2016 Tese Ppffilho
2016 Tese Ppffilho
2016 Tese Ppffilho
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
A LETRA E O TEMPO:
A ESCRITA DE O. G. REGO DE CARVALHO
ENTRE A FICÇÃO E A HISTÓRIA DA LITERATURA
FORTALEZA
2016
PEDRO PIO FONTINELES FILHO
A LETRA E O TEMPO:
FORTALEZA
2016
PEDRO PIO FONTINELES FILHO
A LETRA E O TEMPO:
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
Em 1953, foi lançado o livro Ulisses entre o Amor e a Morte, considerado a estreia literária de
Orlando Geraldo Rego de Carvalho. À época, a publicação levantou críticas no sentido de ser
tratada ou não como uma obra de “literatura piauiense”, visto que não trazia as temáticas
tomadas como regionalistas, tais como a seca, a miséria e a fome. Ao longo de sua trajetória,
o literato se envolveria em outras polêmicas ligadas à intelectualidade, sobretudo à literatura,
quando afirmara que não existia a “literatura piauiense”. Esse posicionamento trouxe à tona,
de forma mais enfática, debates sobre o status da literatura, e suscitou reflexões acerca do
cânone e questões de fronteira. Além disso, fez acentuar discussões paralelas sobre a própria
história da literatura, no tocante à autoria, biografia, produção, publicação, circulação e leitura
dos textos literários. O objetivo principal deste estudo foi compreender a obra do literato
como indício das ranhuras inerentes à (re) invenção e à história da “literatura piauiense”. O
recorte temporal que conduziu o presente estudo transitou pelo interstício entre 1953 e
princípios dos anos 2000. O marco inicial se refere ao ano da “estreia” literária do escritor,
enquanto que o recorte final leva em conta as antologias e fortunas críticas, bem como as
edições didáticas que abordam a obra do literato e a produção literária de forma geral. Vale
ressaltar que recuos e avanços no recorte temporal foram realizados, para contemplar aspectos
pertinentes às problematizações, incluindo traços biográficos. Nesse sentido, o universo
documental foi composto pelos livros publicados pelo literato, notadamente Ulisses entre o
Amor e a Morte (1953), Rio Subterrâneo (1967), Somos Todos Inocentes (1971) e Como e por
que me fiz escritor (1994); livros em forma de antologias e fortuna crítica, que analisam as
obras do literato; artigos publicados em sítios da internet; além de edições didáticas voltadas
para estudantes e preparadas para vestibulares. Como arcabouço teórico-metodológico, foram
utilizadas as proposições de Pierre Bourdieu (2010), Roger Chartier (2014, 2010, 2002) e
Michel de Certeau (2011), dentre outros, para pensar o “campo literário” em suas diferentes
manifestações, desde as relações de poder, bem como a história da literatura, do livro e da
leitura. O estudo considerou, então, que a obra do literato é fulcral para a análise das relações
de poder entre a Letra e o Tempo, entre a ficção e a história da literatura.
In 1953 was published the book Ulisses entre o Amor e a Morte, considered the literary debut
by Orlando Geraldo Rego de Carvalho. At that time, the publication raised criticism about
being treated or not as a book of “Piauiense literature”, whereas it didn’t bring themes taken
as regionalists , such as dry, poverty and hunger. Along his trajectory, the author was
envolved in other controversy linked to intellectuality, especially to literature, when he said
that the “Piauiense literature” didn’t exist. That point of view brought to light, more
emphatically, discussions about the status of literature and raised reflections about canon and
border issues. Besides that, it expanded parallel discussions about the history of literature,
regarding the authorship, biography, production, publication, circulation and reading of the
literary texts. The main objective of this study was understand the work of the writter as
evidence of the slots inherent in (re) invention and history of the “Piauiense literature”. Time
frame that conducted the presente study transited the interstice between 1953 and the early
2000’s. Initial mark refers to the year of literary “debut” of the author, while the final mark
takes into account the anthologies and critical fortunes, as well as the educational issues that
approach the author’s work and the literary production in general. It’s noteworthy that
setbacks and advances on time frame were done, to contemplate relevant aspects to the
problematizations, including biographical traits. In this sense, the documentary universe was
composed of the books published by the author, notedly Ulisses entre o Amor e a Morte
(1953), Rio Subterrâneo (1967), Somos Todos Inocentes (1971) and Como e por que me fiz
escritor (1994); books in form of anthologies and critical fortune, that analyze the
author’work; article published on internet sites; besides educational issues aimed at students
and prepared for college entrance exams. As theoretical and methodological skeleton, it used
the propositions by Pierre Bourdieu (2010), Roger Chartier (2014, 2010, 2002) and Michel de
Certeau (2011), among others, to think the “literary field” in its different manifestations, since
relations of power, as well as the history of literature, of book and of reading. The study
considered, thus, that the author’s work is central to the analysis of the relations of power
between the Letter and Time, between fiction and the history of literature.
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 12
2 ESCRITAS DE SI E OUTROS TRAÇOS BIOGRÁFICOS............................ 22
2.1 Entre o Ser e o Escrever................................................................................. 23
2.2 Da aparição e (des) encantos do autor............................................................ 37
2.3 Quente era a manhã em novembro................................................................. 60
1 INTRODUÇÃO
Genial, brilhante, inovador, criativo. Esses são alguns dos muitos adjetivos que
enaltecem a produção literária de Orlando Geraldo Rego de Carvalho2 - conhecido como
O. G. Rego de Carvalho - que ele próprio fazia questão de expor nas quartas-capas e
orelhas de algumas edições de seus livros, com comentários de críticos e literatos.
Contudo, ao lado desses predicativos, ainda há outros: polêmico, introspectivo, confuso.
Sua introspecção, processada nos “labirintos do eu”, manifesta-se em sua escrita, mas,
também, em seu agir ante seus círculos. Como homem público, em razão da circulação e
consumo de seus livros, bem como por ser membro da Academia Piauiense de Letras –
APL, preferia recolher-se em sua vida privada. Mesmo fazendo parte daquela agremiação
literária, buscava se relacionar com alguns que, em tese, compartilhavam dos mesmos
interesses, se enclausurando naquilo que Richard Sennet3 chamou de “guetos” ou
microcírculos. Isso não é marca unicamente do literato, pois faz parte de uma sociedade
cada vez mais intimista. Em seu caso, isso se deu, em certa medida, por seus problemas de
saúde e pelas ranhuras intelectuais nas quais se envolveu.
Desses últimos predicativos, o ser polêmico tem sido algo que tem marcado a
carreira literária do escritor, desde a publicação de seu primeiro romance, Ulisses entre o
Amor e a Morte, no ano de 1953. Livro de estreia que, no seio da intelectualidade que tem
se autodenominado “piauiense”, causou enorme frisson, por não ser um texto que se
assemelhava aos livros publicados pelos romancistas do estado. Não descrever ou versar
1
RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 38.
2
Nasceu em 25 de janeiro de 1930, na cidade de Oeiras, no Piauí. Mudou-se para Teresina, em 1942, onde
concluiu seus estudos. Foi membro da Academia Piauiense de Letras – APL, ocupando a cadeira de nº. 06.
Foi funcionário do Banco do Brasil, instituição pela qual se aposentou. Publicou os livros Ulisses ente o
Amor e a Morte (1953), Amor e Morte (1956), Amarga Solidão (1956), Rio Subterrâneo (1967), Somos
Todos Inocentes (1971), Ficção Reunida (1981) e Como e por que me fiz escritor (1989). Faleceu em 9 de
novembro de 2013, na cidade de Teresina.
3
SENNET, Richard. O Declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
13
sobre problemas de cunho geográfico ou natural, como a seca, teria sido um dos principais
pontos de estranhamento por parte de vários literatos considerados “piauienses” e
“nacionais”. Isso se deu porque “ao contrário da grande maioria dos companheiros de
geração, O. G. não se escudou no ‘regionalismo’ para contar ‘causos’ ou escrever prosa de
caráter sociológico”4.
Logo em seguida, ao negar a existência dessa “literatura piauiense”, o literato
colocou em suspeição algo que supunha unidade, formas imediatas e “uma vez suspensas
essas formas imediatas de continuidade, todo um domínio, encontra-se, de fato, liberado”5.
Essa liberação cerca-se, então, de conflitos gerados no interior desse domínio, do campo.
Campo esse cercado de agentes que concorrem entre si na sistematização e hierarquização
do poder, em um espaço estruturado com relativa e aparente estabilidade. O campo
cultural, do qual faz parte o campo literário, é o lugar das relações de força6. Relações tais
que se manifestam por meio de posições em que seus agentes atuam seguindo regras
específicas do campo, onde as disputas se desenrolam.
A narrativa de O. G. Rego de Carvalho está cercada das nuances para além de uma
escrita de um escritor “geólogo” e de “arqueólogo”, que busca nos detalhes a expressão do
mundo. Sua narrativa está na polaridade da palavra muda, na qual os detalhes remetem a
uma potência, que cria estranhezas no campo literário. Em razão disso, o presente estudo
tem o objetivo principal de compreender a escrita de O. G. Rego de Carvalho, como é
chamado e conhecido, inserida nas tensões de intelectualidade e de (re) constituição das
noções de uma “literatura piauiense” e de cânone. Busca-se escavar as “camadas” de
conflitos dos discursos, representações e interpretações que se avolumam sobre a sua obra.
A tese está centrada em apresentar os principais problemas das (re) leituras da escrita do
literato, com destaque para algumas chaves de leituras, como biografia, autor, autoria,
obra, livro, leitura, regionalismo, relações de poder e tempo. Chaves essas que se ligam às
noções de unidade “que é preciso deixar em suspenso”7 para se perceber o complexo
campo de discursos.
Ao afirmar, por longo período, que não concordava com a expressão “literatura
piauiense”, O. G. Rego de Carvalho suscitou, no seio dos literatos e demais intelectuais, o
4
SANTOS, Cineas. A coragem de ousar. Jornal Meio Norte. Teresina, 19/03/1997. Reproduzido em:
KRUEL, Kenard. (Org.). O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 278.
5
FOUCAULT, Michel de. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.
29.
6
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
7
FOUCAULT, Michel de. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 25
14
8
Essa é a concepção que norteia o livro de FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
9
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 32.
15
tensões nos quais o literato se envolveu acerca da chamada “literatura piauiense”? Como a
obra do literato contribui para a compreensão da expressão “literatura piauiense” como
algo historicamente construído? Como a escrita do literato sinaliza para as discussões
acerca da história da literatura?
Assim, esse estudo procurou analisar as condições de atuação de O. G. Rego de
Carvalho nos espaços de intelectualidade e a sua relação com os cânones ou campos da
literatura, que são fulcrais para a compreensão das especificidades de sua escrita sobre as
experiências humanas em cidades do Piauí (Oeiras, Teresina) e do Maranhão (Timon).
A obra do literato se apresenta como o fio condutor para a compreensão dos
diferentes aspectos histórico-discursivos da literatura que costuma ser denominada de
“piauiense”. Essa perspectiva remete aos mecanismos de invenção dos espaços, como
demarcadores de identidades, sendo, assim, indicativos das relações de poder que
instauram realidades e verdades. A literatura, assim, surge como possibilidade de análises
por se tratar de mais um discurso que não somente representa o real, mas que (re) cria
realidades. A literatura tida como “piauiense”, “regional” ou “nacional” faz parte do jogo
de relações no qual os discursos são vetores, pois “não se enunciam, a partir de um espaço
objetivamente determinado do exterior, são eles próprios que inscrevem seus espaços, que
os produzem e os pressupõem para se legitimarem”10. Os discursos ligados à essa invenção
da literatura assinalam e emolduram traços de coletividade, por meio de unidades
territoriais, linguísticas e emocionais. Denotam, em parte, a constituição dessas
demarcações em processo semelhante ao que foi, e tem sido, a invenção do Nordeste. Os
termos “piauiense”, “regional”, “regionalismo” são variantes e decorrentes de tal invenção,
assim como “cearense”, “pernambucano” e outros mais, com suas particularidades nessa
construção.
Por esse prisma, tais discursos, proferidos por O. G. Rego de Carvalho, bem como
sobre ele, tentam instaurar “espaços” ordenados e legitimados na literatura. Funcionam no
conjunto de estratégias, que postulam um lugar “capaz de servir de base a uma gestão de
suas relações com uma exterioridade distinta”11. É no bojo de tais relações que se
manifestam as noções das nomeações tais como “piauiense” e “regional”.
Metodologicamente, o trabalho toma como principais fontes os romances do
literato (Ulisses entre o Amor e a Morte (1953), Rio Subterrâneo (1967) e Somos Todos
10
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN,
Ed. Massananga; São Paulo: Cortez, 2001. p. 23.
11
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 46.
17
Inocentes (1971)) e seu livro de memórias (Como e Por que me fiz escritor – cuja primeira
edição data de 1989. Como essa edição não foi encontrada, nem mesmo nos arquivos do
literato, foi utilizada a segunda edição, de 1994); os livros e textos de escritores que
analisam e discutem a obra de O. G. Rego de Carvalho. Artigos contidos em revistas como
a Revista da Academia de Letras, Revista Cirandinha, Cadernos de Teresina e Presença
são os meios de mais vinculação dos comentários da vida literária apresentada como
“piauiense”. Pelo caráter da dispersão de artigos que falem sobre O. G. Rego de Carvalho,
recorreu-se, em grande escala, a artigos publicados em sites e blogs, como os da Fundação
Nogueira Tapety; de Kenard Kruel e de Francisco Miguel de Moura. Isso se deu com o
intuito de obter indícios dos posicionamentos e dos espaços de atuação do literato,
observando os conflitos e alcances de sua obra.
A partir dessas considerações iniciais, ressalte-se dizer que a tese está organizada
em cinco capítulos interdependentes, nos quais as fontes e as discussões teóricas estão
diluídas no intuito de harmonizar as análises. Assim, os capítulos se apresentam em:
Capítulo I, intitulado Escritas de Si e outros traços biográficos, no qual são feitas
discussões referentes à (auto) biografia e às contradições em se "classificar" a obra de O.
G. Rego de Carvalho, em decorrência da instabilidade da crítica literária e da produção
literária tidas como piauienses, além dos problemas conceituais como os termos "grupo",
"geração". O literato, por meio de sua obra, suscita as reflexões sobre o tempo. Sua não
aceitação de enquadramentos e sua autobiografia conduzem para o itinerário de expressões
de tempos simultâneos. Ainda são apresentadas as ranhuras surgidas entre O. G. Rego de
Carvalho e alguns intelectuais que analisaram ou se posicionaram sobre os seus livros e sua
postura em relação à literatura “piauiense”. As relações entre a crítica e a escrita do literato
na construção das noções de autor, autoria e cânone, que dão indícios para a invenção do
“ser piauiense” e da literatura. Nesse capítulo, ainda, há uma análise dos principais livros e
textos que analisaram a obra de O. G. Rego, como o livro de Francisco Miguel de Moura,
"Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho" e o livro de Kenard Kruel, "O.
G. Rego de Carvalho: fortuna crítica", que é o marco do recorte final da pesquisa, por se
tratar de uma obra que intenta sistematizar a obra de O. G. Rego de Carvalho.
No Capítulo II, Os rastros da escrita: a invenção da Literatura Piauiense,
problematizam-se a constituição da literatura “piauiense” a partir de narrativas ligadas às
imagens da seca e do vaqueiro, bem como de narrativas de ressentimento em decorrência
do isolamento do estado, com destaque para aspectos políticos e econômicos. As (re)
leituras e análises que alguns literatos e estudiosos fizeram sobre a obra do literato estariam
18
12
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
13
BLOOM, Harold. Op. cit.
19
para as noções de espaço, lugar e paisagem, pensadas nas relações de construção do “ser
piauiense”.
Discute, em um de seus tópicos, as leituras e interpretações feitas sobre a obra de O.
G. Rego de Carvalho, a partir das ilustrações das capas das edições dos livros do autor,
além de analisar as dimensões de materialidade temporalidade dos livros do literato. As
diferentes edições de seus livros trazem marcas das demandas de produção, circulação e
consumo, sobretudo no que se refere à editoração, no fluxo entre as edições feitas pela
editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro, e as edições produzidas pelo Caderno de
Letras Meridiano, editora Corisco e, mais recentemente, pela editora Renoir, todas em
Teresina.
Dentre essas editoras locais, a primeira fez parte do projeto de atuação literária do
Grupo Meridiano, do qual o literato foi membro e líder. A editora Renoir também está
ligada ao literato, pois a coordenadora editorial e revisora é sua esposa, a professora
Divaneide Carvalho. Há, ainda, as edições em espanhol, do livro Ulisses entre o Amor e a
Morte, sendo a primeira publicada pela editora da Universidade Federal do Piauí, e as duas
últimas pela Oficina da Palavra e pela Fundação Quixote, também todas em Teresina. As
edições apontam para as estratégias narrativas expressas desde a capa até a quarta-capa do
livro, demonstrando não só as adequações do texto, mas os textos a ele agregados, como os
comentários de orelha. No intuito, ainda, de, por meio da materialidade, mapear as
aproximações do literato com outros escritores, tomam-se algumas cartas recebidas por ele
e as dedicatórias que ele fez em seus livros, endereçadas a alguns intelectuais, funcionando
como sua correspondência ativa.
No capítulo IV, O Direito (dever) de resposta, são apresentadas algumas
discussões a partir das leituras, interpretações e apropriações que intelectuais e críticos
fazem da obra do literato e retoma, assim, o debate sobre o “ser piauiense” da literatura.
Isso, inclusive, fomentou inúmeros debates de professores e intelectuais sobre o uso do
termo “piauiense” e variações, bem como sobre o próprio ensino de tal literatura. Assim,
tomam-se algumas observações do literato, objetivando analisar suas posturas sobre o que
é pensado acerca de sua obra. Para tal, utilizou-se, fundamentalmente, o livro Como e Por
que me fiz escritor, de 1994, no qual o autor apresenta uma série de “esclarecimentos”
acerca de sua biografia, escolhas e trajetórias como literato. Ele apresenta alguns detalhes
de como seus livros foram pensados e as suas considerações sobre a recepção deles por
parte da crítica no Piauí e em outros estados do país.
20
do “eu” do literato. É preciso percorrer tais labirintos e subterrâneos sem perder os rumos
da análise e da interpretação. Esses labirintos são tomados como uma rede de discursos e
verdades que coadunam na (re) construção de noções do fazer e pensar literário, nos quais
O. G. Rego de Carvalho é o fio que conduz pelos labirintos dos quais ele também é parte.
Sua obra se inscreve na ligação entre a letra e o tempo, ou melhor, a letra no tempo,
visto que a sua escrita, e as ranhuras por ela ocasionadas, são indícios de que, no campo
literário, “os limites da letra” só podem ser entendidos na temporalidade em que a escrita é
produzida e consumida. Resta, assim, deixar o convite ao leitor para que se aventure nas
discussões que a sua escrita cravaram entre a ficção e a história da literatura.
22
2 ESCRITAS DE SI E
OUTROS TRAÇOS BIOGRÁFICOS
Os textos, em larga medida, não são uma criação com uma essência inédita. Todo
texto mantém interlocução com alguma outra forma narrativa, seja ela textual, imagética,
pictórica. Como destacou Michel Foucault28, nenhum texto é uma unidade absoluta e
hermética, pois “a obra não pode ser considerada como unidade imediata, nem como
unidade certa, nem como unidade homogênea”29. Essa percepção indica que o livro, como
elemento constitutivo da “obra” de um autor, está caracterizado por ser o “nó em uma
rede”.
Os traços biográficos, conforme as proposições de Pierre Bourdieu, por meio de sua
sociologia objetivista, devem ser entendidos como “colocações e deslocamentos no espaço
social”. Nesse sentido, as diferentes formas de dizer e escrever produzem sentidos e
significações que (re) criam as trajetórias de uma pessoa, em suas múltiplas relações com
os espaços nos quais se insere e com os quais dialoga e conflitua. Tal espaço social é o que
constitui os pontos dos nós na rede e os textos são indícios dessa conexão. Conforme
Gilberto Velho30, os projetos individuais, assim, como os textos a priori são concebidos,
terão o aspecto de sua interatividade ressaltado, pois mantêm relação com outros projetos,
imersos em um campo de possibilidades.
27
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. (Orgs.).
Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 190.
28
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
29
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 27.
30
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999, p. 46.
23
As obras literárias, como destaca Abel Barros Baptista, estão circunscritas em uma
rede de intencionalidades em meio a códigos compartilhados na “inter-relação entre as
partes e entre cada parte e o todo, projetando a obra contra a resposta prevista de um leitor
hipotético”31. Nesse sentido, aspectos (auto) biográficos de O. G. Rego de Carvalho são
pertinentes para o vislumbre de sua escrita nos pontos de intersecção de tal “rede”. Muitos
elementos podem ser relevantes na compreensão do que venha a ser a obra de um
indivíduo, tomando sua vida como ponto de interlocução. Dessa maneira, “pode parecer
especialmente difícil acreditar-se nisto quando o interesse é apenas por sua obra, e não pelo
ser humano que a criou”32. Por esse viés, pensar a história e a intelectualidade, a partir da
escrita do literato nascido na antiga capital piauiense, é atentar para o aspecto de que a
“relação do texto com o real constrói-se de acordo com modelos discursivos e recortes
intelectuais próprios a cada situação de escritura”33. Situação tal que não se dá pelas
harmonias, mas, principalmente, pelas tensões e (des) encontros de ideias e conceitos que
são vinculados no seio de um campo intelectual.
Mais que a simplista postura de negar a existência do autor, Foucault amplia essa
noção, asseverando quatro características básicas do que ele denominou de função autor.
Sendo a quarta característica a que determina a função autor como a possibilidade de
distinção entre os vários “eus” que cada indivíduo pode assumir na obra. Traçar um
percurso pela vida do escritor é tentar localizar de que forma esses “eus” vão se
constituindo anteriormente e ao longo de sua obra.
Assim, pensou-se como a escrita de si constrói a imagem do autor, imagem que
pretende convencer os leitores, mas nunca consegue, visto que a imagem criada pela leitura
possui traços independentes das intencionalidades do autor. Partindo da premissa de que
para compreender a obra de um autor se faz necessário adentrar em certos aspectos de sua
vida, é que algumas incursões foram feitas na vida do literato piauiense. Isso não foi
realizado como um trabalho que cria ou reforça a dicotomia entre autor e obra. A proposta
foi a de enveredar por suas relações com os espaços de intelectualidade e as maneiras e
31
BAPTISTA, Abel Barros. Autobiografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas,
SP: EDUNICAMP, 2003, p. 189.
32
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 10.
33
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002, p. 56.
24
34
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 4. ed. Portugal: Veja/Passagens, 2002, p. 39.
35
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
25
O que está em jogo, nessa ênfase feita por ele, é o esforço de demonstrar que suas
marcas literárias teriam uma espécie de essência. Sua “genialidade” é ressaltada de
maneira a não parecer sua auto-exaltação, pois sua carreira de escritor, segundo ele, teria
sido algo que aconteceu ao acaso, por acidente. Não se pode deixar de destacar que se trata
de um discurso de alguém que pretende se legitimar, ou seja, é uma escrita de si.
Sua escrita não está dissociada de suas relações familiares. Sua erudição e seu
apego às tradições de uma escrita culta têm suas bases na sua história familiar. Seu estilo
pautado em uma escrita normativa rendeu-lhe inúmeras críticas, rotulando-o de “refém da
gramática”. Para ele, o apego a uma escrita “gramatical” seria resultado das trajetórias
familiares, de seus contatos com leituras que, desde a infância, lhes eram comuns. Ele diz,
em entrevista de 1982, o seguinte:
36
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 28.
37
CARVALHO, O. G. Rego de. O. G. Rego de Carvalho. Entrevista concedida a Cineas Santos. Teresina:
Revista Presença, p. 20, Set/Nov de 1982.
26
Meu pai, por exemplo, era apenas comerciante, mas lia em francês e vivia
a corresponder-se com um ilustre professor que morava em Simplício
Mendes, Da Costa Andrade, que era amigo de Jorge Amado. Os dois
trocavam livros, discutiam obras, comentavam as novidades. De tudo
isso, ficou também alguma influência.38
Algo de interessante nessa observação sobre a capacidade intelectual de seu pai não
é apenas chamar atenção para o seu contato com o “ilustre professor”, que, para ter sua
importância legitimada, é mencionado como amigo de Jorge Amado. Seria uma tentativa
de legitimidade por derivação e não por merecimento. O escritor busca indícios de sua
genialidade por meio da genealogia. Ainda sobre essa dimensão da genialidade, O. G.
Rego de Carvalho se posiciona na tentativa de distinguir um gênio de um louco. Para ele,
Loucura é mesmo alienação mental. Mas isso não impede que conviva
com a genialidade, que é também uma forma de exacerbação da
personalidade. Segundo Aristóteles, não existe nenhuma grande obra sem
uma ponta de loucura. E eu, de mim, antes de conhecer o filósofo, já
contestava a razão na literatura, pois, se serve de esteio aos pensadores, é
a morte do artista.39
38
CARVALHO, O. G. Rego de. O. G. Rego de Carvalho. Entrevista concedida a Cineas Santos. Presença.
Teresina. set/nov/1982. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 325.
39
CARVALHO, O. G. Rego de. Romancista O. G. Rego de Carvalho. Entrevista concedia a Pompílio
Santos. Jornal O Estado. Teresina. 21,22/12/1975. Reproduzido: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de
Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 316.
40
Jornalista e Presidente da Associação Brasileira de Escritores – Secção do Piauí. A ABE-PI funcionou de
1947 a 1950. O. G. Rego de Carvalho foi membro dessa associação, mas logo foi desligado dela por não
concordar com as formas de ingresso de membros.
27
Nesse sentido, nos rastros de sua tentativa de fugir de qualquer tipo de filiação ou
vinculação, destaca-se outra dimensão da vida do autor piauiense, que se refere a sua
relação com o Banco do Brasil, órgão no qual trabalhou e pelo qual se aposentou. Muitos
literatos, ao longo da história da literatura brasileira, quase sempre se utilizaram de
recursos e espaços cedidos por instituições várias para a produção ou divulgação de suas
obras. O. G. Rego de Carvalho comenta essa passagem de sua vida como algo que não
pode ser confundida com sua constituição como autor. Para ele, não haveria espaço para as
duas dimensões, para duas “vidas”. Não era possível misturar duas realidades, que,
segundo ele, eram de matrizes diferentes.
O. G. Rego de Carvalho pretendia ter sua obra reconhecida de forma
“independente”. Sua escrita deveria ser valorizada pelo seu teor, pelo seu alcance, pelas
sensibilidades que intentava despertar. Não queria ter sua escrita balizada pelo peso de uma
instituição, ainda mais de cunho financeiro e de tão grande reconhecimento como o Banco
do Brasil. Isso não significa que o escritor piauiense não tenha o seu respeito e seu
agradecimento ao banco, pelo contrário, ele é profundamente grato. Por outro lado, sua
escrita está ligada à sua vida, às suas relações com o mundo e com os espaços de produção
intelectual, como ele faz questão de ressaltar:
41
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 38.
28
42
LEJEUNE, Philippe. O Pacto autobiográfico: de Rosseau à internet. Belo Horizonte: EDUFMG, 2008.
29
narrativas memorialísticas, bem como orientações de como “ler e interpretar” sua obra. O
pacto autobiográfico em O. G. Rego de Carvalho dar-se-á na fricção dos elementos
presentes nos seus romances e no seu livro de memória, Como e por que me fiz escritor.
Nos romances estão presentes as experiências dos personagens, que são identificados com
o autor na medida em que as memórias e a vida dele são apresentadas por ele mesmo ao se
explicar como se tornou escritor.
Nesse sentido, o pacto autobiográfico surge não diretamente em seus romances,
mas no momento da aproximação deles com seus outros textos, assim como em suas falas
e entrevistas. A partir de tal contato entre romances e memórias surgem alguns aspectos da
autobiografia em O. G. Rego de Carvalho, visto que esse gênero se trata de uma narrativa
introspectiva, na qual a pessoa que realiza a escrita está implementando uma reflexão sobre
suas experiências, desde as mais íntimas até as mais públicas. Isso não quer dizer que a
“obra completa”, ou cada livro específico, seja autobiográfico, mas ela constitui indícios
que ajudam a compreender traços da autobiografia. As experiências do autor são mescladas
entre a sua intimidade como adolescente, algo presente em seus três principais romances,
especialmente em Ulisses ente o Amor e a Morte (1953), e sua vida como escritor e suas
relações com o universo da intelectualidade piauiense e nacional.
O que se pretende dizer aqui é que o pacto autobiográfico não está facilmente
disposto na obra de ficção do escritor, pois, como adverte Lejeune, não é fácil conceituar a
autobiografia, nem é fácil, também, propor uma fórmula ou esquema hermético para sua
análise. A autobiografia se dá nos enlaces do texto, do autor, do leitor e das temporalidades
que engendram tal relação. É preciso descobrir os limites em se transitar nas páginas da
vida de seus romances e na ficção de suas memórias, pois nos romances podem existir -
não necessariamente - inúmeros traços da memória e de sua vida, bem como nas memórias
há traços de ficção, ou melhor, de seleção, pois a memória é seletiva.
Tanto em seus romances, como no livro de memórias, aparecem características do
texto autobiográfico. Isso pode ser visto no enredo do romance autobiográfico que não se
baseia no “curso típico e normal de uma vida, mas em momentos típicos e fundamentais de
qualquer vida humana: o nascimento, a infância, os anos de estudo, o casamento, a
organização de um destino humano, os trabalhos e as obras, a morte, etc”43. A dimensão
autobiográfica, desse modo, não pode ser pensada fora das suas referências a certas
características do ser humano. Características como a infância, anos de estudo e a morte
43
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 231-232.
30
estão presentes em Ulisses entre o Amor e Morte (1953) e em Rio Subterrâneo (1967), mas
que são tomadas como sendo de matriz autobiográfica a partir das memórias e comentários
feitos em Como e por que me fiz escritor (1994), que, por sua vez, traz as características
dos trabalhos e das obras de um romance autobiográfico. Com isso, as argumentações de
Lejeune sobre a complexidade de definições e caracterizações da autobiografia se
acentuam, pois tal gênero se manifesta nas redes narrativas e nas tramas da textualidade.
A escrita de O. G. Rego de Carvalho, em seus romances, flerta com a autobiografia
sem a ela se entregar passivamente. As projeções de si e de sua imaginação, como ele
mesmo diz em algumas de suas entrevistas e em seu livro de memórias, alimentam as
possibilidades de interpretação, sem, contudo, perder de vista as suas intenções de
“controle” ou autorização das leituras que são feitas sobre seus livros. Por esse diapasão,
buscar a lógica da autobiografia como obra de arte do campo intelectual e literário “é tratar
essa obra como um signo intencional habitado e regulado por alguma outra coisa, da qual
ela também é sintoma”44. Tal intencionalidade não se refere unicamente aos desejos do
artista, do literato, pois há os elementos presentes e atuantes do campo artístico, que,
mesmo sendo criticado ou negado, ainda assim é um dos pontos de partida e de
compreensão da obra produzida. Contudo, é mister ponderar que, mesmo mediante os
ditames sociais e da realidade, tal “realidade com a qual comparamos todas as ficções não
é mais que o referente reconhecido de uma ilusão (quase) universalmente partilhada”45. A
realidade, como referente para a ficção, é experimentada e (re) construída, inclusive, pela
própria ficção, em um sentido de referência e de criação, tendo, nessa relação, os jogos e as
“regras da arte”. É nessa fricção entre real e realidade, referente e representação, escrita,
leitura e interpretação, produção, circulação e consumo que se inscrevem as dinâmicas do
campo intelectual e artístico.
Por tal razão, ao escrever sua autobiografia, mesmo que diluída em seus livros, O.
G. Rego de Carvalho intenta recriar a si mesmo, conduzindo, inclusive, as imagens, ideias
e pensamentos que são feitos sobre ele e sobre sua escrita. Nessa dimensão de realidade e
de ficção imbricadas, a dimensão autobiográfica da escrita de O. G. Rego de Carvalho se
instaura. Significa dizer que a autobiografia se insere, também, nos atravessamentos de
identidades e temporalidades, pois seria o ato do pensamento, em sua fase de colocar em
julgamento as ações e experiências, como uma tentativa de retomada do tempo e
44
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 13-14.
45
BOURDIEU, Pierre. Op. cit, p. 50.
31
preenchimento das lacunas deixadas. A autobiografia busca, também, certa lógica para o
“caos” das vivências de uma pessoa, norteando, dessa forma, os olhares e leituras que são
feitas sobre o autor e sua obra. Limites de interpretação, ou interpretação direcionada,
podem ser objetivos de autobiografias, pois organizam a vida de alguém em uma sequência
narrativa.
Por tal prisma, a escrita de O. G. Rego de Carvalho está composta, como qualquer
discurso e texto, de realidades concorrentes entre si. Realidades próximas às experiências
vividas do escritor e realidades que se referem aos seus desejos. Isso é ainda mais tônico
no que tange aos textos literários, especialmente os do literato em análise, que falam de
seus livros como carregados de linhas autobiográficas, mas que não o são somente isso.
“Muita gente lê os meus livros e pensa que tudo é autobiografia”46. Questionando
essa postura em relação aos seus romances, ele assim diz: “Mas eu não escrevi minha
autobiografia. Eu fiz foi um romance, dando ao que escrevo uma sensação de realismo tal
que o leitor tenha a impressão de estar lendo algo real, embora haja um simbolismo”47. Ele
tece uma defesa da literatura por ele feita, buscando enfatizar suas diferenças de um relato.
Essa sua defesa, em princípio, contrariaria o seu próprio discurso, pois, ao se referir a
Ulisses entre o Amor e a Morte (1953), admite que se trata de um texto de um romance
autobiográfico. Isso levou os leitores, especialmente os críticos, a enquadrarem todos os
seus romances como sendo autobiográficos.
Mas como a autobiografia é valorizada ou não em determinada circunstância? No
instante da publicação da primeira edição de Como e por que me fiz escritor, em 1989, a
autobiografia, pelo menos a do literato, parecia ser importante para os críticos e
intelectuais. Para O. G. Rego de Carvalho,
Mais uma vez o romance do escritor se aproxima de seu teor autobiográfico. Então
por que ele não diz que sua obra é autobiográfica? Admitir que seus livros são
46
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 43.
47
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit. p. 44.
48
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 45.
32
autobiográficos seria admitir sua pouca habilidade criativa, pois, no imaginário do campo
artístico, o bom artista (escritor) seria aquele que busca fora de sua “realidade” os motivos
de sua narrativa. Não se pode atribuir à autobiografia toda e qualquer manifestação da
psique humana. Expressar ideias, pensamentos, angústias é comum aos homens e isso
significaria, então, que cada ser humano produz sua autobiografia. O ato de falar, de vestir,
de andar, de gesticular são externalizações de pensamentos, o que seria também uma
autobiografia. São precisos mais elementos para que ela seja vista como uma categoria de
(re) construção ou arquivamento de si.
O literato percebe a vinculação de um escritor a uma escola literária ou a uma
geração como um mecanismo que trata o tempo de forma linear. Seus livros, como ele
afirma, são realizações que se opõem ao tempo linear. Essa postura “combativa” em
relação ao tempo se assemelha ao combate travado por Henry Miller. De acordo com
Daniel Rossi e Edgar Cézar Nolasco, “o empreendimento milleriano é um grande combate
travado contra todas as transcendências: e a maior delas, a que nos coloca em uma ordem e
possibilita a experiência: o Tempo”49. No entanto, o combate se dá contra o tempo linear e
cronológico, sendo, então, o objetivo de Miller o “tempo livre, liso: espaço nômade de
mutação”. O. G. Rego de Carvalho busca um “tempo livre” para pensar a si mesmo e a sua
obra. Ele afirma:
Eu entendo que a vida de uma pessoa não começa nem termina com
morte; antes houve o feto, depois haverá a repercussão da morte dele, na
família e na sociedade. O romance, como concebo, não é senão um
fragmento da vida. Ele não pega a vida inteira, e onde quer que ele
termine, termina bem. Meus livros não têm, a rigor, nem começo nem
fim.50
O “todo caótico” dos livros do literato não indica incoerência, só não há a restrição
por parte de “uma ordem imutável nos assuntos humanos”51. Rio Subterrâneo (1967), por
exemplo, tem sido interpretado pela crítica como um livro sem linearidade, pois seus
capítulos não seguem uma cronologia.
49
ROSSI, Daniel; NOLASCO, Edgar Cézar. Tempo liberado? Ubiquidade temporal em Trópico de Câncer.
In: I ENCONTRO DO GRUPO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DE LITERATURA E TEORIA
LITERÁRIA – MOEBIUS. Anais. Dourados, MS: UFGD, 2010, p. 09.
50
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Menezes Y Morais. Jornal O Dia (Caderno Dois).
Teresina, 18, 19/02/1973. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 310.
51
ROSSI, Daniel; NOLASCO, Edgar Cézar. Op. cit, p. 03.
33
52
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 109.
34
Traçar a biografia de uma pessoa é notar que a “biografia visa a colocar uma
evolução e, portanto, as diferenças”54 que se manifestam não somente ao longo da vida,
mas, principalmente, as diferenças dela com as demais. A biografia, então, cria suportes
que tornam a pessoa como única, mas que apresenta traços que a aproximam das demais
que fazem parte do mesmo grupo ou que compartilham de ideias ou de práticas
relativamente comuns ou semelhantes. É no destaque das diferenças que se percebem não
só as exclusões, mas as inclusões da pessoa no grupo e na sociedade, ou seja, a biografia
revela as tensões entre as diferenças e semelhanças. Nessa perspectiva, quando O. G. Rego
de Carvalho relata, por meio da (auto) biografia, suas origens e interesses como escritor,
ele pontua as diferenças que o aproximam e o distanciam dos demais sujeitos no campo da
intelectualidade “piauiense”.
Por tal razão, mas não somente por isso, é que a História se aproxima da Literatura,
ou mais especificamente, da produção intelectual. A História, no sentido mesmo da
pesquisa e da prática escriturística, está circunscrita pelo lugar que define seus
procedimentos. O historiador está indissociavelmente ligado a um corpo (técnico,
acadêmico, institucional). De maneira análoga, a escritura nos espaços de intelectualidade
pode ser pensada e visualizada na imersão no corpo que a legitima. Quando a prática
53
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 109.
54
CERTEAU, Michel de. Op. cit, p. 297.
35
historiográfica ou literária oscila muito para “fora” desse corpo é o sinal de que ou o fazer
está destoante, ou a historiografia, tal qual a escrita literária, precisa repensar as suas
metodologias. É na aparente cisão entre o que é “permitido” e o que “proibido” pelo lugar
de partida da pesquisa, da narrativa e dos discursos, que a escrita e atuação de O. G. Rego
de Carvalho irrompem, vistas, a priori, como subversão ao lugar institucional e intelectual.
São os jogos e disputas das permissões e proibições que definem, em parte, os
espaços de produção, circulação e consumo da obra do escritor. O. G. Rego, mesmo sendo
visto como um excelente escritor, pelo menos posteriormente aos seus primeiros textos,
carrega o “estigma” de ser um escritor que não aceita os limites do “lugar”. Não só no
sentido do texto, mas nos espaços físicos, como é o caso da Academia Piauiense de Letras,
lugar do qual faz parte, mas lugar com o qual o escritor manteve uma relação entre o
respeito e as discordâncias. A escrita do literato se enverada nos meandros da história da
escrita literária piauiense, da própria história, pois “a articulação da história com um lugar
é a condição de uma análise da sociedade”55. As análises que surgem a partir dos atos
narrativos56 de O. G. Rego de Carvalho são invariavelmente enredadas pelas relações
sociais e institucionais às quais remetem.
Para olhar a vida do escritor O. G. Rego de Carvalho é preciso considerar que sua
vida se inscreve na vida de um grupo, seja de intelectuais, seja de leitores-consumidores.
Como ressalta Michel de Certeau, essa vida faz supor “que o grupo já tenha uma
existência”57. Mas “o grupo” não tem existência já determinada. O “grupo” vai se fazendo
por aqueles que vão fazendo o grupo existir. Nesse sentido, está na vinculação entre a
imagem do escritor e o lugar que ele ocupa. A escrita de O. G. Rego de Carvalho, vista em
sua inteireza entre o escrito e a atuação do escritor, dão os indícios para a visualização dos
espaços de sua circulação como intelectual. Assim, “o próprio itinerário da escrita conduz
à visão do lugar: ler é ir ver”58. Na leitura dos textos produzidos pelo escritor, é possível
chegar às tensões que tal escrita impulsionou e que dariam, de certa forma, elementos para
a constituição de sua identidade como autor.
A loucura apresentada na narrativa dos livros de O. G. Rego de Carvalho sinaliza
para uma realidade e uma temporalidade nas quais os comportamentos alienados não eram
considerados como uma preocupação de saúde pública ou com vieses humanistas. Nesse
55
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 64.
56
Por “atos narrativos” compreendem-se não só os textos publicados em livros, mas aqueles de jornais,
revistas, além de entrevistas e discursos que constituem o pensar do literato sobre o fazer literatura.
57
CERTEAU, Michel de. Op. cit, p. 292.
58
CERTEAU, Michel de. Op. cit, p. 302.
36
sentido, não se pode analisar a loucura presente em sua escrita sem atentar para as
configurações históricas do período de localização da escrita. Dessa maneira, “o sentido de
um elemento, na verdade, não é acessível senão através da análise de seu funcionamento
nas relações históricas de uma sociedade”59. Por essa perspectiva, a história não começaria
senão com a “nobre palavra” da interpretação. Nesse sentido, a interpretação faz parte do
trabalho do historiador, que faz, mediado pelas técnicas inerentes ao seu labor, o objeto ter
significações. Essa mesma interpretação é retomada nas análises que são feitas sobre a
escrita de O. G. Rego de Carvalho, seja sobre a forma, seja sobre o conteúdo. Tal
interpretação se materializa, em grande parte, naquilo que dá voz ao papel da crítica
literária, mas não impedindo as representações que também são feitas pela dimensão
parceira da imagem, da arte, no que se refere às ilustrações das capas dos livros do literato.
Dessa forma, a interpretação está no falar, no escrever, no sentir, ou seja, no representar a
narrativa do autor, pois sem a interpretação, a própria literatura deixaria de expressar uma
de suas principais características, que são as possibilidades. Contudo, no universo da
história, assim como no âmbito da produção literária e da crítica literária, as interpretações
não devem, e não podem, estar dissociadas dos aspectos técnicos, representados, em
demasia, pela metodologia.
É importante pensar que O. G. Rego de Carvalho, ao repensar sua trajetória por
meio da autobiografia, coloca-se no seio de uma prática que está presente em outros
escritores, como, por exemplo, José de Alencar e Gilberto Freyre. O primeiro escreveu
Como e porque sou romancista, escrito em 1873 e publicado em 1893; o segundo publicou
Como e porque sou e não sou sociólogo, em 1968. Alencar, em forma de carta, fala que o
seu texto remete a “alguns pormenores dessa parte íntima de nossa existência, que
geralmente fica à sombra, no regaço da família ou na reserva da amizade”60. Freyre,
pedindo licença aos literatos, diz-se, no somatório de suas “identidades” como sociólogo e
antropólogo e também como não sendo. Ele mesmo faz referência a esse tipo de texto, o
autobiográfico, mencionando que isso já havia sido feito por José de Alencar e diz que,
diferente do se dizer romancista, dizer-se sociólogo não era tão fácil61. O. G. Rego de
Carvalho também menciona o livro de José de Alencar:
Esse tema como e por que me fiz escritor não é novidade. Já no século
passado, José de Alencar escreveu um livro – que não li – chamado
59
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 314.
60
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas, SP: Pontes, 2005, p. 11.
61
FREYRE, Gilberto. Como e porque sou e não sociólogo. Brasília, DF: Editora da UnB, 1968, p. 41.
37
“Como e por que sou romancista”. José de Alencar escreveu esse livro
para contestar a crítica que se fazia a ele, dizendo que era um escritor
poético. José de Alencar não gostava dessas comparações, não. E dizia:
“Eu sou é romancista, eu sou é prosador” – quando eu acho que chamar
um prosador de poeta é um dos maiores elogios que se possa fazer,
porque em geral os prosadores se inspiram nos poetas e quando o
romancista serve de inspiração para outros escritores, outros poetas, é
porque também é poeta.62
Mesmo afirmando que não havia lido o livro de José de Alencar, o literato fala do
objetivo contido no livro: contestação da crítica. O. G. Rego de Carvalho dá destaque a
esse objetivo, que ele diz ser o principal do livro de José de Alencar, para, de certa forma
justificar o mote de sua palestra e, posteriormente, de seu livro: as suas defesas em relação
às críticas sobre a sua obra. Essas críticas se manifestariam em vários “usos” da literatura.
Além disso, o livro autobiográfico dos três escritores sinaliza para uma prática comum ao
fazer literário, é uma questão de campo, no qual a crítica é elemento de cruzamento. O. G.
Rego de Carvalho tem, nos livros dos dois intelectuais, publicados anteriormente ao seu, as
diretrizes de linhas argumentativas.
62
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 17.
63
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 255.
64
Alguns membros do Centro Estudantil Piauiense foram: Carlos Alberto Serra, Raimundo Alves de Sousa
(Macabeu), Francisco Benvindo da Silva, esses ligados ao PCB, e simpatizantes como Francisco Bento e
Francisco Félix. Havia a direita minoritária, chefiada pelo jovem integralista Odoastro Baltazar Nobre. Além
desses, Antônio Ribeiro Dias, Severo Maria Eulálio, José Camilo da Silveira Filho, Vespasiano José de
38
Meridiano, o qual ajudou a fundar. O escritor até chegou a participar de algumas reuniões
do grupo Arcádia, fundado em 1945, e que tinha em Manuel Paulo Nunes sua liderança
mais expressiva. Naquele período, O. G. Rego de Carvalho era bem jovem, com apenas 15
anos de idade e estava cursando o ensino secundário.
O Centro Estudantil Piauiense foi um espaço no qual o escritor teve contato com
debates e com homens envolvidos com a vida cultural, social e política de Teresina e do
estado do Piauí. O Centro foi fundado em 15 de janeiro de 1935, mas com uma existência
instável e efêmera. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, houve uma
ebulição de debates no meio dos grupos estudantis, inclusive em Teresina. Isso
impulsionou, também, a reativação do Centro Estudantil Piauiense, exatamente no ano de
1947. A nova sede, localizada na Rua Areolino de Abreu, em Teresina, foi cedida pelo
interventor do Piauí, o professor Waldir Gonçalves. Durante dez anos, ali ocorriam as
reuniões que discutiam sobre assuntos diversos, com destaque para política.
No ano de 1949, especificamente entre os meses de abril e junho, O. G. Rego de
Carvalho esteve na condição de presidente do Centro Estudantil. Ele ficou até o dia 12 de
junho daquele ano, quando houve eleições para a composição de nova Diretoria do Centro.
Em seu pleito houve algumas ações que marcaram esse período de ressurgimento e
renovação do Centro. O jornal O Piauí, de 12 de abril de 1949, anuncia que os estudantes
haviam alcançado uma grande conquista, pois foi lançada a Lei municipal nº 64, de 30 de
março de 1949. Na referida Lei, admitia-se que a carteira emitida pelo Centro Estudantil
Piauiense servia como identidade estudantil válida. No mesmo período, ainda na
presidência de O. G. Rego de Carvalho, o Centro recebeu a notícia de que contaria com o
montante de cento e cinquenta mil cruzeiros para o prosseguimento da construção da Casa
do Estudante. O auxílio viria de recursos do Ministério da Educação e Saúde, incluídos na
proposta orçamentária para o ano de 1950.
Sua atuação, mesmo que breve, na presidência do Centro Estudantil lhe permitiu
manter contato com outros homens ávidos por se expressarem. O meio para isso eram os
periódicos que circulavam na cidade. Dessa maneira, o escritor começa a ganhar espaço
nos jornais locais, tendo maior destaque sua inclusão como colunista do jornal O Piauí, na
seção Vida Social. É no dia 09 de julho de 1949 que esse jornal traz o texto do escritor,
Rubim Nunes, O. G. Rêgo de Carvalho, Manoel Paulo Nunes, William Paula Dias, Francisco das Chagas
Ribeiro Magalhães, Vespasiano Nunes, Pedro Mendes Ribeiro, Raimundo Wall Ferraz, Osvaldo Castelo
Branco, José de Arimatéa de Sousa Lima (foi presidente em 1958), Ferdinand Bastos de Paiva, Wenar
Pereira Lopes e Raimundo Ramos.
39
intitulado de “Lembrança da Arcádia”, como seu texto de estreia no jornal. No texto, ele
rememora:
65
CARVALHO, O. G. Rego de. Lembrança da Arcádia. O Piauí. Teresina, n. 501, 9. jul. 1949, p. 03.
66
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
40
necessariamente pela vocação. A questão de ser ou não vocação não se trata, aqui, de uma
reflexão filosófica, mas, sobremaneira, de mais um indício de escrita de si do escritor, pois,
ao afirmar que os outros não seguiram em frente no campo literário, ele demonstra que faz
parte das lutas do campo a legitimação.
