante un crepúsculo; ser culto es llenar fichas acerca de una disciplina que se
cultiva con preferencia, pero también emocionarse con una música o un cuadro, o descubrir el íntimo secreto de
un verso o un niño. Y aún no he logrado precisar qué debe entenderse por cultura; los ejemplos resultan inútiles.
Quizá se comprendiera mejor mi pensamiento decantado en este concepto de la cultura: la actitud integralmente
humana, sin mutilaciones, que resulta de un largo estudio y de una amplia visión de la realidad. (CORTÁZAR,
1939, p. 02)
19
Segundo Evelina Hoisel (2019, p. 11), o poeta moderno conta com a consciência crítica
que “germina no sentido de tornar a própria linguagem espessa, depositária de outras
linguagens, acolhendo o discurso do teórico, do crítico e do historiador da literatura.” Dito
isto, torna-se fundamental percorrer alguns caminhos trilhados pelo autor, em busca de rastros
deixados por ele nos diversos campos do saber pelos quais transitou, ansiando reconhecer esse
escritor múltiplo na obra de Julio Cortázar.
Entre as décadas de 1960 e 1970 houve uma propagação mundial das narrativas
hispano-americanas impulsionada pelo efeito do boom literário: movimento que reescreveu o
lugar da literatura latino-americana, divulgando-a em proporção mundial. Um dos fatores que
fomentou essa produção foi o contexto social, que se apresentava como um terreno fértil para
propagar a literatura e seus escritores, que contavam, após o êxito da Revolução Cubana
(1959), com o interesse do mercado editorial. Enquanto as editoras se engajavam na
publicação de diversas narrativas hispânicas, os escritores aproveitaram o momento para
divulgar a literatura de um lugar que, até então, era constituída por vozes desconhecidas.
Sobre Cortázar, Cuba vai exercer forte influência, tanto no aspecto de desabrochar um
sentimento de identidade argentina quanto no incentivo de sua luta política. De fato, a
conjuntura cubana forneceu alicerces para uma nova perspectiva de luta social e política.
Conforme Melo:
Embora não possa ser delimitado com exatidão, o ano de 1962 é considerado um
marco no mundo literário no que se refere à produção epistêmica da América Latina. Houve o
Congresso de Intelectuais de Concepción, no Chile, que contou com publicações de romances
que marcariam fortemente a história da produção intelectual do continente.
Naquele momento, os quatro autores que integravam inquestionavelmente o boom
20
eram Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, embora
já com uma produção escrita engajada, quase não tiveram visibilidade no evento, que deveria
promover a produção intelectual latino-americana. Ainda assim, a partir de então, começava a
se falar nesse movimento que reorganizou as estruturas literárias e, embora iniciado na década
de 1960, ecoa até a atualidade.
Tal renovação literária repercutiu em diversas áreas, afetando, além da produção
artística, a sociedade de maneira geral. O “estouro” dessa literatura conviveu com mudanças
no campo das políticas públicas nas décadas de 1960-70:
Nas décadas de 1960 e 1970, podem ser identificadas novas
iniciativas, por parte dos governos, em inserir a cultura no campo
das políticas públicas. Em muitos países da América Latina esse
período correspondeu ao dos governos autoritários, às ditaduras
militares (como no caso da Argentina e do Brasil). (CALABRE,
2013, p. 323)
É importante mencionar que esse período foi marcado por forte repressão e censura,
principalmente no nível da cultura. Os conteúdos eram cotidianamente controlados pelo
estado argentino, o que não inviabilizou a realização de importantes instituições culturais pelo
país: “A sequência de golpes, seguidos de forte censura, mudou o cenário de produção
cultural argentina” (CALABRE, 2013, p. 331).
O momento ditatorial não foi suficiente para minar a emergência da identidade latino-
americana do país. Xavier Ayén (2014), historiador do boom, faz um estudo arqueológico
considerando alguns dos escritores integrantes da ação e avaliando de que forma se
articularam para promover o fenômeno que teve como resultado a divulgação da própria
literatura. Entretanto, dimensionar esse movimento é uma tarefa difícil, pois não se trata de
um fenômeno palpável, e sim, de poucos consensos. O próprio Cortázar o questiona, ao
declarar em entrevista publicada por Ayén:
Isso que tão mal se convencionou em chamar “boom” da literatura
latino-americana me parece um formidável apoio à causa presente e
futura do socialismo [...] Finalmente, o que é o boom a não ser a
mais extraordinária tomada de consciência por parte do povo latino-
americano de uma parte de sua própria identidade?7 (AYÉN, 2014,
p. 229 - 230, tradução minha)
7
“eso que tan mal se ha dado en llamar el “boom” de la literatura latinoamericana me parece un formidable
apoyo a la causa presente y futura del socialismo [...] Finalmente, ¿qué es el boom sino la más extraordinaria
toma de conciencia por parte del pueblo latinoamericano de una parte de su propia identidad?” (AYÉN, 2014, p.
229 - 230, tradução minha).
21
No pequeno grupo de autores pertencentes ao movimento é justamente seus nomes e
seus reconhecimentos que se dimensionam como um dos fatores de maior divergência, de
modo que se observa a dificuldade em colocar com exatidão os intelectuais precursores desse
momento. Segundo Ayén (2014), Carlos Fuentes (México, 1928 – 2012) é considerado um
dos promotores do boom por ter iniciado o contato com outros escritores, através de cartas
que trocavam entre si como forma de cooperação mútua. Gabriel García Márquez (Colômbia,
1927 – 2014) foi um dos escritores mais famosos, pois sua publicação de Cem anos de
solidão (1967) teve uma repercussão massiva, divulgando-o mundialmente e tornando-se
bestseller nos Estados Unidos, por exemplo. Mario Vargas Llosa (Peru, 1936), um dos
precursores do movimento, afirmava que as editoras estabeleciam um acordo financeiro
abusivo para os autores, mas que eles não se fixavam nisto, e sim na riqueza cultural gerada
por essa visibilidade.
Para ele, estavam “todos seguros de que a cultura ia ser uma ferramenta fundamental
das mudanças, o grande instrumento para a transformação dessa sociedade em uma mais livre
e mais justa.”8 (AYÉN, 2014, p. 59). Por fim, temos a presença de Julio Cortázar (Argentina,
1914 – 1984), para ele o boom apenas estabelecia relações entre os autores por
compartilharem o mesmo ambiente de instabilidade no campo político-social que resultaria
numa transformação econômica em boa parte da América latina.
Embora o movimento não possa ser definido com exatidão, e, ainda quena
contemporaneidade gere polaridades no campo da crítica literária, esse foi um fenômeno de
autoafirmação da identidade literária latino-americana. O boom possibilitou a integração ou
intercâmbio entre escritores no âmbito da literatura mundial, tirando-os da condição de
isolamento em seus países. Finalmente, vozes latinas poderiam ser ouvidas.
8
“estábamos todos seguros de que la cultura iba a ser una herramienta fundamental de los cambios, el gran
instrumento para la transformación de esa sociedad en una más libre y más justa”. (AYÉN, 2014, p. 59)
22
busca de uma linguagem artística que compreenda os interstícios da realidade, nos quais a
representação literária não procura somente incorporar o fantástico ou o insólito, mas revelar
que estes também são parte integrante do real”.
A tendência literária propagada pelo boom era de ruptura pela estética, através dos
seguintes elementos: uma escrita não linear; múltiplas vozes narrativas; neologismos; jogos
de palavras; presença das posições políticas dos protagonistas; um forte sentimento
nacionalista; a representação de personagens latinos; e, em muitos casos, a presença de
vivências do próprio autor.
O conceito de real maravilhoso foi cunhado pelo ensaísta e romancista cubano Alejo
Carpentier (1904 – 1980) visando especificar os acontecimentos mágicos na literatura latino-
americana e diferenciando-a da fantástica. Carpentier tomava por maravilhoso o inesperado
que irrompe no cotidiano e pode ser visualizado em tudo que se destaca do “comum”. Para o
crítico, o realismo maravilhoso
9
Irlemar Chiampi é professora titular de literatura hispano-americana da USP e professora da pós-graduação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
24
O boom foi um momento na história que fomentou a visibilidade de escritores com
objetivos em comum, pertencentes ao mesmo lugar de fala, que utilizavam gêneros de escrita
literária semelhantes. Os contextos político, social, artístico e cultural exigiam uma nova
literatura latino-americana que divulgasse a realidade do continente. E, ainda que alguns
historiadores não legitimem o boom ,enquanto movimento literário, não foi um evento
qualquer, mas um conjunto formado por um elo capaz de ligar-se a tudo e no qual tudo se
misturava.
Para Ayén (2014, p.7, tradução minha), crítico do movimento, “foi o que de mais
importante aconteceu à literatura em língua espanhola do século XX e transformou nossa
sensibilidade em algo mais rico e profundo”10. O resultado das questões supracitadas é a
valorização da literatura de Língua Espanhola e, com ela, da cultura e da história dos 18
países hispano-falantes da América Latina.
Em entrevista a Soler Serrano, Cortázar afirmou que o boom foi simplesmente uma
questão de sorte e não concorda que o mercado editorial o tenha encomendado. Para ele, um
fenômeno latino-americano não deveria carregar etimologia de uma palavra inglesa. O
escritor declarou que o início de sua produção ficcional se deu enquanto atravessava
momentos de solidão e dificuldades financeiras. Segundo ele, apenas quando começou a ficar
conhecido – a partir do momento em que seus livros eram lidos e comentados –, é que as
editoras passaram a procurá-lo, assim como aos demais autores do movimento. Para o autor, o
grande feito deste momento de visibilidade para a arte foi sua literatura poder ser lida por seus
compatriotas, já que até então, liam majoritariamente livros e autores europeus, como Jorge
Luis Borges.
10
“Fue lo más importante que le sucedió a la literatura en español del siglo XX y transformó nuestra
sensibilidad en algo más rico y profundo.” (AYEN, 2014, p. 7)
25
se emaranhavam e viravam os olhares da Europa para a América Latina: o êxito da revolução
cubana em 1959 seguido da propagação da literatura hispano-americana, talvez pelo interesse
europeu em conhecer mais sobre o continente que planejou e executou uma revolução em
meio ao regime de ditaduras.
Com a saída de Batista do país a revolução recebia cada vez mais tons socialistas. Tal
movimentação levou à desapropriação de empresas e indústrias. Por outro lado, o governo
norte-americano criava sanções econômicas ao modelo político vigente. Mesmo assim, os
avanços foram significativos:
11
Informações do site oficial da fundação “Casa de las Américas” onde não há menção do autor.
26
Entende-se, então, o intenso caráter publicitário e o interesse comercial do momento. Assim, o
boom fortaleceu os laços entre os países da América Latina. Porém, é indiscutível a questão
política que envolve a revolução na literatura trazida pelo movimento. As proposições de
Vargas Llosa a seguir ratificam esta visão:
12
“Lo que se llama boom y que nadie sabe exactamente qué es- yo particularmente no lo sé – es un conjunto de
escritores, tampoco se sabe exactamente quiénes, pues cada uno tiene su propia lista, que adquirieron de manera
más o menos simultánea en el tiempo, cierta difusión, cierto reconocimiento por parte del público y de la crítica.
Esto puede llamarse, tal vez, accidente histórico. Ahora bien, no se trató en ningún momento, de un movimiento
literario vinculado por un ideario estético, político o moral.” (LLOSA, 1982 apud RAMA, 1983, p. 242)
27
termos, as consequências abrolhadas daquela conjuntura propiciaram a elevação da ideia de
nacionalismo e, ao mesmo tempo, o sentido de pertencimento dos países da América Latina.
28
a carne humana para incorporar as qualidades, a audácia e a coragem do guerreiro derrotado.
A antropofagia cultural postula que a arte deve ser uma construção produzida pelas vivências
e observações do artista. Deste modo, o processo criativo se dá através da negação dos
padrões vigentes, mas utilizando-os como referência para, por fim, conquistar uma arte
genuinamente autêntica. Isto é, não existe uma arte “pura”, pois ela reflete todo o repertório
do artista, aquilo que ele absorve do outro e do mundo.
A teoria postulada por Oswald de Andrade (1928) anuncia que a arte é uma
manifestação plural e abarca as vivências e referências do artista. Assim sendo, o símbolo da
teoria posta por Oswald é o índio Abaporu (1928) (tela pintada por sua então esposa, Tarsila
do Amaral, que o presenteou em seu aniversário e marca o período antropofágico da arte
modernista brasileira) e se relaciona com o monstro de muitas patas de Cortázar, pois ambos
se valem e destroem aquilo que está ao seu redor para criar o novo.
Em 1924, André Breton divulgou o Manifesto Surrealista postulando que a arte deveria
ser uma expressão livre e desprendida de regras estéticas, de modo a exprimir aquilo que
floresce do inconsciente do artista. Como as demais vanguardas europeias, esta buscava a
ruptura com a estética vigente com uma singularidade: centrar-se na autonomia da mente.
Deste modo, o inconsciente é a verdade.
