O Tempo, A Ficção e A Morte
O Tempo, A Ficção e A Morte
O Tempo, A Ficção e A Morte
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
FORTALEZA
2019
DANILO LINARD TEODOSEO
Fortaleza
2019
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Regional do Cariri – URCA
Bibliotecária: Ana Paula Saraiva CRB: 3/1000
_________________________________________________________________________________________________________________
Teodoseo, Danilo Linard.
T314t O tempo, a ficção e a morte: as escritas de Augusto dos Anjos (1901-1920)/ Danilo Linard Teodoseo. –
Fortaleza-CE, 2019
260p.
CDD: 981
_________________________________________________________________________________________________________________
DANILO LINARD TEODOSEO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Profa. Dra. Kênia Sousa Rios
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Antônio Luiz Macedo e Silva Filho
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Claudicélio Rodrigues da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Júlio Cezar Bastoni Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)
AGRADECIMENTOS
Não poderia deixar, antes de qualquer coisa, de agradecer à dois professores, Ivoney
Rodrigues e Nuno Gonçalves. Durante uma “Semana de História” realizada, em 2005, na
Universidade Regional do Cariri (URCA), ambos ministraram um minicurso no qual
discutiam as intercessões entre História e Literatura. Nessa ocasião, apresentaram fragmentos
de suas dissertações de mestrado, respectivamente, sobre os escritores Gustavo Barroso e José
Alcides Pinto. Lembro que, ao término do minicurso, já não tinha mais dúvidas sobre qual
campo de pesquisa escolher. Na época, pensar em cursar o Doutorado em História era,
simultaneamente, uma expectativa e uma incerteza. Fico mais do que grato por esse encontro.
Ao Professor Dr. Francisco Régis Lopes Ramos, agradeço pelo conhecimento
transmitido. Conhecimento este derivado tanto de sua experiência no ensino, como na
pesquisa, o que foi fundamental para incorporar, aprofundar e ampliar questões relacionadas
não somente ao presente trabalho, como também em relação aos fazeres historiográficos e ao
ofício do historiador. São ensinamentos que não poderei retribuir. Enquanto cursar o
Doutorado em História era ainda uma incerteza, tê-lo como Orientador era uma pretensão,
uma expectativa que, felizmente, se realizou.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela
concessão de bolsa de estudos, o que contribuiu para a execução deste trabalho.
Agradeço aos professores do Departamento de História da UFC, dentre eles, Meize
Regina de Lucena Lucas, Antônio Gilberto Ramos Nogueira, José Ernani Furtado Filho, Ana
Rita Fonteles Duarte e Kênia Sousa Rios, com os quais cursei disciplinas que contribuíram
para as discussões que seriam ampliadas e desenvolvidas ao longo de nossa pesquisa.
Agradeço, ainda, ao Kamillo, à Jormana, ao Ney, à Lucélia, ao Eduardo, ao
Wellington, ao Fábio, ao Jorge Luiz e ao José Maria, pela amizade e conhecimento
compartilhado, sobretudo, durante as disciplinas do curso.
Agradeço à Luciana, à Eliane e Nadja, sempre dispostas a ajudar e elucidar nossas
dúvidas na Secretaria do PPGH.
Agradeço, também, aos professores do Departamento de História da Universidade
Regional do Cariri (URCA), onde cursei minha graduação. Cada um compartilhou seu
conhecimento, contribuindo em minha caminhada. Em especial, agradeço ainda à Sandra
Batista e Sheva Alencar, que nos ajudavam na Secretaria do departamento de todas as formas
possíveis.
À Professora Sônia Meneses, agradeço em particular, não somente por orientar meus
primeiros trabalhos e pesquisas, mas, sobretudo, pelos contínuos ensinamentos e por ser um
exemplo como professora e pesquisadora. É um referencial constante, para a vida acadêmica,
profissional e pessoal.
Agradeço à Roberto Freire, Patrícia Alcântara, Thais Lucena e Cícero Varela, pela
amizade durante a graduação, pelas discussões políticas, teóricas e filosóficas, assim como,
por mostrar, já por essa época, os caminhos da pesquisa. Em particular, agradeço, ainda, à
Xico Fredson por sua valiosa amizade.
Agradeço ao amigo Benilson Ricarte, pelas conversas recorrentes, que vão do Xadrez
aos jogos de RPG, passando pela filosofia, política e música.
À Leydi Sousa, agradeço quando, junto com Lídia, saímos e ela nos brinda com suas
observações inteligentes, perspicazes e bem humoradas.
Agradeço à Marinila e Heitor, que nos mostram a inocência que só crianças podem ter.
À Lídia, agradeço por “tantas coisas” e “por tudo”. Agradeço pela presença, pelo
companheirismo, pela sensibilidade, pela paciência, pela atenção, pelo cuidado, pelo carinho,
pelo amor e pela amizade.
À minha tia Sônia Linard, também agradeço bastante, pelo incentivo e ajuda, sempre
fundamentais.
Agradeço, ainda, ao modo de dedicatória, à Vó Riza e Vó Agripina. Ambas estão
sempre ao nosso lado, em todos os momentos.
À minha irmã, Danielle Linard, agradeço pelo cuidado, por toda a ajuda, pela
presença, pela amizade, por dar risada de minhas besteiras e por nossas “conversas malucas”.
Aos meus pais, Aerton e Betânia, por fim, agradeço por tudo, pela segurança, pelo
cuidado, pelo amor, pelas advertências, pela educação e pelo exemplo.
“Considero a vida uma estalagem onde tenho
que me demorar até que chegue a diligência do
abismo. (...) Para todos nós descerá a noite e
chegará a diligência. (...) Se o que deixar
escrito no livro dos viajantes puder, relido um
dia por outros, entretê-los também na
passagem, será bem. Se não o lerem, nem se
entretiverem, será bem também.”
(Bernardo Soares/Fernando Pessoa)
RESUMO
The poetic activity of Augusto dos Anjos (1884-1914), born in Paraíba, is usually associated
to his single book, “Eu”, published in Rio de Janeiro, in 1912, as well to its second,
posthumous edition named “Eu (Poesias Completas)”, whose publishing occurred in Paraiba,
in 1920. Due to the title “Poet of Death”, given to him because of the prevailing theme in both
editions of his book of verses, some studies read his poetic images as if they are expressions
of his own personality, which would be as morbid as his literary representations. Other studies
focus more on stylistic traits and its belonging, or not, to schools or literary movements.
Others, search on social and economic aspects as the reason for the shape and content of his
verses. In our research, we seek to elaborate an analysis of his verses from a historiographical
perspective. Knowing that, our goal has been to investigate the historical meanings expressed
on the verses of Augusto dos Anjos and its articulations with the sensibilities derived from the
modern temporality. To do so, alongside the compilation of poetic texts present in both
editions of “Eu”, we also included the texts that remained published only in newspapers and
periodicals from Paraíba. Our research takes in his poetic activity began in 1901, until the
publishing of the second edition of his book, in 1920. Researching this period of time, we
were able to identify articulations of his verses with the historical meanings present in its time
layer. To approach the source and elaborate the intended discussions, we had as our main
methodology, theoretical and conceptual foundation some thoughts proposed by Reinhart
Koselleck (2006, 2014), Pierre Bourdieu (2010), Luiz Costa Lima (1980, 2012), Wolfgang
Iser (2002, 1999), Phillipe Lejeune (2008), Alain Corbin (1991), Phillpe Ariès (2012) and
Paul Ricoeur (2014). Through the dialogue with these and other authors, it was possible to
understand the relation between Augusto dos Anjos‟ poetry and the dynamic of the literary
field, the discussions about temporality and historical time; the possibilities of mimesis and
fiction; the experiences that comes with individualization; the history of death even as its
agents and spaces; as well as the relations between narrative and identity. Evaluating the
results we gathered, we considered that the poetic by Augusto dos Anjos, on the brink of
another centenary, continues fertile of problematization and historical meanings when it
dialogues with three dimensions: the Time, the Fiction and the Death.
1. INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 10
2. AS DINÂMICAS DO CAMPO LITERÁRIO: ROMANTISMO, MODERNIDADE E
CIENTIFICISMO................................................................................................................. 19
2.1 O Ingresso no Campo Literário e o Caleidoscópio do Romantismo...................................... 19
2.2 A Temporalidade Moderna..................................................................................................... 43
2.3 O Cientificismo e a Poesia Científica..................................................................................... 57
3. O GOSTO PELA NOITE E OS IDEAIS DE AMOR “ROMÂNTICO” E “CARNAL” 73
3.1 O Gosto pela Noite................................................................................................................. 73
3.2 As Noções de Amor “Romântico” e “Carnal”........................................................................ 84
3.3 A Carne, o Osso e o Pó: Três Instâncias Temporais............................................................... 94
4. A IDENTIDADE NARRATIVA, A ESCRITA DE SI E A ILUSÃO BIOGRÁFICA.... 103
4.1 Identidade Narrativa e Experiências de Individualização....................................................... 103
4.2 O “Engenho” de Augusto dos Anjos: Poesia, Escrita de Si e as Armadilhas da Ilusão
Biográfica................................................................................................................................. 120
5. A MORTE DO PAI E DO FILHO: FINGIMENTO, AUTORIA E NARRATIVA....... 141
5.1 Os Atos de Fingir.................................................................................................................... 141
5.2 A Questão do “autor” e a Identidade Narrativa...................................................................... 153
6. OS ESPAÇOS DA MORTE E SEUS AGENTES.............................................................. 163
6.1 As Necrópoles e seus Boulevards........................................................................................... 163
6.2 Túmulos e Coveiros................................................................................................................ 182
7. O CORPO E SUAS DOENÇAS........................................................................................... 199
7.1 O Corpo e a Cinza................................................................................................................... 199
7.2 O Sentimento de Fracasso....................................................................................................... 208
7.3 Corpos, Doenças e Outras Metáforas...................................................................................... 219
7.4 Os Desconfortos da Vida Moderna na Capital Irradiante....................................................... 230
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 246
FONTES DE PESQUISA..................................................................................................... 252
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 254
10
1. INTRODUÇÃO
1
TORRES, Antônio. O Poeta da Morte. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 27 de Dezembro de 1914.
2
SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesia Completa). Parahyba do
Norte, 1920. Págs. I-XIII.
11
patologia esta indicada como razão de sua estética poética e que, para o senso comum,
debilitou o poeta até a morte, aos trinta anos, mesmo que o testemunho de contemporâneos e
familiares, além do registro de cartas e documentos médicos, não comprovem essa questão.
Entrar em contato com a poesia de Augusto dos Anjos colhida em livro é, de fato,
adentrar num universo metafórico soturno, fúnebre. É caminhar pela noite, é transitar entre
cemitérios e túmulos, é conversar com coveiros, é sentir a fermentação de odores e licores
corporais, é manter contato com vírus, bactérias e vermes.
Algumas pesquisadoras3, além de estudiosos4 e biógrafos5, por exemplo, já
propuseram diversos prismas de interpretação acerca da poesia de Augusto dos Anjos, indo
desde a atribuição quase automática das imagens literárias expressas nos versos ao sujeito que
os escreveu, passando pela interpretação de cunho mais literário, buscando, então, identificar
apropriações e traços estilísticos, culminando até em análises de caráter psicologizante,
visando encontrar na biografia do poeta as causas de sua “morbidez” e, até mesmo, “loucura”.
Nosso interesse em relação à poesia de Augusto dos Anjos derivou tanto de
reminiscências dos estudos escolares, das aulas de literatura, quanto – e principalmente – das
(re)leituras, inicialmente ocasionais, feitas durante o período do mestrado (2009-2011),
cursado na Paraíba, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Nessa ocasião,
ainda que nossa pesquisa de mestrado se relacionasse com o campo de estudos que
aproximam história e literatura, as fontes então investigadas não consistiam em poesias, mas,
sim, em romances, contos e peças teatrais, assim como, o escritor pesquisado era outro, no
caso, o francês Jean-Paul Sartre (1905-1980).
As leituras ocasionais da poesia de Augusto dos Anjos foram se tornando mais
contínuas até resultar na elaboração da proposta de pesquisa de doutorado, submetida ao
PPGH da Universidade Federal do Ceará (UFC), cujos resultados aqui apresentamos. Desse
modo, a presente pesquisa significou uma mudança, no que diz respeito às fontes investigadas
e às questões propostas, mas também, um aprofundamento acerca de nosso estudo das
relações entre história, literatura e poesia.
3
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editora
Universitária UFPB, 2008.
4
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica de
Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007. Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015
5
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio. 1967. MAGALHÃES JÚNIOR,
Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978. NÓBREGA,
Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS, Neide Medeiros;
ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora Universitária/UFPB, 2012.
12
paraibanos (na revista Terra Natal e no Almanaque do Estado da Paraíba). Após 1910, quando
Augusto dos Anjos e sua esposa se mudaram para o Rio de Janeiro, o poeta também publicou
nos jornais A Época e no Almanaque Garnier, nos períodos imediatos e posteriores à
publicação do “Eu”, em 1912. Isso fez com que o recorte que focava apenas nas poesias do
“Eu” fosse ampliado, tendo em vista a existência desses textos poéticos não colhidos em livro.
Delimitar nosso corpo de fontes apenas em suas poesias tornou o percurso da pesquisa
mais operacional. Contudo, uma nova dificuldade surgiu em decorrência da inclusão das
poesias não colhidas em livro. Em sua primeira edição, o “Eu” contava com 56 textos
poéticos, aos quais foram acrescentados mais 46 poesias, quando da elaboração da segunda
edição. Contudo, as poesias que não foram publicadas em livro não somente eram inúmeras
(aproximadamente 195 textos poéticos e versos de circunstância), como apresentam
características estéticas e estilísticas completamente diferentes daquelas presentes nas poesias
selecionadas para compor seu único livro.
Essa dificuldade nos fez compreender um ponto importante. As poesias do “Eu” não
foram as únicas escritas e publicadas por Augusto dos Anjos. Dessa forma, cai por terra a
imagem de que sua poesia publicada em livro representaria um reflexo puro, tal e qual, de sua
personalidade, a qual seria fúnebre, mórbida. Inúmeras poesias que não integraram o livro
apresentam características totalmente diferentes daquelas que compuseram o “Eu”, diversas
sendo poesias românticas, quase frívolas.
Além disso, as poesias mais fúnebres e macabras não foram o resultado de uma “fase”,
ou seja, não foram todas escritas e publicadas em bloco, num momento precedente ou
subsequente à uma fase mais romântica. Augusto dos Anjos dedicou-se à prática da poesia a
partir de 1901, escrevendo e publicando continuamente. Nesse movimento, os textos mais
macabros, característica esta que rendeu notoriedade ao seu livro, se intercalavam com os
mais românticos. Essas poesias mais sombrias, selecionadas para o “Eu”, configuram um
recorte tímido se comparado à todos os textos escritos e publicados pelo poeta.
Considerando esses elementos, os contornos e caminhos da pesquisa foram se
delineando. Dessa forma, procuramos investigar, problematizar e compreender, em nosso
objeto de estudo, quais os sentidos atribuídos (e/ou apropriados) ao período que se
convencionou chamar “modernidade”, como sua atividade mimética, via poesia, constituiu
uma “identidade narrativa” para Augusto dos Anjos e como seus versos representavam e
expressavam sensibilidades históricas acerca do fenômeno morte (sobre seus espaços –
cemitérios e túmulos –, seus agentes e sobre o corpo envelhecido, doente e morto).
14
6
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. 2ª edição. São Paulo.
Companhia das Letras, 2010.
7
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980.
15
8
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro.
2006.
9
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014. p.142.
10
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007.
16
de si mesmos, seja num texto com qualidades estéticas, mas mais autorreferencial e não
necessariamente ficcional, seja em textos abertamente ficcionais.
Na medida em que a modernidade estimula uma ênfase no indivíduo, por meio das
discussões que orbitam o tema da escrita de si, analisados por Ângela de Castro Gomes 11 e
Phillipe Lejeune12, pudemos perceber como a poesia de Augusto dos Anjos se configura não
somente como um exercício próximo à escrita autorreferencial e, em menor grau,
autobiográfica, mas, principalmente, como ela reforça a experiência de individualização
vivida por Augusto dos Anjos enquanto sujeito histórico inscrito na dita “modernidade”.
Como as noções de indivíduo, de individualidade, foram enfatizadas radicalmente na
modernidade, o título do livro de Augusto dos Anjos, “Eu”, seria um sintoma da
temporalidade moderna e de sua reverência à individualidade/individualização. Seus versos
seriam uma forma de lidar com as expectativas então estimuladas, que exigiam o indivíduo
como produtor de uma imagem de si mesmo e como agente unificador de suas vivências. O
indivíduo, na modernidade, deveria ser um tipo de protagonista, o que nem sempre ocorria.
Ao dialogarmos com Paul Ricoeur13, e ao nos aproximarmos de suas discussões acerca
da noção de “identidade narrativa”, pudemos problematizar como a poesia de Augusto dos
Anjos, ainda que próxima da escrita autorreferencial e autobiográfica, está para além delas.
Isto porque o indivíduo, na modernidade, pode se transformar numa espécie de narrador de si
mesmo, elaborando uma imagem, seja pela via literária, ficcional, seja pelos caminhos mais
estéticos, autorreferenciais (em cartas, diários, memórias, etc.).
Ao utilizarmos a noção de “identidade narrativa”, foi possível compreender como
Augusto dos Anjos joga com a noção de individualidade, elaborando para si e para os outros
uma imagem, não contraditória, mas multidimensional, oposta àquelas interpretações
unilaterais que associam, mecanicamente, os valores expressos em seu texto ao sujeito que
escreve, como se não houvesse uma distância, dotada de contornos próprios, entre o sujeito e
sua(s) prática(s) de escrita. Através dessa noção, foi possível confirmar a hipótese de que as
práticas poéticas de Augusto dos Anjos estão para além do rótulo de “poeta da morte”, ainda
que a atribuição de tal rótulo não seja arbitrária, mesmo que ele seja um tanto simplificador.
11
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004.
12
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte.Editora UFMG,
2008.
13
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014.
17
14
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro, Editora
Nova Fronteira. 2012.
15
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999.
16
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983.
17
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009.
18
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016.
18
CAPÍTULO 2
AS DINÂMICAS DO CAMPO LITERÁRIO:
ROMANTISMO, MODERNIDADE E CIENTIFICISMO
19
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editor
Universitária UFPB, 2008.
20
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica
de Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015.
21
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. 2ª edição. São Paulo.
Companhia das Letras, 2010, p.235.
20
...as estratégias dos agentes e das instituições que estão comprometidos nas
lutas literárias ou artísticas não se definem na confrontação pura com
possíveis puros; dependem da posição que esses agentes ocupam na estrutura
do campo, ou seja, na estrutura da distribuição do capital específico, do
reconhecimento, institucionalizado ou não, que lhe é concedido por seus
pares-concorrentes e pelo grande público e que orienta sua percepção dos
possíveis oferecidos pelo campo e sua “escolha” dos que se esforçarão por
atualizar ou produzir. (...) as apostas da luta entre os dominantes e os
pretendentes (...), as próprias teses e antíteses que eles se opõem
mutuamente, dependem do estado da problemática legítima, isto é, do espaço
das possibilidades legadas pelas lutas anteriores que tende a orientar a busca
das soluções e, por conseguinte, o presente e o futuro da produção.
Desse modo, mais do que perseguir a natureza íntima e essencial da poesia de Augusto
dos Anjos ou, por outro lado, atribuir ao poeta uma genialidade inescrutável, visamos partir de
uma perspectiva que toma a obra e, por extensão, seu autor, como imersos numa rede de
historicidades. É nesse sentido que nos apropriamos do conceito de “campo” formulado por
Bourdieu22: “Os campos apresentam-se à apreensão sincrônica como espaços estruturados de
posições (ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que
podem ser analisadas independentemente das características dos seus ocupantes (em parte
determinadas por elas)”. Nessa ótica, tentaremos rastrear quais elementos históricos presentes
em seu campo literário sua poesia expressa.
A poesia de Augusto dos Anjos, tanto aquela colhida no livro que lhe rendeu
notoriedade, quanto às demais, publicadas apenas em jornais e periódicos, foi elaborada ao
longo da primeira década do século XX e não se isenta das marcas da temporalidade moderna.
Somando mais de uma centena de textos poéticos produzidos, apenas algumas dezenas
destes, após rigoroso crivo, foram selecionados para serem publicados no único livro desse
poeta, o “Eu”, de 1912. Seus versos, tanto os mais quanto os menos conhecidos, dialogam
com estilos, estéticas e escolas distintos, oriundos de diversos estratos temporais.
O Simbolismo, o Romantismo, o Parnasianismo, o Realismo-Naturalismo, entre
outros, apresentam traços mais ou menos comuns, tanto no seu contexto de emergência
inicial, na Europa, quanto nas apropriações feitas no Brasil. Tais estéticas literárias inserem-se
no que se convencionou chamar “Modernidade”, conceito variável em seus conteúdos e
formas, comumente associado às experiências históricas subsequentes à desestruturação da
sociedade feudal ocidental, do chamado Antigo Regime e paralela à ascensão do capitalismo.
As experiências e as expectativas europeias ocidentais passaram a ser alimentadas pelo
conceito “moderno”, cada época atribuindo-lhe um significado diferente ao mesmo tempo em
que se mesclava com ele. Na “modernidade”, surgiram novas configurações para a política, a
22
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa. Editora Fim de Século, 2003, p.119.
21
...a estética romântica imposta a partir do início do século XIX não introduz
qualquer ruptura notável. Aos olhos dos primeiros românticos – sempre
próximos de Germaine de Staël e de Constant: os irmãos Schlegel, Schelling,
Novalis –, a arte continua a ser conhecimento do mundo. Se novidade há,
essa está no juízo de valor que eles atribuem aos diferentes modos de
conhecimento. Aquele ao qual se ascende através da arte parece-lhes
superior ao da ciência: por renunciar aos processos comuns da razão e tomar
o caminho do êxtase, esse conhecimento dá assim acesso a uma segunda
realidade, proibida aos sentidos e ao intelecto, mais essencial e mais
profunda que a primeira.
Dessa forma, a atividade mimética, seja em prosa, seja em verso, ofereceria outro
caminho de compreensão do mundo. Trilhando esse caminho, seria possível entender com
mais clareza, por meio da intuição, aquilo que a ciência, com seus métodos objetivos, ainda
não havia conseguido – ou não podia – compreender.
Nessa compreensão, na dita modernidade, a literatura e a poesia continuam
relacionadas ao mundo social, ou seja, a atividade mimética que lhes é própria e constituinte
não se desliga do mundo à sua volta: faz dele matéria-prima e da arte outro canal de acesso ao
(ou produtor de) conhecimento. Para Todorov24: “É apenas no começo do século XX que se
produz a ruptura decisiva. Ela se deve, por um lado, ao impacto das teses radicais de
Nietzsche, que questionam a própria existência tanto dos fatos independentes das suas
interpretações quanto a da verdade, qualquer que ela seja.”
Na modernidade, portanto, à literatura e à poesia ora são atribuídos uma função de
“meio de acesso diferenciado” em relação ao mundo social, ora à elas são atribuídas uma
postura, talvez quase um dever, de distanciamento da sociedade, de seus dilemas e
contradições. Num caso, as artes e a literatura seriam meios privilegiados de conhecimento
intuitivo do mundo. Noutro caso, aproximando-se do ideal de “arte pela arte”, o artista, o
escritor, produziria algo isolado das contaminações oriundas do mundo social, do qual se
distancia, conduzindo e colocando o leitor em contato com o “Belo”.
Como a atividade mimética de Augusto dos Anjos surge nesse período, seus versos
dialogam com todo um complexo de sentidos históricos, temas e questões, por vezes,
23
TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro. Difel. 2009. p.61-62.
24
TODOROV, 2009, p.66.
22
ambivalentes, presentes em seu campo literário. A poesia figura para esse autor como um
meio privilegiado de conhecimento do mundo, não apenas a partir de uma intuição
“romântica”, mas, também, através de uma percepção articulada com alguns pressupostos da
ciência/do cientificismo, como discutiremos mais adiante.
Para o teórico e crítico literário brasileiro Luiz Costa Lima25, a mímesis é um
fenômeno que não está encerrado apenas na atividade artística ou literária. Para esse autor, a
vida social é, em si mesma, simbólica, e disto surge outra questão. Considerando nossa
imersão no mundo social, que é cultural, simbólico, possuímos a tendência a naturalizar os
símbolos culturais que utilizamos na vida prática em sociedade e, com isso, não os colocamos
em questão. Considerá-los “simbólicos”, colocá-los em questão, seria “desnaturalizá-los”, o
que enfraqueceria sua “seriedade”, a naturalidade de seu ser. Por exemplo, para muitas
pessoas, a classe social a que pertencem, ou os preconceitos que, por vezes, possuem, são
fenômenos (quase) naturais, inelutáveis, como se não estivessem submetidos à condições
históricas e simbólicas, sociais e culturais, não sendo, portanto, imutáveis.
Quando aceitamos a existência de “símbolos”, podemos possuir a tendência em
restringir sua aparição à certas dimensões de nossa vida, já que não é possível eliminá-los,
alocando-os mais na linguagem, nas artes ou em outros domínios, como o da religião. O ponto
em questão é que, ao instituir essa restrição acerca do símbolo e de seu papel em nossa
existência, operamos com um recorte que não é meramente cultural, mas também, social. Para
Luiz Costa Lima26:
como (...) os membros de uma sociedade qualquer tendem a se ver nos que
lhes são iguais e a marcar sua diferença quanto aos outros (...), necessitam
identificar o simbólico com o espaço recortado dentro de certas áreas. Estes,
passam a ser os espaços e as áreas simbolicamente privilegiadas. Em nossa
cultura – se é que apenas nela – a área da linguagem é uma delas e, no seu
interior, o recorte abarca o poético, assim como o museu é o recorte da área
da visualidade e a sala de concerto, o recorte da área da audição. Os campos
recortados, enquanto encarnações do simbólico reconhecido, gozam do
privilégio de separação.
Considerando aqui que nossa visão do mundo decorre do lugar de onde o vemos, de
nosso lugar de fala, compreendemos melhor as relações que a poesia de Augusto dos Anjos
estabeleceu com as sensibilidades de seu tempo histórico, mediante o contato com redes
simbólicas específicas. Em certos momentos, seus textos poéticos parecem aproximar-se
25
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980.
26
LIMA, 1980, p.72.
23
desse recorte, do qual fala Costa Lima, que separa o “simbólico” do mundo social, encerrando
essa dimensão “simbólica” em áreas particulares, entre elas, a própria literatura e a poesia.
Nessa compreensão, cabe demarcar, desde já, que não interpretamos a poesia de
Augusto dos Anjos com a manifestação ou o desdobramento de uma inclinação totalmente
singular, essencialmente subjetiva, inexplicável. Não compreendemos sua poesia como o
resultado de uma potência única (próxima do imanentismo) que ele carregava consigo,
desligada das dimensões circundantes e transformada em ato pela escrita. Nossas indagações e
problematizações acerca de seus textos poéticos levam em consideração outra perspectiva
proposta por Luiz Costa Lima27, que perpassa a representação:
27
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980, p.72.
28
LIMA, Luiz Costa. A Ficção e o Poema – Antônio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchôa Leite.
São Paulo. 1ª ed. Companhia das Letras, 2012, p.104.
24
A poesia de Augusto dos Anjos, em nossa perspectiva, também trabalha com algo
semelhante ao que Gaston Bachelard30 denominou como “operador de imagens”, ou seja,
determinadas palavras ou conceitos que podem se desdobrar em representações literárias ou,
até mesmo, em fecundas metáforas filosóficas. Em vista disso, um primeiro grupo temático
que podemos analisar em sua poesia e que está articulado com os frames da estética
romântica, diz respeito aos operadores de imagens da “pátria” e do “herói”.
Consideremos, como indicativo dessa articulação, o soneto intitulado “Triste
Regresso”31. Esse texto poético não fora colhido em livro, tendo sido publicado apenas no
jornal paraibano O Comércio, em 27 de janeiro de 1901. Para além da idealização da figura
feminina ou da temática sentimental, elementos comuns na estética romântica, entra em cena
outro elemento muito valorizado por esse padrão estético, no caso, o símbolo da “pátria”. Para
efeito de discussão, vejamos esse soneto na íntegra:
29
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.93-95.
30
BACHELARD, Gaston. A Chama de uma Vela. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, 1989. p.09.
31
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.375.
25
1910). Os primeiros agentes que passaram a fazer parte da rede de sociabilidade através da
qual Augusto pretendeu entrar no campo literário eram notoriamente pessoas próximas à ele.
O primeiro jornal pertencia à Arthur Aquiles (1864-1916), o qual era pai de Santos
Neto, amigo de Augusto desde os estudos no Lyceu Paraibano. O segundo jornal consistia no
órgão oficial do governo estadual paraibano. Dois irmãos de Augusto, ele próprio e seu futuro
cunhado trabalharam nesse jornal, o que certamente facilitou a publicação de seus textos.
O jornal O Comércio, por exemplo, publicava, além dos versos de Augusto dos Anjos,
“...poesias de outros autores entre os quais Cruz e Souza, Guerra Junqueiro, Antônio Nobre,
Antero de Quental, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, entre outros.”33. Além dos jornais
já citados, alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos também foram publicados no
Almanak do Estado da Paraíba, logo no início de sua prática com a poesia e, posteriormente,
em 1917, três anos após a sua morte, como espécie de homenagem.
O Almanaque do Estado da Paraíba (cujo nome oficial era Almanak Administrativo,
Mercantil e Industrial do Estado da Paraíba) consistia numa espécie de publicação oficial do
governo desse Estado, sua primeira edição tendo ocorrido em 1898. Conforme Rodrigues e
Silva34, tal publicação contava com seções de notícias, de aspectos históricos, literários e
recreativos. A periodicidade de suas edições posteriores foi inconstante.
A relação entre os jornais e a produção literária, no Brasil e na Paraíba, foi essencial
para a apresentação/circulação de novos textos e autores, contribuindo na consolidação e
autonomização do campo literário.
Cabe ressaltar, no entanto, que o sentido atribuído ao texto considerado “literário”,
incluído em jornais em fins do século XIX, era bastante variável e, vez por outra, não somente
se mesclava com outros gêneros textuais (como a crônica), como também não possuía nem
defendia uma noção tradicional de “autoria” bem definida para cada texto publicado. Socorro
de Fátima Barbosa35 comenta que:
33
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Pequeno Dicionário dos Escritores/Jornalistas da Paraíba do
Século XIX: de Antônio da Fonseca a Assis Chateaubriand. 2009. P.25. Disponível em
<http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo/Pequeno_dic.pdf> Acesso: Mar/2015.