Essas disputas ficam evidenciadas com as repercussões que suas declarações sobre
vocação despertaram. Os demais agentes do campo sentiram-se desprestigiados com a
ideia de tal ausência. Poucos dias após o seu texto “Lembrança da Arcádia”, que gerou
certo desconforto no seio do grupo de escritores da época, O. G. Rego de Carvalho
publicou outro texto, no Jornal O Piauí, para enfatizar seu ponto de vista sobre a ideia de
vocação:
O sarcasmo e o uso de metáforas, para fazer analogias e descrever sua visão sobre
aqueles que o criticaram, são os nortes do texto. As reuniões vazias, a falta de propósitos,
agrupamento por amizades ou parentesco, segundo o escritor, seriam elementos suficientes
para desconsiderar tais composições. O próprio uso do termo “província” já demonstra
algo que seria forte tom de suas polêmicas ao longo de sua trajetória como escritor: o
confronto entre local, regional e nacional, como uma questão de tempo e de relações de
67
CARVALHO, O. G. Rego de. Prosaicos e Cabotinos. O Piauí. Teresina, n. 502, 12. jul. 1949, p. 03.
41
poder. Ser da “província” ou agir e pensar como provinciano era ser considerado inferior,
atrasado. Assim, o escritor se coloca como “fora” desse espaço, dessa “fronteira”.
A literatura em si é o próprio poder, disputado pelos diferentes agentes em suas
diferentes posições no campo literário. Poder esse que é desejado por todos, uns se
consideram mais merecedores que os outros. “Essa gente prosaica e cabotina” seria aquela
que, em certa medida, detinha destaque no cenário literário e que, para o escritor, era, ou se
sentia, a dona do poder, a dona da literatura. Há, dessa forma, o trabalho discursivo de
hierarquizar, de enaltecer ou diminuir a legitimidade da produção ou participação literária
dos diferentes agentes. Instauram-se aí as disputas que são típicas do campo.
Essas observações são pertinentes, pois, como sugere Pierre Bourdieu, para se
implementar estudos sobre obras culturais – aqui compreendidas não somente como o
conjunto de obras escritas, mas a atuação nos diferentes espaços da produção cultural – é
fulcral que se observem três operações: a primeira se refere à análise da posição do campo
literário, no âmbito do poder, e de seus processos e evolução no decorrer do tempo; depois,
a análise das estruturas internas do campo literário, pois cada campo obedece a leis
específicas de funcionamento e de mudanças, nas quais se apresentam as posições que
ocupam cada agente, concorrendo por legitimidade; por último, a fricção entre a trajetória
social e de posição no interior do campo, em que os agentes buscam as condições para a
sua maior inserção e atualização. Nesse sentido, visualizando tais operações, é possível
compreender que “a construção do campo é a condição lógica prévia para a construção da
trajetória social como série das posições ocupadas sucessivamente nesse campo”68. O. G.
Rego de Carvalho, por esse viés, estava se posicionando no seio do processo de construção
do campo. Construção essa que, como as polêmicas de seus comentários indicam, não se
dá como um dado, como um objeto acabado, nem mesmo sem conflitos. Por isso, o campo
literário só pode ser entendido em sua relação com o campo do poder, pois “o campo do
poder é o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum
possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos
(econômico ou cultural, especialmente)”69.
As revistas e/ou jornais eram, assim, o “capital” do qual dispunham os agentes para
se legitimarem no campo literário. Ver o sucesso da produção, edição e circulação desses
68
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 243.
69
BOURDIEU, Pierre. Op. cit, p. 243.
42
periódicos seria uma das condições para se constituir como artista, como escritor, como
literato. Estão embutidas, na avaliação que o escritor faz sobre a questão da vocação e a
formação de grupos ou de instituições, as leituras do que ele considera como sendo de
valor literário ou não. Entram aí, então, as interpenetrações da sua trajetória social e interna
do campo, cujas dimensões são variadas, pois revelam aspectos daquilo que se compreende
como sendo digno de fazer parte do campo. Ao questionar os “donos das nossas letras”, O.
G. Rego também se considera como um desses donos, que, de certa forma, parece
pretender restringir a amplitude do número de dominantes.
De maneira irônica, como a maioria de seus textos publicados no jornal O Piauí, ele
expressa que a luta pelo poder se dá nos muitos espaços da cidade. Segundo ele, ainda no
lastro das polêmicas iniciais,
Descrevendo, talvez com cores carregadas, os dias e noites dos grupos que se
reuniam nos bares da cidade, e que se envolviam em debates vários, o escritor desfila sua
crítica. Ele considera infrutíferas as “palestras” que presenciou. Mesmo ironizando, o
70
CARVALHO, O. G. Rego de. Encantos da província. O Piauí. Teresina, n. 505, 19. jul. 1949, p. 03.
43
***
Em Como e por que me fiz escritor (1994), ao fim do texto, há esse resumo
biográfico, intitulado de “O Autor”, com as seguintes informações:
71
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 65.
72
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. (Orgs.).
Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 184.
73
BOURDIEU, Pierre. Op. cit, p. 184.
45
com as publicações de outros escritores, o que pode ser notado na apresentação daquela
edição:
É com prazer que lançamos a segunda edição do livreto “Como e Por Que
me Fiz Escritor”, uma autobiografia intelectual do ficcionista piauiense
O. G. Rego de Carvalho, extremamente importante para o conhecimento
de sua personalidade e dos alicerces de sua formação literária.
Lendo o texto do autor oeirense, transcrito de palestra proferida por ele
no Seminário de Escritores Piauienses, em 1989, realizado no auditório
do Palácio da Cultura, pode-se perceber como a integração dialética da
experiência de vida com a formação cultural é fundamental na gestação
de uma obra literária.
Dentre os vários motivos que nos levaram a reeditar este livreto, estão o
fato de a primeira edição ter sido esgotada completamente, a
obrigatoriedade do ensino de Literatura Piauiense nas escolas do Estado,
a inclusão do nome de O. G. Rego de Carvalho entre os autores a serem
cobrados pela FUFPI no vestibular/95 e, finalmente, a retomada do
Projeto Lamparina de publicar e lançar os nossos escritores nos
estabelecimentos de ensino.
Da primeira para a segunda edição, algumas poucas, mas significativas
mudanças foram feitas com o intuito de tornar o texto mais leve e
agradável ainda. As alterações começaram pela capa e projeto gráfico
totalmente reformulados, adoção de uma paragrafação sucinta, um novo
tipo de formato e a inserção de encarte com questões extraídas do próprio
livreto e de vestibulares da FUFPI.
Agora, resta-nos que o leitor busque dentro de sua obra a identidade da
realidade em que o escritor a proferiu, com o sincero compromisso em
que se constitui uma bela e maravilhosa obra de ficção literária, que nada
fica a dever às grandes obras de literatura, a não ser o espaço que
compete merecidamente no cenário da cultura.
Fica, assim, registrado, mais uma vez, o propósito de levar aos estudantes
os nossos autores mais expressivos, sem, no entanto, tentar esgotar,
através de questionários, o universo representado em cada criação
literária.74
74
SOARES, Wellington et al. Apresentação. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz
escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 09-11.
46
Os deslizamentos que cercam tal fronteira estão no discurso no qual, para legitimar
a qualidade do escritor, ele é apresentado como possuindo uma obra inserida entre as
“grandes obras da literatura”. Não se trata de uma discussão restrita de juízo de valor, mas
do conjunto de discursos e práticas que têm se coadunado na composição de hierarquias.
Outro aspecto interessante, que também se relaciona com as hierarquias, ou nos
termos de Pierre Bourdieu, com as posições que marcam o campo literário, é o que está
expresso nos textos que configuram as duas orelhas do livro. Ao final de cada comentário,
há o nome do autor do texto e a sua “identificação”. O texto da orelha da capa destaca que
75
SOARES, Wellington et al. Apresentação. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz
escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 11-12.
76
MACHADO, Paulo. Orelha. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina:
Projeto Lamparina, 1994.
47
77
LIMA, Luiz Romero. Orelha. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor.
Teresina: Projeto Lamparina, 1994.
78
VALESKA, Adriana. Orelha. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor.
Teresina: Projeto Lamparina, 1994.
79
DARNTON, Robert. "História da Leitura". In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: EDUNESP, 1992.
48
Até o momento da execução da presente tese, não foi encontrado nenhum exemplar
da primeira edição de Como e por que me fiz escritor (1994) – que data de 1989 –, o que,
de certa forma, impede a visualização das mudanças apontadas pelos editores. Contudo,
isso não compromete o intento de perceber as formas de “exibição” do autor, aqui
propostas.
A partir do ano de 2009, a Editora Renoir, localizada na cidade de Teresina, Piauí,
passa a publicar as novas edições dos livros do escritor. A editora é idealizada e conduzida
pelo escritor e sua esposa. A supervisão editorial fica a cargo do amigo escritor, Assis
Brasil. Divaneide Carvalho, esposa de O. G. Rego de Carvalho, ocupa as funções da
Coordenação Editorial e de Revisão. O próprio escritor figura como integrante da Revisão,
pelo menos em todos os seus livros reeditados por essa editora.
O “Resumo Biográfico” elaborado por Divaneide Carvalho abarca o recorte
temporal que vai de 1930, referindo ao ano de nascimento do escritor, até o ano de 2009,
quando a editora Renoir começa a publicar as novas edições de seus livros. Vale ressaltar
que esse “resumo” já consta no livro O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica (2007), de
autoria de Kenard Kruel. Nesse livro, o resumo se encerra no ano dessa publicação,
trazendo a informação de que, em 2007,
80
CARVALHO, Divaneide Maria Oliveira de. Resumo Biográfico. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O.
G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 138.
49
Fazendo uma análise mais detalhada desse resumo biográfico, elaborado pela
esposa do escritor, percebem-se alguns acréscimos e silenciamentos de informações.
Algumas informações, que constam na cronologia desse resumo em 2007, e que foram
retiradas nas edições a partir de 2009, são:
1970
- O jornal O Dia, de Teresina, publica alguns capítulos de Somos Todos
Inocentes, com o título de No Fundo do Poço.
1972
- 23 de fevereiro – O governador Alberto Silva, a pedido do escritor,
muda o nome da Colônia de Psicopatas, dada ao Hospital de Doenças
Mentais, para Hospital Areolino de Abreu, como ainda hoje é conhecido.
1975
- Na novela O Semideus, da TV Globo, em exibição na TV Rádio Clube
de Teresina, a personagem Ângela, ao vir da escola, sobraça alguns
livros, mostrando em primeiro plano a obra Linguagem de Comunicação
em O. G. Rego de Carvalho, de Francisco Miguel de Moura.
1979
- Maio – A novela Amarga Solidão é publicada como encarte da revista
Cirandinha, número 4, editada por Francisco Miguel de Moura.
1988
- A Revista da Academia Piauiense de Letras publica, nas páginas 70 a
72, As Teses Universitárias e o Leito de Procusto, de O. G. Rego de
Carvalho. O mesmo texto é publicado, também, pela Editora Corisco.
- Novembro – Participa do II Seminário de Autores Piauienses, realizado
no auditório da Secretaria da Cultura, Desportos e Turismo, discorrendo
sobre o tema Como e Por Que me Fiz Escritor.81
2003
- O Engenheiro Andrade Júnior constrói o Edifício O. G. Rego de
Carvalho (Av. Dom Severino) em homenagem ao autor.
2006
- Recebe a Comenda Santo Inácio do Colégio Diocesano.
2007
- A Fundação Quixote publica a 6ª edição de Somos Todos Inocentes.
81
CARVALHO, Divaneide Maria Oliveira de. Resumo Biográfico. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O.
G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 345-347.
50
feitas pela Editora Renoir, o resumo biográfico é ampliado, acrescentando os anos de 2008
e 2009:
2008
- O Prefeito de Teresina (Sílvio Mendes) inaugura a Escola Municipal O.
G. Rego de Carvalho em homenagem ao autor.
- A Fundação Quixote publica a 7ª edição de Somos Todos Inocentes.
2009
- A Editora Renoir publica a trilogia ogerregueana (Ulisses entre o Amor
e a Morte – 14ª edição, Rio Subterrâneo – 10ª edição, e Somos Todos
Inocentes – 8ª edição).
resumo biográfico que, no caso da segunda edição, aparece como texto de orelha, sem o
nome de Divaneide Carvalho como autora do texto. Sabe-se que ela quem escreveu,
fazendo-se a comparação com as duas outras edições. A esposa do escritor assumiu o papel
de biógrafa, não só de revisora. Sendo, então, uma de suas principais agentes de exibição e
de controle da leitura de seus livros.
Na terceira edição do livro em Espanhol, o resumo biográfico figura no fim do
livro, intitulado de “Orlando Geraldo Rego de Carvalho”. Resumo este que consta tanto na
edição da Editora da UFPI, quanto na da Fundação Quixote, ao fim do livro.
Amor e Morte (1956) reunia as novelas Ulisses entre o Amor e a Morte, Amarga
Solidão; e os contos No Bosque; Era Noite, Marlene; Passeio a Timon; Rua de Fogo; Do
Coração; Priminha e Velha Amizade. Esses contos foram adaptados e incorporados aos
livros Rio Subterrâneo (1967) e Somos Todos Inocentes (1971). Ao não considerar Amor e
Morte (1956), talvez a intenção fosse a de “apagar” de sua trajetória esse livro o qual ele
mesmo não considera digno de ser listado, muito menos de ser lembrado como parte de sua
obra. Em muitos de seus depoimentos, pelos menos os que constam nos jornais até fins da
82
CARVALHO, Divaneide Maria Oliveira de. Orlando Geraldo Rego de Carvalho. Reproduzido em:
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y la Muerte. 3. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2007,
p. 109-110. Aqui foi preservado o texto traduzido, que consta no livro.
83
SANTOS, Cineas. O. G. Rego de Carvalho: o passado me prende. In: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de
Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 320.
53
década de 1980, ele mesmo só mencionava três livros como os que compõem sua obra.
Esse mesmo resumo biográfico, que não menciona Amor e Morte (1956), consta nas
edições publicadas pela Editora Renoir, em Língua Portuguesa.
Essa exclusão faz lembrar daquilo que Roger Chartier chamou de manipulação por
meio de arquivos literários autorais. Ele menciona o caso de que Borges excluiu de suas
Obras Completas, outros três livros: Outras inquisições, O tamanho de minha esperança e
O idioma dos argentinos. E ele, assim como fez O. G. Rego de Carvalho em relação à
Amor e Morte, “proibiu qualquer reedição dessas três obras banidas”84, sendo reeditados
somente em 1993, com a autorização de sua viúva, María Kodama. O livro Ficção Reunida
(1981), de O. G. Rego de Carvalho, faz algo semelhante ao que fez Borges, pois, além de
não incluir Amor e Morte (1956), também não abriga Amarga Solidão (1956).
84
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014, p. 148.
54
85
CARVALHO, O. G. Rego de. Orelha. Ulises entre el Amor y la Muerte. 3. ed. Teresina: Fundação
Quixote, 2007.
86
SANTOS, Cineas. Contracapa. In: CARVALHO, O. G. Rego de. Orelha. Ulises entre el Amor y la
Muerte. 3. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2007.
55
não teria sido a mesma coisa entre os críticos locais. Daí a ênfase dada aos críticos do sul,
pois eles teriam o “poder de legitimação”.
A décima quarta edição de Ulisses entre o Amor e a Morte, pela Editora Renoir, no
ano de 2009, bem como a oitava e a décima segunda edições, também se utilizam dos
recursos das orelhas e da contracapa para ampliar os discursos de exibição do autor, por
meio do livro em destaque. Nas orelhas do livro dessas edições constam fragmentos de
comentários variados sobre o livro e sobre o escritor:
87
CARVALHO, O. G. Rego de. Orelha. Ulisses entre o Amor e a Morte. 14. ed. Teresina: Renoir, 2009/
12. ed. Teresina: Corisco, 1999/ 8. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano, 1994.
56
O texto dos editores dessa segunda edição não explicitam os “motivos óbvios” para
o não alcance mais amplo entre os leitores. Que motivos seriam esses? Econômicos?
Culturais? Editoriais? Aqui parece estar em jogo, em boa medida e de maneira sutil, uma
questão de “fronteiras”, na qual a legitimidade da publicação só se dará a partir dessa nova
edição, que os seus editores consideram assumir o papel de primeira edição, visto que a
editora era, naquele momento, de grande alcance.
Os comentários, em sua maioria, tentam localizar o escritor como surpreendente
pela sua jovialidade e, mesmo assim, a sua capacidade de se colocar como um “escritor
experimentado”, entre os “grandes”. Em muitas edições, como são os casos da sétima,
oitava e décima quarta, o livro se fecha, na contracapa, com o comentário de Cecília
Meireles, afirmando que “Ulisses deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e
comovente”89 e o de Fausto Cunha, que assegura ser o livro “Um clássico da literatura
brasileira contemporânea”90.
Algo interessante a ser notado é o fato de que, em algumas das edições de Ulisses
entre o Amor e a Morte, publicadas pela Editora Caderno de Letras Meridiano, da quarta
88
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972.
89
MEIRELES, Cecília. Contracapa. Ulisses entre o Amor e a Morte. 7. ed. Teresina: Caderno de Letras
Meridiano, 1989/ 8. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano, 1994/14. ed. Teresina: Renoir, 2009.
90
CUNHA, Fausto. Contracapa. Ulisses entre o Amor e a Morte. 7. ed. Teresina: Caderno de Letras
Meridiano, 1989/ 8. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano, 1994.
57
edição (1984) até a sétima edição (1989), constavam de orelhas, mas não havia nenhum
texto ou informação inscrita nelas. Também não traziam nenhum resumo biográfico do
autor. Isso vai acontecer com todas as edições, também, de Rio Subterrâneo (1984, 1985,
1987, 1988), e de Somos Todos Inocentes (1985), publicadas pela Editora Caderno de
Letras Meridiano. A década de 1980 foi um momento de “silenciamento” de textos que
assumissem a função de apresentação do autor.
O que, mais uma vez, abre a margem para se pensar em erros na hora da impressão
ou problemas na revisão. O que se pode inferir é que, no processo de exibição do autor, tais
edições “falharam”, pois não utilizaram esses espaços físicos do livro para conduzir o leitor
sobre aspectos do escritor. Independente disso, a partir da oitava edição, de 1994, algum
tipo de texto volta a figurar nesses espaços. A oitava, a décima segunda e décima quarta
edições, por exemplo, trazem os mesmos comentários nas orelhas do livro, já citados. No
entanto, o resumo biográfico da oitava e da décima segunda edições são iguais, mas se
diferenciam da última edição. Esse resumo biográfico, intitulado de “O Autor”, apresenta-
o, dizendo:
91
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. 8. ed. Teresina: Caderno de Letras
Meridiano, 1994/12. ed. Teresina: Corisco, 1999.
58
92
ZILBERMAN, Regina. Leitura e materialidade da história da literatura. In: ROCHA, João César de Castro
(Org.). Roger Chartier – a força das representações: história e ficção. Chapecó, SC: Argos, 2013, p. 165.
93
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: o tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 269.
94
RICOEUR, Paul. Op. cit.
59
Nesse processo, “com efeito, é do autor que parte a estratégia de persuasão que tem o leitor
como alvo”95.
É fulcral admitir, na esteira do que destacou Pierre Bourdieu acerca da “ilusão
biográfica”, que, mesmo diante de esforços de autores e editoras em construir uma
biografia ou autobiografia como algo a partir de uma cronologia e de uma lógica, é preciso
perceber as diferentes relações sociais da biografia. Relações tais que são selecionadas para
compor um “resumo biográfico” e uma “cronologia” da vida e da obra de um autor. Trata-
se, em larga medida, de um roteiro de leitura, que busca realizar um acordo prévio entre o
leitor e o escritor, no intuito de diminuir as discrepâncias interpretativas e, até mesmo,
especulativas. As diferentes formas de exibições do escritor, por meio de textos de resumo
no interior do livro, contracapas, orelhas e resumos em forma de cronologia, são estratégias
que buscam dar sentido, linearidade e unidade à vida do escritor.
No entanto, “os acontecimentos biográficos se definem como colocações e
deslocamentos no espaço social”96. Tais acontecimentos expressam as disputas e posições
dos agentes no jogo de poder do próprio campo literário. Conforme a proposta de
Bourdieu, deve-se observar “o sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a
outra”97. Nesse sentido de movimentos, os postos ocupados ou desejos, os lugares que
frequentava, os espaços de publicação e divulgação, assim como a relações com as
editoras, são exemplos de como os acontecimentos biográficos abrem o horizonte de
construção da vida do autor.
Os traços (auto) biográficos e as diferentes formas de apresentação e de exibição do
autor, em muitos momentos, apontam para a questão da constituição de fronteiras. Tais
fronteiras se constituirão, dentre outros aspectos, a partir das localizações do autor em sua
relação como o “nacional”, o “local”, o “regional”. Em muitos textos que apresentam o
autor, como foi visto ao longo desse capítulo, há referência, direta ou indireta, à sua
legitimação ou classificação como escritor no cenário “piauiense”, “brasileiro” e, em certos
momentos, “universal”. Assim, sua construção (auto) biográfica será atravessada, também,
pela inquietação em “ser ou não ser do Piauí”. É nessas linhas e horizontes fronteiriços que
muito do que foi dito, pela crítica, acerca da vida e da obra de O. G. Rego de Carvalho se
pautou.
95
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: o tempo narrado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 271.
96
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. (Orgs.).
Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 190.
97
BOURDIEU, Pierre. Op. cit, p. 190.
60
Conhecido, dentre outros aspectos, pela sua narrativa que aborda temáticas
universais como o amor, a juventude e a morte, o literato descreve, de maneira poética e
musical, a morte do pai de Ulisses, o personagem de seu livro Ulisses entre o Amor e a
Morte (1953). Sua narrativa sobre a morte remete para uma questão de tempo, pois
“encarar o tempo” é uma postura de subjetividade, de temporalidade. A morte, assim,
assume mais uma possibilidade de percepção do tempo, visto que este não pode ser,
efetivamente, medido. E o tempo, assim como as experiências, é constituidor de memórias.
A associação feita entre a narrativa do escritor e o seu texto está para além de uma
análise do autor apenas como indivíduo. Está, nesse sentido, mais próxima da noção da
função-autor, sugerida por Michel Foucault, e que Roger Chartier retoma para pensar,
também, sobre as dimensões acerca de autor e autoria. Tal função seria, então, “a maneira
pela qual um texto aponta para essa figura [o autor], que está fora dele e o precede” 100. O
texto da morte do pai de Ulisses assume esse papel de apontar a figura exterior do autor,
mesmo sem, às vezes, a necessidade de explicitar o autor-indivíduo. Chartier, destaca que
“a função-autor está fundamentalmente separada da realidade fenomenológica e da
experiência do escritor como indivíduo”101. Torna-se uma instância também exterior ao
98
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953, p. 27.
99
PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos. Poemas de Alberto Caeiro. 10. ed. Lisboa: Ática, 1993, p. 88.
100
CHARTIER, Roger. Autoria e história cultural da ciência. Organização de Priscila Faulhaber e José
Sérgio Leite Lopes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012, p. 38.
101
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 39.
61
indivíduo que escreve, mesmo, inicialmente, dele partindo, para, em seguida, assumir outra
realidade.
102
CHARTIER, Roger. Autoria e história cultural da ciência. Organização de Priscila Faulhaber e José
Sérgio Leite Lopes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 38.
103
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 39.
104
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
105
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização de Manoel Barros
da Motta. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 59.
62
aponta para uma recorrente disputa conceitual, visto que as fronteiras entre local, regional,
nacional e universal são retomadas pelos críticos-comentaristas, na tentativa de localização
do escritor no esteio de uma formação ou representação de identidade. Nas homenagens
nos diferentes meios de comunicação há, como uma nota explicativa, um “resumo
biográfico”, encerrado, na maioria dos casos, com qualificativos que margeiam os limites-
fronteiras da identidade por meio do espaço.
Sua morte fez com que os artistas, intelectuais, jornalistas se manifestassem de
maneira a noticiar o ocorrido e prestar algum tipo de homenagem póstuma. No dia de seu
falecimento, a descrição da morte em seu livro de estreia foi tomada como inspiração para
a ilustração de Bernardo Aurélio, adaptando, inclusive, o texto:
A interpretação feita pelo ilustrador retoma o texto que compõe o primeiro capítulo
Viagem de Cura, de Ulisses entre o Amor e a morte (1953). Na perspectiva do ilustrador,
texto e escritor se confundem, complementam-se, amalgamam-se. Ou melhor, a função-
autor se faz presente, pois o texto remete ao autor que o precede e que lhe é exterior. A
associação feita com a obra do autor por meio das imagens funciona em sua dimensão de
intertextualidade, pois são textos que se indicam. Outra charge, de autoria de Dino Alves, a
imagem, além de trazer a referência ao livro de estreia do literato, traz o título “Agora sou
Imortal”, fazendo menção ao pertencimento do autor à Academia Piauiense de Letras
(APL):
106
OLIVEIRA, Luís Carlos. Literatura piauiense de luto. Jornal O Dia. Teresina, 10 nov. 2013, p. 05.
65
A matéria, além de, como era de se esperar, falar de onde o literato estava internado
até o momento de sua morte, ainda destaca a opinião de críticos e professores, como é o
caso de Cineas Santos e da professora universitária e cronista, Jasmine Malta. Trazer o
discurso e posicionamento de críticos, estudiosos e professores é uma estratégia para
legitimar as informações do periódico. O jornal salienta que
107
OLIVEIRA, Luís Carlos. Literatura piauiense de luto. Jornal O Dia. Teresina, 10 nov. 2013, p. 05.
66
108
Escritor O. G. Rego de Carvalho morre aos 83 anos em Teresina. Disponível em:
<http://cidadeverde.com/escritor-o-g-rego-de-carvalho-morre-aos-83-anos-em-teresina-148052>. Acesso em:
09 nov. 2013.
67
A ideia de sua projeção para além dos limites e fronteiras geográficas é destacada
na fala do professor de literatura, Luiz Romero. Para ele, “A língua brasileira e a língua
portuguesa perderam um dos maiores nomes da renovação da literatura contemporânea e a
literatura piauiense perde seu maior ficcionista”110. No mesmo ensejo, o professor e crítico
literário, Cineas Santos, também se pronunciou, afirmando que “O. G. Rego de Carvalho é
uma das figuras mais representativas da moderna ficção brasileira, bastaria o livro ‘Ulisses
Entre o Amor e a Morte’ para justificar a sua presença luminosa entre nós. Perdemos um
cidadão, mas sua obra com certeza permanecerá”111.
Os professores preferiram destacar a produção do escritor como sendo de alcance
além das fronteiras locais e regionais. Sua morte parece ter, em certa medida, contribuído
para a aceitação de que não se trataria de um escritor “piauiense”, encerrado em seu estado.
O escritor seria a projeção da Literatura e não de uma Literatura. São questões de fronteira
que são apresentadas, mesmo que não tenha sido essa a intenção dos comentaristas e
críticos. Os limites espaciais e geográficos são retomados para criar a amplitude da
projeção do literato:
109
Escritor O. G. Rego de Carvalho morre aos 83 anos em Teresina. Disponível em:
<http://cidadeverde.com/escritor-o-g-rego-de-carvalho-morre-aos-83-anos-em-teresina-148052>. Acesso em:
09 nov. 2013.
110
ROMERO, Luiz. In: Escritor O. G. Rego de Carvalho morre aos 83 anos em Teresina. Disponível em:
<http://cidadeverde.com/escritor-o-g-rego-de-carvalho-morre-aos-83-anos-em-teresina-148052>. Acesso em:
09 nov. 2013.
111
SANTOS, Cineas. In: Escritor O. G. Rego de Carvalho morre aos 83 anos em Teresina. Disponível
em: <http://cidadeverde.com/escritor-o-g-rego-de-carvalho-morre-aos-83-anos-em-teresina-148052>. Acesso
em: 09 nov. 2013.
68
Conhecido, também, por colocar a sua cidade natal como fonte de inspiração e
espaço em sua narrativa, o escritor se tornou um filho ilustre da antiga capital piauiense. O
escritor, que narrou as cidades de Oeiras, de Teresina e de Timon, no Maranhão, transitou
entre essas cidades por meio de seus personagens. Tais espaços foram foco de memórias e
compuseram traços que contribuíram para que alguns críticos afirmassem que seus livros
fossem autobiográficos.
A notícia da morte do escritor trouxe à tona as suas relações com sua cidade natal.
Cidade contemplada em seus livros, mas que teria ficado no passado de sua infância.
112
Prefeitura de Oeiras decreta luto pela morte de O. G. Rego de Carvalho. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/prefeitura-de-oeiras-decreta-luto-pela-morte-de-o-g-rego-de-
carvalho.html>. Acesso em: 09 nov. 2013.
113
Prefeitura de Oeiras decreta luto pela morte de O. G. Rego de Carvalho. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2013/11/prefeitura-de-oeiras-decreta-luto-pela-morte-de-o-g-rego-de-
carvalho.html>. Acesso em: 09 nov. 2013.
114
Na ficha técnica do documentário consta: Um filme de Douglas Machado. Produção da Trinca Filmes.
Ideia original e argumento de Marcílio Rangel. Diretora de produção, Gardênia Cury. Produtor associado,
Carlos Rubem Campos Reis. Edição, Elionardo Braga e Douglas Machado. Animação de Fotografia, Jean
Marcelo. Assistente de câmera (1ª fase), Cássia Moura. Trilha sonora, Sérgio Matos. Os Patrocinadores
foram: Governo do Estado do Piauí, Prefeitura de Oeiras, FUNDAC, Tv Assembleia. Apoio Cultural:
Fundação Nogueira Tapeti, Oficina da Palavra.
69
responsável, em parte, pela busca de imagens que constam no documentário. O que seria
mais um mecanismo de “exibição do autor” acabou se tornando mais um capítulo nas
polêmicas nas quais o escritor se envolveu, pois sua esposa, não gostando do resultado
final, não teria autorizado o lançamento oficial, nem mesmo a circulação do filme. O filme
fez, de certa forma, sua viagem incompleta, pois o público não teve, e não tem, acesso a
ele. Criou-se, então, certo imaginário sobre o Documentário como sendo o filme proibido,
uma espécie de biografia não autorizada. A viagem incompleta, assim, configura-se no
distanciamento entre o autor e o indivíduo, mesmo que haja essa fetichezação, no seio dos
leitores e até críticos, em relação ao privado, ao “eu” do indivíduo. Por esse ângulo, a não
divulgação ou circulação oficial do documentário acabou por contribuir para o processo de
exibição do autor, visto que os silenciamentos também atuam na construção da memória.
Seria, talvez, o não-dito, ao qual faz menção Michel Pollak115.
As notícias não se restringiram aos noticiários locais. Pedro Salgueiro, que é
defensor da “literatura cearense” e que escreve na seção Colunas, do Jornal O Povo online,
de Fortaleza, dedicou texto sobre o falecimento de O. G. Rego de Carvalho. O colunista, de
maneira sutil, não quis dar destaque para a morte em si. Isso pode ser observado no título
de seu texto, que traz apenas o nome do literato. Ele não fala em morte, que lhe parece soar
muito brutal, pouco poética, pouco literária. Ele prefere o termo “desaparecer”, para se
referir à morte daqueles que ele mesmo vai chamar de “monstros sagrados”, nos quais ele
enquadra o literato. Por esse viés, ele assevera que
115
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, p. 3-15.
70
Estive, por ser admirador de sua importante obra literária, procurando por
ele, queria conhecê-lo: inicialmente o escritor, editor e produtor cultural
Cineas Santos me desestimulou falando de sua séria doença mental
(estava em crise na época), depois Magalhães da Costa reafirmou a
opinião de Cineas, e mais recentemente pedi notícias dele ao poeta Chico
Miguel de Moura, que me falou de seu afastamento do convívio dos
amigos. E foi com surpresa (e tristeza) que no último mês de novembro,
precisamente no dia 9, cheguei a Teresina para um compromisso familiar
e me deparei com a notícia de seu falecimento.
Em sua homenagem peguei a edição de sua Ficção Reunida (editada por
Cineas Santos no selo Corisco), que guardo ao lado das edições antigas
dos seus Ulisses entre o amor e a morte, Rio Subterrâneo, Somos todos
inocentes e Como e por que me fiz escritor (nunca encontrei seu Amarga
solidão), e a reli de uma assentada, livro a livro, saboreando sua prosa
singular, perdendo-me pelas ruas antigas de Oeiras, em passeios pelas
ribanceiras do Parnaíba depois de uma enchente, em camarinhas escuras
que escondiam loucos: loucos que eram mais que seus personagens, eram
seus parentes e, numa projeção, eram todos ele mesmo.
Orlando Geraldo Rego de Carvalho tornou-se, portanto, na vida real um
personagem dele mesmo, de sua rica literatura; e sua obra – tenho certeza
– não desaparecerá com o passar do tempo e o suceder dos modismos
literários.117
116
SALGUEIRO, Pedro. O. G. Rego de Carvalho. Disponível em:
<http://www.opovo.com.br/app/colunas/pedrosalgueiro/2013/12/04/noticiaspedrosalgueiro,3171851/o-g-
rego-de-carvalho.shtml>. Acesso em: 04 dez. 2013.
117
SALGUEIRO, Pedro. O. G. Rego de Carvalho. Disponível em:
<http://www.opovo.com.br/app/colunas/pedrosalgueiro/2013/12/04/noticiaspedrosalgueiro,3171851/o-g-
rego-de-carvalho.shtml>. Acesso em: 04 dez. 2013.
71
118
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rego de Carvalho. Letra e Música. Disponível em:
<http://poetaelmar.blogspot.com.br/2013/11/o-g-rego-de-carvalho-letra-e-musica.html>. Acesso em: 29 nov.
2013.
72
faz quase que reconhecendo que “Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou
debilitar, mas também para completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos
informados de alguma forma”119. Por isso, ele prefira os detalhes da amizade:
119
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 25.
120
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rego de Carvalho. Letra e Música. Disponível em:
<http://poetaelmar.blogspot.com.br/2013/11/o-g-rego-de-carvalho-letra-e-musica.html>. Acesso em: 29 nov.
2013.
73
em seu caso, nem sempre valia. Mais valia a de antes, recebida de sua
mãezinha. Já no meu caso era diferente, um discípulo sempre é
influenciado por seu mestre. O gosto da conversa era ótimo e consolidava
nossa amizade fora do local de trabalho. A coisa lá era outra: quando ele
ficava mais agitado, e não eram poucas as vezes, gostava de caminhar
pelo ambiente e falar com os colegas de outras secções. Se um deles
estava muito atarefado, sem tempo de dar-lhe atenção, O. G. quebrava o
ritmo do serviço com esta observação:
- Colega, você está nervoso, acalme seus nervos!
- E o que posso fazer com tanto serviço e prazo para entregar “ontem”?
- Tome haloperidol! - recomendava.
Era um dos medicamentos de seu uso no momento, passado pelo médico,
com quem ele discutia o problema psicoterápico com uma sapiência que
o esculápio ficava abismado. É isto mesmo. O escritor O. G. Rego
estudou profundamente a psicose chamada de esquizofrenia, tanto que
apenas na primeira crise a família teve que o levar para o tratamento
hospitalar especializado. Tão consciente ficou do seu problema que, na
segunda crise, ele mesmo foi e, por conta própria, internou-se na casa de
saúde para continuar o tratamento.
Lembro que ele me conscientizava dos meus males: ansiosidade,
depressão... Em sua sabedoria e bondade, devia segredar a si mesmo: “é
assim que posso melhor ajudar o próximo”. Religioso, mas não freqüente
à igreja católica, salvo para levar a mãezinha já bastante avançada na
idade. Acreditava em Deus e nos Evangelhos. Sobre estes, cito aqui
não ipsis literis, pois não anotei, mas o conteúdo real do que me disse:
- “Faça um leitura completa dos quatro evangelhos, Chico, e não
encontrará nenhuma contradição. É o suficiente para acreditarmos que
são verdadeiros”.121
Recorrer a pequenos diálogos que teve como o amigo literato é uma estratégia
discursiva de tornar as memórias mais verossímeis. A intimidade indicada por conta dos
detalhes, principalmente no que concerne a problemas de saúde, sugere maior proximidade
entre eles e isso daria maior legitimidade, até mesmo autoridade, à homenagem. Isso se
assemelha, em certos pontos, ao gênero memorialístico da literatura e da história. Desses
traços da memória de Miguel de Moura emerge um certo retrato de aspectos do indivíduo-
escritor, tanto do memorialista quanto daquele sobre quem as memórias também falam.
Não se trata de memorialismo que pretenda retratar os acontecimentos de uma cidade,
como o próprio Miguel de Moura faz questão de mencionar. São memórias que, de certa
forma, ajudariam a compreender as inquietações do literato a partir de suas condições de
saúde, de suas rotinas de trabalho e de sua vida pessoal. É feita, assim, uma aproximação
entre o escritor-indivíduo e a figura do autor.
121
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rego de Carvalho. Letra e Música. Disponível em:
<http://poetaelmar.blogspot.com.br/2013/11/o-g-rego-de-carvalho-letra-e-musica.html>. Acesso em: 29 nov.
2013.
74
Até certo ponto, Miguel de Moura está se constituindo como um dos maiores ou
maior “conhecedor” da obra do literato. O termo “conhecedor” abarca pelo menos duas
concepções: aquele que conhece e leu todos os livros e textos produzidos pelo autor, como
leitor; e aquele que, como crítico, conhece toda a obra. Em meio à pluralidade e leituras e
interpretações que os textos do literato podem alcançar e despertar, talvez a totalidade
pretendida como crítico seja uma atitude irrealizável.
Talvez, como sugestão ou como desejo, Miguel de Moura destaca que, a partir do
falecimento do escritor, a sua biografia pode estar começando. Assim, ele se refere à
biografia como uma dimensão de memória que tem na morte o limite. Em sua concepção,
nenhum outro texto produzido antes da morte do escritor seria, então, biográfico. Todos os
textos que se debruçaram sobre a vida e a obra do escritor, por esse viés, não passariam de
antologias e/ou críticas.
Os textos que homenageiam o autor, por ocasião de sua morte, o biografam, mesmo
que em poucas palavras. Fazem, assim como as cronologias, os resumos biográficos,
122
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rego de Carvalho. Letra e Música. Disponível em:
<http://poetaelmar.blogspot.com.br/2013/11/o-g-rego-de-carvalho-letra-e-musica.html>. Acesso em: 29 nov.
2013.
75
comentários nas orelhas de livros, a exibição do autor. Nesse caso, não mais a exibição
para o “consumo”, mas para a criação e manutenção da memória. Assim, tais palavras
assumem a potência de memória, pois “Os homens, que vivem em sociedade, usam
palavras, cujo sentido compreendem: é a condição do pensamento coletivo. Ora, cada
palavra (compreendida) se faz acompanhar de lembranças; e não há lembranças a que não
pudéssemos fazer corresponder palavras”123.
Memória que seria um elemento substancial para a busca, em certo ponto, da
dialética entre a identidade literária tida como local e a de expressão nacional ou
internacional. Uma identidade que, mesmo desejosa de um reconhecimento alargado, no
sentido fronteiriço e espacial, ainda está sedenta por uma demarcação, uma fixação no
local. A memória é evocada em seus limiares entre o individual e o coletivo, pois se refere
somente ao sujeito escritor. Tal memória se vincula a uma esfera global, relacionada ao
campo, à própria literatura.
Nesse sentido, a memória é o enlace entre o particular e global, entre o individual e
o coletivo. A morte do escritor, tal qual a morte narrada por seus personagens, remete a
essa confluência, pois se expressam no universo das sensações, mas, também, no âmbito da
linguagem. A narrativa sobre o falecimento do autor, chamando atenção para os seus textos
e seus feitos, busca constituir memória dentro do fluxo dessa memória. As escritas
literárias, e as leituras delas decorrentes, possibilitam o vislumbre de múltiplos aspectos da
dinâmica dos grupos sociais. Constituindo os grupos, constroem, também, a realidade de
cada pessoa e as memórias que cercam a individualidade e a coletividade.
Por esse viés, abordar a memória é perceber que se trata de um processo inerente às
relações e práticas sociais, bem como à linguagem. É salutar mencionar que as narrativas,
textuais e imagéticas, são maneiras de apresentação e de exibição do autor que agregam
sentidos ou criam memórias. Assim, a lembrança e o esquecimento podem ser vistos como
práticas sociais, que são engendradas nos e por processos de significação. No âmbito das
escritas – históricas, imagéticas e literárias –, tenta-se, então, minorar as distâncias entre o
lembrar e o esquecer. Nos meandros da construção da memória, o esquecimento é parte
integrante, visto que é uma das dimensões históricas do ser humano.
Os registros acerca da morte do literato intentam realizar a sua inscrição na
memória, mencionando a sua trajetória no amálgama entre sua escrita e sua vida. As
memórias evocadas por cada texto, charge ou ilustração, que visavam a homenagear O. G.
123
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 133.
76
Rego de Carvalho, em razão de sua morte, não são somente individuais. Estão relacionadas
a outras memórias ligadas à vida e à obra do literato. Dessa maneira, tais memórias são
constituídas no âmbito social, histórico, cultural e simbólico. As narrativas, imagéticas ou
textuais, sobre a sua vida e obra fazem parte, também, das maneiras de dizer e de exibir o
escritor, pois dialoga com outros dizeres que foram feitos sobre ele ao longo de sua
trajetória.
As notícias-homenagens retomaram a memória cristalizada sobre o autor,
reproduzindo, em grande parte, os resumos biográficos comumente divulgados nos
manuais de literatura, nos livros do próprio escritor e em sites e blogs. Os que “ousaram”
destacar algo para além desse resumo, atuaram como revisores ou constituidores de uma
outra memória biográfica sobre o literato.
77
3 OS RASTROS DA ESCRITA:
A INVENÇÃO DA LITERATURA PIAUIENSE
O “ser” da literatura, assim, está inscrito no “ser no tempo”, visto que ela é fruto,
também, das temporalidades que a cruzam. As “identidades” pretendidas para ela estão
ligadas ao próprio tempo e aos múltiplos discursos e narrativas que a (re) constroem. Como
constructo, a literatura é percebida em processo, daí a história da literatura levar em conta a
relação entre a letra e o tempo, ou seja, as distintas formas e maneiras de se escrever no
transcurso do tempo. Por tal viés, é prudente dizer que “a história da literatura fornece
como que um mapa do tempo, sem o qual será impossível mover-se com um mínimo de
proficiência no domínio dos estudos literários” 125
. Para compreender os limites e as
ranhuras que a marcam é fundamental que tal história seja conhecida.
Nessa história da literatura, estão presentes, também, as leituras e interpretações
que literatos e estudiosos fazem do fazer literário, com o intuito de sua compreensão,
fazendo uso de classificações, conceituações e enquadramentos. Para tal, lançam mão de
categorias e teorias que buscam legitimar o “ser” da literatura. Nesse sentido, entra-se no
âmbito da cultura, visto que as formas pelas quais ela estabelece diferenças e fronteiras
contribuem para compreender a construção das identidades. As diferenças funcionam
como o mecanismo que distingue uma identidade da outra e isso se dá, em geral, por meio
do estabelecimento de fronteiras e oposições. Na invenção da “literatura piauiense” atuam.
124
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006, p. 271.
125
SOUZA, Roberto Acízelo de. História da Literatura: trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É
Realizações, 2014, p. 110.
78
126
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Concita Cordeiro. Jornal O Estado. Teresina.
26/06/1973. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 313-314.
127
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior. Jornal da Manhã.
Teresina, 17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 338.
128
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006, p. 271.
79
Mas o que seria uma literatura piauiense? Para mim, não devem ser
consideradas a estética, a criação, mas o aspecto regional. Os meus livros,
por exemplo: eles têm muitas coisas da região, quanto à linguagem. Então
são romances com características regionais do Piauí. É claro que isso, do
ponto de vista da estética, não caracteriza a literatura piauiense, porque
ela não pode ser autônoma, ela não está desligada da literatura
brasileira.133
129
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953.
130
BRASIL, Assis. Entrevista concedida a Edmilson Caminha. O universo piauiense de Assis Brasil. Revista
Cadernos de Teresina. Teresina, Ano 03, n. 08, p. 14, ago. 989.
131
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Fato e a Fábula: o Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora, 2012, p. 08.
132
BRASIL, Assis. Entrevista concedida a Edmilson Caminha. O universo piauiense de Assis Brasil. Revista
Cadernos de Teresina. Teresina, Ano 03, n. 08, p. 14, ago.1989.
133
BRASIL, Assis. Op. cit, p. 14.
80
134
BRASIL, Assis. Entrevista concedida a Edmilson Caminha. O universo piauiense de Assis Brasil. Revista
Cadernos de Teresina. Teresina, Ano 03, n. 08, p. 14, ago.1989.
135
BRASIL, Assis. Op. cit, p. 14.
136
COSTA FILHO, Alcebíades. A gestação de Crispim: um estudo sobre a constituição histórica da
piauiensidade. (Tese de Doutorado). Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 113.
137
COSTA FILHO, Alcebíades. Op. cit. p. 113.
81
138
Alcebíades Costa Filho apresenta um quadro com 28 títulos dos livros de escritores piauienses, em
circulação entre 1922 e 1952, sendo que todos traziam temáticas de economia, política, geografia e elementos
históricos. Os livros são: O Teatro em Teresina (1922), de Higino Cunha; O Ensino Normal no Piauí (1923),
de Higino Cunha; Livramento (1923), de José de Almendra Freitas; A Indústria Pecuária Piauiense (1924),
de R. Fernandes e Silva; História das Religiões (1924), de Higino Cunha; Notas sobre a geologia do estado
do Piauí (1925), de Luiz Flores de Moraes Rego; Os rebeldes no Piauí (1926), de F. Pires de Castro e
Martins Napoleão; Os revolucionários do sul através dos sertões nordestinos do Brasil (1926), de Higino
Cunha; Aspectos do Piauí (1926), de Abdias Neves; O Ideal Cristão (1926), de Simplício Mendes;
Hidrografia e Orografia do estado do Piauí (1927), de Mario José Batista; O sentimento brasileiro na poesia
de Bilac (1928), de Martins Napoleão; Antiga História do Brasil (1928), de Ludwing Shwennhagen;
Propriedade Territorial no Piauí (1928), de Simplício Mendes; Aspectos do problema econômico piauiense
(1929), de Luís Mendes Ribeiro Gonçalves; Conchrone, falso libertador do Norte (1929), de Hermínio
Conde; Pátria Nova (1931), de Martins Napoleão; Depoimentos para a história da Revolução no Piauí
(1931), de Moisés Castelo Branco; A defesa do professor Leopoldo Cunha (1934), de Higino Cunha; Paz
Mundial (1935), de Lindolfo do Rego Monteiro Nunes, Raimundo de Brito Melo e Monsenhor Cícero
Portela; O Piauí na história (1937), de Odilon Nunes; Literatura Piauiense: escorço histórico (1937), de
João Pinheiro; Vária Fortuna d’um soldado português (1942), de Brigadeiro Fidié; A civilização do Couro
(1942), de Renato Castelo Branco; O Piauí e o Nordeste (1942), de Martins Napoleão; O descobrimento do
Piauí e o documento de Pereira da Costa (1943), de João Pinheiro; Homens que iluminam (1946), de
Cristino Castelo Branco; O Vale do Rio Parnaíba (1948), de Gayoso e Almendra. Alcebíades Costa Filho
ainda apresenta outro quadro com os livros de ficção que circulavam entre 1922 e 1952. Eram 29 títulos,
sendo somente dois romances e o restante com maioria de poesia.
82
Quais seus objetivos iniciais? Quais as relações dessa crítica com a própria produção da
“literatura piauiense”? Como O. G. Rego de Carvalho é inserido ao longo da (re)
estruturação da crítica literária considerada “nacional” e “local”? Como são delimitadas as
fronteiras entre o que é e o que não é “piauiense”? Quais as relações de poder na definição
de autores “antológicos”? Quais os interesses envolvidos na divisão “piauiense”,
“nordestino” e “brasileiro”?
Segundo Maria do Socorro Rios Magalhães,
141
MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura Piauiense: horizontes de leitura e crítica literária
(1900-1930). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998, p. 186.
142
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão Histórica da Literatura Piauiense. Teresina: Livraria Editora
Hércules/APL, 1982, p. 09.
84
suficiente para não creditar tanto pioneirismo a Ovídio Saraiva, merecendo ser citado por
questões de reflexão da inexatidão do surgimento de tal literatura.
De maneira menos rígida, Maria do Socorro Rios Magalhães defende que “a
literatura do Piauí nasceu no exílio, embalada por musas europeias, como testemunha a
obra de Ovídio Saraiva”143. Por outro lado, Francisco Miguel de Moura, também citando
Ovídio Saraiva, prefere admitir que a “literatura piauiense”, de cunho substancial e
organizada em forma de período literário, dar-se-ia com José Coriolano. Segundo suas
análises, “o primeiro período literário consistente virá depois da mudança da capital para
Teresina. O iniciador é J. Coriolano num poema épico, O Touro Fusco, em 1859”144. Sua
classificação antecipa o texto de José Coriolano para anteriormente a Impressões e
Gemidos, de 1870.