Tomando por base o surrealismo proposto por Breton, Cortázar enuncia que o poético
não imita a realidade, mas a realidade inclui o poético, pois esta também é composta por
sonhos, pela magia, pelo extraordinário. Assim, o elemento “mágico” integra a composição da
realidade. Para Saúl Yurkievich, crítico e autor do prólogo da Obra Crítica – Vol. 1 (1998), a
influência do surrealismo na produção romanesca é fruto de “intervenção do acaso, o
premonitório, as coincidências extraordinárias, o devaneio onírico, o mágico, a aproximação
ao fantástico — componentes surrealistas — infundem ao relato (...) as requeridas dimensões
poéticas.” E, com isto, conseguem ampliar o “alcance do romance” enquanto “liberam outras
chaves de acesso à realidade”. (YURKIEVICH, 1998, p.12)
No texto de 1947, Julio Cortázar divulgou seu projeto teórico almejando criar um outro
rumo para a produção romanesca, desprendendo-se de determinações estéticas da literatura. A
teoria do túnel é, pois, a ruptura das poéticas já consagradas, através de uma destruição para a
reconstrução que visa a renovação da literatura, representado pelo enfrentamento ante os
padrões previamente estabelecidos para a arte.
Cortázar (1947, p.31) critica o ofício dos escritores que não aliam as suas trajetórias
acadêmicas e pessoais à luta política, se concentrando apenas na linguagem e nos aspectos
estéticos, não fortalecendo a autonomia da linguagem. Ele afirma que “no momento da
divisão de águas há grupos que se incorporam ao caminho literário por razões que não
emanam da vocação, e sim da conveniência instrumental”.
Escritores que buscam apenas a autorrealização para nutrir a vaidade própria, mas
que se encontram à margem de “qualquer realização estética ou com a realização estética, e a
expressão de ordem literária lhes resulta mais imediata e mais cômoda.” Segundo ele, a
ocupação de tais escritores no espaço literário consiste numa operação chamada “cavalo de
Tróia”, na qual alguns sujeitos fingem ser engajados com a literatura e adentram “na fortaleza
literária”, porém, por serem descomprometidos, são capazes apenas de destruir o espaço onde
circulam.
Importante salientar o que foi dito anteriormente e relacionar aos apontamentos feitos
por Michel Foucault (2011) sobre a ordem do discurso. A produção intelectual de Cortázar
não deixa de agregar os princípios e regras internas do discurso. Acima de tudo, o que está em
jogo em suas obras é a disputa pelo poder na produção literária e no enfrentamento político de
sua época. Nesse sentido, retornemos a Foucault (2011, p. 8) que explicita o seguinte
pensamento: “Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos”.
Ao relacionar o seu projeto literário, divulgado em 1947, com a análise das suas
32
produções ficcionais, é possível vislumbrar que a poética cortazariana é precedida de uma
pedagógica teoria. Cabe salientar que Cortázar escrevia, simultaneamente, textos literários e
críticos, e para o seu leitor “cúmplice”, uma leitura suplementa a outra, pois nos textos
críticos ele explicita “as concepções e os valores que regem a gênese da sua poética.”
(SOSNOWSKI, 1995, p.6). Deste modo, a conexão entre suas diversas práticas de escrita cria
um ambiente híbrido através de uma suplementação na qual o romance se dimensiona como
um “excipiente açucarado para ajudar a engolir o material extraliterário” (YURKIEVICH,
1998, p. 15) e, desta forma, um texto torna-se indispensável ao outro.
Uma vez que Cortázar (1947, p.43) afirmava não existir linguagem romanesca pura, e,
portanto, romance puro. Para ele, o romance é um monstro desses “que o homem aceita,
alenta, mantém ao seu lado; mistura de heterogeneidades”. Isto é, o gênero é uma expressão
capaz de comportar distintas linguagens, como a “científica, nominativa, com a qual se
alterna, imbricando-se inextricavelmente, uma linguagem poética, simbólica, produto
intuitivo em que a palavra, a frase, a pausa e o silêncio transcendem a sua significação
idiomática”. (CORTÁZAR, 1947, p.43) Deste modo, ambos os teóricos enxergam esse gênero
literário como um terreno fértil para o autor, capaz de incorporar em si infinitos temas através
de uma pluralidade de formas.
E assim, buscando fazer do leitor seu companheiro de bordo, Cortázar explicita seu
projeto intelectual, para que seu leitor “cúmplice” o acompanhe durante a viagem. Deste
34
modo, o autor faz uso de uma das funções da literatura ao tornar seus objetivos evidentes no
Jogo de amarelinha. Cortázar almeja que seu leitor seja astuto para entender, além da
narrativa, todo o processo de criação literária e, com isto, ser capaz de reconhecer o
comprometimento, ou não, dos autores lidos.
Pensando os aspectos de sua escrita, acima mencionados, pode-se afirmar que Julio
Cortázar foi um escritor múltiplo. Para pensar a multiplicidade recorreremos à etimologia da
palavra “múltiplo”, do latim “multiplus”, um adjetivo cujo significado é composto, diverso,
plural, ou seja, integrado por muitos elementos. Assim, esse sujeito é capaz de exprimir várias
maneiras de ser. Na produção escrita cortazariana, a multiplicidade se desdobra em
ramificações que estabelecem ligações entre os diferentes campos de atuação do autor podem
ser infinitas. Desse modo, cada atividade dele se conecta a outra e se constitui justamente
nessa relação de suplementação.
Dimensionar o projeto intelectual de Julio Cortázar é uma tarefa que requer, sobretudo,
o reconhecimento de suas caminhadas pelos múltiplos cenários do conhecimento. Escrevendo
desde a infância até a sua morte, no ano de 1984, Cortázar configura-se na atualidade como
um autor contemporâneo, pois, na década de 1960, já transitava pelos distintos espaços do
saber. Sendo assim, é importante pensar a trajetória de Cortázar e toda a sua produção crítico-
literária como um mapa, ou melhor, dentro da noção de cartografia. Partir de suas obras é
reconhecer as variantes que ali proliferam, isto é, as teias da política, da cultura e da
sociedade, além de sua multiplicidade enquanto sujeito escritor, crítico, professor, teórico e
tradutor. São situações que se conectam e desconectam constantemente:
Para Agamben (2013, p. 59), o sujeito contemporâneo, pelo anacronismo, por não
estar de acordo com sua época “é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu
tempo.” Deste modo, cabe aqui deslocar Cortázar da década de 1960 e trazê-lo à atualidade,
uma vez que ele já apresentava traços da escrita contemporânea:
Embora o seu período de maior atuação tenha sido entre as décadas de 1950 e 1980, o
aspecto contemporâneo já se fazia presente em sua escrita, visto que os saberes, as atuações,
as reflexões, as leituras e as migrações ainda são pertinentes na atualidade. As suas travessias
nos diferentes campos do conhecimento revelam os caminhos de um escritor múltiplo que o
leitor crítico atual ainda tem muito para conhecer.
não é nem cá, nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser
inventado pelo leitor. É capital, em tudo que penso, o leitor como
um manipulador de objetos. E esse leitor é que fica “entre”, entre o
canônico e a cópia. Esse leitor, portanto, é capaz de ler e interpretar
o que é a transgressão. Sem essa leitura da transgressão, ou bem nós
fazemos alguma coisa que achamos que é original, mas no fundo
não o é, ou a gente faz cópia-cópia, e acredita estar dando uma
grande contribuição. (SANTIAGO, 2010, p.7)
Dito isto, cabe agora apresentar a literatura anfíbia: a que habita o entrelugar. Segundo
Evelina Hoisel, em seu ensaio Escritores anfíbios: ficções críticas (2019, p.73), o conceito de
anfíbio – aquele que vive tanto na água como na terra – na literatura é uma contaminação
entre arte e política. O termo referido por Hoisel, cunhado por Silviano Santiago, faz
referência ao caráter híbrido, ambivalente, de escritores brasileiros do século XX. Portanto, a
prática exercida pelo artista que não se distancia de sua atuação política.
Valendo-se dessa definição, Hoisel trata por “anfíbio” não somente a relação entre arte
e política, mas também a
37
textos da tradição literária.
Ademais, o escritor múltiplo transpõe barreiras entre ficção e crítica, produzindo uma
ficção-crítica, que abarca outras vivências, como seu discurso docente, por exemplo. Na
produção ficcional o autor se vale da veia estética, enquanto explicita questões políticas na
literatura.
Nesse viés, Diário de Andrés Fava (1950) mantém o enredo com apenas um
personagem e sua vida dialoga com a biografia do escritor em diversos aspectos. No romance,
Andrés compartilha com Cortázar data e local de nascimento, leituras, gosto pelo jazz,
profissão, além de traços da personalidade. O livro revela duas ocupações primárias do
narrador e do autor: ambos são professor e escritor.
Michel Foucault, em A escrita de si (1992), faz uma reflexão sobre práticas de escrita
fazendo um percurso teórico e histórico, retornando até a antiguidade clássica. Foucault
defende o seu método como ferramenta para “um adestramento de si por si mesmo” através da
subjetivação. Tal procedimento tem uma função transformadora no indivíduo, fomentando o
autocuidado e autoconhecimento.
38
pensadas; ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e
à meditação ulterior. (FOUCAULT, 1992, p. 131)
Para Foucault (1992, p. 132), a prática de si requer leitura, pois é impossível “tudo
tirar do fundo de si próprio”, então a leitura e a escrita caminham lado a lado. Na obra de
1950 está evidenciado que é o diário de um intelectual e oferece ao leitor-cúmplice, que
possui conhecimentos prévios sejam eles teóricos e/ou literários, a possibilidade de
desemaranhar a teia de conexões nele evocadas, pois trata-se de um livro repleto de alusões a
obras canônicas de autores como Rimbaud, Sartre e Mallarmé, por exemplo. Cortázar
apresenta suas leituras pessoais no corpo do texto literário e podemos relacionar tal feito com
as reflexões de Foucault que explicita de forma pedagógica essa prática de escrita, ao afirmar
13
Entendemos o duplo como uma maneira de repartição de um “eu” que seria o original ou a matriz. Deste “eu”
que detém a essência e o conhecimento, forma-se outro “eu” que o imita através de uma duplicação.
39
que o autor
ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez a sua
respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em
forças e em sangue”. Ela transforma-se, no próprio escritor, num
princípio de ação racional. Em contrapartida, porém o escritor
constitui a sua própria identidade mediante essa recolecção das
coisas ditas. (FOUCAULT, 1992, p, 133-134)
Como já foi mencionado, Diário de Andrés Fava (1950) não se restringe a escrever
fatos cotidianos, mas busca refletir as impressões do narrador e suas leituras de mundo. Não
existem datas, tampouco podemos sugerir que se trata de uma escrita cronológica – como
tradicionalmente seria num diário –, pois ela é feita em pequenos textos, observações,
diálogos, citações e pensamentos soltos do personagem.
Essa característica de estilo não linear de Cortázar está presente em diversas obras,
podendo ser considerada como um elemento de identidade do autor, sendo notada por vários
críticos que se debruçaram para análise e entendimento de sua produção. No livro O Jogo da
amarelinha (1963), esse mecanismo foi utilizado e percebido por Neiva Kadota:
Assim, mergulhar no texto ficcional de O jogo da amarelinha é
acompanhar a reinvenção da literatura pela extinção da linearidade,
pela unificação dos opostos, pela reunião de fragmentos na busca de
um centro, e também pela simbologia existente nos nomes das
personagens e de lugares, assim como de situações, intensificando
ainda mais os mistérios ali inscritos à espera de serem descobertos
por um leitor que com ele queira jogar. (KADORA, 2006, p. 35)
O objetivo do livro para Manuel é mostrar a “verdade” para ele, e ajudá-lo em sua
formação crítica e humanística. Andrés Fava é um dos narradores da trama e o único sensível
para colocar desenhos e frases divertidas entre as reportagens sobre o regime militar,
pensando na saúde mental e na descontração do garoto Manuel durante a leitura. Desde o
prólogo, Cortázar revela a urgência de publicar este livro no período em que colhia e
colecionava as notícias, para que fosse contemporâneo aos seus leitores.
40
Julio Cortázar fala através de Andrés Fava. O autor registra em ambas as obras o
desejo da construção de um mundo melhor. Na obra de 1950, por meio de reflexões,
metáforas e frases de incentivo; no romance de 1973, ele presenteia o leitor com um livro
dentro do próprio livro, buscando ensinar e desenvolver a criticidade do seu destinatário (que
pode, sim, ser o bebê Manuel, mas que também somos nós, leitores). Deste modo, é possível
vislumbrar a voz do próprio Cortázar nos discursos do seu personagem, algo recorrente em
sua produção literária. Sendo assim, conforme afirma o crítico Davi Arrigucci (1995, p. 103):
(...) o desdobramento no autor-sósia, de que o melhor exemplo, na
obra cortazariana, é Morelli, personificação literária da cisão no
nível da consciência criadora, se vincula diretamente a essa relação
problemática entre a linguagem e a realidade. O próprio Cortázar
admite a presença da dicotomia no miolo de sua obra.
Cortázar não se vale da autoficcionalização apenas como recurso para eternizar suas
vivências através dos seus personagens, ele o faz de forma espontânea, por compartilhar dos
engajamentos naturais do poeta-crítico.
Pode-se interpretar, por outro lado, essa relação dual de Cortázar não apenas por meio
de um estilo, mas como um método que visava emaranhar vida e ficção e assim, a escrita
alcança os dois níveis, indissociavelmente, o real e o ficcional. Foucault (2011, p. 18), mais
uma vez, alertou sobre isso: “Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar
apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em
suma, no discurso verdadeiro”. É partindo dessa perspectiva analítica que a obra literária se
abre para o desejo imediato de dizer o verdadeiro, ainda que sejam verdades parciais ou
contextuais e sempre provisórias.