34
RODRIGUES, Melânia Mendonça; SILVA, Vívia Melo da. Anuários e Almanaques: Fontes para a História da
Educação e Organismos Formativos. In: IX SEMINÁRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA,
SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”. Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa. Anais
Eletrônicos ISBN 978-85-7745-551-5. Disponível em:
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/PDFs/8.13.pdf Acesso. Jul/2016.
P.4813.
35
BARBOSA, Socorro de Fátima. O Conceito de Literatura nos Periódicos e Jornais do Século XIX: Um Estudo
dos Jornais Paraibanos. Anais do X Encontro Regional da Abralic. Rio de Janeiro, 2005.
Disponível:http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/estudos/OconceitodeLiteraturanosperiodicosejornaisdos
eculoXIX.pdf. Acesso: Ago/2016. P.06-07.
27
Nesse sentido, o ingresso de Augusto dos Anjos no campo literário pode ser dividido
em dois momentos: o primeiro, compreendendo sua estadia na Paraíba, englobando toda sua
poesia escrita e publicada entre 1901 e 1910. O segundo momento refere-se à saída da Paraíba
em direção ao Rio de Janeiro e, posteriormente, à Minas Gerais, entre 1910 e 1914.
Durante o período de circulação no campo literário paraibano, Augusto dos Anjos
parece não ter tido que lidar com nenhum agente institucional “impessoal”, que dificultasse
seu ingresso, quer fosse esse agente responsável por uma editora ou por periódicos literários
especializados nos quais tentasse publicar. Houve apenas algumas polêmicas.
Segundo Magalhães Júnior36, em 1901, Augusto envolveu-se numa polêmica com
Eduardo Tapajós (que também colaborava no jornal O Comércio), o qual fez observações
negativas acerca de um dos seus sonetos, intitulado “Pecadora” (cf. p.88 de nosso trabalho).
Em 1905, envolveu-se em nova polêmica ao criticar o livro de Sebastião de Campos,
intitulado “Nuvens Errantes”.
Outro crítico literário, Mendes Freire, em defesa do texto de Sebastião de Campos,
passou a trocar farpas com Augusto através de crônicas mordazes, todas publicadas no jornal
O Comércio. Ao que tudo indica, por volta de 1910, quando contava com 26 anos de idade,
Augusto dos Anjos também não participava de nenhum círculo literário que contasse com
algum escritor de renome nacional ou regional.
Como Luiz Costa Lima37 observou, o círculo de admiradores da poesia de Augusto
deveria ser restrito quase que à suas amizades. Ainda na ótica desse crítico literário, as poesias
que não foram colhidas no “Eu” são textos “fraquíssimos”. Luiz Costa Lima pondera sobre o
36
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 1978. P.31-33/133-135.
37
LIMA, Luiz Costa. Augusto dos Anjos: A Origem como Extravio. In: Matraga: Estudos Linguisticos e
literários. v.21, n.35 (2014). Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/17481
Acesso em: Fev/2016.
28
que poderíamos chamar de terceiro momento de ingresso da poesia de Augusto dos Anjos no
campo literário, marcado pelo progressivo número de estudos críticos que passaram a tomar
seu livro de versos como objeto de análise, estudos esses que foram sendo publicados com
mais frequência a partir do ano de 192838, catorze anos após a morte do poeta, oito anos
depois da publicação da segunda edição do “Eu” e dezesseis anos depois da primeira edição.
Considerando a produção poética de Augusto dos Anjos numa ótica quantitativa,
podemos perceber alguns elementos de sua trajetória no campo literário paraibano. Augusto
publicou 126 poesias no jornal O Comércio (1901-1908), e 21 poesias no jornal A União,
(1909-1910). Nesse recorte temporal, e fora desses espaços de publicação regulares, apenas
um soneto seu fora publicado no Almanak do Estado da Paraíba, quatorze poesias foram
reaproveitadas, em 1912, no “Eu” (três delas publicadas de modo inédito nesse livro) e duas
republicadas após aparição inicial numa revista paraibana intitulada Terra Natal.39
De toda a poesia escrita e publicada por Augusto dos Anjos (quase três centenas de
textos, incluindo os circunstanciais), aquela colhida no livro “Eu” seria um recorte tímido. A
primeira edição de seu livro contava com apenas 56 textos poéticos. Na segunda edição de
1920, foram somadas mais 46 poesias, consideradas, na época, inéditas, ainda que algumas
destas já tivessem sido publicadas anteriormente em jornais e periódicos citados acima.
Analisando esses dados e levando em consideração a afirmação de Luiz Costa Lima de
que os textos poéticos de Augusto dos Anjos não colhidos em livro seriam “fracos”, ou seja,
que teriam uma qualidade estética “menor”, percebemos que seu ingresso e aceitação no
campo literário, em razão da recepção das poesias publicadas no “Eu”, não foi imediato e
consistiu num recorte específico dentro de sua atividade poética.
Nessa compreensão, caso não pareça adequado falar de uma aceitação tardia no campo
literário, talvez possa ser mais pertinente falar de um ingresso irregular, inconstante. Autor de
vários versos, mas apenas de um único livro, após a saída da Paraíba, em 1910, Augusto dos
Anjos viveria apenas mais quatro anos, sem conseguir experimentar de fato o renome como
poeta, salvo pelo contato com as críticas literárias feitas no imediato da publicação do livro.
Visamos inscrever, portanto, nossa análise de suas poesias numa perspectiva
historiográfica na medida em que enxergamos seus versos, sejam aqueles publicados em livro
ou não, como férteis em sentidos históricos. As relações que aproximam a história e a
38
MEDEIROS E ALBUBERQUE. Notas Litterarias. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 30 de Setembro
de 1928, p.02. Esta crítica literária, feita quando da terceira edição do “Eu”, pode ser apontada como uma das
primeiras a esboçar um olhar mais analítico acerca da poesia de Augusto dos Anjos.
39
Após a publicação do “Eu”, alguns poemas de Augusto dos Anjos foram publicados no jornal carioca “A
Época” (31/07/1913 e 17/05/1914), no Almanaque Garnier (edição 09, p.332 e edição 17, p.409). Outros
poemas seriam publicados posteriormente, mas inseridos como objeto de análise em críticas literárias.
29
literatura são fecundas porque as obras literárias funcionam como núcleos geradores de
interpretações e de significados, atribuindo sentidos para épocas e experiências históricas
distintas, idealizando o passado ou o futuro. Como observou Márcia Regina Naxara40:
É nesse sentido que a aproximação de alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos
com a estética romântica pode ser compreendida. Os elementos desse padrão estético (e de
outros) circulavam no campo literário não como algo desligado dos dilemas políticos e
sociais, mas, ao contrário, propondo outros prismas de interpretação sobre eles.
Ao apropriar-se de aspectos da estética romântica, Augusto dos Anjos aproximou-se
de alguns frames presentes na sociedade, frames esses mais passíveis de serem aceitos por já
circularem em seu campo literário na medida em que colaboravam na construção de uma
identidade nacional republicana.
As poesias de Augusto dos Anjos que dialogam mais fortemente com elementos da
estética romântica também podem ser interpretadas como um tipo de experimentação poética
(seja nos temas e na estética, seja ainda no sentido atribuído ao poético, ao literário), haja
vista que sua estética adquiriria outras características. Nesse sentido, sua prática literária não
se afasta muito do conceito de “mímesis da representação”, elaborado por Luiz Costa Lima41.
Não nos foi possível quantificar ou qualificar de maneira segura o “sucesso” das
poesias de Augusto dos Anjos não colhidas em livro, nem tampouco, avaliar a crítica dos seus
leitores. O único traço com o qual podemos especular, por enquanto, é que se seus textos não
tivessem sido recebidos com o mínimo de positividade, talvez sua colaboração nos jornais O
Comércio/A União, que se estendeu entre 1901-1910, tivesse sido interrompida.
Em nossa perspectiva, a aproximação de Augusto dos Anjos com a poesia, em alguns
textos, consistia numa atividade que pode ser compreendida pelo conceito de “mímesis de
representação”, ou seja, pela apropriação de padrões temáticos e estéticos já prefigurados e
aceitos em seu campo literário e social. Isto o aproximava, também, de questões presentes em
outros campos, como o político, no sentido de que havia a preocupação e o esforço em
40
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido
Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora UNB, 2004, p.115-116.
41
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.170.
30
constituir uma identidade nacional republicana, que se queria distinta do Brasil imperial e
escravocrata que, pelos idos de 1900, já fazia parte de um passado, de certo modo, superado.
Logo, alguns de seus versos operavam com imagens ligadas aos símbolos românticos
mais característicos, tais como a “pátria” e a “nação”, além dos tradicionais elementos dessa
estética (subjetividade excessiva, ermas paragens, escapismo, predileção pelo sonho e pela
noite, sentimentalismo, etc.). Outro poema indicativo desse primeiro conjunto temático
intitula-se “Ave Libertas”42. Nele, vemos versos que operam imagens literárias diretamente
relacionadas aos símbolos românticos citados acima. Essa poesia, que possui como tema
central a Proclamação da República brasileira, foi escrita e publicada no jornal O Comércio na
efeméride do décimo segundo ano após a proclamação, ou seja, em 15 de novembro de 1901:
42
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.401.
31
43
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.164.
44
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza. Museu do Ceará /
Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.81.
32
Muitos dos textos poéticos de Augusto dos Anjos, não colhidos em livro, tais como
alguns que temos analisado, se mantêm, em linhas gerais, próximos da estética romântica,
fazendo referência constante aos seus “operadores de imagens” mais comuns (pátria/nação e
herói). Outro soneto que segue nessa direção, que retoma não somente o símbolo da “pátria”,
como opera com a imagem do “exílio”, igualmente cara aos românticos (vide, por exemplo, a
“Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias [1823-1864]) é “Versos d‟um Exilado”45:
45
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.404. Publicado no Jornal O Comércio, em 29 de novembro de 1901.
33
46
MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): Panorama da História do Brasil no Século XIX.
Maringá. Eduem, 1999, p.110.
34
47
MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): Panorama da História do Brasil no Século XIX.
Maringá. Eduem, 1999, p.111.
48
“...Assim, o sujeito da obra de arte não é nem um artista singular, causa aparente, nem um grupo social (...) mas
o campo de produção artística no seu conjunto (que mantém uma relação de autonomia relativa, maior ou
menor segundo as épocas e as sociedades, com os grupos em que se recrutam os consumidores dos seus
produtos, quer dizer as diferentes fracções da classe dirigente). BOURDIEU, Pierre. Questões de
Sociologia. Lisboa. Editora Fim de Século, 2003, p.221-222.
35
ato que o constitui, Luiz Costa Lima fala em dois tipos de mímesis: a Mímesis da
Representação e a Mímesis da Produção. A atividade mimética de Augusto dos Anjos, em
nossa interpretação, transita entre esses dois conceitos, ou quais, nas palavras de Costa
Lima49, implicam numa relação dinâmica, dialética:
Nas primeiras décadas do século XX não havia um único padrão estético em voga no
Brasil, mas correntes literárias não somente orientadas pelos padrões “importados” da Europa,
mas também apropriados aqui de maneira mais autônoma, original. Exemplos disso seriam
alguns escritores brasileiros afinados com o “romantismo”, com o “realismo” e com o
“simbolismo” (ainda abordaremos esses padrões estéticos nas próximas seções).
O que aproxima algumas poesias de Augusto dos Anjos da chamada “Mímesis da
Representação” é, justamente, os modos através dos quais alguns de seus textos poéticos se
manifestam, orientados pelos padrões próprios da estética romântica, já postos em circulação
em seu campo literário e social. Eles são empregados, mas não são colocados em questão.
Sua poesia produz um conjunto de (re)apresentações que dialogam com diversas
normas estéticas do romantismo, normas essas já estabelecidas e aceitas no mundo social e
cultural do leitor e dos demais escritores. Os versos de Augusto dos Anjos, portanto, não
oferecem “a” realidade, como imitação pura e simples, como reflexo passivo ou “maquete” do
real. Seus versos oferecem, sim, um “análogo”, não a realidade em si, mas uma concepção
desta. E esta concepção da realidade em forma de representação literária apresenta ao possível
leitor algo com o qual este já pode ter algum tipo de familiaridade.
O modo como Augusto dos Anjos ingressou e transitou no campo literário na Paraíba
não se afastava muito das redes de sociabilidade nas quais ele participava, seja no campo
social, econômico ou político. Apesar da contínua publicação de seus textos, quase
semanalmente, nos jornais O Comércio e A União, boa parte dessa produção não foi alvo de
maiores estudos críticos, até onde pudemos levantar, nem parece ter lhe rendido notoriedade
como literato. É certo que entre as poesias publicadas entre 1901-1910, já estavam presentes
49
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.169.
36
alguns dos textos pelos quais adquiriria renome, alguns destes posteriormente incluídos na
primeira e na segunda edição do “Eu”, que contava com outras poesias, então inéditas.
Conforme Bourdieu50, os trânsitos e as trajetórias dos agentes no campo (e entre os
campos) ativam capitais possuídos como “herança” ou adquiridos mediante investimento,
tanto escolar, educacional, quanto derivado de algum “talento”. Desse modo, o conceito de
capital extrapola seu sentido econômico, monetário, financeiro. Até mesmo esse tipo de
capital específico seria transformado no que ele chama de “capital simbólico”51.
Para Pierre Bourdieu, é na modernidade que a arte, a literatura e os escritores inserem-
se no chamado “mercado simbólico”. A inserção e a permanência dos escritores e suas obras
no campo literário depende de toda uma rede relacional de reconhecimento e atribuição de
valor, o que envolve tanto o público, quanto os editores, as livrarias e a crítica.
Bourdieu assevera ainda que o campo artístico não configura uma atmosfera
“desinteressada”, “pura”. Os escritores e suas obras, ao entrarem nesse mercado “simbólico”
do que também se chama “bom gosto”, marcam a interação entre os campos e seus agentes
entre si: “...a arte e o consumo artístico estão predispostos a desempenhar, independentemente
de nossa vontade e de nosso saber, uma função social de legitimação das diferenças sociais”,
afirma Bourdieu52. Consumir determinado tipo de arte torna-se traço distintivo de uma classe
(ou setores sociais) que se quer(em) “diferenciado(s)” em relação às demais.
Nesse sentido, a atividade poética de Augusto dos Anjos transfigurava-se como capital
simbólico. Por exemplo, quando participava da organização dos festejos de Nossa Senhora
das Neves, que ocorria na cidade de João Pessoa, então chamada Parahyba, entre os anos de
1908-1910, seu talento com a poesia terminava fomentando oportunidades para criar ou
estreitar vínculos sociais com os mais “ilustres” daquela cidade paraibana.
Conforme relata Humberto Nóbrega53, biógrafo e comentador das poesias de Augusto
dos Anjos, esse festejo era o mais importante do ano daquela cidade paraibana. Mobilizava
toda a comunidade e funcionava não somente como ocasião religiosa, mas também como
50
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação. Campinas. 9ª Ed. Editora Papirus, 2008.
51
Segundo Bourdieu (2008, p.107), “O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de
capital, físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são
tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor. (...) Mais precisamente, é
a forma que todo tipo de capital assume quando é percebido através das categorias de percepção, produtos da
incorporação das divisões ou das oposições inscritas na estrutura e na distribuição desse tipo de capital (como
forte/frágil, grande/pequeno, rico/pobre, culto/inculto,etc.).
52
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo. Edusp; Porto Alegre. Zouk,
2007.p.14.
53
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.45.
37
54
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.47.
55
NÓBREGA, 2012, p.53.
56
“Portanto, nada há o que distinga tão rigorosamente as diferentes classes quanto à disposição
objetivamente exigida pelo consumo legítimo das obras legítimas, a aptidão para adotar um ponto de
vista propriamente estético a respeito de objetos já constituídos esteticamente (...) ou aplicar os
princípios de uma estética “pura‟ nas escolhas mais comuns da existência comum, por exemplo, em
matéria de cardápio, vestuário ou decoração de casa.” BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social
do Julgamento. São Paulo. Edusp; Porto Alegre. Zouk, 2007, p.42.
57
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.57.
38
58
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.734.
39
Outras duas cartas59, em maio e junho do mesmo ano, para a mesma destinatária, também
indicam o livro como um projeto em vias de se realizar.
Para efeito de discussão, vejamos alguns aspectos relacionados ao ingresso da poesia
de Augusto dos Anjos no campo literário, agora em forma de livro, a partir da leitura de
algumas as críticas literárias imediatas ao ato de publicação. O poeta parecia acompanhar com
interesse a repercussão da publicação do “Eu”, referindo-se à recepção da crítica em suas
correspondências familiares60, destinadas à sua mãe e à sua irmã, enviando, quando possível,
cópias das críticas ao seu livro. Este, conforme registra o poeta em carta61, fora incluído na
biblioteca da “Academia Nacional de Medicina (...) por tratar do haeckelianismo e do
evolucionismo spenceriano.”, tendências que marcavam o cientificismo da época.
Ao analisarmos a crítica feita no semanário Fon Fon62, um dos periódicos mais
emblemáticos da modernidade carioca, podemos ter uma ideia aproximada da recepção
imediata em relação ao seu livro, que fora publicado nos primeiros dias do mês de junho de
1912. Numa seção intitulada “O Momento Literário”, escrita pelo articulista Mário
Pederneiras, identificado apenas como M.P., encontramos as seguintes impressões:
<<EU>> - livro de estréa do poeta Augusto dos Anjos, merece mais do que
uma simples nota rapida de impressões e de agradecimento.
É um livro extranho, cheio de altos e baixos, com um certo abuso exagerado
na exhibição de conhecimentos scientíficos, no uso dispensável de termos de
sciencia. A par disso tudo, entretanto, tem bellezas intensas e por todo elle
vibra uma encantadora nota de originalidade, que dá ao livro uma impressão
própria, individual, cousas que andam a faltar em muita producção
consagrada e applaudida (...)
Há nesse <<EU>> extranho um modo de sentir e de impressionar bem
diverso do comum (...)
Não lhe cabe decerto, a classificação entre os Poetas Macabros porque sua
emoção se ás vezes camba para os exaggeros desordenados dessa especie
litterária (...) outras vezes é de uma delicadeza que só pode ser attingida
pelos temperamentos de escol. (...)
O abuso do scientismo é uma influência que ha de passar no Poeta e livre
desse exaggero e encarando o Verso na sua perfeita funcção emotiva,
Augusto dos Anjos há de dar-nos outro livro independente, forte,
aproveitadas todas as incontestáveis qualidades que possue (...)
Com base nas impressões do articulista, vemos caracterizada a estética que marca os
poemas selecionados para compor o “Eu”: uso do jargão cientificista e a inclusão de seus
versos entre aqueles produzidos pelos chamados “poetas macabros”. Essas características não
59
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.735.
60
ANJOS, 1994, p.736/739.
61
Idem, Ibidem, p.737.
62
PEDERNEIRAS, Mário. O Momento Literário In: FON FON, 1912, p.23.
40
são as únicas, na medida em que, como já analisamos, havia outras apropriações estéticas
naqueles poemas que não fizeram parte do livro, principalmente do romantismo. Para o
articulista, chama atenção a “...grande força de originalidade e merito, que mais augmentarão
quando o poeta se libertar da compreensão scientífica [dando ao verso] toda a sua original e
bizarra concepção de Arte”63.
A publicação do livro de Augusto dos Anjos gerou na crítica literária reações
ambivalentes. No jornal carioca Gazeta de Notícias64, de 14 de junho de 1912, na seção “O
Livro do Dia”, o articulista Nazareth Menezes fez uma resenha do “Eu”:
Nesse sentido, vemos uma recepção por parte da crítica que, embora reconheça certo
talento nos versos publicados, os classifica de modo não tão positivo, sobretudo, pelo uso
exagerado de termos técnicos e cientificistas. Essa ambivalência pode ser percebida, por
exemplo, em mais duas críticas literárias, publicadas, respectivamente, nos jornais Diário de
Notícias65, em 16 de julho de 1912 e, mais uma vez, na Gazeta de Notícias. Na primeira
crítica, assinada por Hermes Fonseca, lemos:
63
PEDERNEIRAS, Mário. O Momento Literário In:FON FON, 1912, p.23.
64
MENEZES, Nazareth. O Livro do dia In: Gazeta de Notícias, 1912, p.04
65
Diário de Notícias In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro.
Editora Nova Aguilar, 1994, p.49-50.
66
SILVA, Pereira. A Poesia e a Poética de Augusto dos Anjos In: Gazeta de Notícias, 1912, p.03.
41
[após informar que recebera de Augusto uma edição de seu livro, o crítico
diz:] A sua poética! É Ella, sem duvida, muito pessoal. Chega a ser mesmo
extravagante, exquisita, exdrúxula. É nessas qualidades excessivas,
classificadas por outros de defeitos, que se encontra, no entanto, a profunda
sinceridade do poeta complexo que é o Sr. Augusto dos Anjos. É impossível
acompanhá-lo nas suas cogitações, nas suas dúvidas, em todo o desespero
incontido de suas estrophes, por vezes antes de philósopho que de poeta, sem
sentir para logo o muito que há, nesse poeta, de intensa angústia inédita e
incontida – resultante lógica de uma concepção philosóphica um tanto
pessimista. (...) O Sr. Augusto dos Anjos, se não fosse fundamentalmente
poeta, não teria conseguido com sua téchnica scientífica os effeitos
emocionaes que dão a seu livro uma originalidade extravagante, mas
incontestavelmente esthética.
67
OITICICA, José. A Poesia dos Novos. In: A Época, 06 de Outubro de 1912, p.07.
42
68
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.779.
43
69
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006, p.268.
44
eleva o nível das discussões em si, na medida em que o fenômeno/experiência que o conceito
define e ilumina se torna mais abstrato.
As experiências outrora vividas no período da sociedade feudal promoviam um olhar
para o passado que o definia como o momento em que a “promessa” havia sido feita. Entendia
o presente, por sua vez, como uma caminhada paulatina (uma peregrinação, como diria Santo
Agostinho) em direção à “Cidade de Deus”.
O futuro seria tomado como o momento em que a promessa seria cumprida.
Entretanto, na experiência da temporalidade moderna, o passado já teria “cumprido” seu papel
histórico, sendo substituído por um presente “melhor”. E o futuro, espécie de “novo presente”,
seria, nessa compreensão, um tipo de aperfeiçoamento contínuo da experiência vivida: um
futuro renovado continuamente no presente. Koselleck70 afirma ainda que:
70
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.290.
71
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007. p.158.
45
72
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007, p.12/25-26.
46
73
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014, p.142.
47
Ambas as formas de mímesis são plausíveis. O que as distingue são seus vetores. No
caso da “mímesis da representação”, a familiaridade do receptor é maior, dada a semelhança
com aquilo que se toma como referente, enquanto que na “mímesis da produção”, prevalece a
diferença em relação àquilo que atua como referente. O receptor/leitor, então, decifra essa
diferença ao compreender sua “produção”. Para Costa Lima75, ocorreria um “...alargamento
do real, a partir mesmo de seu déficit anterior”. O receptor não entra em contato com o já
conhecido, mas com uma representação distinta de algo tomado como referente/real.
Como mostramos, houve um diálogo, pautado pelo vetor da “semelhança”, de algumas
poesias de Augusto dos Anjos com elementos da estética romântica. Todavia, sua poesia
também dialoga com outras dimensões e aspectos de seu momento histórico. Por exemplo,
mesmo que o romantismo ainda tivesse certa influência na virada para o século XX, outros
padrões estéticos e tendências de pensamento também marcavam sua presença.
Uma dessas tendências, que se convencionou denominar “cientificismo”, pode ser
encarada como espécie de vulgata da filosofia de Auguste Comte (1798-1857) e de certos
elementos do darwinismo, sendo difundido por alguns autores que ecoaram nos versos de
Augusto dos Anjos. Sobre a força da influência do pensamento positivista nos setores
intelectuais brasileiros, Márcia Sabino76 nos diz ainda que:
74
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.169-170.
75
LIMA, 1980, p.170.
76
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2006, p.19.
48
Cabe lembrar que na experiência histórica de Augusto dos Anjos, sua formação
cultural e educacional lhe dava certo capital simbólico para circular no campo social e tentar
entrar no campo literário. Deduzimos isto levando em conta tanto seus estudos com seu pai,
no engenho onde moravam, assim como, sua passagem pelo Lyceu Paraibano (1901-1904),
em João Pessoa, e, posteriormente, pela Faculdade de Direito, em Recife, no período de 1904
à 1907, onde bacharelou-se como advogado.
Nesse movimento, a poesia de Augusto dos Anjos não eliminou a utilização de
elementos derivados da estética romântica. Em meio à todo um complexo de práticas e
discursos vigentes no Brasil nos primeiros anos do século XX, sua poesia se apropriou dos
ideais e conceitos derivados da ciência, cujos postulados eram entendidos como
potencialmente positivos. Apropriou-se, também, de outros padrões estéticos, como o
Parnasianismo e o Simbolismo. Daí, as múltiplas interpretações possíveis e já estabelecidas
acerca de sua poesia. Tais apropriações proporcionaram diversos meios de expressão poética.
Márcia Regina Naxara observou como e em que medida todo um conjunto de
sensibilidades românticas se aliaram fortemente com alguns dos pressupostos do que se pode
chamar de pensamento cientificista. É possível verificar, na cultura letrada brasileira ao longo
do século XIX, um esforço conjunto que visava estabelecer uma compreensão da nação
brasileira, de suas origens e de seus horizontes. Buscava-se, segundo Naxara, formular uma
identidade que oferecesse um sentido explicativo plausível para o Brasil. Este, por sua própria
configuração histórica, apresentava-se heterogêneo, tanto numa perspectiva política, quanto
social, religiosa, étnica, etc. Disto derivaria essa aliança entre a intuição romântica e as teses
científicas, cientificistas e filosóficas da época. Conforme Naxara77, para forjar essa
identidade nacional
77
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido
Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora UNB, 2004, p.116.
49
A poesia de Augusto dos Anjos inscreve-se nesse movimento, interagindo com essa
ambivalência, aproximando-se, paradoxalmente, pelo vetor da “semelhança”, como também,
pelo vetor da “diferença”, tanto da estética romântica, quanto de outros padrões estéticos em
voga, sobretudo, ao entrar em contato com o pensamento cientificista.
Nesse sentido, elaborava-se com a associação entre elementos românticos e
cientificistas, uma espécie de aliança entre a intuição subjetiva e a racionalidade objetiva. De
certo modo, isso está subtendido na dupla mitologia, centrada na fusão harmônica das “três
raças” e na idealização do “índio”. Através destes pilares, tentava-se fundamentar a identidade
brasileira na virada do século XIX para o século XX78.
Essa aproximação entre a intuição romântica e os louvores ao pensamento científico
pode ser verificada em outro soneto de Augusto dos Anjos, intitulado “A Aeronave”, o qual
tematiza à presença da técnica, da ciência, que marcava inúmeros aspectos da vida em
sociedade na virada do século XIX para o século XX. Esse soneto demonstra um misto de
intuição subjetiva (comum à sensibilidade romântica) com o reconhecimento incipiente da
ciência como portadora de valores objetivos e positivos, traduzindo-se como
confiança/esperança investida no progresso científico. Vejamos esse soneto de Augusto79:
78
“Foram elaboradas “Representações que se interpenetram, em especial se considerarmos o momento de sua
formulação: momento de valorização da crença no progresso, mesmo quando tomando nuances diferenciadas,
nas teorias e doutrinas raciais; na influência do meio na formação dos povos; na evolução linear do mundo e no
crescente desenvolvimento em direção à civilização”. NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e
Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora
UNB, 2004. p.116.
79
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.398.
50
A ciência é indicada no último verso como “augusta”, como uma das manifestações
mais elevadas do espírito humano, ainda que também se mostre como técnica “misteriosa”, a
qual impulsiona a aeronave. Por conta disso, a aeronave (não conseguimos precisar se era um
avião ou zepelim) não conhece limites/limitações, seja percorrendo a vastidão azul do céu,
seja sobrevoando a imensidão dos mares. É como se essa aeronave fosse símbolo daquilo que
levaria a sociedade humana para outro estágio, elevando-se “em busca do infinito”.
Como já sugerimos, a chamada a temporalidade moderna é associada a todo um
conjunto de valores e temas: é um tempo (do) novo, da novidade constante, marcada pela
aceleração, pela rapidez. No soneto de Augusto dos Anjos há uma ambivalência, pois, apesar
de apreender e enaltecer a potência positiva da ciência, não faz menção em seus versos à esses
temas próprios do conceito moderno.
A aeronave parece superar o espaço (cinde a “vastidão”; “atravessa”; “sulca”;), mas
não há indicativos de aceleração, de rapidez. É como se a percepção do eu lírico em relação às
possibilidades da ciência, simbolizada pela aeronave, ainda fosse pautada por um misto de
sensibilidades de origem romântica somado à um olhar mais simpático à modernidade em
processo de consolidação.
Antônio Luiz Silva Filho80 discute de maneira fértil a dialética da relação entre espaço
e tempo, sobretudo, nas práticas da aviação. Sob as sensibilidades modernas, o avião seria um
dos emblemas desse período histórico na medida exata em que sintetiza o conhecimento
técnico e científico que permite ao avião atravessar o espaço de dezenas de milhares de
quilômetros numa velocidade cada vez maior. Ou seja, a aplicação da técnica/ciência, no caso,
em relação ao avião, não deve proporcionar apenas a travessia do espaço. Mais do que o
espaço, o que deve ser vencido é o tempo utilizado para percorrê-lo.
A prática inovadora, “moderna”, da aviação, encerrada a “Grande Guerra” (1914-
1918), apresentava-se como um desafio permanente. Com o avião, segundo nota Antônio Luiz
Silva Filho81, o espaço-tempo eram os “inimigos” primeiros da potente máquina voadora:
80
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Um Emblema da Modernidade. In: I Encontro Nacional Espaços e
Modernidade – UFRN, 2018. p.1-25. (No Prelo)
81
SILVA FILHO, 2018, p.01.
51
Nesse caso em tela, o hidroavião não apenas “cinde” a vastidão, “sulcando” o espaço,
“devassando a terra”: os referidos pilotos atravessam o percurso estabelecido na maior
velocidade possível. Ainda conforme Silva Filho82, “à diferença dos dias atuais, marcados
pela trivialidade massiva (e não raro maçante) das viagens de avião, essa forma de
deslocamento despertava outrora conotações de bravura pessoal e rara habilidade no trato com
as máquinas”.
Os pilotos eram tratados como verdadeiros heróis e a prática e a difusão da aviação
então nascente, não somente no Brasil, como no mundo, atrelava-se aos signos primeiros da
modernidade. Misturava-se, portanto, a técnica, a velocidade e a audácia desses homens que
desafiavam, em seus raids, não só o tempo e o espaço, como a própria morte.