As razões e os critérios que levam à escolha de uma obra ou outra como marco do
início da “Literatura Piauiense” são diversificados. O que é de interesse para o presente
estudo é o significado dessas incertezas de classificação na constituição da invenção da
“Literatura Piauiense”, o que abre margens para uma prática ainda em construção, pois seu
objeto, a própria literatura piauiense, está imersa em “lacunas” e “silêncios” que estão
sendo relativamente retomados com novos estudos, tanto de literatos, críticos, como de
historiadores. Para Francisco Miguel de Moura, é preciso, em meio ao “caos” da
disposição e conhecimento do que é produzido na Literatura piauiense, criar elos, imprimir
conceituações, (re) visitar a vida, a obra e a circulação e consumo da literatura local em
decorrência de que
143
MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura Piauiense: horizontes de leitura e crítica literária
(1900-1930). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998, p. 35.
144
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: Editora da Academia Piauiense de Letras,
2001, p. 31.
145
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: Editora da Academia Piauiense de Letras,
2001, p. 27.
85
146
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: Editora da Academia Piauiense de Letras,
2001, p. 27.
147
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 26.
86
148
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
149
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
87
150
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: relações e perspectivas. 7. ed. São Paulo: Global, 2004. A
primeira edição desse livro data de 1955 e a segunda edição é de 1968. As demais edições são,
respectivamente, de 1986, 1997, 1999 e 2003.
151
Teria como principal marca a ampliação de temas estritamente nacionalistas, lançando-se a planos
universais. O surgimento da Poesia Concreta, o Conto que se desligava dos moldes machadianos e os
romances Doramundo, de Geraldo Ferraz, e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, são pontos
básicos que caracterizam essa nova literatura brasileira.
152
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: relações e perspectivas. 7. ed. São Paulo: Global, 2004, p.
246.
153
Vale salientar que O. G. Rego de Carvalho não se considera abertamente como um escritor modernista.
Ele é assim classificado pelos críticos literários. Ele se considera um escritor moderno, pois não se apegaria a
padrões estéticos ou narrativos. Somente por essa razão ele aceita fazer parte da “nova literatura brasileira”.
88
154
PRADO COELHO, Jacinto do (Dir.). Infância. Dicionário de Literatura. Vol. 2. 3. ed. Barcelos:
Figueirinhas Porto, 1983, p. 468.
155
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: relações e perspectivas. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
156
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 18.
157
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 43.
89
li uma autobiografia tão bem feita”158. Essa sua inquietação e negação do enquadramento
de seus livros como autobiográficos faz parte das tensões que ele imprimiu sobre o
pensamento e a crítica literária da época. Essa postura, em boa medida, contraria o que ele
mesmo chamou de “obra aberta”. Segundo ele, “o que é uma obra aberta? É aquela que dá
direito a muitas interpretações” e que “o leitor da obra aberta é também um coautor da
obra”159. Ele ainda diz que “há sempre algo de autobiográfico na obra de um autor”160. Tais
interpretações não estariam destituídas de uma vinculação de seus personagens a sua vida,
mas seriam interpretações que romperiam com os limites de interpretação que nem sempre
o texto em si traz.
Francisco Miguel de Moura, crítico literário, em certa medida, endossa essa noção
de que nos textos de O. G. Rego de Carvalho há muito de um aspecto autobiográfico, pois
“são belos romances, obra de muito sentimento e profundamente pessoal”161, sendo que
não fica claro se esse termo “pessoal” é de cunho psicológico ou expressão de si. Além
disso, o crítico literário ainda amplia a classificação de que O. G. Rego de Carvalho fosse
um escritor modernista. Para Moura, o escritor faria parte da Geração Meridiano 162. Suas
críticas incidem principalmente no fato de não concordar com a relutância de O. G. Rego
de Carvalho no que se refere à existência de uma literatura “piauiense”.
Para Francisco Miguel de Moura, essa negação era fruto da rejeição que o Grupo
Meridiano fazia à “geração de 45”. No entanto, “no rastro da ‘geração de 45’ nacional, o
movimento meridiano abjurava Drummond, os poetas de 30 e o regionalismo de seus
romancistas, mas no fundo os imitava”163. Mesmo não o colocando entre os Modernistas,
Moura diz que os idealizadores do Meridiano, que teve como principal representante O. G.
Rego de Carvalho, não teriam lançado maiores novidades para a “literatura piauiense”,
pois teriam seguido, mesmo sem admitir, as mesmas bases que criticavam. Havia uma série
de polêmicas que envolveram o literato164.
158
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 43-44.
159
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit. p. 29-30.
160
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Pedro Pio Fontineles Filho. Teresina. 14/02/11.
161
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí (1859-1999). Teresina: Editora da Academia
Piauiense de Letras, 2001, p. 176.
162
Como ficou conhecido o grupo de jovens escritores, que, no final da década de 1940, em Teresina,
reuniam-se na redação de jornais ou associações literárias com o objetivo de trocar ideias e leituras sobre
literatura nacional e universal. A partir desse grupo é que surgiria a revista Caderno de Letras Meridiano,
idealizada e organizada por O. G. Rego de Carvalho.
163
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí (1859-1999). Teresina: Editora da Academia
Piauiense de Letras, 2001, p. 155.
164
Uma dessas polêmicas é narrada por Francisco Miguel de Moura, na revista nº 50 da Academia Piauiense
de Letras: “Outra história que me contou foi a da longa polêmica mantida com professores e gramáticos,
90
entre os quais o famoso Clemente Fortes. Até D. Avelar entrou para a polêmica. Que faziam e diziam?
Artigos atacando o jovem escritor O. G. Rego, catando erros e mais erros nos seus livros. Erros inexistentes.
O escritor de um lado e os professores e gramáticos da FAFI do outro.” (p. 78).
165
MOURA, Francisco Miguel de. Assis Brasil: a busca do novo. Revista Cadernos de Teresina. Ano 2.
N. 06. Teresina, dezembro de 1988, p. 07.
166
MOURA, Francisco Miguel de. Brasil: a busca do novo. Revista Cadernos de Teresina. Ano 2. N. 06.
Teresina, dezembro de 1988, p. 07.
91
167
TÁVORA, João Franklin da Silveira. Escritores do Norte do Brasil. Publicado no Jornal A Reforma,
Teresina, 28 de abril de 1888. Ano II, N. 52, p. 02. Reproduzido em: CASTELO BRANCO, Francisco Gil.
Ataliba, o vaqueiro. 11. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2012, p. 9.
168
CASTELO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o vaqueiro. 11. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2012, p.
33.
169
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão história da literatura piauiense. Teresina: HM Editor,
1997, p. 96.
92
Nessa “campanha” de disputa pelo passado, chega a falar: “Para Francisco Gil
Castelo Branco, reivindicamos o título de precursor do romance sobre a seca” 171. O livro
de Francisco Gil Castelo Branco é tomado pelos críticos do Piauí como sendo o “mito
fundador” do “romance piauiense” da seca. Não só para o romance, mas servindo de
referência temática para contistas e poetas. Nos lastros dessa escrita, tendo o vaqueiro e/ou
a seca como foco, podem ser mencionados alguns livros: Lira Sertaneja (1881), de
Hermínio de Paula Castelo Branco; Chão de Meu Deus (1958) e Pedra Bruta (1964), Vida
Gemida em Sambambaia (1986), de João Nonon de Moura Fontes Ibiapina; Chico
Vaqueiro no meu Piauí (1971), Contos do sertão do Piauí (1988) e Curral de serras
(1980), de Alvina Gameiro. São autores que, das décadas de 1950 e 1980 trariam a
temática da seca e do vaqueiro como expressões de um “regionalismo” e de uma
“identidade piauiense”, dando certa continuidade às temáticas tidas como típicas do Piauí.
De maneira enfática, Francisco Miguel de Moura afirma que, “de modo geral, a
literatura piauiense é toda voltada para o rio (nosso mar interior), a seca, o boi, os mitos, as
lendas e os costumes avoengos”172. Generalização da qual comunga Raimunda Celestina
Mendes da Silva, afirmando que a “literatura piauiense” tem sua temática centrada na
seca173, que traz em sua lista de livros com temática da seca, Um manicaca (1909), de
Abdias Neves; e Macambira (1995), de José Wellington Barroso de Araújo Dias, livro que
contém o conto Maria, valei-me, que aborda a seca de 1970 nas cidades mais ao sul do
estado.
170
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão história da literatura piauiense. Teresina: HM Editor,
1997, p. 94-95.
171
REIS, Maria Gomes Figueiredo dos. Ataliba, o vaqueiro: precursor do romance da seca. Reproduzido em:
CASTELO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o vaqueiro. 11. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2012, p. 16.
172
MOURA, Francisco Miguel de. Piauí: Terra, história e literatura. Teresina: Cirandinha, 1980, p. 14.
173
SILVA, Raimunda Celestina Mendes da. A representação da seca na literatura piauiense: séculos XIX
e XX. Rio de Janeiro: Caetés, 2005.
93
174
SOUZA, Paulo Gutemberg de Carvalho. História e Identidade: as narrativas de piauiensidade. Teresina:
EDUFPI, 2010, p. 129.
175
SOUZA, Paulo Gutemberg de Carvalho. Op. cit, p. 129.
176
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Fato e a Fábula: o Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora, 2012, p. 131.
94
fauna e flora, muito mais do que os usos e costumes rurícolas, foco da poesia de temática
sertaneja”177. Uma poesia que fala de um Piauí da fartura, cuja fome só é ocasionada nos
períodos de forte seca.
Seriam, então, pelo menos duas vertentes que compõem o mote do fazer literário no
Piauí, com as quais O. G. Rego de Carvalho era comparado pelos críticos. Olhava-se para
seus livros e não se viam os traços da seca e do vaqueiro, da primeira vertente; assim como
não se viam os elementos de uma narrativa que pretendesse falar das dimensões políticas,
econômicas e históricas do Piauí como forma de sua inserção na esfera nacional, da
segunda. Duas tendências, cada uma a seu modo, que inventavam o “ser piauiense” e que
são tomadas nas disputas de poder em relação à construção da “literatura piauiense”. No
campo literário se perguntava, e ainda se pergunta, que identidade a obra de O. G. Rego de
Carvalho institui? A que vertente estaria mais próxima? É importante dizer que as duas
vertentes mencionadas não impediram que a pluralidade literária pudesse se manifestar,
com autores e textos que, também, não se aproximavam nem de uma, nem de outra.
Quando O. G. Rego de Carvalho publica Ulisses entre o Amor e a Morte, em 1953,
eram essas duas vertentes, com algumas variações a elas atreladas, que estavam em voga
no fazer literário no Piauí. As polêmicas nas quais O. G. Rego de Carvalho se envolveu,
em relação ao que se refere à existência ou inexistência de uma literatura piauiense, bem
como às discussões acerca de sua escrita ser ou não de traços regionalistas, remetem às
relações ou disputas de poder. Indicam, em larga medida, as nuanças ligadas aos status do
que é nacional, regional ou local, nas distinções ou delimitações histórico-discursivas das
fronteiras e/ou limites dos espaços em primeiro momento físicos, mas que assumem
contornos simbólicos e político-ideológicos. O próprio literato está envolto nessa disputa,
visto que ora é considerado como escritor piauiense, como nordestino, ora como escritor
brasileiro. Aqueles críticos que o determinam como “escritor brasileiro” ou “piauiense” o
fazem nessa dimensão simbólica das relações de poder, em decorrência de que, sendo
“nacional” ele tem a garantia de ser um escritor legitimado e reconhecido no campo
literário.
Os seus críticos, por meio de artigos publicados em jornais de notícias, constroem
discursos que, além de realizar análises acerca do conteúdo, da forma e do estilo dos livros
do literato, localizam-no em determinado espaço. Os discursos desses críticos, dessa forma
expressos, indicam que as noções de lugar, como o nacional, o regional e o local,
177
COSTA FILHO, Alcebíades. A gestação de Crispim: um estudo sobre a constituição da piauiensidade.
(Tese de Doutorado). Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 150.
95
178
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o Poder. In: MOTTA, Manoel Barros (Org.). Michel Foucault:
estratégia, poder-saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 253.
179
FREITAS, Vidal de. O. G. Rego de Carvalho: introspecção e poesia. Reproduzido em: KRUEL, Kenard.
O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 75.
180
FREITAS, Vidal de. Op. cit, p. 78.
96
181
ACHATIKIN, Igor. O. G. Rego de Carvalho – o romancista do Piauí (III). Reproduzido em: KRUEL,
Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 93.
182
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora, 2012, p. 09.
97
183
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da História. Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora, 2012, p. 10.
184
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Op. cit, p. 12.
185
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Op. cit, p. 15.
186
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007, p. 52.
187
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007, p. 40-41.
98
inviabilizava qualquer tentativa de esforço produtivo”188. Esse argumento, aos poucos, foi
sendo deixado de lado, tornando-se um tanto obsoleto.
Somando-se a isso, tinha-se, dentre os literatos piauienses, como mais uma
explicação vinculada ao meio, o aspecto do alto índice de analfabetismo, o que, para
críticos e intelectuais de outras regiões, assumia outro entrave ao desenvolvimento do fazer
literário naquele estado. Um público leitor reduzido, junto com poucas editoras ou
tipografias comprometia a solidificação da produção literária.
Tais impedimentos também eram pensados pelos literatos como algo negativo aos
olhos dos críticos de outras regiões, daí muitos buscarem publicar seus livros e textos em
outros estados. “Um indicador e índice de desenvolvimento na carreira de um literato era o
fato de conseguir editar livro fora de Teresina e o sucesso era considerado tanto maior
quanto mais importante fosse o local em que ocorresse a publicação”189. O destino mais
procurado pelos escritores do Piauí era o estado do Rio de Janeiro, que ainda continuou
sendo a grande referência publicitária e editorial, pelo menos no que se refere à publicação
dos livros de O. G. Rego de Carvalho. Em artigo publicado no jornal O Dia, em março de
1971, Francisco Miguel de Moura, ao fazer comentário sobre o livro Somos Todos
Inocentes, fala da relação do literato com a crítica e o público leitor em esfera nacional:
O crítico deu ênfase ao nome da editora do Rio de Janeiro, mas não menciona o
nome de quem teria sido responsável pela edição do livro de estreia do literato. Tal livro
188
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do
tempo. 3. ed. Teresina: EDUFPI, 2011, p. 169.
189
QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do
tempo. 3. ed. Teresina: EDUFPI, 2011, p. 170-171.
190
MOURA, Francisco Miguel de. Somos Todos Inocentes. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego
de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 95.
100
foi publicado pelo Caderno de Letras Meridiano, que era a editora criada pelo Grupo
Meridiano, do qual O. G. Rego de Carvalho era membro e líder. Esse silêncio em relação à
editora local demonstra que as relações de poder, na esfera editorial, tendiam a dar
destaque às editoras de outros estados brasileiros, sobretudo do sudeste do país, em
detrimento dos esforços dos escritores locais, cujas publicações, se não fossem em outro
estado, seriam um “acontecimento literário praticamente inexistente”. Francisco Miguel de
Moura está se referindo, em seu ponto de vista, à pequenez das condições de publicação e
circulação de editoras com poucos recursos, como era o caso do Caderno de Letras
Meridiano.
No entanto, ele reivindica o alçar do literato ao patamar nacional em função da
grandiosidade de sua obra. Para isso, Francisco Miguel de Moura faz uma comparação
entre o livro Somos Todos Inocentes e o livro Terra de Caruaru, do escritor pernambucano
José Condé. Em sua análise, enquanto O. G. Rego de Carvalho fala de uma cidade do
interior em decadência, Condé apresenta uma cidade interiorana em prosperidade e
desenvolvimento. Ele justifica a escolha de Condé para o comparativo, em razão de ser,
para ele, o romancista nordestino contemporâneo que mais teria se aproximado da escrita
de O. G. Rego de Carvalho. Francisco Miguel de Moura, por meio da comparação, chega
“à conclusão de que nenhum outro escritor nordestino chegou tão alto quanto O. G. Rego
de Carvalho, exceto Graciliano Ramos, na adequação da linguagem ao mundo ficcional e
aos temas escolhidos”191. Aqui Francisco Miguel de Moura está circunscrevendo uma
discussão pautada nos regionalismos em meio ao cenário nacional.
“Chegar tão alto” entre os nordestinos seria, em boa medida, ocupar espaço no
reconhecimento nacional. Mas o que é esse “nacional” no campo artístico-literário? Parece
confundir-se ou fundir-se com aquilo que é dito, pensado e produzido no centro-sudeste-
sul do país. No seio desses regionalismos há, ainda, o sentido de exclusão que se tem,
histórica e culturalmente, atribuído ao Piauí, que, no olhar do norte-americano David Lord,
seria o “pouco conhecido Piauí”192, lugar que o surpreende ao dar origem ao escritor O. G.
Rego de Carvalho.
Essa confluência, historicamente turbulenta, entre o que é nacional, regional e local,
fomenta as críticas sobre a narrativa de O. G. Rego de Carvalho, pois, no entender de Hélio
Pólvora sobre Somos Todos Inocentes, “geograficamente, e apenas neste aspecto, o
191
MOURA, Francisco Miguel de. Somos Todos Inocentes. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego
de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 97.
192
LORD, David. Rio Subterrâneo. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna
crítica. Teresina: Zodíaco, 2005, p. 107.
101
romance de O. G., como ficou conhecido entre seus amigos, quando residia no Rio, será
nordestino”193. Para Hélio Pólvora, o romance do literato vai além das delimitações
geográficas, deixando de ser nordestino para ser brasileiro, como se uma coisa já não
sugerisse outra. Ser nordestino em todos os aspectos, na perspectiva do crítico, tornaria o
romance menor em sua criatividade e em seu alcance. Hélio Pólvora, então,
discursivamente, sugere o deslocamento do berço do romance e do escritor. Ele ainda
insiste no fato de não haver mais uma tradição do que se chamou de romance nordestino,
pois
193
PÓLVORA, Hélio. Um romance contínuo. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho:
fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2005, p. 99.
194
PÓLVORA, Hélio. Op. cit, p. 99. PÓLVORA, Hélio. Um romance contínuo. Reproduzido em: KRUEL,
Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2005, p. 99.
102
escreveu Somos Todos Inocentes só para provar que também era um autor
nordestino. Na opinião de Wilson Martins, o filão regionalista esgotou-se
completamente na literatura brasileira – Guimarães Rosa, teria sido um
dos últimos grandes, no gênero. Que você acha disso?
- Não concordo plenamente com que a ficção regionalista esteja exaurida.
Sempre haverá de aparecer um escritor de grande talento que, voltando ao
tema, consiga fazer uma obra-prima.195
Como destaca o estudo de Durval Muniz, o “romance de 30” produziu obras que se
tornaram, “para muitos habitantes de outras áreas do Brasil, que não tiveram ou não têm a
oportunidade de visitar a região, como fonte de informação privilegiada sobre como a
região e seu povo era ou é”196. São obras que enfocam quatro temáticas que têm definido a
“nordestinidade”: a seca, o coronelismo, o cangaço e o messianismo. A estratégia do
entrevistador, ao que parece, a partir da própria pergunta, é localizar o literato como
fazendo parte do “romance nordestino”, ao salientar que o literato teria dito, em outra
ocasião, que escrevera um de seus livros com esse intuito. Mencionando que Guimarães
Rosa teria sido o último “grande” representante desse estilo, o entrevistador, de maneira
sutil, põe em suspeição o objetivo do literato. Desconsiderando essa noção de
“encerramento”, o literato desconsidera a ideia que Guimarães Rosa seja o “último”, como
se o poder criativo não pudesse pertencer a mais ninguém. Com esse raciocínio, ele
continua sua resposta:
O rio de inspiração é para todos. Mas que o gênero não é sedutor para os
jovens escritores não deve ser mesmo, porque já foi muito explorado, é
quase que um clichê do que se escreveu no Nordeste. Ora, quando eu
publiquei Ulisses, rompi com esse padrão estético. O rompimento foi
consciente. O rompimento e os problemas que eu sabia iria ter de
enfrentar. Até hoje não consegui um único bilhete de Raquel de Queiroz
dizendo ao menos que leu o meu livro. Mandei-lhe duas cartas, e ela
nada. Ao passo que os escritores do sul saudaram Ulisses como um
aparecimento inusitado, uma ruptura com os padrões estéticos da época, e
uma inovação, embora discreta, do modo nordestino de escrever.197
195
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Jr. Jornal da Manhã. Teresina,
17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2005, p. 337.
196
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007, p. 121.
197
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Jr. Jornal da Manhã. Teresina,
17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2005, p. 337.
103
O. G. Rego de Carvalho fala mesmo de rompimento, busca deixar claro que sua
escrita não faz parte do “modo nordestino de escrever”. Mas que modo é esse? Quem o
instituiu? Não se pode vislumbrar respostas se não for no seio dos vários mecanismos
discursivos, históricos, culturais e imagéticos que têm atuado na invenção, ou manutenção
da invenção, do Nordeste.
Ao falar desse “encerramento” do dito romance nordestino, Hélio Pólvora faz
lembrar do processo de construção discursiva do Nordeste, visto que até princípios do
século XX, essa região do país era conhecida como Norte. Somente no governo de Epitácio
Pessoa, conforme esclarece Durval Muniz de Albuquerque Júnior, é que o termo nordeste
começa a ser vinculado, na ocasião da criação da Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas, em 1919. Ligada ao isolamento e aos problemas de corrupção e das secas, a ideia de
nordeste vai sendo incorporada ao imaginário popular como lugar de atraso. Assim, “o
Nordeste já nasce pensado como um espaço que está ficando para trás no processo de
desenvolvimento do país, uma área que representaria o que chamavam de uma civilização
em vias de desaparecer”198. Desaparecimento este que Hélio Pólvora insinua em relação ao
romance nordestino. Pois se não há mais um romance nordestino com suas características
históricas, o que há, então? Romance nacional? Hélio Pólvora parece pensar nesse sentido
da totalidade, ou melhor, da nacionalidade.
Ao associar o nome de O. G. Rego de Carvalho ao nome de Graciliano Ramos,
ambos em um tipo de romance que superaria o romance nordestino tradicional, Hélio
Pólvora transparece um discurso de homogeneidade para o Nordeste, “ignorando que no
Nordeste existem muitas outras realidades, desde naturais, paisagísticas, climáticas, até
muitas outras realidades sociais, étnicas, culturais, econômicas ou políticas” 199. Mesmo
havendo semelhanças no estilo narrativo dos literatos, incluí-los como pertencentes ao
mesmo grupo daqueles escritores que são posteriores ao “romance nordestino de
características históricas”, é, também, não pensar sua escrita em suas particularidades.
Para Francisco Miguel de Moura, a crítica nacional ainda não se posicionou
devidamente em relação à obra do literato. Ele coloca em suspeição a abertura de tal crítica
a escritores que não fazem parte de grandes centros:
198
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007, p. 100.
199
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Op. cit, p. 123.
104
200
MOURA, Francisco Miguel de. Somos Todos Inocentes. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego
de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 97.
201
DUARTE, José Afrânio Moreira. Somos Todos Inocentes. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G.
Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 111.
202
FREITAS, Luís Paula. Um romancista do Piauí. In: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna
crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 114.
105
demarca bem os limites de origem do literato e ao fazer isso, Paula Freitas expressa o teor
inesperado de um escritor daquele estado figurar na moderna ficção brasileira. A própria
estrutura do texto sugere essa “evolução”: o título traz o Piauí como origem, mas o texto se
encerra dizendo que ele possui um lugar relevante na ficção “nacional”.
1971 foi o ano da publicação de Somos Todos Inocentes, o que despertou, em
muitos críticos, o desejo de ler os livros anteriores do literato, ou para conhecer ou para
(re) avaliar. Nesse intuito de (re) avaliação é que se destinou o artigo de José Expedito
Rego, publicado em duas oportunidades: no Jornal Cometa e no Jornal O Dia, ambos no
ano de 1971. Nesse artigo, Expedito Rego comenta o fato de, em Somos Todos Inocentes,
O. G. Rego de Carvalho ter perdido um pouco de sua marca intrigante e introspectiva que
marcara Rio Subterrâneo. Para Expedido Rego,
Tal perda faz com que o romancista se aproxime dos muitos outros
escritores do ciclo nordestino, José Américo, Raquel, José Lins do Rêgo,
Graciliano Ramos. E o tema Nordeste já está, sem dúvida, muito
explorado. Além disso, é muito difícil fazer alguma coisa de original.
Mas O. G. Rego de Carvalho fez.
O Piauí não é exatamente Nordeste, é um pedacinho diferente do Brasil,
tem folclore próprio, tem costumes, linguajar, hábitos alimentares que
não se encontram em outra região desse Brasil imenso. E tudo isso está
retratado no novo livro de O. G. Rego de Carvalho, de maneira feliz,
como só ele poderia fazê-lo.203
Mesmo falando dessa aproximação em relação a tal ciclo, Expedito Rego diz que
O. G. Rego de Carvalho teria sido original. O ponto auge desse comentário do crítico é
quando afirma que o Piauí não seria propriamente parte do Nordeste, sendo um “pedacinho
diferente do Brasil”. Expedito Rego cria uma ruptura entre o Nordeste e o Brasil, na qual
está, em certa dispersão, o Piauí. Expedito Rego (re) inventa o Nordeste, recriando uma
forma de pensar o Piauí, que teria características não comparáveis aos demais estados
nordestinos e brasileiros. Imprime, dessa forma, uma imagem de um estado com identidade
própria, que não se amalgamaria e nem se diluiria na ideia regional de Nordeste.
Esse conflito de definição dos limites entre o regional e o local é acirrado por O. G.
Rego de Carvalho, ao ser questionado sobre essa vinculação:
203
RÊGO, José Expedito. O novo livro de O. G. Rego de Carvalho. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O.
G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2005, p. 119.
106
Quando publiquei Ulisses entre o Amor e a Morte em 1953, esse livro foi
saudado no sul do país como algo inteiramente diferente daquilo que se
fazia no Nordeste. Na época, Homero da Silveira, num artigo
denominado Convite ao Abismo, afirmava que era de admirar que um
escritor piauiense escrevesse algo totalmente diferente da literatura que se
fazia no nordeste. A bem da verdade, cheguei mesmo a ser censurado.
Raul Lima, no Diário de Notícias, achou que minha literatura se
distanciava muito da ficção de José Lins do Rêgo, Raquel de Queiroz e
do próprio Graciliano, no que ele possa ter de regional. Escrevi uma
cartinha para Raul Lima, dizendo que o Nordeste não era apenas secas e
cangaço, e que eu, como escritor, devia ter outros compromissos sem ter
de imitar meus antecessores.205
204
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a José Afrânio Moreira Duarte. Diário de Minas. Belo
Horizonte, 30, 31/08/1970. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 300.
205
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Cineas Santos. Teresina: Revista Presença,
Teresina, Ano III, n. 05, p. 19, Set/Nov. 1982.
107
206
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.
78.
207
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior. Jornal da Manhã.
Teresina, 17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 340.
108
G. Rego de Carvalho teve muitas edições de seus livros publicados no Rio de Janeiro. A
localidade de publicação não caracteriza, ou pelo menos não deveria caracterizar, o “ser
escritor”, mas indica as relações de poder, expressas pelas condições de materialidade,
produção e circulação de livros.
No intuito de realizar um panorama comparativo, O. G. Rego de Carvalho, em certa
feita, em entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior, falou sobre a literatura
produzida no Ceará, no período das décadas de 1970 e 1980:
210
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior. Jornal da Manhã.
Teresina, 17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 340.
211
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior. Jornal da Manhã.
Teresina, 17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 337.
110
212
PACHECO, Álvaro. Discurso de posse na cadeira nº 30 da Academia Piauiense de Letras, proferido no
Auditório José Elias Tajra, na Associação Comercial Piauiense, no dia 28 de janeiro de 1994. Revista da
Academia Piauiense de Letras. Teresina, Ano LXXXVIII, n. 63, p. 102-103, dez. 2005.
111
sala de recepção, que dá acesso para a sala de reuniões, com uma ampla mesa para as
deliberações dos membros. O auditório ocupa o que outrora fora sua biblioteca. A
adequação foi necessária, para receber as solenidades, sempre muito frequentadas, de
posses de membros imortais, lançamentos de livros e de edições de sua revista. É nesse
auditório, em parede de sentido oposto ao palco, que está o mural com as fotos de todos os
seus imortais. Fotos cuja cronologia de seus ocupantes vai formando uma imagem em
cascata. Todas em preto e branco, como uma estratégia de superar o envelhecimento que,
em geral, os tons coloridos sofrem. Uma tentativa, sutil, de romper o tempo em seu
movimento, sua finitude. Lá, na última fileira, do lado esquerdo, está o retrato de O. G.
Rego de Carvalho, referente à cadeira número 6. Ainda não está a foto de sua sucessora.
Assim, parece estar em sua introspecção, como era uma de suas características. Rodeado
de outras fotos, mas em seu canto, em seu “espaço”. A Academia não era um lugar que o
literato frequentava com assiduidade. Não fazia parte de sua rotina.
No piso superior, cujo acesso se dá por uma escada talhada em madeira, estão duas
salas que funcionam como biblioteca. Salas que, em tempos remotos, abrigaram os quartos
da família que lá habitava. Foram os únicos lugares, conforme informam os funcionários
de lá, que sobraram para o arquivamento dos livros e revistas.
Em uma estante, quase encostada na parede que dá para uma janela, estão os livros
do literato. Lá, há dois exemplares da primeira edição de Ulisses entre o Amor e a Morte
(1953). Uma delas está bem desgastada, com a capa corroída em muitas extremidades. A
segunda, doação do próprio autor, foi por ele encadernada com capa dura, azul esverdeado
e com letras douradas para o título e seu nome. Há exemplares, também, de seus outros
livros, mas, assim como os demais livros, estão carentes de um espaço mais amplo, como
melhor iluminação, refrigeração, além de condições para receber pesquisadores, leitores,
estudantes. O “templo”, ao menos no que se refere ao local destinado à biblioteca, enfrenta
os dissabores do tempo.
A Academia Piauiense de Letras (APL) foi fundada, efetivamente, em 30 de
dezembro de 1917 e instalada no início de 1918, em 24 de janeiro, por uma elite intelectual
ligada aos bacharéis formados pela Faculdade de Direito em Recife. Foi idealizada e
encabeçada por Lucídio Freitas, que coordenou a reunião de fundação. A fundação da
Academia Piauiense de Letras foi percebida pela imprensa da época como uma grande
conquista para a cultura da capital e de todo o estado. Foi um acontecimento muito
festejado pela imprensa:
112
213
A Academia. Correio de Theresina. 17 jan. 1918, p. 12.
214
QUEIROZ, Teresinha. Teresinha Queiroz: emoção e respeito no discurso de posse. Revista Presença.
Teresina, Ano 23, n. 41, abril de 2008, p. 40.
215
As cadeiras que foram criadas a mais foram ocupadas por Artur de Araújo Passos, Raimundo Nonato
Monteiro de Santana, Wilson de Andrade Brandão, Odilon Nunes, Maria Nerina Pessoa Castello Branco,
Darcy Fontenelle de Araújo, Emília Castello Branco de Carvalho, Manoel Paulo Nunes, Celso Barros Coelho
e João Coelho Marques.
113
216
MOURA, Francisco Miguel de. O papel das Academias na sociedade. Revista da Academia Piauiense
de Letras. Teresina, ano LXXXVIII, nº 63, p. 76-77, dez. 2005.
217
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 77.
114
[...] para que, antes de findar o seu mandato – o mais luminoso de nossa
terra – brinde a inteligência do Piauí com um teto definitivo, mandando
adquirir, para sede própria da Academia Piauiense de Letras, o prédio
número 1481, da Rua Elizeu Martins (esquina de 24 de Janeiro), onde
faleceu, enlutando o sentimento cultural do Piauí, a 24 de março de 1963,
o acadêmico José de Arimathéa Tito (pai), seu proprietário e figura
oracular d “Casa de Lucídio Freitas”. Com esse gesto, Vossa Excelência,
além de cumprir promessa feita aos acadêmicos do Piauí, abrigará do sol,
da chuva, da neblina e do sereno os ilustres hóspedes do areópago
piauiense, e entrará para a nobre história das ciências, das artes e das
letras de sua terra natal.219
218
MOURA, Francisco Miguel de. Cultura e Política Cultural. Postado em 10/02/2010. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2079524>. Acesso em: 19 fev. 2014.
219
MATOS, José Miguel de. Casa de Lucídio Freitas não tem teto, mas vive. O Dia. Teresina, ano 24, n.
4131, 14 fev. 1975, p. 12.
115
Sem cultura, nada mais haverá. E nós, porque somos passagem entre o
Maranhão e o Ceará, mostramos nossa vulnerabilidade. É preciso que o
Piauí deixe de ser uma terra de passagem e passe a ser um lugar de estada
e residência, inclusive para livrar-se da pecha de que é o estado mais
subdesenvolvido da Nação, o que é pura ficção idiota, alimentada pela
mídia. Um mais acelerado desenvolvimento de seus meios e modos
lavará nossa alma.220
220
MOURA, Francisco Miguel de. Cultura e Política Cultural. Postado em 10/02/2010. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2079524>. Acesso em 19 fev 2014.
116
221
MIRANDA, Reginaldo. Nossa Revista. Revista da Academia Piauiense de Letras. Teresina. Ano XCII,
n. 67, p. 10, dez. 2009.
222
MIRANDA, Reginaldo. Op. cit, p. 10.
117
223
MOURA, Francisco Miguel de. O papel das Academias na sociedade. Revista da Academia Piauiense
de Letras. Teresina. Ano XCII, n. 67, p. 77, dez. 2009.
224
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 77.
118
225
FORTES FILHO, José. A democratização e a interiorização da cultura no Piauí. Publicado em
06/08/2009. Disponível em: <www.academiapiauiensedeletras.org.br>. Acesso em 24/10/2012.
119
Dentre as famílias que mantiveram essa relação com os Castelos Brancos está a
família dos Carvalhos, da qual descende O. G. Rego de Carvalho. Essa constatação de
“permanência” familiar seria uma das razões pelas quais o literato achasse que muitos
estavam na Academia sem os reais merecimentos.
226
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Tarcísio Prado. Jornal O Dia. Teresina, 28,
29/03/1971. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 306.
227
BORGES, Geraldo Almeida. Notas sobre a literatura piauiense: Primeira República. Carta Cepro.
Teresina, v. 11. n. 01, p. 45, Jul/Dez. 1986.
120
Não satisfeita com essa resposta do literato, Concita Cordeiro insistiu: “Você se
julga melhor que os imortais de nossa Academia?”228. O. G. Rego de Carvalho, então,
explana um pouco dos seus descontentamentos em relação à instituição: “Nem melhor,
nem pior do que qualquer um deles. Mas fundi a cuca escrevendo livros, e não conheço
quatro imortais de nossa Academia que hajam sequer queimado as pestanas’”229. Ele
começa a sugerir que não há critérios “justos”, critérios ligados à produção literária com
significação.
No ano de 1973, em entrevista publicada no dia 26 de junho, no Jornal O Estado, o
literato foi questionado se aceitaria uma cadeira na Academia Piauiense de Letras e ele,
então respondeu:
Há, nisso, mais traços das relações de poder, das disputas nos espaços de
intelectualidade. Em sua concepção, a Academia de Letras devia estar destinada para
escritores de literatura, não a pessoas que ocupam cargos ou que detêm títulos. Ele faz
questão de encerrar seu depoimento com uma ironia, sugerindo que aqueles que são
membros da Academia, em sua maioria, não saberiam explicar os motivos para estarem lá,
ou os motivos não seriam justificativas que sustentassem a ocupação de suas cadeiras
como imortais. A Academia Piauiense de Letras transformou-se em espaço de litígio entre
a intelectualidade, ou tal litígio ficou mais evidente a partir das considerações do literato.
Sua disposição em não entrar para a lista de membros da Academia Piauiense de
Letras continuou por muitos anos, despertando curiosidade, estranheza e intrigas. No ano
de 1982, mais uma vez questionado se continuava a não aceitar o convite de fazer parte da
“casa dos imortais”, ele dá algumas explicações:
228
CORDEIRO, Concita. Entrevista com O. G. Rego de Carvalho. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G.
Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 313.
229
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Concita Cordeiro. Jornal O Estado. Teresina,
26/06/1973. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:
Zodíaco, 2007, p. 313.
230
CARVALHO, O. G. Rego de. Idem, p. 313.
121
Sobre a Academia, vou contar uma coisa curiosa: com a morte do poeta
Martins Napoleão, decidiram que só eu tinha condições de substituí-lo.
Eu nem sei porque, uma vez que considero Martins Napoleão um bom
poeta, mas não é um poeta insuperável. Mas cismaram que sendo ele o
maior vulto da Academia, a maior homenagem que poderiam prestar ao
poeta seria me colocar lá dentro.231
Fiz tudo o que estava a meu alcance para não assinar esse requerimento.
Lancei mão de um velho artifício que inventei com H. Dobal para não
entrarmos para a Academia, isto é: quando me procurassem, eu diria que
só entraria depois do Dobal; procurado, o Dobal diria que só entraria para
a Academia depois de mim. Assim, nos livraríamos. Não desistiram, me
231
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Cineas Santos. Revista Presença. Teresina. Ano
III., n. 05, p. 22, Set/ Nov. 1982.
232
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 22.
122
O que levava o literato a não dizer suas “verdadeiras razões” diretamente para os
membros da Academia? Os constrangimentos seriam maiores que aqueles que surgiam da
especulação. Os problemas de saúde do literato já eram conhecidos dos intelectuais, o que
ameniza as desconfianças que nutriam sobre as recusas. Seu “pacto” com H. Dobal parece
ter sido, em parte, cumprido, pois Dobal só ingressou na Academia no início da década de
1990, ocupando a cadeira de número 10, na qual permaneceu até 2008, ano de seu
falecimento. O artifício de um dizer que só entraria para a Academia após o ingresso do
outro funcionou, pelo menos para H. Dobal, que ingressou depois de O. G. Rego de
Carvalho.
Isso o fez enfrentar certas restrições nos espaços de intelectualidade “piauiense”.
Exemplo marcante disso foi a sua posse na Academia Piauiense de Letras, pois, para
muitos, não seria algo a ser concretizado. Tal surpresa foi manifestada na manchete do
Jornal da Manhã, no dia 05 de junho de 1983. Na ocasião, o jornal destacou: “O. G., quem
diria, na Academia”234, notícia essa que não foi assinada por nenhum crítico literário
específico. Essa polêmica é endossada:
233
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Cineas Santos. Revista Presença. Teresina. Ano III,
n. 05, p. 22, Set/ Nov. 1982.
234
O. G. Rêgo de Carvalho toma posse na APL. Jornal da Manhã. Teresina. 05/06/1983, p. 08.
235
O. G. Rêgo de Carvalho toma posse na APL. Jornal da Manhã. Teresina. 05/06/1983, p. 08.
123
236
MOURA, Francisco Miguel de. A Academia e a dialética do ser. Jornal da Manhã. Teresina.
11/06/1983, p. 04.
237
O. G. Rego de Carvalho toma posse na academia. Gerais. Revista Presença. Teresina, p. 23, Março/Jun.
1983.
238
A composição da revista Presença estava assim distribuída: Conselho Editorial da Revista Presença:
Cineas Santos, O. G. Rêgo de Carvalho, Paulo Machado, Kenard Kruel. Colaboradores: Cineas Santos,
Francisco Miguel de Moura, Paulo Machado, O. G. Rêgo de Carvalho, Gilbert Tlandoune, Manuel Paulo
Nunes, Kenard Kruel, Manuel de Moura Filho.
239
CARVALHO, O. G. Rêgo de. Entrevista concedida a Pedro Pio Fontineles Filho. Teresina. 14/02/11.
124
questionavam sobre o que teria ocorrido para ele aceitar, o que teria mudado. Ele
respondeu:
Olhe, eu resisti à Academia por quase toda a vida – não digo toda porque
acabei cedendo ao cerco dos amigos. A quem me perguntava porque eu
não pertencia à Academia, minha resposta era uma só: “Minha condição
de mortal já me é penosa. Que dizer da imortalidade?” Mas cansei de
tanto repetir isso às pessoas que me queriam ver lá dentro. Cheguei a
dizer, numa entrevista, que a Academia Piauiense de Letras não tinha
representatividade. Terminei concordando em assinar o requerimento de
admissão. Isolei-me no meu canto e, sem pedir voto a ninguém, sem
escrever uma cartinha, sem fazer nenhuma visita, fui eleito com
expressiva votação.240
240
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Júnior. Teresina, Jornal da
Manhã, 17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:
Zodíaco, 2007, p. 339.
125
241
CARVALHO, O. G. Rego de. A Cidade Eleita. Revista da Academia Piauiense de Letras. Teresina,
Ano LXXVII, nº 52, p. 203-204, dez. 1994.
126
membro da Academia Piauiense de Letras. Talvez pela ocasião, visto que o lugar para o
qual o discurso é endereçado demandava outras memórias, outros destaques. A sua
“imortalidade”, naquela ocasião, expressava-se pelo reconhecimento, como ele mesmo
frisou, para a sua “cidade eleita”.
A Academia Piauiense de Letras envolve a imagética da imortalidade, o que remete
à luta contra a finitude. Mas nem todos podem ser imortais, o que gera uma situação
constante de angústia, de desejos e de conflitos. Conflitos que, em geral, ligam-se ao
ingresso e à atuação nos quadros daquela instituição. Relações de poder se instauram na e
com a conquista de ser considerado como representante do fazer literário e da expressão
cultural de um município, estado ou país. Levando em consideração as observações de
Homi Bhabha242, a Academia Piauiense de Letras é, aqui, vista como o lugar institucional e
disciplinar no qual é possível instaurar as identidades e seus conflitos de manutenção As
Academias, assim, coadunam expectativas e práticas que se ocupam da construção e
manutenção de “identidade”.
242
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007.
127
A obra do literato, para muitos, foge ao caráter regionalista, pois não abordaria
temáticas que ficaram cristalizadas por um tipo de regionalismo voltado para as questões
do sertanejo, da seca e da fome. De fato, tomando esses elementos como algo que
qualifique o autor como regionalista, ele não se enquadra nesse viés.
No entanto, é possível visualizar, em sua obra, os conflitos entre o contato com a
cidade e as lembranças de uma cidade com ares mais interioranos e até mesmo rurais,
notadamente entre Teresina e Oeiras. Apresenta-se, aí, o conflito que será típico do próprio
regionalismo, visto que
243
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
vol. 8, n. 15, 1995, p. 158.
244
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit, p. 155.
128
da nostalgia. Nesse sentido, o regionalismo nas obras do literato pode ser pensado neste
paradoxo.
Lígia Chiappini menciona que, nos estudos do regionalismo literário, é possível
vislumbrar a existência de vários regionalismos brasileiros, bem como uma mesma
tendência nas diferentes literaturas na Europa e nas Américas. A autora faz questão de
enfatizar isso para demonstrar a pluralidade de olhares e concepções que se formam ao
redor da noção de regionalismo. Em suas pesquisas sobre o retorno, ou a amplitude dos
debates sobre os regionalismos, constatou que isso se deu, em grande parte, “como
decorrência só aparentemente paradoxal da chamada globalização”245. Pensando na
complexidade e na pluralidade que circundam os regionalismos, Chiappini se propôs a
discutir dez teses acerca da questão.
Assim, a primeira das teses abordadas pela autora diz respeito à definição da obra
literária regionalista como sendo todo e qualquer livro que seja produzido,
intencionalmente ou não, com o intuito de traduzir as particularidades de determinada
localidade. Fazendo tal definição, enumerando, por exemplo, os costumes, as práticas, as
crenças, as modas, o linguajar, os que assim procedem, acabam vinculando tais
enumerações a uma área determinada do país. Surgem, daí, o “regionalismo paulista”, o
“regionalismo gaúcho”, o “regionalismo nordestino”, dentre muitos outros. Chiappini
afirma que, “tomado assim, amplamente, pode-se falar tanto de um regionalismo rural
quanto de um regionalismo urbano”246. Sendo assim, toda obra literária seria regionalista.
Mesmo diante disso, “historicamente, porém, a tendência a que se denominou regionalista
em literatura vincula-se a obras que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e
personagens, procurando expressar suas particularidades linguísticas”247. A linguagem,
dessa forma, é um indício das estratégias de autores e de seus críticos no percurso de
localização da narrativa como sendo mais ou menos regionalista.
Essa relação local-regional-nacional-universal tem sido algo que marca os debates
acerca da existência dos regionalismos e de seus alcances, bem como da classificação dos
autores possivelmente tidos como regionalistas. Algumas sutilezas podem aparecer no
texto de um literato, o que abre margem para esse debate. É o que se observa nos
comentários de Francisco Miguel de Moura acerca das adaptações textuais realizadas pelo
autor de Ulisses entre o Amor e a Morte (1953):
245
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
vol. 8, n. 15, 1995, p. 153.
246
CHIAPPIINI, Ligia. Op. cit, p. 155.
247
CHIAPPIINI, Ligia. Op. cit, p. 155.
129
A reescrita não se dá somente por questões estéticas. Ela, como observou Miguel de
Moura, tem pretensões de romper os limites regionais para que o texto possa ser
consumido por um público mais ampliado, para além do âmbito local. Dessa tentativa, em
certa medida, está entrelaçada aquilo que Chiappini abordará na segunda tese sobre os
regionalismos, que está na tensão da dualidade idílio-realismo. Tal dualidade agrega outras
tensões “entre nação e região, oralidade e letra, campo e cidade, estória romanesca e
romance; entre a visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente”249.
Visto que o idílio pode se referir, também, a muitos temas, tais como a juventude e ao
amor, isso seria o suficiente para enquadrar a obra de O. G. Rego de Carvalho como
regionalista. No tocante às tensões entre a nação e a região, a adaptação textual,
substituindo o termo “inverno”, para dirimir os deslizes de interpretação entre as regiões,
exemplifica isso, talvez.
Ao discutir sobre a terceira tese acerca dos regionalismos, Chiappini chama atenção
para os desafios teóricos, pois o estudioso deve se deparar com questões ligadas aos
“problemas do valor; da relação entre arte e sociedade; das relações da literatura com as
ciências humanas; das literaturas canônicas e não-canônicas e das fronteiras movediças e
entre clãs”250. Nesse sentido, o regionalismo do literato aqui discutido deve ser percebido
no âmbito de tais fronteiras, sem a intenção de fixá-lo em uma definição hermética. O
próprio literato construiu seus textos nesse terreno movediço, mesclando características,
muito embora a universalização parecesse o seu objetivo. Chiappini também chama a
atenção, já mencionando a quarta tese sobre o regionalismo, que ele é um fenômeno
moderno e universal, que é um “contraponto necessário da urbanização e da modernização
248
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 62. [Grifos nossos].
249
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
vol. 8, n. 15, 1995, p. 156.
250
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit, p. 156.
130
251
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
vol. 8, n. 15, p. 156, 1995.
252
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit, p. 157.
253
MURARI, Luciana. Um plano superior de pátria: o nacional e o regional na literatura brasileira da
República Velha. XI CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC – Tessituras, Interações,
Convergências. Anais. São Paulo: USP, 13 a 17 de julho, 2008, p. 01.
254
CHIAPPINI, Ligia. Op. cit, p. 157.
131
255
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de Janeiro:
Artenova, 1972, p. 18.
256
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 65.
257
HARRIS, Wendell V. Apud ARAÚJO, Daniel Teixeira da Costa. O cânone literário em perspectiva: o
caráter político em detrimento do estético. Via Litterae, v. 3, n. 2, Anápolis, p. 415-434, jul./dez. 2011, p.
418.
132
***
258
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
vol. 8, n. 15, p. 155, 1995.
259
PELINSER, André Tessaro. Olhares sobre o regionalismo literário brasileiro: uma perspectiva de estudo.
Revista Antares. Dourados, MS, v. 02, nº 04, p. 106, . Jul/Dez. de 2010.
133
Dostoiévski, William Sarayon, Machado de Assis, José de Alencar são alguns dos
escritores que O. G. Rego de Carvalho confessa terem causado nele grande impacto
mediante a leitura de seus livros. Ele chega a dizer, por exemplo, que, aos 12 anos de
idade, sentiu profundo desejo de se tornar romancista. Outros autores, como John
Steinbeck também fizeram do universo de leitura do literato, enquanto era membro dos
260
ECO, Umberto. Confissões de um jovem romancista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 28.
261
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.
23.
134
círculos do Grupo Meridiano. São esses autores e alguns de seus livros que são aqui
analisados para compreender que muito do estilo, da forma e das temáticas apresentados
por ele está ligado a uma rede de leitura. Não se pretende exaurir o leque de livros e
escritores, mas somente transitar entre aqueles os quais ele sempre menciona em suas
entrevistas.
O literato tem o cuidado de falar que não foi “influenciado”, mas que ficou
“impressionado” com a leitura de alguns livros. Em uma entrevista concedida a Tarcísio
Prado, no ano de 1971, ele diz que “a única influência consentida foi a de Machado de
Assis, mas apenas no início da carreira. Imagino que minha literatura seja muito pessoal,
conforme tem sido ressaltado no sul”262. O. G. Rego de Carvalho parece esquivar-se de
qualquer resquício de uma influência que seja “consentida” por ele.