No entanto, não é somente a vida cotidiana de Cortázar que aparece em seus enredos
literários. O escritor recorreu constantemente aos noticiários de seu tempo para elaborar suas
abordagens, a exemplo de O livro de Manuel (1973), que escreveu enquanto colecionava
notícias sobre a América, enviadas a ele duas vezes por semana. Cortázar queria dividir suas
impressões sobre os acontecimentos na América Latina com os seus cúmplices: seus leitores.
41
Ricardo Piglia (1996, p.47) discorre sobre o tipo de relação estabelecida entre a prática
de literatura e a reflexão acerca dela mesma. Para o crítico argentino, o escritor enquanto
crítico não se fixa em um local de fala, visto que “um escritor é também um crítico, um
escritor é também um estudante, um escritor é também um professor.” Inclusive, Piglia
defende que os autores são por natureza pedagogos, afinal, o professor tem como ofício
primário a prática de ensino e todo escritor tem muito a ensinar.
O poeta-crítico é uma figura que busca imprimir sua marca pessoal e ser reconhecido
pela sua linguagem. Segundo Piglia (1996, p.51), a tentativa de transformar a linguagem em
um bem pessoal se dá de forma ilusória, visto toda produção literária pertencer a todos, ou
seja, “a palavra é coletiva e anônima.” Isto é, enquanto base para o campo criativo, as leituras
do intelectual direcionam sua escritura; o autor configura-se como um transcriador e
decodificador dos textos que o afetam enquanto leitor.
Em 1944, o também argentino Jorge Luis Borges lançou o conto Pierre Ménard, autor
do Quixote. A história traz à memória um ficcionista francês do século XX. Após apresentar a
42
biografia do escritor burguês, Borges, através do personagem por ele inventado, deleita-se no
trabalho de, além da tradução ou revisão, reescrever linha por linha parte do Dom Quixote, de
Miguel de Cervantes – obra do século XVII. Segundo Byron Oswaldo Vélez Escallón14
(2017, p.2), Pierre Ménard revela uma mistura de vaidade e cobiça ao afirmar que: “A visão
de um livro de outro autor me resulta insuportável. Não posso ver sem náusea essas
acumulações de obras que ocultam as minhas – as que eu teria podido escrever, as que ainda
não escrevi, as que nunca escreverei.”
É frequente o uso da figura de Pierre Ménard para discutir autoria, plágio e releituras.
Especificamente na literatura argentina. Piglia (1996, p.52) afirma que essa tradição se forma
“no vazio do deserto”, tendo “a forma de uma tradução”. Assim, tal literatura vislumbra o que
quer ser e torna-se. Piglia (1996, p.53) traz como exemplo o último relato de Borges, “O
escritor argentino e a tradição”, de 1957, no qual um homem recebe a memória de
Shakespeare e retorna à vida na tarde em que escreveu o segundo ato de Hamlet. No referido
texto, Borges defende que é arbitrária a função atribuída à literatura de estabelecer,
obrigatoriamente, uma relação com o país que a produz. O que se evidencia quando, ao citar
Shakespeare, diz que este se assombraria se “houvessem pretendido limitá-lo a temas
ingleses, e se lhe houvessem dito que, como inglês, não tinha o direito de escrever Hamlet, de
temática escandinava, ou Macbeth, de temática escocesa” (1957, p.3).
Piglia (1996, p.53), embasado no exemplo borgiano, coloca que viver com lembranças
alheias é uma variante do tema do duplo, porém também é uma analogia sobre os usos da
tradição. Assim sendo, é possível relacionar as conjecturas de Piglia com o signo que
14
Professor de Literatura hispano-americana na Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Literatura
pela Universidade Federal de Santa Catarina e Profissional em Estudos Literários pela Universidad Nacional de
Colombia.
43
representa Andrés Fava nas obras cortazarianas. Vejamos:
A memória tem uma estrutura de citação, é uma citação que não tem
fim, uma frase que se escreve em nome de outrem e que não se pode
esquecer. Manejar uma memória impessoal, relembrar as lembranças
de um outro. Essa parece ser uma excelente metáfora da cultura
moderna. (PIGLIA, 1996, p.53)
No próximo capítulo, a incursão se dará por meio de cada uma das atividades
exercidas por Julio Cortázar. As análises estarão focadas no Cortázar múltiplo, ou seja, o
escritor/militante, o tradutor e o professor. Papéis que se cruzam e se conectam em suas obras,
principalmente em O livro de Manuel e Diário de Andrés Fava.
44
3. PAPÉIS ESPERADOS: O CARÁTER MÚLTIPLO DO PERSONAGEM
ANDRÉS FAVA
O livro de Manuel (1973), último romance publicado por Julio Cortázar, aborda, na
sua poética, determinados aspectos que, segundo os críticos, o configuram como uma obra
política. O enredo se desenvolve, dentre outros fatos secundários, através da produção
colaborativa de um livro, composto por recortes de notícias sobre as violências enfrentadas
por ativistas na América Latina, durante as ditaduras militares.
Para discorrer sobre a função do fantástico, Todorov cita Penzoldt (1975, p. 167),
concordando que: “para muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para
descrever coisas que não teriam nunca ousado mencionar em termos realistas”. Com
referência aos temas levantados na literatura fantástica, afirma: “tem-se a impressão de ler
uma lista de temas proibidos, estabelecida por alguma censura: cada um destes temas foi, de
fato, muitas vezes, proibido, e pode sê-lo ainda hoje”.
Considero que a literatura tem o aval para sugerir formas alternativas de conhecer o
mundo, através da reprodução de distintos pensamentos, palavras e experiências (HUNT,
2001, p. 158). Deste modo, cabe explicitar o distanciamento entre o fantástico e o realismo
maravilhoso, onde os elementos mágicos são tomados com naturalidade pelos personagens e
o estranhamento fica por conta do leitor, que se depara com coisas/situações irreais dentro de
um cenário realístico.
Para refletir teoricamente sobre esse modo de operar da elite letrada, composta por
intelectuais como Cortázar, no sentido de construir uma nova tradição na América Latina, os
postulados de Eric Hobsbawm são fundamentais. O renomado historiador considerou o século
XX como o mais propício para a proliferação de tradições inventadas, consequência das
transformações políticas, principalmente aquelas que se referiam à nacionalidade. Em sua
definição, diz que:
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
(HOBSBAWM, 1997, p.9)
O recurso à história foi a principal “arma” desses atores sociais, pois precisavam
inventar uma tradição por meio de um passado remoto que desse substância, forma e sentido
ao presente. Ou seja, o termo “invenção” não agrega elementos de falsificação de um passado.
A invenção com a qual estamos lidando aciona práticas e discursos enquanto justificativa de
um novo modelo. Todavia, em muitos casos, aquilo que se enquadra como uma nova tradição,
na realidade, possui vastíssimos elementos de um passado antigo. É necessário estar atento a
47
esse indicador, como afirma Hobsbawm:
O movimento literário ergue-se, então, como uma forma de resistência, fazendo o uso
do elemento mágico para driblar a censura – tônica comum a tais governos. Tavares admite
que “o fantástico surge quando algo se rompe e começam a acontecer coisas que não podiam
ter acontecido, no sentido de que não podíamos ter permitido que acontecessem de forma
alguma” (2003, p. 13), e tal pensamento converge diretamente com o sentimento da
resistência à instalação das ditaduras e todo o seu cenário de violência e terror no território
latino-americano. O realismo mágico é, pois, um caminho possível para representar ideias
48
contrárias aos regimes marcados pelo horror e vencer obstáculos como a censura.
Por outro lado, as inovações propostas pelo realismo mágico numa nova tradição
literária não impediram a manutenção de elementos conservadores e imperialistas, a exemplo
da língua. A intelligentsia não se apropriou de raízes linguísticas indígenas nessa invenção da
tradição da Literatura da América Latina, sendo que esse enorme território possui milhares de
ramos linguísticos distintos que serviriam como instrumento de combate na construção de
valores anti-imperialistas. O espanhol permanece como centro e herança na nova tradição
desses intelectuais.
Tais aspectos relacionam-se com O livro de Manuel (1973). Nessa obra, alguns dos
fatos que geram hesitação estão presentes, a exemplo de um dos narradores não ter, sequer, o
nome revelado e ser chamado apenas de “aquele de quem lhe falei”. E a ideia de separar as
notícias de segundas e/ou de quintas, lidas enquanto escrevia o livro, e colocá-las na trama,
fazendo os personagens lerem e refletirem sobre o tema e escreverem um livro dentro do
próprio livro, o que somente o reforça enquanto força histórica. (DARNTON, 2010, p. 190)
Ora o narrador é onisciente, ora é “aquele de quem lhe falei”, ora é Andrés Fava – um
argentino refugiado em Paris que apresenta diversas características do personagem do
romance de 1950. Nesta obra, a criança (Manuel) é símbolo de esperança para o grupo e
também para a humanidade. Trata-se de um ser que, após conhecer a verdade, através do livro
a ele dedicado, será capaz de desenvolver a criticidade e isso, supostamente, o tornará uma
pessoa melhor, como é possível observar no trecho seguinte:
Como para que Manuel aprenda a defender-se já de pequeno contra
a lida publicitária que facilita outras lidas telecomandadas, etecétera,
e estão em que se o recorte se cola ou não se cola quando Patricio
tira outro papel e o passa para Susana com uma piscada para aquele
de quem lhe falei. (...) Manuel o agradecerá algum dia, pode ter
certeza. (CORTÁZAR, 1973, p. 349)
A ideia proposta na ação de inventar um livro para Manuel e, através desta criação,
49
conseguir revolucionar o próprio mundo corresponde à crença de que a literatura é um dos
caminhos que viabilizam uma revolução para além dos livros; uma transformação na
humanidade. Por isso, nos escritos, não raro localizamos elementos que se apresentam como
questionamentos existenciais e denúncias sociais. (MORELLIANAS, 2010)
As notícias selecionadas pelo grupo visam nortear o ponto de vista do bebê, para que,
no futuro, ele seja capaz de questionar o sistema vigente, a informação como lhe é oferecida e
até mesmo a própria realidade. Dessa forma, “(...) estende-se às possibilidades de se
reescrever a história e reconstruir seres humanos. Todas as revoluções sociais (...) visam
descentralizar ou desconstruir as estruturas dominantes, os significados e os valores
canonizados”. (MOREIRA, 2017, p. 57)
É possível conceber que o “livro” feito para o personagem Manuel é feito antes para o
próprio leitor, pois é para este último que o autor preparou o texto e é a ele que deseja auxiliar
no processo de construção da criticidade. Pode-se dizer que o grupo cria um manual para
auxiliar o “novo” homem, aquele que terá a seu favor o futuro e, com isso, novas e infinitas
possibilidades de escolhas, mas que, ainda assim, se manterá conectado à realidade vivenciada
pelos seus antepassados, através do registro e da perpetuação da memória coletiva, capaz de
reavivar feridas na história da América Latina.
O segundo, pela tentativa de apontar um novo caminho para a América Latina, como
podemos observar a seguir: “durante anos escrevi textos vinculados a problemas latino-
americanos, romances e relatos em que esses problemas estavam ausentes (...) hoje e aqui as
águas se juntaram” (CORTÁZAR, 1973, p. 7). Cortázar acredita ser o socialismo uma
possível solução para o continente, como se pode confirmar em:
Andrés, que, durante o enredo, une-se à Joda, é escritor e está ocupado na escrita de
seu próprio livro; entretanto, participa da confecção da cartilha para Manuel. Ele cuida,
alimenta, troca, banha e compreende até a fala do bebê. Zelando também pela integridade
emocional do pequeno, Andrés relata, no final do romance, que, se aproveitando de alguns
51
descuidos da mãe da criança, colocou “uma quantidade de desenhos divertidos e notícias
muito pouco sérias” (CORTÁZAR, 1984, p. 427). A relação entre os dois é observada pelo
grupo com admiração, devido às diversas brincadeiras, cuidados, anseios, ensinamentos que
proporcionam grande satisfação para ambos.
É possível observar que a revolução almejada por Cortázar alcança o corpo do texto, a
partir de uma escrita experimental, ou seja, de uma estrutura narrativa apresentada em
capítulos independentes, da inclusão de notícias jornalísticas, como uma colagem. “Há um
tempo considerável, se deve ao romance o desejo ou a insatisfação das pessoas com as vidas
que possuem e, assim, buscam por algo novo – seja isso a vida em outra cidade, um novo
amor ou a revolução”. (CULLER, 1999, p. 45)
3.1 O PROFESSOR
A articulação entre escrita e experiência (de vida) é pertinente e necessária, pois sem o
sujeito que vive e passa pela experiência “(...) não haveria o que escrever, e sem a escrita a
experiência não faria sentido”. (KEHL, 2001, p. 79)
52
faremos, então, um breve retorno aos pontos mais significativos de sua vida enquanto discente
e docente para tentar decifrar o educador através das pistas deixadas no seu texto literário.
Ainda adolescente, aos quatorze anos, Cortázar ingressou na Escola Normal para
Professores Mariano Acosta, habilitando-se para o magistério e atuando posteriormente nesta
mesma instituição. Aos vinte e um anos, em 1935, formou-se como Professor de Letras e
iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que não conseguiu concluir devido à
necessidade de trabalhar para ajudar a mãe, que fora deixada pelo seu pai anos antes. Embora
não tendo terminado o curso universitário, em 1944, aos trinta anos, foi, ironicamente,
convidado à cátedra de Literatura Francesa na Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza,
na Argentina.