Nicolau Sevcenko também observou como as sensibilidades modernas no Brasil, mais
especificamente em São Paulo, nas duas primeiras décadas do século XX, manifestavam-se.
Entre os símbolos primeiros do tempo moderno, nessa cidade, estavam os automóveis e os
aviões. Tanto um como o outro, associavam-se àquelas noções também observadas por
Antônio Luís Silva Filho: quer fosse com o automóvel, quer fosse com os aviões, seus pilotos
desejavam alcançar velocidades cada vez maiores, como visto nas corridas automobilísticas,
assim como, nos raids aéreos. Tomemos como contraponto àquele texto poético de Augusto
dos Anjos acerca da Aeronave, outra poesia, escrita e publicada por Luis Aranha (1901-1987),
intitulada o “Aeroplano”83. Vejamos a primeira, a segunda e a sexta estrofes:
82
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Um Emblema da Modernidade. In: I Encontro Nacional Espaços e
Modernidade – UFRN, 2018. p.10. (No Prelo).
83
ARANHA, Luís In: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.23-24.
52
Podemos verificar nesses versos imagens mais condizentes com os ícones associados à
modernidade científica. Esse poema de Luís Aranha pauta-se mais pelo vetor da
“semelhança” em relação aos ideias modernos da ciência, do que o texto de Augusto dos
Anjos, cujo vetor de “semelhança” o aproxima de forma mais direta com os padrões
românticos. O texto de Aranha opera com imagens muito mais próximas à da velocidade: o eu
lírico desse poeta não somente queria voar “bem mais alto”, como também dar “cambalhotas
repentinas”, “loopings fantásticos”, “saltos mortais”, “sibilando / a sinfonia da velocidade”.
As representações de Augusto, no texto poético “A Aeronave”, portanto, configuram-se num
misto entre sensibilidade romântica e enaltecimento da ciência.
Como observou Sevcenko, os carros, tais como os aviões, também associaram-se
intimamente com os ideias fundamentais da modernidade. No caso dos automóveis, “o
equipamento, indiferente à sua utilidade ou a quem os dirigia, sucumbira ao símbolo. Desde
cedo os mais jovens passaram a dispensar os choferes para porem à prova o desempenho dos
veículos.”84 Mais do que sua utilidade, visava-se testar sua aceleração máxima.
Sevcenko também registra o uso simbólico dos aviões, que na Grande Guerra
desempenharam o papel de “terceira arma”: “Recordes de velocidade, de distância, recordes
de altura, recordes de peso, de leveza, de mergulho livre”85 eram superados constantemente.
Os aviões, enquanto emblema da modernidade, instilavam no público e nos pilotos, a
sensação de desafio em face da morte: muitas vezes, os desafiantes não conseguiam de fato
vencer. Ainda sob seu aspecto simbólico, Sevcenko comenta a chegada, em São Paulo, da
missão fascista de aviação à convite de personalidades ligadas à comunidade italiana residente
nessa cidade. Após os visitantes marcharem com suas “camisas negras”, a exibição
...se concentrou sobre os bairros operários, onde era mais densa a presença
italiana, constando de apavorantes simulações de bombardeio aéreo em
escala. O clímax foi quando, de uma avião a 3 mil metros de altura, pela
primeira vez em São Paulo, para aflição do público, um dos rapazes se atirou
de pára-quedas.
Nesse caso, vemos aí, também, indícios da utilização desses símbolos modernos com
atividades políticas, como visto acima, claramente numa demonstração de força política por
parte de grupos fascistas, os quais, provavelmente tentavam conseguir novos adeptos entre a
população paulista. Na confluência desse conjunto de práticas, experiências e discursos,
desenvolviam-se, no Brasil, à época em que Augusto dos Anjos iniciou-se na escrita de
84
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.
São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.74.
85
SEVCENKO, 1992, p.78.
53
poesias, novas sensibilidades, sociais e literárias, afinadas com a ideia de modernidade, que
questionavam uma série de valores previamente estabelecidos. Segundo Bosi86,
86
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.168.
87
Para Alfredo Bosi (2003, p.263), “O Parnaso legou aos simbolistas a paixão do efeito estético. Mas os novos
poetas buscavam algo mais: transcender os seus mestres para reconquistar o sentimento de totalidade que
parecia perdido desde a crise do Romantismo. (...) Visto à luz da cultura europeia, o Simbolismo reage às
correntes analíticas dos meados do século, assim como o Romantismo reagiria à Ilustração triunfante em
[17]89. Ambos os movimentos exprimem o desgosto das soluções racionalistas e mecânicas e nestas
reconhecem o correlato da burguesia industrial em ascensão; ambos recusam-se a limitar a arte ao objeto, à
técnica de produzi-lo, a seu aspecto palpável; ambos, enfim, esperam ir além do empírico e tocar com a sonda
da poesia, um fundo comum que susteria os fenômenos, chame-se Natureza, Deus, Absoluto ou Nada.”.
88
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.437.
54
Como dissemos, é inegável o contato da poesia de Augusto dos Anjos com elementos
do pensamento cientificista. Sua passagem, entre 1904-1907, pela renomada Faculdade de
Direito, em Recife, o colocou em contato com todo um conjunto de reflexões elaboradas,
sobretudo, desde meados do século XIX, seja no âmbito especificamente literário, seja nos
âmbitos científicos e filosóficos. A poesia de Augusto dos Anjos não apresenta,
necessariamente, uma oposição total à ciência. Entretanto, o eu lírico expresso em muitos de
seus textos poéticos não comunga com um horizonte de expectativas que seja essencialmente
positivo para o qual o “progresso científico” nos conduziria.
89
“Os coetâneos dos “poetas malditos” chamaram-se decadentes. Como evasão, e mesmo loucura, foi sentido o
esforço desses homens que voltavam as costas ao prestígio das realidades “positivas” e se apoiavam em uma fé
puramente verbal, em uma liturgia magramente literária, enfim, numa “oração” veleitária e narcísica. O
malogro do Simbolismo, como visão de mundo, foi suscetível em toda parte. Mas, despojado das suas
ambições de abraçar a totalidade do real, o que restou dele? Um modo de entender e de fazer poesia, isto é,
aquela face estetizante do movimento que lembra o Parnasianismo, a arte pela arte, e, nos momentos de
entropia, o culto das fórmulas, o dandismo à Wilde e à D‟Annuzio, epígonos nos quais se aguou o vinho forte
dos profetas e fundadores.” BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo.
Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003. p.266.
90
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.142.
55
Alguns dos sentidos atribuídos aos valores da ciência, na modernidade, estão presentes
nos versos de um soneto91 publicado no jornal O Comércio, em 1905, período no qual
Augusto cursava faculdade em Recife. Tal soneto é dedicado ao filósofo Friedrich Nietzsche
(1844-1900):
Neste soneto vemos uma mistura de elementos. Há uma crítica ao “filósofo moderno”,
que talvez tome como símbolo o pensador alemão a quem o texto foi dedicado. Vemos
lampejos do simbolismo, pois, na medida em que esse filósofo moderno, com suas meditações
vãs, nada achava, mesmo realizando uma espécie de autópsia da realidade (“escalpelaste todo
o cadáver humano”), é sugerida a existência de uma realidade que permanecia impenetrável,
ocultando “o mistério das cousas”. O poeta e a poesia parecem mais próximos dessa
“realidade oculta” do que a ciência, o cientista e o “filósofo-moderno”.
O contato com o pensamento cientificista não gerou otimismo nesse eu lírico: se a
ciência era uma ferramenta válida, se era um poderoso instrumento de transformação e
conhecimento, era também uma inelutável fonte que parecia rubricar um destino mais
pessimista do que otimista.
Não se trata de negação da ciência, mas da adoção de uma perspectiva marcada
simultaneamente pelo vetor da “semelhança” e da “diferença”, que aceita o que a ciência diz
principalmente porque seus pressupostos confirmavam, para nossa existência, um inexorável
processo de transformação e dissolução. Vejamos, sobre isso, o poema “Idealisação da
Humanidade Futura”92:
91
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.468.
92
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.17.
56
93
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007, p.188.
57
Nos versos de Augusto dos Anjos abundam termos técnicos, científicos, assim como,
menções à religiões antigas e orientais. As palavras de potência em sua poesia, por outro lado,
eram basicamente derivadas da ciência e era com estas “palavras-mágicas” que o seu eu lírico
desvelava parcialmente o universo, mesmo que isso não implicasse em utopias e otimismo94.
Alguns “personagens” ligados, sobretudo, à ciência e à reflexão filosófica, também aparecem.
Vejamos o soneto “Agonia de um Filósofo”95:
94
“Foi no contato com o ambiente acadêmico que o poeta familiarizou-se com a ciência em voga, especialmente
das doutrinas de Ernest Haeckel, muito lido na época. Absorve de tal modo aqueles termos que passa a usá-los
mesmo nas conversas íntimas, com amigos, sem perceber. Não é de admirar, também, que sua poesia esteja
coalhada dessas palavras...” REIS, Zenir Campos (Org.). Literatura Comentada: Augusto dos Anjos (Textos
Selecionados, Estudo Histórico-Literário e Atividades de Compreensão e Criação). São Paulo. Editora Abril,
1982. p.07.
95
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.12.
58
o Apeiron96, que não possuía forma ou conteúdo, mas que existiria subjacente à todas as
coisas, em todos os seres.
A agonia desse filósofo parece ser a de não conseguir, por mais que estude,
compreender essa “substância universal”97 e parece referir-se tanto àquele princípio postulado
pelo grego Anaximandro, quanto à pressupostos cientificistas.
Há a presença regular tanto de termos técnicos, como aqueles presentes no soneto
citado acima, quanto de nomes de pensadores eminentes no período cientificista, entre os
quais Ernst Haeckel (1834-1919) e Herbert Spencer (1820-1903), além de Buckle, Darwin,
Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau98, autores estes difundidos pelos principais expoentes da
Escola de Recife, por exemplo, por nomes como Sílvio Romero (1851-1914), Tobias Barreto
(1839-1889) e Clóvis Beviláqua (1859-1944).
Lilia Moritz ressalta que, a partir da Escola de Recife, “...se fez [uma aplicação] das
máximas deterministas a áreas distintas, como a literatura, a crítica e a poesia” 99. Por
exemplo, na terceira estrofe da primeira parte do longo poema intitulado “Os Doentes”100,
lemos: “Tentava comprehender com as conceptivas / funções do encephalo as substâncias
vivas / que nem Spencer, nem Haeckel comprehenderam...”.
É provável que o nível de compreensão do poeta em relação aos termos técnicos e
científicos empregados em seus versos possa não ter sido tão aprofundado, mas não podemos
dizer, também, que o uso de tais termos figurasse como gratuito em sua poética. Esses
empregos e apropriações ajudam na comunicação da visão de mundo que muitos de seus
poemas se empenham em transmitir. Para Ferreira Gullar101, “Dessas concepções
materialistas, atingiu-o sobretudo a noção da morte como fato material, da vida como
processo químico dentro do qual o corpo humano não era mais que uma organização “de
sangue e cal”, condenada inapelavelmente ao apodrecimento e à desintegração.”
Essa concepção poética que privilegia a morte e esse processo contínuo de
desintegração, como citado acima, pode ser observado em outro soneto de Augusto, intitulado
96
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Editora Martins Fontes. 2007, p.71.
97
“Lendo [Herbert] Spencer [Augusto dos Anjos] convenceu-se de que a ciência é incapaz de penetrar a essência
das coisas – o incognoscível –, a realidade absoluta que seria fonte de todo conhecimento humano; que o
evolucionismo não era uma fenômeno limitado aos seres vivos mas se estenderia a todo mundo material e
também à sociedade humana. Com Haeckel, aprendeu que a monera estava na origem de todos os seres vivos.”
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.16-17.
98
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.148.
99
SCHWARCZ, 1993, p.151.
100
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.50.
101
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.17.
59
“Budismo Moderno”102. Em nossa interpretação, esse soneto representa a potência dos saberes
médicos/científicos, simbolizados na figura do “Doutor”, do médico-cientista:
102
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.38.
103
ANJOS, 1912, p.05.
60
Nesse soneto, em seu primeiro e sonoro verso, a figura do dramaturgo grego Ésquilo é
evocada, passeando junto com o eu lírico. Ambos vislumbram a ordem subjacente à todas as
coisas. Tal ordem seria condicionada pela ação da noção de “prótilo”, a qual faz menção a
uma hipotética substância primordial que estaria presente em todas as coisas. Nessa lógica,
104
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.39.
61
Deus é associado à mônada, que também pode ser entendida como essa substância ou
princípio primordial, algo quase espiritual. Ainda que escape à compreensão do cientista-
filósofo, a pressuposição dessas substâncias e energias intra-cósmicas parecem trazer senão
tranquilidade, pelo menos uma espécie de resignação.
A inclusão de termos deterministas e cientificistas, portanto, não era uma
peculiaridade vista apenas em Augusto dos Anjos. Do que se convencionou chamar “literatura
naturalista”, vários autores possuíram práticas semelhantes à dele. Para Lilia Moritz105
Além desses escritores citados acima, Lilia Moritz aponta, também, outros literatos,
tais como Raul Pompéia, Afrânio Peixoto e Graça Aranha106. Vemos uma prática semelhante
em outro soneto de Augusto dos Anjos, “Louvor à Unidade”107:
105
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.151.
106
SCHWARCZ, 1993, p.152.
107
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.173.
62
“monista” que parece tranquilizar a percepção do eu lírico, indicado no verso “O regresso dos
átomos aflitos / Ao descanso perpétuo da unidade!”, pois, tudo que será dissolvido pelo
movimento natural da existência, seja orgânico ou inorgânico, retornaria à essa mônada, à
essa substância unitária original então presumida. Segundo José Paulo Paes108,
Esses ecos filosóficos e cientificistas, por exemplo, também podem ser observados no
soneto “Minha Finalidade”109, incluído na segunda edição do “Eu”:
Pré-determinação imprescriptivel
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, apparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrivel!
Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
– A águia dos latifúndios florentinos!
Novamente, é indicada a existência de uma potência misteriosa que tudo anima e que
incita os cientistas-filósofos a tentarem compreendê-la, ainda que tal energia permaneça
“inapreensível”, mesmo que tenha a capacidade de determinar todos os destinos estando,
portanto, presente em todos os seres. O primeiro verso do soneto (“turbilhão teleológico
incoercível”) faz referência à uma noção de “progresso” associada à de “evolução” como
transformação permanente. Ambas sugerem um movimento, senão rápido, acelerado, pelo
menos dinâmico e contínuo. Esse “turbilhão”, nos versos de Augusto dos Anjos, é uma
evolução para a morte, uma evolução que tem como pré-condição a dissolução.
108
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o Evolucionismo às Avessas. In: Revista Novos Estudos CEBRAP,
nº 33, julho de 1992, p.91.
109
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.195.
63
110
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.308
111
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.106.
112
ANJOS, 1912, p.41.
64
Tal como nos versos do soneto “Mater”, nesse segundo soneto, “Mater Originalis”,
não somente há referência aos pressupostos cientificistas, quanto uma menção direta à Herbert
Spencer, o qual, junto com Haeckel, eram dois expoentes dessa tendência. Como afirma Paulo
Alves Porto113,
113
PORTO, Paulo Alves. Augusto dos Anjos: Ciência e Poesia. In: Química Nova Escola. Nº 11, maio de 2000,
p.31.
65
114
“(...) no último quartel do século XX, o sentimento geral era de que a poesia romântica havia sido
ultrapassada, não constituindo-se como meio legítimo de representação da nova mentalidade racionalista,
relativista, materialista, naturalista, anti-metafísica e anti-teológica surgida em meados do século.”. SABINO,
Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.14.
115
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.152.
116
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.21.
66
termos com uma finalidade poética, estética, ou seja, explorando o aspecto conotativo dessa
terminologia cientificista. Márcia Sabino117 afirma ainda que:
117
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.48.
118
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.01/12. p.09-10. Disponivel em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf
67
119
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.10/12. Disponível em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf
120
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.48.
121
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.72/73. Disponível em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf Nota: incluímos, entre
colchetes, trechos que não foram citados por Márcia Sabino, quando a mesma incluiu esses versos em suas
análises.
68
Márcia Sabino caracteriza como pedantismo a inclusão dos traços cientificistas feita
sem produzir uma expressividade poética mais forte. Em nossa leitura, os versos de Martins
Junior, possivelmente por conta do recurso excessivo do vetor da “semelhança”, parece
apresentar-se mais como um conjunto de (re)afirmações ou elogios aos preceitos
cientificistas, sem muita qualidade poética. Nesse ponto, concordamos com Sabino, no que
diz respeito à uma menor intensidade da expressão poética. Contudo, como indicamos acima,
o próprio Martins Junior mostra no prefácio desse livro que daria uma atenção menor às
questões estéticas, haja vista que, na poesia científica, valia mais a inspiração no pensamento
científico/cientificista do que buscar o efeito estético propriamente dito.
Entretanto, ainda que em determinados versos de Augusto dos Anjos também haja
esse diálogo com o vetor da “semelhança”, pela inclusão de termos cientificistas em seus
textos poéticos, podemos verificar que seus versos mais significativos aproximam-se do vetor
da “diferença” e, portanto, daquilo que Luiz Costa Lima denominou como “mímesis da
produção”, além de investir mais energia na expressividade estética/poética em tais versos, o
que não ocorre com Martins Júnior.
De certo modo, o pensamento positivista e cientificista atribuíam à ciência uma
potência otimista. Seria com a ajuda da ciência que poderíamos construir um mundo e uma
sociedade melhores. A apropriação dessas correntes no campo intelectual brasileiro, portanto,
esteve associada ao esforço de forjar, para o Brasil, uma identidade cultural e social singular,
como já indicamos, centrada no mito da fusão das três raças.
Assim sendo, tendo como horizontes intelectuais a defesa da república e do
abolicionismo e a crítica da escravidão, criava-se um conjunto de frames possíveis para o
enquadramento de determinadas representações, quer fossem elas literárias, poéticas, ou não.
Sobre essa perspectiva, Mônica Velloso122 comenta que:
Essa perspectiva otimista, quase altruísta, não transparece nos versos de Augusto dos
Anjos, senão em todos, principalmente nos mais expressivos. Isto significa uma aproximação
122
VELLOSO, Mônica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte. Editora Autêntica. 2010, p.42.
69
com o vetor da “diferença”, mais do que com o da “semelhança” em relação aos seus versos
mais significativos. Se o meio, a raça e o momento definem o destino das sociedades e
nações, para o bem ou para o mal, como se acreditava, em diversas poesias de Augusto dos
Anjos, foi a vertente negativa dessa determinação que se enfatizou esteticamente.
Entretanto, há que se deixar rubricado o seguinte ponto. Na leitura dos versos de
Augusto dos Anjos, se definimos o processo dissolutivo que ele representa em suas imagens
poéticas como “negativo”, é somente em contraponto ao otimismo que marca aquele quadro
geral descrito, por exemplo, por Mônica Velloso um pouco acima.
Esse processo dissolutivo, descrito por suas imagens poéticas e em consonância com a
visão de mundo que seu eu lírico expressa, não é negativo por ser “maléfico”, “maligno”.
Essa dissolução existencial é natural, inevitável, inelutável. É negativa ao modo de uma
antítese dialética. Não há horizonte positivo para além dessa certeza, salvo se eliminássemos
da condição humana seus conflitos, suas doenças e a morte comum à todos.
Somos tentados à afirmar que essa inclusão de palavras e metáforas diferenciadas,
menos otimistas e mais céticas, pessimistas, seria a tentativa de uma espécie de
questionamento dos padrões estéticos com os quais ele dialogou. Sobre isso, Ferreira Gullar123
afirma que: “Questionar a literatura significa abandonar os esquemas, reencontrar a
experiência viva e palpitante do real, fonte da obra de arte. Sem esse questionamento, não há
criação literária propriamente dita, embora haja literatura.”.
A utilização do vetor “diferença” na raiz da atividade mimética não significa o
abandono ou a recusa imediata dos elementos presentes num padrão estético que já estão
aceitos num determinado campo social e literário. Tal questionamento consistiria mais em
forçar os limites desses instrumentos estéticos de reflexão e de representação, proporcionando
o aparecimento de outras formas de ficcionalização das sensibilidades e experiências
presentes num determinado momento histórico.
Isto significa que, na medida em que a atividade mimética não se resume à mera
imitação de algo que preexiste ao texto, mas, sim, na construção de um conjunto de
representações que, como núcleo gerador de significado, colabora na construção daquilo que
denominamos como “realidade” ou referente. Sobre isso, nos diz ainda Luiz Costa Lima124
123
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.34.
124
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao Pensamento. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira. 2000,
p.65.
70
125
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.168.
126
FARIA, José Escobar. A poesia cientifica de Augusto dos Anjos. In: Revista do Livro. Orgão do Instituto
Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Ano I, Nº 1-2, Junho de 1956, p.111-116. Outro
estudo crítico interessante é: BARROS, Eudes. Aproximações e Antinomias entre Baudelaire e Augusto dos
Anjos. In: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 1964, p.01.
72
CAPÍTULO 3
O GOSTO PELA NOITE E OS IDEAIS DE
AMOR “ROMÂNTICO” E “CARNAL”
Outros dois conjuntos temáticos associados aos elementos do padrão romântico podem
ser identificados na poesia de Augusto dos Anjos. O primeiro conjunto temático diz respeito à
predileção pelo período noturno, quase sempre correlato ao tema das “ermas paragens” e
associado às imagens do mundo natural encarnando pressões anímicas. O segundo conjunto,
por sua vez, aborda os ideais de amor “romântico” e amor “carnal”, atribuindo significados e
sentidos distintos à figura e à condição feminina.
Em relação ao primeiro conjunto temático, podemos analisar alguns textos poéticos de
Augusto dos Anjos. Por exemplo, em seu soneto “A Noite”127, publicado na segunda edição,
já póstuma, de seu livro “Eu”, em 1920:
A nebulosidade ameaçadora
Tolda o ether, mancha a gleba, aggride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, ha instantes fora,
127
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920. p.229.
74
Segundo Antônio Luiz Silva Filho128, além dos elementos já indicados como inerentes
à modernidade, quais sejam os temas da “novidade” e da “aceleração”, a emergência desse
período histórico também compreende a dialética da luz e de seus opostos: “Sem dúvida, a
metáfora da luz é uma das mais recorrentes imagens quando se fala de progresso. A escuridão
sugere atraso, retrocesso, opressão. A luz constitui abrigo da emancipação humana, supressão
da autoridade tradicional, reino da mudança histórica.” Nessa compreensão, os versos acima
indicam, precisamente, a ausência do que podemos chamar de “luminosidade” moderna. A
atmosfera noturna proporciona o ambiente ideal para as incertezas sentidas pelo eu lírico.
Outro texto poético que tematiza uma sensação de incômodo, relativa à noite, é a
poesia intitulada “Insônia”129, publicada na primeira edição do “Eu”, em 1912. Atormentado
por uma “... voz a gemer...” continuamente, o eu lírico segue, paradoxalmente, insone e
sonâmbulo, quase como se estivesse numa espécie de transe hipnótico.
A luz do dia, que põe fim à noite, concede um breve momento de tranqüilidade.
Todavia, a certeza da chegada de uma nova noite não faz dessa tranqüilidade experimentada
um momento duradouro. Vejamos, respectivamente, como o tema da noite aparece na
primeira, na nona, na décima, na décima quinta e na décima sexta estrofes:
128
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza. Museu do Ceará /
Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.81.
129
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.117-119.
75
130
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.118-119.
76
Ainda que o dia sobrevenha à noite, esta também sobrevém ao dia. O ciclo de
produtividade-descanso não ocorre para esse eu lírico. Nos versos, é expresso um processo
marcado por uma espécie de tormento noturno sucedido por um breve momento de sossego
diurno, pouco antes do cair de uma nova noite, como ressalta a décima quinta estrofe.
Como indicamos anteriormente, o campo literário apresenta imperativos e ícones
próprios, tais como escritores consagrados, aspirantes e “malditos”, cânones temáticos e
estilísticos, a existência de críticos literários e periódicos mais ou menos especializados.
Desse modo, a emergência da poesia de Augusto dos Anjos efetiva-se como a realização de
uma possibilidade inscrita em seu campo social e literário. Para Bourdieu131:
131
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1989. p.135.
132
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.74-75.
77
tais sistemas fornecem tanto o cimento para a identidade social (...) quanto
para a separação; b) embora menos estáveis que as formas verbais, os
sistemas de representação são dotados de força coercitiva (...) c) Não é por
acidente que, no início da reflexão grega sobre a mímesis, esta não se
dirigisse especificamente à arte.
Indagar a poesia de Augusto dos Anjos não é pressupor uma redução mecânica à mera
representação social, o social entendido como algo monolítico que preexiste ao texto e que o
determina, a poesia sendo, então, um reflexo passivo desse “algo anterior”, seja visto como
condição social, econômica ou outra equivalente.
Tampouco podemos dizer que é o desdobramento de um gênio imanente, ininteligível.
Mais do que isso, a poesia é ato de (re)criação ao mesmo tempo em que é a condensação de
uma atividade de representação que não é determinada por uma única dimensão, mas, sim,
pelos elementos que se fazem presentes em seu estrato temporal. Evitando essas reduções, ao
indagarmos a poesia, indagamos o momento histórico que a envolve133.
Sem perder de vista a relação intrínseca entre a atividade mimética, pela poesia, e a
atividade de representação, que não se isenta de seu lastro social, uma das questões essenciais,
para Luiz Costa Lima, é que a atividade mimética não constitui uma linguagem secundária
(ou menor) em relação à linguagem semiológica que perpassa os sistemas de representação e
que contribui na instituição de formas de diferenciação social.
A poesia de Augusto dos Anjos, enquanto atividade mimética, consistiu na utilização
da linguagem em sua função estética, diferente de sua função cotidiana, pragmática. Os
sujeitos apropriam-se da linguagem (falada ou escrita) para agir diretamente no mundo que os
cerca, para normatizá-lo, ordená-lo.
Através da utilização da linguagem (seja em sua função pragmática ou estética) os
indivíduos nomeiam as coisas, criam rótulos, definições, organizam, classificam,
discriminam, aproximam e separam os espaços e as pessoas, criam leis, permitem e
interditam. Pela linguagem, investe-se o mundo com sentidos e significados práticos, diretos,
mas também simbólicos, indiretos, que nos ajudam em nosso “estar no mundo”134.
133
“...inexiste a poeticidade em si mesma, até porque o reconhecimento do valor poético não é função da
qualidade, pretensamente objetiva, do texto, mas o resultado de um acordo entre a proposta do texto e a
aceitação do leitor; aceitação, ademais, que não há de ser interpretada como um ato individual, pois ela não se
cumpre sem a admissão, a presunção ou a premonição de uma norma estética, que, como qualquer norma, é
sempre de ordem social. O que vale dizer, o valor estético não existe por si.”. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e
Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980, p.76.
134
“Pelo uso pragmático da linguagem, pretende-se uma atuação direta sobre a realidade (...) Face à função
pragmática, a estética se diferencia por ser uma forma sui generis de comunicação. Sui generis porque só
indiretamente estabelece uma relação com o real. E nisto a mímesis se distingue das outras formas de
representação social. (...) sem dúvida, a mensagem ficcional provoca uma atuação, pelo conhecimento, sobre o
real. (...) Em consequência do exposto, resultam dois efeitos: a) a obra poética não se pode considerar
78
Vejamos outro soneto de Augusto dos Anjos que novamente privilegia o período
noturno. Intitulado, “O Morcego”137, esse texto fora publicado na primeira edição do “Eu”,
em 1912, sem ter sido publicado anteriormente em periódicos ou jornais:
realizada, a não ser no estrito sentido material, senão acolhida pelo leitor. Em si mesma, em sua textualidade, a
obra é apenas um quadro de indicações que só se ativam pela participação ativa do leitor. b) a produção ativa
do leitor torna o esquema da obra em representação de realidades diversas, de acordo com a ativação que dela
faz.”. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.76-77.
135
BACHELARD, Gaston. A Chama de uma Vela. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, 1989. p.39-59/91-
107.
136
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004. p.52-53.
137
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.13.
79
Como dissemos, a noite parece configurar uma atmosfera propícia às reflexões que
capturam o eu lírico. Traço do romantismo, é nesse período que os sonhos e outras
sensibilidades afloram, quer sejam positivas, ou não. Georges Vigarello138 assinala que desde
o século XVIII e, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, teóricos,
biólogos e outros estudiosos se debruçaram sobre os sons e sinais que nosso corpo manifesta.
O pressuposto seria que, dentro de nós, haveria um tipo de núcleo constitutivo daquilo que
nós somos. Deveríamos, então, tentar compreender o que era esse ser que parecia
internamente nos habitar.
Nos versos de Augusto dos Anjos, se nos orientarmos pela noção de que “quarto” e
“morcego” constituem metáforas para nosso corpo e consciência, percebemos: que o morcego
faz movimentos circulares sobre a rede; tenta-se atingi-lo, mas em vão; não se consegue
expulsar do quarto esse animal, fruto de “...tão feio parto”. Explorando a metáfora, ao
pressupormos a consciência como sentido íntimo de nosso ser, não podemos dissociá-la de
nós mesmos e de nosso corpo, assim como, não foi possível expulsar o “morcego” do quarto.
Como já foi mencionado, a instalação da luz elétrica, na cidade de João Pessoa, assim
como, em outras cidades brasileiras, terminou por modificar as práticas e as sensibilidades.
Não somente permitia uma nova forma de lidar com a luminosidade, como também
prenunciava a instauração de novos ritmos sociais, já não mais “presos” à luminosidade
natural, ou à falta dela. Novos costumes surgiram, assim como, novos espaços.
Entre os espaços derivados da instalação da iluminação elétrica em João Pessoa,
segundo Chagas139, “...os cinemas [em conjunto com], cafés e salões noturnos [foram] os
lugares que mais se afirmaram como espaços de lazer e principais denotativos da nova
138
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016.
139
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004. p.150.
80
época.”, em que pese, por exemplo, grupos mais religiosos enxergarem com maus olhos esses
estabelecimentos, sobretudo, o cinema, em cujo espaço poderiam ocorrer práticas que seriam
contrárias ao que se considerava ser “bons modos”.
Nos próximos textos selecionados para análise, intitulados “A Ilha de Cipango” e
“Uma Noite no Cairo”, ambos publicados no “Eu”, vemos a já referida articulação da
temática da noite com os tópicos românticos das “ermas paragens” e do “oriente exótico”.