Harold Bloom, em seu estudo A angústia da influência, afirma que “os talentos
mais fracos idealizam; as figuras de imaginação capaz apropriam-se. Mas nada se obtém a
troco de nada, e a apropriação envolve as imensas angústias do endividamento” 263. A
“influência consentida” seria essa apropriação com suas dívidas. Bloom, então prossegue,
perguntando, “qual criador forte deseja compreender que não conseguiu criar-se a si
mesmo?”264. O. G. Rego de Carvalho sugere que se criou a si mesmo, com sua literatura
“muito pessoal”.
Machado de Assis aparece como um dos escritores que compuseram a sua angústia
de influência. A entrevista realizada por José Afrânio Moreira Duarte retomou a questão da
influência:
262
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Tarcísio Prado. Jornal O Dia (Literatura). Teresina,
28, 29/03/1971. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:
Zodíaco, 2007, p. 305.
263
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.
55.
264
BLOOM, Harold. Op. cit, p. 55.
135
265
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a José Afrânio Moreira Duarte. Reproduzido em:
KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 300.
266
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a José Afrânio Moreira Duarte. Diário de Minas. Belo
Horizonte, 30, 31/08/1970. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 299.
267
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedia a Cineas Santos. Revista Presença. Teresina, Set/Nov.
1982. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007,
p. 323.
268
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Jr. Jornal da Manhã. Teresina,
17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 337.
136
século XIX, a antevisão do romance aberto, pois ‘o final é aberto à imaginação de cada
um”269. Para reforçar sua argumentação, O. G. Rego de Carvalho faz um breve resumo do
final do livro de José de Alencar, como forma de justificativa. Então, ele assevera: “Esse
livro de Alencar me marcou profundamente. Tanto assim que meus livros não têm um fim,
em nenhum deles se pode botar a palavra fim. Como nos romances fechados de
antigamente”270. Esse aspecto de um romance aberto também tem sido ponto de discussão
acerca da obra de O. G. Rego de Carvalho, pois, em muitas oportunidades, ele não admite
algumas interpretações somente sobre seus livros, mas também sobre suas filiações e
influências.
Nesse percurso de “conduzir” o olhar que leitores e crítica devam ter sobre suas
influências, o literato menciona o caráter criativo de sua escrita, utilizando-se de José de
Alencar e de Machado de Assis para o seu estilo:
269
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Edmilson Caminha Jr. Jornal da Manhã. Teresina,
17/01/1988. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 338.
270
CARVALHO, O. G. Rego de. Idem, p. 338.
271
CARVALHO, O. G. Rego de. Idem, p. 338.
272
FITZ, Earl. A recepção de Machado de Assis nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. Machado
de Assis em Linha. Ano 5, n. 09, jun. 2009. Disponível em:
<http://machadodeassis.net/download/numero09/num09artigo02.pdf> . Acesso em: 19 fev. 2014.
137
1980, como “raras paragens”, e por Machado de Assis ser de origem do Brasil, que era
marginalizado e visto como invisível pelos Estados Unidos. A intenção aqui é mencionar
que as relações de poder, tendo a literatura como ponto de disputa, estão ligadas aos
referentes de onde partem os discursos. A cautela de O. G. Rego de Carvalho se dá nesse
âmbito das relações da angústia da influência, pois “historicamente, nos estudos
comparados, a importância do émetteur, o autor que influencia, ofuscou a do récepteur, o
autor influenciado”273. Mas, como sugere Harold Bloom, a questão é mais complexa que
essa linha unilateral entre os escritores.
Essa atitude de cautela, mesclada com “confissões”, percorre as discussões acerca
da complexidade da influência, o que Harold Bloom vai pensar como a “angústia da
influência”. Para sustentar sua argumentação, Bloom fala do caso de Keats, que ao dizer
que a vida de Wordsworth é sua própria morte, está também querendo afirmar que a sua
própria vida, ou seja, sua poesia, não pode ser concebida sem a do poeta antecessor. O. G.
Rego de Carvalho expressa essa angústia ao ser questionado: “Qual o romance que você
gostaria de ter escrito? 1. Da literatura universal. 2. Da literatura brasileira” 274. Ele, então
responde: “Da universal, Os Irmãos Karamázovi. Da brasileira, Rio Subterrâneo. Do
primeiro tenho inveja; quanto ao último, ainda não me refiz do pasmo de tê-lo escrito em
circunstâncias tão penosas para mim”275.
Se, como diz Michel Foucault, nenhum livro ou obra de um escritor é um limite
definido em si mesmo276, torna-se relevante traçar os percursos das leituras que O. G. Rego
de Carvalho seguiu na sua constituição como literato. Não se trata de buscar meras
semelhanças entre o escritor e os autores que leu. Busca-se implementar, respeitando os
distanciamentos e as particularidades temporais e espaciais, uma leitura das interconexões
das formas de pensar e escrever literatura no momento em que o literato se enveredou pelo
universo literário. Nesse sentido, o livro encarna importante veículo, como ressalta Carlo
Ginzburg, para que as ideias e pensamentos sejam transmitidos em diferentes
temporalidades e espacialidades. Além disso, as narrativas, como as de O. G. Rego de
Carvalho, podem ser percebidas em outros “rastros”, por outros “fios”, como sugere
273
FITZ, Earl. A recepção de Machado de Assis nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. Machado
de Assis em Linha. Ano 5, n. 09, jun. 2009. Disponível em:
<http://machadodeassis.net/download/numero09/num09artigo02.pdf> . Acesso em: 19 fev. 2014.
274
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida a Pompílio Santos. Jornal O Estado. Teresina, 21,
22/12/1975. Reproduzido em: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 316.
275
CARVALHO, O. G. Rego de. Idem, p. 316.
276
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
138
277
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 08.
278
DOSTOIÉVISKI, Fiódor M. Os Irmãos Karamzov. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1967, p. 337.
139
Inocentes justifica-se, em parte, pelo fato de as primeiras traduções da obra russa para o
Português remeterem à década de 1940, posteriormente à escrita de Ulisses entre o Amor e
a Morte. Como ressalta Bruno Barretto Gomide, a literatura russa, como nomes de Tostói e
Dostoiéviski, já circulava em território brasileiro desde o final do século XIX, por meio de
artigos e traduções franceses que chegavam a estados como Rio de Janeiro e São Paulo.
Dessas cidades, os textos e livros daqueles escritores partiam para outros estados, sendo
consumidos por intelectuais de várias localidades de todo o país. As atuações político-
culturais do Estado Novo “trouxeram alterações quantitativas (aumenta o volume de textos
publicados sobre literatura russa) e qualitativas (aparecimento de novos ensaístas e projetos
editoriais mais encorpados, como a edição de Dostoiévski da José Olympio, a partir do
início da década de 1940)”279. As questões da vida social, política e cultural eram pontos
debatidos pelos intelectuais sobre a sua obra, bem como para os aspectos da introspecção e
da condição humana.
Assim como em Os Irmãos Karamzov, em Somos Todos Inocentes a família é o
ponto irradiador e catalisador dos diferentes sentimentos do homem. Sentimentos que
povoam a trajetória de José, um dos envolvidos nas brigas que separam a sua família da
família dos Ribeiro. Certa feita, retornando para casa, após decepção com o estado
deplorável da fazenda Varjota, que herdara do pai, José compreendeu, por instantes, que
“após uma vida de lutas e sofrimentos, apreensões e ódio, em que se sacrificou pelos seus,
estava reduzido a um pouco de recordações. ‘Uma vida inútil, a minha!’” 280. As esferas
psicológicas, expressas pelo ódio, pela vingança e esperança, atuam como fios que
contribuem para a compreensão social e econômica de uma Oeiras em fins da década de
vinte do século passado. Uma Oeiras que, ainda, apresenta práticas do período da
colonização da cidade.
Outro livro que compõe a obra de Fiódor Dostoiévski é Notas do Subterrâneo
(Notas do Subsolo ou Memórias do Subsolo em algumas traduções brasileiras)281, descrito
como o principal texto do autor e que representaria os pilares do existencialismo. Vale
atentar para a semelhança do título com o segundo livro de O. G. Rêgo de Carvalho, Rio
Subterrâneo. Mais que aproximações ou semelhanças narrativas, Notas do Subterrâneo
279
GOMIDE, Bruno Barreto. Da Estepe à Caatinga: o romance russo no Brasil (188701936). Tese de
Doutorado. Campinas/SP: UNICAMP, 2004, p. 16-17.
280
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 26.
281
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. Esse livro foi
escrito por Dostoiévski em 1864 e traz inúmeras reflexões sobre o modo moderno de pensar a realidade e a
racionalidade, especialmente de natureza romântica e positivista.
140
expressam, assim como quase toda a obra de Dostoiévski, que as certezas devem
questionadas, pois elas prendem o ser humano em um universo racional castrador da
criatividade e da inteligência.
Com uma narrativa em primeira pessoa, Dostoiévski dá ao personagem-autor, a
dimensão de estar discutindo sua própria existência. Tal personagem ainda fala, logo de
início, de seu prazer pelo seu caráter duvidoso, oscilante, pois ele confessa que o: “prazer
provinha justamente da consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria
degradação; vinha da sensação que experimentava de ter chegado ao derradeiro limite”282.
O escritor russo traz, na edição de 1967 traduzida e publicada para o Português, um
pequeno prólogo no qual ele destaca a intenção de ter escrito tal texto:
O próprio Dostoiévski faz questão de dizer que “tanto o autor como o texto dessas
memórias são, naturalmente, imaginários”. Se o escritor salienta o fato de seu texto ser
fruto da ficção, isso se manifesta, em parte, pelo fato de o público leitor ou mesmo a
crítica, intentar “desvendar” traços autobiográficos ao longo da narrativa.
Por esse diapasão, ao buscar escrever romances de teor mais psicológico, fugindo,
em boa medida, de uma literatura pautada nos regionalismos ou naturalismos, O. G. Rego
de Carvalho toma a obra do escritor russo como indicadora de suas próprias inquietações
como intelectual. A racionalidade questionada por Dostoiévski se destina, também, à
racionalidade que define o que é “mentalmente saudável”. A perturbação mental e a
fraqueza do personagem principal de Notas do Subterrâneo exprimem a crítica de
Dostoiévski ao mundo moderno que enclausura o homem em limites racionais. São
questionamentos que insistem em aparecer em quase todos os livros de Dostoiévski.
Nesse mesmo livro, o literato russo apresenta a expressão “consciência
hipertrofiada”, pela qual o personagem-autor tenta se justificar, ou melhor dizendo, busca
explicar as suas ações por meio de tal consciência. Segundo esse personagem-autor, “tu
tens razão em ser um canalha; como se fosse consôlo para um canalha perceber que é
282
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 142
283
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Op. cit, p. 146.
141
realmente canalha”. Essa consciência daria certa tranquilidade ao sujeito, pois, ao menos,
veria que não pode lutar contra algo que tem plena consciência que é de sua natureza, de
sua índole.
De maneira similar, em Somos Todos Inocentes, O. G. Rego de Carvalho apresenta
certos momentos do livro nos quais seus personagens têm essa “consciência hipertrofiada”
e se aquietam por saberem disso. É o caso, por exemplo, de Raul Ribeiro, de família rica e
poderosa, mas que se envolvera em alguns desmandos com mulheres, chegando mesmo a
engravidar uma jovem e abandoná-la, mesmo se dizendo apaixonado por outra, Dulce. Em
suas reflexões, Raul acabava dizendo a si mesmo que ele era daquele jeito, e que nada o
mudaria, então, não estava errado ser do que jeito que era. Contudo, seu avô, Joaquim
Ribeiro, o repreendia pelas ações impensadas dos últimos tempos. Em um diálogo tenso
entre avô e neto, o coronel Joaquim Ribeiro diz ao neto que “o reconhecimento do erro
quase sempre leva o homem a corrigir-se. Mas você, Raul? Seu coração é uma terra onde
não frutifica a boa semente.”284
Somando-se a isso, o homem angustiado, solitário, fragmentado e desordenado que
pontua Notas do Subterrâneo, em parte, parece agradar a O. G. Rego de Carvalho, não
somente pela forma de escrita, mas pelo fato de que também expressa traços da
personalidade e da saúde do escritor. Dessa maneira, o que o impressionou foi o conjunto
entre conteúdo e forma, que contribui para uma leitura de suas experiências como escritor,
como intelectual. São essas angústias e desordens que O. G. Rego de Carvalho busca
manifestar narrativamente em Rio Subterrâneo (1967).
O que dizer de Ulisses? Ulisses entre o Amor e a Morte (1953) trata-se de um
romance que traz como personagem principal aquele que dá o título do livro. Jovem que
começa a descobrir a vida em sua mudança da infância para a adolescência e em seu
deslocamento entre Oeiras e Teresina. Ulisses é um garoto que perde o pai, que, na
narrativa, estava adoentado e que lutava contra seus problemas de saúde, recorrendo a
cuidados médicos em Teresina. Ulisses entre o Amor e a Morte (1953) apresenta
alguns elementos de conteúdo e de forma que se assemelham ao livro A Comédia Humana,
de William Saroyan285. O escritor norte-americano faz parte de um grupo cujos livros
284
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 188.
285
Nasceu em 31 de agosto de 1908, na cidade de Fresno, nos Estados Unidos da América e faleceu em 18 de
maio de 1981. William Saroyan recorreu com frequência ao conto com traços autobiográficos, mesmo não
recorrendo diretamente à narrativa em primeira pessoa, escrevendo uma vasta produção: Inalar e
Exalar (Inhale and Exhale, 1936), Criancinhas (Little Children, 1937), Amor, Aqui Está Meu Chapéu (Love,
142
circulavam bastante entre os intelectuais no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1950, pois
“a ficção curta brasileira deixa-se impregnar por um teor poemático que facilita a
introspecção. Thekhov, Katherine, Mansfield, Proust, Kafka, Saroyan exerciam, à época,
influência marcante”286.
No romance do escritor norte-americano, o personagem central é Homero,
adolescente que tem um irmão mais jovem, Ulisses. O. G. Rego de Carvalho tem o seu
Ulisses como o adolescente principal do livro, tendo seu irmão mais novo, José. No
entanto, nos livros de O. G. Rego de Carvalho, Homero não aparece, mas surge Hermes,
como personagem relevante, no livro Rio Subterrâneo. Nesse sentido, o gosto por nomes
mitológicos atravessa a escrita dos dois literatos. No livro de Saroyan, os dois jovens
também perdem o pai muito cedo, ficando aos cuidados da mãe. Algo semelhante acontece
em Ulisses entre o Amor e a Morte. É como se, em certa medida, os livros de O. G. Rego
de Carvalho fossem capítulos “traduzidos” e ampliados das obras dos autores que leu e
pelo qual se encantou. Melhor dizendo, ele fez com que temas, estilos, traços, costumes e
ideias fossem universalizados, com pitadas do que escreveram autores em outros lugares
do Brasil e do mundo.
De William Saroyan, O. G. Rego de Carvalho possivelmente retirou, como
arcabouço, traços do estilo e da forma narrativa, pois, em seus três romances, ele se utiliza
de textos curtos e diretos, sobretudo em Ulisses entre o Amor e a Morte, cujos capítulos
chegam a somente duas ou três linhas, quase como versos, distribuídos em quarenta e dois
capítulos. Para exemplificar, A Comédia Humana possui trinta e nove capítulos, com
capítulos de, no máximo, dez páginas. Nos demais livros de O. G. Rego de Carvalho,
encontram-se nove capítulos em Somos Todos Inocentes e seis capítulos em Rio
Subterrâneo, ambos com uma média de vinte páginas cada capítulo.
Capítulos curtos também são uma característica de Dom Casmurro (1900), de
Machado de Assis. Seus mais de cem capítulos possuem uma fluidez no sentido de serem
compostos por uma narrativa veloz, de trânsito, pensado para não prender o leitor em um
mesmo capítulo por muito tempo. Isso está claro no finalzinho do capítulo intitulado Uma
Here Is My Hat, 1938), A Confusão Com Os Tigres (The Trouble With Tigers, 1938), Meu Nome É Aram (My
Name Is Aram, 1941), Depois dos Trinta Anos (After Thirty Years, 1962), entre outros. Escreveu também
para o teatro, tendo ganhado o famoso e cobiçado Prêmio Pulitzer em 1939 com a peça O Tempo De Sua
Vida (The Time of Your Life). Prêmio que Saroyan recusou, alegando que "a riqueza não tem o direito de
patrocinar a arte".
286
PÓLVORA, Hélio. Graciliano Ramos. Vidas Lusófonas. Disponível em:
<http://www.vidaslusofonas.pt/graciliano_ramos.htm> . Acesso em: 19 fev. 2014.
143
ideia, onde está escrito: “Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo”287. Livro cuja
narrativa, de tempo psicológico, acompanha os vaivéns da sua memória. Tempo
psicológico que também marca os livros de O. G. Rego de Carvalho. São nesses detalhes
que as “influências” do literato surgem, sem ele ter apontado, cabendo aos leitores, e
pesquisadores, implementarem as possíveis conexões.
Capítulos curtos também vão compor Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880),
de Machado de Assis. A temática da descoberta do amor entre jovens adolescentes está
presente na obra de O. G. Rego de Carvalho, com destaque para Ulisses entre o Amor e a
Morte (1953). Característica de textos e capítulos curtos estará presente em muitos outros
livros de Machado de Assis, como Quincas Borba (1891) e Esaú e Jacó (1904). José de
Alencar, sobretudo em Cinco Minutos (1856) e Iracema (1865), também mostra um estilo
de escrita por meio de capítulos curtos.
As aproximações entre os livros dos dois autores, Saroyan e O. G. Rego de
Carvalho, vão além da forma, do número de páginas e de capítulos. Alguns capítulos, ao
menos os seus títulos, parecem mesmo ser a maneira pela qual O. G. Rego de Carvalho
encontrou de demonstrar sua habilidade de leitura e o reconhecimento do quão Saroyan foi
importante na construção de sua identidade como autor. Entre os 39 capítulos de A
Comédia Humana e os 42 de Ulisses entre o Amor e a Morte, há capítulos cujos títulos
indicam, indiretamente, esse diálogo mantido. O mais marcante desse “encontro” entre os
dois, talvez esteja no primeiro capítulo de cada um: Saroyan abre seu livro com o capítulo
intitulado de Ulisses e O. G. Rego de Carvalho abre a primeira parte do livro (que já tem
Ulisses no título) com “Gravo seu nome, Ulisses”. A ênfase no nome do personagem
principal dá indicativos dessa intertextualidade.
São livros que têm a “excentricidade” como uma de suas mais marcantes propostas
narrativas. Essa esfera do universo “excêntrico”, dos problemas e de distúrbios mentais
também é algo que interliga as escritas de O. G. Rego de Carvalho com os livros que ele
leu. Mais uma vez os aspectos da condição humana, em seu sentido da degradação e da
inconstância psicológica e emocional, são elos que conectam o escritor aos escritores
estrangeiros. São escritas que dialogam, mesmo sendo de espacialidades e temporalidades
diferentes. Isso denota, em certa medida, que um livro não se configura somente pela
forma, mas no amálgama dinâmico com os seus conteúdos e narrativas de teor geralmente
chamado de “universais”.
287
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 3. ed. São Paulo: FTD, 1994. (Coleção grandes leituras), p. 193.
144
288
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.
97.
145
título de ‘meu herói’, de sobra sei que o homem não tem em si nada de grande” 289. Mesmo
diante da certeza de críticas descorteses, como ele previa, o escritor russo não retrocedia na
defesa de seu personagem, dizendo: “De uma coisa, entretanto, não duvido: o meu Alexei é
um sujeito incomum, extravagante até”290. Para Dostoiévski, isso era ao mesmo tempo a
glória e o fracasso de seu personagem, pois “a esquisitice e a extravagância são coisas
perigosas que põem óbices à reunião de casos especiais e à descoberta de um sentido geral
no caos coletivo”291. O interessante no prólogo de Dostoiévski, dentre outros aspectos, é
que ele chama a atenção para o fato de que não são os críticos russos que põem em cheque
o valor de seu livro e de seu personagem, Alexei, mas os demais leitores.
Dessa maneira, o que parece ser convencional para a coletividade, talvez seja o
caos de uma “ordem” que não admite comportamentos desordenados dos sujeitos.
Dostoiévski destaca isso em seu prólogo como uma forma de salientar as peculiaridades
não só de Alexei, mas de todos que estavam envolvidos na vida do personagem. Por tal
razão, práticas vistas como “fora da ordem” são os pontos de enervação do livro, dando
destaque para temáticas como juventude, solidão, paixões, distúrbios, adultério, morte,
solidão e religiosidade. De maneira similar, temáticas próximas a essas são marcantes na
obra de O. G. Rego de Carvalho.
No tocante aos distúrbios psicológicos e mentais, em Os Irmãos Karamazóvi há o
caso de Lizaveta Smerdiachtchaia, que era “uma rapariga baixinha...sua cara de vinte anos,
sadia, larga e corada, era completamente idiota; e o olhar fixo e pesado era entretanto
humilde”292. Em suas descrições sobre Lizaveta, Dostoiévski diz que ela vivia a andar
descalça e somente com uma velha camisola pelas ruas. Assim como nas obras de O. G.
Rego de Carvalho, que não utiliza o termo “loucura” diretamente para falar dos problemas
de seus personagens, Dostoiévski utiliza outras palavras para dizer que seus personagens
não se encontram em estado mental são. Para falar de Lizaveta, ele diz que ela “passava o
tempo todo a correr a cidade – idiota, ‘inocente’”293. Uma cena relativamente comum em
fins do século XIX, antes dos discursos médicos e modernizadores imprimirem a noção de
limpeza social.
De maneira similar, O. G. Rego de Carvalho prefere a sutileza narrativa para
sugerir a loucura de seus personagens. Em Ulisses entre o Amor e a Morte (1953), há
289
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazovi. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 370.
290
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Op. cit, p. 370.
291
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Op. cit, p. 370.
292
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Op. cit, p. 478.
293
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Op. cit, p. 479.
146
vários momentos nos quais isso acontece, como no momento em que Ulisses, o
personagem central, começa a ver seu pai, mesmo depois de sua morte. O capítulo desse
trecho do livro é intitulado de As aparições de meu pai e nessa parte do livro, o
personagem fala dos inúmeros encontros com seu pai após o almoço. As alucinações de
Ulisses podem se inserir naquilo que Michel de Certeau chama de “O morto assombra o
vivo”294, fazendo referência às relações entre o passado e o presente, bem como os ditames
da memória. O presente está sendo sempre atormentado pelo passado ao qual pretende
compreender. Ulisses se utilizava da memória em relação a seu pai para, a partir do
presente, projetar o passado de tal forma que tal passado estivesse “vivo” no presente, por
meio das aparições. Em seus delírios, após a morte do pai, ele dizia: “Durante várias
semanas, ainda fui esperar o velho. Após o almoço, tomava a sobremesa ia até a esquina
para recebê-lo”295. E, para confundir imaginação e realidade, Ulisses ouvia seu pai dizer:
“Vamos, filhinho”296. Enquanto ele se refugiava nessas lembranças, Ulisses se fechava em
um mundo diferente.
Em um dado dia, a empregada da casa começa uma limpeza no quarto do pai de
Ulisses e ele se revolta com aquilo, mandando a empregada sair. Naquele instante, ela diz a
ele que seu pai estava morto. Ele começa a chorar e chama por sua mãe, que confirma a
morte do pai. A empregada então diz: “Esse menino anda um bocado esquisito, dona:
ultimamente deu para falar sozinho e...”297.
Personagem central do livro Rio Subterrâneo (1967), Lucínio, em seus momentos
de extrema agitação, buscava a solidão à beira do rio Paranaíba, lugar que o confortava e o
atormentava ao mesmo tempo. Nas proximidades do rio ficava a quinta onde morava com
a família. Uma quinta que “aparenta um bosque sombrio e úmido, onde não murmurava o
vento. Pássaros não gorjeiam; nem se ouvem os ruídos inextrincáveis que perambulam nas
florestas. Tudo é silente e frio”298. Certa feita, sua tia Dulce vai à sua procura, meio
receosa, pois sempre achou o comportamento do sobrinho um tanto esquisito e assustador.
Ela, então,
294
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.
71.
295
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953, p. 14.
296
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 14.
297
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 15.
298
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 14.
147
O que parecia “loucura” para a tia de Lucínio, talvez fosse somente a expressão da
curiosidade típica da juventude. Contudo, na narrativa de O. G. Rego de Carvalho, a
sutileza da palavra “acariciava” é que remete a um possível distúrbio no comportamento do
garoto. Além disso, essa cena descrita, mais que a sugestão de problemas mentais de
Lucínio, remete ao diálogo que o escritor mantém com os autores com que havia tido
contato entre as décadas de 1940 e 1960. O trecho no qual fala que Lucínio acariciava a
pele do rato morto é semelhante à cena de um outro personagem de um outro livro. Trata-
se do livro Of Mice and Men (De Ratos e Homens), do escritor norte-americano, John
Steinbeck, que O. G. Rego de Carvalho também leu, na época dos encontros do Grupo
Meridiano. Nesse livro, John Steinbeck narra a história de dois migrantes trabalhadores,
George e Lennie, à procura de emprego, em pleno período de recessão gerado pela crise da
quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, período que ficou conhecido com Grande
Depressão. No livro, o escritor norte-americano descreve Lennie como um homem alto e
robusto, com uma força física marcante, mas que é stupid (estúpido no sentido de ser
abobalhado). Em um dado momento do livro, quando os dois estão se dirigindo para uma
fazenda, com a promessa de emprego, George percebe que Lennie esconde algo nas mãos.
Então ele pede para Lennie mostrar o que há e Lennie mostra, dizendo: “It’s only mouse,
George. Don’t worry, it’s dead. I found it dead”300. Somente ao longo do livro é que John
Steinbeck deixa transparecer que Lennie mata os animais, como o rato, por não controlar
seus sentimentos e suas ações.
Tanto em Of Mice and Men, quanto em Rio Subterrâneo, os dois escritores utilizam
a figura do rato morto, provavelmente, como uma metáfora para pensarem as condições
humanas, em seu sentido mais amplo das estruturas psicológicas. Lennie encontrava-se
isolado, em meio a uma realidade cuja força física era a única coisa que interessava
naquele momento de pouco emprego e muita mão de obra. Lucínio vivia isolado,
299
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 14.
300
STEINBECK, John. Of Mice and Men. Oxford: The British National Corpus, 1937, p. 11-12.
148
atormentado pela “doença” do pai e pelo fato de sua mãe nunca dizer, diretamente, o que
acometia seu pai. Para ambos personagens, o contato com os animais era, em certa medida,
o seu momento de maior humanização, cuja fragilidade era demonstrada tanto nos homens
como nos amimais. Os dois escritores, de forma semelhante, colocam em suspensão as
concepções tradicionais de racionalidade para o convívio social. O. G. Rego de Carvalho
toma essa metáfora do rato como mais um elemento que possa compor o seu estilo
temático e narrativo, ou seja, criar a sua identidade como autor.
Em outra situação da narrativa de O. G. Rego de Carvalho, os devaneios dos
personagens são apresentados com a companhia do medo, como está expresso no capítulo
Medo, no qual Ulisses e seu irmão mais novo, José, conversam. Em dado momento, José
pergunta: “Jamais observou – insistiu – que alguém às vezes o chama, sem que pressinta de
onde parte a voz?”301. Isso ocorre antes mesmo da morte do pai dos dois rapazes,
demonstrando que as “alucinações” não ocorriam somente após morte. A esquisitice
tornou-se sinônimo para os transtornos que Ulisses manifestava a partir da perda do pai.
Esquisitice que também povoa o universo narrativo das obras de Dostoiévski.
A personagem de O. G. Rego de Carvalho que mais se assemelha com as descrições
feitas por Dostoiévski sobre Lizaveta talvez seja Joana, avó de Helena. As duas últimas
descritas em Rio Subterrâneo. Nesse livro, Lucínio, personagem central, também se
encontra envolto com os problemas dos distúrbios mentais e psicológicos. Joana é vista por
Lucínio, em suas lembranças, como uma figura enigmática e, ao mesmo tempo, atraente,
pois a solidão e o silêncio nos quais ela se encontra são desejados por ele. Lucínio “ainda
não era nascido, quando a pobre enloucou”302. Ao observá-la, Lucínio “sentia-se invejoso
dela; queria a sua solidão, a sua quietude, a palavra deserta de seus lábios sem viço” 303. Ela
vivia em uma cela, que é uma espécie de quarto reservado aos loucos, típico das casas e
casarões antigos de Oeiras, no Piauí. Os contatos que Lucínio manteve com Joana sempre
foram visuais, de observação. Ele ficava horas a fitá-la balançando em sua rede ou
escavando buracos nas paredes com uma colher. Ela agia como se Lucínio não estivesse
ali, mas destinava, em certos dias, bom tempo a fixar seu olhar em Lucínio. Por isso,
Lucínio se questionava: “Seria Joana, porém, imune ao medo?”304. Para Lucínio, não ter
301
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953, p. 09.
302
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 20.
303
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 25.
304
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 26.
149
medo das pessoas e de suas normatizações seria, dessa forma, não o símbolo da perda da
razão ou da sensatez, mas a expressão de força.
Contudo, tal silêncio e a falta de expressão de fala parecem indicar as ações de uma
sociedade na qual “tudo o que há de estranho no homem seria sufocado e reduzido ao
silêncio”305, como uma forma de afastar os “doentes” da parte considerada sã da
população. Joana vivia enclausurada em sua cela, sem ou quase nenhum contato com as
demais pessoas. Ela tornou o silêncio sua forma de resistir? Para os parentes que a
colocavam em isolamento, ela estaria sendo cuidada de tal forma que a “cura” poderia ser
alcançada. O internamento, desde os fins do século XVIII, como ressalta Michel Foucault,
configurou-se como essa possibilidade e O. G. Rego de Carvalho, por meio da escrita
literária, constrói um quadro que permite a visualização de certos aspectos dessa relação
social com os distúrbios ou descontroles.
Em larga medida, Foucault não pretende fazer uma história do louco, como um
objeto pronto de análise, ele intenta, sim, compreender os condicionantes que constituíram
as práticas e os discursos sobre a loucura, bem como as diretrizes para o pensar
psicológico. E é nesse âmbito psicológico que se insere parte da trama narrativa dos livros
de O. G. Rego de Carvalho. O diálogo possível entre os livros do literato e os livros do
escritor russo, sobretudo no que tange à loucura, dá-se em função de que “loucura e todos
os seus poderes que as idades multiplicam não residem no homem em si mesmo, mas em
seu meio”306. Por isso, pensar a loucura apresentada na narrativa dos dois autores aqui
friccionados é lançar-se na compreensão das inúmeras relações socioculturais que os seus
meios engendraram.
É claro que dar ênfase à loucura como tema não é algo raro na literatura. Então, O.
G. Rego de Carvalho não estaria “inaugurando” um romance sobre a loucura. Talvez
estivesse, no campo da literatura produzida no Piauí, colocando isso mais em voga. Mas o
tema não é uma raridade, pois outros escritores, no Brasil, já haviam tocado nessa temática.
Machado de Assis figura entre esses escritores, com o seu livro O alienista (1881), que é a
primeira obra literária a falar do hospício e, de certa maneira, questionar a psiquiatria. Mas
não é o primeiro a se lançar nesse tema. Álvares de Azevedo, em Noite na taverna (1855),
assim como Bernardo Guimarães, em O Seminarista (1872), também dedicaram parte de
suas tramas a esse assunto. Lima Barreto, em o Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e
Cemitério dos Vivos (1919-1920) aborda a loucura, especialmente no último livro, em tom
305
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 428.
306
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 411.
150
307
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 27.
151
A admiração e a inveja que Lucínio antes sentia pelo silêncio e pela solidão de
Joana transformaram-se em medo, em angústia, pois, em sua racionalidade jovial, nenhum
ser humano ficaria inerte ao contato pegajoso de uma lagarta-de-fogo. Para ele, não se
tratava mais de uma mulher doente, pois, para ele, ela era um demônio. Lucínio parece
apresentar um olhar que Michel Foucault308 denominou de “internamento clássico”, no
qual os sujeitos observavam o louco como sendo o “espetáculo de sua animalidade”.
Essa mudança de olhar de Lucínio sobre a loucura de Joana, bem como as visões de
Ulisses e de seu irmão, José, denotam, em certo sentido e em certa medida, o confronto
entre duas concepções de loucura destacadas por Michel Foucault. Para Foucault, a loucura
não pode ser associada somente a uma dimensão mística e aos mistérios do mundo, mas,
também, às incertezas, fraquezas, ilusões e sonhos do próprio homem. Não se trata, a partir
disso, de pensar a loucura no que diz respeito à verdade estabelecida do mundo, mas da
verdade que o homem distingue de si próprio. Os personagens de O. G. Rego de Carvalho
endossam a noção de que “na loucura, o homem é separado de sua verdade e exilado na
presença imediata de um ambiente em que mesmo se perde”309, como é o caso de Lucínio,
em Rio Subterrâneo (1967), que, inicialmente, cria o ambiente da cela de Joana como um
lugar de identificação, mas depois se perde nesse mesmo ambiente, onde sua verdade e seu
conforto se dissipam na medida em que as suas expectativas da reação do outro, no caso as
reações de Joana, não confirmam seus anseios.
A loucura também está presente em Somos Todos Inocentes (1971), mas agora
envolta nas intrigas e nas relações de poder entre as famílias mais poderosas no livro: os
Ribeiro e os Barbosa. No entanto, diferente dos outros dois livros, O. G. Rego de Carvalho
é mais sutil em seu último livro, pois, em quase todo o texto, ele somente insinua a loucura
de Celina, que enlouquecera com a morte de seu noivo, Luizinho. Somente no final, Raul,
ao conversar com sua noiva, relembra enfaticamente: “Em nossa família, poucos são
equilibrados. Tia Celina morreu doida, não se recorda?”310. A loucura, dessa maneira, era
vista, em certa medida, como algo relativamente comum entre as famílias oeirenses, quase
uma regra, como destaca o personagem Raul. Para a personagem D. Odete, Oeiras era uma
“sociedade provinciana, orgulhosa de suas tradições, de suas ruínas, de seus sobrados, e até
308
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997.
309
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 415.
310
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 232.
152
de seus doidos”311. A loucura tornou-se como que uma marca registrada, uma identidade
daquela cidade.
Ao trazer os distúrbios psicológicos e/ou mentais para o corpus temático de sua
narrativa, O. G. Rego de Carvalho faz despertar as relações sociais da população piauiense
com os seus alienados. Basta lembrar que instituições como a Santa Casa de Misericórdia e
o Asilo de Alienados atuaram em fins do século XIX e durante a primeira metade do
século XX, de forma deficiente, sofrendo inúmeras limitações de ordens econômicas,
profissionais e de gestão. Ao mencionar o enclausuramento de Joana na cela de sua casa
em Oeiras, O. G. Rego de Carvalho dá indícios de uma prática comum entre algumas
famílias abastadas da antiga capital do Piauí, mas, também, aponta para a falta de
estabelecimentos próprios para o tratamento de pessoas com problemas mentais312. O Asilo
de Alienados Areolino de Abreu foi fundado em uma época, início do século XX, em que
as doenças e distúrbios mentais eram um problema não percebido pelas autoridades.
Ademais, “não parecia esse ser um grande problema de saúde pública naqueles tempos”313.
Se não era uma necessidade primeira de saúde pública, por que, então, Areolino de Abreu,
como médico e político, quis fundar tal Asilo? Isso se deu por explicações ligadas à
modernização dos espaços e das práticas sociais, visto que “a preocupação do douto com
os alienados, concentrava-se, de fato, na ambição de transformar Teresina numa cidade
civilizada”314. Em razão disso, era comum a situação de “doentes acorrentados a troncos no
Piauí, quase na metade do século XX”315. Isso fazia com que muitas famílias preferissem
cuidar de seus loucos em casa, como a situação descrita nos livros de O. G. Rego de
Carvalho, em que os loucos ficavam confinados em quartos reservados das casas e
sobrados.
Em Teresina, por exemplo, somente no ano de 1954 é que seria inaugurado um
espaço com relativas características destinadas ao atendimento de pessoas com distúrbios
311
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 167.
312
Os estabelecimentos para tratamento de saúde mental no Piauí têm uma história lacunar. No Piauí, o
primeiro espaço para tratar os doentes mentais foi criado em 1803, na cidade de Oeiras, à época, capital da
Capitania do Piauí. Com a transferência da capital para Teresina, em 1852, o serviço em Oeiras deixou de
atender como hospital, para servir somente como leitos de enfermaria. Em 1867, então, já em Teresina, é
oficialmente inaugurada a Santa Casa de Misericórdia, que, no entanto, atendia não somente a doentes
mentais, mas pobres e desvalidos. No ano de 1907 foi inaugurado primeiro espaço especializado, o Asilo de
Alienados, sendo batizado de Asilo de Alienados Areolino de Abreu, em homenagem ao vice-governador da
época.
313
OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol do Equador. Teresina: Oficina
da Palavra, 2011, p. 27. Livro escrito com pesquisa em documentos, mas com a proposta de ser um romance.
314
OLIVEIRA, Edmar. Op. cit, p. 27.
315
OLIVEIRA, Edmar. Op. cit, p. 37.
153
psicológicos e mentais, sendo visto pela imprensa local como “Um fato de magna
significação para a história piauiense”316. Trata-se do Sanatório Meduna317, que teria a
missão de atender não somente a população piauiense, mas de todo o Nordeste. É a essa
realidade de descaso em relação aos problemas e distúrbios mentais, que faz parte,
inclusive, a própria história pessoal de O. G. Rego de Carvalho. Seus livros falam, de certa
maneira, das expectativas de pessoas saídas de cidades interioranas do Piauí e que
ansiavam por vidas melhores na capital, visto que as condições de tratamento médico,
inclusive de saúde mental, eram deficientes.
Esses pontos relativamente em comum entre os textos de O. G. Rego de Carvalho e
os demais autores denotam a variedade e a pluralidade de um livro, bem como ampliam o
estatuto de autor e autoria, e as dimensões da “angústia de influência” que o cerca e a seus
críticos. Mais que isso, tais pontos revelam e reforçam a noção de que nenhum livro é uma
inteireza por si e em si mesmo, pois mantém diálogo com outros livros, com outros autores
e outras realidades. Trata-se, dessa maneira, de uma condição de intertextualidade. A
própria ideia de autoria se alarga na medida em que se nota traços de vários autores na
narrativa de um outro escritor. Isso ainda desperta a perspectiva de que temporalidades
diferentes se entrecruzam, pois, no caso de O. G. Rego de Carvalho, textos de até outro
século e de outras décadas foram (re) visitados e (re) criados. Além disso, destinar esforços
para o vislumbre dos enlaces da narrativa de O. G. Rego de Carvalho com a de outros
escritores é sinalizar para um dos pontos de relativo “desconforto” da escrita do literato em
meio a um campo de disputas, que conduzia a escrita “literária piauiense” em modelos
tidos como regionalistas.
316
Sanatório Meduna. Jornal O Dia. Teresina. 04 abr. 1954, p. 06.
317
Em 1943, Clidenor de Freitas Santos, médico psiquiatra, insatisfeito com as condições de atendimento do
Areolino de Abreu, compra um terreno, com recursos próprios. Somente em 1954 o sanatório é inaugurado,
em 21de abril. Na ocasião, o folclorista Câmara Cascudo esteve presente. O nome do sanatório é em
homenagem ao psiquiatra húngaro, Ladislas J. Von Meduna, a quem Clidenor de Freitas Santos admirava
muito.
318
Discurso do personagem Dr. João Mendes, na ocasião do velório de José, pai de Dulce. Reproduzido de:
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano, 1985,
p. 35.
154
319
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamzóvi. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 375.
320
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Op. cit, p. 375.
321
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.
322
MARX, Karl. Op. cit, p. 26.
155
Karl Marx não intenta buscar vilões ou culpar a sociedade, mas sim, destacar que o
indivíduo não pode ser visto como um louco, insano ou irresponsável, sem que a sociedade
pense qual o seu papel no trato com tal indivíduo. Como ele mesmo afirma, é preciso
conhecer quais as angústias, as demandas, as expectativas e os sonhos do Homem para que
se possa saber como esse homem se torna feliz ou triste a tal ponto de abrir mão do bem
vital.
Dessa forma, “a classificação das diferentes causas do suicídio deveria ser a
classificação dos próprios defeitos de nossa sociedade”323. A senhorita descrita por
Doistoiévski era de família rica, boa aparência e em um relacionamento amoroso estável.
Seu suicídio remete, também, para as dimensões do real e da realidade, no sentido que a
realidade seria aquilo que é dado a ver, mas que não expressa a essência, isto é, o real. É
nos caminhos turvos e tortuosos entre esse real e a realidade que o suicídio vai se
fortalecendo na subjetivação que o indivíduo faz do mundo e das coisas. Como já havia
postulado o sociólogo francês, Émile Durkheim, o suicídio não se explica unicamente
pelos critérios individuais ou psicológicos, mas na interação desses com o meio social324. É
válido ressaltar que, ao mencionar o meio social como índice para pensar o indivíduo, não
se pode minimizar o indivíduo em relação ao social, como se o indivíduo não filtrasse, não
criasse suas táticas em meio a um repertório de realidade.
Em Rio Subterrâneo (1967), o suicídio é apresentado de maneira inesperada, como
um arroubo da juventude. Em si, o suicídio não é descrito na narrativa como o reflexo de
uma alma visivelmente perturbada, algo que, em geral, espera-se de alguém que comente
tal ato. Provavelmente, a intenção do literato foi desmistificar essa imagem histórica e
socialmente cristalizada de que os suicidas são pessoas com uma personalidade sombria,
vazia, mórbida. O suicida seria, de maneira estereotipada, um indivíduo que apresenta
comportamentos que denunciam ou pelo menos indicariam o suicídio. Nesse sentido, tal
ato é encarado como mais uma esfera da loucura, pois rompe com as lógicas de uma
verdade unicamente exterior.
Essa noção de que um suicida exterioriza sua vontade ou suas inclinações para tal
feito está descrita no capítulo O Rosto na Vidraça, quando Lucínio e seu amigo, Benoni,
discutem sobre a existência de Deus. Em meio a essa discussão, Lucínio diz que Cristo
nada mais é que o sol, ao passo que Benoni advertia ao amigo que um dia ele iria admitir e
professar a fé cristã. Lucínio, como um firme cético, então, disse: “Na velhice ou igual
323
MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 44.
324
DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
156
fraqueza de razão, sim”325. Relativa contradição aparece nessa postura de Lucínio, que
tenta se mostrar como uma pessoa conduzida pela razão, mas que se assusta com visões
pelas janelas e cantos da casa. Em vários momentos, pensava na existência do demônio,
que, de certa forma o fascinava, pois “Lucínio nunca vira o demônio. Porém acreditava que
deveria ser belo, olhos azuis, assim como a imagem do Coração de Jesus”. Talvez de
maneira confusa, Lucínio acreditasse mesmo em Cristo, pois era à imagem cultural e
artisticamente divulgada que ele recorria.
Em suas recordações de Oeiras, Lucínio lembra-se de quase sempre presenciar a
cadeira preguiçosa se balançando sozinha. Ele “acreditava que ninguém, a não ser Lúcifer,
àquela exibição teimosa”326. Em certa feita, Lucínio resolveu, com voz forte, chamar:
“Vem, ó meu príncipe”. Como estava um dia chuvoso, trovões e ventos fortes se agitaram.
Seu coração acelerou, mas logo percebeu que não era aquele a quem chamava, e sim a
chuva que aumentava sua potência. Nesse instante, lembrando-se de Joana, Lucínio
confessa a si mesmo: “Enlouqueço”. Lucínio, então, estava sendo acometido por lapsos de
delírios e tais delírios o inquietavam, pois não queria chegar à situação da velha Joana. As
recordações de Lucínio confundiam-se, em vários momentos não conseguia distinguir o
passado do presente. Isso se insere nos domínios da memória, nos quais tanto historiografia
quanto a psicanálise se interessam, mas com propósitos diferentes. Cada qual pensa os
espaços de memória de maneira diferente, no que tange à relação entre passado e presente,
pois “a primeira reconhece um no outro; enquanto a segunda coloca um ao lado do
outro”327, como infere Michel de Certeau. Os delírios dos personagens dos livros de O. G.
Rego de Carvalho desestruturam uma característica inerente à escrita da história: a
sucessividade, na qual um vem depois do outro.
Ainda sobre a relação entre passado e presente, os distúrbios psicológicos dos
personagens do escritor, assim como os deslizamentos da memória deles, fazem friccionar
os modelos historiográficos da “correlação (maior ou menor de grau de proximidade), do
efeito (um segue o outro) e da disjunção (um ou o outro, mas não os dois ao mesmo
tempo)”328. Na narrativa literária, esses modelos da historiografia também podem ser
observados, mas não com a obrigatoriedade que cerca a operação inerente à produção
historiográfica. O escritor toma a esfera psicológica de seus personagens para imprimir, no
325
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 90.
326
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 88.
327
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.
73.
328
CERTEAU, Michel de. Op. cit, p. 73.
157
Seu amigo jamais seria um assassino, pois não era capaz de perseguir nenhuma
formiga. Benoni era o amigo de Lucínio que nunca se enfurecia, que sabia viver na
diversão, aos namoros. Benoni, no olhar de Lucínio, era o rapaz mais velho da turma, o
329
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p.
73.
158
que fazia dele o que mais atraía admiração, por ser quase um homem feito. Estava sempre
sorridente, com suas brincadeiras e piadas. Foi com essa imagem do amigo que Lucínio foi
para a sua aula, seguindo a sua rotina. A semana passou rapidamente para Lucínio, que
estava, de fato, envolvido nos estudos. Rapidamente chegou o sábado e Lucínio quis um
pouco de descanso, indo comprar ingressos para o cine Olympia, em Teresina. Sem muitas
exigências sobre qual filme iria escolher, Lucínio foi surpreendido com alguém a tocar-lhe
o ombro, com uma notícia: “Benoni acaba de morrer, Lucínio. Suicidou-se”330.
Dali em diante, e ainda mais durante o velório, Lucínio se questionava sobre o que
havia acontecido: “Loucura? Farsa que o desgraçou? Ou simplesmente queria experimentar
a força de Deus, a sua própria existência?”.331 Nesse instante, Lucínio começa a se
questionar se o suicídio do amigo não seria a prova da existência de Deus, prova essa que
Benoni queria que Lucínio tivesse. Incluir a discussão da existência de Deus e a marca do
suicídio faz parte da tentativa de O. G. Rego de Carvalho em demonstrar que as razões não
são assim tão racionais e que aquilo que é considerado irracional não é assim tão absurdo.
Lucínio, que era quem não queria admitir a existência de Deus, não praticou nenhum ato
contra si mesmo, ao passo que Benoni, que dizia acreditar em Deus e em Cristo, não levou
em conta o que a fé cristã fala em relação ao suicídio como sendo um pecado não
perdoável. Lucínio se martiriza, pois o amigo havia dito que faria o que, de fato, fez.
Lucínio, insistente e inconscientemente,
Com essas lembranças martelando sua mente, chega ao ponto ter alucinações, sem
saber, ao certo, se estava acordado ou dormindo. Em seus delírios, imagina que troca de
lugar com Benoni, na hora de seu velório, e isso o inquieta, pois, ninguém percebe que é
ele quem está no leito de morte. Pior que isso, nessa troca fúnebre, Benoni diz não querer
mais voltar e ameaça afirmando que Lucínio vai observar todo o ritual do enterro, até não
ver mais nada, com as pás de terra a serem lançadas sobre o caixão. Lucínio então acorda,
330
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 92.
331
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 103.
332
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 106.
159
atordoado de tão terrível sonho, em seu sentido de culpa, de impotência por não ter
impedido o amigo. Lucínio continuava atordoado, sem assimilar bem a morte do amigo,
pois ainda achava que fosse uma brincadeira, típica dos arroubos da juventude.
O. G. Rego de Carvalho menciona o suicídio também em Ulisses entre o Amor e a
Morte. O médico que fora cuidar de uma febre que sentira Ulisses, confidenciou a seu
paciente que na adolescência tentara isso: “Recordo que tentei o suicídio, atirando-me de
um sobrado, apenas para constranger uma velha tia. Não imagina o quanto me arrependo,
meu rapaz”333. Ao destacar essa revelação do médico, O. G. Rego de Carvalho aponta para
a pluralidade de “razões” que podem influir na decisão de alguém para o suicídio.
A surpresa que, em geral, cerca o suicídio está associada a uma dimensão
indissociável da morte com a sua relação com o tempo, sobretudo na cultura ocidental. A
morte, pelo menos no sentido físico da matéria, é expressão da passeidade das coisas e dos
seres. É algo que se aproxima diretamente com a própria história, que tem seus limites
epistemológicos em decorrência de o passado ser aquilo que foi, passou.
A história, por sua vez, toma uma série de vestígios como elementos elucidadores à
construção de sua narrativa. No suicídio, na morte propriamente dita, os vestígios são de
cunho muito mais especulativos, sociológicos e até mesmo filosóficos. O corpo do suicida
parece negar a história aparente da pessoa enquanto ela estava viva. A morte, então,
mostra-se como mais um ponto do mosaico da história do indivíduo. O suicídio também
tem o poder relativamente funesto de despertar, naqueles que conheciam o suicida, o
desejo de, agora, entendê-lo. A morte faz, dessa maneira, com que a pessoa saia de um
certo anonimato para se tornar foco principal, para, contraditoriamente, tomar vida a partir
das imagens que seus contemporâneos fazem dela.