15
“[…]significa construir, en el espíritu y la inteligencia del niño, el panorama cultural necesario para capacitar
su ser en el nivel social contemporáneo y, a la vez, estimular todo lo que en el alma infantil haya de bello, de
bueno, de aspiración a la total realización. Doble tarea, pues: la de instruir, educar, y la de dar alas a los anhelos
que existen, embrionarios, en toda conciencia naciente. El maestro se tiende hacia la inteligencia, hacia el
53
No ambiente pedagógico se entrecruzam o ato de escrever e a figura do escritor.
Walter Benjamin (1996, p. 132), em seu texto O autor como produtor, enquadra a tendência
da escrita como sendo algo necessário para organizar funcionalmente uma obra, um escrito.
Trata-se de algo de caráter prescritivo e didático por parte do autor, no qual o contexto de
ensino e escrita podem se fundir; ou seja, “um escritor que não ensina outros escritores não
ensina ninguém”. Em certa medida, a escrita por si, já é (ou deveria ser) uma atuação
pedagógica. Afinal, quem escreve visa compartilhar, convencer, ensinar, propagar uma
ideia… Enquanto do outro lado da ponte, o leitor encontra no (bom) livro, pelo menos, algum
ensinamento.
Nosso repertório enquanto leitores é formado por uma série de textos que,
alimentam/auxiliam a formação intelectual. Assim sendo, o autor escreve e, através da leitura,
aprendemos. Benjamin aponta para o distanciamento entre o autor, aquele que produz e
inspira outros produtores com seu engajamento, e os escritores rotineiros que, por sua vez,
mantêm-se apenas como um mecanismo de reprodução.
A distinção entre perfis de “escritores” feita por Benjamin ainda se relaciona com o
pensamento cortazariano que separa os autores em dois grupos: vocacionais e
“aproveitadores”. Em sua Obra crítica (1998), especificamente no texto “Vocação e
Recurso”, Cortázar aponta que o autor vocacional é comprometido com a língua, valoriza-a
por oferecer-lhe um instrumento capaz de atravessar a ponte autor-texto-leitor através de uma
expressão eficaz. Tal postura valora o “fundo e a forma”, ou seja, o conteúdo e a estética do
texto, entendendo sua relação como uma suplementação.
A trajetória literária e o fazer literário “(...) pode ser tanto uma questão daquilo que as
espíritu y, finalmente, hacia la esencia moral que reposa en el ser humano.” (CORTÁZAR, 2009)
54
pessoas fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas” (EAGLETON,
2003, p. 9). Julio Cortázar transmitiu seu legado, fazendo um cruzamento entre suas múltiplas
maneiras de consolidar seus trabalhos, a cada obra, diante dos seus sucessores.
55
caso, a palavra é apresentada por meio a língua espanhola (CORTÁZAR, 1980). A escolha
pelo idioma materno revela que os laços com a Argentina não haviam sido desfeitos,
conforme destaca Charlles Campos para a revista online Sul 21:
Além da língua com variação portenha (específica do local onde fora criado), sua obra
sempre gira em torno de personagens latinos e questões inerentes ao seu continente. Cortázar
“(...) não se limitou a ser um simples escritor, mas todos os seus experimentos em outras áreas
de expressão convergiam inadvertidamente para a escrita” (CAMPOS, 2011). O seu perfil
intelectual possibilitou a presença de vários segmentos epistemológicos refletidos na sua
carreira, sobretudo, literária, em que se encontram suas mais diversas maneiras de produzir
elementos de cultura.
3.2 O ESCRITOR
56
É possível conhecer a atuação docente de Julio Cortázar através do livro Aulas de
Literatura: Berkeley (1980). Neste ano, Cortázar foi professor visitante na Universidade de
Berkeley, na Califórnia, Estados Unidos. O autor ministrou um curso de Literatura, e, além de
ensinar, pôde esclarecer eventuais dúvidas dos estudantes a respeito das próprias narrativas,
utilizando-as como exemplos nas diversas aulas. Cortázar conduziu seu curso de Literatura
em Berkeley, não mais como escritor e sim como professor; os participantes, antes seus
leitores, passaram a assumir um novo papel: tornaram-se seus alunos.
O livro de 1980 está dividido em oito lições, sendo a primeira intitulada Os caminhos
de um escritor, na qual ele descreve as etapas passadas, como: estética, metafísica e histórica.
Na primeira aula, ele assumiu que sempre apresentou a importância da literatura “como uma
das muitas formas de participar dos processos históricos que concernem a cada um em seu
país”. (CORTÁZAR, 1980, p. 23) Na sua sétima aula, “De O jogo da amarelinha, O livro de
Manuel e Fantomas contra los vampiros multinacionales”, o autor aprofundou seu
engajamento pela autonomia da linguagem, uma vez que, numa aula de Literatura pode fazê-
lo através de um discurso direto e livre de metáforas. O autor também declarou que
revolucionar é um ato “necessário em todos os campos de atuação”, como explicita o
fragmento a seguir:
Fazendo as revoluções, há que fazê-las em todos os planos (...) há
que fazê-las, sim, nos fatos, na realidade exterior; mas também há
que fazê-las na estrutura mental das pessoas que vão viver essa
revolução e que vão aproveitá-la. Se nos descuidamos, a linguagem
é uma das gaiolas mais terríveis que estão sempre nos esperando.
(CORTÁZAR, 1980, p. 237-238)
Ao referir-se às pessoas que viverão a revolução, o autor revelou outra de suas pautas
no que tange às críticas políticas: o leitor que ele classifica como “passivo” ou “cúmplice”. A
renovação da linguagem em sua produção literária é uma maneira de alcançar seu leitor,
“destinatário que está do outro lado da ponte” (CORTÁZAR, 1980, p. 239). Declarou ainda
que sua intenção com a escrita de O jogo da amarelinha (1962) foi eliminar toda passividade
na leitura, colocando o leitor numa intervenção contínua. A forma de inserir o leitor no
processo de participação ativa e continuada caracteriza-se como uma ação pedagógica
iniciada em 1950, ao publicar o Diário de Andrés Fava, até O livro de Manuel, em 1973.
57
necessidades do alunado – característica singular de um professor crítico: pensar no que é
necessário à formação do discente e mais, naquilo que mantém aceso o interesse dos alunos.
No curso que o professor Cortázar ministrou nos Estados Unidos, entre outubro e
novembro de 1980, os alunos puderam interagir com total liberdade. O livro, que se trata de
uma transcrição dos áudios de suas aulas, revela um novo Cortázar: o leitor. Nas classes são
discutidas suas leituras, conjecturas e hipóteses acerca de cânones da literatura universal. O
Cortázar de Berkeley é professor e escritor, mas é, sobretudo, um leitor, e conduz a atuação
docente em consonância com as reflexões sobre suas leituras.
O exame final (1986), embora tenha sido publicado postumamente, foi escrito em
1950, ano em que também foi escrito o Diário de Andrés Fava, um dos protagonistas da
trama. A narrativa se passa em Buenos Aires e tem como personagens um grupo de cinco
amigos. Do título, podemos realizar três inferências: um exame acadêmico que alguns
personagens irão prestar em alguns dias; o exame/diagnóstico da Argentina como sociedade e
do seu governo, liderado então por Juan Domingo Perón, e um tipo de “autoexame” capaz de
fomentar o autoconhecimento do sujeito em relação ao seu local.
O enredo se forma a partir de uma névoa que está no “ar” da capital argentina, fazendo
com que todos sejam obrigados a respirá-la. Já utilizando como viés literário o realismo
mágico, a obra enuncia reflexões pertinentes à trajetória do escritor, como, por exemplo, a
crítica ao contexto político e à forma como os grandes líderes conduzem sua atuação,
dominando a consciência crítica do seu povo. A obra consiste na organização de conversas
entre amigos, articuladas pelo autor e compiladas numa narrativa de cunho filosófico e
político.
É possível que ambos os livros, O exame final e Diário de Andrés Fava, tenham sido
escritos simultaneamente, como forma de suplementação e para registrar as impressões do
protagonista Andrés Fava que, na década de 1950, já conjugava engajamentos do seu
homônimo apresentado em 1973. Talvez as três obras elucidem e permitam traçar um perfil
biográfico de Andrés Fava relacionado com o próprio autor que, ademais das fases filosófica,
do compromisso com a literatura, reforçou suas alianças e a sua prática enquanto docente e
58
escritor, sobretudo no final de sua obra e vida.
Vale ressaltar que o diário como jaula dos monstros pode ser uma metáfora para
“cárcere dos romances”, afinal a analogia de monstro – romance está presente na sua obra
crítica. Para Cortázar (1998, p. 143), o estilo romanesco incide no duplo comprometimento do
romancista: o científico e o poético, isso indica que “não existe linguagem romanesca pura,
posto que não existe romance puro.” Ao postular a “impureza” do romance, o autor refere-se
ao gênero como um “monstro”. Tal signo é utilizado para defender que no romance cabe
“tudo”. Uma vez que o monstro engole outros seres para constituir a si mesmo, o romance é o
gênero que engloba em si outros gêneros: “um desses monstros que o homem aceita, alenta,
mantém ao seu lado; mistura de heterogeneidades, grifo transformado em animal doméstico”.
Além disto, ao tomar o signo “diário” soa dificultoso dissociá-lo de uma escrita
autobiográfica, pois, em geral, trata-se de um caderno em que uma pessoa escreve seu
cotidiano, suas vivências, seus pensamentos. E, no caso em questão, diversos acontecimentos
coincidem com a vida do próprio Cortázar, por exemplo, quando o narrador declara ter
nascido no mesmo dia e local que o autor: “Nasci no primeiro mês da Primeira Guerra, numa
cidade ocupada pelas forças Von Kluck”. (CORTÁZAR, 1950, p. 46)
Em 1947, foi publicado o Diário de Anne Frank, relatoda rotina de uma jovem judia
durante o regime nazista, que registra o dia a dia de sua família naquele período histórico.
59
Anne foi morta, mas as suas impressões, ficaram registradas em anotações e alimentam
estudos sobre o tema. Os escritos da jovem alemã permitem ao leitor conhecer um outro lado
da historiografia, através do lugar de fala de vozes que, durante o regime e no decorrer da
história, foram silenciadas. O diário da jovem configura-se, portanto, como um material
biográfico, literário e histórico de valor inestimável.
Em consonância com essa obra, podemos inferir que a escrita da cartilha para Manuel
comporta-se como um diário, pois registra acontecimentos históricos de um determinado
período, visando compartilhar o cotidiano de horror vivido pelos opositores das ditaduras,
mas, sobretudo, eternizados pelos integrantes da Joda, que buscavam resguardar a memória
para não esquecer as violências vivenciadas na América Latina, durante os regimes ditatoriais.
Assim, enquanto Cortázar narra o dia a dia do grupo, escreve um diário para o leitor;
enquanto o grupo escreve o livro para Manuel, registra um diário para o bebê.
A pluralidade da obra, que cita inclusive as leituras preferidas de Julio Cortázar, como
Eliot, Mallarmé, Gide, Blake, Borges, Sartre, Marx, Malraux e Valéry, retrata a relação do
autor como leitor, ou melhor, do autor-leitor. Neste espaço híbrido, o narrador reflete acerca
de suas leituras e revela que a sua felicidade é estar diante do seu “caderno”. Segundo Evando
Nascimento (2011), seus gostos enquanto leitor, contribuem para a formação do escritor,
afinal:
(...) a única biografia que de fato importava era a literária, composta
por pedaços de textos que, juntos, consignavam a história intelectual
privada de cada escritor. Mas essa biografia se achava inscrita e
disponível antes de tudo no tecido de sua obra, entretecida com os
múltiplos fios da cultura, exigindo uma abordagem transdisciplinar.
(NASCIMENTO, 2011, p. 03)
Cortázar17 afirma que seu conto foi escrito em 1935, quando cursava o primeiro ano de
magistério. O contexto político-social é a posse do general Augustín Justo, e uma eleição com
indícios de fraude, Uriburu sofreu o golpe e muitos argentinos aplaudiram a libertação do
país. Neste período, os professores da escola Normal tentavam colocar os alunos em
associações e brigadas que acompanhavam Justo. Para ele, existia uma tentativa sistemática
de deformar “as mentalidades dos alunos para encaminhá-los a um terreno de
conservadorismo, de nacionalismo, de defesa dos valores pátrios. Em uma palavra (sic):
fabricação de pequenos fascistas”. E é isso que a “escuela de noche” nos mostra, isto é, o
conto captura o clima da própria escola.
16
“Uno o dos profesores amigos (el de música, que nos contaba cuentos verdes, el de sistema nervioso que se
daba cuenta de la idiotez de enseñar eso en un profesorado en letras) nos habían dicho que el Rengo no
solamente era un solterón convicto y confeso, sino que enarbolaba una misoginia agresiva, razón por la cual en
la escuela no habíamos ni una sola profesora.” (CORTÁZAR, 1982)
17
Documentário Memoria Iluminada (2014).
61
retorno ao contexto da atuação pedagógica de Cortázar. Os anos na escola Normal Mariano
Acosta deram-lhe o título de professor em Letras, o que, naquela época, significava ensinar
qualquer coisa. Entretanto, Cortázar não tinha nenhum diploma universitário. Na Argentina, a
educação religiosa incorporou o currículo entre 1943 e 1954, quando houve uma crise entre o
estado e a igreja católica.