Nos primeiros versos de “A Ilha de Cipango”140, o eu lírico é apresentado como
solitário e sua percepção da realidade se torna confusa: nas metáforas apresentadas, as
estradas se transformam em serpentes e o eu lírico é associado a um verme que passeia em
meio à podridão que o cerca. A luz do sol, ao contrário das poesias analisadas anteriormente,
não faz os conflitos cessarem, nem mesmo momentaneamente. É o deslocamento para outro
espaço que cumpre essa função. A partir da sexta e na oitava estrofe do poema, esse eu lírico
é arrebatado e jogado na referida ilha:
140
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.104.
141
ANJOS, 1912, p.104.
142
Idem, Ibidem, p.105.
81
Vemos o tópico romântico das “ermas paragens”. Seria somente nesse lugar,
inacessível pelos meios comuns, que a felicidade plena foi possível. Todavia, a estadia nesse
local paradisíaco não pode ser contínua. Da mesma forma que em outros versos comentados
anteriormente, é a noite que faz cessar o estado positivo então vivido, por exemplo, no verso
presente na décima primeira estrofe143, “A tarde morre. Passa seu enterro.”, assim como, o
primeiro verso da última estrofe: “e a treva ocupa toda a estrada longa...”144.
Já no poema “Uma Noite no Cairo”145, que retoma o tópico das “ermas paragens”, a
estadia do eu lírico parece ter sido não somente mais breve, quanto o papel por ele assumido é
o de um simples observador: não há vivência ou experiência efetiva daquilo que é descrito,
apenas a observação, a contemplação. Vejamos146 a primeira, a quarta, a quinta, a sexta e a
oitava estrofes:
143
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.105.
144
ANJOS, 1912, p.105.
145
Idem, Ibidem, p.69.
146
Idem, Ibidem, p.69-70.
82
Percebemos que, nas poesias anteriores, a noite é sempre tenebrosa, sobretudo, quando
o próprio eu lírico toma a si mesmo como objeto de reflexão, ou seja, quando tematiza os
sentimentos que possui, ou almeja possuir. Da mesma forma, na “Ilha de Cipango”, ele
somente sofre em função daquilo que viveu, isto é, naquele espaço, num momento, ele gozou
“séculos de afagos”. No entanto, tudo lhe foi, em seguida, retirado.
Já nos versos acima, o eu lírico não vivencia, não tem experiência daquilo que
testemunha: não sai de sua posição como observador. Talvez seja essa a razão da presença de
imagens poéticas mais positivas do que negativas, então apresentadas, na medida em que o eu
lírico não é sujeito ativo em face daquilo que presencia.
Em outro poema, intitulado “Queixas Noturnas”147, mais uma vez a noite é o ambiente
para o aflorar de sensações incômodas. Composto por dezenove estrofes, vemos lamentações
derivadas de um profundo conflito interno. Tem-se consciência do dilema que o constitui, ao
mesmo tempo em que se padece diante da incapacidade de resolvê-lo. Na primeira estrofe,
vemos o eu lírico vagando pela noite: “Quem foi que viu a minha Dor chorando?! / Saio.
Minh‟alma sáe agoniada. / Andam monstros sombrios pela estrada / E pela estrada, entre estes
monstros, ando!”.
A noite termina sendo apresentada como o cenário ideal para a percepção da
incapacidade de resolver os dilemas e aflições então vividos. Na quarta estrofe 148, em
contraposição à noite, é a luz do sol que se almeja obter: “Como um ladrão sentado numa
ponte / Espera alguém, armado de arcabuz, / Na ancia incoercível de roubar a luz, / Estou a´
espera de que o Sol desponte!”
Logo, apresenta-se o eu lírico como sofrendo por conta da incapacidade de poder amar
e ser amado. O desejo de superar essa incapacidade é metaforizado como sendo uma luta “Da
147
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.114.
148
ANJOS, 1912, p.114.
83
As duas últimas estrofes acima, assim como outras, que serão analisados em seguida,
reforçam uma imagem que alguns leitores e autores atribuem à Augusto dos Anjos, que seria
um poeta avesso ao tema do amor. Contudo, se este tema é menos frequente nas poesias
colhidas em livro, se faz mais presente, mesmo de modo ambivalente, nos textos que foram
publicados apenas em jornais e periódicos. Alguns críticos e biógrafos comentam que
Augusto dos Anjos teria tido, antes de se casar, experiências amorosas mal fadadas, além da
insinuação de um suposto incesto151 o que teria152 estimulado versos mais sombrios. Contudo,
nossa análise focará mais os sentidos históricos do que a investigação biográfica em si.
Isto nos conecta com o segundo conjunto temático que discutiremos nas próximas
seções, nas quais tomamos como ponto de análise os ideais de amor “romântico” e amor
“carnal”, os quais também se relacionam com diversas sensibilidades intrínsecas à
modernidade. Muitas das novas formas de sentir terminaram transformando diversas
dimensões da vida social, seja nos seus aspectos coletivos, seja na esfera privada.
149
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.115.
150
ANJOS, 1912, p.115-116.
151
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio. 1967, p.79-82/90; RAMOS,
Adauto. Augusto dos Anjos: Resgate Histórico. Sapé, Prefeitura Municipal de Sapé, 2002, p.19; Um romance,
intitulado “Proibição”, escrito por Alexandre dos Anjos, um dos irmãos de Augusto dos Anjos, também
alimenta essas especulações In: MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora
Ideia, 2001, p.57-71
152
VINAGRE, José Caó. O Terrível Segredo de Augusto dos Anjos. Revista O Cruzeiro, 30 de Outubro de
1974, p.52-57.
84
As noções de amor “romântico” e amor “carnal” serão utilizadas, aqui, como definição
para a distinção entre determinadas práticas e imagens poéticas. A poesia de Augusto dos
Anjos também dialogou com essas noções, mesmo que, entre seus textos mais conhecidos, a
temática do amor não seja predominante, nem mesmo no modo romântico mais convencional.
Em sua poesia, identificamos a ambivalência entre imagens que operam com
representações de um amor mais “idealizado”, enquanto outras imagens tematizam o amor em
suas manifestações “carnais”. Como teremos oportunidade de ver, as manifestações “carnais”
são postas numa ótica mais negativa, em contraponto às representações mais romantizadas.
Em nossa leitura, essa distinção observada se relaciona com a dinâmica de seu tempo.
Cabe lembrar, como sugeriu Marshal Berman, que exigia-se dos sujeitos sob o signo
da modernidade um constante esforço para que fosse possível acompanhar as dinâmicas então
vividas. Como a ideia de novidade adere ao ideal de modernidade, o presente deve ser sempre
“novo” e, para permanecer assim, deve ser entendido como uma novidade em contínua
atualização. Para que essa atualização contínua se processe, ocorre um choque, pois, como
observou Koselleck153, o passado ocupa o presente como experiência “acumulada”, como
conhecimento do “já vivido”.
Dessa forma, para que a “novidade” seja uma constante contínua e progressiva, aquilo
que é considerado “tradicional” passa a ser colocado em questão, quando não,
verdadeiramente rechaçado. Em face de uma ambivalência como essa, Marshal Berman154
sugere que um dos efeitos colaterais da modernidade é nos encontrarmos “...hoje em meio a
uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria modernidade.” Isto porque,
como a novidade é anexada à todo um conjunto de valores positivos, da mesma forma, o
“tradicional”, ou antigo, passa a ser concebido, muitas vezes, negativamente. No tocante às
relações íntimas, amorosas, isso também ocorre.
Numa ótica mais próxima do amor “romântico”, os amantes, o casal, devem jurar
fidelidade um ao outro. Em compensação, para ambos, em tese, fecha-se a possibilidade de
encontrar novos parceiros. Assim sendo, o ideal de amor “romântico” preza mais a
estabilidade e a continuidade. O ideal de amor “carnal” proporcionaria a “novidade” contínua:
ausentes a fidelidade e a monogamia, vários poderiam ser os novos parceiros.
153
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.309.
154
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007. p.26.
85
Além disso, nas experiências de individualização que são estimulados pelo advento da
modernidade, há a elaboração de duas dimensões, ao mesmo tempo complementares e
opostas: a esfera pública e a privada. Se na primeira dimensão prevalece o exercício funcional
dos papéis sociais, na segunda dimensão, seria possível aos indivíduos criarem um mundo
íntimo, à sua imagem e semelhança.
Contudo, como as sensibilidades modernas se impuseram com uma velocidade
progressiva, exigindo, por sua vez, uma rápida mudança nos costumes e práticas, o que levar
em consideração, por exemplo, na vivência e construção da esfera íntima: o passado, o já
conhecido, a continuidade, ou o instante presente, a mudança, a novidade? Ou seja, como as
experiências e relações íntimas foram reformuladas e ressignificadas em face da emergência
da temporalidade moderna, sobretudo, na virada para o século XX?
Diante desse dilema, e, de certo modo, acompanhando a distinção entre a dimensão
pública e a privada, exigiu-se, antes de tudo, um maior empenho em relação àquele processo
de individualização sugerido acima. Este processo exige que o indivíduo busque uma
compreensão de si mesmo, investigando e conhecendo sua natureza mais íntima.
Nessa compreensão, essa natureza interior, íntima, passou a ser relacionada com o
corpo em sua materialidade, de um modo dualista (tal como a distinção entre o público e o
privado), operando-se uma oposição entre a “alma” e o “corpo”. Para Alan Corbin155, “é inútil
tentar compreender o sentimento de identidade que orienta a vida privada no século XIX sem
uma reflexão preliminar sobre esta permanente dicotomia entre alma e corpo que gera as
atitudes de então.”
Dessa forma, a partir do século XIX, postula-se que, na natureza mais íntima e interior
de nossa individualidade, existiria uma espécie de substância, de “ego”, de “eu”, que não se
resume na matéria, mas que também não possui um “ser” cuja natureza seja bem definida ou
compreendida, apenas pressuposta e perseguida. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, tal
substância associada ao imaterial existiria em nosso corpo, este, matéria perecível, sujeito ao
envelhecimento, à inércia, às doenças.
A influência das dualidades apontadas (esfera pública e privada, “alma” e “corpo”),
por sua vez, passa a ser transposta para a temática dos relacionamentos íntimos e amorosos.
De um lado, existiria o relacionamento amoroso, que tende à vida conjugal, e que é associado
a uma dimensão mais idealizada e positiva. Do outro lado, haveria toda sorte de
relacionamentos íntimos que nem sempre têm como pressuposto um vínculo amoroso,
155
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.436.
86
sentimental. A relação íntima poderia ser pautada exclusivamente pelo desejo e busca da
satisfação carnal, sem a exigência e os imperativos que conduzissem à maiores compromissos
para além do próprio ato. Daí, já se percebe o aprofundamento da dualidade indicada acima,
estabelecida entre “alma” e “corpo”.
Para efeito de discussão, analisaremos alguns textos de Augusto dos Anjos que se
relacionam com a problemática dessa dualidade, inicialmente apontando e discutindo os
textos que operam com imagens mais associadas à noção de ideal romântico. Em seguida,
veremos como o amor “carnal” é expresso em seus versos. Inicialmente, observemos um de
seus primeiros sonetos, intitulado “Noivado”156:
156
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.378.
157
ANJOS, 1994, p.420.
87
Nesse sentido, a figura feminina é enquadrada naquele binômio que opõe “alma” e
“corpo”, sendo que, por sua própria natureza, a mulher estaria muito mais próxima e
vulnerável aos desejos nocivos e maliciosos do “corpo”, do que do bom senso e da
temperança da “alma”. Desse modo, é por intermédio da figura feminina que os homens tanto
poderiam encontrar o amor doméstico, conjugal, cotidiano, positivo, quanto a paixão
avassaladora, a sedução, o adultério, as relações íntimas descompromissadas, mas negativas.
Em outro soneto, há mais indícios dessa ambivalência. As metáforas e imagens
poéticas ainda estão elaboradas a partir de uma estética romântica mais convencional.
158
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
88
Contudo, a atração exercida pela figura feminina apela, de certo modo, mais às características
físicas, carnais. Nesse texto, intitulado “Pecadora”159, é a mulher que é a portadora do pecado:
159
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.384.
160
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
89
Como a poesia de Augusto dos Anjos dialoga com variados polos de influência, tanto
temática, quanto esteticamente, assim como, com as sensibilidades da temporalidade
moderna, as menções ao tema do amor, em muitos de seus versos, também apresentam aquela
ambivalência associada à condição feminina.
Um soneto capaz de indicar essa questão intitula-se “Versos de Amor”162, o qual, em
sua epígrafe, é dedicado “A um poeta erótico”, porém, sem maiores identificações. Em suas
duas primeiras estrofes, lemos:
161
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
162
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.86.
90
é sugerida uma espécie de dualidade: o amor seria doce somente enquanto permanecesse não
experimentado. Nas estrofes seguintes163, vemos
O eu lírico opõe dois pontos de vista, sugerindo que o fenômeno do amor também é
uma questão de perspectiva. Talvez essa oposição indicada seja a noção de que haveria um
amor, mais egoísta, provavelmente aquele que deseja apenas possuir o corpo do outro, em
contraponto à outro tipo de amor, menos possessivo, mais relacionado com a “alma”. Nas
estrofes164 finais, lemos ainda:
Nesse sentido, o poema se encerra sem romper com uma perspectiva romântica, haja
vista a sugestão de que seria necessário inventar outra linguagem para os interlocutores
163
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.87.
164
ANJOS, 1912, p.87.
91
adquirirem uma compreensão similar do que seja o verdadeiro amor, para que, então, os
corações se preencham com o sentimento adequado e adequadamente correspondido. Isto
evitaria que, quando a morte chegasse, “meu pôdre coração roto não role, / integralmente
desfibrado e mole, / como um saco vazio dentro d‟alma!”.
O amor “romântico”, tal como a figura feminina, seria ambivalente, paradoxal. A
vivência desse sentimento tanto pode ser prenúncio de uma saudável vida conjugal, atmosfera
primeira para a construção da moderna família nuclear, quanto pode ser o gatilho inicial para
a eclosão de relacionamentos íntimos, mas sem significado imediato ou à longo prazo.
Voltado para um horizonte mais amplo, o amor “romântico” seria, inicialmente, pautado pelo
desejo, mas é transubstanciado em algo mais elevado. Como afirma Corbin165, “A paixão
passa a ser unicamente energia; provoca o choque elétrico do ser, que preludia o amor.”
Nessa concepção, a figura feminina seria o vórtice que proporciona ao homem tanto a
vida virtuosa, quanto a vida pecaminosa. Se o homem é conduzido pela mulher para esse
primeiro caminho, isto significaria a construção de um relacionamento mais etéreo, espiritual.
Se, por outro lado, é o segundo caminho que é trilhado, a mulher tornar-se-ia uma espécie de
responsável pelo desvio de seu companheiro. Para Corbin166: “A virgem etérea, diáfana, nega
a tal ponto a sexualidade de seu companheiro que se torna inquietante, insidiosamente
castradora. O homem volta a ser vítima daquela que o elevou ao nível dos anjos a fim de
melhor exorcizar sua animalidade.”
O elemento contraditório em relação à vida íntima orientada por essas duas noções de
“amor” (romântico e carnal) é que um pressupõe o outro, ao mesmo tempo, que ambos
parecem se negar mutuamente. A vivência da sexualidade, no amor “romântico”, possuiria
uma funcionalidade e uma finalidade “naturalizada” (o sexo sendo necessário para a
reprodução), o prazer proporcionado pelo amor “romântico” devendo ser espiritual.
Enquanto isso, há uma dimensão da vida amorosa, íntima, totalmente voltada ao
prazer sexual, carnal, que não pode ser negligenciada. De um lado, a esposa suscita no homem
um amor abstrato. Contudo, como sua sexualidade é normatizada por valores sujeitos à
determinadas regras morais, terminaria “negando” ao homem outros tipos de prazeres sexuais
que podem ser considerados “imorais”. De outro lado, e por conta disso, o homem justificaria
sua busca por tais prazeres da carne fora de casa.
165
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.522.
166
CORBIN, 1991, p.522.
92
Vemos como a prática da sexualidade desregrada (ou não normatizada pela tradição ou
moral convencional), atribuída ao “sátiro”, possui características completamente diferentes
daquelas associadas ao amor “romântico”. O sátiro, embriagado pelo desejo é atraído pela
sensualidade sodomita, frequenta bordéis (o bazar do meretrício), beija bacantes bêbadas, etc.
É no espaço do bordel, portanto, que o sátiro consuma seu desejo carnal. A
sensualidade que ele encontra nas “bacantes” é definida como afrodisíaca, mas associada ao
“cuspe”, o que sugere certa impureza. Além disso, a conjunção carnal é metaforizada como
uma mistura, uma simbiose: um uivo é o resultado do choque entre os corpos dos amantes. O
167
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.08.
93
desejo que o Sátiro buscava saciar é metaforizado como “a mucosa carnívora dos lobos”,
sempre famintos. O aflorar dessa sexualidade desregrada é associada à natureza do ser
humano como a expressão de uma “animalidade sem castigo”.
O amor “carnal”, portanto, é associado à “animalidade” que estaria presente em nosso
ser. É como se, na ausência de uma educação sentimental/sexual, pudéssemos ser facilmente
seduzidos pela possibilidade da fruição desregrada da sexualidade. Na poesia de Augusto dos
Anjos, em sua maioria, as referências ao amor “carnal” estão sempre envolvidas por uma
perspectiva negativa.
A ambivalência da qual falamos alguns parágrafos atrás se radicaliza. Ao passo em
que o amor “romântico” pressupõe convivência, muitas vezes o amor carnal não necessitaria,
senão, de conveniência. Logo, imerso na temporalidade moderna, e ainda no espírito daquelas
dualidades (“público” e “privado”; “alma” e “corpo”, “espiritual” e “carnal”), o amor
“romântico” mantinha ligações com a linguagem religiosa, ao passo em que o amor “carnal”
rapidamente tornava-se assunto médico168:
168
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.528.
94
169
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.529.
170
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.42.
95
171
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.538.
96
172
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.91.
173
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.539.
97
O espaço do bordel, ocupado por homens de diferentes tipos e origens, assim como a
prática das prostitutas, terminavam configurando uma ocasião perfeita para a junção de
diferentes tipos de vício, os quais iam muito além do comércio de favores sexuais,
fomentando a decadência do espírito e do organismo. Por exemplo, a partir da vigésima
terceira até a vigésima sétima estrofes da segunda parte do longo poema intitulado “As
Cismas do Destino174”, vemos algumas representações desse tema:
(...)
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos Álvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterelisavam
A substância prolífica dos semens!
Nessas imagens poéticas, o alcoólatra anda de mãos dadas com a prostituta. Para o eu
lírico, é como se não houvesse nenhuma possibilidade para uma prática saudável da
sexualidade no espaço do bordel e entre esses agentes citados. O “bêbado”, por conta do seu
alcoolismo e pela convivência com prostitutas, “esterilizava” seu próprio sêmen,
“depositando” no bordel, semiconsciente, suas “...derradeiras forças musculares”.
Como resultante da união entre ambos, alcoólatra e prostituta, derivaria uma “progênie
idiota de palermas”. Disto resultaria “mulheres sem leite” cujos filhos, “..meninos sem pai,
morrem de fome”. Cabe observar, também, que a última estrofe citada acima ainda deixa
transparecer algo semelhante ao que discutíamos alguns parágrafos atrás, acerca da aceitação
da prática da prostituição pela sociedade.
174
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.29-30.
98
Em outro poema, mais longo do que os usuais sonetos, Augusto dos Anjos novamente
opera com a imagem da prostituta. Esse texto, composto por, aproximadamente, vinte e três
estrofes, intitula-se “A Meretriz”175. Foi publicado na segunda edição do “Eu”, em 1920,
mesmo com suas estrofes finais inacabadas. As estrofes iniciais apresentam a personagem:
175
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.179.
176
ANJOS, 1920, p.180.
177
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.437.
99
178
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.180.
179
ANJOS, 1920, p.181.
180
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p. 60.
181
ANJOS, 1912, p.60.
100
182
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.60-61.
101
A fome pode ter impelido a moça a vender “...sua virginal coroa” ao ingressar na
prostituição. Após ter sido “consumida” pelos adeptos dos serviços oferecidos pelo
meretrício, a sociedade, ainda que não elimine essa prática e seus espaços, marginaliza e
“enxota” seus agentes. É interessante ver a indicação de causas sociais que motivariam a
entrada no meretrício, o que diminui um pouco a atribuição de uma condenação num sentido
moral geralmente feita à essa prática e às mulheres desse ofício.
Em que pese os sentidos negativos atribuídos ao amor “carnal”, a percepção da
sexualidade como uma atividade fundamental para a vida também é representada, como no
soneto intitulado “Volúpia Imortal”183:
183
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.220.
102
moderno implica numa dinâmica que toma como alvo a ser perseguido um futuro que deve se
comportar novidade e aperfeiçoamento contínuos, essas três instâncias temporais sugeridas
pelas imagens poéticas de Augusto dos Anjos, menos do que novidade e aperfeiçoamento,
indicam uma espécie de eternidade, de um tempo que perdura.
Três tipos de matéria em particular simbolizam essas três instâncias temporais: a
carne, os ossos e o pó/cinzas. Partindo do princípio de que a temporalidade moderna traz
consigo a novidade, a aceleração, projetando um conjunto de expectativas mais positivas do
que negativas para o futuro, há, nessa dinâmica, uma passagem, um fluir do tempo.
Na medida exata em que o ser humano é temporal, é finito, no mesmo movimento em
que ocorre essa dinâmica da temporalidade moderna, o tempo, nas imagens poéticas de
Augusto dos Anjos, impactaria os indivíduos de maneira negativa. Para o ser humano, finito,
a passagem do tempo, mais do que uma novidade ou um aperfeiçoamento, é um desgaste,
uma corrupção. Cada dia vivido é um dia a menos, não um dia acrescentado.
Esse fluxo temporal seria visto, primeiramente, no tempo da carne. A cada dia, seu
envelhecimento se intensifica. Dores e doenças se tornam mais presentes, mais comuns.
Como vimos no primeiro quarteto do soneto “Volúpia Imortal”, depois que a carne apodrece,
haveria o tempo do osso, este, mais perene do que a carne. Nele, ainda se faz presente o
“genesíaco prazer”, a “luz radial” necessária à perpetuação da “espécie forte”.
Acerca da terceira instância temporal, o tempo do pó, da cinza, simbolizaria um tempo
para além do tempo do osso, quando esse já não existisse mais, quando tivesse se tornado pó,
“cinzas”184. Ao contrário da temporalidade moderna, que sugere mudança, novidade,
melhoria, essas três instâncias temporais identificadas na poesia de Augusto dos Anjos
simbolizariam a finitude da carne e um tempo que perdura, que está para além do cronológico.
Como pudemos ver, há na poesia de Augusto dos Anjos diversas referências ao amor,
seja em sua interpretação romântica, seja naquela visão mais voltada para a dimensão carnal.
Essa distinção, por sua vez, aponta um conjunto de pares que as sensibilidades modernas
estimularam, a saber, o público e o privado, a alma e o corpo, o amor romântico e o carnal.
Neste domínio específico, as representações literárias acerca do amor carnal são
envoltas numa ótica mais negativa, haja vista que tais práticas contribuiriam para a aceleração
da degradação do corpo e da alma, ainda que esse processo de dissolução fosse tomado como
naturalmente inevitável.
184
Teceremos mais alguns comentários acerca das imagens do pó, da cinza, em nosso sexto capítulo.
103
CAPÍTULO 4
A IDENTIDADE NARRATIVA, A ESCRITA
DE SI E A ILUSÃO BIOGRÁFICA
185
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014.
104
perpassam a elucidação das distinções entre “mesmidade” e “ipseidade”. Para Ricoeur186, “de
um lado, a identidade como mesmidade (latim: idem; inglês: sameness; alemão: Gleichheit);
Do outro, a identidade como ipseidade (latim: ipse; inglês: selfhood; alemão: selbstheit;).
Ipseidade, como afirmei tantas vezes, não é mesmidade.”
Caso interpretássemos as poesias de Augusto dos Anjos como uma expressão tal e
qual dele enquanto sujeito histórico, sem levar em consideração as distâncias entre sujeito,
autor e eu lírico, ancoraríamos suas representações poéticas como expressão dessa
“mesmidade”, ou seja, da “identidade-idem”, distinta da “identidade-ipse”. Para Ricoeur187
186
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.114.
187
RICOEUR, 2014, p.115-116.
105
Entendo aqui por caráter o conjunto das marcas distintivas que possibilitam
reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo. Pelos traços
descritivos que vão ser ditos, ele acumula a identidade numérica e
qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É assim
que ele designa de modo emblemático a mesmidade da pessoa.
Tentemos observar isso melhor a partir de um soneto de Augusto dos Anjos intitulado
“Debaixo do Tamarindo”190, publicado no “Eu”, em 1912.
Nos versos do soneto “Debaixo do Tamarindo”, o eu lírico faz menção à uma situação
específica, qual seja, os momentos em que Alexandre dos Anjos, pai do poeta, ministrava
188
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.118.
189
RICOEUR, 2014, p.118-119.
190
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.21. Publicado inicialmente no jornal A União, em
18/04/1909.
106
lições escolares à Augusto dos Anjos, durante sua infância, lições estas que ocorriam sob a
sombra de um tamarindo existente no engenho no qual viviam, no interior da Paraíba.
Alude-se, nesses versos, à aspectos que estariam presentes no caráter de Augusto dos
Anjos, por exemplo, a imagem de uma criança dedicada aos estudos, apesar de que, na
ficcionalização dessa experiência, também seja reforçada a imagem da suposta rigidez do pai,
ao ministrar suas lições ao filho, extenuando-o por conta “de inexorabilíssimos trabalhos”.
Outro traço de seu caráter diz respeito ao seu contato com os saberes da ciência e do
pensamento cientificista, largamente utilizada em muitos de seus poemas. Isto se faz presente
nesses versos quando elabora a associação da história de sua família, os Carvalhos (haja vista
que sua família deriva da união de três grupos, as famílias “Carvalho” “Rodrigues” e “Anjos”)
com a espécie arbórea dos carvalhos. Sua história familiar é descrita como uma
“paleontologia”, ou seja, como um material que estaria fossilizado, como algo muito antigo,
subterrâneo. Dessa maneira, reforça a imagem de alguém apegado à sua terra natal.
Aquela perspectiva cientificista unitarista, próxima ao monismo, vista em outros textos
poéticos seus é retomada nesse soneto. Após a morte do eu lírico, que enseja o retorno “à
pátria da homogeneidade” (a fusão com a substância original que os monistas acreditavam
existir em todos os seres, o que também nos faz lembrar o mito do eterno retorno), sua
história familiar é anexada à essa árvore: nela, sua “sombra” residiria por toda a eternidade.
Nessa ótica, ainda que seja possível relacionar o conteúdo desses versos com aspectos
oriundos de sua biografia, ou seja, traços de seu caráter, familiares e locais onde viveu, não
podemos encarar essa descrição poética como um relato biográfico tradicional. Ao ser
envolvido e absorvido pela linguagem literária, aquilo que pode ter sido vivido já se torna
“outra coisa” através da elaboração de uma identidade narrativa que combina o idem e o ipse.
Isto ocorre através de uma ficcionalização do vivido por aquele que elabora a
identidade narrativa. Esta, conforme Ricoeur191, situada à meio caminho entre o idem e o ipse,
torna-se a identidade de um personagem e os fatos, circunstâncias, sensações, sentimentos ou
experiências então (ou supostamente) vividas, associadas à esse “personagem-narrador”
transformam-se em “acontecimentos narrativos”. Nessa perspectiva, qualquer tipo de
experiência, banal ou não, ao ser inserida numa organização narrativa, passa a ser configurada
numa espécie de “enredo”. Ainda seguindo os passos de Ricoeur, essa configuração de enredo
opera com um paradoxo192:
191
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.146.
192
RICOEUR, 2014, p.148.
107
193
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.112.
194
RICOEUR, 2014, p.122.
108
forma de identidade narrativa, como uma face entre sua identidade-ipse e sua identidade-
idem. Assim, a narrativa, em nosso caso, poética, se aproxima da dimensão histórica,
temporal. Para Ricoeur195, “É na ordem da temporalidade que se deve buscar a mediação. Ora,
é esse “ambiente” que (...) vem a ser ocupado pela noção de identidade narrativa.”
As experiências de individualização dos sujeitos, como dissemos anteriormente, foram
estimuladas ao longo do século XIX, transformando-se num dos ícones primeiros da
modernidade, somado aos temas da “novidade” e da “aceleração”. O indivíduo torna-se o
centro e sua vontade em decifrar-se como sujeito particular se diversifica em várias direções.
Paul Ricoeur assinala196 que um dos ícones do empirismo inglês, David Hume (1771-
1776) ao se propor discutir a questão da identidade, partindo em busca desse núcleo interno
que habitaria cada sujeito, dotando-lhe de identidade, chega a conclusão de não ter
encontrado, em si mesmo, em seu íntimo, nada que não fosse a própria percepção dessa busca.
De certa forma, é como se lançássemos um olhar sobre os recantos mais profundos de
nossa subjetividade, na profunda intimidade de nosso Ser, visando encontrar aquilo que nós
somos, e não encontrássemos nada além do próprio ato de olhar. A busca desse “eu”, desse
“ego”, dessa substância íntima, tornou-se quase uma espécie de obsessão na modernidade.
Um soneto de Augusto dos Anjos, incluído na segunda edição do “Eu”, publicado no
ano de 1920, e previamente apresentado no Almanaque do Estado da Paraíba, no ano de 1917,
três anos após a sua morte, discute essa temática da interiorização como parte desse processo
de individualização.
Este soneto, intitula-se “Natureza Íntima”197 e fora dedicado ao filósofo brasileiro
Raimundo Farias Brito (1862-1917) e este, tal como Augusto dos Anjos, também havia
estudado na Faculdade de Direito de Recife.
198
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.413-614.
110
Todavia, entre esses gêneros textuais, a escrita e a manutenção de um diário íntimo pode ser
visto como o exercício por excelência na procura de si mesmo que essa experiência de
individualização estimula.
No pensamento, também desenvolvido em fins do século XIX, que consistia em
associar manifestações psíquicas ou patológicas aos “sinais” emanados por nosso corpo, a
prática dos diários também se verificou. Segundo Vigarello199, os indivíduos que se
dedicavam aos seus diários íntimos teriam que registrar o mais inofensivo sinal corporal,
incluindo em suas páginas, todas as demais impressões que julgasse necessário:
199
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.145.
200
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.457.
111
que o poeta também se empenhava na escrita epistolar. Sua correspondência passiva já foi
publicada201 e explorada por outros autores, como Ademar Vidal202 e Humberto Nóbrega203.
A poesia de Augusto dos Anjos parece configurar uma espécie de veículo por meio do
qual esse escritor tentou encontrar a linguagem privilegiada para expor aos outros uma
imagem, uma figuração de si mesmo, ainda que uma exposição plena e completa seja
impossível.