Enveredar pelos meandros da dimensão psicológica e intimista, presente em toda a
produção de O. G. Rego de Carvalho é, em boa medida, pensar as relações existentes entre
a própria psicanálise e a história, entre a individualidade do escritor e o exterior que o
cerca e rodeia sua escrita. Relação não muito fácil de abordar, pois remete às discussões
voltadas para a objetividade, realidade, verdade e narrativa.
Com esse mesmo caráter “universal”, é possível perceber a morte como um dos
temas que dão propulsão à narrativa de A Comédia Humana, de William Saroyan. Isso é
evidenciado no capítulo Morte, não vá à Ítaca!. Nesse capítulo, Homero tem um sonho
torturante no qual ele está voando em sua bicicleta, com sua farda de estafeta, mas há um
333
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953, p. 38.
160
outro estafeta, parecido com ele, também a voar. Entretanto, Homero percebe que o seu
adversário se trata de um “mensageiro da morte” e que se dirige à Ítaca, onde moram
Homero e sua família. O que martiriza mais Homero no sonho é que o estafeta é
extremamente parecido com ele, o que o faz pensar que ele, de certa forma, também é um
mensageiro da morte, pois ele entrega telegramas a muitas famílias, noticiando a morte de
seus maridos e filhos.
O medo da morte, que também aparece nos livros de O. G. Rego de Carvalho, é
assunto que governa um diálogo entre Marcus, irmão de Homero e um companheiro seu,
Tobey, quando estavam em um trem, indo para a Guerra. Os dois, mesmo em uma situação
que demanda muita coragem, confessam um ao outro que o medo da morte os domina.
Marcus o pergunta: “Você se importa muito de morrer?”334, o que fez Tobey silenciar um
pouco, para só então responder: “Naturalmente. Eu poderia tapear, talvez, e fingir que não
me importo. Naturalmente que me importo”335. Em meio a essa certeza do receio com a
morte, é que os dois amigos soldados fazem planos, pensando em suas vidas após a guerra.
A intenção dos dois é sair ilesos, mas sabem que a morte é a sombra que ronda toda e
qualquer guerra.
O enredo do livro, de fato, dá-se “entre o amor e a morte”, pois, ao receber, ler e
entregar os telegramas e postais, Homero vê as mensagens de amor e os comunicados das
mortes de muitos homens na guerra. Por esse diapasão, mais uma vez há um indício das
aproximações entre Saroyan e O. G. Rego de Carvalho, que utiliza “entre o amor e a
morte” como expressão icônica do título de seu primeiro livro. O escritor a retoma essa
tônica da dicotomia amor e morte em Rio Subterrâneo (1967), quando o personagem
Lucínio está envolto em um misto de sentimentos: sua paixão por Afonsina e sua tristeza
com o suicídio do amigo, Benoni. Naquele instante, os dois assumem o seguinte
significado: “Afonsina: amor; Benoni: morte”336. Sentimentos que ora libertam, ora
aprisionam o imaginário dos personagens do literato.
Em Saroyan, a morte é tema fundamental. Em seu livro, pois, no mundo de guerra,
a morte está cercada de medos e expectativas, pois “todos morrem procurando a graça, a
imortalidade, procurando a verdade e a justiça” disse Mr. Grogan, que trabalhava com
Homero no telégrafo. Continuando seu raciocínio, ele complementa: “[...] e, um dia, esse
grande corpo do homem, que somos todos nós, sem qualquer exceção, conseguirá o que
334
SAROYAN, William. A Comédia Humana. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 220.
335
SAROYAN, William. Op. cit, p. 220.
336
CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 110.
161
quer, terá a graça, será imortal, e este maravilhoso mundo mau será um lugar de decência e
bondade entre os homens”. Saroyan se referia ao mundo em guerra, não só a guerra física,
mas aquela que se dá no universo do respeito ao homem em todas às suas instâncias. O. G.
Rego de Carvalho refere-se à morte como uma guerra introspectiva e moral dos homens.
A perda de um ente ou de um amigo alimenta a criação narrativa de O. G. Rego de
Carvalho. Isso fica evidente pelo próprio título do livro que o lança no mundo literário
como autor, Ulisses entre o Amor e a Morte. A morte do pai de Ulisses é apresentada de
forma tão natural, quase poética, que, em primeiro momento, causa espanto no leitor.
Entretanto, a intencionalidade, talvez, do escritor, seja a de demonstrar que a morte não
precisa ser revestida de uma violência para além do que de fato é. A morte não precisa ser
causada pela falta de comida, pelos castigos da seca ou algo semelhante. Isso é notório no
capítulo no qual o pai de Ulisses falece: “Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se
deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo”337. Esse
é todo o texto do capítulo, não havendo mais nada além do título do capítulo que é Quente
era a manhã, em julho. Encarar o tempo é a forma como o escritor tem, consciente ou
inconscientemente, de manifestar sua concepção de tempo, em que a morte se qualifica
como o instante do não-tempo, no qual a linearidade se dissipa em função de uma
existência que se divide entre a materialidade do corpo e a imaterialidade da memória. A
descrição da morte do pai de Ulisses se assemelha ao ato de se deixar levar por um sono
profundo, talvez algo que Sócrates já pensava, pois “se não há nenhuma sensação, se é
como um sono em que o adormecido nada vê e nem sonha, que maravilhosa vantagem
seria a morte”338. A morte, na escrita do literato, é trazida à tona para ser pensada como
algo inerente à condição humana, e não como um mal causado somente pela seca e pela
fome. Como sugere o título de Somos Todos Inocentes, bem como o trecho do discurso do
personagem Dr. João Mendes, a morte torna a todos inocentes, pois chega a todos
indistintamente.
Como o escritor já havia colocado o termo “morte” no título do livro, o capítulo
referido, em momento algum, repete a utilização de tal palavra, como uma forma de
suavizar a própria narrativa. Isso remete às maneiras de imaginar a morte, especialmente
entre os séculos XV e XVI, quando “a morte no leito [...] é um rito apaziguante, que
337
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1953, p. 13.
338
PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: Sócrates. Seleção de Textos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.
26.
162
339
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 55.
340
SILVA, Maria Celestina Mendes da. A representação da seca na narrativa piauiense: séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Caetés, 2005, p. 67.
163
juntos: “fugiram uma semana depois, a cavalo. Mas antes que chegassem à fazenda, Luís
foi baleado, vindo a falecer, entre as lágrimas da noiva”341. Esse episódio viera a acontecer
logo após a morte de Raimundo Barbosa, depois de ter perdido as eleições para o candidato
apoiado por Joaquim Ribeiro. José e Luís eram os dois filhos do intendente, sendo que José
ficou responsável pelos assuntos e negócios das posses do pai. Luís era um boêmio, que
gostava de festas e diversão. Contudo, José ficou profundamente magoado com a morte de
seu irmão, alimentando um ódio incondicional aos Ribeiro. Esse ódio vai ser o entrave para
a aproximação entre Dulce, sua filha e Raul, da família dos Barbosa.
A figura do Joaquim Ribeiro, na obra de O. G. Rego de Carvalho, faz uma espécie
de denúncia do poder que os coronéis - pois Joaquim Ribeiro assume o papel na obra de
coronel - possuíam durante o período conhecido como República Velha. No livro Somos
Todos Inocentes, o “Velho”, como era chamado o capitão Joaquim Ribeiro, consegue
vencer o seu rival, Raimundo Barbosa, que tentava se reeleger. Isso remete ao poder que os
coronéis tinham de manipular os votos das eleições, visto que o sistema eleitoral da época
era frágil, sobretudo pelo fato de o voto ser aberto e os coronéis enviarem seus capangas
para o local de votação para intimidar os eleitores.
Mesmo passados alguns anos da morte do pai e de seu irmão, Luís, José continuava
a alimentar ódio pelos Ribeiro. Encontrava-se entristecido e doentio com os momentos
ruins dos negócios que herdara do pai e, em certo dia, voltando para a cidade, montado em
sua égua, enfrenta, com sofreguidão, a travessia do riacho. A morte, assim, está inscrita na
perspectiva de que o tempo não é finito, como em um sentido cronológico, pois a
lembrança é a luta contra o esquecimento, ou ainda, o esquecimento é a condição
necessária para que a lembrança se mantenha. Ao chegar à cidade já à noite, ouve a batida
e a música no Sobrado, onde Dulce já estava para uma festa de recepção dos familiares de
Raul. A égua de José não aguentando a longa viagem e os vários esporões de seu dono, cai
perto do Sobrado e morre. José, meio delirante, vai até sua casa, com a dúvida se Dulce
estaria em casa ou no baile. Sua esposa, D. Odete, o recebe e percebe que não está bem, e
quando Dulce chega e imediatamente ela pede para a filha chamar o médico. O boticário,
ao analisar diz: “Infelizmente nada posso fazer – disse virando o rosto. Desculpem”342. A
morte mais uma vez cerca a família. Após a morte do pai, Dulce descobre a índole de Raul,
que engravidara Pedrina, filha do sacristão. No entanto, Raul afirma que não se casará com
341
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 13.
342
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. Op. cit, p. 32.
164
Pedrina e que ela deve realizar um aborto. No desespero, Pedrina procura a ajuda de Dulce,
para que ela convença Raul a se casar com ela, mas Dulce então diz: “Ele pertence a uma
família com outros costumes...”343. Essa fala de Dulce indica como as relações conjugais,
na cidade de Oeiras do início do século XX, eram ainda determinadas por interesses
familiares, que disputavam o poder na localidade.
As ações dos indivíduos eram condicionadas por suas origens familiares,
econômicas e políticas. Isso é endossado quando Raul e Ananias estão conversando sobre a
gravidez indesejada de Pedrina. Raul fala que está comprometido em noivado com Maria
do Amparo, dizendo que “[...] não fosse isso eu me casava com ela. Uma morena e
tanto!”344. Admirado com essa afirmação do neto do padrinho, Ananias indaga: “E seu
Raul teria coragem? Muito pobre, segundo ouvi dizer. Não é pro senhor”345. Ananias sabia
que o principal critério para haver casamento na família dos Ribeiro era ser de família
influente politicamente e com posses. Até nesse sentido, O. G. Rego de Carvalho tocou em
uma outra instância da vida e da morte: o aborto, que, inclusive, intitula um capítulo do
livro. Tanto Raul, quanto sua mãe mencionavam-no como a única saída para preservar o
nome da família, pois, como falava a mãe de Raul, “É preciso cuidar logo do aborto, antes
que dê muito na vista”. A maneira como os dois se referiam ao aborto remete à prática
cultural da região e da época, em que pensar uma vida sendo ainda gestada não afligia
tanto quanto os interesses familiares. De fato, nem se pensava no aborto como um ato de
assassinato, ou tão penoso como a morte de um nascido.
Somente quando o aborto acontece, de maneira semiacidental – pois Pedrina cai,
mas ela já havia imaginado que um forte tombo talvez resolvesse seu problema e por isso
não o evitou – é que a grávida pensa que está cometendo um crime contra a vida, dizendo a
Dulce: “Foi uma loucura... – balbuciou a rapariga, quase no último alento. Não suportei a
vergonha. Sou uma miserável, Dulce, uma assassina!”346. Pedrina estava em um misto de
sentimentos: a vergonha, as convicções religiosas em relação ao quase suicídio e ao aborto,
que, naquele instante, ela via como um assassinato. O interessante, na maneira como ela
fala à sua amiga, é que, em momento algum ela se queixa da perda do filho, mas se
preocupa com a sua reputação, pois ela se refere sempre a ela mesma, falando de sua
343
CARVALHO, O. G. Rego de. Somos Todos Inocentes. 3. ed. Teresina: Caderno de Letras Meridiano,
1985, p. 65.
344
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 112
345
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 112.
346
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 168.
165
vergonha, por ser uma miserável, por ser uma assassina. Aquele ser que foi gestado por
acidente, por um “acidente” seria aniquilado sem nenhuma, ou quase nenhuma afeição.
Vale abrir um parêntese para a ênfase que O. G. Rego de Carvalho dá ao
“sofrimento” da égua de José, que, na narrativa do escritor, resiste durante todo o percurso
para satisfazer as necessidades de seu dono. Essa descrição do animal, que, cumprida a sua
tarefa, agoniza até a morte, faz lembrar a descrição feita por José de Alencar, no livro
Cinco Minutos. Nesse livro, de um autor que O. G. Rego de Carvalho admite ser um de
seus grandes inspiradores no rol dos literatos, há, também, o sacrifício de um cavalo, em
favor dos desejos de seu dono para realizar seu intento de deslocamento. No livro de José
de Alencar, o personagem é movido pela paixão que sente, em busca de sua amada. No
livro de O. G. Rego de Carvalho, o personagem José é conduzido pelo ódio que sente pela
família que teria desgraçado a sua. Enquanto em um livro o principal motivo é o amor e a
vida, no livro do escritor piauiense, os impulsos se dão pela morte e pelo ódio.
Tal livro, mesmo não tendo a pretensão de ser um “romance histórico”, pontua uma
série de elementos que são expressões da realidade política, social e econômica daquela
época no Piauí, sobretudo na cidade de Oeiras. Na antiga capital do Piauí, que, no período
da narrativa, ainda parecia sofrer com a transferência, os costumes patriarcais e
paternalistas eram marcantes, sobremaneira as práticas coronelistas. Ao expressar essas
características da política, da economia, da seca que afligira em 1915 a cidade e o nordeste;
ao mencionar práticas que seriam “típicas” do cotidiano da região nordeste, não estaria O.
G. Rego de Carvalho escrevendo um texto nos contornos regionalistas? Provavelmente
sim, mas a pretensão do escritor não era escrever já pensando em uma localização ou
classificação literária.
O seu “regionalismo”, ou melhor, o “regionalismo” que a ele a crítica certas vezes
atribui, é revestido de outros vieses que não necessariamente os acontecimentos
geográficos ou naturais, nem mesmo as implicações e gerenciamento desses, a política e a
economia. Em sua narrativa é possível perceber que não é só a natureza que impinge
sofrimento ao homem do interior do Piauí, do nordeste. São suas próprias ações, suas
escolhas que o levam à felicidade ou a infortúnios. As temáticas tidas como “universais”,
como a morte, o amor, a infância, a juventude e a loucura são as preocupações dominantes,
a sua maneira de compor seus enredos.
166
347
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república.
4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
348
DECCA, Edgar S. de.; LEMAIRE, Ria (Orgs.). Pelas margens: outros caminhos da história e da
literatura. Campinas, Porto Alegre: EDUNICAMP; EDUFRGS, 2000.
167
349
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rêgo e o Romance sócio-psicológico. Teresina, 20 de março de
1997. Semana O. G. Rêgo de Carvalho. Disponível em:
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=1968&cat=Ensaios&vinda=S>. Acesso em: 22 abr.
2011, p. 01.
350
CARVALHO, O. G. Rego de. Apud KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica.
Teresina: Zodíaco, 2007, p. 315.
351
ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
352
ROBERT, Marthe. Op. cit, p. 27.
353
MOURA, Francisco Miguel de. O. G. Rêgo e o Romance sócio-psicológico. Teresina, 20 de março de
1997. Semana O. G. Rêgo de Carvalho. Disponível em:
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=1968&cat=Ensaios&vinda=S>. Acesso em: 22 abr.
2011, p. 03.
168
cidade de Timon, no Maranhão. O real é uma essência que cada indivíduo apreende e
subjetiva, tornando visível uma ou várias realidades. Isso é demonstrado nas obras de O. G.
Rego de Carvalho, pois as cidades de Oeiras, Teresina e Timon são a realidade
literariamente percebida pelo autor. São cidades “subterrâneas” porque expressam os
sonhos, angústias e medos do autor.
A sua escrita ser carregada de subjetividade não significa falta de lucidez e
racionalidade. Os textos de O. G. Rego de Carvalho, além de contemplarem em primeiro
plano as dimensões mais universais do ser humano, retratam as configurações sociais,
espaciais, políticas e culturais de sua época e de suas memórias. Pois, como destaca Michel
de Certeau354, a escrita, assim como a produção artística, é o resultado do pensamento em
sua localização social, espacial e institucional.
Desde o primeiro livro, Ulisses entre o amor e a morte (1953), a escrita de O. G.
Rego de Carvalho tem chamado a atenção da crítica literária e de estudiosos de uma forma
geral. Os comentários tentam significar e localizar o autor em uma determinada
perspectiva literária, destacando o seu estilo ousado e inovador. Ulisses entre o amor e a
morte deixou a impressão de “uma poesia misteriosa” que estarreceu e, ao mesmo tempo,
encantou os seus pares.
Em Rio Subterrâneo (1967), há onze comentários de críticos destacando as
qualidades do livro e do autor. Na contracapa do livro encontra-se o depoimento de Carlos
Drummond de Andrade afirmando que: “De Rio Subterrâneo tirei forte sensação de obra
calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo; e trabalhada com aguda
consciência artística. É desses livros que a gente não esquece”. A afirmação de Drummond
é importante, principalmente quando fala de “consciência artística”, pois demonstra que a
obra não é tão somente uma projeção de experiências pessoais do autor, mas elaborada
com propósitos estilísticos bem definidos. Nesse sentido, pensar as relações entre os livros
do literato e as ilustrações que adornam as capas de diferentes edições, é compreender que
há, em certa medida, lutas de representação. Segundo Pierre Bourdieu355, é por meio de tais
lutas de representação que são definidos os “poderes de consagração estética”, tanto do
escritor como do ilustrador. Por esse viés, a relação entre escrita e imagem só pode ser
apreendida por meios das representações, que expressam o caráter relacional entre estética
e estilo. É sobre essa obra impactante e conflituosa que os ilustradores tiveram de se
debruçar para representá-la pelo olhar da arte pictórica, das imagens. As ilustrações e suas
354
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
355
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
169
relações com os textos escritos indicam que a prática intersemiótica é inerente ao processo
interpretativo de confecção das capas dos livros.
O universo das representações imagéticas, ou seja, da iconografia, é demasiado
extenso, visto que engloba pinturas, desenhos, esculturas, charges, filmes, fotografias etc.
Por razão dessa amplitude, e em decorrência do objeto deste estudo, optou-se pela
utilização e discussão a partir das ilustrações das capas de quatro livros de O. G. Rego de
Carvalho. O debruçar sobre as capas, como composição do arcabouço empírico, permite a
visualização das trajetórias da escrita, ampliando os horizontes para o aprofundamento não
somente das obras em si, mas das configurações histórico-culturais de produção e consumo
de tais textos.
Uma característica à parte dos livros do literato é a que se refere às ilustrações das
capas. O leitor se depara, a partir das capas, com muitas das sensações e sentidos que, em
grande medida, são expressos ao longo da narrativa. É fundamental que se diga que, no
universo do campo cultural, literatura e imagem devem analisadas à luz de certos
referenciais, sejam eles estéticos ou sociais, para que as inferências não sejam, também, de
cunho unicamente subjetivo.
É preciso atentar para as consonâncias e dissonâncias entre texto e imagem, não
como uma postura metódica da busca de uma verdade absoluta, mas no intuito de perceber
que há sistemas relacionais de verdade que se produzem pela literatura e pela imagem,
pois, como alerta Peter Burke356, é importante observar os pontos de inserção de cada
imagem e texto nas configurações sociais nos quais se inserem.
Necessário se faz perceber que essa inserção não se dá somente no momento de
produção da obra, seja literária ou artística, mas em toda a sua trajetória de consumo e
357
apropriação. Segundo Roger Chartier , falando especificamente do livro, a visualização
dessa trajetória permite compreender as relações de poder em que autor, produção,
consumo e apropriação estão imersos. Há uma complexa relação entre leitor, autor e
artista, pois são sujeitos diferentes que consomem o texto de maneiras também diferentes.
É no seio dessa complexidade que “o leitor da imagem é convidado a compartilhar as
emoções dos personagens, e o artista se esforça em se pôr à altura do romancista” 358. O
ilustrador tenta dar vida às relações e ações dos personagens, sobretudo dos protagonistas.
356
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
357
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre:
EDUFRGS, 2002.
358
DOODY, Margareth. Dar rosto ao personagem. MORETTI, Franco. O Romance: a cultura do romance.
Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 579.
170
A partir disso, é possível traçar algumas análises acerca das capas e suas
ilustrações, começando por Ulisses entre o Amor e a Morte (1953):
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
Carvalho, um de seus principais editores, visto que tal editora era ligada ao Grupo
Meridiano, do qual o escritor era componente.
Quase duas décadas após, a segunda edição sai pela editora Civilização Brasileira,
no ano de 1972. Isso se deu, em certa medida, pela parceria que havia publicado, em 1967,
Rio Subterrâneo. O interessante é que o corpo editorial fez questão de enfatizar, no texto
de orelha do livro, que “este seu relançamento assume foros de uma primeira edição”, pois,
segundo os editores, a publicação da Editora Caderno de Letras Meridiano não teria
alcançado um número mais significativo de leitores.
Nessa nova edição, de 1972, há uma capa com uma ilustração mais colorida, se
comparada à edição anterior. Quem assina a capa é Roberto Franco, que expressa sua
interpretação do livro com a imagem de uma janela, cuja visão se dá para uma rua
arborizada, casas com paredes azulejadas e telhas vermelhas aparentes. É a sua visão de
uma cidade do Piauí.
Outro ponto que torna essa segunda edição diferenciada em relação às demais são
as ilustrações que adornam a abertura de cada um dos cinco capítulos que compõem o
livro, quais sejam Viagem de Cura, A Selga, Adolescência, Os Pombos e Conceição. A
imagem de uma velha rabiscando uma palavra no chão remete ao início do Primeiro
Capítulo, em que Ulisses, personagem central do livro, relata o episódio em que uma velha
escreve seu nome no chão. Para o Capítulo II, Roberto Franco desenhou uma figura
feminina, com feições suaves e sorriso discreto, o que, em boa medida, parece descrever a
imagem de Ovídia, que recebera ele e seu irmão, “oferecendo cocadas e pães-de-ló”359.
Abrindo o Capítulo III está a imagem que intenta demonstrar os conflitos de relação de
Ulisses com seu pai e sua mãe, em meio às suas angústias e inquietações típicas da
adolescência. “Breve, num mundo de nuvens, eu vi inúmeros pombos em revoada, por
cima dos morros que cercavam Oeiras”. É a essa fala de Ulisses que a ilustração do quarto
capítulo faz referência. A ilustração do último capítulo tenta retratar Conceição, a garota
por quem Ulisses se apaixona e conhece os efeitos do amor.
359
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1972, p. 24.
172
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
A última edição, pelo menos aquela da qual se tem conhecimento, data do ano de
2013, lançada no mesmo ano da morte do escritor, meses antes do fatídico ocorrido.
Publicada pela Editora Renoir, impressa pela Gráfica Halley. A capa é assinada por Paulo
Moura. A ilustração segue o estilo do real-abstrato, ou seja, a realidade disforme é apenas
uma sugestão de imagem.
173
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. 15. ed.
Teresina: Renoir, 2013.
360
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y La Muerte. Teresina: EDUFPI, 2004.
361
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y La Muerte. Teresina: Oficina da Palavra, 2005.
362
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y La Muerte. Teresina: Fundação Quixote, 2007.
174
primeira edição de Rio Subterrâneo. Nos dados técnicos do livro não consta nenhuma
informação sobre a capa, o que indica que não houve nenhum artista, ilustrador ou
desenhista responsável diretamente por ela.
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y la Muerte. 3. ed. Teresina:
EDUFPI, 2004.
A capa da edição de 2005 é assinada pela equipe da Arca Comunicação Ltda. Traz
alguns elementos que representariam temas que compõem o enredo do livro. Os dois tons
de amarelo, que predominam, são utilizados de tal maneira que formam figuras em forma
de flor, cruz e cerca ou porteira. De imediato, essas imagens remetem, em grande medida,
ao “amor” e à “morte”, que são as palavras norteadoras do título do livro. A cerca ou
porteira faz pensar nas casas e no ambiente familiar do personagem central. Mas, também,
175
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Ulises entre el Amor y la Muerte. 3. ed. Teresina:
Oficina da Palavra, 2005.
possível porta e o telhado do local. Uma janela sutil, que dá para o horizonte, visualizando
uma luz, provavelmente o sol, também reforça a sugestão dessa casa.
Nas últimas edições, para além das ilustrações das capas, é importante notar a
ênfase dada, na folha de rosto do livro, ao fato de se tratar de uma “edição atualizada”, o
que denota, em certa medida, a intenção de tornar o livro cronologicamente adaptado.
Passados sessenta anos, o livro estaria apto a ser consumido por um público cujas
demandas e práticas, em parte, são distintas da época do lançamento da primeira edição.
177
363
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1972.
364
CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o Amor e a Morte. Teresina: Renoir, 2013.
178
365
Marius Lauritzen Bern nasceu no ano de 1930, na cidade do Rio de Janeiro. Sua origem é estrangeira,
pois seu pai, William, era húngaro e sua mãe, Anna, era dinamarquesa. Teve seus estudos iniciais na de
Belas Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano de 1948, estudando por um ano. É
considerado um dos maiores artistas que atuaram como ilustradores na editora Civilização Brasileira. Fez
inúmeras ilustrações para autores brasileiros e estrangeiros, especialmente de livros de cunho político e
histórico. Faleceu no ano de 2006.
179
366
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
180
certa medida, tal ilustração está escalonada de maneira hierárquica: em primeiro plano,
Lucínio; em segundo plano, o Sobrado; e em terceiro, de forma pouco clara, a Vegetação.
Vale destacar, em primeiro momento e por meio dessa disposição hierárquica dos
elementos que compõem a capa, que a maior distinção entre as duas edições, no tocante às
ilustrações, é a apresentação, a retratação da figura do personagem central do livro:
Lucínio.
A ênfase no personagem remonta à uma discussão que aproxima ainda mais
literatura e imagem, texto e iconografia. Conforme Margaret Doody367, em inglês o
vocábulo “character” significa personagem, mas também que dizer “figura” ou “signo”, o
que sugere que, desde o início, os personagens de um romance são figuras e signos.
Entretanto, o vocábulo em si não consegue, por mais detalhada que possa ser as
características agregadas a ele, expressar visualmente tal premissa. Por tal razão, “A
iconografia de um personagem pode ser entendida como representação de alguém a ser
admirado e desejado, ou desprezado e ridicularizado – mas, de qualquer forma, responde a
uma curiosidade que o texto escrito não consegue satisfazer por inteiro”368.
Nessa ilustração da segunda edição, o meio rural e o domínio da natureza sobre a
imagem não aparecem como os elementos de destaque em toda a composição. Há, de certa
forma, a sugestão das dimensões introspectivas de seus personagens. O principal recurso
para isso foi o jogo do “negro-claro”, em que a escuridão refletiria o mundo sombrio que
atormentava alguns personagens, sobretudo o principal, Lucínio:
367
DOODY, Margareth. Dar rosto ao personagem. MORETTI, Franco. O Romance: a cultura do romance.
Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
368
DOODY, Margareth. Op. cit, p. 563.
181
escuridão seria sinônimo de tudo o que fosse negativo e indesejado, enquanto que a luz e
claridade seriam símbolos não só da racionalidade, mas do estado de espírito ligado às
coisas sagradas e religiosas, portanto, socialmente aceitas.
Na capa o artista destacou o que mais lhe chamou a atenção. Em primeiro plano
aparece o personagem central, Lucínio, que apresenta sinais de problemas mentais. Na
pintura da capa do livro, os olhos do garoto estão com uma expressão que, a priori,
remeteria aos transtornos. Ao fundo aparece um prédio que provavelmente representa o
sobrado, que é uma das poucas lembranças de Lucínio sobre Oeiras. O sobrado é um lugar
de memória que o ilustrador percebe como um espaço que ocupa grande parte das dores
sentidas por Lucínio. O destaque dado a Lucínio e a tentativa de captar suas sensibilidades
são justificados pelo fato de que, “de modo geral, os ilustradores se concentram nos
acontecimentos: tal como os diretores do cinema, eles querem nos mostrar os personagens
em ação”369.
No sobrado habita D. Joana, que é uma senhora que enlouquecera quando
presenciou o filho sendo atacado por uma cobra. O desespero foi tão intenso que a
predisposição para problemas mentais aflorou e ela entrou em um “mundo” no qual ela
não conseguira perceber que o filho retornara são e salvo daquele ataque. Desde então, D.
Joana vive um quarto nos fundos do Sobrado, no fim de um corredor escuro. A disposição
dos elementos e a escolha da cor cristalizam a imagem de que a tristeza e o sofrimento são
os aspectos que predominam no livro, como destacou Carlos Drummond de Andrade na
contracapa do livro.
Por outro lado, a 9ª edição de Rio Subterrâneo traz uma leitura quase que oposta,
mas não menos contundente, em relação à primeira e à segunda edições, pois toda a capa
está em cor clara e com ausência de figuras. Vale ressaltar que, além das técnicas e estilos
de ilustração, cada edição também dispunha de recursos variados, o que provavelmente
impactava na configuração das capas, pois quanto mais elaborada fosse, mais elevado seria
o custo para sua confecção.
369
DOODY, Margareth. Dar rosto ao personagem. MORETTI, Franco. O Romance: a cultura do romance.
Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 571.
183
Nessa capa não há nenhuma ilustração que remeta a qualquer tipo de figura
definida. Há apenas o nome do autor, o título da obra e o nome da editora. O único
destaque está na cor das letras do título, que está todo em vermelho de uma tonalidade
vibrante. O que foi captado é uma obra cujo vazio e a perda são as maiores marcas? Isso
remete à falta de referências, por parte de Lucínio, à terra natal, Oeiras? Uma estratégia
daquela edição em provocar no leitor o que está a ser descoberto em meio àquele silêncio
184
A quinta edição de Rio Subterrâneo traz em sua capa uma ilustração que parece
retratar a imagem de um rio. Essa representação está atrelada à dimensão literal do título,
ou seja, o “rio” é apreendido como o próprio Rio Parnaíba do qual fala, por muitas vezes,
Lucínio. Contudo, ao fazer isso o ilustrador não está equivocado, pois o Rio Parnaíba é um
185
370
Gabriel Archanjo nasceu na cidade de Teresina, no estado do Piauí, no ano de 1963. É artista plástico,
autodidata. Os críticos de arte o descrevem pela sua marca pautada no subjetivismo. Sua identificação com o
livro de O. G. Rêgo de Carvalho também se insere na esfera do subjetivismo, que é a marca mais pontuada
na obra do escritor piauiense.
371
DOODY, Margareth. Dar um rosto ao personagem. MORETTI, Franco. O Romance: a cultura do
romance. Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 589.
186
Fonte: CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo. 10. ed. Teresina: Renoir, 2009.
Vale mencionar certos aspectos de algumas capas das edições, às quais se teve
acesso, do livro Somos Todos Inocentes. A primeira edição data de 1971 e foi publicada
pela Editora Civilização Brasileira, mas, infelizmente, não foi encontrada para a análise.
As únicas edições encontradas foram: terceira (1985), sexta (2007), sétima (2008), oitava
(2009) e nona – e última edição – (2009).
187
A sexta edição, também publicada pela Fundação Quixote, tal qual a edição
anterior, traz a capa assinada por Sérgio Fernandes e Gabriel Archanjo. Nela, tenta-se
reproduzir uma espécie de estampa, típica dos papeis de parede dos casarões das fazendas.
Isso faz referência às famílias ricas em atrito na cidade de Oeiras, em fins da década de
188
1920, precisamente 1929, ano no qual se passa o enredo do livro. A estampa, ainda,
tentaria expressar, talvez, o aspecto romântico que envolvia os jovens apaixonados das
famílias rivais. Na quarta-capa do livro, como na edição precedente, há o texto, dizendo:
“Romance premiado pela Academia Brasileira de Letras”, lembrando do fato de que o livro
ganhou o Prêmio Coelho Neto daquela Academia, no ano de 1972.
A edição de 1985, assim como todas as outras publicadas pela editora Caderno de
Letras Meridiano, segue o mesmo estilo: fundo claro, somente com o título do livro em
letras vermelhas e o nome do em preto. Nesse sentido, não há necessidade de sua
reprodução aqui. Da mesma maneira, a capa da sétima edição, lançada pela Fundação
Quixote, também não aqui reproduzida, porque mesmo trazendo maiores detalhes de
ilustração, consta somente um fundo verde, com alguns traços em branco, azul, vermelho e
preto.
Na oitava edição, publicada pela Editora Renoir, a capa traz uma imagem que
sugere, talvez, o ambiente rural das fazendas, dos casarões e sobrados, que marcam o
enredo do livro. A quarta-capa está somente em fundo em tom de verde escuro, com um
trecho de comentário atribuído a Érico Veríssimo, acerca do livro: “Senti simpatia pelo seu
livro porque vi que o escreveu com empatia”.
Tanto na oitava quanto na nona edição (esta é a última) as ilustrações da capa
remetem, novamente, às discussões da regionalidade e do regional. A ideia geral volta-se
para as dimensões que abordam o espaço geográfico, com predominância da ruralidade e
dos costumes de uma cidade do interior. As imagens construídas pelas ilustrações, em certa
medida, tentam retratar o traço mais externalizado do enredo: o espaço e as relações sociais
que dele são decorrentes. No entanto, as características ditas regionalistas, em uma tradição
na qual a seca e a fome são o foco, não podem ser observadas em nenhum dos livros de O.
G. Rego de Carvalho. Isso, para alguns críticos, o fez se distanciar da ficção de José Lins
do Rego, Rachel de Queiros e de Graciliano Ramos. Kenard Kruel argumenta, em defesa
do literato a partir do que ele mesmo já teria mencionado, dizendo que “o Nordeste não era
apenas secas e cangaço, e que ele, como escritor, devia ter outros compromissos sem ter
que imitar os seus antecessores”372. Nesse sentido, pensar as capas e as edições também é
fulcral para compreender que a escrita de O. G. Rego de Carvalho está ligada às questões
litigiosas de cânone e à própria história da literatura.
372
KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 49.
189
Algo que pode ser dito, também, na comparação entre as capas da oitava e nona
edições se refere às informações acerca da autoria das capas. Na página das informações
técnicas de ambas edições está dito que quem assina as ilustrações é Gabriel Archanjo. No
entanto, na quarta-capa da última edição aparece a abreviação “P.M”, que é a forma como
Paulo Moura se identifica nas ilustrações, como é o caso da última edição de Ulisses entre
o Amor e a Morte (2013). Talvez tenha ocorrido somente um equívoco no momento da
impressão e a informação saiu trocada. Mas isso, independentemente das razões e
explicações desse desencontro, constitui mais um ponto na história das edições dos livros
de O. G. Rego de Carvalho.
190
Provavelmente, a tarefa mais difícil não tenha ficado a cargo dos ilustradores de
cada obra individualmente e suas respectivas edições. O maior desafio foi o de retratar, por
meio da ilustração, as três obras ao mesmo tempo. Isso foi o que aconteceu no livro que
reúne os três livros do literato em um único volume, intitulado de Ficção Reunida. De
todos os livros aqui analisados, de fato, esse é o que menos edições teve, com apenas três e
que são difíceis de encontrar. Todas, ao que parece, mantiveram a mesma capa, sem
alterações.
Algo interessante que foi uma tentativa de, mais que agrupar os três textos, de
atribuir certa concisão na narrativa do autor piauiense. São livros de três décadas diferentes
(1950, 1960, 1970), que, de certa maneira, expressam o autor de maneira também
diferente. Muito embora as narrativas não se refiram, direta e aparentemente, ao período
nos quais foram escritos, não há como não apreendê-los deslocados de tais cronologias,
pois o texto é fruto de uma temporalidade, ou seja, cada momento apresenta uma maneira
particular de subjetivação do tempo, seja por cada pessoa, seja por um grupo social.
Nesse sentido, a escrita não está destituída dessa vinculação intrínseca ao momento
de sua criação. Dessa maneira, Ficção Reunida tornou-se um esforço de estreitar o tempo e
aproximar temporalidades de produção e de consumo, tentando encurtar as pontes entre
autor e leitores. Daí o desafio de se ilustrar um livro que nasce com intento tão grandioso.
373
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989.
374
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
375
CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
192
376
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 262-263.
377
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Entrevista com Professor Cineas. Cadernos de Teresina.
Teresina, Ano X, nº 22, p. 46, abr. 1996.
378
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 45.
379
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 46.
193
exemplo, conhece teoria literária, conhece a carpintaria do ofício, escreve bem”380. Seu
reconhecimento ao crítico é acompanhado de uma enfática crítica a Francisco Miguel, pois,
segundo ele, “Pena que me pareça mais preocupado com sua igrejinha literária do que
produzir um trabalho essencial”381. Na entrevista, Cineas Santos não esclarece o que seria
tal “igrejinha literária” de Francisco Miguel, mas parece se referir às suas discussões muito
atreladas à obra de O. G. Rego de Carvalho ou sobre o Grupo Meridiano, do qual o escritor
se tornou maior expressão. Ou, talvez, ao movimento CLIP (Círculo Literário Piauiense),
do qual o crítico fez parte. A insatisfação de Cineas Santos está no fato de que Francisco
Miguel deveria ampliar suas contribuições, analisando com mais afinco outros autores e
outros grupos.
Após esse áspero comentário ao trabalho do crítico, um dos entrevistadores, Elmar
Carvalho, disse que o Francisco Miguel de Moura estava escrevendo um livro com crítica
literária sobre a literatura piauiense, além de uma pequena antologia. O entrevistador
alfineta, dizendo: “Parece-me que isso vem preencher o que o senhor falou
anteriormente”382. Com essa intervenção, o entrevistador fez com que Cineas Santos se
posicionasse novamente sobre o tema, mantendo o tom crítico:
Eu não estava sabendo desse projeto. Fico feliz que ele esteja em curso. O
Chico, eu insisto, é um crítico competente, qualificado; agora não pode
ficar afirmando que o Assis Brasil é digno de ganhar o Nobel de
Literatura, isso é deplorável. Espero que o Chico faça esse trabalho:
estamos precisando de uma boa antologia escolar, já que existe a
obrigatoriedade do ensino da literatura piauiense nas escolas.383
380
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Entrevista com Professor Cineas. Cadernos de Teresina.
Teresina, Ano X, nº 22, p. 6, abr. 1996.
381
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 46.
382
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 46.
383
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 46.
384
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Op. cit, p. 46.
194
Essa postura de Cineas Santos, segundo ele mesmo, dá-se em razão de ele ser mais
leitor do que propriamente um escritor, ou mais ainda, um crítico, pois, para ele, “o
exercício da crítica, conhecimentos profundos, acuidade, paciência, atributos que não
tenho. Tenho uma preguiça danada de ficar ‘descobrindo’ nos textos alheios coisas que
nem os autores sabem que existem”.
Em fins da década de 1990, o campo literário piauiense, estaria, em sua observação,
inerte. Para ele,
O trabalho de Francisco Miguel de Moura que estava em fase de feitura, ao qual faz
menção o entrevistador Elmar Carvalho e Cineas Santos, é o livro Literatura do Piauí,
publicado pelo Convênio entre a Academia Piauiense de Letras e o Banco do Nordeste, no
ano de 2001, cinco anos após a entrevista de Cineas Santos. O livro tem um recorte
temporal da pesquisa que abriga o interstício entre 1859 a 1999. Nesse livro, Francisco
Miguel de Moura, além de fazer um levantamento das expressões literárias no recorte
delimitado, apresenta um capítulo, intitulado de Crítica e Atualidade, para tecer
comentários sobre a crítica literária piauiense. Assim como outros estudiosos, Francisco
385
BEZERRA, Domingos; CARVALHO, Elmar. Entrevista com Professor Cineas. Cadernos de Teresina.
Ano X, nº 22. Teresina, abril de 1996, p. 46. No balanço feito por Cineas Santos sobre a literatura piauiense
da década de 1990, outras áreas, como a da música, haviam se destacado muito mais, no sentido de uma
maior ebulição de produção e divulgação. Em sua opinião, isso se dá, em grande medida, pelo esforço
mesmo dos músicos e cantores, ao passo que os literatos e intelectuais têm ficado um tanto confortáveis com
a situação de marasmo. Entretanto, Cineas Santos não aponta quais seriam os caminhos para que o “muito
mais” pudesse acontecer. Ele até admite que “é certo que as dificuldades são enormes: fazer um livro hoje é
até mais caro que produzir um CD, mas isso não justifica a pasmaceira”. Cineas Santos deixa de fora a
questão de não somente “fazer” o livro, pois é preciso, conforme destacam Robert Darnton e Roger Chartier,
nos meios de produção, circulação e consumo. O perfil dos leitores, bem como as configurações políticas,
ideológicas, econômicas e socioculturais de tais leitores devem ser pensadas para que os livros sejam
“feitos”, lidos e criticados.
195
Miguel de Moura afirma que “a literatura piauiense quase não possui críticos, pelo menos
no sentido em que foi definida essa atividade, na sua forma atual” 386. Para ele, isso
“justifica-se, porque também é uma literatura pobre, embora com alguns autores fortes”387.
Essa última observação, relacionada a “autores fortes” abre margem para interpretações
variadas, o que faz com os críticos elejam os “seus” autores.
Nesse livro, Francisco Miguel de Moura divide a crítica literária em meio às
gerações de escritores, sendo, assim, indica cinco momentos da crítica: antes da Academia
Piauiense de Letras388; Depois da Academia Piauiense de Letras389; Modernismo390; Crítica
Universitária391; e Novíssima Geração392. Ao fazer isso, o autor está defendendo a tese de
que a crítica literária, até então realizada, está intimamente ligada às gerações de escritores.
De certa maneira, essa pobreza de produção seria o maior impedimento para que se
possa lançar olhares analíticos sobre algo com um corpo frágil. Mas isso não significa
dizer que a crítica literária piauiense não exista. Ela apenas, parece, acompanha a mesma
fragilidade apontada por Francisco Miguel de Moura sobre a literatura piauiense em si.
Contudo, “em cada período literário, se bem observarmos, temos um crítico, um
historiador ou ambas as figuras. Cada geração que se preza tem seu historiador e seus
386
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí (1859-1999). Teresina: Academia Piauiense de
Letras, 2001, p. 207.
387
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 207.
388
Essa fase da crítica, que vai de 1859 até a fundação da Academia Piauiense de Letras, é considerada como
um momento que não possuiu crítica literária. Nessa fase, Francisco Miguel de Moura aponta para David
Moreira Caldas, professor e jornalista, que teria feito algo mais substancial. Ao lado dele, são citados
Clodoaldo Freitas, Higino Cunha. Francisco Miguel de Moura assegura que João Pinheiro foi o primeiro a
escrever sobre a primeira geração literária piauiense, em seu livro Literatura Piauiense – Escorço Histórico,
publicado em 1937.
389
É a fase denominada como segunda geração, na qual pouco teria sido feito no universo da crítica literária.
É citado A. Tito Filho como o maior crítico desse período. Segundo Francisco Miguel de Moura, a “geração
de 30” produzia “pouca literatura e muita gramatiquice” (p. 209). Ao lado de A. Tito Filho, Celso Pinheiro
Filho também é crítico dessa fase pós-Academia.
390
Fase essa com a atuação de M. Paulo Nunes, Hardi Filho, Herculano Morais, J. Miguel de Matos, José
Carlos de Santana Cruz, Assis Brasil e o próprio Francisco Miguel de Moura. Nesse mesmo capítulo,
Francisco Miguel de Moura faz crítica positiva ao seu próprio livro, Linguagem e Comunicação em O. G.
Rego de Carvalho, afirmando que ela se tornou um diferencial em relação às gerações anteriores, que tinham
uma “crítica biográfica, filológica, estilística ou gramatical” (p. 210).
391
Fase ligada às produções de professores e pesquisadores das universidades. Esse tipo de crítica começa no
final da década de 1970 e início da de 1980. São citados: Fabiano de Cristo Rios Nogueira; vários outros
professores da Universidade Federal do Piauí, como Maria Gomes Figueiredo dos Reis, Maria do P. Socorro
Neiva Nunes Rego, Maria do Socorro Rios Magalhães, Fabiano do Cristo Rios Nogueira. Há, também Carlos
Evandro, Teresinha de Jesus Mesquita, Celso Barros e Francisco Cunha. Com exceção de Teresinha Queiroz,
os demais fizeram trabalhos de análise de produções poéticas, sendo que o romance quase não figura.
392
Essa fase é considerada, nos estudos de Francisco Miguel de Moura, a partir da década de 1970 em diante.
Nela há trabalhos de crítica sobre as gerações mais recentes da literatura, como a geração marginal e a
geração mimeógrafo. Até o final da pesquisa de Francisco Miguel de Moura, o principal texto que representa
tal postura crítica é Anos 70: Por que essa lâmina nas palavras, de José Pereira Bezerra, publicado em 1993.
Esse momento da crítica piauiense, por ser “novíssima” ainda, como ressalta Francisco Miguel de Moura,
ainda precisa de maiores observações.
196
393
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí (1859-1999). Teresina: Academia Piauiense de
Letras, 2001, p. 207.
394
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 207.
395
José Gilson das Chagas nasceu em Santo Antônio de Lisboa, no Piauí. É professor universitário no Curso
de Ciências Contábeis, em Brasília-DF. Além de livros técnico-acadêmicos, também escreveu romances e
ensaios.
396
CHAGAS, Francisco José das. Linguagem e comunicação: Gilson Silva fala sobre Chico Miguel.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/artigos/3905877>. Acesso em: 19 fev. 2014.
197
Esse comentário de Fontes Ibiapina foi feito diretamente a José Gilson das Chagas,
no ano de 1973, na residência do irmão caçula de Fontes Ibiapina, Antônio Ibiapina 397, na
cidade de Picos, no Piauí. José Gilson das Chagas, mesmo morando em Brasília, buscava
manter contato com a produção intelectual piauiense. Sua relação com Francisco Miguel
de Moura dava-se, em grande medida, pelo fato de ambos serem oriundos da mesma
cidade do interior do Piauí. Para tecer elogios sobre o livro de Francisco Miguel de Moura,
Gilson das Chagas menciona a oportunidade na qual Fontes Ibiapina fez comentário
enaltecedor do livro do conterrâneo literato. Dessa maneira, o contato e a amizade entre
Francisco Miguel e Gilson das Chagas fizeram com que, de forma indireta, a obra de O. G.
Rego de Carvalho chegasse um pouco mais a outra localidade no país. É importante
mencionar esses laços entre literatos por duas razões: primeiro, porque possibilita o
mapeamento dos círculos intelectuais de O. G. Rego de Carvalho e como tais vínculos
foram costurados; segundo, porque o livro de Francisco Miguel de Moura contribuiu para
ampliar o alcance da projeção do literato.
Como ressalta Gilson das Chagas, à época, a divulgação e o reconhecimento de
escritores e intelectuais do Piauí ainda são parcos em outras esferas da federação. Segundo
ele, esse isolamento da literatura produzida no Piauí deve-se, em parte, a “algumas causas
visíveis, como os históricos estigmas que, no curso dos séculos, operam e perduram contra
as regiões e unidades federativas de menor expressão socioeconômica” 398. Isso se inscreve,
inclusive, naquilo que Durval Muniz de Albuquerque Júnior chamou de processo de
invenção do nordeste e do nordestino, o que demonstra traços das disputas oriundas das
relações de poder. Segundo ele, “a literatura, o teatro, a pintura, o cinema regionalistas,
quase sempre não conseguem fugir desta folclorização da cultura nordestina”399.
No tocante a possíveis comparações entre O. G. Rego de Carvalho e outros
literatos, quanto às suas concepções de romance, Francisco Miguel de Moura é categórico
em apresentar suas negações em relação a isso, visto que é fundamental que
397
Antônio de Moura Ibiapina, conhecido como Pebinha, nasceu no dia 8 de fevereiro de 1926, na localidade
Lagoa Grande, no município de Picos, Piauí. Era poeta popular e gostava de acompanhar as manifestações
culturais da cidade de Picos. Faleceu em 10 de setembro de 2010.
398
CHAGAS, Francisco José das. Linguagem e comunicação: Gilson Silva fala sobre Chico Miguel.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/artigos/3905877>. Acesso em: 19 fev. 2014.
399
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007, p. 104.
198
400
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 17.
401
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 17.
402
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p.150.
199
403
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 151.
404
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 151.
405
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 26.
200
ocorrer em localização mais adequada, pois o restaurante Café Lamas 408 existe há mais de
um século no Rio de Janeiro. É famoso não somente por sua cozinha e cardápio, mas por
abrigar a reunião de atores, cantores, escritores, políticos, estudantes universitários e
intelectuais de maneira geral. É nesse ambiente que O. G. Rego de Carvalho confraterniza
com seus companheiros intelectuais para festejar sua premiação:
Foto 1 – Jantar no Restaurante Lamas, no Rio de Janeiro.
408
É restaurante que existe há 135 anos, no Rio de Janeiro. Sua fama é reconhecida e cantada pelos poetas e
escritores. Exemplo disso é a música Rio Antigo (como nos velhos tempos), de autoria de Nonato Buzar e
Chico Anízio, interpretada por Alcione. No verso que homenageia o restaurante, é lembrado o seu famoso
bife. Ainda há o livro de contos, Salvador janta no Lamas, de autoria do escritor, crítico, músico e professor,
Victor Giudice. Ganhou o prêmio Ficção 89, da Associação Paulista de Críticos de Arte. Foi agraciado com o
Prêmio Jabuit, considerado a maior distinção literária do país.