Podemos inferir que a via utilizada para ensinar as crianças na Argentina peronista
visava à manutenção da boa figura da família presidencial, reforçando a adoração de sua
imagem, visto que eram usados como modelos em texto e frases como “um lutador
maravilhoso” ou “Eva e Perón se amam”, por exemplo.
63
Fonte: Evita: el libro de primer grado completo.
O governo peronista adentrou no sistema educativo por todos os níveis. Ademais, tinha
um interesse particular nas escolas de formação pedagógica, ou seja, nas “Escuelas
Normales”, onde se formavam uma nova geração de professores, e foi justamente neste
espaço que incorporaram o material de “doutrina nacional”, com componentes curriculares
relacionados à mensagem de Perón.
Além dos livros supracitados, cabe ressaltar que o material didático precisaria ser
aprovado pelo Ministério da Educação e em consonância com o “Estatuto Profesional del
Docente Argentino del General Perón”, com ideias que estavam em voga desde 1949, mas
publicado em 14 de setembro de 1954. O manual dos professores visava estabelecer os
honorários, direitos e deveres dos professores. Isto posto, é presumível o incômodo gerado em
Cortázar, uma vez que o decreto impõe ao docente a incumbência de formar a consciência
patriótica com base na doutrina peronista.
Cortázar sobre o contexto de realidade e o que ela pode significar, de forma tão
particular, afirma: “a realidade existe ou não existe, em todo caso é incompreensível na sua
essência, assim como as essências são incompreensíveis na realidade (...)” (1973, p. 12). Essa
noção de real variável e subjetiva não o isenta de uma dimensão fictícia ou imaginária dos
fatos, pois “(...) qualquer tentativa de descrever os acontecimentos (mesmo enquanto estão
ocorrendo) deve levar em conta diferentes formas de imaginação”. (HUNT, 2001, p. 136-137,
grifo nosso)
18
“Formar en sus alumnos una conciencia patriótica de respeto a la Constitución y a la Ley; sobre la
base de la ‘Doctrina Nacional Peronista, que tiene como finalidad suprema alcanzar la felicidad del pueblo y la
grandeza de la Nación, mediante la justicia social, la independencia económica y la soberanía política,
armonizando los valores materiales con los espirituales y los derechos del individuo con los derechos de la
sociedad’”.
65
Pode-se localizar, na contracapa de O livro de Manuel, o resumo da temática de
denúncia que permeia a obra e outras similares da carreira do escritor. “Cortázar faz aqui a
síntese de seu ideário político e estético, como incansável militante da defesa dos direitos
humanos”. Para além da palavra, esse processo desvela “(...) a presença de uma personalidade
(...)”. (MUKAROVSKY, 2006, p. 285)
No trecho citado logo abaixo, veremos Marcos chamar a atenção para uma realidade
muito pior do que estar num emprego que exigia muito do corpo, e explicitar as precárias
oportunidades de que dispunham aqueles amigos, sobretudo Lonstein. De forma análoga,
mostrava que coisas piores poderiam acometer os corpos de outras pessoas, em situação de
maior gravidade, no panorama político, étnico, de gênero ou social. Cortázar, a todo tempo,
incorpora na sua escrita denúncias políticas e sociais; os personagens Marcos e Lonstein
poderiam ser facilmente imersos em seus conflitos, mas sempre fazem um esforço para
perceber problemáticas maiores, enquanto uma pequena camada de privilegiados seguem suas
pequenas existências inabaláveis e “respirando honestidade”.
Cortázar prenuncia problemas que se estendem até os dias atuais, apesar de ser uma
escrita da década de 1970; o argentino se insere, num contexto de conflitos políticos,
problemáticas oriundas da desigualdade entre os povos, choques de valores, conflitos de
cunho étnico, religioso, legal, entre outros. É sabido que “a própria evolução das coisas e a
época em que vivemos ensinaram-nos de modo suficiente que se não pode viver com os olhos
fechados à realidade objetiva, exterior (...)”. (MUKAROVSKY, 2006, p. 273)
Mais adiante, mais uma vez, Cortázar aponta para uma constante associação: aquele
que está na “presença” de um livro é um intelectual, visão compartilhada por perseguidores da
sua época. Lucien Verneuil, personagem da trama, encontra-se num transporte coletivo:
“Primeiro a campainha antes da parada, corretamente (sem contar que se está bem-vestido e
com um livro (...) debaixo do braço para acentuar a impressão de intelectual) (...)”
68
(CORTÁZAR, 1973, p. 70). O livro, peça fundamental também na carreira pedagógica do
escritor, seria o objeto a salvaguardar e a dividir os indivíduos conforme impressões atribuídas
pelo senso comum, o que não se distingue da contemporaneidade.
Parece claro que repensar a relação entre o signo linguístico, seu significante e
significado é algo inato ao sujeito que se dedicou ao estudo acadêmico das Letras. Neste
diário ficcional de um professor de Letras argentino, é possível encontrar diversos traços
autobiográficos. Como a reflexão de Andrés (CORTÁZAR, 1950, p.53), ao se dar conta de
que não podia escrever como antes, pois estava sendo vencido pela linguagem, e assim teve “a
primeira suspeita do fenômeno contemporâneo”. Para o narrador Andrés, explicar é dar
significado, convicção, comprovação, a algo que já havia abandonado. Tal pensamento se
encerra declarando ter desistido de correções gramaticais nas produções escritas dos seus
alunos.
Sabemos que o diário e as demais “escritas do eu” são intencionais, e por isso
concordamos com Paul Valéry (1991, p.204): “Na verdade, não existe teoria que não seja um
fragmento, cuidadosamente preparado, de alguma autobiografia”. Assim, os interesses do
autor em sua escrita com indícios autobiográficos e/ou autoficcionalizados se distanciam da
neutralidade e se configuram como produto das decepções e anseios do intelectual múltiplo.
Ressalta-se ainda, que datas, assinaturas, acontecimentos podem também configurar um diário
69
fictício, pois, com afirma Evando Nascimento,
essa ausência e de compromisso com a verdade factual, por um lado,
e a simultânea ruptura com a convenção ficcional, por outro, que
tornam a chamada autoficção tão fascinante (...) O interesse (...) é
romper com as comportas, as esclusas, os compartimentos dos
gêneros com que aparentemente se limita, sem pertencer
legitimamente a nenhum deles. Ela participa sem pertencer nem ao
real nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as
cartas e confundindo o leitor por meio dessas instâncias de lettra.
(NASCIMENTO, 2010, p. 65, grifo do autor)
19
Cortázar em entrevista cedida a Viviana Marcela Iriart, Caracasm, em 1979, publicada na Revista Semana. No
original: “Yo creo que puede haber escritores puros, que no introduzcan ningún mensaje político en lo que hacen.
[…] Lo único que exijo en esos casos es que la persona que hace literatura pura, muestre con su conducta
personal que no es un escapista. Que si él no pone política en lo que hace, es solamente porque -por ejemplo- su
vocación es escribir un soneto en donde la política no entre. Pero él tiene que demostrar con su conducta, con su
responsabilidad personal, que tiene derecho a escribir esos sonetos.”
20
Cortázar em entrevista a Robert León e Claude Namer, no documentário Topografia de una mirada (1980).
70
3.3 O TRADUTOR-LEITOR
Esse aspecto biográfico o fez ter contato com diversos idiomas ainda na primeira
infância. O regresso da família à Argentina, país de origem, já com dois filhos, é seguido pelo
abandono paterno definitivo. Instalados em Banfield, não voltaram mais a vê-lo. Tais fatos
ocorreram por volta do ano de 1920, e, neste tempo, é presumível que a situação financeira e
social da matriarca fosse dificultosa. Para Cortázar21, se não fosse o sexismo da época, sua
mãe poderia ter sido tradutora, pois dominava as línguas inglesa, alemã, francesa e,
naturalmente, a espanhola.
21
No documentário “Memoria Iluminada: Julio Cortázar” (2014)
22
“Pienso también que lo que me ayudó fue el aprendizaje, muy temprano, de lenguas extranjeras y el hecho de
que la traducción, desde un comienzo, me fascinó. Si yo no fuera un escritor, sería un traductor”. (CORTÁZAR,
1986)
71
Janaína Baladão (2007, p. 455) argumentou que essa função, desenvolvida por ele durante boa
parte de sua jornada intelectual, refletiu fortemente em sua produção literária. Ou seja, o
trabalho de traduzir textos permitiu desabrochar, a princípio, “uma forma de modelação de um
estilo literário (...) como bem podemos ver em seus primeiros contos, reunidos
postumamente”.
O valor da tradução para a formação da identidade plural de Julio Cortázar tem como
marco o início de sua atividade de tradutor público em Buenos Aires, em 1937, quando sua
atividade se resumia a traduções de cartas entre prostitutas e marinheiros. No ano de 1948 ele
obteve o título de tradutor juramentado em língua inglesa e língua francesa, possibilitando-o
exercer a profissão de forma regulamentada, mas o trabalho resumia-se a tradução para
revistas locais. Não por acaso, após chegar em Paris, em 1951, com uma bolsa oferecida pelo
governo francês, inicia seu trabalho como tradutor na Unesco, onde traduzia documentos e
72
textos de distintos assuntos que, segundo Miguel Herráez em Julio Cortázar, una biografía
revisada (2016, p. 216), iam do trigo e da alfabetização às relações consulares.
Herráez (2016) afirma que no ano de 1953, Cortázar tirou férias na Itália para traduzir
os contos e os ensaios de Edgar Allan Poe e, após nove meses, retornou a Paris com quase
duas mil páginas. Dentre elas, traduções e prólogos. Neste momento, ele havia acabado de se
casar com sua primeira esposa, a também tradutora e escritora argentina, Aurora Bernárdez e
enfrentava algumas dificuldades financeiras. Em vista disto, o período na Itália era
duplamente agradável, uma vez que a vida no país era mais barata que na França.
É necessário frisar que esse processo havia sido iniciado antes, visto que Cortázar
tornou-se leitor de Poe ainda na infância. Deste trabalho transcriativo, o de maior notoriedade
é Cuentos completos–Edgar Allan Poe (1956). A obra traduzida foi, inicialmente, publicada
pela Univerisdad de Puerto Rico com colaboração da Revista Occidente e intitulada Obras en
Prosa. Atualmente, a editora Edhasa reedita a coletânea. Em entrevista23, Cortázar (2014)
revela que traduzir Poe foi uma das coisas mais prazerosas que fez na vida.
No prólogo da Obra crítica (1998) de Cortázar (Vol. 2), Jaime Alazraki discorre sobre
o valor dos escritos de Julio Cortázar na obra de Edgar Allan Poe. Para Alazraki (1998, p. 75),
os escritos acerca da vida, nas notas e prólogos, bem como as traduções da obra de Poe só
foram exitosos devido à experiência leitora e criadora de Julio. E “por isso representam uma
valiosa fonte para o estudo da obra desses dois mestres do conto.”
Em sua obra crítica, Cortázar (1998, p. 270) comenta que “todo conto perdurável é
como a semente em que está adormecida uma árvore gigantesca. Esta árvore crescerá em nós,
dará sua sombra em nossa memória.” A árvore que crescerá pode representar a criação do
23
Documentário Memoria Iluminada (2014).
73
ficcionista, no entanto, consciente de que a nova criação literária guarda em si memórias. Tais
reminiscências são ressignificadas de outros textos lidos pelo autor, ou mesmo, neste caso,
traduzidos.
O tradutor, agente transcriador da arte, cria uma relação ainda mais próxima com o
texto literário advindo da semente da “árvore gigante”. Em entrevista a Bermejo (1977),
Cortázar reconhece essa suplementação efetuada pela tradução na escrita romanesca. Ele
afirma que “aconselharia a qualquer jovem escritor que tenha dificuldades de escrever (...)
que pare por um tempo e faça traduções; que traduza uma boa literatura e, um dia, vai se dar
conta que pode escrever com uma desenvoltura que antes não tinha”24.(CORTÁZAR, 1977)
A tradução das notícias, para além da principal função, produz um território fértil para
a imaginação e criticidade de todos os envolvidos no enredo (inclusive, do leitor), que
certamente se questionam sobre a veracidade ou a ficcionalidade dos fatos narrados. De todo
modo, “(...) parece-me ser possível produzir uma obra de ficção dentro da verdade” (MEGILL
apud HUNT, 2001, p. 11).
24
“No original: Yo le aconsejaría a cualquier escritor joven que tiene dificultades de escritura, si fuese amigo de
dar consejos, que deje de escribir un tiempo por su cuenta y que haga traducciones; que traduzca buena
literatura, y un día se va a dar cuenta que puede escribir con una soltura que no tenía antes.”
74
Manuel e como motivo/força de sobrevivência para eles, “as palavras não refletiam apenas a
realidade social e política; eram instrumentos de transformação da realidade” (HUNT, 2001,
p. 23), para que se mantivessem e se sentissem vivos: “Ficava cínico e reacionário, dizia se
isso não estivesse escrito não existiria, este jornal é o mundo e não há outro, tchê, esta guerra
existe porque os telegramas chegam aqui, escreva à sua velha porque assim lhe dá um pouco
de vida.” (CORTÁZAR, 1973, p. 33)
Ao final do livro, a tradutora para a edição brasileira, Olga Savary (1973), ressalta o
detalhado trabalho da escrita de Cortázar que, sem desprender-se da carreira de tradutor,
transpôs esse perfil para a obra, nas mais diversas passagens. Em algumas delas, a
personagem Lonstein fazia uso de corruptelas, espécie de traduções de forma acidentada ou
desestruturada de expressões ou palavras, em diversos idiomas, tornando o seu uso
característico da linguagem por ele utilizada, salvaguardado pela licença poética do escritor
argentino.