Sua poesia, portanto, funciona tanto como uma espécie de escrita de si, quanto como
uma forma de constituição de sua identidade narrativa. Podemos afirmar que, com base em
sua concepção de literatura, apenas o poeta, através de seus versos, possuiria as ferramentas e
a sensibilidade adequadas para empreender essa busca em relação a si e efetivar tal exposição.
Por exemplo, vejamos um de seus sonetos, intitulado “Vencedor”204.
201
ANJOS, Augusto dos dos Anjos. Obras Completas. Editora Nova Aguilar, 1994. (Org.) Alexei Bueno.
202
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio, 1967.
203
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. João Pessoa. 2ª Ed. Editora UFPB, 2012.
204
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.102. Publicado inicialmente no jornal O Comércio,
26/11/1903.
112
205
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.458.
206
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.75.
113
207
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo. Editora Martins Fontes, 200, p.94.
114
208
QUINTAS, Georgia. Amas-de-leite e suas representações visuais: símbolos socioculturais e narrativos da vida
privada do Nordeste patriarcal-escravocrata na imagem fotográfica. In: RBSE – Revista Brasileira da
Sociologia da emoção, v.8, n.22, pp.11 a 44, abril de 2009. ISSN: 1676-8985. Disponível em:
http://paginas.cchla.ufpb.br/rbse/QuintasArt.pdf. Acesso: 08 de novembro de 2018.
209
ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luís Felipe
(Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras, 1997, p.63.
210
VASCONCELOS, Montgomery José de. A Poética Carnavalizada de Augusto dos Anjos. São Paulo.
Anablume Editora, 1996, p.193.
115
poéticas desse soneto fossem favoráveis à (ex)escrava ali representada e, talvez, uma crítica
velada à escravidão, mesmo que sua família tivesse sido proprietária de escravos.
Em que pese a referência à experiências que podem ser rapidamente associadas à
biografia do poeta, tais referências não configuram, por essa característica, um relato
biográfico. Essas menções seriam uma forma de elaborar a chamada identidade narrativa, da
qual fala Ricoeur, situada à meio caminho entre o sujeito que escreve, a identidade-idem, e o
eu lírico presente nos versos, a identidade-ipse.
A poesia em sua manifestação mais lírica dialogaria com a chamada escrita de si por
privilegiar o “eu” entendido como espécie de núcleo de nossa subjetividade e como ponto de
partida para a aquisição de um maior autoconhecimento, fenômeno esse próprio das
experiências de individualização, inerentes à temporalidade modernidade. A escrita de si
aproxima-se desse diálogo, como reflete Ângela de Castro Gomes211:
A poesia de Augusto dos Anjos, entendida aqui como uma atividade próxima aos
imperativos do que pode se chamar “escrita de si”, apropria-se de aspectos de sua “realidade”,
de sua experiência autorreferencial, tornando-a matéria-prima a ser transfigurada
mimeticamente, associando-a ao eu lírico. Vejamos, na sequencia, mais um texto poético de
Augusto dos Anjos, intitulado, “O Martírio do Artista”212. Nessas estrofes, lemos:
211
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.10-11.
212
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.71.
116
Não vemos, no soneto acima, qualquer ideia que atribua ao artista ou à sua poesia, um
comprometimento social, tal como se a literatura fosse uma “missão”, ou seja, não é um
“martírio” que possua como valor uma função social. Mais do que compromisso com a
sociedade, no sentido de tentar “esclarecer” seus membros, o compromisso do artista, o seu
martírio, consistiria, antes, em tentar expressar-se. É como se o objeto que exige atenção não
fosse a sociedade dos anônimos, mas a individualidade ainda mal compreendida.
Em nossa leitura, esses versos representam, justamente, a dificuldade que se possui
quando se tenta exteriorizar aquilo que pressupomos possuir dentro de nós mesmos. Se
houvesse facilidade, a busca por si mesmo não seria “busca”, mas “contemplação”. O eu
lírico torna-se quase incapaz de realizar essa exteriorização. O incômodo é sentido, como
indicam os versos, no próprio corpo: treme; rasga o papel; tenta chorar; sente febre; puxa a
própria língua. Mesmo assim, não consegue realizar esse impulso em expressar-se. Essa
dificuldade é própria do eu lírico, que perde-se em si mesmo, mergulhado em suas sensações.
O desejo em expressar a própria individualidade, portanto, é um dos traços mais fortes
da temporalidade moderna. Alimentou consigo a construção de uma esfera privada, de uma
dimensão particular. É no cerne das transformações que moldaram o chamado mundo
moderno que se percebe uma progressiva valorização do indivíduo e um contínuo
fortalecimento da noção de individualidade, a qual é vista como elemento central e
fundamental da vida em sociedade e da própria modernidade.
Desse modo, a sociedade moderna já não se configura presumindo para si um sentido
de “comunidade”, um tom “comunitário”. A sociedade é composta por uma série de
indivíduos isolados. Estes, criam uma esfera pública para organizar sua vida em comum.
Contudo, na modernidade, a “verdadeira” sociedade parece residir na esfera privada, naquela
dimensão que só diz respeito ao próprio indivíduo e, no máximo, aos membros de sua família.
Conforme Ângela de Castro Gomes213, isto produz “uma ideia que confere à vida individual
uma importância até então desconhecida, tornando-a matéria digna de ser narrada como uma
história que pode sobreviver na memória de si e dos outros.”
Há um vazio, uma distância incontornável entre a experiência vivida e a sua captura
pela escrita, pela narrativa. Esse fenômeno se faz presente tanto na linguagem literária,
213
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.12.
117
poética, ficcional, quanto na escrita sobre si mesmo. Pressupor uma identificação total entre o
eu lírico e o sujeito que escreve seria equivalente a considerar que os fatos narrados, p.ex.,
numa biografia/autobiografia, ocorreram exatamente tal como são descritos.
A produção de uma escrita sobre si mesmo, em seus gêneros textuais tradicionais
(diários, cartas, autobiografias), mesmo visando capturar o indivíduo em sua integralidade e
continuidade, não se afasta daquele critério de seletividade já comentado. Ocorre a escolha de
determinados ângulos que desejamos apresentar ao “outro”, para reforçar a imagem que
tencionamos construir quando nos propomos a reconstituir, através da escrita, determinada
experiência vivida. Essa escrita autorreferencial é uma narrativa que pode ser dotada de apelo
estético, sem necessariamente configurar-se como ficcional214.
A escrita, na modernidade, não pode ser recusada como sendo uma atividade vazia de
sentido e conteúdo, ou seja, não é porque, pela escrita, não podemos reconstituir (ou
transfigurar mimeticamente) um complexo de experiências vividas integralmente que não
podemos fazer menção a tais experiências narradas/escritas e nelas encontrar significados.
A escrita, mesmo que não consiga recuperar totalmente o objeto que pretende capturar,
nem por isso configura-se como um discurso comprometido com a mentira, com a enganação,
mesmo que essa possibilidade exista. Numa narrativa mentirosa, aquele que a elabora está
ciente de uma verdade que ele conhece (ou presume saber) e, portanto, a oculta. Na escrita de
si não há, necessariamente, verdade ou mentira. Na ficção, mais do que verdade ou mentira,
há o que Wolfgang Iser215 denominou como “atos de fingir”, o que ainda discutiremos.
Para além das questões que se aproximam do tópico da verdade/inverdade, o que a
escrita na modernidade, tanto na linguagem poética, quanto na escrita sobre si mesmo, parece
permitir é a expressão de uma verdade individual, de uma verdade do indivíduo sobre si, da
criação de uma imagem de si em face de determinados fatos, elaborada pelo sujeito que a
enuncia. Tal verdade não pode se apresentar de modo absoluto: a verdade que um sujeito
elabora e faz circular, emerge conjuntamente com outras verdades, constituídas e postas em
jogo no campo social por outros sujeitos.
Em sua análise acerca da emergência do indivíduo em face das sensibilidades
modernas, além de outros sinais percebidos, tais como a questão do “nome próprio”, da
214
“a análise desse tipo de registro escrito deve ser rigorosa. Contudo, sua crítica não pressupõe a busca pelo
erro, pela mentira, isto é, se determinada circunstância ou fenômeno aconteceu, ou não. Além disso, a autora
afirma ainda que o que importa é analisar “...a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa.”
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.15.
215
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.955-985.
118
prática de fotografar-se, do desejo por individualizar-se nos menores detalhes, Alain Corbin216
chama atenção, também, para o tema do “espelho”.
Em nosso tempo presente, apesar de poder ser considerado um objeto mais do que
banal, na consolidação da modernidade o espelho pode ser apontado como um objeto
metafórico para o processo de individualização no qual o indivíduo mergulhou. É através do
espelho que os indivíduos adquirem uma consciência visual de sua própria corporeidade.
É com a popularização desse simples objeto que o obstáculo de ser consciente de si
sem possuir uma autoimagem mais ou menos definida das particularidades de seu corpo é
superado. Nesse sentido, a escrita de si e a poesia lírica seriam formas, em que pese as
particularidades dessas duas linguagens, através das quais os indivíduos modernos desejam
elaborar um “espelho” no qual veriam uma imagem fiel de si mesmos. Todavia, essa metáfora
da escrita como um “espelho” que refletiria nossa individualidade pode ir além.
De certo modo, esse “espelho” elaborado pela prática da escrita, poética ou não,
parece transformar-se num tipo de labirinto. Ao esperarmos do “espelho” uma imagem fiel de
nós mesmos, corremos o risco, pelo contrário, de entramos numa “sala de espelhos”, tais
como aquelas presentes em parques de diversão, cujos espelhos, com superfícies esféricas,
côncavas ou convexas, apresentam àqueles que se contemplam imagens distorcidas.
Quanto mais os sujeitos procuram compreender a sua singularidade, a sua
interioridade, mais se arriscam a se perderem nesse processo. Enxergamos essa temática no
soneto de Augusto dos Anjos intitulado “Vandalismo”217:
216
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.421.
217
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.100. Publicado no jornal O Comércio, em 02/01/1904.
119
218
SUSSEKIND, Flora. Papéis Colados: Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 1993. p.315-316.
120
A inclusão, em sua poesia, de aspectos que podem ser associadas à sua biografia não
constitui, uma violação da mímesis poética, nem configura-se como o exercício tradicional da
escrita de si. Essas atividades orbitam o “eu”, a individualidade, cada linguagem utilizando
suas particularidades para elaborar imagens e representações sobre esse “si mesmo”.
Por fim, cabe lembrar que, se a poesia de Augusto dos Anjos dialoga com
determinadas experiências que se ancoram em sua biografia, seus versos não se configuram
como um relato biográfico. As imagens poéticas que ela comunica, ainda que não totalmente
desligadas do indivíduo enquanto sujeito que escreve, condiciona-se pelas sensibilidades de
sua época, principalmente relacionadas à essa perseguição da própria
individualidade/interioridade, mas também estão submetidas à uma preocupação estética.
219
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica
de Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015
220
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editora
Universitária UFPB, 2008.
121
221
Um exemplo interessante, nesse sentido, é: RAMOS, Arthur. LITTERATURA E SCIENCIA: Augusto dos
Anjos à luz da psychanalyse. In: O Jornal. 19 de Setembro de 1926. p.18.
222
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008.
122
Ainda que esse livro de versos não possa ser considerado como um espelho puro e
direto da alma do poeta, ou seja, mesmo que tanto a obra quanto aquele sujeito que a escreveu
não sejam dotados pela unidade e continuidade que já se pressupôs como inerente ao
indivíduo, algumas poesias suas relacionam-se, direta ou indiretamente, com aspectos
presentes em seu tempo histórico, seja num âmbito particular, seja coletivo.
Tal como Phillipe Lejeune223 sugeriu, existe uma espécie de “pacto” que um indivíduo
se autoimpõe no sentido de, ao escrever sobre si mesmo, desejar revelar-se por completo
nessa escrita. A escrita de si autobiográfica articula-se com gêneros textuais mais ou menos
clássicos, tais como “memórias”, “biografias”, “romance pessoal”, “poema autobiográfico”,
“diário”, “autorretrato” ou “ensaio”.
Nessa lógica, da mesma forma que nenhum tipo de escrita de si consegue promover
uma revelação transparente e integral de um indivíduo, o mesmo ocorre com as relações entre
autobiografia e poesia. O poeta pode decidir elaborar versos, assim como, um sujeito pode
querer deixar registrada “sua vida”, mas essas duas atividades guardam particularidades que
enganam à primeira vista. Para Lejeune224,
A poesia não está em toda parte, a autobiografia também não. Uma pode ser
instrumento da outra. Não há mal nenhum em reconhecer que são duas
coisas diferentes e, ao mesmo tempo, admitir-se a possibilidade de que têm
muitas interseções. Pode-se tomar o termo autobiografia num sentido amplo
e vago, ou estrito e preciso. Assim como a poesia.
Cabe observar que o universo no qual a poesia de Augusto dos Anjos veio à tona
acompanha os primeiros momentos do que se convencionou chamar de “república velha”. Na
tentativa de articular os ímpetos modernizantes com elementos tradicionalistas, teria sido
construído, seja no “Norte” onde o poeta nasceu e viveu, seja no Rio de Janeiro, onde também
morou, um quadro histórico com elementos paradoxais.
Ao passo em que as sensibilidades modernas se disseminavam, vivia-se no Norte (hoje
nordeste, mas não somente aqui), um misto entre uma sociedade mais tradicional,
conservadora, dotada com elementos patriarcais, orbitando casas grandes e engenhos. Para
Telma Fernandes225,
223
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.14.
224
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.88.
225
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.133.
123
Desse modo, o universo dos engenhos também se tornou um dos temas iniciais para
sua produção poética, o que resultou na inclusão de referências à esses espaços em alguns de
seus poemas. Uma primeira referência que indicamos encontra-se no longo poema “As
Cismas do Destino”226, publicado no “Eu”. Tal poema é composto por quatro partes e possui
105 estrofes. A referência ao engenho encontra-se na 28ª estrofe da segunda parte: “Porque há
de haver aqui tantos enterros?! / Lá no <<Engenho>> também, a morte é ingrata... / Há o
malvado carbúnculo que mata / A sociedade infante dos bezerros!”.
O patrimônio da família de Augusto dos Anjos era composto por dois engenhos de
cana de açúcar, denominados Pau d‟Arco e Coité. Augusto dos Anjos, que morreu em 1914,
aos trinta anos, viveu aproximadamente dois terços de sua vida nesse lugar, acerca do qual
fazia referências. Em sua atividade como cronista, paralela à atividade como poeta, exercida
nos mesmos jornais paraibanos onde publicava suas poesias, intitulava seus textos em prosa
como “crônicas paudarquenses” e “cartas do Pau d‟Arco”.
Na estrofe citada acima, a referência ao engenho é associada à imagem da morte, então
manifesta nos carbúnculos que dizimavam os animais da propriedade, sugerindo certa ideia de
decadência. O tema geral de “As Cismas do Destino” é demasiado mórbido. Todavia, pela
temática e pela extensão desse poema, faremos novas menções em outros momentos.
Antes de darmos continuidade nas análises, é preciso tecer comentário sobre duas
questões. Primeiro, sobre a ideia de “obra” e as armadilhas de retrodicção. Segundo, colocar
em perspectiva o sujeito, sua intencionalidade ao escrever e seu papel como autor. Ao
articularmos as noções de escrita de si, de pacto autobiográfico e suas relações com a poesia,
exige-se certa compreensão da ideia de “autor”, que não deve ser naturalizada ou vista de
maneira simplificada.
Em primeiro lugar, a vantagem da retrodicção nos permite analisar a “obra” poética de
Augusto dos Anjos já sabendo quem esse poeta foi. Possuímos, assim, uma visão de conjunto
226
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.30. Publicado no periódico paraibano Terra Natal, em
04/07/1908.
124
maior, o que nos faz perceber melhor a (des)continuidade de suas experiências históricas,
assim como, as múltiplas relações de sua atividade mimética com seu próprio tempo.
Dessa forma, percebemos a (des)continuidade de sua experiência, pois conseguimos
observar que sua atividade poética não é homogênea, contínua, linear. Apesar do exercício
constante com a poesia, esta variou no que diz respeito à forma e ao conteúdo. O próprio livro
que lhe renderia notoriedade não figurava como projeto a ser realizado desde o início de sua
atividade poética, conforme pudemos levantar, sendo mencionado em carta227 algumas
semanas antes da efetiva publicação ocorrer. Esse livro, ressaltamos, é antes uma compilação
de textos selecionados por uma unidade temática, do que um projeto único e homogêneo.
Assim sendo, esse livro não brotou in vácuo, out of the blue; não nasceu já completo e
homogêneo no imediato de sua publicação, em 1912, nem tampouco desde o início de sua
atividade poética, expressando, com isso, a essência de seu autor. Todo um período de
“gestação” e de hesitação (que varia bastante entre escritores, romancistas, poetas, etc.), se
assim podemos dizer, foi necessário. Da mesma forma, ocorreu um processo de seleção. Cabe
lembrar, as palavras de Michel Foucault228:
Nessa compreensão, a poesia de Augusto dos Anjos não era a manifestação pura e
transparente de sua essência, mas um momento incluído dentro de um conjunto de
(des)continuidades, tal como sugere Foucault, o qual diz ainda229 “A obra não pode ser
227
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Editora Nova Aguilar, 1994, p.734-735. (Cf. pág.29 de nosso
trabalho).
228
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2008. p.26.
229
FOUCAULT, 2008, p.27.
125
considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade
homogênea”.
Aquela representação poética, citada acima, que faz menção ao engenho numa
associação com a morte, possui relação com sua experiência pessoal. Por conta da dinâmica
socioeconômica vivida no Brasil a partir da virada para o século XX, a falência bateu à sua
porta, o patrimônio da família do poeta se deteriorou e os engenhos tiveram que ser vendidos
por volta de 1908. Tal representação pode ser uma ficcionalização poética relacionada à essa
circunstância, mas também não deixa de estar atravessada pela historicidade de seu tempo, se
considerarmos as transformações que atingiram os engenhos e a sociedade ao seu redor.
No bojo desse fenômeno de modernização, foram produzidos e veiculados diversos
discursos, visando preservar um conjunto de valores mais associados à esfera masculina,
patriarcal, enquanto que as sensibilidades modernas, por vezes, foram associadas ao feminino.
Estes e outros discursos constituiriam, para Durval Muniz, uma “invenção” do
Nordeste/Nordestino, difundida por diversos intelectuais, articulando e (res)significando
conceitos, imagens e símbolos que até hoje permeiam nosso imaginário. Para Durval230,
230
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino, Uma Invenção do Falo: Uma História do
Gênero Masculino (Nordeste 1920/1940). Maceió. Edições Catavendo, 2003, p.33.
231
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.135.
126
Outras referências, em seus versos, sobre do engenho onde ele e sua família moravam,
podem ser encontradas na poesia “Gemidos da Arte”232, também publicada no “Eu”. É um
poema mais longo, composta por 42 estrofes, em três partes. A primeira menção ao engenho
pode ser encontrada na oitava estrofe da primeira parte, assim como na terceira, quarta e
quinta estrofes da terceira parte. Vejamos tais menções respectivamente:
(...)
Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d‟Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na manjedoura dos cavalos!
(...)
III
(...)
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos valles,
Como pela avenida das Mappales
Me arrasta á casa do finado Tôca!
232
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.80/83.
127
233
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.83.
234
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.49.
128
produz com ela, aqui e agora.”, comenta Compagnon235 . Seguindo essa perspectiva, uma
compreensão possível da poética de Augusto dos Anjos pressuporia considerar que é o texto
que o torna um “autor” e não o fato de que ele escreveu texto(s), pois ele não preexistiria ao
texto. Não seria o ato de escrever que o constituiria como autor, mas o texto escrito.
Esse debate retrocede em séculos, tematizado desde a antiguidade clássica e durante o
período feudal. Nas reflexões sobre retórica, nesses momentos, havia uma distinção sutil
(perpassando autores como Platão, Aristóteles, Agostinho e outros) entre a vontade do autor
em escrever algo (voluntas) e aquilo que ele conseguiu, de fato, escrever (actio). Isso
explicaria a razão de, muitas vezes, um autor escrever algo e ser interpretado de outra
maneira, posto que os leitores não conhecem sua “voluntas” primordial, mas apenas o seu
“actio”, ou seja, compreendem o que foi dito, não aquilo que o autor queria dizer.
Nesse sentido, a interpretação que estamos tecendo acerca das práticas poéticas de
Augusto dos Anjos procura se basear na análise dos registros que conseguimos estabelecer e
na consonância com os rigores teóricos e metodológicos de inerentes à nossa ciência. Caso
fosse possível, Augusto dos Anjos, ao ler minha interpretação, poderia afirmar que eu não
compreendi o que ele queria dizer através de seus versos.
Na discussão proposta por Antoine Compagnon, uma série de pares conceituais e
temas de análise são apontados: “Alegoria e Filologia”, “Filologia e Hermenêutica”,
“Intenção e Consciência”, “Intenção ou Coerência”, entre outros. Disto decorrem várias
questões: um texto literário faz referências alegóricas sobre aspectos de sua sociedade? Esse
texto alegoricamente “anteciparia” certos temas, de maneira “visionária”? As análises devem
focar apenas as mudanças estritas da linguagem, numa ótica filológica? As bases conceituais
da filologia bastam para compreender a atividade literária? A hermenêutica e sua teoria da
compreensão contribuem de alguma forma? Um autor, ao escrever seu texto, coloca nele,
intencionalmente, tudo o que queria dizer/representar ou insere, inconscientemente, certos
temas que nem mesmo ele percebe? A intenção de um autor pressupõe sempre a escrita sobre
um mesmo tema, ao longo de sua vida, ou a mudança de posicionamentos e temas, refletida
em seus textos, implica uma suposta “incoerência”, enfraquecendo a tese intencionalista?
Todas essas questões implicam num debate astronômico. Contudo, Compagnon
assinala um tipo de “retorno” à tese intencional. Na trilha desse retorno há que se considerar,
em certo sentido, a existência de uma intenção do autor em escrever sobre um determinado
235
COMPAGNON, 1999, p.50-51.
129
tema, num determinado estilo, etc. No entanto, Compagnon236 afirma que o sentido (ou
intenção inicial) atribuído por um autor ao seu texto não determina o seu significado final,
único, nem os modos pelos quais os receptores irão interpretá-los:
É nesse sentido que abordamos a poética de Augusto dos Anjos. Mais do que
expressão do desdobramento progressivo de uma substância essencial, homogênea e contínua,
ela é a expressão de sua historicidade. Evidentemente, o sentido original atribuído pelo autor
ao seu texto não pode não ser recuperado e não se resume aos significados que atribuímos.
Essa propriedade, como afirma Compagnon, é própria da arte, em geral, e da literatura
e da poesia, em particular. As poesias de Augusto dos Anjos manifestam uma intenção sua,
“original”, mas manifestam também outros sentidos, que são históricos. Além disso, as
distâncias entre o eu lírico e o sujeito que escreve esses textos são variáveis e insuperáveis.
Não consideramos equivocado, por exemplo, perceber que em determinadas poesias
de Augusto, para além de uma atividade mimética de condensação e representação social, há
o desejo de expressar algo associado à sua biografia. Contudo, isto não nos permite afirmar
que seu texto seja essencialmente biográfico. Nesse ponto, nos aproximamos novamente de
Compagnon237:
Nesse sentido, a poesia de Augusto foi pautada tanto pela apropriação convencional do
padrão estético do Romantismo, quanto pelo questionamento dos padrões estéticos vigentes,
por experimentações e busca de novas formas e conteúdos para sua atividade poética.
236
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.85.
237
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.95.
130
Em seu contexto original, na Europa, na virada do século XIX para o século XX, os
padrões estéticos transformavam-se ao passo em que a própria sociedade se transformava.
Mais do que sobrevoando a sociedade, os padrões estéticos, em prosa ou verso, por exemplo,
participavam da própria dinâmica dessas transformações.
Entretanto, em meio à essas transformações, uma característica vai permanecendo.
Mesmo forçando os limites da linguagem poética, introduzindo novos temas e termos,
Ferreira Gullar afirma238: “Augusto dos Anjos é o poeta do Engenho do Pau D‟Arco, da
Paraíba, do Recife”. Algumas referências poéticas ao engenho reforçam essa afirmação.
Os engenhos de cana de açúcar passaram a fazer parte, na virada para o século XX, de
um contexto socioeconômico dinâmico, em meio à consolidação do capitalismo industrial.
Nesse momento, era próprio do mercado, nacional e internacional, forte oscilação e
instabilidade, como observa Telma Fernandes239: “...uma vez que na segunda metade do
século XIX, em função, no final do século, da abolição e, principalmente, pela concorrência
com o açúcar de beterraba, e das produções açucareiras de Cuba e Java, a produção açucareira
nordestina conheceu novo surto de crise.”
Considerando estas e outras transformações, Durval Muniz afirma que o próprio
espaço historicamente construído, por volta dos anos 1920, já se encontrava modificado por
práticas e intervenções que emergiram algumas décadas antes e, sobretudo, em fins do século
XIX. Segundo Durval Muniz, “O espaço „natural‟ do antigo Norte cedera lugar a um espaço
artificial, a uma nova região, o Nordeste, já prenunciada nos engenhos mecânicos ciclópicos
usados nas obras contra as secas, no final da década anterior.”240. Outros sentidos dessas
modificações foram, ainda conforme Durval Muniz241, expressos através de outros sinais:
238
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011, p.47.
239
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.142.
240
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo. Editora
Cortez, 2011. p.51.
241
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.51.
131
Nesse sentido, do mesmo modo que o engenho era símbolo de uma época e de um
conjunto de relações socioeconômicas, as emergentes usinas passaram a representar um papel
semelhante. Os engenhos mais arcaicos alimentavam o mercado com sua produção, ainda que
houvesse fortes laços entre a produção para o mercado e a agricultura familiar. Os engenhos
centrais, modernos, procuraram, de forma malograda, dicotomizar a produção para o mercado
de suas finalidades mais “locais”, de subsistência. Para Telma Cristina Fernandes242,
A casa grande era vasta, de muitas salas, a senzala ao lado, o engenho d‟água
lá embaixo, o canavial na várzea, e pelo altos, o agreste, onde floriam no
verão pau d‟arco roxo de outubro e os paus d‟arco amarelos de novembro
(...) atrás era o açude, e o tamarindo entre a casa-grande e a senzala fazia às
vezes de sala de estar, nos dias de muito calor.
242
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.144.
243
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo. Editora
Cortez, 2011, p.148.
244
REGO, José Lins do Apud MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora Ideia,
2001, p.32-33.
132
José Lins do Rego reforça determinados aspectos daquele lugar, mas o envolve,
também, tanto nos labirintos da memória, quanto da ficção. Entretanto, não custa imaginar
esse lugar como cenário para contradições profundas: um passado opulento, mas rústico,
provavelmente autoritário, patriarcal, o qual perdia força como modelo e medida para o
presente; “sinhozinhos” e seus herdeiros brincando lado a lado com filhos de (ex)escravos e
trabalhadores do campo; os homens e as mulheres da casa “carinhosamente” apelidadas pelos
subordinados como “Sinhá”, Iaiá”, “Ioiô”.
Esses elementos teriam sido desestabilizados ao serem trespassados pelos ideais da
modernidade. Isto reforçaria a tensão, que também é característica da temporalidade moderna,
entre um passado cujos vestígios e rastros destoavam do presente que se impunha. Um dos
parentes de José Lins do Rego teria comprado o engenho Pau d‟Arco em 1908, o qual fora
vendido por não produzir mais nada, a não ser dívidas. Disto se explica as referências feitas
por José Lins do Rego245, que escreve ainda:
245
REGO, José Lins do Apud MELO, 2001, p.35.
246
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió. Edições Catavento. 2003, p.52-53.
133
Todo esse mundo perdia espaço para os novos bacharéis. Ao contrário dos antigos
senhores de engenho e coronéis, os bacharéis não eram portadores da “autoridade” e do
“poder”, mas, sim, do saber técnico, muitas vezes mais teórico do que prático. Para Durval247,
Não percebemos nas representações literárias de Augusto dos Anjos esse “desprezo”
acerca do engenho, mas, sim, um esforço positivo de transfiguração literária desse elemento
presente em sua biografia. Contudo, é inegável que o tornar-se bacharel, após cursar a
faculdade de Direito, em Recife, contribuiu decisivamente na constituição do arsenal temático
que seria expresso em seus versos e, talvez, na falta de tino para os negócios do engenho.
Isto porque, os antigos engenhos disputavam espaço nas paisagens nordestinas com as
novas usinas, mais “impessoais”. A oportunidade de se tornar bacharel figurava no horizonte
como uma forma de ascensão social. Sobre essa cultura de bacharéis, Durval Muniz248, ao
comenta que:
De acordo com Paulo Henriques Britto, a poesia relaciona-se com a memória através
de dois tipos diferentes de atividade poética: a poesia épica e a poesia lírica, cada qual
ganhando contornos próprios. Para Britto249,
É nesse sentido que as práticas de uma escrita de si, assim como, a noção de um pacto
autobiográfico, se articulam com a poesia, quando um sujeito tenta, como já afirmou Phillipe
Lejeune251, “escrever sua vida em versos”. Incluindo em seus versos alguns elementos de seu
cotidiano, como a referência ao engenho, Augusto dos Anjos registrava impressões sobre si
mesmo, sobre seu passado e seu presente.
Isso não anula as distâncias entre o sujeito que escreve e o eu lírico, ou seja, não há
uma transposição total entre o que pode ser visto como vivência efetiva e aquilo que é
representado na poesia. Haveria uma ficcionalização de experiências e lembranças, ainda que
isto também não configure um relato biográfico ou memorialístico em sua forma tradicional.
249
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124.
250
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124-125.
251
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.89.
135
Tomemos como ponto para análise mais um texto poético de Augusto dos Anjos
intitulado “Tristezas de um Quarto Minguante”252, incluída no “Eu”, de 1912. Composto por
vinte e seis estrofes, novamente o engenho Pau d‟Arco é utilizado como temática poética e
sobre ele algumas imagens são formuladas. Vejamos sua primeira estrofe: “ Quarto-
Minguante! E, embora a lua o aclare, / Este Engenho Pau d’Arco é muito triste. / Nos
engenhos da várzea não existe / Talvez um que se lhe equipare!”
Novamente, a atmosfera que enseja a reflexão poética encontra-se no período noturno,
temática presente em seus versos já discutida em nosso primeiro capítulo. O eu lírico atribui
ao espaço do engenho uma tristeza ímpar, como se esta não pudesse ser encontrada em
nenhuma outra propriedade da região, ressaltando a tristeza particular, singular, desse espaço.