202
Foi ideia dele. Escolheu ao Esdras e a nós porque éramos seus amigos
mais chegados. Quanto ao Villaça (já falecido), grande memorialista, não
sei exatamente o que os ligava. Foi um encontro de camaradagem, em
que se jogou conversa fora, apenas para festejar o feito de um amigo.
Mesmo àquela altura, os prêmios literários eram difíceis, com vencedores
previamente escolhidos - e O.G. ganhou porque tinha qualidades muito
explícitas. Ou então, ainda que talentoso, teve sorte. Em suma,
comemoramos e todos se despediram meio bêbados.409
409
PÓLVORA, Hélio. Questionário respondido para Pedro Pio Fontineles Filho, via e-mail, em 18 de janeiro
de 2013.
410
Ambos os artigos estão reproduzidos no livro de KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna
crítica. Teresina: Zodíaco, 2007.
411
PÓLVORA, Hélio. O mundo de Ulisses. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 01/11/1972. In: KRUEL, Kruel.
O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 186.
203
daquela faixa etária. Pólvora, então, imprime seu comentário, buscando “deslizes” de
referentes reais na narrativa do livro. Na concepção de Pólvora, passagens assim vão se
repetindo ao longo do livro e, conforme ele, são frutos de uma tradição linguística herdada
do autor, revelando suas matizes e raízes familiares, com bases de uma elite colonial. Isso
teria reflexo na cultura literária piauiense, com fortes traços de uma cultura literária
portuguesa, que O. G. Rego de Carvalho fazia questão de tomar como marca de seus
textos, sobretudo em Ulisses entre o Amor e a Morte. A crítica de Hélio Pólvora a tal livro
se acirra ao apontar os conflitos no estilo da linguagem empregada pelo literato, pois
“Manchas” é o termo utilizado por Hélio Pólvora para definir essa oscilação na
linguagem empregada em Ulisses entre o Amor e a Morte, prejudicando, em sua análise, a
metrificação e precisão da escrita. Ponto de conflito nessa análise é que Hélio Pólvora não
deixa claro a que tipo de “falar brasileiro” está se referindo. Seria um falar nordestino,
regionalista, próximo aos do estado natal do escritor baiano? Interessante é que Hélio
Pólvora também classifica O. G. Rego de Carvalho como um escritor simbolista,
classificação da qual o literato por várias vezes recusou fazer parte, como na ocasião de sua
crítica ao livro de Herculano Moraes, quando O. G. Rego de Carvalho o chama de “pobre
crítico”, ao não aceitar ser chamado também de naturalista.
Além de chamar-lhe de simbolista, Hélio Pólvora afirma que “em capítulos curtos,
as impressões do adolescente, aquelas que mais influíram na sua sensibilidade e orientaram
sua formação, vão sendo postas no papel”413. Hélio Pólvora assevera que, felizmente, O. G.
Rego de Carvalho vinha se “libertando” do apego ao vernáculo padrão, o que poderia ser
observado em seus livros subsequentes. Ele diz que o romance de O. G. Rego de Carvalho
precisava se modernizar, pois “uma das características do romance moderno brasileiro é a
412
PÓLVORA, Hélio. O mundo de Ulisses. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 01/11/1972. Reproduzido em:
KRUEL, Kruel. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 186.
413
PÓLVORA, Hélio. Op. cit, p. 185.
204
aproximação da língua literária com as fontes que lhe injetam no organismo frequentes fios
de naturalidade”414. Tal naturalidade que, segundo ele, estava faltando no livro inaugural
do literato.
Para aliviar o tom áspero das críticas, Hélio Pólvora afirma que o livro está
impregnado de uma “linguagem impressionista, conteúdo poético, prosa que ocupa a
indefinível fronteira entre o verso e a livre expressão. O resultado é um relato terno,
afetivo, que cativa e comove”415. O crítico baiano ressalta o teor da subjetividade e das
sensibilidades que o livro desperta no leitor, o que não está ligado unicamente com o estilo
da linguagem, mas com a recepção do texto em seus conteúdos. O texto bom, no final das
contas, é aquele que consegue despertar a comoção e que cativa o leitor, que o seduz de tal
maneira que as páginas são visitadas pelos olhos sem a preocupação de sua quantidade.
Para Francisco Miguel de Moura, a despeito das críticas, O. G. Rego de Carvalho
não é um escritor cheio de preciosismos, mas sim um escritor cuidadoso com a escrita, pois
“Assonâncias e aliterações, comuns em outros escritores descuidosos do sem-valor disto na
prosa, não existem na obra de O.G. Rego, tornando-se o texto de uma limpidez
incomum”416. De maneira enfática, conclui, dizendo que “Não se encontra o menor
tropeço”417, pois a pontuação obedece a um ritmo que dá firmeza e suavidade ao mesmo
tempo ao texto.
Nas análises de Roosevelt Silveira, O. G. Rego de Carvalho deve ser lido como um
grande escritor de expressão nacional, pois, segundo ele, sua escrita contempla temáticas
que vão além dos limites do Piauí.
414
PÓLVORA, Hélio. O mundo de Ulisses. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 01/11/1972. Reproduzido em:
KRUEL, Kruel. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 186.
415
PÓLVORA, Hélio. Op. cit, p. 185.
416
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de Janeiro:
Artenova, 1972, p.24.
417
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p.24.
418
SILVEIRA, Roosevelt. O. G. Rego de Carvalho, primoroso romancista. Artigo originalmente
publicado no Jornal Folha do Caparaó, Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 26/2/2011. Disponível em:
<http://www.silveiralivros.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35:og-
rego&catid=5:poemas-e-contos&Itemid=12>. Acesso em: 19 fev. 2014.
205
Roosevelt Silveira aponta para o fato de O. G. Rego de Carvalho não poder ser
visto como um escritor de motes regionalistas, visto que não copia estilos do linguajar
tidos como regionalistas. Ele, na concepção de Roosevelt, seria um escritor por excelência,
pois
O seu amor pelas letras é imenso. Para escrever “Rio Subterrâneo”, abriu
mão de postos mais elevados no Banco e até mesmo do casamento na
época. Seu esforço mental foi tão grande que foi adoecendo enquanto o
escrevia e, à medida que adoecia, passava para o papel suas sensações.
Com receio de que o romance não fosse concluído, passou a escrever dia
e noite. Terminada a tarefa, teve de entrar em intensivo tratamento. Cada
reedição de seus livros recebe novas correções, novos ajustes. O.G. é um
perfeccionista. Nunca se dá por satisfeito. A revisão é lenta e
cansativa. Certa vez ele me havia falado que estava trabalhando em um
novo romance: “Era Noite, Afonsina”. Mais tarde me diria que o havia
jogado fora, pois estava sob o efeito de remédios que inibiam a
criatividade. Ele é tão exigente com o que escreve que de sua bibliografia
constam mais dois livros: “Amarga Solidão” (1988), mas ele geralmente
nem o menciona, e “Amor e Morte” (1956), que ele proibiu que seja
reeditado, proibição válida até para seus herdeiros.419
419
SILVEIRA, Roosevelt. O. G. Rego de Carvalho, primoroso romancista. Artigo originalmente no
Jornal Folha do Caparaó, Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 26/2/2011. Disponível em:
<http://www.silveiralivros.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35:og-
rego&catid=5:poemas-e-contos&Itemid=12>. Acesso em: 19 fev. 2014.
206
Joca Oeiras retoma uma das questões mais controversas para a leitura do livro, pois
são muitos os professores de literatura, especialmente da educação básica, que
420
SILVEIRA, Roosevelt. O. G. Rego de Carvalho, primoroso romancista. Artigo originalmente no Jornal
Folha do Caparaó, Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 26/2/2011. Disponível em:
<http://www.silveiralivros.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35:og-
rego&catid=5:poemas-e-contos&Itemid=12>. Acesso em: 19 fev. 2014.
421
SILVEIRA, Roosevelt. O. G. Rego de Carvalho, primoroso romancista. Artigo originalmente no Jornal
Folha do Caparaó, Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 26/2/2011. Disponível em:
<http://www.silveiralivros.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35:og-
rego&catid=5:poemas-e-contos&Itemid=12>. Acesso em: 19 fev. 2014.
422
OEIRAS, Joca. Criador e Criatura: O. G. Rego de Carvalho. Publicado em 18 de abril de 2008.
Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/criador-criatura-o-g-rego-de-carvalho>. Acesso
em: 19 fev. 2014.
207
recomendavam para seus alunos, em salas de cursinhos preparatórios, uma nova sequência
de leitura dos capítulos do livro. A não linearidade dos capítulos, com uma sequência
“lógica” diferente, é marca do próprio texto e que remete mais uma vez à noção de tempos
simultâneos e de um “tempo livre”.
A leitura de Rio Subterrâneo (1967), a partir da caracterização de seus personagens,
é algo que Francisco Miguel de Moura utiliza em suas análises. Para ele,
423
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 53.
424
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 53.
208
425
OEIRAS, Joca. Criador e Criatura: O. G. Rego de Carvalho. Publicado em 18 de abril de 2008.
Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/criador-criatura-o-g-rego-de-carvalho>. Acesso
em: 19 fev. 2014.
426
DEUS NETO, Antônio de. Os dez maiores escritores do Piauí. Postado em 11/08/200. Disponível em:
<http://istoepiaui.blogspot.com.br/2008/07/os-dez-maiores-escritores-do-piau.html>. Acesso em: 19 fev.
2014.
427
KRUEL, Kenard. Palavras de agradecimentos. In: KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna
crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 70.
209
cunho biográfico e uma outra seção, levando o mesmo nome do livro. É como se as quase
setenta páginas anteriores fossem uma apresentação do autor, mas não do livro.
Na primeira parte do livro, intitulada de O estranho no ninho, Kenard Kruel dispõe
de pequenos tópicos para falar de família, estudos, trabalho, homenagens, doenças,
trajetória de formação como escritor e de algumas obras que abordam os livros do literato.
Nessa primeira parte menciona o livro Linguagem e comunicação em O. G. Rego de
Carvalho, de Francisco Miguel de Moura; e os textos O Mundo degradado de Lucínio: a
incomunicabilidade em Rio Subterrâneo, de Fabiano de Cristo Rios Nogueira (dissertação
de mestrado); e Rio Subterrâneo: estrutura e intertextualidade, de Maria Gomes
Figueiredo dos Reis (tese de livre docência). Esses dois últimos também foram publicados
em forma de livro.
Vale ressaltar que, mesmo apresentando muitas informações, o texto introdutório
do livro não assume a pretensão de ser uma análise de crítica literária. Configura-se,
notoriamente, como um texto de localização e de informação, o que deve ser
compreendido pelo lugar social do organizador do livro. Como se pode notar na fala de
Cineas Santos sobre o livro “organizado pelo Kenard são artigos publicados em jornais e
revista. Não é um estudo crítico”428.
Na segunda parte do livro, são apresentados 72 artigos que foram publicados em
jornais do Piauí e em cidades como Rio de Janeiro. Há, também, 09 entrevistas que O. G.
Rego de Carvalho concedeu a críticos piauienses e de outros estados.
O livro de Kenard Kruel parece “preencher” um espaço, ou parece ter essa
pretensão, pois
428
SANTOS, Cineas. Questionário respondido para Pedro Pio Fontineles Filho, via e-mail, em 20 de janeiro
de 2013.
210
429
MENEZES Y MORAIS. A estética insubterrânea. Publicado originalmente em
<http://kenardkruel2.blogspot.com/>. Disponível em:
<http://www.portalentretextos.com.br/gerarpdf/5,215.html> , p. 02. Acesso em: 19 fev. 2014.
430
MENEZES Y MORAIS. O. G. Rego de Carvalho. Jornal O Dia. Teresina, 18, 19/02/1973. In: KRUEL,
Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 307.
431
MENEZES Y MORAIS. Op. cit, p. 307.
432
MOURA, Francisco Miguel de. Antonio Nobre e o Clube do Silêncio. Disponível em:
<http://abodegadocamelo.blogspot.com.br/2010/08/antonio-nobre-e-o-clube-do-silencio.html>. Acesso em:
19 fev. 2014.
211
Estão, da esquerda para direita e em pé, Izac, Lucimar Uchoa, Eulino Lima,
Antonio Nobre, Cineas Santos, Pedro Celestino e Francisco Miguel de Moura; sentados
estão O. G. Rego de Carvalho e Geraldo Borges. “O Clube do Silêncio” foi o título irônico
que Cineas Santos atribuiu ao espaço no qual todos falavam sem parar e ao mesmo tempo.
Pela imagem dá para notar que o espaço era pequeno, com instalações não muito
apropriadas para reuniões de grande porte. Os intelectuais, mesmo tendo de posar para a
foto, em meio aos muitos livros nas prateleiras de livros, ficavam amontoados, com poucos
lugares para se sentarem. Não havia, pelo que parece, uma sala reservada, dentro da
livraria, para conversas e diálogos mais tranquilos, pois como está no detalhe da fotografia,
com um garoto ao fundo, os escritores tinham de dividir o espaço com os demais clientes e
frequentadores do local. Ao que sugere a fotografia, não havia um espaço, dentro da
livraria, um lugar específico para o trânsito dos intelectuais.
Essas informações de Menezes y Morais e de Francisco Miguel de Moura, sobre a
livraria Dilertec, sinalizam para dois aspectos: a falta de mais lugares nos quais os
212
433
SANTOS, Cineas. Questionário respondido para Pedro Pio Fontineles Filho, via e-mail, em 20 de janeiro
de 2013.
213
Em sua resposta, Cineas Santos também é bem cauteloso sobre o que falava O. G.
Rego de Carvalho, preferindo, então, dizer que o literato preferia falar pouco, que é uma de
suas características. E assevera que, naquele período, “eram encontros informais,
tomávamos café, conversávamos sobre literatura, política, etc. Há muito tempo não vejo O.
G.”. Pelo pequeno espaço que aparece na fotografia, os encontros pareciam, de fato, ser
informais. O que chama atenção na finalização desse trecho do depoimento de Cineas
Santos é sua ênfase em dizer que faz muito tempo que não mantém contato com O. G.
Rego de Carvalho, pois isso reforça o isolamento no qual o escritor tinha se envolvido, em
função da chegada, no ano de 2011, de seu único filho. No entanto, essa afirmação de
Cineas Santos também sinaliza para o fato de, até certo ponto, haver um certo receio em se
comentar sobre o literato, pois como editor e alguém que encontrava bastante O. G. Rego
de Carvalho, quase que diariamente na Dilertec, bem como falava de sua obra, em suas
aulas pelo interior do estado, ele deveria ter muita coisa a falar.
De sua relação com O. G. Rego de Carvalho, Cineas Santos diz: “Conheci o O.G.
na livraria Dilertec. Lá nos reuníamos diariamente para falar de quase tudo,
principalmente de literatura. Passei a editá-lo no final da década de 80”. Enquanto
Francisco Miguel de Moura diz que os encontros aconteciam geralmente aos sábados que
não havia cinema, Cineas Santos fala de encontros diários, tendo a literatura como ponto
principal de discussão. Cineas Santos, depois disso, fundou sua própria editora e livraria, a
Corisco, editando e reeditando vários escritores, segundo ele, que eram piauienses. Dentre
esses escritores editados, estava O. G. Rego de Carvalho, a quem conheceu por intermédio
de Paulo Machado. Em suas recordações, Cineas Santos diz: “Conheci o O. G. na década
de 70. Na companhia do poeta Paulo Machado percorri o interior do Piauí ministrando
aulas sobre autores piauienses. O O.G. estava entre eles”434. As aulas sobre literatura e
escritores piauienses não eram, até aquela data, uma regra. Então, vários professores
preparavam material e cursos itinerantes, para fazer o que denominaram de “literatura
piauiense” ser melhor divulgada nas escolas da educação básica da capital e do interior do
estado do Piauí.
434
SANTOS, Cineas. Questionário respondido para Pedro Pio Fontineles Filho, via e-mail, em 20 de janeiro
de 2013.
214
O. G. Rego de Carvalho tem sido um escritor bastante lido atualmente nos espaços
acadêmicos das universidades e nas escolas de educação básica do Piauí 435, especialmente
por ter tido seus livros exigidos nos vestibulares das universidades públicas, anteriormente
aos novos critérios de inclusão, especialmente via Enem.
Além dessa dimensão de estudo de sua obra, por parte de professores e alunos, o
escritor encontra-se nas esferas de debate sobre sua escrita, também pelos seus
posicionamentos acerca daquilo que é escrito sobre ele. Exemplo disso, está visualizado
em seu comentário, escrito à mão, no livro de Herculano Moraes436, que versa sobre o livro
Visão Histórica da Literatura Piauiense437. Em seu comentário, O. G. Rego diz que:
435
A Constituição do Estado do Piauí, de 1989, traz em seu parágrafo único, do Artigo 226 a obrigatoriedade
do ensino de Literatura Piauiense nas escolas públicas e particulares.
436
Herculano Moraes da Silva Filho nasceu a 2 de maio de 1945, na cidade de São Raimundo Nonato, Piauí.
Na juventude teve grande participação na política estudantil, posteriormente atuando na vida político-
partidária, especialmente como Vereador. Ocupa a cadeira de número 18 da Academia Piauiense de Letras. É
autor de Poesias: Murmúrios ao vento (1965), Vozes sem Eco (1967), Meus Poemas Teus (1969), Território
Bendito (1973), Seca, Enchente, Solidão (1977), Pregão (1978), Oferendas (1997); Romance: Território
Bendito (1978); Ensaios: Chão de Poetas (1974), A Nova Literatura Piauiense (1975), Visão Histórica da
Literatura Piauiense (1976). Ainda escreveu Fascículos de Literatura Piauiense sobre Assis Brasil, Da Costa
e Silva, Álvaro Pacheco e Fontes Ibiapina.
437
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão histórica da literatura piauiense. Teresina: HM Editor,
1997.
215
Fonte: SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão histórica da literatura piauiense. 4. ed.
Teresina: HM, 1997.
Dos “vários erros” que ele diz constar no livro de Herculano Moraes, estão
destacados três. Ele inicia ressaltando uma dimensão a qual ele tem buscado negar, que é a
tentativa de enquadramento de sua obra em uma linha narrativa ou em um sistema literário.
Negando o Naturalismo como sendo sua vinculação, O. G. Rego de Carvalho está
principalmente negando qualquer relação de sua escrita com a possibilidade de um texto
que pudesse ser aproximado de narrativas nas quais os traços da natureza são o elemento
impulsionador.
Falar sobre o rio, sobre a vegetação, sobre os impactos da seca, sobre a natureza,
como forma de inserir a condição humana como foco narrativo, não se trata, conforme sua
própria defesa, de sua intenção, pois seus livros não se embasariam nesse mote. Ao rejeitar
essa vinculação, O. G. Rego de Carvalho lança crítica, também, a Abdias Neves438, que,
segundo Herculano, seria a maior expressão do Naturalismo na literatura piauiense.
Herculano Moraes argumenta que
Não é preciso repetir que o naturalismo foi uma posição assumida contra
o romantismo. É a observação direta da realidade, conforme Silveira
Bueno. Os franceses compreenderam o naturalismo no período literário
de 1850 a 1890. Se foi uma tendência quase geral no Brasil, não o foi,
entretanto, no Piauí. Há a destacar-se, porém, o vitorioso nome de Abdias
Neves, com Um Manicaca e, mais recentemente, O. G. Rêgo de
Carvalho, com “Rio Subterrâneo”. São certamente, os dois mais
vigorosos nomes do naturalismo piauiense.439
438
Abdias da Costa Neves nasceu em 19 de novembro de 1876. Foi professor, político, magistrado,
jornalista, romancista, poeta e historiador. Colaborou em vários jornais do estado, fundando a Crisálida, A
Idéia, A Notícia e O Dia. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, exerceu o cargo de juiz
federal substituto e senador. Faleceu em 28 de agosto de 1928. Autor de A Guerra de Fidié (1907), O Padre
Perante a História (1908), Um Manicaca (1909), Psicologia do Cristianismo (1910), Velário (1913), Piauí
na Confederação do Equador (1921).
439
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão histórica da literatura piauiense. Teresina: HM Editor,
1997, p. 27.
217
força da criação projeta-se do estado de tensão criado durante toda a narrativa”440. Ao lado
disso, Herculano Moraes ainda reforça a filiação de Abdias Neves e O. G. Rego de
Carvalho, destacando que “em ambos observa-se a preocupação com o homem piauiense, o
seu comportamento, a moda naturalista-regionalista”441. Há, nessa observação, destaque
para o aspecto regionalista interligado ao naturalismo.
Em larga medida, parte da insatisfação de O. G. Rego de Carvalho estaria por ser
associado não somente ao naturalismo como também ao regionalismo, tendência essa que
ele já negara outras vezes como característica de sua escrita. Pensar o comportamento do
homem piauiense é algo que, em certa medida está presente nos livros de O. G. Rego de
Carvalho, pois ao falar de amor, solidão, loucura, juventude, ele lança mão de análises
psicológicas sobre o comportamento. Os desencontros entre a classificação de Herculano
Moraes e a crítica de O. G. Rego de Carvalho podem ser alocados na pluralidade
interpretativa que o termo “naturalismo” assume ao não deixar claro, por exemplo, a que
tipo de comportamento humano se refere.
Não satisfeito em desconsiderar o livro de Herculano de Moraes, O. G. Rego de
Carvalho ainda lança comentários ásperos ao romance de Abdias Neves, considerando sua
escrita “fraca e inconsistente”. Ao fazer isso, O. G. Rego de Carvalho tenta minar qualquer
possibilidade de vinculação de sua escrita com a escrita de Abdias Neves, que apresenta
traços fortes da zoomorfização, que consiste em aproximar a condição humana à
animalesca, que é algo típico no Naturalismo. Em geral, isso tem sido feito por meio da
ligação do homem piauiense aos fenômenos da seca ou da realidade de pobreza. Contudo,
O. G. Rego de Carvalho não mencionou que, ao lado das dimensões do Naturalismo, a
obra de Abdias Neves também é marcada por elementos do Realismo, sobretudo em sua
configuração de destaque para a análise psicológica dos personagens.
Além disso, mesclando tais bases (Naturalismo e Realismo), Abdias Neves também
abriu espaço para a narrativa dos costumes da sociedade e de escrita histórica sobre
eventos e fatos. Sobre isso, O. G. Rego de Carvalho já teria se posicionado, afirmando que
seus textos não seriam romances de costumes e nem de cunho histórico. Parece uma busca
constante do escritor em não se ligar a nenhum lastro de escrita, seja ele literário ou até
mesmo histórico, muito embora, em seu Somos Todos Inocentes (1971), ele faça uso de
uma narrativa que expressa vários costumes da sociedade e da história da cidade de Oeiras.
440
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão histórica da literatura piauiense. Teresina: HM Editor,
1997, p. 27-28.
441
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Op. cit, p. 27.
218
Mais que isso, é sua intenção “controlar” as leituras feitas sobre sua obra ou mesmo
instaurar um processo de “desleitura”, pois intenta desconstruir as análises que fogem
àquilo que ele espera que seja feito de seus livros. Mas que leituras seriam essas? Quais
seriam os limites das interpretações para os livros de O. G. Rego de Carvalho? Respostas
herméticas seriam inocentes, visto que se está abordando escrita e literatura, que são
integrantes do universo da produção artística, que não permite, em grande medida,
demarcações rígidas. O que se pode vislumbrar, a priori, é o fato de que O. G. Rego não
quer ser classificado, enquadrado ou agrupado em algum tipo de organização preexistente
de escrita.
O segundo tópico do “erro” que teria cometido Herculano Moraes está relacionado
ao seu primeiro livro, Ulisses entre o Amor e a Morte (1953), que introduziu O. G. Rego
de Carvalho no universo literário, principalmente pelas características diferenciadas de seu
texto: capítulos curtos, narrativa em forma de poesia e sonora, dimensões psicológicas e
pouco destaque à natureza. “Obra de ficção científica”, seria assim que Herculano,
conforme o comentário de O. G. Rego de Carvalho, teria classificado o livro Ulisses,
classificação tal muito mais próxima do cinema que propriamente da narrativa literária.
Herculano Moraes diz que
442
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão História da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM
Editor, 1997, p. 160.
219
científica, que se trata de todo ou qualquer enredo que se desenrola a partir de descobertas
e impactos da ciência. Conhecendo minimamente o livro Ulisses entre o Amor e a Morte, é
justificável e aceitável a crítica feita ao livro de Herculano. Essa inadequação foi corrigida
por Herculano Moraes nas edições seguintes (3ª, 4ª e 5ª), retirando a palavra “científica” do
texto, suavizando o atrito criado entre os dois literatos a partir da edição de 1982, quando
O. G. Rego de Carvalho tornou públicas as suas considerações negativas.
Ao ter revisto essa falha e a retirado das edições posteriores, Herculano Moraes
teve a postura intelectual, até certo ponto humilde, de aceitação de que havia coisas a
serem melhoradas em seu livro. Mais que isso, Herculano Moraes mostra para os demais
pares, especialmente os da Academia Piauiense de Letras, que é um escritor antenado ao
público que consome ao seu livro, ainda mais quando nesse público se encontra um sujeito
que se tornou objeto de análise para a construção da narrativa e argumentação de seu texto
de crítica literária. Herculano Moraes consegue, até certo ponto, apaziguar os ânimos tanto
de O. G. Rego de Carvalho como daqueles que possivelmente se solidarizaram com os
comentários depreciativos, ou melhor, de defesa-ataque de O. G. Rego de Carvalho.
Aliás, revisões e reedições de livros, sobretudo de crítica literária, têm, dentre
outras funções, a característica de adaptação de considerações pretéritas e reforço de
outras. Dessa maneira, acompanhar as diferentes edições de uma obra, como é o caso do
livro escrito por Herculano Moraes, é perceber as disputas de saberes que são produzidos
em um dado campo. O livro assume, nesse sentido, como testemunho das práticas e
discursos que incidem sobre ele, que fazem o livro se constituir como expressão de valores,
de ideias e relações de poder.
No tocante ao outro comentário, que se refere ao seu texto como tradicional ou
linear, O. G. Rego de Carvalho também desconsidera os argumentos de Herculano Moraes.
Para Herculano,
Tanto Rio Subterrâneo como Somos Todos Inocentes são romances que
apresentam uma disposição técnica tradicional: história que tem começo,
clímax e desfecho. “Ulisses” difere um pouco. São narrações estanques,
montadas posteriormente, de forma a gerar a unidade desejada.443
443
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão História da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM
Editor, 1997, p. 158.
220
No que tange a Rio Subterrâneo, talvez esse seja o livro menos linear de O. G.
Rego de Carvalho, pois é o que mais apresenta uma narrativa de elucubrações psicológicas,
já que o tempo da narrativa é psicológico. Ademais, os seis capítulos dispostos do livro não
possuem tal “disposição técnica tradicional”, visto que eles podem ser lidos em
combinações, o que, para muitos professores de literatura, facilitaria o entendimento do
texto444. Contudo, isso romperia com a postura anárquica de O. G. Rego de Carvalho, que
intencionou mesmo escrever um texto que fugisse a uma sequência estanque.
Mesmo o seu Somos Todos Inocentes, que é considerado o texto mais
“convencional”, pois trata dos costumes de Oeiras em fins da década de 1920,
precisamente no ano de 1929, possui fortes traços psicológicos. A aparente linearidade,
com início – meio – fim, é entrecortada pelas nuances psicológicas dos personagens, que
giram em torno dos conflitos e relações entre famílias rivais. Apesar de o literato não
admitir, é o texto mais linear, o que teria levado Herculano Moraes a mencionar tal
característica como integrante da obra de O. G. Rego de Carvalho. O que Herculano
Moraes está chamando de narrações estanques muito provavelmente são os capítulos
curtos e poéticos de Ulisses entre o Amor e a Morte. Vale destacar que esse argumento foi
mantido por Herculano Moraes nas edições seguintes, não alterando nada, o que demonstra
que sua concepção sobre a disposição narrativa e formal dos livros de O. G. Rego de
Carvalho permanece, mesmo diante da discordância entre ele e o literato analisado por ele.
Os reflexos de tais atritos entre os dois literatos, em parte, podem ser vistos na
quarta edição do livro de Herculano Moraes. Nessa edição, na contracapa do livro, consta
uma fotografia com a seguinte legenda: “Cinco dos principais nomes da Literatura
Piauiense neste século. Da esquerda para a direita: Francisco Miguel de Moura, Herculano
Moraes, H. Dobal, Assis Brasil e Hardi Filho”445.
444
Nos muitos manuais e apostilas preparados pelas escolas privadas do Piauí, como material preparatório
para vestibulares, recomenda-se a leitura distribuída da seguinte forma: Primeiro capítulo com o Quarto,
Segundo capítulo com o Quinto, e Terceiro capítulo com o Sexto.
445
SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão História da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM
Editor, 1997.
221
Fonte: SILVA FILHO, Herculano Moraes da. Visão histórica da literatura piauiense. 4. ed.
Teresina: HM, 1997.
A escolha da fotografia, em boa medida, parece ter sido realizada pelos editores da
Editora HM, de Teresina, de propriedade de Herculano Moraes. Esses três tópicos
destacados por O. G. Rego de Carvalho não levaram em consideração outro problema
presente no livro de Herculano: a datação equivocada da publicação de dois dos livros do
literato oeirense. Herculano Moraes diz que Ulisses entre o Amor e a Morte foi publicado
em 1959, tendo sido no ano de 1953. Diz que Rio Subterrâneo foi publicado em 1966,
sendo que isso aconteceu um ano após essa data, incorrendo no risco de localização sócio-
temporal do livro. Esse detalhe é importante, pois pode levar os leitores a cometer erros na
análise da escrita de O. G. Rego de Carvalho, sobretudo se tomar o aspecto de que há
várias edições de tais livros.
Em relação a esse atrito entre os dois literatos, Francisco Miguel de Moura, mesmo
não querendo se posicionar, diz que o texto de Herculano Moraes tem seu mérito, mas que
não teria um ponto de vista definido:
Eu não sei, eu só sei que está errado. Eu, para mim que está errado. No
meu livro é diferente, eu só posso dizer isso, e talvez o O.G. tenha razão,
222
tivesse razão. É tudo que posso dizer. Eu não vou falar mal dos meus
colegas, não tenho nada a dizer, cada escritor escreve o que quer.446
446
MOURA, Francisco Miguel de. Entrevista concedida a Pedro Pio Fontineles Filho. Teresina, 21/04/2012.
447
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão Histórica da Literatura Piauiense. Teresina: Livraria Editora
Hércules/APL, 1982, p. 18.
223
Camilo Filho, Da Costa Ribeiro, Petrônio Portella, Raimundo Reis, José Ribeiro e Silva,
Raimundo Santana, Almir Fonseca, Baldoíno Barbosa de Deus, Clemente Fortes.”448
Essa busca incessante da Geração Meridiano por mudanças e conquista de novos
valores na escrita literária, em parte, criou um estado tal de pluralidade que dificultava, e
dificulta, a classificação dos escritores em uma corrente e até mesmo em um gênero. Como
pretendiam não mais seguir piamente os modelos e ídolos franceses dos escritores da
Geração de Ouro, isso acabou gerando um certo espírito de não identificação ou
pertencimento. Tal espírito que O. G. Rego de Carvalho parece ter assimilado como uma
de suas principais características. De certa maneira, isso fez com que a crítica literária, que
ainda se constituía, enfrentasse problemas de interpretação e alocação das tendências, dos
gêneros, da estética e da forma dos textos dos escritores piauienses, sobretudo daqueles do
período pós década de 1940.
Para os críticos, como Francisco Miguel de Moura, a própria crítica literária na
esfera piauiense ainda está se aprimorando, pois muitos escritores são pouco analisados
mais profundamente, haja vista que os compêndios têm se dedicado muito à enumeração
dos livros escritos e de um resumo da vida dos escritores. Um trabalho mais direcionado
sobre filiações literárias, conteúdo e repercussão dos livros dos escritores é algo em
processo relativamente recente, comparando-se com outros estados do país. Nesse processo
de “maturidade” da crítica é quase concomitante a presença de lacunas e equívocos de
informações e lapsos interpretativos.
Herculano Moraes lamenta que muitos desses literatos da geração meridiano
tiveram que abandonar o fazer literário por razões privadas, mas principalmente por
questões de natureza financeira, pois não conseguiam sustento por meio da própria escrita.
Em sua crítica e pesar sobre isso, Herculano Moraes assevera que se tratava de resultado
das exigências de uma sociedade duramente direcionada pelos ditames capitalistas e do
consumismo. Dessa maneira, “a poesia, o conto, a literatura em si significava um raro
momento de diletantismo”449, algo a ser praticado pelas pessoas por pura diversão ou por
boemia.
Na sucessão desses primeiros nomes da geração Meridiano, outros escritores foram
se agregando, pois, como menciona Herculano Moraes,
448
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão Histórica da Literatura Piauiense. Teresina: Livraria Editora
Hércules/APL, 1982, p. 18.
449
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Op. cit, p. 18.
224
Nota-se que Herculano Moraes chama atenção para o fato de que O. G. Rego de
Carvalho começou sua carreira, junto ao grupo Meridiano, como uma “esperança e
talento”, mas que conseguiu, assim como H. Dobal, fincar sua presença no universo
literário piauiense, somente na década de 1960, quando surge o Círculo Literário Piauiense
(CLIP). Contudo, seu momento de reconhecimento só se daria após a publicação de
Ulisses entre o Amor e a Morte, que não foi mencionado por Herculano Moraes como
sendo um livro que demarcasse o talento do escritor oeirense. A Geração Meridiano, mais
precisamente daqueles ligados ao Círculo Literário Piauiense, constituiu-se pelas angústias
e desilusões da ditadura militar no país. Por tal razão,
450
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão Histórica da Literatura Piauiense. Teresina: Livraria Editora
Hércules/APL, 1982, p. 19.
451
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Op. cit, p. 19.
225
sobre o movimento “revolucionário”. Isso parece entrar em desacordo, pois Assis Brasil
escreveu livros que se lançaram a pensar o período ditatorial no país, pelo menos no
período da década de 1970, quando os livros foram publicados. Tais livros comumente
compõem o que os críticos e professores de literatura convencionaram chamar de Ciclo do
Terror452, tendo Os que bebem como os cães (1975) o mais representativo e conhecido de
tal ciclo. O. G. Rego de Carvalho, por outro lado, não escreveu nenhum texto ou publicou
livro que versasse sobre o período ditatorial, visto que as dimensões políticas e econômicas
não fazem parte dos pontos que engendram sua escrita.
Na leitura de Herculano Moraes, o literato faz parte dos romancistas modernos,
pois, a partir de 1965, com o prêmio Walmap concedido ao livro Beira Rio Beira Vida, de
Assis Brasil, teria início uma nova fase do romance, visto que “iniciada a vanguarda
piauiense do romance”. Nessa vanguarda, O. G. Rego de Carvalho é citado com o livro
Somos Todos Inocentes. Esses conflitos iniciais entre o literato e os intelectuais fazem
pensar como têm sido concebidas a literatura e a crítica, consideradas como “piauiense”. E
como tem atuado a literatura, como ela tem sido pensada nesse limiar da invenção da
“literatura piauiense”?
Em 2007, no mesmo ano no qual Airton Sampaio escreveu seus artigos comentando
a insipidez da Crítica Literária Piauiense, também é lançado o livro O. G. Rego de
Carvalho: fortuna crítica, de autoria de Kenard Kruel. O livro foi publicado na ocasião das
comemorações dos quarenta anos da publicação de Rio Subterrâneo (1967). Dentre muitos
comentários que surgiram acerca do livro, Menezes y Morais453 diz que "O. G Rego de
Carvalho - Fortuna Crítica" - de Kernard Kruel - é livro indispensável para leitores e
estudiosos do autor de "Rio Subterrâneo"”454. Como a obra foi publicada para celebrar o
livro, Menezes y Morais somente menciona o segundo livro do escritor oeirense. Além
disso, ainda acrescenta que "O. G. Rêgo de Carvalho - Fortuna Crítica" - tem ainda o
452
Compõem o Ciclo do Terror: Os que bebem como os cães (1975), O Aprendizado da Morte (1976), Deus,
O Sol, Shakespeare (1978), Os Crocodilos (1980). São todos romances que se dedicam às reflexões das
condições de degradação da condição humana a partir das ações de violência de regimes totalitários não só
no país como no exterior.
453
Menezes y Morais é o pseudônimo de José Menezes de Morais. Nasceu em Altos, Piauí, em 29 de julho
de 1951. Formou-se em História pela Universidade de Brasília – UnB. Reside na capital brasileira desde o
início da década de 1980. É jornalista, escritor, poeta, contista e historiador.
454
MENEZES Y MORAIS. A Estética Insubterrânea. Disponível em:
<http://www.portalentretextos.com.br/gerarpdf/5,215.htm>l. Artigo publicado originalmente em:
<http://kenardkruel2.blogspot.com/>. p. 01. Acesso em: 19 fev. 2014.
226
mérito iconográfico, são mais de uma dezena de fotografias históricas que muito me
sensibilizaram ao lê-lo”455.
No dia 30 de julho de 2007, Airton Sampaio fez discurso sobre o livro de Kenard
Kruel, acerca da vida e obra de O. G. Rego de Carvalho. Na ocasião, Airton Sampaio
reiterou suas críticas em relação à dispersa crítica literária piauiense e endossou seus
comentários sobre a falta de diretrizes acadêmicas e políticas dos cursos de graduação e
pós-graduação das Universidades Federal e Estadual do Piauí, no sentido de promover
maiores e significativas pesquisas sobre escritores piauienses. Isso revela, mais uma vez, as
disputas para se ter poder. Na ocasião, Airton Sampaio afirma que não somente os
admiradores da obra ogerregueana ficariam gratos com a publicação, mas todos os leitores,
especialmente os estudantes de letras do Piauí e do Brasil. Ele diz que se trata de “mais
uma homenagem à recepção avalizada, em tese, a dos críticos literários e à recepção
comum, em tese a dos leitores, que mesmo ao autor”456.
Em seu discurso, Airton Sampaio relembra de uma obra que ele considera
importante e que está relacionada à análise da escrita dos livros de O. G. Rego de
Carvalho. Tal obra é Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho, de Francisco
Miguel de Moura. Na concepção de Airton Sampaio, trata-se de “um ensaio corajoso, pois
foi publicado em 1972, quando, aqui na província, ainda havia uma inexplicável dúvida
sobre a qualidade da literatura ogerregueana. Dúvida essa fruto das diferenças estéticas e
da pequenez humana”457. Ao chamar a atenção para o fato de o livro de Francisco Miguel
455
MENEZES Y MORAIS. A Estética Insubterrânea. Disponível em:
<http://www.portalentretextos.com.br/gerarpdf/5,215.html>. Artigo publicado originalmente em:
<http://kenardkruel2.blogspot.com/>. p. 02. Acesso em: 19 fev. 2014.
456
SAMPAIO, Airton. Discurso sobre o Livro O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica de Kenard Kruel,
proferido no dia 30 de julho de 2007, no auditório do Clube dos Diários, em Teresina. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=DyUTVJm0OsA. Airton Sampaio salienta que a importância de tal livro
está em sua contribuição de ampliar e socializar informações e leituras acerca da obra do escritor oeirense.
Airton Sampaio destacou, ainda, que Kenard Kruel, por meio de tal publicação, deixou demonstrar três fatos:
“1.A sua preocupação com a obra de O.G. Rego de Carvalho. 2. O seu nobre afeto com a obra Ulisses entre o
Amor e a Morte, Somos Todos Inocentes e Rio Subterrâneo. 3. A sua responsabilidade intelectual em
registrar no insuperável suporte, que é o livro, uma fortuna crítica que só tende a crescer em quantidade, mas,
sobretudo, em qualidade, porque a obra literária de O. G. Rego de Carvalho é um inesgotável filão de
descobertas”. A preocupação metodológica e documental é um tom que, para Airton Sampaio, salta como
uma marca do livro de Kenard Kruel, assim como a aproximação de “nobreza”, ou seja, de respeito, que o
jornalista faz com a obra de O. G. Rego de Carvalho. Airton Sampaio destaca, ainda, uma importante
dimensão do livro de Kenard Kruel, que é o poder intrínseco que a materialidade do livro possui, pois, por
meio de tal suporte, o sujeito é transformado em autor, perpetua-se. Mais que isso, o livro de Kenard Kruel
metamorfoseia a dispersão em coesão, ou pelo menos aparenta realizar isso, pois aglutina inúmeras
informações e comentários sobre o escritor oeirense e, de certa maneira, imprime uma logicidade à obra do
escritor que é contemplado com a “fortuna crítica”.
457
SAMPAIO, Airton. Discurso sobre o Livro O. G. de Carvalho: fortuna crítica de Kenard Kruel, proferido
no dia 30 de julho de 2007, no auditório do Clube dos Diários, em Teresina. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=DyUTVJm0OsA>. Acesso em: 19 fev. 2014.
227
de Moura ser um ensaio corajoso, Airton Sampaio revela que, na década de 1970, a obra de
O. G. Rego de Carvalho continuava cercada de enigmas e contrariedades. Para ele, o texto
de Miguel de Moura é corajoso ainda mais pelo fato de ter sido publicado um ano após o
lançamento de último livro de O. G. Rego de Carvalho, Somos Todos Inocentes. O que
interessa aqui não é simplesmente destacar a opinião de Airton Sampaio sobre os livros dos
dois críticos. A intenção é demonstrar que a obra de O. G. Rego de Carvalho tornou-se
objeto de disputa entre intelectuais que vislumbram ter maior autoridade sobre sua obra.
As mesmas inquietações, mostradas por Cineas Santos e Airton Sampaio, sobre o
valor e a significação da literatura e da crítica piauienses, são abordadas por Francisco
Miguel de Moura, no ano de 2006, em texto publicado em blog voltado para a discussão
acerca da Literatura, sobretudo piauiense. O teor do texto remete, também, à polêmica da
existência ou não da própria literatura “piauiense”. No texto, está dito que
458
MOURA, Francisco Miguel de. A literatura piauiense segundo Francisco Miguel de Moura.
Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/notas-historiograficas/a-literatura-piauiense-segundo-
francisco-miguel-de-moura,2.html>. Acesso em: 19 fev. 2014.
228
Os textos desses dois autores ainda não considero literatura piauiense por
alguns motivos. Os mais fortes são os seguintes: a) Com relação a Ovídio
Saraiva, sua estética era portuguesa ainda, demonstrando a forte
influência arcádica e com acentos bocagianos; apenas nasceu na Vila de
São João da Parnaíba, em 1787; com 6 anos seus pais o arrancaram da
terra berço como ele bem diz numa estrofe; mas foi o único poema em
que fez referência ao Piauí, sem citar o nome de nossa Província; estando
em Lisboa, foi eleito representante do Piauí na Corte e não aceitou a
representação, o que prova não ser verdadeiro o sentimento de brasilidade
registrado, o seu amor à terra berço. b) Com relação a Leonardo de N. S.
das Dores Castelo Branco, é o próprio João Pinheiro quem diz:
"faltavam-lhe as precípuas qualidades de poeta e prosador". Tentou a
invenção do moto-contínuo: era um experimentador, na ciência. Mas seu
poema "A Criação Universal" foi publicado fora do Brasil e não teve
repercussão em nossa literatura. Seu nome ficou na história política de
nosso Estado por causa da viva participação que teve nas lutas da nossa
independência.459
Nesse sentido, Francisco Miguel de Moura quer destacar que nenhum dos dois
escritores possui características suficientes para serem considerados os “fundadores” da
escrita literária piauiense. A classificação de João Pinheiro, na concepção de Miguel de
Moura, é equivocada e que é reproduzida indiscriminadamente por outros críticos ou
historiadores, o que impediria a mais sistematizada análise da obra de tais autores, criando
brechas e lacunas que se alastram para momentos e autores posteriores.
Escrito por Francisco Miguel de Moura, o livro Linguagem e Comunicação em O.
G. Rego de Carvalho, foi publicado no ano de 1972, um ano após a publicação da primeira
edição do livro Somos Todos Inocentes, do literato por ele analisado. O livro foi
considerado, inclusive por ele mesmo, como um texto de grande ousadia, mas que se
tornaria um livro de vanguarda, no que se refere à análise pormenorizada de um escritor
459
MOURA, Francisco Miguel de. A literatura piauiense segundo Francisco Miguel de Moura.
Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/notas-historiograficas/a-literatura-piauiense-segundo-
francisco-miguel-de-moura,2.html>. Acesso em: 19 fev. 2014.
229
específico. Ao destacar isso, ele está buscando se inscrever como pioneiro, cravando sua
atuação nas disputas de poder do universo literário. No âmbito da invenção da literatura em
esfera “piauiense”, é fundamental perceber como o crítico busca se afirmar como aquele
que detém o poder de se pronunciar sobre o literato. Ele diz que “O escritor unifica um
mundo extremamente variado, através de seus pensamentos, ideações e sentimentos”460 e o
livro intenta dar conta dessas dimensões da obra de O. G. Rego de Carvalho.
Trata-se, assim, de um livro que se pretende ser uma reflexão voltada
especificamente para os aspectos da linguagem, para além da estrutura, da forma e dos
conteúdos. Segundo ele, “era a crítica de época e impressionista”461. Nesse sentido,
Francisco Miguel de Moura aponta para uma nova tendência de crítica literária, dizendo
que “hoje está em voga o texto. Literatura é o texto e somente o texto”462. Sua preocupação
é a de pensar sobre o texto, ou os textos que povoam a obra do escritor cujo nome compõe
o título do livro. Dessa maneira, dimensões pessoais ou individuais do literato não são
diretamente contempladas, visto que a “linguagem e comunicação” são os pontos
nevrálgicos. Isso é o que já chama atenção Hindemburgo Dobal, em seus comentários
contidos nas orelhas do livro de Francisco Miguel de Moura. Em tais comentários, H.
Dobal ressalta a grandiosidade da obra do literato e da análise feita por sobre ele. H. Dobal
ressalta que
A ênfase dada a tais “bases sólidas” busca dirimir a aspereza com que muitas
interpretações buscavam associar as dimensões introspectivas e psicológicas dos
460
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 14.
461
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 15.
462
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 15.
463
DOBAL, H. Comentários na orelha do livro Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho,
de Francisco Miguel de Moura, 1972. No comentário, H. Dobal, então, endossa a proposta de Francisco
Miguel de Moura, que não se volta para o estudo do que se convenciona chamar de “vida” do escritor. O
caráter “desbravador” do texto é tomado como o ponto forte da análise, visto que daria sustentação, a partir
de então, para interpretações que tivessem bases teóricas. H. Dobal legitima o poder que Francisco Miguel de
Moura deteria, como aquele abriria caminho para outros intelectuais.
230
Respondendo ele mesmo a suas perguntas, crava a assertiva de que, fatalmente, tal
realidade teria de promover as angústias e demais problemas íntimos. Tais problemas
culminariam, assim, naquilo que ele chamou de a ruína da alma, com o desespero
desenfreado pela liberdade, mas que seria, em grande parte, vencida por um grande vazio.
Na parte inicial do livro, intitulado de Explicação Inicial, Francisco Miguel de
Moura fala de seus objetivos de atingir estudiosos, professores e alunos, interessados em
literatura “piauiense” e “brasileira”. Destaca que a intenção de analisar a obra do literato
não ficou restrita a nenhuma demarcação de escola ou método crítico-científico, dizendo
que “não elegemos essa ou aquela escola ou método crítico-científico (fenomenologia,
estruturalismo, new criticism, etc.), eis o que se poderá deduzir até mesmo de nossa
464
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 16.
465
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 16.
231
pequena bibliografia”466. A intenção de Francisco Miguel de Moura era tornar o seu livro
mais independente, ou não queria incorrer no risco de buscar filiações que acabassem por
classificar O. G. Rego de Carvalho em alguma escola? Vale lembrar que apenas um ano
separa a publicação do livro de Francisco Miguel de Moura e o último livro do escritor. A
análise de Somos Todos Inocentes (1971), como integrante de um conjunto da obra, era
recente e as repercussões poderiam ser, até certo ponto, negativas, caso houvesse tal
delimitação, o que poderia desagradar o próprio autor analisado por ele.
Na Primeira Parte do livro, Francisco Miguel de Moura destina espaço para
reflexões sobre as origens e fins do romance, bem como sobre a linguagem literária, com
seus símbolos, técnicas, as estórias e enredo467. Aborda, também, as aproximações entre
Literatura e História, tomando como ponto de reflexão o personagem do romance e o
personagem da história. Segundo ele, “o personagem do romance é muito mais real na
medida em que não é um tipo, um representante de uma classe” 468, o que caracterizaria o
sujeito histórico, que está condicionado pelo seu lugar social. Dessa maneira, o
personagem do romance “é ele mesmo e apresenta toda aquela singularidade que faz de
cada pessoa um mundo inimitável porque incompreensível”469. Essas assertivas devem ser
compreendidas em sua inserção no lugar socioinstitucional do crítico, com sua vinculação
com a literatura, que dispõe que o personagem do romance possui uma liberdade
transformadora que não é percebida, não no mesmo grau, no personagem histórico.