75
Como forma de ilustração, destacamos dois contos cortazarianos que abordam a
tradução, para pensar o labor de Cortázar sob o viés literário. O primeiro é Carta a uma
senhorinha em Paris (1951). O conto narra a estadia de um tradutor na casa da amiga, que foi
por alguns meses a Buenos Aires e deixou seu apartamento em Paris emprestado a ele. O
rapaz escreve uma carta à amiga para contar-lhe sua aflição: começou a vomitar coelhinhos
em seu apartamento. Logo ao adentrar o local, o narrador-personagem o descreve como
“ordem fechada” e ainda “ambiente onde alguém que vive belamente arrumou tudo”.
(CORTÁZAR, 1951, p.17)
A presença dos coelhos, que pode se relacionar com a potência criativa do tradutor, o
coloca na tensão de ser fiel ao texto (deixar como é) ou convencer a dona da casa (autor da
obra original), de sua importância. Os bichinhos são animais que são geram afeição e por isso,
não se deve matar, uma vez que todos podem viver em harmonia: a dona do apartamento, o
visitando e os coelhinhos; o autor do texto, seu tradutor e a criatividade.
O segundo conto é Diário para um conto (1983) que referencia Adolfo Bioy Casares –
famosos contista e tradutor argentino. Por não conseguir escrever um conto, inicia a escrita de
um diário. No conto, o personagem traduz registros de nascimentos e outros textos técnicos,
entretanto, também traduz cartas de amor de marinheiros para prostitutas (primeira
experiência de Cortázar enquanto tradutor). O narrador deseja a habilidade de Bioy e afirma
que gostaria de ter escrito parte de sua obra, e que o conseguiria sem prejuízo de sentido. O
conto em si retoma os procedimentos da escrita do texto literário (uso da primeira pessoa que
reforça o caráter autobiográfico da escrita, ao relatar a vida pessoal de Anabel, o narrador fala
sobre si), passando pelos desafios da escrita e atravessando o entendimento da dificuldade de
construir uma narrativa.
Concluímos que Cortázar percorreu distintos caminhos como tradutor, até realizar-se
na profissão. O labor da tradução foi por ele relatado de forma literária, através de entrevistas
e de personagens e eternizado na transcriação da obra de Poe, que lhe trouxe plena satisfação
neste ofício.
77
3.3.1 O LEITOR ENQUANTO CRÍTICO
Segundo Pligia (1996, p. 48) todo escritor é crítico, ainda que nem todos escrevam
crítica literária dentro dos moldes que costumamos encontrar. A produção teórico-crítica pode
ser até mesmo um caderno de anotações no qual o escritor compartilha sua relação com os
seus e com outros textos. Sendo “um espaço em que combinam a reflexão, o projeto, as
tentativas falhas”, enfim, abarcam todo o processo de escrita e análise.
Por fim, “nem todos os escritores se dedicam profissionalmente a crítica, mas eu diria
que todos os escritores trabalham esta relação da escrita com a reflexão e com a teoria.”
Assim sendo, não existe escritor ingênuo, uma vez que todos conjugam a escrita criativa com
a crítica literária, sendo, portanto, o escritor e o crítico o desdobramento de uma mesma
figura.
Posto isso, relembramos que ambos os Andrés escrevem sendo, minimamente, críticos
de si. Retornando a Andrés Fava, em 1951 ele escrevia seu diário compartilhando suas
aflições enquanto leitor. Andrés, leitor de Demian (1919), diz ter iniciado a leitura já
atravessado pelas opiniões de terceiros, no final, informa não conseguir respeitar a obra e se
questiona se o “repugnante livro” terá um maior equilíbrio, alguma qualidade secreta na
língua original, em alemão, uma vez que o lia em espanhol. (CORTÁZAR, 1951, p. 27)
Andrés critica Middleton Murry (1889 -1957) e Thomas Carlyle (1795 - 1881). O
leitor incomoda-se com Sartor Resartus (1836), obra de Carlyle, na qual, segundo ele, não há
uma única passagem que mantenha o frescor ou o sentido (CORTÁZAR, 1951, p. 40). Andrés
cita Oscar Wilde, Paul Valéry, Malarmé, Marx, Sartre e ao longo da obra, muitos outros
escritores. Ademais, o narrador e único personagem escreve algumas epígrafes no final do seu
diário que pretende utilizar em alguma obra que futuramente escreva.
Andrés (1973, p. 121) é leitor de René Char (1907 – 1988). Os textos lidos, diário e
poemas, tratavam dos tempos de resistência contra os nazistas no Sul da França e da leitura,
ele se vê capturado por uma das frases de Char: “Há dias em que não se deve ter medo de
nomear coisas impossíveis de descrever25”, quando é interrompido por “aquele de quem lhe
falei”. Naturalmente, a reflexão sobre o nazismo e a poética de Char é própria do
comportamento de um leitor crítico. Uma característica que também vislumbramos enquanto
Andrés analisa versos de um poeta venezuelano. (CORTÁZAR, 1973, p. 34)
25
No orginal: Certains jours il ne faut pas craindre de nommer les choses impossibles à décrire.
79
colocamos na condição de perseguidores.
Ambos os personagens possuem suas metas bem delineadas, enquanto em 1951, busca
por coisas pessoais de ordem filosófica e metafísica, em 1973 ele persegue questões coletivas,
afastando-se do individualismo. Ainda que muitos dados os diferenciem, marcando seus
distintos caminhos, no fundo, não há uma modificação profunda, visto que, suas buscas não se
transformam; se ampliam.
Diversas obras de Cortázar permitem acessar fatos importantes de sua época. São
volumosas páginas que refletem, em termos literários, aspectos da situação política e social
não apenas da Argentina, mas de toda a América Latina. Na composição de O Livro de
Manuel (1984), nota-se que sua estratégia em selecionar notícias dos acontecimentos
históricos em toda a América Latina oferece, a partir do seu olhar, não só uma representação
da sociedade naquele momento, mas um modo de problematizar a interpretação dos
acontecimentos.
Identifica-se, dessa maneira, que “a literatura deve ser uma forma de questionar a
percepção da realidade, bem como uma forma de reinventar o fazer artístico” (MELO, 2011,
p. 11-12), recriando a realidade. Sua produção recorre constantemente ao nível histórico e, por
isso, pode ser reconhecida enquanto estrutura textual que fornece aos leitores possibilidades
de acessar o imaginário social e político de um contexto temporal e espacial.
Ingênuo será o leitor ou a leitora que tomar essas obras como expressões puras da
realidade argentina, pois o que temos são sempre impressões do acontecido. Estabelecer a
distinção entre História e Literatura se torna fundamental. Enquanto a História exige
80
fidelidade irrestrita aos documentos e às fontes, a Literatura possui uma particularidade, como
escreveu o historiador Peter Gay (2010) sobre a atuação do escritor literário: “Seus
valorizados poderes de imaginação os liberavam de maneiras que eram vedadas aos cientistas
da sociedade – sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, historiadores –, para quem os
fatos e sua interpretação racional continuavam a ser prioridade”. (GAY, 2010, p. 13)
O autor esclarece os motivos pelos quais supõe que seu texto irá desagradar os
literatos defensores do caráter exclusivo da ficção na literatura, todavia, diz que seu livro pode
agradar os defensores da imersão na realidade. Cortázar argumenta que “(...) não resta dúvida
de que as coisas que acontecem aqui não podem acontecer de maneiras tão inverossímeis, de
vez que os puros elementos da imaginação se veem anulados por frequentes remissões ao
cotidiano e ao concreto” (CORTÁZAR, 1984, p.7). Ou melhor, a força dos acontecimentos
81
cotidianos daquele tempo era mais intensa que a energia da imaginação criadora da ficção.
Nesse sentido, compreende-se que o escritor criativo é livre para criar seus monstros e
corredores com olhos em qualquer parte. Já o historiador necessita ser fiel à fonte e somente
apresentar o que dali for possível extrair. Sinteticamente, Gay (2010, p. 14) afirma a propósito
do romance realista: “O romance realista corta o mundo em pedaços e monta-o de novo de
formas distintas. A sua realidade é estilizada – forçada e torcida – para servir às exigências do
enredo e do desenvolvimento de personagens criados pelo autor”.
No que tange à produção literária, Candido (2006, p. 13, grifo do autor) argumenta:
“Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa nem como
significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno”.
Nesse sentido, é importante frisar que o século XX vai ver germinar no ocidente uma
relação dialética entre literatura e sociedade. Esse modo de operar aparece tanto na Europa
quanto na América do Norte:
26
Texto que resultou de uma exposição feita sob a forma de intervenção nos debates do II Congresso de Crítica e
História Literária, realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em julho de 1961.
82
em suma, a ser dignos de confiança em suas ficções
sobre a vida comum. (GAY, 2010, p. 11-12)
Na América Latina não vai ser diferente, e isso pode ser atribuído à efervescência
política envolvendo a intelectualidade e as denúncias contra os regimes ditatoriais. Trazer à
tona críticas sociais através de obras literárias poderia ser uma fuga da censura. Nesse sentido,
nota-se que o estilo de escrita manifestado por Julio Cortázar em O Livro de Manuel (1984)
coloca o leitor no contexto político latino-americano da década de 1973.
Como foi mencionado antes, a experiência vivida por Cortázar durante a Revolução
Cubana o despertou para a política e os impactos que ela produz na vida em sociedade, talvez,
este fato o tenha levado a escolher escrever um livro para o bebê Manuel como forma de
compromisso social com as próximas gerações da América Latina. Mestre das palavras e
sabedor da sua importância para a formação de um povo e de uma determinada realidade, diz,
no livro:
Toda realidade que valha a pena chega pelas palavras, o
resto tem que ser deixado para os macacos ou para os
gerânios. Ficava cínico e reacionário, dizia que se isso
não estivesse escrito não existiria, esse jornal é o mundo
e não há outro, tchê, esta guerra existe porque os
telegramas chegam aqui, escreva à sua velha porque
assim lhe dá um pouco de vida. (CORTÁZAR, 1984, p.
33)
83
As palavras criam realidades. É por meio da escrita que os personagens têm
informações sobre os conflitos da época, e, se assim o era para Cortázar, fazia-se urgente,
naquele momento, escrever e possibilitar que as próximas gerações tivessem acesso aos
acontecimentos da América Latina, sobretudo em relação às contradições políticas que
geravam conflitos.
Diferente do Diário de Andrés Fava (2016), escrito em forma de cartas, notas soltas,
prólogos, O Livro de Manuel (1984) tem em sua constituição os recortes de jornais da época,
mas ambos ambicionam se aproximar politicamente do leitor. Cortázar não hesita ao afirmar
que sua literatura não pode ser dissociada da política (BERMEJO, 2002). Em livro que reúne
algumas aulas de literatura na cidade de Berkeley, em 1980, Cortázar destaca a importância da
identidade latino-americana, mostrando a força da produção literária, dos escritores e leitores
desses países:
Nota-se que o viés político presente na escrita do autor se manifesta quando ele aceita
o jogo para falar de política e questões relacionadas ao seu continente, contrariando seus
leitores de direita e de esquerda; os primeiros, porque acharam seu livro político e contrário
aos seus ideais; os segundos, porque não viram seriedade na obra.
Nas palavras de Cortázar, “Pouca gente de esquerda leu o Livro de Manuel, algumas
coisas eram ditas a ela, de companheiro para companheiro. Às vezes acho que estas pessoas
faziam de conta que não era com elas, que não se tratava delas” (BERMEJO, 2002, p. 107).
Contudo, o que perpassa a escrita de O Livro de Manuel (1984) não mostra desejo de agradar
a nenhum dos leitores citados; ao contrário, aparentemente, o autor queria registrar a
fragilidade de ambos os lados políticos e de como tais fragilidades fundavam uma grande
crise política.
Lemos por prazer, e já se sabe que o prazer não tem boa
memória e quase em seguida busca renovar-se numa
nova experiência prazerosa igualmente fugidia. É
perfeitamente legítimo que em geral os leitores abram
um livro para desfrutar de seu conteúdo e não para tentar
adivinhar o que sucedia em torno do livro enquanto seu
autor o estava escrevendo. (CORTÁZAR, 2018, p. 302)
27
“Julio Cortázar fue el principal forjador de nuestra modernidad narrativa.” (YURKIEVICH, 1985, p. 10)
85
preconceitos de várias naturezas. Por outro lado, para além de uma escolha, o leitor também
era forçado a olhar para sua realidade, retomando o que foi dito por Cortázar, que o escritor
literário é tomado por informações da realidade, as quais ofuscam a imaginação; e o leitor, por
outro lado, também é guiado por esses acontecimentos e, consequentemente, essa experiência
vai interferir em sua interpretação do texto.
O Livro de Manuel (1984) aparece como possibilidade e promessa para as próximas
gerações, num exercício de anunciar como foi o passado, mostrando os erros e os acertos,
para que o futuro fosse produzido com mais solidez e clareza. No prefácio do livro Conversas
com Cortázar, Eric Nepomuceno relata um pouco o diálogo que teve com o escritor, no qual
fica clara sua posição em relação à incompreensão e à recepção de O Livro de Manuel (1984),
considerado o livro mais polêmico do escritor:
Em nenhum instante deixou de ser extremamente
consciente das agruras do ofício de escrever e de viver.