Todavia, como Ferreira Gullar reflete253, se, no âmbito privado e familiar, era enfrentado um
contexto de crise financeira, patrimonial, “é a penetração do capitalismo que, se por uma lado
significa progresso, por outro, agrava a miséria lendária da região”.
Assim sendo, como é próprio do projeto lírico, o “eu” é o ponto de partida para a
construção de uma mitologia pessoal e, como vimos no gênero textual da escrita de si, um dos
traços da modernidade, há o reforço de uma experiência de individualização. Em vista disso, o
eu lírico afirma a singularidade essencial da tristeza que recai sobre o engenho e sobre seus
moradores como algo exclusivo, ainda que, como Gullar aponte, se houve crise, esta se
estende por todo o setor social e econômico nordestino que orbitava os engenhos.
A partir dessa associação entre acontecimentos particulares, familiares, privados e
sociais, coletivos, indicada acima, não poderíamos deixar de reforçar a presença de Koselleck
em nossa abordagem. A poesia de Augusto dos Anjos relaciona-se com inúmeros elementos
presentes nos estratos temporais nos quais ela emergiu, mesmo com apropriações de traços
que não foram gestados em seu momento histórico mais imediato. Seguindo, ainda, a trilha de
Koselleck254 e considerando que a modernidade é marcada, simultaneamente, pela novidade e
pela aceleração, suas reflexões sobre o ser e a natureza da temporalidade também nos
permitem perceber essa dialética entre o singular e o regular:
252
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.123.
253
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011, p.57.
254
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014, p.19/-20/21.
136
consiste em vários estratos que remetem uns aos outros, mas que não
dependem uns dos outros (...) Quando investigamos o tempo nos processos
históricos, a primeira constatação experiencial é, evidentemente, a
singularidade. (...) experimentamos os acontecimentos como ocorrências
surpreendentes e irreversíveis. (...) Mas essas singularidades são apenas parte
da verdade. (...) a história também repousa em estrutura de repetição que não
se esgotam nas singularidades.
Isto significa que a atividade mimética de Augusto dos Anjos, suas representações e
imagens poéticas, assim como, diversos elementos de sua biografia são, sim, experiências
singulares. Todavia, pela dinâmica dos estratos temporais, como bem observou Koselleck,
elas se integram em estruturas de historicidade mais regulares.
Tais regularidades apresentam-se como as condições socioeconômicas, indicadas por
Gullar, ou os padrões estéticos da poesia na modernidade, além de outras sensibilidades
presentes no campo cultural ou social. Compreende-se, assim, a existência de uma relação
dialética entre a singularidade e a regularidade das dimensões de sua historicidade, o que nos
permite entender os modos pelos quais a poesia desse indivíduo relaciona-se com os estratos
temporais de sua época, indo além de uma análise psicologizante.
Ainda em “Tristezas de um Quarto Minguante”255, são construídas outras imagens
poéticas acerca do engenho e seus espaços. A percepção do quarto, pelo eu lírico, é aguçada
novamente durante a noite, como lemos na décima primeira e na décima segunda estrofes:
(...)
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!
255
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.124-125.
256
ANJOS, 1912, p.125.
137
As sensações descritas nessas estrofes ocorrem num período em que se supõe a noite
mais intensa e escura. O engenho é o centro desse universo. Os tormentos são traduzidos em
sinais corporais e sua percepção invadida por alucinações. Todavia, é com o surgimento da
luz de um novo dia que faz cessar todo esse cenário tortuoso que envolve o eu lírico.
É como se fosse reforçada a dicotomia, que discutimos em nosso segundo capítulo,
que atribui a produtividade ao período diurno em contraponto à noite, a qual, ao invés de
condicionar o descanso, estimula sensações, por vezes, torturantes. Logo, o ciclo
produtividade-descanso é quebrado. Além disso, indiferente aos tormentos do eu lírico, sob a
luz solar, a natureza, a fauna e a flora circundante, presentes no engenho, seguem seus rumos.
Em seus versos257, lemos:
257
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.126.
138
Enquanto a natureza segue seu rumo, indiferente, o eu lírico esboça sua tristeza em
face de um contexto de decadência que parece recair sobre o espaço do engenho 258: “Ah!
Minha ruína é peor que a de Thebas / Quizera ser, numa ultima cobiça, / A fatia esponjosa de
carniça, / Que os corvos comem sobre as jurubebas!”.
Percebemos nesses versos uma articulação próxima de uma forma de escrita de si,
elaborada num sentido mais lírico do que épico. A escrita de si e a poesia lírica contribuem
decisivamente na mitologia que o indivíduo cria para si mesmo. Logo, não é difícil
encontrarmos nas poesias de Augusto elementos que remetem não somente ao seu momento
histórico, como também à sua “biografia”, assim como, aos aspectos estéticos que podem ser
considerados mórbidos, sombrios, que aderem à sua mitologia pessoal.
A questão essencial não é demarcar com exata precisão se as representações poéticas
remetem à circunstâncias biográficas verdadeiras ou não, haja vista que a inclusão de aspectos
biográficos, em que pese o caráter individualizante do projeto poético lírico, não se propõe a
“descrever uma vida”, mas, sim, a utilizar dados da vida, individual ou social, como matéria
para poesia. Em resumo, não se trata de tentar distinguir radicalmente se as representações
poéticas que aludem à biografia são verdadeiras ou falsas. Sobre as relações entre
autobiografia e ficção e, por extensão, entre mentira e verdade, Lejeune259 afirma:
Ainda que seja viável rastrear possíveis associações entre essas referências poéticas
acerca do engenho e a relevância e a significação desse espaço na experiência histórica e
pessoal de Augusto dos Anjos, cumpre lembrar que o objetivo de suas representações
literárias, mesmo não visando alcançar a finalidade biográfica, inserem-se num campo
(juntamente com a biografia) de construção de conhecimento, de compreensão de si mesmo e
do mundo. O conhecimento gerado pela (auto)biografia e/ou pela poesia não é ilusório.
Nessa compreensão, já tendo em mente que não pretendemos encontrar na poesia de
Augusto dos Anjos a descrição “verdadeira” de sua vida, sua autobiografia, cabe interrogar os
258
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.126.
259
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.104.
139
sentidos históricos de sua atividade poética, analisando, sim, as estratégias que estruturam seu
desejo de “inventar-se a si mesmo”, mediante uma identidade narrativa, através de sua poesia
e as relações dessa “invenção” com seus estratos temporais.
Inscrevemos a poesia de Augusto dos Anjos na perspectiva sugerida por Britto260: “O
poeta lírico tenta construir uma mitologia pessoal completa, que inclui desde um mito de
origem até uma teleologia.”. Isto não se afasta da reflexão proposta por Paul Ricoeur, pois, a
identidade narrativa, elaborada por um sujeito, seja pela escrita ficcional, ou não, constrói
uma espécie de personagem.
Desse modo, esse personagem construído é integrado numa narrativa de (ou sobre) si
mesmo, tornando-se o centro de um ato configurante que elabora um enredo no qual o sujeito
narrador é o próprio personagem, e vice-versa. Para Paul Ricoeur261: “Ser afetado por um
curso de acontecimentos narrados, eis aí o princípio organizador de toda uma série de papéis
pacientes, segundo a ação exercida seja uma influência, uma melhoria, uma deterioração, uma
proteção ou uma frustração.”
Nesse sentido, a poesia de Augusto dos Anjos aproxima-se dessa noção de identidade
narrativa, pela via da ficção poética, na medida em que o eu lírico é o sujeito que experimenta
determinadas sensações e sentimentos, ou seja, é esse eu lírico que é afetado por
determinados acontecimentos (quer tenham sido vivenciados efetivamente, ou não).
Estes “acontecimentos” são configurados num enredo no qual o sujeito “Augusto dos
Anjos”, essa “identidade-idem” que escreve versos, constrói narrativamente um outro “eu”,
nesse caso lírico, sua “identidade-ipse”, tornando-se, assim, o personagem e narrador da
narrativa poética então elaborada. A questão é que entre “identidade-idem” e “identidade-
ipse”, há uma relação dialética. Para Ricoeur262
260
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
261
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.151.
262
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.155.
140
263
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e
Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006, p.184.
141
CAPÍTULO 5
A MORTE DO PAI E DO FILHO:
FINGIMENTO, AUTORIA E NARRATIVA
Anjos a presença dos temas da morte, assim como, colocá-lo em questão enquanto sujeito que
se assume como “autor” de si, para si e para os outros.
Isto porque, como sugeriu Paulo Henriques Britto264, ao contrário de uma poesia épica,
a poesia lírica, que não deixa de ser mais uma das facetas da valorização do indivíduo sob o
signo da modernidade, contribui para que o poeta repense aspectos sobre si mesmo. Desse
modo, através dela, o poeta oferece ao(s) Outro(s) uma imagem de si, ao mesmo tempo, em
que cria uma mitologia pessoal. Logo, é possível, para o poeta, ficcionalizar elementos
derivados de suas experiências vividas, inclusive oriundas de sua biografia.
Para efeito de análise, discutiremos nesse capítulo quatro sonetos de Augusto dos
Anjos. Os três primeiros sonetos tecem um conjunto de representações literárias sobre a
ocasião da morte de Alexandre dos Anjos, pai de Augusto. Os dois primeiros desses três
textos poéticos intitulam-se, respectivamente, “A meu Pai Doente” e “A meu Pai Morto”.
Estes, também foram incluídos no “Eu”. Apenas o terceiro soneto, “No Sétimo dia de seu
Falecimento”, por sua vez, não foi colhido no referido livro, tendo sido publicado somente no
jornal O Comércio.
O quarto soneto a ser analisado, que, com base no seu primeiro verso, intitulamos
“Agregado Infeliz de Sangue e Cal”, tematiza o aborto que Ester Fialho, esposa de Augusto
dos Anjos, sofrera em 1911, enquanto o casal, no Rio de Janeiro, esperava seu primeiro filho.
Em nossa interpretação, a seleção desses sonetos para análise justifica-se por nos
manter em contato com as temáticas que discutimos nos capítulos anteriores (identidade
narrativa, escrita de si, experiência de individualização). A presente discussão funciona,
também, como mais uma porta de entrada para compreendermos a elaboração da identidade
narrativa que Augusto dos Anjos teceu para si enquanto poeta, identidade esta que foi
simplificada pelo rótulo de “poeta da morte”. A temática da morte, mesmo que presente nos
poemas analisados neste capítulo, por sua relevância na poética de Augusto dos Anjos, será
analisada também em nosso quinto e sexto capítulos.
A temática da morte em seus versos, como dissemos, funciona como elo de
convergência que unifica as discussões já elencadas nos capítulos anteriores. Seus versos,
para além de apresentar ligações com elementos presentes nos estratos temporais de sua
época, também fazem menção à aspectos de sua biografia, ou seja, ficcionaliza determinados
elementos que podem ser associados à sua vida. Conforme Wolfgang Iser, os textos literários,
ficcionais, funcionam como um “ato de fingir” levado à cabo pela atividade mimética,
264
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124-132.
143
ficcional, seja em prosa, seja em verso. O texto ficcional, para o senso comum, por sua
natureza pressuposta, apresentaria um conjunto de experiências que seriam o exato oposto
daquilo que se convencionou chamar “realidade”. Entretanto, Wolfgang Iser265 afirma que:
Os textos ficcionais serão de fato tão ficcionais e os que assim não se dizem
serão de fatos tão isentos de ficções? (...) Se os textos ficcionais não são de
todo isentos de realidade, parece conveniente renunciar a este tipo de relação
opositiva como critério orientador para a descrição de textos ficcionais (...).
Aparece (...) algo mais que uma oposição, de modo que a relação dupla da
ficção com a realidade deva ser substituída por uma relação tríplice. Como o
texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na descrição
deste real, então seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade
em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário.
Na compreensão de Iser, portanto, o texto ficcional não é caracterizado apenas por não
possuir as mesmas qualidades e predicados que são, normalmente, atribuídos àquilo que se
denomina “realidade”. Na concepção de Iser, a relação dualista entre “real” e “ficcional” deve
ser superada por um trinômio que compreende o “real”, o “fictício” e o “imaginário”. Isto
porque, uma narrativa não ficcional esgota-se na descrição, ou na enunciação, de algo
considerado real. Por exemplo, se afirmo que “Augusto dos Anjos foi um poeta que viveu
num engenho, no interior da Paraíba”, este enunciado esgota-se na medida em que comunica
um significado específico, afirmando ou negando algo.
Entretanto, o texto ficcional não se esgota na descrição, na enunciação. As diversas
(re)leituras de um texto ficcional visam, para além da descrição, afirmação ou negação,
produzir um “efeito” no leitor/receptor, efeito este que permanecerá presente em seu
imaginário, em sua imaginação, e que pode ser experimentado novamente a cada leitura.
A discussão que se desdobra a partir daquele trinômio (o real, o fictício e o
imaginário), proposto por Wolfgang Iser, pode ser articulada com nosso objeto de estudo. Ao
afirmarmos que há na poesia de Augusto dos Anjos a ficcionalização de algumas experiências
associadas à sua vivência, tais experiências são presumidas como vivências “reais”, as quais
foram ficcionalizadas, fazendo-as adentrar, assim, no imaginário do leitor/receptor.
Em relação ao primeiro aspecto proposto por Iser, “o real”, cabe lembrar que, por
volta dos primeiros anos do século XX, Augusto dos Anjos e família atravessavam uma
progressiva decadência. Os engenhos constituintes de seu patrimônio estavam em crise; as
dívidas só aumentavam. Somado a isso, o pior: membros de sua família adoeceram em meio à
um cenário cujos recursos estavam cada vez mais parcos.
265
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.957.
144
O pai de Augusto dos Anjos, o Dr. Alexandre dos Anjos, encontrava-se enfermo no
Engenho Pau d‟Arco desde aproximadamente 1902-03. Os negócios da família, a partir de
fins do século XIX, estavam sob responsabilidade do Dr. Aprígio Pessoa de Melo (O
“Doutor” que dava as moedas, mencionado na poesia “Riccordanza della Mia Gioventú”),
segundo marido de D. Juliana Ludgero, avó materna do poeta. O Dr. Alexandre dos Anjos
parecia não possuir tino para gerenciar o patrimônio familiar e a enfermidade que se abateu
sobre ele somente “oficializou” sua distância dos negócios domésticos.
O segundo aspecto daquele trinômio sugerido por Iser, o “ficcional”, pode ser
vislumbrado, por exemplo, na ficcionalização presente em alguns versos de Augusto dos
Anjos elaborados em decorrência do falecimento do pai, versos estes que tomaram forma em
três sonetos, publicados em jornais paraibanos e, dois deles, depois, em livro, no “Eu”.
Cabe ressaltar que, ainda que a temática central desses sonetos seja a morte,
aproximamos e enfatizamos nossa análise atual com o tema da ficcionalização. Isto porque, o
eu lírico desses sonetos elabora imagens acerca da morte, não num âmbito geral, mas, numa
instância mais particular.
Analisaremos as imagens da morte nesse âmbito mais amplo, para além dessas
instâncias particulares, em nosso quinto e sexto capítulos. Nas reflexões elaboradas por
266
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
145
267
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.958.
268
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.460. Foi publicado apenas no Jornal O Comércio, no dia 19 de janeiro de 1905.
146
Para Wolfgang Iser269, “no ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que
não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; (...) Na verdade, o
imaginário não se transforma em um real por efeito da determinação alcançada pelo ato de
fingir, muito embora possa adquirir aparência de real...”. É em razão desse contato, mediante
a “aparência”, que as imagens poéticas enunciadas podem reforçar a ideia de que o eu lírico e
o sujeito que escreve “sentem” a mesma coisa, vive(ra)m as mesmas experiências, ou são “a
mesma pessoa”, anulando a distancia existente entre eles. Voltaremos a esse ponto.
Dessa forma, esse primeiro soneto de Augusto dos Anjos configura-se como um “ato
de fingir”, pois, ao tomar a morte de seu pai como tema poético, tece sobre ele e sobre o
fenômeno de seu falecimento, um conjunto de imagens e impressões que podem fazer com
que o leitor desconsidere, ou veja como inexistente, a distancia indicada acima, entre o eu
lírico e o sujeito que escreve. O fingimento então elaborado a partir das representações
poéticas pode induzir o leitor à pensar dessa forma, sobretudo, quando o efeito gerado pelo
contato com o texto poético, no leitor/receptor, é significativo, até mesmo catártico.
Compreendendo o ficcional no texto literário, e este como um “ato de fingir”,
podemos perceber a fecundidade da atividade mimética. A narrativa em prosa ou verso fixa-se
em nossa imaginação, povoando nosso imaginário. Ainda como afirma Iser270, seria “o ato de
fingir, [uma espécie de] irrealização do real [assim como,] a realização do imaginário...”. A
morte do pai do poeta “irrealiza-se” ao tornar-se para o leitor objeto de imaginação.
O soneto seguinte271, tematiza o período no qual o pai de Augusto de Augusto dos
Anjos ainda estava doente e demarca outros modos pelos quais o poeta ficcionaliza a
dimensão da enfermidade, articulada ao fenômeno da morte que recaiu sobre seu pai:
269
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.959.
270
ISER, 2002, p.959.
271
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.88.
148
Nesses versos, por exemplo, vemos que a percepção do eu lírico em relação ao pai
doente gerava uma espécie de revolta, mas também, a perspectiva de que ambos, pai e filho,
trilhariam o mesmo caminho, ou seja, a morte seria o horizonte comum e inevitável a ambos.
A revolta, nesse caso, decorre da percepção de que a ausência daquele objeto amado em breve
se tornaria fato, na medida em que, nesses sonetos, a ficcionalização dos momentos da
enfermidade, da morte e da missa são retrospectivos ao fenômeno efetivamente ocorrido. Isto
é, cada um desses momentos são tornados signos constituintes do imaginário, não somente
daquele que o poeta elabora para si, através de seu eu lírico, quanto do imaginário do(s)
leitor(es) que podem se identificar com tais versos.
Podemos perceber como a relação triádica sugerida por Wolgang Iser nos permite
compreender melhor o fenômeno da atividade mimética, para além daquela oposição binária
entre “real” e “ficcional”. Isto porque, não se coloca em questão se as impressões, sensações
ou sentimentos expressos pelo eu lírico foram efetivamente vividas pelo sujeito que escreve,
haja vista que isso não importa necessariamente. O efeito causado pela atividade mimética
não ancora-se exclusivamente na pressuposta vivência efetiva. Wolgang Iser272 reforça essa
percepção, quando afirma: “Tal fingimento nos leva como leitores a certos atos e parecemos
apreciar tal atividade, apesar de saber que se trata de uma ilusão”, pois, “...ler uma obra de
ficção sempre significava viver outra vida.”
O terceiro soneto273, na verdade, é composto por dois sonetos que formam um texto
só. Nele, não se representa o período de sete dias decorrido após a morte, nem os momentos
antecedentes, de enfermidade, mas, sim, a condição própria de “estar morto”. No soneto da
primeira parte, lemos:
272
ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. In: Teoria da Ficção: Indagações à Obra de Wolfgang Iser.
ROCHA, João Cézar de Castro (Org.). Rio de Janeiro. EDUERJ, 1999. P.65-66.
273
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.89.
149
O soneto dessa primeira parte, que tematiza a passagem da vida para a morte, ainda
elabora imagens positivas, sobretudo, mediante símbolos articulados com a natureza
circundante, ou seja, pela identificação da “alma” com a “estrela”. Contudo, no soneto da
segunda parte274, as imagens tornam-se mais cruas, talvez até mesmo mórbidas:
274
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.90.
150
pai morrera durante à noite, seus familiares pensando que ele ainda estava dormindo. Além
disso, há a imagem poética que associa a chegada da alma do pai no Céu, como uma estrela.
Por outro lado, nas estrofes seguintes, quando a morte já está constatada, os aspectos
representados são outros: o corpo do pai está podre; seu olhar apresenta um aspecto vítreo; em
sua pele “microorganismos fúnebres pululam / Numa fermentação gorda de cidra”.
O humano e o animal, representado pela figura da “hidra”, estão sujeitos à mesma “lei
biológica”. “Bichos” roem as mãos do pai, beijadas pelo eu lírico. A morte é metaforizada
como uma “atômica desordem”, ressaltando-se, por fim, a inumação do corpo, simbolizada
pela “...terra infecta que lhe cobre os rins”.
Esses três sonetos analisados até o momento oferecem imagens poéticas significativas
acerca da morte do pai de Augusto dos Anjos, transfigurando possíveis experiências vividas
em verso. Os textos poéticos de Augusto dos Anjos, em nossa ótica, configuram-se pela
noção de “atos de fingir”, elaborada por Wolfgang Iser. Tais atos de fingimento, segundo esse
autor, são compostos por outras condutas de fingimento, a saber, a “seleção”, a “combinação”
e o “desnudamento” da ficcionalidade. Antes de discutirmos as articulações possíveis dos
versos de Augusto dos Anjos com esses três conceitos constituintes do “fingimento”, vejamos
ainda o que afirma Iser275
...este mundo do texto não teria nada de idêntico ao mundo dado, pois a
intencionalidade e o relacionamento, que constituem a base de sua forma de
organização, não são qualidades do mundo dado. O mundo do texto, como
análogo assim constituído, permite portanto que por ele se vejam os dados
do mundo empírico por uma ótica que não lhe pertence, razão porque
constantemente ele pode ser visto de forma diferente do que é.
Assim sendo, ao tomar a morte do pai como tema poético, Augusto dos Anjos não
apenas nos comunica a enfermidade, a morte e a ocorrência da missa de sétimo dia. Através
da atividade mimética nos apresenta outra perspectiva acerca desse fenômeno, ou seja,
podemos enxergar não somente a doença e a morte de seu pai pelos olhos de seu eu lírico,
como também, o leitor/receptor pode associar essas imagens poéticas com suas próprias
experiências e expectativas. Aqueles atos reais “irrealizam-se” pela ficcionalização poética,
na medida em que o imaginário se realiza.
Como temos discutido, é próprio da temporalidade moderna dispensar atenção à
dimensão subjetiva, individual. Não foi à toa que a psicologia e a psicanálise desenvolveram-
se muito nas primeiras décadas do século XX. Nesse movimento, não é de se espantar o fato
275
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.978.
151
276
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.960-961.
152
Desse modo, Augusto dos Anjos, nesses textos poéticos em particular, seleciona três
ocasiões distintas, não fictícias: a enfermidade, a morte e a cerimônia religiosa de sétimo dia.
No “soneto ao pai doente”, a enfermidade é associada à tristeza, à ausência de flores nos
campos, à um padecimento que se traduz em gemidos. Nas imagens poéticas relacionadas à
esse momento, o sofrimento é mais abstrato, menos carnal e mais simbólico.
Caso sejam comparados os sonetos “Ao pai doente” e “Ao Sétimo dia de seu
falecimento”, as palavras, imagens e sensações que se intenta expressar permanecem numa
ordem estética semelhante. Sete dias após o falecimento, o eu lírico ficcionaliza a ocasião
associando o pai que já jazia às ideias de força, de serenidade, de beleza. Com relação ao
soneto “Ao pai morto”, tudo se modifica. A linguagem se torna fúnebre, mórbida, macabra,
quase insensível. Fala-se da carne podre, dos micro-organismos que fermentam, dos bichos
que roem a carne, da terra utilizada na inumação.
Dessa forma, cada metáfora, cada símbolo e palavra oferece ao leitor uma percepção
distinta inscrita nesse fenômeno da morte. O efetivo falecimento do pai, as circunstâncias que
o precederam e sucederam não são, em si mesmas, ficcionais. Contudo, é pela seleção destas
circunstâncias que os textos poéticos em questão se transformam mimeticamente num
“fingimento”. É como se fosse buscada, mediante os mais variados meios, uma ligação, uma
comunhão com o leitor/receptor. Paulo Henriques Britto277 afirma que:
...o poeta lírico, ao recorrer à memória vivida, estabelece com seu leitor um
diálogo de semelhanças e diferenças: essas foram minhas vivências, pessoais
e únicas, porém reconhecíveis por qualquer outro ser humano. (...) Para o
poeta lírico, a memória individual é a principal [mas não única] matéria-
prima.
Nos poemas analisados até aqui, ocorre a ficcionalização a partir da seleção de alguns
elementos presentes efetivamente no cotidiano do poeta, vestígios do passado que foram
evocados e transfigurados: o Engenho Pau d‟Arco, a ama de leite escrava/ex-escrava; o
apelido “patriarcal” de sua mãe, “Sinhá-Mocinha”, a menção ao “Doutor”, no caso, Aprígio
de Melo, segundo marido de sua avó, D. Juliana. É através da seleção e ficcionalização dessas
circunstâncias que se efetiva o “fingimento” e o “efeito” estimulado no imaginário do leitor.
277
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.128-129.
153
O quarto texto poético de Augusto dos Anjos que analisaremos neste capítulo, que
também nos conecta com o próximo capítulo, é o soneto “Agregado Infeliz de Sangue e
Cal”278. Vejamos na íntegra:
Em nossa leitura, o soneto acima, assim como os anteriores, também se inscreve nesse
esforço de ficcionalização a partir de experiências vividas. Pelo projeto da poesia lírica, esses
sonetos não deixam de cumprir seu papel, além de contribuírem na elaboração de sua
mitologia pessoal como poeta, cuja identidade narrativa seria sintetizada pelo rótulo de “poeta
da morte”. Nesses versos, o eu lírico está sempre atento ao processo dissolutivo que, segundo
a interpretação de Augusto dos Anjos expressa em muitos de seus textos, associada ao
pensamento cientificista, é inerente à toda a existência, orgânica e inorgânica.
Nesse soneto, também é ressaltada a marca temporal da anterioridade do tema
abordado, ou seja, é a ocorrência do aborto recém ocorrido do filho que sua mulher esperava
que se transforma em matéria para a poesia. Tal como o soneto “ao pai morto”, as imagens
poéticas elaboradas nesses versos também são bastante sóbrias, “cruas”, sem idealizações.
Esse texto poético, por exemplo, ainda nos permite compreender não somente o ato de
“fingir”, marcado pelo conceito de “seleção”, quanto pelo conceito de “combinação”. Para
278
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.18.
154
Wolfgang Iser279, “como um ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual
na combinação dos elementos textuais, que abrange tanto a combinabilidade do significado
verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos
personagens e de suas ações.”
Os versos desse soneto trazem consigo muitos dos elementos estéticos que
encontramos em sua poética, sobretudo, nos textos colhidos em livro e, principalmente, pelo
uso recorrente de termos técnicos, científicos e filosóficos (“morfogênese”; “trama
neuronial”; “plásmica substância”; “noumenalidade”;). Isto é, o fenômeno selecionado (o não
nascimento do filho) é expresso através da combinação de uma série de termos
cientificistas/filosóficos.
O uso desses termos no soneto citado, também presentes em muitas de suas poesias,
reforça a compreensão da morte como um fenômeno natural, não sobrenatural, assim como,
um entendimento naturalizado do corpo. O eu lírico, ao referir-se ao corpo do filho natimorto,
o define como “feto esquecido”, “agregado infeliz de sangue e cal”, divagando sobre o lugar
onde o feto abortado iria “... passar a infância / tragicamente anônimo, a feder?!”.
O problema que impediu o nascimento de seu filho não é identificado. Porém, é
metaforizado como um “poder embriológico fatal”. Após ter seu nascimento impedido, a
morte do seu filho não é representada como um fato sobrenatural, mas, natural, associado à
elucubrações filosóficas, como designa os versos “...panteísticamente dissolvido / na
noumenalidade do NÃO SER!”. Dessa forma, percebemos na configuração desse e dos outros
três sonetos analisados na seção anterior a emergência de um ato de “fingimento”. Para Iser280
279
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.963.
280
ISER, 2002, p.982.
155
Quanto à morte, as narrativas que a literatura faz dela acaso não têm a
virtude de embotar o aguilhão de angústia em face do nada desconhecido,
dando-lhe imaginariamente o contorno desta ou daquela morte, exemplar por
uma razão ou por outra? Assim, a ficção pode concorrer para a
aprendizagem do morrer. (...) Aqui pode instaurar-se um intercâmbio
frutuoso entre a literatura e o ser-para-a (ou em direção à) morte.
281
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.173.
282
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.972-973.
156
ser real, ou seja, deve ser compreendido “como se fosse real...”. Assim, os textos poéticos de
Augusto dos Anjos são ficcionais e sugere-se que sejam entendidos a partir do “como se...”.
A atribuição de um “autor” a um texto é historicamente variável e não deve ser
concebida de maneira naturalizada. Ao longo dos tempos, nem sempre houve a necessidade
de identificar, num texto, sua autoria. Para Foucault283, mesmo quando se passa a enfatizar
essa atribuição, ainda não é ao sujeito que escreve que apontamos, mas, sim, para aquilo que
esse filósofo chama de “função-autor”.
Um conjunto de observações acerca dessa problemática elencada por Foucault foi feita
pelo historiador Roger Chartier. Esse historiador coloca os pressupostos de Foucault sob
avaliação, nos fornecendo uma ampliação dessa perspectiva. Conforme Chartier284,
Nessa ótica, quando nos referimos à poesia de Augusto dos Anjos, o eu lírico que nela
encontramos pode ser associada à essa noção de “função-autor”. Assim, Augusto dos Anjos,
enquanto sujeito que escreve, encontra-se numa posição distinta e distante do “autor” para
quem o texto escrito aponta. Entretanto, ao reavaliar essa noção derivada do pensamento
foucaultiano, Chartier285 considera que:
283
FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, música e cinema. Ditos e Escritos, Vol. 3. MOTTA,
Manoel Barros da (Org.). Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2009.
284
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.38-39.
285
CHARTIER, 2012, p.38.
157
associados aos estratos de sua temporalidade histórica, que ele não controla, assim como, não
controla as interpretações feitas pelos diversos receptores, em outros momentos. Quando faz
menção, em seus versos, à elementos de sua vida, elabora transfigurações ficcionais. Todavia,
seja no tocante à refiguração de memórias, seja escrevendo sobre si mesmo, seja fazendo
poesia na sua forma mais imaginativa, mais ficcional possível, há a construção de um “outro”
para além dele mesmo. Chartier286 comenta:
Na perspectiva foucaultiana, haveria uma confusão, por parte dos historiadores, entre
considerações sócio-históricas sobre o autor enquanto sujeito e essa chamada “função-autor”.
Tais análises sócio-históricas, continua Chartier287, privilegiam “...o status social dos autores,
as origens e carreiras familiares dos escritores, a estrutura do campo literário, etc.”
Ao indicarmos as proximidades entre a poesia de Augusto dos Anjos com a escrita de
si e com a identidade narrativa e suas interfaces com os atos de fingir e com o tema da morte,
nos referimos à alguns daqueles elementos que são privilegiados nas análises sócio-históricas.