Ao localizar as características da obra de O. G. Rego de Carvalho, Francisco
Miguel de Moura não aprofunda a noção de que o real da ficção é uma (re) leitura do real
dos sujeitos históricos e que, em grande medida, só há compreensão do personagem do
romance porque há sua associação com os referentes da realidade dos sujeitos históricos,
do mundo exterior ao texto. Caso contrário, o próprio romance seria indecifrável e ilegível,
sendo que, tanto personagem do romance como personagem histórico, estão imersos em
discursos que (re) criam a própria realidade, pois partem de um agente produtor de
narrativa. Essa observação sobre o personagem é importante, pois, na discussão da
autobiografia, vai-se pensar os limites entre personagem e escritor. O personagem, ou
466
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 10.
467
Com tal intuito, Francisco Miguel de Moura parte da pergunta inicial: Que é um romance? A partir de tal
pergunta inicial, o crítico apresenta outros questionamentos: “Será que o leitor comum não sabe o que é um
romance? Poderá confundir com um conto ou com um poema?”.
468
MOURA, Francisco Miguel de. MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G.
Rego de Carvalho. Rio de Janeiro: Artenova, 1972, p. 14.
469
MOURA, Francisco Miguel de. Op. cit, p. 14.
232
melhor dizendo, o sujeito histórico não seria manifestado unicamente em suas ações
individuais, mas sim, nas inter-relações complexas, prolongadas, conflitantes e
contraditórias entre identidades sociais e pessoais. No caso do personagem do romance,
suas inter-relações estão circunscritas ao contato com outros personagens, que, em certos
romances, podem ser objetos, animais, espaços e o próprio pensamento, mas sempre estão
em relação com algo ou alguém, mesmo que sejam, a priori, fictícios. É pertinente
lembrar, portanto, do que lembra Paul Veyne470, quando afirma que o discurso histórico
produzido pelo historiador não é expressão direta daquilo que vivenciaram os personagens
reais, sendo uma espécie de narração, que, semelhante ao romance, organiza e simplifica
ações e acontecimentos. A “liberdade” dos personagens do romance não seguem modelos,
da mesma maneira que “os fatos que obedecem a um modelo não serão nunca os que
interessam ao historiador”471, e é nessa “desobediência” que história e ficção se aproximam
mais uma vez.
Muito embora diante de tal aproximação, não se possa pensar cegamente que
“escrever história é uma atividade intelectual”, sem levar em consideração os
condicionantes sociais, coletivos e, também, técnico-científicos, como se a escrita da
história fosse semelhante à consciência artística. Esses aspectos do livro de Francisco
Miguel de Moura são levantados, não com o intuito de realizar uma crítica ao crítico, ou
aos críticos, mas apresentar indícios, na sua escrita, que compõem sua análise acerca do
literato por ele discutido. As nuanças de sua análise são importantes para compreender os
jogos de verdade com os quais ele lida para interpretar a obra do literato.
Para ajudar em suas reflexões acerca dessa relação entre romance e história,
Francisco Miguel de Moura recorre a algumas conceituações e classificações feitas por
autores como E. M. Foster472, Mário de Andrade, Braga Montenegro473 e Massaud
Moisés474 acerca do conto, do poema e do romance. Retomando os argumentos de
Massaud Moisés, que fala que o romance possui a liberdade, a universalidade, o
compromisso e o entretenimento com os quatro aspectos característicos, Francisco Miguel
de Moura apresenta algumas reflexões. Para ele, o romance deve ser encarado, sim, como
470
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília: Editora da
UnB, 1998.
471
VEYNE, Paul. Op. cit, p. 189.
472
O livro ao qual se refere Francisco Miguel de Moura é FOSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto
Alegre: Globo, 1969.
473
O livro ao qual se refere Francisco Miguel de Moura é BRAGA MONTENEGRO, Joaquim. Uma
antologia do conto cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
474
O livro ao qual se refere Francisco Miguel de Moura é MOISÉS, Maussaud. A criação literária. 3. ed.
São Paulo: Melhoramentos, 1969.
233
um instrumento artístico de entretenimento, mas vai bem mais além disso, pois “o romance
é feito para entretenimento, mas esse entretenimento obedece a uma escala de valores, de
acordo com o público a que está destinado”. A liberdade do escritor é capaz de “deformar”
o mundo da exterioridade, criando um novo mundo, mantendo certo diálogo com a
realidade primeira que “o contém e que o modifica constantemente. A matéria do
romancista lhe inclui e inclui o mundo que o contém. Poderá deixar de ser um
compromissado?”475.
Pensar o romance é partir do pressuposto de pensar, também, o universo dos
leitores, visto que isso influi diretamente nas formas de leitura de cada romance ao longo
de temporalidades e espacialidades distintas, porque “o onde da leitura é mais importante
do que se poderia pensar, pois a colocação do leitor em seu ambiente pode dar sugestões
sobre a natureza de sua experiência”476. Nesse sentido, os leitores, pelo menos
inicialmente, da obra de O. G. Rego de Carvalho, eram do ambiente da intelectualidade,
das Academias e das universidades. Isso é importante, pois foi nesse universo que as
ranhuras se formaram e foi a esse público que sua literatura atingiu em primeiro momento,
sendo que o leitor comum só começou a ter contato com sua escrita anos mais tarde da
publicação de seus livros.
5. 3 As Ranhuras da Escrita
475
MOURA, Francisco Miguel de. Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho. Rio de
Janeiro: Artenova, 1972, p. 14.
476
DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: EDUNESP, 1992, p. 199-236.
477
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014, p. 37.
234
Ulisses entre o amor e a morte (1953). Ele destaca: “Escrevi Ulisses..., e não fui bem
sucedido na minha terra. Ulisses... elogiado por perto de cem escritores do sul do sul do
País”478.
Para reforçar sua indisposição com a amarga recepção de seu primeiro livro, o
escritor decide revelar, pela primeira vez, que Ulisses entre o amor e a morte (1953)
recebeu menção honrosa do Concurso “Fábio Prado de Contos”, no ano de 1954. Isso
seria, para ele, o suficiente para atestar o valor literário de seu livro. No mesmo instante em
que destaca tal menção honrosa, tentando manter sua postura de fuga de classificações, o
escritor diz:
Olhe só. E aqui vou abrir um parêntese para dizer que eu nunca
classifiquei os meus livros. Eu não disse que era um romance, nem conto,
nem novela. Eu boto o nome do título e o nome do autor. Eu deixo que o
leitor classifique.
“Ulisses...” é escrito em cinco partes separadas, que são lidas formando
uma novela, ou romance – como já foi chamado, um romance lírico -,
mas há quem diga que é um livro de contos. Então, isso não me deprime,
muito ao contrário, me exalta. É uma obra aberta, é uma obra dada a mais
de uma interpretação.479
478
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 48.
479
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 48-49.
480
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008,
p. 230.
235
Esse (res) sentimento do escritor, em relação à não aceitação inicial pela crítica de
seu livro de estreia, vincula-se, em certa medida, àquilo que se convencionou chamar de
leitor, como o detentor do significado do texto, do livro. Roger Chartier, questionando
sobre o conceito de leitor proposto por Roland Barthes, para quem o leitor é “aquele
alguém que mantém unidos em um campo todos os traços que constituem a obra
escrita”481, reforça a noção de que a mobilidade de interpretações faz parte da história da
cultura escrita.
Na história da cultura escrita, segundo Chartier, deve-se levar em consideração três
processos essenciais como objeto de tal história. O primeiro deles está ligado à pluralidade
das operações usadas para e na publicação de livros. Nesse processo, os autores “não
escrevem livros, nem sequer seus próprios livros. Livros, sejam manuscritos ou impressos,
sempre são resultado de múltiplas operações que supõem uma ampla variedade de
decisões, técnicas e habilidades”. Para exemplificar essa multiplicidade e essa variedade,
Chartier menciona o que ele chama de “antigo regime tipográfico”482, característico
sobretudo entre os séculos XV e XVIII. Até a impressão propriamente dita, “o que
acontecia aqui não era, portanto, apenas a produção de um livro, mas a produção do texto
em si em suas formas material e gráfica”483. Chartier ainda lembra que, no século XVII,
foram vários os tratados dedicados à produção tipográfica, demonstrando a divisão das
tarefas, “na qual autores não desempenhavam um papel principal”484.
O segundo processo está relacionado à mobilidade de interpretações, como já aqui
antecipado, chama a atenção para o universo das (re) leituras feitas dos livros e as possíveis
interpretações atribuídas a eles. Citando literalmente Borges, Roger Chartier lembra que
481
BARTHES, Roland apud CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo:
EDUNESP, 2014, p. 41.
482
De acordo com Roger Chartier (2014), “esse processo envolvia a produção de uma ‘cópia correta’ do
manuscrito do autor por um escriba profissional; o exame dessa cópia pelos censores; as escolhas feitas pelo
livreiro/editor quanto ao papel a ser usado, o formato escolhido e a tiragem; a organização do trabalho de
composição e impressão na gráfica; a preparação da cópia por um editor de cópia, então a composição do
texto pelos compositores; a leitura das provas por um revisor; e, finalmente, a impressão dos exemplares,
que, na época da prensa manual, permitia novas correções durante o processo de impressão.
483
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014, p. 39.
484
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 39.
485
BORGES, Jorge Luís apud CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo:
EDUNESP, 2014, p. 42.
236
Isso implica dizer que, nas análises da história da cultura escrita, no seio da própria
produção literária, é fundamental que se atente ao fato de que as obras literárias têm seus
significados variados conforme modificações na forma de ler. Tais modificações são
oriundas de fatores múltiplos, como o espaço, lugar, tempo, condições socioeconômicas e
de instrução, idade, gênero, ideologias, crenças. Nesse sentido, no âmbito das apropriações
do livro, os aspectos das categorias intelectuais e estéticas estão ligadas “aos gestos,
hábitos e convenções que regulam suas relações com a palavra escrita”486.
O terceiro processo, destacado por Chartier, remete às autoridades, ou seja, a
pessoas, grupos e/ou instituições “que pretendem impor seu controle ou seu monopólio
sobre a palavra escrita”487. Na insatisfação demonstrada por O. G. Rego de Carvalho,
acerca da recepção de seu primeiro livro em Teresina, encontram-se traços das disputas de
poder que brotam dessas autoridades. Ele põe em confronto as autoridades dos “escritores
do sul” e as autoridades dos “críticos de Teresina”. Esse conflito de autoridades remonta,
também, aos impérios do cânone.
Nessa disputa de poder, o escritor afirma que a má recepção de seu livro no
território teresinense teria se dado em função de seu desentendimento com membros da
Faculdade de Filosofia, que estava sendo criada naquele momento. Sobre tal, ele enfatiza:
486
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014, p. 42.
487
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 42.
488
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 49.
489
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 50.
237
O próprio escritor esclarece que a divergência foi o suficiente para que os professores da
Faculdade começassem a fazer críticas negativas ao seu livro. Ele declara que aqueles
trinta e quatro professores passaram a criticar seu livro, “a mostrar erros de português que
não tinha, a fazer crítica de toda natureza”490. O escritor diz, então, que não se abateu, mas
que ficou profundamente magoado, assegurando que
Viaja para o Rio de Janeiro no ano de 1957. Tentando responder, em parte sua
própria pergunta, o escritor admite, então, que resolveu “escrever um romance para agradar
o leitor piauiense”492. Nasceria, então, o livro Somos Todos Inocentes (1971), que começou
a ser escrito em 1958, antes mesmo de Rio Subterrâneo (1967). Seria um romance para
tentar sanar os ruídos causados pelo seu livro de estreia. Era uma tentativa de ganhar o
reconhecimento em sua terra. Era o propósito de alcançar as “autoridades” que pudessem
dar o aval do valor de sua produção literária. A busca desse reconhecimento teria lhe
causado certo descontentamento sobre sua própria produção, como ele mesmo lembra:
“Foi o meu erro, meu grande erro, de que me penitencio. Então, eu escrevi “Somos Todos
Inocentes”, um romance de 235 páginas que eu não estou mais editando, pelo menos não
está nos meus planos reeditá-lo”. Até 1985, Somos Todos Inocentes (1971) estava em sua
terceira edição, quatro antes da publicação da primeira edição de Como e por que me fiz
escritor.
Vale chamar a atenção para o fato de que, no seio desse processo de esquecimento e
apagamento, na cronologia, chamada de “resumo biográfico”, elaborada por Divaneide
Carvalho, esposa do escritor, não consta a data da segunda edição de Somos Todos
Inocentes. Na busca das edições desse livro, também não foi possível encontrar tal edição.
Mencionar isso se dá somente pelo intuito de demonstrar que, como registro, esse livro está
490
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994.
Op. Cit, p. 50.
491
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. Cit, p. 50.
492
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. Cit, p. 50.
238
adormecido no esquecimento. Está apagado! Tal esquecimento pode estar ligado ao fato de
que o escritor estaria, em boa medida, arrependido de ter escrito aquele livro.
Nesse sentido, Somos Todos Inocentes (1971) surgiu como fruto dessas ranhuras da
escrita, da mobilidade de interpretações e, em grande medida, das disputas de poder das
autoridades, do funcionamento do próprio campo literário. O escritor assevera que
493
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 51.
494
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014, p. 42.
239
Ele toma a escrita como o poder que lhe convém, como forma de resposta ao seu
descontentamento, ao seu repúdio à negatividade da crítica ao seu primeiro livro. Munido
de ressentimento, o escritor confessa:
495
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 51-52.
496
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: EDUNESP, 2014.
497
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 14.
240
Após dedicar algum espaço para expor esse seu descontentamento em relação à
recepção de seu primeiro livro, o escritor abre um longo parênteses para falar um pouco da
narrativa e da estrutura de seus livros. Vale lembrar que, em alguns momentos do livro isso
é feito, pois se trata de uma adaptação feita de uma palestra realizada para estudantes e
professores. Para reforçar a ideia que norteia a narrativa de Somos Todos Inocentes (1971),
com o intuito de não deixar dúvidas sobre o título, diz que
A cada passo, nós estamos nos perdoando dos nossos erros. Você já
encontrou alguém que dissesse: “Eu sou culpado”? Vá ao tribunal do júri
e esteja diante de um criminoso – criminoso não tem consciência moral -,
o criminoso diz: “Eu matei aquele homem e o mataria dez, cem vezes, se
ele ressuscitasse. Ele é o culpado, aquele é um bandido, um bandido não
poderia viver”. Criminoso diz isso.
Ninguém quer ser culpado. Geralmente estamos atirando sobre os outros
as culpas dos nossos erros e dos nossos fracassos.498
498
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 52.
241
muito tempo, teve sua obra associada a sua vida, a sua trajetória pessoal, o que, de certa
forma, contribuiu para os conflitos de interpretação. Trajetória social e trajetória pessoal se
confundiam de tal forma que as dimensões (auto) biográficas se constituíram, também,
como motivo de discordância entre o autor e as leituras feitas de seus livros.
Os conflitos de recepção e de interpretações do livro de estreia do escritor, bem
como de seus posicionamentos acerca da “literatura piauiense”, devem ser entendidas no
interior de tais lutas. Mesmo com especificidades, o campo se trata de um microcosmo
incluído no macrocosmo, constituído pelo espaço social global. Ao ter afirmado que a
“literatura piauiense” não existia, o escritor contrariava, em grande medida, uma
característica do campo: mesmo no seio das lutas entre os agentes, geralmente eles têm o
mesmo interesse de que o campo exista. Assim, eles mantêm uma “cumplicidade objetiva”
que vai além das disputas das posições.
Estaria o escritor “negando” a existência dessa literatura ou tentando por em
suspeição as regras que são inerentes ao campo? Consciente ou não, as ranhuras
aconteceram e puseram em destaque as constituições do cânone. Níveis de consciência e de
inconsciência se intercalam, pois o agente não estaria o tempo todo “pensando” na sua
atuação dentro do campo, mas não se posta alheio ou indiferente a tudo o que acontece. A
cada campo corresponde um habitus próprio e específico. Os estranhamentos do escritor se
ligam, talvez, ao fato da sua não incorporação inicial de tal habitus. Somente aqueles que
conseguem incorporar o habitus próprio do campo é que conseguem entrar no jogo das
lutas e das posições. Mais que isso, ao incorporar o habitus, o agente tem condições de
admitir a existência desse jogo e de acreditar na sua importância para a constituição do
campo.
Ao escrever um livro para “agradar o leitor piauiense”, o escritor já demonstrava
certa consciência da importância desse habitus no jogo do campo. Foi sua estratégia para
lutar por um espaço de maior aceitação, de mudança de sua posição. Como se trata de um
jogo, o próprio escritor chega a se lamentar de ter escrito Somos Todos Inocentes (1971)
para agradar um público leitor específico, dizendo ele: “foi o meu erro, meu grande erro,
de que me penitencio”499. Esse ato de se penitenciar demonstra que, no jogo das posições,
as leituras e as interpretações não são oriundas somente do outro. As referências são
múltiplas e o próprio olhar do escritor varia conforme as regras do campo e de seu
499
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 50.
243
entendimento das jogadas que faz ao longo do jogo. Dessa maneira, as estratégias dos
agentes só podem ser compreendidas se forem relacionadas com suas posições no campo.
Para “controlar” as interpretações sobre seu livro, talvez para evitar mais
desavenças com os críticos e leitores, o escritor, de maneira didática e resumida, faz
algumas considerações sobre Somos Todos Inocentes (1971):
Nesse romance, o escritor, como ele mesmo admitiu, buscou pincelar a “realidade
piauiense”, com ênfase naquilo que ele considerou como o retrato da vida e da cultura do
estado, ou pelo menos de sua cidade natal, Oeiras. As disputas familiares e os arranjos
políticos por meio de casamentos são o mote para que o escritor tocasse em assuntos que se
aproximassem, em certa medida, dos aspectos psicológicos e comportamentais. Nele, o
escritor abre um leque de possibilidades temáticas, como as relações de gênero, família e
poder.
500
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 53-54.
244
disputas do campo literário, o que está em jogo é qual interpretação se torna mais aceita
entre os membros de tal campo. Dessa maneira, pode-se falar nas apropriações que são
feitas de determinado texto, o que se relaciona, de certa forma, com as interpretações. A
noção de apropriação aqui pensada se aproxima daquela referendada por Roger Chartier,
ao asseverar que
[...] a apropriação tal como a entendemos visa a uma história social dos
usos e interpretações referidos a suas determinações fundamentais e
inscritos nas práticas específicas que os produzem. Dar, assim, atenção às
condições e aos processos que, concretamente, conduzem as operações de
construção do sentido (na relação de leitura e nos outros casos também), é
reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências
nem as ideias são desencarnadas e, contra os pensamentos do universal,
que as categorias dadas como invariantes, sejam filosóficas ou
fenomenológicas, estão por se construir na descontinuidade das trajetórias
históricas (1998: 74).501
501
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: EDUFRGS,
2002, p. 74.
245
figura do leitor era desconsiderada. Isso, em grande medida, limitava as reflexões acerta da
interpretação e das representações literárias.
É nesse cenário que surge a Estética da Recepção502, mais precisamente na segunda
metade do século XX, no período conhecido como pós-estruturalista, impulsionada pelo
objetivo explícito de trazer maior destaque para o leitor. Ela aparece, então, como uma
teoria subversiva, colocando em xeque as teorias tradicionais de exclusivismo do autor ou
da obra. Ela foi fundamental para o entendimento de que a Literatura deve ser
compreendida como um processo complexo e contínuo de produção, circulação, recepção,
consumo e apropriação. A literatura se dá na relação dinâmica de interação e diálogo entre
autor, obra e leitor, bem como dos sentidos resultantes de tal relação.
Essas tensões entre a interpretação e formalização se tornaram mais frequentes nas
análises de inúmeros estudiosos, realçando a problemática da linguagem como tópico
fundamental para o entendimento de muitas formas de (re) criar o mundo e as coisas.
Nessa esfera, os estudos linguísticos, por meio de trabalhos acerca do que se chamou de
estruturalismo e hermenêutica situaram a dimensão da linguagem em plano de relevância.
É nesse ambiente que surge, em grande parte, a obra de Michel Foucault, que se tornou um
dos pensadores que tomam a linguagem como objeto de estudo. Em linhas gerais, sua
reflexão filosófica tem interesse, também, pela literatura e compreende que a linguagem
sempre se manifesta para além da comum distinção entre o significante e o significado.
A leitura, de maneira geral, a partir de então, tem assumido um papel de maior
relevância não só para os estudos literários, mas para outras ciências, como a própria
História. A “história da leitura”, como já demonstraram Robert Darnton e Roger Chartier,
emerge como um leque de possibilidades de discussão de todo o processo que vai desde a
idealização até o consumo e apropriação de um livro.
No que tange às interpretações como apropriação, como a leitura que cria o objeto,
o próprio escritor apresenta o quanto há considerações diferentes da sua obra. Ele,
admitindo sua predileção pelo livro Rio Subterrâneo (1967), apresenta três avaliações
diferentes:
502
O surgimento da Estética da Recepção ocorre quando um grupo de estudiosos começa a publicar seus
trabalhos e teses, Poetik und Hermeneutik, a partir de 1964. Seus primeiros e principais entusiastas foram, na
Alemanha, Hans-Georg Gadamer, Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss.
246
503
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994,
p. 57.
504
JAUSS, Hans Robert. A Literatura como Provocação: História da Literatura como Provocação Literária.
São Paulo: Editora Ática, 1994.
505
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006, p.306.
506
KOSELLECK, Reinhart. Op. cit, p.306.
247
demonstrando que “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas
expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem”507. E as experiências são múltiplas,
pois são imersas e oriundas de lugares socioculturais também variados.
As expectativas que tanto o escritor quanto os seus leitores lançaram de seus livros
aponta para o aspecto de que ela “é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal,
também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o
não experimentado, para o que apenas pode ser previsto”. Esse “não experimentado” se
choca quando ocorre a experiência, o que ocasiona a emergência de conflitos e tensões,
visto que as expectativas podem ser quase infinitas. A expectativa de aceitação de um
livro, por parte de seu autor, vai de encontro à experiência das leituras que, por sua vez,
estavam imbuídas de expectativas diferentes daquele livro.
Contudo, os dois conceitos não pressupõem uma alternância entre eles, pois “não se
pode ter um sem o outro: não há expectativa sem experiência, não há experiência sem
expectativa”508. Reinhart Koselleck afirma, assim, que essas duas categorias fazem parte da
própria condição humana universal e que, sem as quais, não poderia haver história ou
mesmo ser imaginada.
Os críticos literários, de certa forma, são considerados, talvez por eles mesmos,
como membros de um grupo de intelectuais, responsáveis por pensar não só a escrita dos
seus pares, mas, de maneira mais ampla, de inferir sobre o próprio mundo. O crítico, visto
como intelectual, não necessariamente está atuando para combater as injustiças sociais,
507
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006, p.306.
508
KOSELLECK, Reinhart. Op. cit, 307.
509
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994, p. 35.
248
como no sentido defendido por Sartre. O crítico tenta falar das lacunas, ou até mesmo das
“injustiças” existentes nas interpretações e leituras das obras analisadas. Com essa
característica, o crítico acaba por apontar, de maneira nem sempre pacífica, o sentido
inacabado da obra de um escritor, de um intelectual. Gera-se, nesse sentido, uma esfera de
diálogos e (des) encontros no que ser refere à universalidade dos domínios dos intelectuais,
que estão nas academias, nos escritórios, nas bibliotecas, nas universidades e demais
instituições de pesquisas.
Há um certo silêncio, no que concerne às análises acerca da obra de O. G. Rego de
Carvalho, em relação a trabalhos e pesquisas produzidos nas universidades do estado do
Piauí. Não que os trabalhos fomentados nas universidades não existam, mas são pouco
conhecidos, pelo menos pelo público leitor além de tais instituições. Em geral, nos livros
de crítica sobre o literato oeirense, são feitas menções unicamente a dois trabalhos que
foram corporificados por meio de publicação em livro. Os livros são O Mundo Degradado
de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio Subterrâneo510, de Fabiano de Cristo Rios
Nogueira; e Rio Subterrâneo: estrutura e intertextualidade511, de Maria Gomes Figueiredo
dos Reis. Talvez esteja nessa dimensão, que instaura distanciamentos entre o texto
monográfico de dissertações e teses e a materialidade do livro, que tais trabalhos não são
tão divulgados, ficando restritos aos muros da universidade.
O livro de Fabiano Rios Nogueira é fruto de sua dissertação de Mestrado, defendida
em 1981, na Universidade Federal da Paraíba. O mestrado foi feito na Paraíba em razão de,
àquela época, a Universidade Federal do Piauí ainda não oferecer curso de pós-graduação
em nível de mestrado. Na apresentação do livro, feita por Neroaldo Pontes de Azevedo, é
destacado que, em termos de quantidade, tem se vivenciado um aumento significativo, pelo
menos no âmbito da crítica literária, de pesquisas voltadas para autores locais, sobretudo
na região nordeste do país. São pesquisas que valorizam os autores de cada estado ou
região, com o incentivo das universidades, por meio de seus programas de pós-graduação.
A quantidade e volume podem até ser significativos, mas o problema está na
divulgação e circulação de tais pesquisas, que, em certa medida, ficam amontoadas em
estantes e arquivos das instituições. Isso esbarra, dentre outros condicionantes, no fato de
que “editar um livro torna-se cada vez mais difícil. Divulgá-lo, fazendo-o lido e discutido,
510
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995.
511
REIS, Maria Gomes Figueiredo dos. Rio Subterrâneo: estrutura e intertextualidade. Teresina: EDUFPI,
1995.
249
é tarefa cada vez mais complicada”512. Neroaldo Azevedo destaca isso em meio à sua
convicção de que os escritores do norte e do nordeste do país sofrem uma restrição de
divulgação por razões históricas, sociais, econômicas e culturais, que imprimem no pensar
e agir do homem nordestino estereótipos fortemente cristalizados. É nesse tom, quase que
de desabafo e denúncia que Azevedo inicia sua apresentação do livro de Fabiano Rios
Nogueira. Isso, na análise de Azevedo, já seria o primeiro ponto positivo do livro, pois tem
como objeto a reflexão sobre o livro do literato piauiense, O. G. Rego de Carvalho, tendo
como foco principal de discussão o romance Rio Subterrâneo.
Mesmo admitindo que, ao discutir um autor piauiense o trabalho de Fabiano Rios
Nogueira é valioso, Noroaldo Azevedo faz questão de frisar que isso não é razão suficiente
para o mérito do livro. Além disso, ele ressalta que O. G. Rego de Carvalho não é tão
isolado ou esquecido pela crítica e editoras do sul, visto que
512
AZEVEDO, Noroaldo Pontes de. Apresentação. In: NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo
degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 09.
513
AZEVEDO, Noroaldo Pontes de. Op. cit, p. 09.
250
sentido, Noroaldo Azevedo aponta, como segundo ponto positivo do livro de Fabiano Rios
Nogueira, o fato de uma boa aplicação teórica para a leitura analítica do livro de O. G.
Rego de Carvalho. Partindo desse balizamento, Azevedo assevera que tal positividade está
na “escolha de uma perspectiva teórica que analise a arte como um processo ‘social e
comunicacional’, em que a obra aparece ‘não mais como o fruto excepcional de um gênio,
mas como produto das condições materiais e culturais de cada sociedade’”514. Assim,
insiste em dizer que o livro de Fabiano Nogueira demonstra que o livro Rio Subterrâneo
“faz uma denúncia do meio amesquinhado que marginaliza o homem, levando-o a uma
tensão com o mundo e, mais duramente, a uma tensão com o seu próprio eu”. Dessa
maneira, o livro de Fabiano Nogueira remete às localizações sociais, culturais e históricas
do livro do literato oeirense. Isso faz com o que o livro de O. G. Rego de Carvalho não seja
visto como uma expressão artística desvinculada do mundo real, dissociada da realidade na
qual a obra foi gestada e a qual se refere.
O desconforto que Noroaldo Azevedo mencionou, em relação a ainda haver uma
certa resistência editorial em divulgar trabalhos de e sobre autores e escritores nordestinos,
também é explicitado por Fabiano Rios Nogueira, que diz que o seu objetivo mais amplo é
“a divulgação e o conhecimento da literatura produzida no Estado do Piauí”515. Esse
discurso, de certa forma, pode ter suas razões e vem se repetindo na fala de muitos críticos,
literatos e estudiosos. Contudo, acaba por demonstrar um sentimento mesmo de
inferioridade, como se, para ter reconhecimento, os escritores e intelectuais nordestinos,
especificamente piauienses, precisassem da chancela das editoras e crítica do sul. É como
se a crítica partisse de uma perspectiva evolucionista, partindo de um ponto inicial a um
ponto auge, no qual o sul e sudeste seriam o supremo estágio de tal evolução. Ele deixa
claro que está tomando o literato oeirense como objeto em razão de todo o interesse que ele
“tem despertado junto à crítica literária brasileira”516.
Questiona-se, então, se a crítica nacional não estivesse se posicionando e se
interessado, os estudiosos locais não valorizariam o literato oeirense? Isso significa que,
enquanto a crítica brasileira não mencionar algo, outros inúmeros escritores piauienses
permanecerão na “incógnita”? A crítica literária piauiense, nesse sentido, estaria
circunscrita em uma perspectiva sempre de linearidade e subordinação, pois seria preciso
514
AZEVEDO, Noroaldo Pontes de. Apresentação. In: NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo
degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 10.
515
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 13.
516
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. Op. cit, p. 13.
251
partir da crítica nacional o interesse para que um escritor seja alçado aos patamares
nacionais. Uma menção sempre ao olhar da crítica nacional tem sido comum, uma espécie
de necessidade de respaldo, pois o que não fosse “carimbado” pela crítica nacional, não
seria digno de estudos mais aprofundados. Isso pode ser percebido mais uma vez no
decorrer da justificativa do trabalho de Fabiano Cristo Nogueira, quando diz:
517
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 14.
518
O livro ao qual se refere Fabiano Rios Nogueira é: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
252
distinto de sua escrita e por causa das contendas nas quais se envolveu com outros literatos
e instituições.
Enquanto Francisco Miguel de Moura fez questão de dizer que o seu livro
“Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho” não partia de nenhuma filiação
teórica específica, Fabiano Reis Nogueira enfatiza o universo da discussão teórica como
uma de suas principais virtudes de análise. Dessa maneira, ele assume recorrer às teorias de
Lucien Goldmann519, inspiradas em George Lukács520, destacando uma “investigação
sociológica aplicada à literatura em sua relação com a sociedade”521. Com tal norteamento
teórico, Fabiano Rios Nogueira, então, aponta que
519
Os livros consultados por Fabiano Rios Nogueira foram: GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na
sociedade moderna: para uma sociologia da totalidade. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1976; _____.
Crítica e dogmatismo na cultura moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973; ______. A sociologia do
romance. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
520
O livro consultado foi: LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
521
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 13.
522
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. Op. cit, p. 13.
523
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. Op. cit, p. 13.
253
Entretanto, Fabiano Rios Nogueira não aborda o fato de o próprio Lucínio sentir-se
encantado e fascinado com a “incomunicabilidade”, sobretudo a de Joana, em seu
enclausuramento. O mundo não é percebido o tempo todo por Lucínio como “um mundo
hostil”. É importante lembrar que a escrita literária, seja manifesta em romance, conto ou
poesia, está voltada, inicialmente, para a dimensão artística, para, depois, assumir seus
patamares ampliados de reflexão e observação do mundo social. Isso deve ser pensado para
não tornar a análise da obra de O. G. Rego de Carvalho refém de toda e qualquer análise,
como em busca de “sentidos” obscuros ou entranhados.
Outra perspectiva que está embutida na loucura não só de Lucínio, mas de outros
personagens criados por O. G. Rego de Carvalho, é a que se refere a uma noção que,
provavelmente, nem se veiculava naquele momento da concepção e publicação do livro: a
inclusão social. Ao dar espaço para personagens loucos ou com distúrbios e perturbações,
o literato piauiense aponta que, mesmo diante de condições vistas como inaceitáveis pela
sociedade, é possível um “louco” estudar, brincar, sonhar, namorar. Nesse sentido, Rio
Subterrâneo, bem como os outros livros, não apresenta os loucos fugindo do mundo, mas
sim, interagindo com ele.
A focalização da análise na dimensão da loucura é endossada por Fabiano Rios
Nogueira ao dizer que
524
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 58.
254
O interessante é que os aspectos elencados por Fabiano Rios Nogueira, a partir dos
comentários listados por ele na primeira parte do livro, são aspectos que permeiam todos
os livros do autor, variando, talvez, na intensidade de como aparecem na narrativa. Por que
priorizar somente um livro? Por que elencar somente um herói? E Ulisses, José (Ulisses
entre o Amor e a Morte), Celina, Joana (Somos Todos Inocentes)? São personagens que
aparecem, de maneira particular em cada livro, com momentos e intensidades diferentes de
distúrbios, de loucura. Além deles, há outros personagens que sofrem, indiretamente, com
a loucura de seus familiares também, como é o caso de Helena (Rio Subterrâneo), em
relação às suas tia e avó. Assim, o livro de Fabiano Rios Nogueira seria um estudo feito
que partiu somente do que a crítica nacional disse, como o próprio Fabiano Rios Nogueira
já apontou na justificativa da pesquisa?
Outro argumento apresentado por Fabiano Rios Nogueira, no intuito de justificar a
“incomunicabilidade” na qual Lucínio estaria imerso, refere-se à organização e
apresentação dos capítulos. Segundo ele,
525
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 14.
255
Talvez, fazendo uma associação muito rígida entre loucura e mundo, entre
indivíduo e sociedade, Fabiano Rios Nogueira tenha incorrido na busca da dicotomia entre
racional e irracional, para propor uma nova organização dos capítulos para a compreensão
do livro do literato oeirense. Se ele mesmo reconhece a “aparente dissociação das cenas”,
não há porque buscar uma sequência lógica. Ademais, a que lógica a organização sugerida
por Fabiano Rios Nogueira se refere? O livro não foi concebido pelo literato oeirense para
seguir uma linearidade, e sua compreensão deve ocorrer a partir da sequência na qual os
capítulos se apresentam originalmente. Aliás, essa proposta de uma “organização” do livro
é uma leitura desconsiderada por O. G. Rego de Carvalho. Contudo, essa sugestão de
Fabiano Rios Nogueira, como professor universitário, foi sendo acatada e reproduzida,
com algumas variações, pelos alunos e colegas do curso de letras, que, a pedido de escolas
privadas de Teresina, produziram apostilas com a sequência da leitura dos capítulos
indicada por Fabiano Rios Nogueira, inclusive sem ao menos citar quem propôs
incialmente esse esquema de leitura.
Essa “organização” contribuiu para desfigurar o livro Rio Subterrâneo, criando um
novo livro, que não se reconhece, pois “o livro perde toda a especificidade, tudo aquilo que
é dito nesse livro é ora excedente; tudo o que não é dito constitui uma lacuna, pela qual ele
me critica”527. A defesa que Michel Foucault faz, em relação aos seus livros, aplica-se,
resguardando as devidas proporções, à crítica feita por Fabiano Rios Nogueira ao livro de
O. G. Rego de Carvalho. Ao propor uma nova sequência na leitura de Rio Subterrâneo, o
crítico compromete a especificidade do livro, bem como sugere uma lacuna e sobre a qual
se esforça para saná-la, com o argumento de que a estrutura original promove a
“incomunicabilidade” entre o livro e o leitor, o que, de certa forma, insinua uma
fragilidade cognitiva e de percepção do leitor.
Vale ressaltar, como alerta Michel Foucault, que a crítica tem sim, a sua
importância para a dinâmica da produção e circulação do conhecimento, seja em qual for a
área de atuação. Ele adverte, também, que nem sempre a crítica é bem vista, pois há “vagos
526
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 52-53.
527
FOUCAULT, Michel. As monstruosidades da crítica. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Michel
Foucault: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009,
p. 321.
256
critérios morais para distinguir a crítica ‘honesta’ da crítica ‘desonesta’, a ‘boa’ crítica, que
respeita os textos dos quais fala, da ‘má’ crítica, que os deforma” 528. Não se pode esquecer
de que o romance, no caso específico de O. G. Rego de Carvalho, é uma constituição
narrativa, conforme as prerrogativas de Michel Foucault, que se dá como uma experiência
na qual um conjunto de ideias e palavras vai sendo manipulado, até formar um conjunto
materializado em livro. É nesse processo de manipulação de ideias e palavras que a crítica
se ancora para, também, realizar as suas manipulações.
Dessa maneira, conforme as leituras feitas sobre a obra de O. G. Rego de Carvalho,
surgirão, nos critérios do literato piauiense e dos próprios críticos, as críticas que serão
consideradas “boas” e aquelas que serão “más”. Isso, em geral, dá-se em função das
leituras autorizadas ou não autorizadas pelo autor. Em meio ao processo de recepção da
crítica, o que se deve considerar, então, é que “qualquer crítica aparecerá como um
conjunto de transformações – de transformações próximas ou longínquas, mas que têm
todas seus princípios e suas leis”529. Por tal razão, é que a própria crítica está fadada a
também ser alvo de crítica, seja de outros críticos, seja do autor ou artista a quem tal crítica
foi direcionada. Parece que o processo de crítica sobre a crítica só é amenizado quando as
transformações são as menos longínquas possíveis, gerando uma certa harmonia no campo
intelectual ao qual a crítica se vincula. No que se refere ao conjunto da obra de O. G. Rego
de Carvalho, a crítica, que não se centra somente em seus livros, mas, também se refere aos
seus posicionamentos como intelectual e sujeito, ora parece se acomodar, ora se insurge,
despertando, inclusive, críticas anteriores.
Tentando sintetizar o universo da crítica especializada, Fabiano Rios Nogueira
reserva a primeira parte de seu livro para apresentar trechos de comentários que alguns
escritores e críticos fizeram sobre o livro Rio Subterrâneo. Intitula esse “capítulo” de
Fortuna Crítica de Rio Subterrâneo, advertindo que fará “apenas uma apresentação
sucinta, na ordem cronológica, das referências feitas a Rio Subterrâneo, sem a pretensão de
mostrá-las na sua totalidade”530. Essa expressão “fortuna crítica” é utilizada, também, por
Kenard Kruel, em livro que ele organiza. Da mesma maneira, Kenard Kruel dedica um
capítulo para agrupar somente os comentários da crítica literária, mas com a ampliação dos
comentários de diversos críticos para todas as obras e sobre a vida e carreira de O. G. Rego
528
FOUCAULT, Michel. As monstruosidades da crítica. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Michel
Foucault: Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009,
p. 316.
529
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 316.
530
NOGUEIRA, Fabiano de Cristo Rios. O mundo degradado de Lucínio: a incomunicabilidade em Rio
Subterrâneo. 2. ed. Teresina: UDUFPI, 1995, p. 19.
257
de Carvalho. Além disso, são colocados, na íntegra, todos os artigos publicados em jornais
e revistas e não somente trechos, como o fez Fabiano Rios Nogueira.
De maneira semelhante, Francisco Miguel de Moura, em Linguagem e
comunicação em O. G. Rego de Carvalho, também reserva um espaço de seu livro para os
comentários feitos à obra de O. G. Rego de Carvalho. Nessa parte de seu livro, intitulada
de Apêndice, crítica, estão artigos e trechos de comentários531, retirados de livros, jornais e
revistas, com alguns comentários sem nenhuma referência de onde foram retirados. Aliás,
foi Francisco Miguel de Moura quem “inaugurou” esse tipo de seção de livro destinada aos
comentários sobre a obra de O. G. Rego de Carvalho. Francisco Miguel de Moura fez uma
espécie de tradição, pela qual os livros que comentassem a obra de um autor comentado
tivessem de ter um respaldo a mais, que complementassem as análises propostas pelos
críticos. O interessante nessa organização que, tanto Francisco Miguel de Moura, quanto os
demais fazem em relação aos comentários listados em seus livros, é que eles aparecem em
seus livros mais como listas que como documentos para análise. Talvez, no livro de
Fabiano Rios Nogueira, a listagem esteja mais integrada ao texto, pois ele constrói, como
já foi dito, argumentos amalgamados aos trechos dos autores citados.
De qualquer maneira, essa postura de listar, ou no início, como faz Fabiano Rios
Nogueira, ou no final, como fazem Francisco Miguel de Moura e Kenard Kruel, dão um
significado à tal lista. Dessa maneira, tal lista “[...] é também um material que tem sido
acumulado e conservado, contribuindo com outros acervos, para a formação de
arquivos”532. Mais que acumular ou formar arquivo, essas listas são utilizadas, até certo
ponto, como elementos que agregam valor e solidez aos livros nos quais estão imersos.
Torna-se, dessa forma, uma disputa simbólica, pois os livros que mais apresentarem
comentários de diferentes autores sobre a obra de O. G. Rego de Carvalho mais serão
vistos, a priori, como os mais aprofundados, pelo menos no sentido do volume de fontes
apresentadas. Isso é facilmente percebido quando é feita a contagem dos autores listados
em cada livro de análise. No livro de Francisco Miguel de Moura, são listados apenas seis
autores; no livro de Fabiano Rios Nogueira são listados vinte e dois autores, dentre os
quais Francisco Miguel de Moura; no livro de Kenard Kruel são listados mais de cinquenta
comentaristas, dentre os quais figuram alguns artigos de Francisco Miguel de Moura, além
531
Os autores cujos comentários foram selecionados e agrupados no livro de Francisco Miguel de Moura
foram: José Aderaldo Castelo, Esdras do Nascimento, David Lord, Mário da Silva Brito, José Expedito Rego
e Homero Silveira.
532
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2011(Coleção História&Historiografia), p. 52.
258
533
Os críticos citados por Fabiano Rios Nogueira são: Otávio de Faria, Sebastião G. Assunção, Laís Corrêa
de Araújo, Vidal de Freitas, Fábio Lucas, Hélio Pólvora, Pompílio Santos, J. Santos Stockler, David Lord,
Luís Paula Freitas, Homero Silveira, José Expedito Rêgo, Francisco Miguel de Moura, A. Tito Filho,
Alcântara Silveira, Fabrício de Arêa Leão, Meneses de Morais, Herculano Moraes, José Afrânio Moreira
Duarte, Osman Lins, Cineas Santos e João Pinto.
534
O livro mencionado por Fabiano Rios Nogueira é: LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
259
O comentário feito sobre o livro é feito, por Kenard Kruel, em tom de curiosidade e
não de análise crítico-literária, aliás, como todo o restante do livro. Já a matéria do jornal
demonstra a necessidade que se tem, por parte do imaginário dos meios de comunicação
piauiense, de conseguir símbolos para a afirmação da identidade piauiense. Para isso, o
artigo do jornal encerra a notícia destacando que a novela é uma novela da rede Globo,
vista, naquele momento, como a maior emissora de televisão que chegava à capital
piauiense. Ao final do livro organizado por Kenard Kruel, há uma seção intitulada de O. G.
Rego de Carvalho (Resumo Biográfico), que, em nota de rodapé, está explicado que foi
elaborado pela professora Divaneide Maria Oliveira de Carvalho, esposa do literato
oeirense.
Contudo, nas últimas edições dos livros de O. G. Rego de Carvalho, que são
revisados e editados pela própria Divaneide Maria Oliveira de Carvalho, essa informação
não mais consta no resumo biográfico por ela elaborado. Algumas diferenças sutis se
encontram, por exemplo, no resumo biográfico do livro organizado por Kenard Kruel, de
2007, em relação à décima edição de Rio Subterrâneo, de 2009. Por exemplo, no livro de
Kenard Kruel não aparece a informação de que, em 1964, a escrita do livro Rio
Subterrâneo é concluída. Por outro lado, no livro de Kruel, há a informação de que, em
1970, “o jornal O Dia, de Teresina, publica alguns capítulos de Somos Todos Inocentes,
com o título de No Fundo do Poço”536. Na cronologia referente ao ano de 1972, na edição
de Rio Subterrâneo, de 2009, não consta mais a informação de que, no dia “23 de
fevereiro, o governador Alberto Silva, a pedido do escritor, muda o nome de Colônia de
535
KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 69.
536
KRUEL, Kenard. Op. cit, p. 345.
260
Psicopatas, dado ao Hospital de Doenças Mentais, para Hospital Areolino de Abreu, como
ainda hoje é conhecido”537. Essas duas últimas omissões – sobre o título No Fundo do
Poço e sobre a mudança de nome da Colônia de Psicopatas –, retiradas da edição de 2009,
talvez façam parte da tentativa de dissociar, o máximo possível, a escrita de O. G. Rego de
Carvalho com a sua condição de saúde mental.
A supressão de informações continua com outros detalhes, pois na edição de 2009
não consta a informação de que, em maio de 1979, “A novela Amarga Solidão é publicada
como encarte da revista Cirandinha, número 4, editada por Francisco Miguel de Moura”538.
Em seguida, referente ao ano de 1988, é retirada a informação de que “A Revista da
Academia Piauiense de Letras publica, nas páginas 70 a 72, As Teses Universitárias e o
Leito de Procusto, de O. G. Rego de Carvalho. O mesmo texto, é publicado, também, pela
editora Corisco”539. Essa informação, provavelmente, foi retirada pela polêmica que o texto
gerou, ao criticar o livro Rio Subterrâneo: estrutura e intertextualidade, de Maria Gomes
Figueiredo dos Reis. Em seguida, referente ao mês de novembro do mesmo ano, não está
dito, na edição de 2009, que O. G. Rego de Carvalho “Participa do II Seminário de Autores
Piauienses, realizado no Auditório da Secretaria da Cultura, Desportos e Turismo,
discorrendo sobre o tema Como e Por Que me Fiz Escritor”540. Em tal seminário, O. G.
Rego de Carvalho profere a palestra que, um ano depois, seria transformada na primeira
edição de livro que tem o mesmo título do tema da palestra.
Outro aspecto importante a ser mencionado acerca da manchete destacada, é que,
mesmo sendo um trabalho de pós-graduação, o livro de Francisco Miguel de Moura não
tem sido visto como resultado ou ligado a instituições de ensino. Em parte, isso se explica
pela continuidade da atuação do autor como crítico literário, como escritor de poesias e
romances, bem como cronista em jornais, como o faz até hoje, no jornal O Dia.
Sobre o livro de Fabiano Rios Nogueira, Kenard Kruel reserva pouco espaço e
somente escreve que
537
KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 345.
538
KRUEL, Kenard. Op. cit, p. 69.
539
KRUEL, Kenard. Op. cit, p. 347.
540
KRUEL, Kenard. Op. cit, p. 347.
541
KRUEL, Kenard. Op. cit, p. 69.
261
Nessa menção ao livro de Fabiano Rios Nogueira não é feita nenhuma análise ou
discussão, sendo o livro, como em outros casos, somente listado. Nesse caso particular,
deu-se muito mais ênfase ao empenho de um personagem político, o secretário da cultura
naquele momento. Em postura igual à reservada ao livro de Fabiano Rios Nogueira,
apresenta o livro de Maria Figueiredo dos Reis dizendo que “A professora Maria Gomes
Figueiredo dos Reis publica Rio Subterrâneo: estrutura e intertextualidade (tese de livre
docência), em 1995, pela Editora da Universidade Federal do Piauí”542. Nesse comentário
há somente a ficha técnica do trabalho, também, sem nenhuma análise sobre o livro da
autora.
A importância dos livros dos dois autores é reduzida, sendo, de certa forma,
colocada em suspeição, pois, especialmente sobre o livro de Maria Gomes Figueiredo dos
Reis, Kenard Kruel coloca um comentário feito pelo próprio O. G. Rego de Carvalho,
dizendo que “a tese é falha porque coloca o autor no Leito de Procusto. Tem um modelo
pré-estabelecido, no qual quer enquadrar, a qualquer custo, a obra e não me parece que seja
essa a forma mais indicada para se analisar um texto literário”543. O. G. Rego de Carvalho,
por esse comentário, demonstra a “desleitura” que pretende fazer sobre as interpretações
feitas sobre sua obra, condicionando e direcionando as análises que a ela são feitas. O. G.
Rego de Carvalho, ao fazer analogia com o personagem da mitologia grega, indica que o
livro de Maria Figueiredo do Reis tentava localizar a obra do literato da primeira capital
piauiense em certos modelos, os quais ele não aceitava.
Essa postura do literato, em não aceitar classificações, ordenações ou rotulações,
assemelha-se às respostas dadas por Michel Foucault, em relação à sua filiação intelectual
ou teórica. Segundo o pensador francês, o enquadramento direto e irrestrito da obra de um
escritor, tomando por parâmetro maior a sua vida, é uma atividade típica de uma moral do
estado civil que tem a função de orientação para a elaboração dos documentos de
identidade de cada cidadão. Essa exigência de uma “identidade” não se aplicaria,
rigorosamente, à produção artístico-cultural e intelectual, pois, para Foucault, é importante
e fundamental que tal moral “nos deixe livres no momento em que se trata de escrever”544.
A “identidade”, então, seria algo que imobilizaria o ato de pensar, levando a uma prática de
aceitação e seguimento de uma ordem. A liberdade de escrever seria, ao contrário, a
manifestação do pensar em sua característica de passar, de questionar e de surpreender,
542
KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 69.
543
CARVALHO, O. G. Rego de. Apud KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina:
Zodíaco, 2007, p. 69.
544
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 28.
262
545
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, p. 119.
263
546
NUNES, M. Paulo. Apud KRUEL, Kenard. O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco,
2007, p. 69.
264
6 O ENQUADRAMENTO ESCOLAR
Pierre Bourdieu547
547
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 253.