Acompanhava com interesse a interpretação que alguns
críticos faziam de seu trabalho. Às vezes se surpreendia,
e chegava até mesmo a mudar de ponto de vista sobre o
que ele mesmo havia escrito. Mas em nenhum instante
deixava-se atazanar quando alguém dava interpretações
que eram totalmente desvinculadas das suas. É
especialmente interessante a defesa que faz de um de
seus livros mais polêmicos, O livro de Manuel, como
quem defende um filho mal interpretado, mas
justificativas nem pedidos de desculpas.
(NEPOMUCENO, 2002, p. 9)
28
Entrevista concedida a Ernesto González Bermejo e publicada no libro Conversas com Cortázar (2002).
86
Para Cortázar, a produção literária da América Latina é a face que esse mesmo belo
esconde, nela se fala da fome, da crueldade, das ditaduras, das mortes injustiçadas, da
opressão, da desigualdade, da irresponsabilidade etc. E, se a literatura é um instrumento de
poder, em O Livro de Manuel (1984) ela demarca seu lugar, por estimular a política e a
responsabilidade perante os povos, como é notável na narrativa em que o autor delineia os
embates sofridos pelo povo durante o período das ditaduras na América latina, como é o caso
do jovem de 19 anos descrito na figura abaixo:
O trecho a seguir trata de uma mulher que busca uma tática para escapar das
87
armadilhas dos ditadores, coisas como “sumir com os livros”, recorrer aos dicionários para
explicar a um capitão que o livro Alice no País das Maravilhas não era uma propaganda
comunista, ou, como os militares queriam entender,
Observa-se ao fim do trecho a confusão causada diante das suposições: “Não me salvo
por nenhum lado. Há quem acredite que sou uma emissária da United Fruit company, outros
uma emissária de Castro (horror), e outros que viajo com carregamento de ‘erva’”. Em outro
momento ela diz que mudará o modo de se vestir, trocando a calça por uma saia abaixo do
joelho, cabelo preso, sem enfeite. Nota-se que qualquer pessoa que se vestisse com estilo
“hippie” era considerada um inimigo dos militares, suspeita de ser comunista.
Cabe um adendo importante aqui: a prática de esconder livros que a censura proibia
também ocorreu no Brasil durante a ditadura militar, principalmente durante os anos de 1968
a 1974, período no qual o AI-5 fora implementado. Em sua tese de doutorado intitulada
Apreensão de livros tidos como subversivos: o que os processos judiciais da ditadura militar
revelam, Ana Caroline Silva de Castro (2017) demonstra que a censura e a apreensão de livros
constituíram uma parte importante do contexto da ditadura militar. A autora lista 1.396 obras
apreendidas, sendo a grande maioria de literatura marxista, considerada subversiva naquela
88
época. Outro fato relevante foi que esses livros, em alguns casos, serviram como provas de
condenação nos processos criminais.
N’O Livro de Manuel (1984), o grupo de jovens responsável por coletar as notícias
também fazia a tradução dos textos, como é notável na figura 4. O trabalho de tradução foi de
suma importância para a constituição do livro, sobretudo para unificar a interpretação da
realidade, para democratizar o acesso, fator que também marca a escrita de Julio Cortázar.
89
Os relatos jornalísticos demonstram que a ditadura perseguia alguns grupos
específicos, como estudantes da área de ciências humanas e professores universitários (vide a
figura 05, na qual um senhor de 55 anos de idade é atacado com cassetetes, jogado no chão e
levado para a delegacia).
Já a figura 05 exibe uma jovem estudante de sociologia acusada de realizar ação contra
a polícia, violência voluntária com premeditação, violação de domicílio e depredação de
patrimônio público. Em tom de ironia e deboche, o integrante do grupo e responsável por essa
tradução lembra de outras mulheres guerrilheiras, como Calamity Jane (EUA) e Ágata Galiffi
(Argentina), fazendo referência à estudante e supondo que seu excesso de desobediência
superaria Calamity Jane e Ágata Galiffi juntas. No final, eles denominam a escrita da notícia
de ‘gozação’, ironizando o caráter tendencioso do jornal.
90
Figura 5 – Jovem acusada de realizar ação contra a polícia
Ao trazer essas notícias de jornais para o livro de ficção, o autor produz o que Linda
Hutcheon (1991) chama de metaficção historiográfica, em seu texto Poética do Pós-
modernismo. Para a autora,
Esse tipo de ficção é apreendido como ação política, como intervenção numa
determinada realidade. Não está apenas para fruição, todavia possui compromisso com a
sociedade. O texto literário, nesse tipo de literatura, não se limita apenas ao texto escrito, ele
precisa da realidade para fazer sentido. O Livro de Manuel (1984) não pode, como foi
considerado por alguns críticos, ser considerado kitsch apenas por não respeitar os critérios da
literatura universal, ou melhor, apenas critérios estéticos.
91
potencial subversivo da ironia e do humor na contestação das normas universalizantes da arte
chamada “séria”. A forma como O Livro de Manuel se constitui corresponde a uma
característica da ficção pós-moderna, conforme argumenta Hutcheon:
29
“En general, Cortázar propone personajes ordinarios que efecttan acciones comunes en un ambiente familiar.
Instala su narración en mundos próximos y opera con seres semejantes al lector, sujetos como él a parecidas
restricciones empíricas; pone en funcionamiento los efectos de la ilusión realista para abolir la distancia entre
lector y personajes, entre texto y extratexto, entre referencias y referentes.” (YOURKIEVICH,1985, p. 13)
92
Mais uma vez, um bom exemplo do vínculo em termos
de forma seria Um Manual para Manuel, de Cortázar. Ao
longo do romance, recortes autênticos de jornais vão
sendo para textualmente inseridos no texto que lemos.
Todos eles funcionam no sentido de alienar o leitor em
relação à ilusão realista de um mundo fictício coerente e
fechado, e todos se voltam para o mundo mais amplo da
política sul-americana. (HUTCHEON, 1991, p. 275-276)
93
O tempo de estudo e a prática de escrita de Cortázar, juntamente com suas
experiências enquanto professor, militante, tradutor e crítico literário, permitiram o
desabrochar de um autor capaz de estabelecer sua própria verdade. A ruptura com tendências
de sua época é um indicador notável. O Diário de Andrés Favas é uma espécie de
hypomnemata, que Foucault identificava como livros que serviam como guia da existência.
30
“Su inteligencia estética está cabalmente probada, como lo demuestran sus ensayos de autoexégesis o
autojustificatión <<Del sentimiento de no estar del todo>> o <<Casilla del camaleón>>, de La vuelta al día en
ochenta mundos; su capacidad especulativa, su dimensión gnoseológica está bien acreditada por las morellinas
94
Porém, não só o processo cotidiano de escrita de si configura-se como determinante na
projeção da pessoa e sua verdade. Claudemar Fernandes, ao examinar as contribuições
foucaultianas acerca das escritas de si, destaca:
É no social que se definem as posições-sujeito, não fixas,
marcadas por mutabilidade, e a análise de discursos deve
fazer aparecer esses elementos e explicitar suas
formações e transformações históricas, e também suas
implicações e/ou determinações na produção da
subjetividade. Não se trata, seguramente, de pontos fixos
característicos dos sujeitos, trata-se de movência, de
deslocamentos e transformações constantes na
constituição dos sujeitos e na produção da subjetividade
pelos discursos. (FERNANDES, 2011, p. 5)
Desta maneira, as obras de Cortázar confirmam o que tem sido dito desde o início
deste capítulo, isto é, elas são marcadas constantemente por seu posicionamento diante dos
problemas sociais e políticos de seu tempo. Não há como dissociar, ao menos na linha de
pensamento desse autor, tais níveis da realidade. São revelados os processos de subjetivação e
objetivação dos discursos. As formações discursivas de uma época são suficientemente
capazes de consumir por inteiro os corpos dos sujeitos. O leitor torna-se, no ato da leitura,
cúmplice do escritor.
Nas palavras de Fernandes (2011, p. 6): “Reafirmamos com essa consideração que o
sujeito não corresponde a uma individualidade no mundo, e suas enunciações revelam
justamente essa presença do exterior na subjetividade manifestada pelos discursos
materializados nos enunciados”.
96
A produção intelectual de Julio Cortázar transcende os limites da realidade factual,
uma vez que sua multiplicidade enquanto professor, autor de contos, romances, poesias,
ensaios, não se alinharam à restrição de moldes preestabelecidos. Seu perfil intelectual e de
indivíduo atento ao seu tempo e à função de escritor instigava-o a articular estratégias cujo
maior objetivo era o de sempre buscar construir uma escrita original.
Sua criação se integrava a uma renovada direção no processo de fazer literatura e isso,
como já é sabido, ocorreu entre os escritores latino-americanos num fenômeno justificado por
uma espécie de crise do romance ocidental, quando se buscou uma revitalização da narrativa.
(SCHOLLHAMMER, 2009)
Além disso, outro ponto que deve ser destacado é o narrador que participa de forma
atuante na narrativa, apresentando-se em 1ª pessoa. Ele torna-se um narrador-protagonista ou
narrador-testemunha ou ainda a combinação das duas possibilidades, de acordo com Arrigucci
Jr. (1995).
O cunho autobiográfico presente em Diário de Andrés Fava permeia todo o livro, uma
vez que detectamos Fava divagar em reflexões sobre o seu modo de expressão e o nível
utilizado para se alcançar a exata mensagem a ser transmitida. Indo agora para uma fala de
Cortázar nas Aulas de Literatura, a qual se assemelha com as encontradas no diário de Fava,
temos: “eu gostaria de ter tempo para escrever ainda textos onde pudesse ir muito além em
matéria de linguagem”. (CORTÁZAR, 2018, p. 250)
98
Uma particularidade observável bastante interessante no diário de Fava, e que dialoga
com o argumento exposto logo acima, são as inúmeras referências a outros autores e obras,
como podemos ver a seguir: “Sempre admirei em Laforgue esse sentido exato, aniquilante, da
proporção universal. Único poeta francês a olhar planetariamente a realidade”, um pouco
mais adiante, é possível reconhecer outro exemplo:
A função incalculável de certos livros em uma vida ainda
porosa, atenta, expectante. Penso na Anthologhie des
poètes de la NRF que comprei em 1939 (ou talvez antes)
(...). Deslumbramento dos poemas insuspeitos, prestígio
de nomes que ainda não estavam fixados numa biografia,
num retrato (Jouve, Saint-John; e depois, em 1945 ver
uma foto de Perse, com aquela cara de quitandeira jovial,
como a cara de Rouault, que acabo de conhecer num
filme...). (CORTÁZAR, 2016, p. 12)
Ainda se observa essa marca em: “Como foi estudado por Rivière em Rimbaud, todo
passeio ao ar livre e ao sol me excita os sentidos” (CORTÁZAR, 2016, p. 91). E mais:
Uma cadeia: Fulano gosta de um livro sobre Cézanne,
que gostava de pintura. Como Fulano está longe da
pintura! Ou isto: há um horror sagrado, Keats escreve
Hyperion é seu horror sagrado. Middleton Murray
ocupa-se de Keats porque é atraído pelo Hyperion; leio
Middleton Murry porque gosto de Keats. Mas há um
horror sagrado e este não é Middleton Murry.
(CORTÁZAR, 2016, p. 54)
100
esteve obstinadamente presente na consciência dos escritores latino-americanos, por conta da
dualidade estabelecida “civilização versus barbárie” (CHIAMPI, 2015), conduz para o interior
dessas narrativas componentes relativos aos costumes, bordões, sensos comuns próprios
daquela terra e nação, elementos que são responsáveis por fazerem parte da construção e da
consolidação de uma identidade.
101
voz de testemunha que diz a palavra reveladora. Subi
certo de que não moraria naquela casa. (CORTÁZAR,
2016, p. 13, 14)
Já no segundo encontro:
Passou-se algum tempo. Eu morava em outra pensão.
Certa noite, voltava já muito tarde para casa, adiando o
momento de dormir; fazia calor, havia luar, as ruas
estavam perfumadas. No meio de uma quadra quase às
escuras ouvi alguém rir, cantar, vociferar ao mesmo
tempo, um atropelo de palavras e guinchos histéricos,
rápidas trocas de frases que se entrecortavam e eram
retomadas no instante seguinte. Então vi Abel brincando
e cabriolando numa brancura de palm beachsob a lua, o
rosto o véu branco com vazados de sombra. Estava
falante, mudado absolutamente invertido Abel correndo
seu amok pela cidade. Um grupo de pessoas deve ter rido
dele enquanto passava; então ele se soltou, vinha se
exibindo, enlouquecido e solto, provavelmente drogado;
nem me viu passar, dava pulinhos de felicidade e
cantarolava, ria de sua própria brincadeira, por fim
começou a cantar uma canção e desapareceu na esquina.
(CORTÁZAR, 2016, p. 15, grifo do autor)
Chama atenção aqui que o narrador não questiona a realidade nem a causalidade, pelo
contrário, a realidade é “restabelecida” e “não-conflitiva”, utilizando termos empregados por
Chiampi. Os dois momentos distintos em que o narrador teve contato com Abelito chamaram,
sim, sua atenção. No entanto, não houve tentativa de explicação ou entendimento em relação à
mudança ou ao comportamento do personagem. Ou seja, os personagens do realismo
maravilhoso não tentam mudar a feição das ocorrências observadas, por mais inusitadas que
possam parecer.