Contudo, se há a inclusão em sua poesia de personagens e lugares relacionados à sua
biografia, não entendemos que tais elementos sejam determinantes para o surgimento de sua
poética, nem consideramos que esta seja mero reflexo passivo de sua vida.
Considerado um ato de fingir, como sugere Iser, o texto ficcional, em prosa ou verso,
pressupõe ser compreendido “como se fosse...”, ou seja, deve-se perceber como o texto
ficcional se despe da pretensão de ser “real”: à ele, basta que pareça real, que seja
compreendido “como se fosse real”. Ainda para Iser288, “torna-se deste modo claro que a
ficção do como se utiliza o mundo representado para suscitar reações afetivas nos receptores
dos textos ficcionais.”.
Talvez a distinção texto/autor seja mais perceptível quando se trata de outras formas
de ficção, como nos romances mais convencionais, nos contos ou peças teatrais, nas quais o
286
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.38. (ênfase em itálico do
autor).
287
CHARTIER, 2012, p.38.
288
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.977.
158
sujeito que escreve/autor é visto como distinto dos personagens que habitam suas tramas. Já
no caso da poesia, a percepção desta distinção pode ser mais difícil, pois, muitas vezes, o
receptor pode confundir um poeta, como Augusto dos Anjos, com seu personagem, o eu lírico
presente em seus versos. Porém, prosa e poesia apelam às reações afetivas do leitor.
Através da atividade mimética de Augusto dos Anjos, a inclusão de temas
identificáveis em sua biografia não se processa como uma mera atividade de imitação, mas,
sim, como a criação de uma nova forma de conceber à realidade referencial para a qual o
texto pode apontar. A dialética entre o indivíduo que escreve e essa “função-autor”, tal como
analisa Chartier, foi pensada de modo bastante fecundo pelo escritor argentino Jorge Luis
Borges (1899-1986) em seu texto intitulado “Borges e Eu”. Nesse texto, Borges considera as
distâncias que separam ele, como indivíduo/escritor dotado de certas peculiaridades, do
“Borges”, o autor como figura pública. Nas palavras de Chartier289
Ao tomarmos, aqui, como tema de discussão algumas poesias de Augusto dos Anjos
enquanto indiciárias de um conjunto de experiências de individualização, inerentes à chamada
modernidade, percebemos uma relação com as observações feitas acima por Chartier.
Augusto dos Anjos, enquanto sujeito que escreve, sustenta em sua “fenomenalidade” esse
“outro eu”, que adere aos textos escritos. Esse “outro” Augusto dos Anjos com o qual os
leitores de seus versos entram em contato, por vezes, pode parecer tão ou mais real do que
aquele sujeito fenomênico.
Chartier observa que, no pressuposto foucaultiano, a “função-autor”, ou seja, o “nome
próprio” ao qual o texto é atribuído, não seria universal. Anteriormente, textos “científicos”
normalmente eram atribuídos a um autor, ao passo em que textos “literários” nem sempre
identificavam com clareza sua “autoria”, muitos permanecendo como anônimos ou
indeterminados, até mesmo atribuídos à “autores” distintos.
289
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.40.
159
Entretanto, por volta dos séculos XVII ou XVIII, como sugere Foucault, verdades
“científicas” já não eram necessariamente associadas a um autor, ao contrário dos textos
“literários”, que fortaleceram progressivamente essa associação, sobretudo, com o advento da
modernidade de fim de século.
Contudo, Chartier290 apresenta alguns exemplos históricos de que, mesmo no período
em que Foucault sugeria um predomínio (ou inconstância) do anonimato da “autoria” em
relação aos textos ditos “literários”, já existiam autores que disputavam com editores e
livreiros a propriedade intelectual de seus textos e os direitos comerciais sobre eles, seja sobre
a venda, seja sobre o direito de realizar encenações/apresentações; ou seja, disputava-se a
autoria e os direitos dela derivados. Em síntese, Chartier291 propõe que:
290
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.45-50.
291
CHARTIER, 2012, p.62-63.
292
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.155.
160
... tal como o poeta, o leitor foi criança e jovem, com as delícias e terrores
peculiares a cada idade; também ele amou, e teve seu amor correspondido ou
não; temeu a morte e ansiou por alguma espécie de imortalidade, ou pelo
menos de compensação à mortalidade; e, se não viveu, ao menos imagina o
que seja viver as experiências do exílio, da velhice, da desgraça. (...) o mito
do poeta lírico (...) perfaz uma singularidade inconfundível, a persona do
poeta (...). O prazer proporcionado pela poesia lírica depende dessa
paradoxal coexistência entre identificação e diferenciação, entre, de um lado,
o lastro de experiências vividas ou concebidas comum ao poeta e ao leitor, e
de outro, a certeza de que tanto a personalidade que escreveu aqueles versos
quanto a que os lê são singulares.
293
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
294
BRITTO, 2000, p.126.
161
De certo modo, as poesias de Augusto dos Anjos inserem-se nessa dialética do lírico e
do pós-lírico. Seja através de uma apropriação mais convencional de certos padrões estéticos,
seja experimentando novas formas e conteúdos poéticos, Augusto constrói um eu lírico mais
tradicional. Por outro lado, misturando tendências e apropriações diversas, investindo mais
energia nas experimentações poéticas que elabora, aproxima-se do que foi denominado acima
de pós-lírico: exemplo disso seria o uso recorrente de termos técnicos e científicos que
permanecem herméticos àqueles que não possuem as mesmas leituras que ele.
Se a poesia de Augusto dos Anjos não o revela integralmente, se ela é uma figuração
de si por ele elaborada, se ela pode ficcionalizar suas experiências vividas, se ela constitui sua
mitologia pessoal na forma de uma identidade narrativa, se o indivíduo não consegue
encontrar em si mesmo aquele que ele pressupõe ser em essência, haja vista que essa essência
não existe, o indivíduo, portanto, seria sua própria ausência. Logo, a poesia de Augusto dos
Anjos é a ficção que, parafraseando Chartier, dá realidade à essa ausência que ele era
enquanto indivíduo historicamente situado.
295
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
162
Tomando a noção de “identidade narrativa”, proposta por Ricoeur, uma hipótese que
surge é que os versos de Augusto dos Anjos transformam-no de “narrador” em “personagem”.
Talvez a noção de “autor”, próxima à “função-autor” da qual fala Foucault e Chartier, seja,
também, um personagem da(s) narrativa(s) elaborada(as) pelo sujeito que escreve.
O diálogo entre a questão do autor, a identidade narrativa e atos de “fingir” nos
permitiram compreender diversos elementos nos versos de Augusto dos Anjos. Sua poesia é
indiciária de atitudes em face da morte, é ficcionalização de experiências vividas, é
transfiguração mimética com finalidades estéticas, assim como, é busca de uma identidade e a
perseguição de um “eu”. É a construção de uma imagem para si mesmo e para os outros.
163
CAPÍTULO 6
OS ESPAÇOS DA MORTE E SEUS AGENTES
Além das temáticas já indicadas nos capítulos e seções anteriores, a poesia de Augusto
dos Anjos também opera com imagens relacionadas à morte e ao morrer, elaborando
representações acerca de seus espaços mais consagrados e sobre os agentes relacionados a
esse fenômeno, assim como, sobre o corpo e suas doenças. Nesse sentido, não poderia faltar
em sua poética representações literárias acerca dos cemitérios.
Como já observamos, a poesia de Augusto dos Anjos foi elaborada nos primeiros anos
do século XX, a partir de um complexo movimento de apropriações de elementos associados
aos ímpetos da modernidade vividos no sul e nordeste, mais especificamente, no interior do
Estado da Paraíba, nas cidades de João Pessoa, Recife e, posteriormente, Rio de Janeiro e
Leopoldina, em Minas Gerais.
As sensibilidades da temporalidade moderna, os pressupostos oriundos do
cientificismo e de outras estéticas literárias, convergem em sua poesia de maneira intrigante e
não brindam o leitor com uma perspectiva otimista. Na virada para o século XX, a
modernização das relações sociais, econômicas, culturais e políticas tornou-se horizonte a ser
perseguido. A ciência apresentava-se quase como uma nova fé. Em contraponto à esse
cenário, sua poesia publicada em livro falava, quase exclusivamente, da morte e do morrer.
O historiador francês Philippe Ariès conceituou algumas das principais atitudes dos
homens perante a morte na cultura ocidental. Para tanto, tomou de empréstimo da ciência
linguística as noções de “sincronia” e “diacronia” para mapear e rastrear tais atitudes e suas
mudanças, o que nem sempre é fácil. Segundo Ariès296:
No quadro conceitual que Philippe Ariès propõe, derivado da dialética entre sincronia
e diacronia, algumas atitudes diante da morte são caracterizadas, em linhas gerais, como:
296
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.31.
164
“Morte Domada”, vista em sua familiaridade com a própria vida, ainda que se mantenham
certas distâncias entre mortos e vivos; “Morte de si mesmo”, entendida como a tomada de
consciência, pelo sujeito, da morte como fato inevitável da vida; “Morte do Outro”, que
enseja, p.ex., práticas de culto tumular; e, por fim, a “Morte Interdita”, mais comum a partir
da modernidade, principalmente de fins do século XIX até aos nossos dias. Nesta atitude,
procura-se ocultar, ou controlar, os sinais mais evidentes da morte e do morrer (como nas
condutas de luto e nas configurações de espaços, como o cemitério e o hospital, este o novo
lugar onde se morre, ao invés de se morrer em casa, como era mais comum anteriormente).
José de Souza Martins297, visando compreender aspectos da historicidade da morte na
sociedade brasileira, ressalta uma espécie de inconveniência da presença desse fenômeno em
nossa experiência histórica: “O tema da morte é um tema interditado, banido, nos centros
urbanos e nas regiões “mais cultas” e desenvolvidas da sociedade brasileira. Sobre a morte
pesa o silêncio civilizado, a indiferença aparente, a atitude racional e prática que remove
rapidamente da vida o peso dos mortos.”
De acordo com Antônio Motta298, tornou-se necessário estabelecer “...uma rígida
demarcação entre metrópolis e necrópolis [o que] concorreu para que houvesse maior
disseminação da crença no poder da ciência sobre a morte”. É num momento dotado com tais
características que a poesia de Augusto dos Anjos emerge, em sincronia com certas atitudes
perante a morte, cujos traços ainda eram vigentes, ao mesmo tempo em que também se
mostra, de certo modo, diacrônica, pois canta a morte na poesia, quando não se devia falar
sobre ela, principalmente utilizando termos técnicos e científicos para afirmar sua presença.
Mesmo que não tenha sido um caso único e excepcional, haja vista que outros poetas e
literatos299, brasileiros ou não, também já utilizaram uma linguagem fúnebre e refletiram
sobre a temática da morte em seus versos, a poética de Augusto dos Anjos terminou
chamando atenção. Alguns elementos já discutidos, assim como outros que elencaremos daqui
por diante, contribuíram para a popularização de seus textos poéticos, os quais foram
envolvidos por uma espécie de “mística trágica”.
Analisaremos alguns textos poéticos que operam com imagens relativas ao espaço dos
cemitérios. Uma observação inicial é que existem duas formas de representação poética nos
versos de Augusto acerca desse espaço: uma, mais “simbólica”; a outra, mais “mórbida”. Na
297
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
298
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009, p.31.
299
Podemos citar Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Cesário Verde (1855-1886), Álvares de Azevedo (1831-
1852), Cruz e Sousa (18861-1898), além do próprio Charles Baudelaire (1821-1867), entre outros.
165
Nos versos acima, o poeta inscreve seu eu lírico no espaço tumular dos cemitérios,
representando a morte e o morrer mais em seu caráter “simbólico”, abstrato, do que em seu
aspecto mórbido, macabro, orgânico. O espaço do cemitério é continuamente sugerido a partir
de alusões à sua materialidade: “brancos sepulcros”, “túmulos tristes...”, “umbrais
marmóreos”, “lájea fria”. Apesar da alusão a esses objetos e espaços físicos, vemos que não
há indicação de que lá estejam depositados material biológico em processo de putrefação. O
que ali jaz seriam “sonhos”, “crenças divinais”.
Outro texto poético que pode se inscrever nessa primeira forma, menos frequente, de
representar a morte e o espaço cemiterial é o soneto intitulado “O Mar”. Este texto poético,
também permaneceu apenas publicado em jornal, não tendo sido, como o soneto anterior,
incluído na edição do “Eu”.
Ressaltamos que esses sonetos, escritos e publicados apenas no jornal paraibano O
Comércio, em 1901 e 1902, respectivamente, também aproximam-se dos elementos próprios
da estética romântica, como discutimos na primeira seção de nosso primeiro capítulo. O vetor
mimético da “semelhança” orienta a elaboração desses versos. No soneto “O Mar”301,
verificamos algumas imagens semelhantes às indicadas mais acima:
300
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.377. Soneto publicado apenas no Jornal O Comércio.
301
ANJOS, 1994, p.410.
166
302
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
303
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41.
167
espaços cemiteriais/sepulcrais e dos ritos funerários que normatizavam tanto essas práticas,
quanto esses lugares. Sobre isso, Ariès304 comenta:
O mundo dos vivos deveria ser separado do mundo dos mortos. É por isso
que em Roma a Lei das Doze Tábuas proibia o enterro in urbe, no interior da
cidade. O código teodosiano repete a mesma proibição, a fim de que seja
preservada a sanctitas das casas dos habitantes. A palavra funus significa ao
mesmo tempo o corpo morto, os funerais e o assassinato. Funestus significa
a profanação provocada por um cadáver. Em francês, resultou na palavras
funeste (funesto).
De certo modo, é como se o espaço cemiterial funcionasse como a cidade dos mortos,
isto é, ele seria o espaço do morto em sua coletividade e de lá eles não poderiam sair, assim
como, recomendava-se que somente lá eles poderiam jazer em paz. A literatura e a ficção,
desenvolvendo seus enredos, apresenta forte fecundidade ao imaginar circunstâncias nas quais
esse “pacto” é quebrado, quando o morto retorna para con(viver) entre os “vivos”. Exemplo
disso, como nos indicou Teófilo de Queiroz Júnior305, são textos de escritores tais como
Ariano Suassuna, Jorge Amado e Érico Veríssimo, entre outros. O esperto “João Grilo”, o
“boêmio” “Vadinho” e os sete mortos de “Incidente em Antares” retornam para o convívio
entre os vivos, violando o pacto que antes os separava.
O segundo conjunto de representações poéticas acerca do cemitério, nos versos de
Augusto dos Anjos, como sugerimos, é mais constante. Podemos associar muitas das imagens
então elaboradas com os contatos que esse poeta manteve com os pressupostos do pensamento
cientificista e com a estética própria da chamada poesia científica e simbolista.
Apesar da desejada instituição de uma distância entre vivos e mortos, simbolizada pela
existência do cemitério, o contínuo hábito da inumação geraria, por sua vez, a lotação dos
espaços próprios para essa prática. Dessa forma, ficava cada vez mais difícil manter os
limites, as fronteiras, entre os espaços dos vivos e dos mortos. Já não se recomendava aos
familiares, desde os interstícios da sociedade feudal, enterrarem seus entes queridos dentro do
espaço domiciliar, nem em suas adjacências. Contudo, ainda que permanecessem fora das
residências, os cadáveres já haviam sido trazidos para dentro do espaço urbano. Na ótica de
Phillipe Ariès306:
304
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41.
305
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Dos Mortos e Sua Volta. In: MARTINS, José de Souza. A Morte e os
Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC, 1983, p.103-112.
306
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41-42.
168
(onde moraria, após a venda dos engenhos), Recife, Rio de Janeiro e Leopoldina. No que diz
respeito às sensibilidades modernas em João Pessoa, Chagas307 afirma:
307
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004, p.161-162.
170
Para o presente momento, voltaremos nossa atenção para a sexta parte desse poema, a
qual tematiza o espaço cemiterial, visitado pelo eu lírico em seu “passeio” noturno pela
cidade. Nas seções seguintes retornaremos à esse poema, conforme a temática então discutida.
Focando nossa atenção na referida parte, ressaltamos que já nas duas primeiras estrofes da
primeira parte de “Os Doentes”311, a cidade assemelha-se ao cemitério:
I
Como uma cascavel que se enrosca,
A cidade dos lázaros dormia.
Somente, na metrópole vasia,
Minha cabeça autônoma pensava!
308
BENJAMIN, Walter. O Flâneur In: KOTHE, Flávio (Org.); FERNANDES, Florestan (Coord.). Walter
Benjamin: Sociologia. São Paulo. Editora Ática, 1991, p.65-92.
309
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.51.
310
REIS, Zenir Campos (Org.). Literatura Comentada: Augusto dos Anjos (Textos Selecionados, Estudo
Histórico-Literário e Atividades de Compreensão e Criação). São Paulo. Editora Abril, 1982. p.38.
311
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.50.
171
Quando o eu lírico afirma que a “cidade dos lázaros dormia”, sugere uma referência à
metrópole dos vivos, estes, porém, já doentes, haja vista o uso do termo “lázaro”, eufemismo
(pejorativo) para o Mal de Hansen. Ao mesmo tempo, a “metrópole dos vivos” também era
uma “metrópole vazia”, reforçando a sobreposição, a fusão, entre a cidade e o cemitério.
Numa leitura que reforça a percepção dessa “fusão” entre “metrópole” e “necrópole”,
vemos, nesses versos iniciais, o vislumbre do eu lírico, que vê a terra sob seus pés como um
tipo de organismo vivo, dotado de garganta e fígado, pronto para consumir aqueles que
morrem. Na primeira estrofe da oitava parte do poema312, lemos ainda: “Em torno a mim,
nesta hora, estryges voam, / E o cemitério em que eu entrei adrede, / Dá-me a impressão de
um boulevard que fede, /Pela degradação dos que o povoam.” Essa associação entre
metrópole e necrópole indica a existência de certos elementos relativos à historicidade do
desenvolvimento dos cemitérios, simultâneo ao das cidades. Como observa Ariès313,
312
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.63.
313
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.43.
314
ARIÈS, 2014, p.44.
172
Ainda nessa lógica, Ariès315 complementa: “A palavra aître desapareceu do francês moderno,
mas seu equivalente germânico, churchyard, permaneceu em inglês, alemão e holandês.
Existia outra palavra empregada em francês com o sinônimo de aître: charnier.”
O cemitério indicava um espaço público no qual se acumulavam as sepulturas, o
atrium, também identificado na língua francesa como charnier. Essa palavra não deixa de
fazer referência à noção do cadáver como carne morta, como carniça. Tal noção ainda se
desenvolveria posteriormente e com mais força.
O que nos chama atenção, aqui, é o fato de que essa associação entre metrópole e
necrópole, nos versos de Augusto dos Anjos, não é apenas uma metáfora poética, mas, sim,
um fenômeno que possui traços de historicidade próprios. Numa sensibilidade muito ligada às
sociedades feudais, o espaço cemiterial é fortemente compreendido como um espaço público,
tal como a própria cidade. Conforme Ariès316,
315
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.45.
316
ARIÈS, 2014, p.47.
317
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.44-45.
173
318
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.49.
319
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.61.
174
Em vista disso, devia-se retirar daquele espaço os corpos ainda não decompostos
totalmente, sepultando-os noutro lugar, pois, como ressalta Phillipe Ariès320 “...com o tempo
mais frio, o chão do cemitério exalava odores fétidos”. Essa referência aos odores exalados
pelos cadáveres também é encontrada nos versos de Augusto dos Anjos.
O poema “Noite de um Visionário”321 faz uma referência ao universo do sujeito que
escreve, pois, no primeiro verso lemos “Número cento e três. Rua Direita”, o qual era,
precisamente, o novo endereço de Augusto dos Anjos e de sua família, quando se mudaram
do engenho para a cidade de João Pessoa. Mais uma vez, cidade e cemitério se confundem.
Entre a décima terceira e a décima sétima estrofes322, encontramos as seguintes imagens:
320
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.49.
321
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.95.
322
ANJOS, 1912, p.97-98.
175
que, segundo se acreditava, emanavam de locais insalubres, tais como os cemitérios, noção
esta muito utilizada antes do estabelecimento de uma compreensão mais adequada das
infecções e epidemias virais ou bacteriológicas.
O cemitério, como cidade dos mortos, “exalava um podre bafo”, assim como, os
anúncios comerciais espalhados pelas ruas das cidades eram associados aos epitáfios dos
túmulos. A putrefação do material orgânico é descrita como um rumor subterrâneo, oriundo
do “coração quente da terra”. A imagem mais crua em relação aos odores fétidos emanados
dos corpos encontra-se na metáfora da “química feroz dos cemitérios”, a partir da qual um
tipo de chorume “...escorre dos defuntos”, semelhantes aos jatos dos gêiseres.
Nas representações de Augusto dos Anjos sobre a morte e sobre os espaços do
cemitério, reafirma-se a morte como uma circunstância naturalizada. Também percebemos em
suas imagens a morte como um fenômeno que, mesmo comum a todos, é vivida de maneira
particular: o indivíduo sempre morre sozinho, mesmo quando, junto ao moribundo,
encontram-se pessoas que assistem seu falecimento. Isto reforça a experiência da morte como
algo que alude àquele que morre, ao “si mesmo” ciente de sua finitude.
Seguindo na trilha sugerida por Ariès, esse processo de individualização da
experiência da morte não deixa de estar intimamente ligada com as sensibilidades da
modernidade. Nesse momento histórico, que representou um reforço extraordinário em
relação à noção de indivíduo, dificilmente a morte escaparia desse processo. Em vista disso,
Ariès323 comenta ainda:
Com a morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não
cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas
com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas
que cada vida devia sempre transpor.
Essa atitude diante da morte não deixa de sinalizar uma mudança nas experiências
histórico-sociais. Enquanto que, como herança da sociedade feudal europeia ocidental, os
homens possuíam uma concepção mais coletiva em relação ao seu próprio destino, e se a
morte era o destino coletivo de todos, ressalta Ariès324 que, “a família não intervinha para
atrasar a socialização da criança” em relação ao fenômeno da morte.
Como a sociedade feudal ainda possuía uma proximidade maior com as dimensões
“naturais” da vida, não surpreende o fato de que a morte também fosse concebida como uma
323
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.50.
324
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.49.
176
experiência a ser vivida com “naturalidade”, mesmo por crianças. Entretanto, com a
progressiva emergência das sensibilidades modernas, nascidas no interior da própria
sociedade feudal, essa familiaridade da sociedade e dos seus indivíduos em relação à morte
iria se enfraquecer, se desnaturalizar. Tornar-se-ia mais artificial, menos espontânea.
Na compreensão de Phillipe Ariès, para além da particularização das representações
do juízo final e da eleição do quarto do moribundo como espaço privilegiado para a passagem
da vida para a morte, é o aparecimento das representações sobre o cadáver decomposto que
ressalta esse processo de individualização.
A morte continua um fenômeno coletivo, no sentido de que ninguém escapará dela.
Não deixa de ser o destino comum a todos nós. Entretanto, é através das transformações de
nosso próprio corpo, de seu envelhecimento, de suas doenças, que podemos perceber a
progressiva chegada da morte.
Nesse sentido, a percepção não recai apenas sobre as transformações ocorridas no
corpo do outro, mas, principalmente, naquelas mudanças que os indivíduos verificam, cada
um, em seu próprio corpo. Em nossa ótica, isso dá nova ênfase ao processo de
individualização das atitudes em face da morte na modernidade.
A percepção do corpo que fenece, que adoece ou apodrece, na poesia de Augusto dos
Anjos, além de ressaltar o caráter natural desse fenômeno, parece constituir, também, um
meio de acesso diferenciado a outras experiências, proporcionando ao sujeito uma maior
compreensão de si mesmo e do mundo que o cerca. Podemos apontar traços desses elementos
no soneto “Solilóquio de um Visionário”325:
325
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.46.
177
ao gerente que os afastasse daqui?” A modernidade, portanto, não somente deve ser vista,
porque é “bela”, como deve ocultar a fealdade do mundo e das pessoas, tal como se oculta a
morte, sua presença e seus sinais.
A percepção, ou insinuação da morte, a partir de sinais visíveis no corpo se
transformaria num tema inconveniente. Como observou Ariès328, houve a introdução cada vez
mais recorrente das imagens do cadáver decomposto que representavam a “morte seca”, o
corpo morto esquelético e descarnado.
De um lado, Phillipe Ariès assinala duas percepções: Huizinga teria enxergado nessa
mudança de atitude uma espécie de crise moral, presente na sociedade feudal, que parecia
antever seu próprio final. Por outro lado, Tenenti teria interpretado tal mudança como o sinal
de um maior amor ou apego à vida. De um modo ou de outro, Ariès329 comenta:
328
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.58.
329
ARIÈS, 2014, p.58.
330
Idem, Ibidem, p.59.
331
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.40.
179
O eu lírico faz referência à materialidade do seu corpo, que reflete em sua própria
carne os dissabores então sofridos. Diante da indiferença que lhe atinge, seu corpo é associado
a um caixão e seus sentimentos aos detritos orgânicos que ele carrega. Além dessas imagens,
que identificam o próprio corpo à tumba e a pele ao pergaminho, faz menção, também, ao
barulho derivado do atrito dos seus ossos.
Este fenômeno, conforme Phillipe Ariès332, vai se tornando mais comum entre os
séculos XVI e XVIII. Talvez visando ocultar seus vestígios sempre que possível, cuidar com
mais afinco da morte dos outros poderia ajudar a esquecer um pouco a morte de si mesmo.
Disto, teria resultado não somente um incremento no culto aos cemitérios, como também, um
medo maior em relação à morte do outro, mesmo que esta morte ainda continue mais
aceitável do que a morte de si mesmo.
Em meio as sensibilidades modernas, não bastava normatizar os espaços da morte e as
práticas que nele podiam ser realizadas. Para além disso, o próprio espaço deveria receber um
tratamento estético. Isto significava que, tanto não se deveria sentir o cheiro da morte, quanto
não se devia, também, ver seus traços: aceitando a impossibilidade de sua invisibilidade, que
pelo menos sua presença fosse esteticamente agradável: “A evolução do cemitério testemunha
ainda, num outro registro, o propósito de se instalar uma ruptura na coexistência entre vivos e
mortos. Exilado para a periferia das povoações, cercado por um muro e dissimulado por
árvores, ele esteticiza (...) a nova atitude de expulsão e de encobrimento.”, observa Catroga333.
O temor em face da morte tanto é uma concepção acerca dela, quanto da vida. Apesar
das promessas derivadas das religiões, cada qual ofertando um horizonte próprio após a
morte, possuímos expectativas mais ou menos comuns de que a vida deve ser usufruída ao
máximo e em todos os sentidos. Daí que a morte termina sendo uma interrupção dessa
332
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.74.
333
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.45
180
fruição, o que nos impele a, em meio à modernidade, desejar afastá-la, ocultá-la, adiá-la, de
todas as formas possíveis. José de Souza Martins334 comenta ainda:
Dessa forma, podemos perceber como a poesia de Augusto dos Anjos elabora
representações acerca do fenômeno morte, do morrer, de seus espaços e agentes. Certamente,
não estamos afirmando, aqui, que se deva desejar a morte, ou mesmo antecipá-la. A questão é
outra. Se antes a morte era encarada com mais “naturalidade”, passamos a viver experiências
cada vez mais “artificiais”, não somente em relação à vida, quanto também acerca da morte, o
que é um traço da historicidade presente no que chamamos modernidade.
Essa preocupação “técnica”, “artificial”, com a morte, como José de Souza Martins
ressalta no fim da citação acima, tem como objeto um fenômeno “natural” imerso na
historicidade de cada época. Nesse caso, a técnica, a ciência e os equipamentos modernos
contribuem na lida com a morte, em função de nossas expectativas e a partir de nossas
experiências.
A celebração da vida, propagandeada pela publicidade moderna, apesar de tentar, não
nos faz esquecer de nossa finitude. Não deixa de ser uma perspectiva contraditória, haja vista,
que toda essa técnica publicitária e toda a ciência moderna não nos encorajou a aceitar a
morte enquanto fenômeno que é parte da vida.
Isto porque, segundo os elementos inscritos na temporalidade moderna, o futuro é um
horizonte no qual as expectativas serão satisfeitas, realizadas. O futuro não somente é
aguardado, mas estimula otimismo. Contudo, a morte também está inscrita nesse futuro, na
medida em que atingirá à todos. Enquanto na temporalidade moderna, a passagem do tempo
aproxima o futuro, então tomado como algo positivo, a poesia de Augusto dos Anjos parece
sugerir que essa passagem do tempo é, antes de qualquer coisa, um desgaste. A ciência
moderna, ao invés de prolongar a vida (ainda que de certo modo, faça isto) não retira a morte
do horizonte. Em muitos casos, apenas constata sua chegada iminente.
334
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
181
O eu lírico sugere que, em vida, erguera uma pirâmide com seu próprio orgulho,
provavelmente atribuindo a si mesmo um sentido radicalmente positivo. Entretanto, a morte o
transforma em “matéria” e “entulho” e o faz perceber a sua insignificância, apesar dos
sentidos outrora atribuídos. Percebemos nesses versos justamente o olhar reflexivo que aquele
que morre lançaria sobre si mesmo, sobretudo, no verso inicial. Todo o brilho de uma vida é
encoberto pela terra, durante a inumação.
Novamente, não há nos versos qualquer referência à uma dimensão religiosa. O espaço
do cemitério termina sendo a morada final para um indivíduo submetido a um fenômeno que
não tem fim, pois, para que a morte fosse eliminada, nada que fosse vivo poderia continuar a
existir. O cemitério figura como um local passível de proporcionar uma ampliação da
percepção e da compreensão sobre si, além de ser, também, definido com o já tradicional
rótulo de “última morada”. De uma forma ou de outra, é um local a ser habitado.
335
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.77.
182
O espaço urbano, a metrópole, passa, portanto, a acolher todo tipo de pessoa e todo
tipo de prática, desde as legais, até as ilegais. Da mesma forma, o cemitério passa a acomodar
os mortos, na medida em que há a organização, no interior das cidades, de um espaço
dedicado exclusivamente à eles.
O cemitério, a necrópole, por sua vez, seria uma espécie de imagem da cidade e de
suas configurações, ou seja, da concepção de vida predominante entre os sujeitos históricos
numa determinada época. Sendo normatizado e justificado inclusive por preocupações
higienistas, o espaço do cemitério também evocava um desejo de preservar a saúde pública,
336
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.514.
337
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.63.