265
550
NETO, Adrião. Dicionário biográfico: escritores piauienses de todos os tempos. 2. ed. Teresina: Halley,
1995, p. 315.
267
551
PIAUÍ. Lei Ordinária n. 5.464/2005. Lei de autoria do Deputado João de Deus.
268
Kenard Kruel fez esse comentário em seu blog na mesma ocasião na qual
divulgava um curso que iria ministrar em uma escola privada de Teresina, tratando sobre
literatura piauiense, com o título de “Literatura Piauiense: das origens aos nossos dias”.
Esse curso, mesmo com a perspectiva de ser possível ensinar a história “total” da literatura
piauiense seria fruto de seu descontentamento, também, à não aplicação e efetivação da lei.
Tal descontentamento é notado em outros intelectuais da região nordeste do país, basta
lembrar-se de Waldênio Porto, que, em 2005, como Presidente da Academia
Pernambucana de Letras, proferiu um discurso inflamado, reclamando da não valorização
dos livros e autores nordestinos por parte das editoras. O discurso se deu na ocasião da
abertura do I Congresso das Academias de Letras do Nordeste, em 14 de outubro de 2005.
Ele professou que
Waldênio Porto ainda chama a atenção para o fato do pouco diálogo entre as
Academias de cada estado e mais, do pouco contato que as Academias estabelecem com
cada município, especialmente as do interior. Segundo ele, é fulcral que se faça o
intercâmbio e a interiorização da cultura, como forma de “debatermos os problemas,
acharmos as soluções e partirmos, sertanejamente, para o trabalho”554. No intuito de
mostrar essa insatisfação, Waldênio Porto faz a enumeração de todos os aeroportos das
capitais dos estados nordestinos e diz que, infelizmente, não se encontra nas livrarias
552
KRUEL, Kenard. Literatura brasileira de expressão piauiense. Artigo postado em 24 de agosto de
2009. Disponível em: <http://krudu.blogspot.com.br/2009/08/literatura-brasileira-de-expressao.html> .
Acesso em 19 fev. 2014.
553
PORTO, Waldênio. Em defesa do livro, do escritor e da identidade cultural nordestina. In: Revista da
Academia Piauiense de Letras. Teresina, Ano LXXXVIII, n. 63, p. 129, dez. 2005.
554
PORTO, Waldênio. Op. cit, p. 129.
269
nenhum livro dos escritores de cada estado. No caso piauiense, Waldênio Porto destaca
que é inadmissível não encontrar livros de Celso Barros Coelho, Da Costa e Silva e M.
Paulo Nunes, que, pelos nomes citados, eram aqueles os quais Waldênio Porto mais
conhecia, demonstrando que outros nomes não figuravam entre os escritores “piauienses”
com os quais já tinha estabelecido contato de leitura.
A situação de indefinições, de incertezas e de conturbação da literatura e da crítica
literária piauienses atravessa o século XX e parece perdurar no século seguinte. Em 2007,
o professor e literato, Airton Sampaio, publicou artigos que chamam a atenção para a
dimensão lacunar e vacilante dos textos, livros e trabalhos que intentam realizar o ofício da
crítica literária piauiense. Em sua análise, há inadequações no tocante à utilização de certos
termos e categorias para a compreensão sobre o que seja Literatura Brasileira de Autores
Piauienses (LBAP):
555
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: uma definição necessária. Disponível
em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo do Piauí,
caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 25 mar 2007, p. 18.
556
NETO, Adrião. Literatura Piauiense para estudantes. 5. ed. Teresina: Edições Geração 70, 1999.
270
Ao citar Assis Brasil, em somente três livros, Airton Sampaio endossa sua
concepção de que, para ser considerado varguardista, o literato deve ser percebido pelo
conjunto dos textos que produziu. Dessa maneira, a vanguarda necessita ser pensada com
maiores critérios: atribui-se essa categoria somente a alguns livros, sem o risco de
generalização da obra de cada autor. Por esse primeiro exemplo da inoperância
metodológica para trabalhar com as categorias conceituas, Airton Sampaio assevera que
não basta elencar um bom número de dados referentes a uma lista de autores. Sua
convicção é de que sem maior rigor no aprofundamento de tais dados, os trabalhos de
crítica literária ainda sofrerão de discrepâncias que escamoteiam o próprio entendimento
da escrita literária “piauiense”.
Isso é fundamental para se perceber algumas das ranhuras entre O. G. Rego de
Carvalho e outros intelectuais, pois, para alguns, ele será inovador, de vanguarda. Para
outros, um escritor que não possui um estilo ou uma ligação narrativa com outros
escritores. Essas querelas ainda se manifestarão no que se refere à classificação do literato
como sendo moderno, romântico, regionalista, ligado a uma geração e a algum grupo que
557
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: uma definição necessária. Disponível
em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo do Piauí,
caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 25 mar 2007, p. 18.
271
possa enquadrá-lo em uma escola literária. Assim, como outro ponto de inadequação das
reflexões feitas sobre a literatura dita piauiense, Airton Sampaio também destaca o
descuido referente ao uso inadvertido dos termos “geração” e “grupo”. Ele acusa que
558
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: uma definição necessária. Disponível
em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo do Piauí,
caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 25 mar 2007, p. 18.
272
Rego de Carvalho, que tenta fugir à ordenação do tempo por meio de classificações, de
linearidades.
A crítica de Airton Sampaio, por vezes, é endereçada a casos bem específicos. É o
caso que ele cita, como exemplo, da grafia de alguns literatos piauienses. Ele diz que
559
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: uma definição necessária. Disponível
em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo do Piauí,
caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 25 mar 2007, p. 18.
273
560
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
274
Airton Sampaio assume um papel de “defesa” dessa literatura dita piauiense, mas
não só isso. Ele imprime certa defesa de seu lugar institucional. É uma disputa de poder,
pois, como professor do Curso de Licenciatura Plena em Letras, da Universidade Federal
do Piauí, ele se institui a responsabilidade e a autoridade de falar sobre a “literatura
piauiense”. Além disso, seus desentendimentos com a professora-pesquisadora Teresinha
Queiroz também são de ordem do conflito entre as áreas do conhecimento. Para ele, ao que
parece, o poder e a autoridade para falar sobre a “literatura piauiense” devem estar nas
mãos de um pesquisador-professor da área das Letras, não de uma da área de História.
Seria, talvez, uma tentativa de demarcar o campo como exclusividade de professores com
sua formação. A crítica literária “piauiense”, conforme Airton Sampaio, tem sido feito de
maneira dispersa, sem tanta militância, no sentido mesmo de produções embasadas em
princípios norteadores, bem como em metodologias melhor definidas. Isso denota aspectos
dos “usos” da literatura “piauiense”.562
561
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: a falta que uma crítica militante faz.
Disponível em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo
do Piauí, caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 29 maio 2007, p. 18.
562
Airton Sampaio intensifica ainda mais suas análises, afirmando que “No Piauí, a crítica literária sempre
foi avulsa e aperiódica, incontumaz e não militante. Para piorar a situação, se emprenhou de compadrio,
sendo raro o reconhecimento do valor estético da obra de um autor nos textos críticos de alguém a cuja
confraria, igreja ou panela o coitado não pertença, o que se dá, infelizmente, até nas formulações do melhor
crítico que hoje o Piauí possui, o ensaísta Ranieri Ribas, apesar da sua linguagem empolada e impenetrável.
Ademais, sublinhe-se que qualquer crítica, mesmo fundamentada e exclusivamente dirigida à obra, mas que
saliente elementos negativos, provoca no criticado uma reação costumeiramente irada, habitus que afasta da
militância desse gênero de prosa até os mais preparados para exercê-lo”. Conforme Airton Sampaio, a crítica
literária do Piauí tem se (des) organizado em torno de uma série de vícios, desde a dimensão mais material,
como é o caso das publicações, até os aspectos que envolvem as relações entre os sujeitos que atuam na
esfera da intelectualidade piauiense. Vale destacar o que pontua Airton Sampaio sobre o fato de que as
“leituras críticas” feitas sobre os textos de muitos escritores não são bem aceitas, sendo tomadas como algo
pessoal. Em razão disso, acontecem fatos bem extremos: ou a crítica geralmente fica na superficialidade, não
275
acentuando nenhuma incoerência da obra do escritor analisado; ou os críticos se calam, silenciam de tal
forma que a crítica vai se tornando cada vez mais rara. O próprio O. G. Rego de Carvalho já demonstrou,
como em suas atribulações e atritos com J. Miguel de Matos e Herculano Morais, que não admite que a
crítica extrapole o que ele pretende que seja interpretado.
563
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: a falta que uma crítica militante faz.
Disponível em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo
do Piauí, caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 29 maio 2007, p. 18.
564
O Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Piauí fez sua primeira seleção em 2004, para
duas linhas de pesquisa: Estudos de Linguagem e Estudos Literários. No Curso de Mestrado em Letras da
Universidade Federal do Piauí, desde 2004 são ofertadas uma média de 12 Disciplinas distribuídas entre as
duas linhas de pesquisa do Programa, sendo que nenhuma delas é diretamente voltada para Literatura ou
Crítica Literária Piauiense. As Disciplinas são de cunho teórico e de abordagem estritamente nacional, como
apontam as suas ementas e bibliografias. Em geral, as disciplinas da linha de pesquisa Estudos Literários
centram-se em discussões teóricas e escorço histórico internacional e nacional das concepções literárias.
276
565
SAMPAIO, Airton. Literatura Brasileira de Autores Piauienses: a falta que uma crítica militante faz.
Disponível em: <http://airtonsampaio.blogspot.com.br/>. Publicado originalmente no Jornal Diário do Povo
do Piauí, caderno Galeria, seção Cultura. Teresina, 29 maio 2007, p. 18 [Destaque do autor].
277
valorização fundamentada dos literatos piauienses. Nesse percurso, Airton Sampaio cita o
livro-ensaio do historiador João Kenedy Eugênio, versando sobre o poeta H. Dobal, como
sendo um bom trabalho de análise de crítica, dando real significação à obra do poeta.
Nesse sentido, Airton Sampaio, ao dizer que é preciso escrever “fortunas críticas”,
destaca que há poucos trabalhos nesse âmbito. Em geral são textos dispersos, antologias
fincadas somente em nomes e datas, sem a devida análise conceitual, teórica e
metodológica. Os trabalhos, segundo Airton Sampaio, ainda têm ficado na dimensão
individualista, realizando uma biografia dissociada da produção literária, do aspecto da
autoria. Ou seja, as “fortunas críticas” e as antologias são expressões dos processos de
canonização dos escritores.
Pierre Bourdieu566
566
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (Org.).
Práticas da leitura. Trad. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 251.
567
NETO, Adrião. Literatura Piauiense para estudantes. Teresina: EDUFPI, 1996, p. 05.
278
Ele ainda enfatiza que o objetivo do livro foi o de “resgatar a memória dos
principais escritores do passado, divulgar os do presente e reforçar a consciência de nossa
juventude estudiosa em relação às nossas raízes culturais, especialmente de nossa
literatura”569. O foco na “literatura piauiense” é destacado por Adrião Neto balizado na
obrigatoriedade nas escolas públicas e particulares, prescrita pela Constituição Estadual.
No sentido do Ensino, ou melhor dizendo, a história da literatura toma contornos de
cronologia, esquematização e didatização. Impulsionado por um certo ressentimento, o que
sinaliza, novamente, para a Literatura como ponto de relações e de disputa de poder,
Adrião Neto diz ter produzido o livro em razão de que
Não obstante a LP ser uma das mais ricas, é pouco difundida. Nem
mesmo professores de cursinhos e de instituições de ensino superior a
conhecem profundamente. A prova disso é que não há rodízio e apenas
meia dúzia de escritores são lembrados nos vestibulares, sendo que
praticamente os mesmo nomes são repetidos todos os anos.
De posse das provas de vestibulares dos últimos dez anos, realizados
pelas nossas instituições de ensino superior, com exceção do Cesvale, que
não as forneceu, pudemos constatar que nem todo ano elas prestigiam
nossa literatura. Constatamos também que quando alguma questão de LP
foge um pouco dos nomes que já tem cadeira cativa no certame, recai
sobre alguém de pouca bagagem, sem respaldo literário e até mesmo sem
obra individual publicada, ou seja, sobre alguém de pouca
expressividade.
Com este livro, abrimos um enorme leque de opções, colocando em
evidência alguns dos mais expressivos nomes de nossas letras, do
passado e do presente, que por uma questão de justiça também merecem
ser objetos de estudo.
Objetivando apenas dar mais uma contribuição ao estudo e à divulgação
de nossas letras, colocamos o presente trabalho à disposição dos
professores e alunos, especialmente dos cursinhos e dos departamentos de
letras das instituições de ensino superior, bem como, das comissões
encarregadas de elaborar as provas de vestibular para que conheçam um
pouco mais de nossa literatura e passem a contemplar outros escritores e
suas obras, inclusive citando-os (as) mais e com maior frequência em
exercícios, em provas simuladas e especialmente em questões de
vestibular.570
568
NETO, Adrião. Literatura Piauiense para estudantes. Teresina: EDUFPI, 1996, p. 13.
569
NETO, Adrião. Op. cit, p. 13.
570
NETO, Adrião. Op. cit, p. 13.
279
Adrião Neto salienta que somente Francisco Miguel de Moura afirma que a
“literatura piauiense” começou a existir apenas em 1870, com a edição do livro
“Impressões e Gemidos”, de José Coriolano de Sousa Lima. Todos os demais seguem o
marco de 1808. Os argumentos de Adrião Neto, para não aceitar tão cronologia, ainda são
marcados pela ideia de que a literatura produzida por Ovídio Saraiva não tem “nada a ver
com a literatura piauiense, vez que constitui-se em obra inteiramente distanciada das raízes
étnicas, políticas e culturais do autor”572. Aqui, novamente, é possível notar que as
571
NETO, Adrião. Literatura Piauiense para estudantes. Teresina: EDUFPI, 1996, p. 16.
572
NETO, Adrião. Op. cit, p. 17.
280
573
NETO, Adrião. Literatura Piauiense para estudantes. Teresina: EDUFPI, 1996, p. 99.
574
MONTEIRO, Ana Maria. A História Ensinada: algumas configurações do saber escolar. In.: História &
Ensino: Londrina, v. 9, out. 2003, p. 9-35.
281
QUESTIONÁRIO
01. Cite a obra que marcou profundamente O. G. Rego de Carvalho,
levando-o a intuir que seria, a partir daquela leitura, um escritor.
02. Para Tristão de Atayde só existem duas classes de escritores: os
ecumênicos e os telúricos. Em qual delas se enquadra o romancista
piauiense? Justifique sua resposta.
03. Destaque do livreto palavras usadas por O. G. provavelmente do
português lusitano e que incorporam ao linguajar dos oeirenses de sua
época.
04. “Eu sou escritor por derivação, porque queria realmente era ser...”,
diz o ficcionista piauiense num certo trecho do livreto. Marque a
alternativa que preencha corretamente esse desejo:
a) Economista
b) Jogador de futebol
c) Compositor
d) Pintor
e) Jornalista
05. Como define O. G. o “roman fleuve” no livreto, romance esse que
teve como um dos seus cultivadores o escritor norte-americano
Faulkner.
06. Obra de O. G. Rego de Carvalho ganhadora da menção honrosa no
concurso Fábio Prado de Contos, em 1954:
a) Rio Subterrâneo
b) Ulisses entre o Amor e a Morte
c) Somos Todos Inocentes
d) Amarga Solidão
e) Amor e Morte
07. Dentre os livros escritos por O. G., qual o que ele mais aprecia e
gosta? Por quê?
08. Único autor estrangeiro de quem O. G. leu toda a obra:
a) Faulkner
b) Eça de Queirós
c) Milan Kundera
d) Gustave Flaubert
e) Franz Kafka
09. O escritor piauiense estreou literariamente como:
a) Romancista
b) Poeta
c) Cronista
d) Dramaturgo
e) Contista
10. A obra de O. G. Rego de Carvalho pode ser enquadrada, segundo ele
mesmo, dentro da seguinte classificação literária:
a) Romance social de 30
b) Romântica
c) Naturalista
d) Espiritualista
282
e) Realismo simbólico
11. Livro menos ogerreguiano na obra de O. G. Rego de Carvalho?
Justifique.
12. Característica não encontrável na obra do romancista piauiense:
a) Linguagem bem trabalhada
b) Temática de amor e morte
c) Telurismo
d) Sentimentalismo piegas
e) n. d. a.
13. Na sua opinião, que lição de vida nos deixa O. G. nesse
depoimento?575
Essas questões aqui transcritas, ao que parece, foram elaboradas pelos professores
Wellington Soares, Benilde de Castro e Ozias Lima – professores da área de Letras que
trabalhavam na Educação Básica, mais especificamente em escolas e cursinhos que
preparavam para o ingresso na Universidade - que eram os idealizadores do Projeto
Lamparina, que publicou o livreto. O que se pode inferir, de maneira global, é que algumas
das perguntas, que parecem ser de cunho dissertativo, nada mais são que pretextos para a
busca de uma resposta pronta e direta, condicionada pelo próprio direcionamento da
resposta.
As questões, do mesmo encarte, coletadas a partir de edições de vestibulares,
contemplam os anos de 1979, de 1983 e de 1994, começando por esse último ano:
575
CARVALHO, O. G. Rego de. Encarte. Reproduzido em: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que
me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 01-03.
283
576
CARVALHO, O. G. Rego de. Encarte. Reproduzido em: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que
me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 03-05.
284
577
CARVALHO, O. G. Rego de. Encarte. Reproduzido em: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que
me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 06-08.
286
578
SOARES, Wellington et al. Apresentação. Reproduzido em: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por
que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 11.
579
As questões acrescentadas na terceira edição foram: “¿Has leído alguna obra literaria em español?
¿Cuál?”; “¿Te gusta ler? ¿Qué lees normalmente?”; “¿Qué prefieres: la narrativa o la poesia? ¿Por quê?”.
287
580
LIMA, Luiz Romero. Presença da Literatura Piauiense nos Vestibulares. 2. ed. 1ª. Reimpressão.
Teresina: Corisco, 2001, p. 11.
581
LIMA, Luiz Romero. Presença da Literatura Piauiense nos Vestibulares. Teresina: Corisco, 2000, p.
05.
582
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2003, p. 172.
289
As edições didáticas dão indícios do momento no qual elas são produzidas. São
textos fomentados a partir de determinadas circunstâncias. Os textos não podem ser
estudados aquém dos seus suportes e de seus contextos de leitura. Exemplo disso são as
próprias edições didáticas, que são elaboradas para atender a uma demanda, a um público,
a um objetivo. Os vestibulares e seus similares deram suportes ou justificativas para que
professores e estudiosos produzissem textos e livros que visassem a responder as
exigências daqueles testes. O livro Presença da Literatura Piauiense nos Vestibulares, de
Luiz Romero Lima, é um bom indício dessa relação.
Francisco Miguel de Moura, no ano de 2001, publicou o livro Literatura do Piauí,
fruto de convênio entre a Academia Piauiense de Letras e o Banco do Nordeste. Trata-se
de um livro que também pretende alcançar, principalmente, professores e estudantes. Ele
assim explica a proposta do livro:
Não obstante a teoria contida nas suas primeiras páginas, este é um livro
prático, mas ao mesmo tempo abrangente. É que pretende ser também
uma introdução ao estudo da literatura.
Portanto, professor e aluno têm em mãos, um compêndio para o estudo da
literatura do Piauí, com mostras de textos dos autores consagrados e as
consequentes situações do momento histórico-literário em que foram
produzidos.
Em suma, “Literatura do Piauí” não é apenas um livro que aborda a arte
literária por piauienses nascidos (ou adotados) aqui ou alhures, com base
na terra, nas lendas, nas estórias e coisas desta parte do Brasil,
especialmente no seu jeito de ser e dizer. Os textos foram escolhidos
segundo critérios há muito consolidados: o estético, o histórico e o
sociológico. Aliados, embora estabelecido o comando do primeiro, fez-se
o melhor esforço para apresentar algo novo dentro de um território tão
explorado.
Assim, em muitos casos “Literatura do Piauí” servirá como livro de
classe, noutros de pesquisa, e finalmente como livro de leitura pelos que
apreciam a literatura sem compromisso maior.
Foram alguns anos pensando, lendo, falando e escrevendo sobre o
assunto, para chegar a este resultado, com o qual se espera agradar não a
gregos e troianos, que é impossível, mas a uma boa parcela daqueles que
precisarem do que aqui está reunido em forma de teoria, história e arte.
Com as escusas pelas falhas que porventura venham a ser encontradas,
pois a perfeição é apenas um ideal humano, o Autor pede a colaboração
dos leitores e consulentes, para que no futuro passa saneá-las.583
583
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Teresina: Academia Piauiense de Letras/Banco do
Nordeste, 2001, p. 09-10.
290
584
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 70.
585
DALVI, Maria et al. A literatura no vestibular: traços de seu histórico e olhares recentes. Via Atlântica,
São Paulo, n. 28, p. 217, dez. 2015.
586
DALVI, Maria et al. Op.cit, p. 217.
292
Pela apresentação do livro, os autores deixam claro que o alvo da publicação são os
estudantes que prestariam o exame vestibular. Algo interessante a ser notado é que eles
recorrem às suas tradições como professores, para legitimar a validade da publicação.
587
OLIVEIRA, Édison de. Literatura Brasileira: vestibular de Direito e Letras. Porto Alegre: Ética
Impressora Ltda, 1964.
588
VASCONCELOS, Anazildo et al. Literatura no vestibular. Rio de Janeiro: Cia Brasileira de Artes
Gráficas, 1975.
589
VASCONCELOS, Anazildo et al. Op. cit, p. 05.
293
Assim, o livro assume o seu sentido de uma construção para além do texto em si, pois
retoma os demais suportes, discursos e práticas que o engendram.
Mencionar esses dois livros tem o propósito de endossar o argumento de que havia
produções com a leitura da literatura para os vestibulares, em momentos anteriores à
década de 1980, e em outras universidades e estados do país. A literatura aparecia, mas
sem a obrigatoriedade e a regularidade de uma lista prévia, que a Unicamp, especialmente,
inaugurava e que as outras universidades brasileiras começaram a seguir.
Segundo Claudete Amália Segalin de Andrade, a exigência da leitura de literatura,
em fins da década de 1980 e início da década de 1990, como conteúdo obrigatório, deu-se
“em função da baixa qualidade da expressão escrita verificada na produção das redações e
das questões dissertativas”590 em exames anteriores. Essa transformação, por meio da
obrigatoriedade da leitura da literatura é marcante nos exames vestibulares e no próprio
status da literatura, pois
590
ANDRADE, Claudete Amália Segalin de. Dez livros e uma vaga: a leitura da literatura no vestibular.
Florianópolis: EDUFSC, 2003, p. 34.
591
ANDRADE, Claudete Amália Segalin de. Op. cit, p. 14.
592
ANDRADE, Claudete Amália Segalin de. Op. cit, p. 52.
294
voltado apenas aos que visassem prestar exame para o ingresso no Ensino Superior, em
especial os estudantes de cursos com caráter propedêutico, haja vista a divisão existente à
época entre cursos secundaristas de caráter técnico e os de caráter científico, voltados para
o acesso à Universidade.
Uma questão a ser ressaltada, no que se refere à literatura exigida pelos
vestibulares, é a noção de formação de leitores. O leitor está, ou deveria estar, em
formação ao longo da Educação Básica e não pode ser “despertado” ou “formado” somente
no momento do exame de adesão ao Ensino Superior. Por esse diapasão, “o vestibular não
tem o papel de “formar leitores” nos mesmos parâmetros que o processo educacional na
Educação Básica”593. As indicações de uma lista de livros para os exames vestibulares
pode gerar diferentes entendimentos e recepções entre professor e aluno-candidato, ao
passo que
593
DALVI, Maria et al. A literatura no vestibular: traços de seu histórico e olhares recentes. Via Atlântica,
São Paulo, n. 28, p. 221, dez. 2015.
594
ANDRADE, Claudete Amália Segalin de. Dez livros e uma vaga: a leitura da literatura no vestibular.
Florianópolis: EDUFSC, 2003, p. 88.
595
LIMA, Luiz Romero et al. UESPI 2008/2009: Literatura, estudo das obras, resumo, análise de textos e
exercícios. 2. ed. Teresina: Halley, 2008, p. 05.
295
596
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil In: EVANGELISTA, Aracy Martins;
PAULINO, Graça; VERSIANE, Graça (Orgs.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil.
2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 22.
296
gênero para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças à sua
inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero”597.
Por esse viés, aceitando-se a proposta do livro, com suas sugestões de questões a
serem respondidas, bem como a organização e cronologia de autores e obras para tal fim,
deve-se pensar que o livro é mais de cunho didático e escolar que propriamente de reflexão
literária. Por outro lado, desconsiderando-se sugestões de questões e cronologias e
tomando somente os textos de literatos citados pela coletânea ou antologia, é possível
visualizar o texto literário. Isso demonstra que os sentidos do texto dependem dos
propósitos das leituras que são feitas sobre ele.
A didatização da literatura, promovida como uma mediação por meio do livro
didático ou manuais, tem sua importância na compreensão da história da leitura, visto que
esse livro,
[...] talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor.
Pode não ser tão sedutor quanto às publicações destinadas à infância
(livros e histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo
encontrado em todas as etapas da escolarização de um indivíduo: é
cartilha, quando da alfabetização; seleta, quando da aprendizagem da
tradição literária; manual, quando do conhecimento das ciências ou da
profissionalização adulta, na universidade.598
597
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 286.
598
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática,
2009, p. 121.
599
MENEZES, Juliana Alves Barbosa. Avaliação de literatura no vestibular. XI CONGRESSO
INTERNACIONAL DA ABRALIC. Simpósio: Tessituras, Interações, Convergências. Anais. USP – São
Paulo, 13 a 17 de julho de 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/anais/
cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/047/JULIANA_MENEZES.pdf>. Acesso em: 28 de dezembro de
2015.
297
É nesse jogo de quem entra e quem sai no espaço canônico que está uma das regras
que impulsionam o próprio campo literário. O cânone, assim, é constituído, mantido ou
renovado, conforme situações, momentos e interesses. Seria, então, uma questão de
reconhecimento? O. G. Rego de Carvalho, em entrevista no ano de 1986, se posicionou
sobre isso, destacando que
600
LIMA, Luiz Romero et al. UESPI 2008/2009: Literatura, estudo das obras, resumo, análise de textos e
exercícios. 2. ed. Teresina: Halley, 2008, p. 05.
601
FIDELIS, Ana Cláudia e Silva. Cânone Literário e Livro Didático: Mediações. 2005. Campinas. Anais...
Campinas: Unicamp, 2005. Disponível em: <http://www.alb.com.br/anais15/Sem12/anafidelis.htm> . Acesso
em 28 dez. 2015, p. 03.
298
602
CARVALHO, O. G. Rego de. Entrevista concedida ao Circuito Interno da Telepisa. In: KRUEL, Kenard.
O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica. Teresina: Zodíaco, 2007, p. 330.
603
CARVALHO, O. G. Rego de. Op. cit, p. 330.
604
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Algés – Portugal: Difel,
2002, p. 121.
299
605
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
606
LIMA, Luiz Romero et al. UFPI – 2006: Literatura. 2ª Etapa. 3. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2006, p.
01.
300
607
LIMA, Luiz Romero et al. UFPI – 2007: Literatura. 3ª Etapa. 3. ed. Teresina: Fundação Quixote, 2006, p.
01.
608
LIMA, Luiz Romero et al. Op. cit, p. 01.
609
BARROSO, Oswaldo; BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Letras ao sol: antologia da literatura cearense.
2. ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998, p. 09.
610
BARROSO, Oswaldo; BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Op. cit, p. 09.
301
Nos últimos trinta anos ocorreu no Piauí uma revolução literária sem
precedentes na história cultural do Estado.
Instituições tradicionais como a Academia Piauiense de Letras,
Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, Academia Parnaibana d
Letras, Academia de Letras do Vale do Longá, Academia de Letras da
Região de Picos, Instituto Histórico de Oeiras incorporaram-se ao esforço
desenvolvido, com excelentes resultados, pela Fundação Cultural
Monsenhor Chaves e Universidade Federal do Piauí, abrindo amplos
espaços às edições literárias de qualidade, melhorando significativamente
o acervo bibliográfico do Estado.
Houve, no período, a definição de uma tendência já observada no final
da década de 80 – o interesse pela pesquisa histórica e pela investigação
das raízes mais profundas de nossa cultura social.
Coube à Universidade, notadamente na reitoria do professor Charles
Carvalho Camilo da Silveira, o principal papel de estimular a pesquisa,
acionando a gráfica da Fufpi, sob o firme e criterioso comando dos
professores Fabiano de Cristo Rios Nogueira e Manuel Gualberto Soares,
à publicação de obras classificadas de fundamentais da nossa literatura.
Desse modo, o sério, intenso e dedicado trabalho dos professores do
Departamento de Letras do CCHL, completou o projeto, legando às
gerações reedições de obras valiosíssimas, como Poemas, de Ovídio
Saraiva de Carvalho, fundador da Literatura Piauiense, cuja primeira
edição saiu em 1808, em Coimbra (Portugal); Ataliba – o Vaqueiro, de
Francisco Gil Castelo Branco, considerado o primeiro romance piauiense
a tratar da temática da seca, e algumas teses sociais que consolidam o
esforço da Universidade em reconhecer e proclamar os valores mais
significativos de nossa cultura literária.611
611
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão história da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM, 1997,
p. 11-12.
302
612
D’ALGE, Carlos. Antologia Terra da Luz: prosadores. 2. ed. Fortaleza: Diário do Nordeste, 1998, p. 05.
613
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão história da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM, 1997,
p. 12.
303
614
SOARES, Wellington et al. Apresentação. Reproduzido em: CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por
que me fiz escritor. 2. ed. Teresina: Projeto Lamparina, 1994, p. 09.
615
SOARES, Wellington et al. Op. cit, p. 10.
616
SOARES, Wellington et al. Op. cit, p. 10.
617
SOARES, Wellington et al. Op. cit, p. 11.
618
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
304
É isso que faz com que a analogia entre as lutas intelectuais e as lutas
teológicas funcione tão bem. Se o modelo de luta entre o padre lector e o
profeta auctor, que evoquei no começo, se transpõe tão facilmente, é
porque, entre outras razões, uma das apostas da luta é a de se apropriar do
monopólio da leitura legítima: sou eu que lhes digo sou eu que lhes digo
o que está dito nos livros que merecem ser lidos em oposição aos livros
que não o merecem. Uma parte considerável da vida intelectual se esgota
nessas reversões da tábua de valores, hierarquia das coisas que devem ser
lidas. Em seguida, tendo definido o que merece ser lido, trata-se de impor
a boa leitura, isto é, o bom modo de apropriação.621
619
SILVA FILHO, Herculano Moraes. Visão história da Literatura Piauiense. 4. ed. Teresina: HM, 1997,
p. 13.
620
BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio
(Orgs.). Escritos de educação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p.77.
621
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (Org.).
Práticas da leitura. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 242-243.
305
A leitura, assim, se coaduna com as disputas pelo poder, sobretudo quando tal
leitura é “sugerida”, “direcionada” ou “obrigatória”. É um conflito entre leituras
autorizadas e leituras negadas, apontando para o aspecto de que
O poder sobre o livro é o poder sobre o poder que exerce o livro. (...)
Assim, penso que a luta pelos livros pode ser uma cartada extraordinária,
uma cartada que os próprios intelectuais subestimam. Eles estão de tal
maneira impregnados de uma crítica materialista de sua atividade que
terminam por subestimar o poder específico do intelectual, que é o poder
simbólico, o poder de agir sobre as estruturas mentais e, através da
estrutura mental, sobre as estruturas sociais. Os intelectuais esquecem-se
de que por meio de um livro se pode transformar a visão do mundo social
e, através da visão do mundo, transformar também o próprio mundo
social.622
622
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (Org.).
Práticas da leitura. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 243.
306
Todos esses conceitos, assim, são produtos da história literária, cuja razão
de ser originária foi justamente inventariar esses conjuntos, sistematizar
seus elementos, analisá-los, avaliá-los e disponibilizá-los em grandes
narrativas, materializadas em obras que em geral ostentam no título a
expressão História da literatura, especificada por adjetivo pátrio:
brasileira, portuguesa, francesa, etc.624
Nas edições didáticas e antologias até aqui analisadas, mostram uma maior
tendência de valorização dos fatos. Luiz Romero diz que “algumas informações históricas
são necessárias para que possamos encontrar substâncias literárias”628, mas não faz menção
a nenhuma abordagem conceitual ou teórica. Na segunda edição de Presença da Literatura
Piauiense nos Vestibulares (2001), Luiz Romero ainda reforça: “Dividimos este breve
estudo com base numa nova concepção cronológica capaz de nortear a literatura de
expressão local, até que se possa estabelecer outra periodização”629.
Francisco Miguel de Moura, por outro lado, menciona que “não obstante a teoria
contida nas suas primeiras páginas, este é um livro prático, mas ao mesmo tempo
abrangente”630. Por “prático”, o autor parece considerar os dados cronológicos e factuais.
As “páginas” teóricas do livro se distribuem nos tópicos O que é Literatura, Literatura
Piauiense e Literatura e História Literária. Encerradas tais páginas teóricas, as demais
seções do livro são de cunho pragmático, de conteúdo. A teoria e a prática, ou melhor, os
fatos, não mantiveram a convergência ao longo de todo o livro.
Tomando os exemplos dos livros de Luiz Romero e Francisco Miguel de Moura,
percebe-se que, ora se adentra diretamente no conteúdo, ora se faz um panorama teórico
para, somente após, apresentar o assunto. Por esse diapasão, nota-se que
627
SOUZA, Roberto Acízelo. História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É
Realizações, 2014, p. 93.
628
LIMA, Luiz Romero. Presença da Literatura Piauiense nos vestibulares. Teresina: Gráfica Ibiapina,
2000, p. 05.
629
LIMA, Luiz Romero. Presença da Literatura Piauiense nos vestibulares. 2. ed. Teresina: Gráfica
Ibiapina, 2001, p. 05.
630
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí: 1859-1999. Teresina: Academia Piauiense de
Letras/Banco do Nordeste, 2001, p. 09.
631
SOUZA, Roberto Acízelo. História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É
Realizações, 2014, p. 10.
308
632
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio
Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. 78p. Disponível em:
<https://ufprbrasileiraluis.files.wordpress.com/2015/02/jauss-arquivo-melhor.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2015.
633
SOUZA, Roberto Acízelo. História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É
Realizações, 2014, p. 33.
634
SOUZA, Roberto Acízelo. Op. cit, p. 33.
635
SOUZA, Roberto Acízelo. Op. cit, p. 33.
309
“científico” apresentam referentes que “limitariam” tais relatividades. A crítica feita por
Roberto Acízelo se resume, de certo modo, ao dizer que “como os estudos culturais não
negam a literatura, mas apenas a inscrevem, sem qualquer direito especial, numa trama de
produtos os mais variados, podemos tentar depreender o conceito que dela fazem”636.
Talvez, em meio a esse emaranhado de problemáticas, o maior desafio de se
prosseguir com os estudos de história da literatura, seja o de encontrar pontos de equilíbrio
entre as dimensões teórico-conceituais e os fatos. A narrativa dessa história literária, como
o conjunto daquilo que se escreve e debate sobre a literatura, passa, assim, por esse
desafio. O desafio de teorizar os conceitos ditos universalizantes, por meio de adjetivos
como o de “nacional”, sem perder de vista os referentes cronológicos e espaciais se faz
necessário para se apresentar a “literatura piauiense” como algo cujo processo é marcado
por ranhuras.
As discussões sobre a existência ou não de uma “literatura piauiense”, bem como
das propostas da obrigatoriedade de seu ensino nas escolas públicas e privadas, além do
papel de mediação dos vestibulares e das edições didáticas e antologias, coadunam-se com
a percepção de que a literatura produzida por O. G. Rego de Carvalho só pode ser
compreendida nas ranhuras intelectuais inerentes ao próprio campo. Campo este que,
inclusive, está marcado por subjetividades e objetividades que se destinam para as disputas
de poder, nas quais a própria literatura é esse poder, em que o que é visto como canônico
ou “inovador” é friccionado. E é nessa relação que se inscreve a produção deste literato e
pela qual ela precisa ser lida e compreendida.
636
SOUZA, Roberto Acízelo. História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas. São Paulo: É
Realizações, 2014, p. 36.
310
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
para ele, pudessem enquadrá-lo nos moldes das tendências literárias que reinavam no
Piauí, pelo menos até princípios das décadas de 1960 e 1970.
É mister mencionar que, ao estudar a produção literária de O. G. Rego de Carvalho,
fez-se não com intuito de realizar uma análise estritamente biográfica. Os trajos (auto)
biográficos abordados constituem o fio condutor para a compreensão do pensar e fazer
literatura no seio das questões de fronteira, identidades e relações de poder. O campo
literário, no que se chamaria de “literatura piauiense”, está imerso nos debates de cânone,
de produção, circulação e consumo da literatura, nas ranhuras dos espaços de atuação dos
diferentes agentes envolvidos no campo.
No sentido da biografia ou autobiografia, percebeu-se que há traços daquilo que o
literato admite serem “projeções” dele mesmo. No entanto, não aceita os comentários que
dizem que seus livros são estritamente biográficos. Aliás, os comentários de críticos e
professores muitas vezes foram tomados, pelo literato, como leituras equivocadas. Isso, em
geral, levou-o a se posicionar contrário, promovendo ainda mais ranhuras e contendas entre
ele e os demais intelectuais. Eram críticas que tiveram, em certa medida, as respostas do
literato, que, ou em jornais, em entrevistas ou em forma de publicação, refutaram as
análises acerca de sua obra. Exemplo emblemático disso é o livro “O Leito de Procusto”.
Sua estranheza e seus conflitos dar-se-iam, também, com as leituras que eram
produzidas no âmbito das universidades. Embora ele tenha produzido apenas um texto
direto mencionando o ambiente acadêmico, dá para perceber que a sua postura em relação
às interpretações que variavam daquilo que ele projetava, que ele punha em seu horizonte
de expectativa, era de descontentamento.
O “Leito de Procusto” foi a referência mitológica encontrada pelo escritor para
expressar sua negação às (re) leituras de seus livros. O escritor, então, amplia sua crítica
não só às interpretações, mas à instituição, generalizando que “as teses universitárias”
distorceriam os seus livros. Assim, o escritor deixa transparecer a vontade e o desejo de
que o leitor seja o reflexo interpretativo daquilo que ele “planejou” para o seu texto.
Esquece o escritor que, ao ser lido, nenhum texto e nenhum livro é mais “propriedade”
absoluta de seu criador original. Vale dizer que, talvez, toda leitura e interpretação é um
“leito”, no qual cada pessoa que interpreta precisa para deitar suas ideias e impressões.
Nesse sentido, o estudo que aqui se apresentou é um leito e não uma camisa de força.
Na relação entre biografia e autobiografia notaram-se, então, as diferentes formas
de apresentar e de exibir o literato. Desde as ilustrações de capa, as introduções,
comentários de orelhas de livro, quarta capa, resumos biográficos, resumo cronológico-
312
biográfico e charges é possível notar as múltiplas leituras e apropriações que são feitas
sobre o literato. Essas formas demonstram disputas narrativas, que intentam demarcar o
texto que melhor representaria o autor. São maneiras de exibir e apresentar que transitam
entre o destaque dos livros do autor e a sua trajetória de vida, no âmbito pessoal e
profissional.
Sua pluralidade na escrita guarda em seu bojo os embates no que se refere aos
universos das interpretações e das disputas de intelectualidade, o que impacta nos espaços
de atuação, produção e consumo do literato. Negar, em parte, que seus livros sejam
autobiográficos integra conflitos inerentes ao campo literário, pois a “poder da criação”
seria o termômetro da qualidade da obra de um escritor. Isso ainda remete à “angústia de
influência”, pois a influência ainda tem sido vista como uma unidade, uma forma definida
na relação entre antecessores e sucessores, como uma relação de subordinação. Ao rejeitar
diretamente filiações e influências, O. G. Rego de Carvalho demonstra o maior dilema de
tal angústia: não haver nada mais na arte (literatura) que pudesse ser produzido. Sua
“angústia” está, também, nas amarras e fugas em relação ao fazer literário tido como
“piauiense” ou como “regionalista”. Sua constituição como autor permeia os meandros das
noções de cânone, (re)criando e alargando as questões de fronteira, sobretudo no que se
refere ao espaço como divisão e demarcação, não só de territórios, mas de identidades. Seu
posicionamento em relação à literatura e a sua própria escrita se apresentam como
reflexões sobre o tempo, pois a linearidade não é o tipo de temporalidade que engendra a
narrativa de seus livros. O tempo em sua narrativa parece caótico, e talvez seja, mas é um
tempo livre.
A trajetória de O. G. Rego de Carvalho também abriu margem para a observação de
que a produção literária esteve ligada a atitudes e esforços praticamente individuais, no que
se refere à publicação de livros. Basta ver que, muitas das edições de seus livros, foram
publicadas por editoras nas quais ele atuou como diretor-editor, como o Caderno de Letras
Meridiano e a Editora Renoir. Esta última em parceria com sua esposa, Divaneide
Carvalho, que é quem tem publicado as mais recentes edições dos livros do literato. Outros
literatos seguiram percurso semelhante, publicando livros com recursos próprios, como é o
caso de Herculano Moraes, cujo “Visão Histórica da Literatura Piauiense” foi publicado
pela HM Editor, de sua propriedade. Outro exemplo são os livros publicados pela Editora
Zodíaco, de Kenard Kruel, que pulicou “O. G. Rego de Carvalho: fortuna crítica”. Outras
publicações, em geral, aconteciam em parcerias entre instituições, como a Universidade
Federal do Piauí, a Academia Piauiense de Letras e Bancos. Nesse caminho, editoras como
313
mais plausível afirmar que a sua obra se encontra nessas tensões conceituais que cercam o
próprio regionalismo. Seu aspecto regional está, principalmente, na literalização da região,
na qual o regional não se limite a retratar o mundo e a região como um reflexo fiel. O “ser
piauiense” e a “literatura piauiense” se enquadram nessa complexidade e nesse
deslizamento, pois é pertinente que se pensem as categorias local, regional, nacional e
universal como tendências dinâmicas e mutáveis.
Essas questões de fronteira são, ainda, observáveis nas edições didáticas que têm o
objetivo de alcançar, em geral, um público específico: estudantes e leitores que estão se
preparando para os exames vestibulares. Tais edições trazem, em sua forma de organização
e explicação, o uso de enquadramentos e categorias que usam os adjetivos pátrios e
derivados, para caracterizar obras e autores. Além disso, cronologias e periodizações
também são utilizadas para explanar os conteúdos de literatura. Notou-se, ainda, que
alguns professores, geralmente ligados à inciativa privada, assumiram o papel de
desbravadores desse tipo de produção textual sobre o ensino de literatura.
As edições didáticas e a própria didatização da literatura são indícios de que a
leitura é, também, um foco de litígio, pois são inúmeras intencionalidades que incidem
sobre o livro de um escritor, inclusive intenções e interpretações que poderiam se
distanciar dos horizontes de expectativa do próprio escritor que é apresentado em tais
edições. Isso indica que “a leitura também tem uma história (e uma sociologia) e que o
significado dos textos depende das capacidades, das convenções e das práticas de leitura”.
Essas práticas são “próprias das comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia,
seus diferentes públicos”637. Por essa sociologia dos textos busca-se as “modalidades de
publicação, disseminação e apropriação dos textos”638, inferindo sobre os mundos do texto,
do leitor e das comunidades de interpretação, que compõem o campo literário. A
problematização e análises das diferentes edições dos livros do literato, bem como das
edições didáticas sobre a literatura, foram fulcrais para “compreender como as
apropriações concretas e as invenções dos leitores (ou dos espectadores) dependem, em seu
conjunto, dos efeitos de sentido para os quais apontam as próprias obras”639, bem como
“dos usos e significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação e das
637
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 37.
638
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 37.
639
CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 43.
315
concorrências e expectativas que regem a relação que cada comunidade mantém com a
cultura escrita”640.
É no âmbito dessas tensões que o literato lança sua escrita e se posiciona em
relação à fluidez das questões fronteiriças. Mesmo que, em certos momentos, isso se
expresse de maneira inconsciente, o literato sabe que, para se sagrar como “autor” é
preciso por em suspeição o próprio status da literatura em sua produção e em sua
identidade. Há, nesse confronto intelectual, as disputas de poder no que concerne ao
cânone. A própria literatura, assim, é o poder em jogo, disputado como ferramenta de
demarcação dos espaços.
Assim, a escrita e a obra do literato não se restringiu às suas temáticas tidas como
“subterrâneas”, da subjetividade e da introspecção. Sua obra fez surgir, do subterrâneo do
campo literário, as ranhuras e querelas que constituem o próprio pensar e o fazer literatura.
Segundo Jacques Le Goff641, é possível, assim, estabelecer conexões entre os elementos
narrativos próprios aos relatos de vida e o mundo histórico no qual a própria escrita é
gerada.
Transitar pelas ranhuras e tensões da escrita de O. G. Rego de Carvalho é, entre
muitos aspectos, perceber que os homens e os seus produtos são criadores e produtos do
tempo, de suas temporalidades. A letra, no sentido mais amplo, está imersa no tempo e o
tempo se encarrega de transformar a letra, conforme suas demandas sociais, culturais,
institucionais. E é assim que a “letra” do literato se configura entre a ficção e a história da
literatura.
Muito ainda deve ser pesquisado sobre a sua trajetória e atuação literária. Não
somente por novas problematizações que possam surgir, mas, principalmente no que tange
às fontes documentais. Muitas edições de seus livros encontram-se esgotadas, com poucos
ou nenhum exemplar nas bibliotecas públicas do Piauí. Como foi demonstrado ao longo do
presente estudo, as edições apontam para as diferentes maneiras de se fazer, pensar e
consumir literatura. Elas sinalizam para as relações do escritor com o texto, editoras,
críticos e demais leitores. Muitos jornais e revistas, com textos e entrevistas concedidas
pelo literato, estão dispersos de tal maneira que, durante o período de feitura desse texto,
não foram encontrados. Não se pretende, ao dizer isso, buscar “segredos” e revelar algo
oculto. Não se intenta preencher lacunas, visto que o caráter lacunar da própria história,
como da própria história da literatura, é integrante dos seus limites epistemológicos. O que
640
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 43.
641
LE GOFF, Jacques. História e memória. 6. ed. Campinas, SP: EDUNICAMP, 2012.
316
642
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 51.
643
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit, p. 51.
317
próximo ao ‘outro’ através e no objeto carta, que tem marcas que materializam a
intimidade, e, com a mesma força, evidenciam a existência de normas e protocolos,
compartilhados e consolidados”644. Ao saber disso, só o fato de receber o retorno por meio
das cartas, dava a O. G. Rego de Carvalho a sensação legitimadora de “estar junto”
daqueles que eram, e ainda são, considerados cânones da literatura brasileira.
Infelizmente, muitas correspondências recebidas por O. G. Rego de Carvalho se
perderam no tempo e no espaço, sendo que algumas são mencionadas somente por meio de
alguns trechos que figuram em orelhas e quartas capas de algumas edições dos livros do
literato. Das poucas cartas que ainda se encontram sob os cuidados de sua esposa,
professora Divaneide Carvalho, restam as cartas enviadas por Jorge Amado (uma no ano
de 1971), por Carlos Drummond de Andrade (uma no ano de 1971) e por Érico Veríssimo
(uma no ano de 1973).
Diferentemente do que aconteceu com outros escritores brasileiros, que mantiveram
constante contato, por meio de trocas de correspondências e de livros com vários
intelectuais no e fora do Brasil, O. G. Rego de Carvalho, ao que os vestígios indicam,
inseriu-se nos círculos da intelectualidade brasileira enviando somente seus livros para
inúmeros escritores em todo o país. Enquanto muitos literatos brasileiros, desde o século
XIX, trocavam correspondência para debater assuntos de literatura, sociedade, história e
política, o literato encaminhou-se pelo viés do envio de seus livros. Somente novas
pesquisas poderão aprofundar tais conjecturas.
Tomando de empréstimo o título do Documentário dirigido pelo cineasta Douglas
Machado, sobre O. G. Rego de Carvalho, o que se fez ao longo do presente estudo se trata
de olhar, um horizonte sobre o literato, uma “Viagem Incompleta”. Viagem, porque foi
feito um passeio, uma jornada pela trajetória literária do literato, fazendo passagens
significativas pela própria literatura. Viagem que apresentou turbulências, visto que os
percursos pelos quais o literato passou foram marcados pelas disputas inerentes ao fazer
literário. Nesse campo, são diferentes agentes que atuam no sentido de manter ou
conseguir espaço. Incompleta no sentido de que outras questões, problematizações e
proposições podem, e devem, surgir a partir das reflexões apresentadas.
Lembrando do que diz Michel de Certeau645, sobre o aspecto de o historiador e o
literato apresentarem características comuns, o historiador descreve viagens imaginárias no
tempo, recorrendo de estratégias narrativas e metodológicas que propiciam a invenção e a
644
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 20.
645
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
318
646
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese estrutura do campo literário. 2. ed. São Paulo: Companhia
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