Ao dar atenção às obras e ao autor, temas desse estudo, é necessário considerar alguns
aspectos do trabalho de Cortázar que são importantes para compreender o processo elaborado
pelo escritor, no qual pensava a linguagem como artifício para a sua criação, mas também era
um dos motes de todo o seu empreendimento, conferindo-lhe um alto grau de individualidade.
Cortázar explica suas transições, afirmando que: “(...) passou do culto da literatura
pela literatura, passando do culto da literatura como indagação do destino humano e depois à
literatura como uma das muitas formas de participar dos processos históricos que concernem a
cada um em seu país.”. (CORTÁZAR, 2018, p. 23)
102
Capaz de desconstruir paradigmas convencionais por meio da sua escolha estilística, o
autor incorpora hibridismos aos seus textos, dando-lhes movimento, percorrendo os gêneros e
incorporando referências de outros contextos em suas criações. Dessa forma, suas obras se
distinguem por tratarem, também, de um agrupamento de recortes e colagens advindos de
outros suportes, formando um mosaico estrutural, organizados no viés entre o espaço-tempo
da elaboração da narrativa. Andrés Fava afirma em seu diário que: “O literário resulta da
combinação de heterogeneidades em potencial com heterogeneidades em ação”.
(CORTÁZAR, 2016, p. 37)
O personagem Andrés parece falar por seu criador. É o que Cortázar explica nas aulas
em Berkeley:
A narrativa sofre interrupções ao não obedecer a um fluxo lógico e por expressar uma
103
dinâmica difusa capaz de deslocar o leitor de uma linha habitual para outra imprevista. Todo
esse jogo construído por Cortázar desenvolve-se de forma lúcida, não se estabelecendo como
uma casualidade. Cortázar, na verdade, como nos esclarece Arrigucci Jr. (1995, p. 20):
Joga com todas as possibilidades da linguagem, ao
mesmo tempo que a ironiza (...). Destrói códigos
desgastados da tradição literária hispano-americana e
recolhe outros ainda vivos do passado (...). Sugere o
fragmentário e o caótico, zomba da coerência com o
próprio conjunto, mas acaba por deixar liames seguros
entre as partes e o todo, travadas relações entre os
elementos estruturais, o que mantém a tensão interna da
obra e garante a sua eficácia estética.
Outro ponto a ser considerado, e que faz parte desse jogo, é o advento gradual do
realismo maravilhoso na literatura hispano-americana, a partir da primeira metade do século
XX. Advento que pode ser identificado muito facilmente em personagens como Fava, quando
relata passagens que confundem a verdade com sonhos, ilusões e impressões. Traços como a
realidade imprecisa e a naturalização do irreal e do estranho se fazem presentes. Chiampi
(1995, p. 61) considera que: “(...) no realismo maravilhoso o efeito de encantamento do leitor
é provocado pela percepção da contiguidade entre as esferas do real e do irreal – pela
revelação de uma causalidade onipresente, por mais velada e difusa que esteja”.
Como personagem escritor, Fava assevera a adoção dessa tendência quando explicita:
“não pude nunca escrever bem a história que mostraria essa imbricação da literatura e do
objetivo, e ao mesmo tempo o voluntário afastamento daquela, que no fundo odeia o
realismo” (CORTÁZAR, 2016, p. 107, grifo do autor).
Alguns escritores lidos por Fava são mencionados por ele, os quais, segundo a
personagem, souberam medir essa “literatura de espelhos” e “tomar a distância que o espírito
organiza para conjecturar suas argúcias em um plano em que os elementos estejam mais
104
próximos dele do que da realidade em bruto”. (CORTÁZAR, 2016, p. 107)
Fava, assim como Cortázar, tinha a ambição de escrever uma “criação absoluta, sem a
possibilidade de erro, o acordo entre uma ideia e seu juízo, entre o sentimento e sua imagem,
entre uma vontade e sua projeção e sua práxis” (CORTÁZAR, 2016, p. 37). Talvez ele
perseguisse a linguagem para alcançar a concretização desse ambicioso desejo de intelectual,
enquanto artista das palavras.
Narrar com o linguajar próprio de sua nação constitui-se como uma prática altamente
militante, uma vez que este escritor conta a história do seu povo, utilizando a sua língua que é
também elemento de sua identidade, e exerce um papel fundamental, pois registra uma época
e ajuda a colocar em evidência um local que, muitas vezes, não consegue ter voz, pois seu
prestígio é considerado menor do que o prestígio concedido a outras localidades.
Por vezes, questiona-se sobre a possível não realização da expressão precisa dos seus
pensamentos no ato da escrita. No entanto, esse mesmo pensamento, que não é expresso
exatamente como gostaria, tem a capacidade de alcançar outras múltiplas significações.
Com isso, Diário de Andrés Fava também vem para tentar “romper moldes mentais”,
como disse o autor se referindo a O jogo da amarelinha (CORTÁZAR, 2018, p. 251). Uma
105
ambição do escritor ao brincar com a semântica, compondo um jogo estético capaz de
desmontar e, parafraseando-o, desmascarar até mesmo a personalidade das palavras que, na
maioria das vezes, têm seus significados cristalizados pela tradição. Cortázar foi capaz de
criar metáforas instigantes como outra forma de realizar as possibilidades do realismo
maravilhoso.
O tipo da ficção trazida por Cortázar em O livro de Manuel, no qual ele insere o leitor
no contexto político vigente na década de 1970, na Argentina, “(...) sugere que reescrever ou
reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente,
impedi-lo de ser conclusivo” (HUTCHEON,1991, p. 147). E é isso que ele faz ao trazer
recortes de jornais e seus personagens produzirem uma espécie de manual destinado ao bebê
Manuel, como uma forma de orientá-lo politicamente e, também, para possibilitar ao leitor a
leitura de uma obra cujo valor não está apenas no prazer literário, mas também no
conhecimento do que “sucedia em torno do livro enquanto o seu autor o estava escrevendo”
(CORTÁZAR, 2018, p. 302); e, ainda citando Hutcheon (1991, p. 231): “o que se ganha é
uma consciência ideológica quanto à repressão política, social e linguística na América Latina
e também quanto às formas de possível resistência”.
Sobre isso, Andrés Fava também deixa registrado menos a história e mais os
sentimentos humanos compartilhados por muitos cidadãos da época e até dos dias atuais.
Cortázar explorou o estilo de suas obras de modo plural, apresentando um objetivo definido
para cada recurso adotado. Comparada por Arrigucci Jr. a um labirinto, a obra de Cortázar é
mesmo bastante diversa. Por isso, o ideal é “penetrar o labirinto: desmontar e remontar o
traçado, em busca do sentido de um projeto que é um buscar permanente. Uma linguagem à
caça de outra linguagem que já se busca e enrodilha num complexo traçado” (ARRIGUCCI
JR,1995, p. 19).
106
5. PALAVRAS E CONFIRMAÇÕES FINAIS
Embora os estudiosos se dividam com relação aos feitos, às origens, aos integrantes
etc., reconhecer o projeto do boom é admitir o movimento que reuniu, aproximou, criou laços
e amizades; por identificação ligou ficcionistas hispânicos que se encontravam em distintos
países – e como no caso de Cortázar, não só na América – e juntos, todos subiram. Chegaram
ao pódio e puderam fazer o que de melhor sabiam: uma literatura genuinamente latina.
Valendo-se de teorias, personagens e cenários próprios. A partir de então, findou-se a ideia de
reproduzir a estética de cânones europeus ou estadunidenses. Isso significa dizer que o boom
os colocou na posição necessária e dali então, a sua maneira, os intelectuais de esquerda
influenciaram a sociedade, ao se posicionarem contra as ditaduras militares.
Para além disso, Diário de Andrés Fava (1950) e O livro de Manuel (1973) são
vivências literárias que se complementam. A análise simultânea das ficções permite
acompanhar a trajetória de Andrés, e com isto, inferir que houve mudanças nas concepções,
valores e engajamentos do próprio Cortázar. No outro lado da ponte, de forma simultânea à
dele, encontra-se seu cúmplice, o leitor, que, naturalmente, desliza entre as buscas de ordem
pessoal e metafísica e as buscas coletivas e sociais. Conforme o autor, a literatura deve ser
uma “ponte viva de homem para homem”. (CORTÁZAR, 1963, p. 450)
108
REFERÊNCIAS
AYÉN, Xavi. Aquellos año sdel boom. Barcelona: RBA Libros, 2014.
ALAZRAKI, Jaime. Prólogo da obra crítica – Vol. 2 in CORTÁZAR, Julio. Obra crítica.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: ______. A Utopia Antropofágica. São
Paulo: Globo, 1990.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política. Trad.
Sérgio Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1996.
BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Trad. Luiz Carlos Cabral. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.
109
BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote (1939). In: ______. Obras
Completas (Vol.4). Buenos Aires: Emecé Editores, 2005.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio
(org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2007.
CAMPOS, Haroldo de. Da Tradução como Criação e como Crítica. In: Metalinguagem e
outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
CAMPOS, Charlles. O inclassificável Julio Cortázar. Sul 21. Rio Grande do Sul. 27 abr.
2011. Disponível em: https://www.sul21.com.br/noticias/2011/04/o-inclassificavel-cortazar/.
Acesso em: 04 fev. 2020.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª edição. Ouro sobre Azul | Rio de Janeiro
2006.
CARVALHO, Marco Antonio Serafim de. Julio Florencio se torna Cortázar: o peronismo
visto através da literatura. 2014. Dissertação (Mestrado em História) –, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, UFF, Niterói, 2014.
110
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação - Escola de Comunicações e Artes, USP, São
Paulo, 2017.
CORTÁZAR, Julio. Aulas de literatura. Berkeley, 1980. Trad. Fabiana Camargo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
CORTÁZAR, Julio. Diário de Andrés Fava. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2016.
CORTÁZAR, Julio. Esencia y misión del maestro. Revista Argentina. Publicación mensual
de los alumnos de la Escuela Normal de Chivilcoy, Chivilcoy, nº 31, 20 de diciembre de
1939.
CORTÁZAR, Julio. “No meu coração a América Latina existe como uma unidade”.
[Entrevista cedida a] Viviana Marcela Iriart. Revista Semana, Caracas, 1979. Disponível em:
https://vivianamarcelairiart.blogspot.com/2012/11/julio-cortazar-entrevista-e-carta.html.
Acesso em: 3 jul. 2020.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São
Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.
111
DARNTON, Robert. O que é a história do livro? In: A questão dos livros: passado, presente
e futuro. Trad. Daniel Pellizzari. Companhia das Letras: São Paulo, 2010.
EAGLETON, Terry. O que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. Trad.
Waltensir Dutra. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2003.FERNANDES. Claudemar Alves.
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Além dos limites do possível: ficção e política. In:
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens,
1992.
GOMES, Renato Cordeiro; MARGATO, Izabel. Políticas da ficção. Belo Horizonte: UFMG,
2015.
HERNANDO, Silvia. Trasla mecha del ‘Boom’. [S1]. El País, 31 out. 2012. Disponível em:
https://elpais.com/cultura/2012/10/31/actualidad/1351687151_103046.html. Acesso em: 15
jan. 2020.
HERRÁEZ, Miguel. Julio Cortázar: una biografía revisada. Barcelona: Alrevés, 2011.
112
HOISEL, Evelina. Silviano Santiago e seus múltiplos. CUNHA, Eneida Leal (Org.).
Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2008.
HOISEL, Evelina. Teoria, crítica e criação literária: O escritor e seus múltiplos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
HUNT, Lynn. A nova história cultural. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
JULIO Cortázar a fondo. Direção e produção: TRASBALS S.A. Canal: 50 RTVE, 1977.
Disponível em: https://www.rtve.es/alacarta/videos/a-fondo/entrevista-julio-cortazar-
programa-fondo/1051583/ . Acesso em: 21 de jan. 2020.
KEHL, Maria Rita. Minha vida daria um romance. In: BARTUCCI, Giovana (Org).
Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Organizadora: Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2001.
MARCUSE, Herbert. A contestação juvenil. Trad. Maria Ester Vaz da Silva. Rio de Janeiro:
Salvat Editora do Brasil, 1979.
MARTINS, Luís Carlos dos Passos; LIEBEL, Vinícius. A Revolução Cubana e suas
recepções: imprensa e academia. Revista Contemporânea, vol. 2, n° 8, p. 1-24, 2015.
113
MELO, Elza Duarte de. Mirar e narrar: as formas do olhar nos contos de Julio Cortázar.
2011. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística), Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Goiás, 2011.
RAMALHO, Christina. O sujeito épico. In: SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO,
Christina. História da epopeia brasileira. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, parte II.
RANK, Otto. (2013). O duplo: um estudo psicanalítico. (E. L. Schultz, trad.) Porto Alegre:
Dublinense.
SANTOS, Roberto Corrêa. O exterior. In: AUTOR(ES). Modos de saber, modos de adoecer;
o Corpo, a Arte, o Estilo, a História, a Vida, o Exterior. Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. 2 ed. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009.
115
TAVARES, Bráulio (seleção e apresentação). Páginas de sombras: contos fantásticos
brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 3 ed. Rio de Janeiro:
DIFEL., 2010.
VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. João
Alexandre Barbosa. São Paulo: Iluminuras, 1991.
YURKIEVICH, Saul. Um encontro do homem com seu reino. In: CORTÁZAR, Julio. Obra
crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
116