183
sobretudo, porque se via a própria sociedade/cidade como uma espécie de organismo vivo,
passível de contrair alguma enfermidade. Assim, o espaço organizado como cemitério, e os
túmulos em seu interior, além de sugerir uma medida de cunho sanitarista, também tratava-se,
na ótica de Ariès338
Nessa lógica, podemos perceber como a necrópole, mesmo estando situada dentro da
metrópole, parecia tanto ser um espaço contrário a ela, quanto uma continuação dela. No
cemitério, haveria lugares tanto para os populares, quanto para os ditos “grandes homens”,
ilustres na vida e na morte. Considerando a ênfase da modernidade em relação à noção de
“individualidade”, não é de se espantar o fato de que, ao reproduzir a dinâmica e as
configurações da cidade/sociedade, o túmulo adquiria significados para além de sua
finalidade. Como observou Catroga339
338
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.77-78.
339
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.98
340
Seguimos, aqui, o trecho citado por MEYER, Marlyse In: MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos
na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC, 1983, p.113-139.
184
341
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.78.
185
A existência seria o resultado de fatores opostos entre si, tal como a vida e a morte.
Daí a referência ao carpinteiro que, com seu ofício, tanto fabrica as mesas, como os caixões,
que receberão nossos restos mortais. A associação entre metrópole e necrópole é reafirmada
pela identificação entre esses dois ofícios. Sobre o cemitério e seus túmulos, Ariès342 comenta
342
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.78.
186
sendo “celebrados”. Conforme Catroga343” ...a campa individual, o túmulo de pedra, o jazigo,
o epitáfio, o busto, a estátua de corpo inteiro e, posteriormente, a fotografia, mais não são do
que expressões iconográficas, ainda que em graus diferentes, de um processo dissimulador da
morte e simulador da presença (ausente) do morto.”
A “melhoria”, o “aperfeiçoamento”, a “celebração” seja na vida, seja na morte,
sugerida pela temporalidade moderna, inclui o indivíduo, senão como protagonista, como
testemunha. As imagens poéticas de Augusto dos Anjos, quando sugerem algo próximo à essa
noção de “aperfeiçoamento”, nem sempre rubricam a presença do indivíduo como
protagonista/testemunha. O processo de criação e destruição, postulado pela poesia de
Augusto dos Anjos, tanto pode fazer surgir novos indivíduos, como pode transcorrer sem eles.
O indivíduo não é imprescindível: imerge num processo que está para além dele mesmo.
Como observou Ariès, mesmo em tempos mais remotos, quando a presença da morte
entre os vivos era aceita de maneira mais “familiar”, mais “naturalizada”, ainda assim havia o
cuidado de estabelecer um limite, uma fronteira entre vivos e mortos. Além do espaço do
cemitério propriamente dito, que tentamos discutir na seção anterior, o espaço do túmulo, do
sepulcro em si mesmo, também ganha relevo em suas representações poéticas.
Tornava-se necessário um agente para efetivar a prática da inumação, sobretudo, no
sentido de preparar o local do repouso final. Esse agente podia ser, normalmente, alguém
relacionado à família daquele que falecia. Todavia, com a transição da sociedade feudal para a
sociedade moderna e com a emergência de uma profissionalização das atividades relacionadas
à morte/morrer, o coveiro termina por simbolizar esse agente.
Nos versos de Augusto dos Anjos, para além do espaço cemiterial propriamente dito,
há, também, algumas imagens literárias criadas e atribuídas à esse agente, assim como, ao
sepulcro. As imagens relacionadas ao coveiro, por exemplo, também apresentam duas
tendências: uma, mais romântica e menos constante; a outra, bem mais recorrente, que já
apresenta um caráter mais mórbido e orgânico, demarcando o tom predominante e presente na
estética desse poeta e em seus textos mais significativos, publicados em livro.
Um exemplo dessa primeira tendência pode ser visto nos versos de “O Coveiro”344,
publicado originalmente em 1901, no jornal paraibano O Comércio. Esta poesia não foi
republicada no “Eu”, provavelmente por sua dissonância estética e temática, se comparados
àqueles textos poéticos que foram selecionados para compor a primeira edição em livro. Isto
343
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.106.
344
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.383.
187
porque a maioria dos poemas selecionados para o “Eu” possuem uma identidade estética e
temática mais comum. Nesse soneto, podemos constatar:
345
“...embora cessando suas relações jurídicas como pessoas, os mortos, na maioria dos casos, continuam a
deixar marcas indeléveis sobre os mais próximos, sejam elas motivadas por crenças religiosas, por razões
afetivas ou orientadas por outros elementos reguladores da vida social. (...)”. MOTTA, Antônio. À Flor da
Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros. Recife. Fundação Joaquim Nabuco.
Ed. Massangana, 2009, p.27.
346
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.374.
188
347
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.44.
348
ANJOS, 1912, p 428.
189
349
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.428.
350
ANJOS, 1912, p.74.
190
Quando da inumação, as pedras tumulares (que nos versos não possuem uma forma
definida) caem diretamente sobre o corpo do defunto. Ressalta-se, justamente, o oposto àquele
caráter abstrato do soneto “O Coveiro”, ou do soneto “Suplicas num Tumulo”: as vértebras
estão gastas; neuroplastas e medulas são penetradas e esmagadas. Todo o corpo se parte em
pedaços, restando apenas o último dente e as clavículas. Ou seja, nesse espaço tumular, jaz o
que sobrou de um conjunto de material biológico, orgânico, restando apenas alguns poucos
fragmentos. Aqui, retomamos o ponto acerca dos tipos de inumação.
Gonçalves de Magalhães351 (1811-1882), por exemplo, também elaborou imagens
acerca da morte e do túmulo em um de seus poemas, intitulado “Mysterio IV”:
Visando não perder o foco, não nos aprofundaremos no estilo e nas temáticas da
poética de Gonçalves da Magalhães. Contudo, podemos apontar, a partir dos versos indicados,
um estilo mais semelhante ao exercitado por Augusto dos Anjos, ainda que este poeta tenha se
apropriado com mais vigor da morte como um fenômeno secularizado, natural, biológico.
Os versos de Augusto se aproximam, ainda, de vestígios derivados da atitude que pode
ser denominada como “morte do outro”. Todos nós morreremos e nós, como indivíduos,
podemos morrer a qualquer instante. Contudo, o outro, tal como nós, padece dessa mesma
sina. Assim, não somente a minha própria morte vai me assustar, mas, sobretudo, a morte do
“outro”, daquele próximo à mim. A morte do outro também assusta, pois reafirma a morte do
351
MAGALHÃES, Gonçalves. Canticos Fúnebres. Rio de Janeiro. Livraria de B. L. Garner. Rua do Ouvidor, nº
09. 1864, p.72-73. Disponível em
https://digital.bbm.usp.br/view/?45000017248&bbm/4171#page/82/mode/2up Acesso 10 Novembro 2018.
191
indivíduo. Entre a vigésima nona e a trigésima primeira estrofe da segunda parte de “As
Cismas do Destino”352, percebemos imagens relacionadas à essa temática:
O túmulo é representado como o espaço que “demanda” o corpo morto, quase como se
este fosse uma espécie de alimento, roubando das moças, não somente a juventude, como a
virgindade. A morte do(s) outros(as) reafirma a morte do indivíduo, o “...ponto final da última
cena”, que em vão, raciocínio, filosofia e amuletos religiosos tentam repelir ou impedir.
Vejamos acerca dessa temática, mais um texto poético de Augusto dos Anjos. O texto
em questão não fora publicado nos veículos mais usuais de divulgação de sua poesia, no caso
os jornais paraibanos A União e O Comércio. Intitulado “Versos a um Coveiro”, teve sua
primeira publicação efetiva no Almanaque do Estado da Paraíba, em 1917, numa homenagem
póstuma, tendo em vista o falecimento do poeta em 1914.
Esse poema também não foi incluído na primeira edição do “Eu”. Fora Órris Soares,
organizador da segunda edição, em 1920, que incluiu esse soneto nas chamadas “Outras
Poesias”, que foram acrescentadas àquelas lançadas na primeira edição e que, desde então,
têm sido publicadas sob o título “Eu e Outras Poesias”. Muitas das poesias acrescentadas
foram consideradas inéditas equivocadamente, pois desconsideravam a primeira publicação
ocorrida em jornais e periódicos paraibanos, anteriores à publicação do livro. Nesse soneto353,
encontramos as seguintes imagens
352
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.30.
353
ANJOS, 1920, p.214.
192
Phillipe Ariès354 nos dá mais algumas informações acerca desses carneiros, muito
comuns, principalmente, em cemitérios vigentes durante a sociedade feudal e até mesmo entre
os séculos XVII e XVIII. Ressalta-se seu uso para guardar restos mortais dos mais pobres.
Não era incomum a literatura ao longo do século XIX e na virada para o século XX
explorar metáforas e imagens que envolviam a morte e o corpo morto. Fernando Catroga nos
oferece alguns exemplos disso ao perceber, no campo literário, traços característicos desse
universo metafórico em textos tais como “O Primo Basílio” (1878), de Eça de Queiroz (1845-
1900), no qual a empregada Juliana (antagonista da personagem Luísa, dona da casa e amante
de Basílio) é enterrada numa vala comum355.
Outro texto citado por Catroga é o poema “Desastre” (1875), de Cesário Verde (1855-
1886), poema esse que também tematiza a vala comum. Ao localizarmos esse poema,
podemos perceber alguns sentidos atribuídos à esse espaço. Este poema enfoca a morte de um
trabalhador braçal, que morre ao cair de um andaime durante o trabalho, tendo sido enterrado,
também, numa vala comum, tal como a personagem de Eça de Queiroz. Desse poema,
vejamos a primeira, a segunda, a nona, assim como, suas duas estrofes finais356
354
“De onde vinham os ossos assim apresentados nos carneiros? Principalmente das grandes fossas comuns, ditas
“fossas dos pobres”, largas e com vários metros de profundidade, onde os cadáveres eram amontoados,
simplesmente cosidos em seus sudários, sem caixão. Quanto uma fossa estava cheia, era fechada, reabrindo-se
uma mais antiga e levando-se os ossos secos para os carneiros”. ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no
Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2014, p. 46.
355
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.81.
356
VERDE, Cesário. Desastre In: Obras Completas. Lisboa. Livros Horizonte. 4ª Edição, 1983. (Org. Joel
Serrão), p.162-164.
194
357
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.77.
195
Através da anulação do indivíduo, por meio de sua inumação numa vala comum,
rubricava-se, dessa forma, a experiência de secularização que passou a envolver o fenômeno
da morte e do corpo morto. Para os indivíduos – mesmo pobres – que conseguiram garantir
um túmulo individualizado, tal como o “Severino”, de João Cabral, os traços semiológicos
são preservados. Há a possibilidade do morto de ter seu nome lembrado. Aos indigentes, aos
mais pobres, aos sobreviventes situados nas margens da sociedade, restariam, após a morte, o
recebimento de um tratamento derivado de preocupações sanitaristas. Como afirma Motta359
...a repulsa pelo sepultamento anônimo, cuja versão mais aviltante era a
inumação coletiva nas valas, não tardou de lograr adeptos nas camadas
populares urbanas do século XIX, especialmente com a criação, na
Inglaterra, do chamado mutualismo ou sociedades funerárias (burial clubs)
que reivindicavam para si uma condição mais digna na hora da morte, já que
a desigualdade em vida inevitavelmente se reproduzia, e talvez de forma
ainda mais flagrante, no espaço póstumo.
358
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.79.
359
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009, p.32.
196
“À Mesa”. Ambos foram incluídos apenas na segunda edição do “Eu”, o primeiro sendo
inédito, e o segundo já tendo sido publicado, em 1917, no Almanaque do Estado da Paraíba.
No primeiro soneto360, em seus dois primeiros quartetos, podemos ver:
360
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org. Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.187.
361
ANJOS, 1920, p.209.
197
Nos versos acima, a ideia mais próxima do sentido literal da palavra “sarcófago” já se
encontra bem mais desenvolvida. O eu lírico afirma que o aspecto carnívoro seria inerente à
nossa espécie, o que nos faz devorar a carne de outros animais, quase sem distinção. Ao
entregar-se sem culpa à esse traço da condição humana, o eu lírico parece se comprazer ao
perceber que ele também é carne, tal como os animais com os quais se alimenta.
Esse jogo de imagens se encontra presente em outro texto de Augusto dos Anjos,
intitulado “Poema Negro”362, publicado inicialmente em 1906 e incluído no “Eu”, seis anos
depois: “E‟ a Morte – esta carnívora assanhada – / Serpente má de língua envenenada / Que
tudo que acha no caminho, come... / – Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, / Sae para
assassinar o mundo inteiro / E o mundo inteiro não lhe mata a fome!”
Para Lúcia Helena363, haveria nos versos mais significativos de Augusto dos Anjos, ou
seja, aqueles publicados no “Eu”, a proposição de uma estética poética que promove a
contemplação de uma movimentação cósmica, definida por ela como “cosmo-agonia”, a qual
se desenvolveria em três momentos:
362
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.108-109.
363
HELENA, Lúcia. A Cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro, 2ª.edição. Editora Tempo
Brasileiro. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura da Paraíba, 1984, p.117-118.
198
É como se sua poesia operasse com a fusão das experiências da modernização, entre
elas, a aceleração, o progresso técnico, a mudança, os saberes científicos e filosóficos, as
sensibilidades intersubjetivas, sociais, artísticas, entre outras, inclusive no domínio das
práticas religiosas, experiências estas inscritas sob o signo da morte.
Por fim, esses são alguns dos sentidos atribuídos pela poesia de Augusto dos Anjos ao
fenômeno morte, aos seus agentes (como o coveiro) e aos lugares da morte, quais sejam, os
túmulos, os locais onde os corpos mortos jazem e são devorados. No próximo capítulo,
discutiremos algumas imagens associadas ao corpo e suas doenças.
199
CAPÍTULO 7
O CORPO E SUAS DOENÇAS
O poema “Mistérios de um Fósforo”365 nos servirá como mais uma porta de entrada
para essas questões, pois, apresenta um conjunto de imagens nesse sentido. Este texto fora
publicado inicialmente no jornal paraibano A União, em 1910. Reaparece como poema que
encerra a primeira edição do “Eu”. Nele, podemos encontrar algumas especulações mais
filosóficas. Logo nas primeiras estrofes do poema, o eu lírico, ao riscar um fósforo, divaga:
364
BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: Origens de uma Poética. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa.
Editora Nova Aguilar, 1994, p.23-24.
365
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.128.
366
ANJOS, 1912, p.128.
201
A cor cinza do fósforo queimado é tomada como uma metáfora para o horizonte
humano, seja aquele individual, seja o da própria espécie. Independentemente de quais sejam
os sonhos e expectativas, individuais ou coletivas, tudo resultaria em pó, por mais brilhantes
que sejam as realizações humanas, semelhantes à chama de um fósforo enquanto acesa. A cor
cinza simbolizaria a matéria gasta e, provavelmente, a vida já vivida. Esta imagem é reforçada
entre a décima e a décima terceira estrofes367, nas quais a morte é reafirmada como horizonte
comum de toda a espécie humana:
Novamente, reafirma-se a morte como uma certeza inalterável que o indivíduo adquire
sobre si e sobre a qual nada pode fazer. Todo indivíduo tem plena consciência de sua finitude.
Dessa forma, a arquitetura da existência, da vida, como o eu lírico comenta na décima estrofe,
tem a morte como resultado: tudo o que nasce no mundo, somente nasce para morrer.
O mundo seria palco da morte e esta a condição coletiva de todos: (“...o que nelle /
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquelle / Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto”).
Parece existir, nos versos de Augusto dos Anjos, uma ideia de temporalidade que, se mantém
367
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.129-130.
202
Há uma associação rápida entre sexo e morte, já observada por Ariès370, representado
pelo termo “anfigonia”, que faz menção à reprodução sexuada. Na metáfora apresentada por
esse eu lírico, o sexo produz esterco ao invés de vida plena. Esta é definida apenas como
sendo um “cósmico zero”. Além dessas imagens, vemos ainda371:
368
Na seção 3.3, indicamos a existência de três instâncias temporais, sugeridas pelos versos de Augusto dos
Anjos, no caso, o tempo da “carne”, que sofre a ação da passagem do tempo de modo mais imediato, como
também, o tempo do “osso” e o tempo do “pó”. Estes últimos, seriam indicativos de um tempo que perdura,
menos dinâmico e mais próximo à noção de eternidade e/ou de atemporalidade.
369
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.132.
370
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.140.
371
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.131.
203
Percebemos, então, a imagem da cor cinza sempre associada à um tom mais negativo,
fúnebre. A cinza residual, como a terra, seria um tipo de túmulo em si mesmo, tal como se o
corpo morto fosse inumado diretamente na terra, transformando-se ele mesmo no “pó”, na
própria terra que o envolve.
Ainda explorando os sentidos da metáfora, a cinza do fósforo configura-se de maneira
indeterminada, anônima, sem poder ser sujeita a particularizações, a individualizações. A vida
seria um “acidente químico vulgar” e a morte um simples acúmulo de pó. A temporalidade
moderna, otimista em relação ao futuro, parece ser questionada, pois, no futuro, apenas a
cinza nos aguarda.
Contudo, a partir das transformações que foram transcorrendo sob o signo da
modernidade, nas relações do homem com os espaços, com os seres e com os fenômenos que
o cercam, assim como, com a consciência de sua própria finitude, novos horizontes de
expectativa foram elaborados e novas imagens vão sendo propostas e difundidas.
Um dos sintomas dessas mudanças, que podem ser percebidas no movimento de
emergência das sensibilidades modernas, é a noção de “fracasso”, noção esta bastante
característica das sociedades capitalistas e industriais, na medida em que progressivamente
era reforçada a ideia de indivíduo e de que este deveria “vencer na vida”, realizando seus
projetos individuais, tornando presente as promessas inscritas e projetadas no futuro. Segundo
Phillipe Ariès372:
372
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.60.
204
Profundissimamente hypocondriaco,
Este ambiente me causa repugnancia.
Sobe-me á boca um ancia análoga á ancia
Que escapa da bocca de um cardíaco.
373
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.14.
205
374
EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmácias: Uma História Ilustrada da Farmácia no Brasil. Rio de
Janeiro. Editora Casa da Palavra, 2006, p.80.
206
como temática poética por Augusto dos Anjos. Ao mesmo tempo em que os saberes
científicos e modernos ofereciam antídotos e remédios, nem todos poderiam adquiri-los.
Não é por acaso que, com as transformações derivadas da chamada modernidade, o
tema da morte “tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo”,
afirma Ariès375. Isto porque, na medida exata em que alguns indivíduos conseguem aproveitar
diversos elementos positivos durante suas vidas, a consciência de sua própria finitude pode
atrapalhar essa fruição, mesmo que, em parte, os sujeitos fiquem mais resignados ao deixar
como herança à seus filhos o patrimônio que conseguiram acumular.
No soneto “Vozes da Morte”376, publicado em 1909 no jornal paraibano O Comércio,
e republicado no “Eu”, essa presença contínua da morte é ressaltada. A atenção se volta ao
corpo e seus sinais:
375
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.61.
376
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.48.
207
Para além de suas qualidades estéticas e pelos sentidos históricos que carrega e
expressa, podemos dizer que uma força incômoda da poesia de Augusto dos Anjos é,
precisamente, transformar em versos – e não de uma maneira positiva – essa sensação
contínua de termos a morte não somente como horizonte final, mas como companheira
constante, cotidiana.
Na sexta estrofe de “Monólogos de uma Sombra”378, lemos: “Tal qual quem para o
proprio tumulo olha, / Amarguradamente se me antolha, /Á luz do americano plenilúnio, / Na
alma crepuscular de minha raça / Como uma vocação para a Desgraça / E um tropismo
ancestral para o infortúnio.”. É o túmulo que simboliza essa “vocação” para uma espécie de
“fracasso”, para a morte, pois ele é a “morada” final. O túmulo está no horizonte.
Vemos características presentes nos versos de Augusto dos Anjos que podem ser
associadas, em maior ou menor grau, àquelas quatro atitudes diante da morte conceituadas por
Ariès. Da “morte domada”, sua poesia apresenta a característica do “Et moriemur, morremos
todos.379”. A morte figura em seus versos como nosso horizonte, não sendo sugerida nenhuma
realidade espiritual que o supere. A reanimação/continuação da vida após a morte é
sobrenatural, mas não religiosa.
377
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.65.
378
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.06.
379
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.66.
208
Os modos pelos quais a poesia de Augusto dos Anjos coloca o leitor em contato com
imagens e sensibilidades sobre a morte e o morrer aproximam-se, ou se afastam, do conjunto
semântico de significados identificados por Phillipe Ariès em algumas das atitudes diante da
morte por ele analisadas e conceituadas.
As imagens poéticas de Augusto não somente afirmam que todos nós morreremos,
como reafirma que esse “horizonte coletivo” pode ser encontrado por nós individualmente,
possivelmente, no próximo instante que viveremos: “todos morremos”, “eu vou morrer”, a
qualquer instante. Isto, por si só, apresenta sensibilidades distintas, quando comparadas aos
estímulos derivados da temporalidade moderna, não por se afastar completamente dos
elementos presentes nesses estratos temporais modernos, mas, sim, por reapresentar, na
poesia, sensibilidades incômodas, inconvenientes, sobre as quais não se devia falar.
380
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.93.
209
Cabe relembrar que, ao contrário da poesia épica, essa busca incessante por expressar
a si mesmo é uma das características primeiras da poesia lírica. E essa dificuldade da qual fala
Sennet não deixa de se verificar nos diversos modos pelos quais o eu lírico explora-se,
expressa-se, apresenta-se ao outro, ao leitor.
A modernidade configura-se como uma sociedade individualizada e com tendências
individualistas. Seguindo esse caminho, o poeta reforça o olhar sobre si mesmo e sobre sua
individualidade, desbravando as dimensões mais profundas de seu eu lírico, o qual sempre
encontra dificuldade para se expressar. Um soneto de Augusto dos Anjos que segue nessa
trilha intitula-se “Vae Victis”382. Esse texto poético fora publicado somente no jornal
paraibano O Comércio, em 1905, não tendo sido republicado nem na primeira, nem na
segunda edição do “Eu”. O título do soneto faz alusão à frase latina “Ai dos Vencidos”:
381
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.16.
382
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.462.
210
383
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.21.
211
medida em que é melhor do que o presente e o passado. Talvez nessa dinâmica resida essa
“dupla qualidade” da qual fala Sennet, que sugere que o indivíduo deva conhecer-se e
realizar-se ao mesmo tempo em que sugere, também, a necessidade de uma “novidade”
contínua, o que pode colocar num terreno instável a busca empreendida pelos indivíduos.
Essa instabilidade na busca por si mesmo, estimulada pela modernidade e pelo ideal de
temporalidade nela vigente, pode ser correlata ao desejo contínuo do poeta de, através de seu
“eu lírico”, expressar-se, apresentando diversas faces de si mesmo ao leitor, explorando, desse
modo, os traços de historicidade presentes na sociedade que o cerca.
Na poesia de Augusto dos Anjos, podemos indicar mais dois textos poéticos que
operam com a imagem do “vencido”, intitulados, respectivamente, “História de um Vencido”,
publicado no jornal O Comércio, em 1905, não colhido em livro, e “Viagem de um Vencido”,
cuja publicação ocorreu apenas na segunda edição do “Eu” (1920). Ambos textos poéticos são
mais longos do que a média dos textos por ele escritos e publicados. O primeiro possui
dezesseis estrofes, enquanto que o segundo, bem mais longo, conta com trinta estrofes. No
poema “História de um Vencido”384, dividido em duas partes, vemos circunstâncias vividas
por um velho que sente a chegada de seu último instante. Vejamos suas cinco estrofes iniciais:
384
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
212
385
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
386
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
213
387
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
388
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
214
presentes quanto nos setores sociais mais pobres, assim como, os recursos para cuidados e
tratamentos não eram tão abundantes quanto entre as camadas mais privilegiadas.
Caso voltássemos nossos olhos para alguns aspectos da biografia de Augusto dos
Anjos, podemos situá-lo, não entre os setores mais pobres, assim como, também não podemos
colocá-lo entre as camadas privilegiadas, haja vista que sua família entrou em falência
patrimonial.
O poeta, sua esposa e filhos (ao contrário de seus outros irmãos que conseguiram fazer
“bons casamentos” – leia-se: casaram com mulheres oriundas de famílias ricas) podem ser
situados na “corda bamba” dos setores sociais intermediários. Não conseguiu viver de sua
poesia, atuava como professor em escolas cariocas, procurava alunos para aulas particulares e,
perto do fim de sua vida, fora nomeado diretor escolar, em Leopoldina, cidade mineira, cargo
esse que ocupara alguns meses antes de falecer.
Segundo Richard Sennet, é com o adentrar no século XX que surgiria esse novo setor
social intermediário, essa nova classe média, que ganharia um status mais identificável,
mesmo que com fronteiras mal definidas, na medida em que a demanda por formas de
trabalho mais especializadas, e não necessariamente braçais, manuais, passava a recrutar um
número progressivo de pessoas. A “classe média” seria constituída, segundo Sennet389
Esses “recém-chegados” dos quais fala Sennet, portanto, poderiam ser oriundos tanto
da classe operária, que, por alguma razão, tenham conseguido ascender socialmente, quanto
das antigas e tradicionais camadas privilegiadas que não conseguiram manter seu status, tal
qual foi o caso de Augusto dos Anjos e sua família. Não se trata, aqui, de apontar esse fator
como causa para a estética e a temática de sua poesia como um todo.
Entretanto, aquele sentimento de “fracasso” do qual falou Ariès e esse “narcisismo”
comentado por Sennet podem ser associados à temática do “vencido”, inclusa em algumas das
poesias de Augusto dos Anjos. O “vencido” tematizado por seus versos não é,
necessariamente, alguém que tenha perdido o emprego ou a fortuna acumulada/herdada.
389
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.399.
215
É, antes disso, um indivíduo que sabe que vai morrer, independentemente de já estar
doente, ou não, que vê a aproximação fatídica e inevitável da morte através da progressiva
sinalização emitida não somente por sua aparência, mas, também, pelo “mal funcionamento”
de suas funções orgânicas, vitais. É alguém que vê seu reflexo no espelho envelhecer, que vê
doenças tomarem de assalto a saúde de seu corpo. É alguém que vê, em suma, um processo de
degeneração natural e inevitável. É alguém que sente, em si mesmo, o desgaste derivado da
passagem do tempo.
Um último poema de Augusto dos Anjos que podemos discutir, e que tematiza essa
noção de “vencido”, o qual, como indicamos, fora publicado unicamente na segunda edição
do “Eu”, em 1920, intitula-se “Viagem de um Vencido”390. É um dos seus poemas mais
longos, contando com trinta estrofes. Em suas três primeiras estrofes, vemos que o eu lírico
caminha numa atmosfera mais do que sombria:
390
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.222.
216
O indivíduo, em muitas das imagens poéticas de Augusto dos Anjos, apesar de ser o
centro ativo da percepção, da convergência e divergência em relação ao que acontece na
atmosfera poética que o cerca, é considerado um ser “menor”. Existiria todo um complexo de
fenômenos que ultrapassam o indivíduo: tais fenômenos seriam ciclos naturais de criação e
destruição, movimentações siderais, reações físico-químicas, em face das quais o indivíduo se
equipara ao verme, à larva, ao vibrião, às “formas microscópicas” que se desesperam com a
possibilidade “...de não serem grandes”.
391
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.223.
392
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.223-224.
217
393
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.224.
394
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.226.
218
395
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.228.
219
Podemos afirmar que, entre as sensibilidades modernas, na virada para o século XX,
os cuidados com o corpo, através do uso de remédios e recomendações derivadas dos saberes
médicos, científicos e da sabedoria popular, estavam na ordem do dia. Os indivíduos
procuravam manter seus corpos saudáveis, visando evitar a contração de doenças de toda
sorte, potencializando seu bem-estar. Na concepção da ensaísta Susan Sontag396,
396
SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984. p.05.
397
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.31.
220
morrer, mas também, como um sinal de que se deve mudar a forma como se vive, além de
poder significar, em outros casos, uma espécie de “castigo”.
A poesia de Augusto dos Anjos dialoga com sensibilidades relacionadas à morte, já
em voga nos séculos séculos XVI e XVII, sobretudo, com a imagem do corpo/cadáver
decomposto. Phillipe Ariès398 assinala uma presença progressiva dessa característica, nas artes
e na literatura, comentando ainda que:
Nesse sentido, a busca pela “cura” ou pelo adiamento da contração de doenças torna-
se um desejo constante para indivíduos ansiosos por aproveitarem, dentro das limitações de
suas condições, as benesses da modernidade. Na poesia de Augusto dos Anjos, são inúmeras
as representações do corpo que padece, que apodrece, que marca sua cidadania nesse outro
“reino” do qual fala Susan Sontag. No soneto “Apóstrofe à Carne”399, vemos algumas
imagens acerca do sentimento do corpo
398
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.59.
399
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.172.
221
400
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.31.
401
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.131.
222
A dualidade inicial entre o “si” e o corpo, já indicada, pode ser vista nos versos de
Augusto dos Anjos, quando associa a consciência com a imagem de uma chama (a “flama
psíquica”) que habita o corpo. Este é animado por uma espécie de “mecânica orgânica”, a
“orgânica batalha” para o eu lírico, cujo movimento independe de nossa vontade.
Nos versos de Augusto dos Anjos, essas sensibilidades sobre o corpo são articuladas
com a percepção do mundo objetivo, do espaço urbano, como podemos verificar no longo
poema “As Cismas do Destino”. Neste poema, que conta com 105 estrofes, a linguagem
fúnebre se verifica novamente. Outras imagens poéticas reforçam a ideia do corpo como
organismo doente, que padece. Em seus versos, o eu lírico transita por um tipo de cidade.
Como um flâneur pelos espaços urbanos, encontra seus habitantes. Inicialmente, nesse
poema402, o caminhar desse eu lírico começa na cidade de Recife:
402
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.23.
223
non. No poema, o próprio calçamento por onde andava “copiava a palidez de um crânio
calvo”. Há a referência à casa do Agra403, a primeira casa funerária estabelecida na cidade do
Recife, por volta de 1850 e que encerrou suas atividades em 2004. Entre a oitava e a décima
estrofes404, nesse mesmo poema, lemos:
403
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-
urbana/2013/08/11/interna_vidaurbana,455318/primeira-funeraria-do-recife-se-recusa-a-descansar-em-
paz.shtml Acesso: 20 de Setembro de 2017.
404
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.23.
405
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.25-26.
224
O eu lírico afirma sentir no âmago de seu peito uma “população doente” que tossia
irremediavelmente. É sugerido que a secreção expelida durante a tosse, derivada dessa
doença, não pertence apenas ao indivíduo, mas à toda uma raça. A imagem parece sugerir o
aspecto coletivo e, provavelmente, social, da enfermidade então representada. Talvez seja um
indício (não tão bem compreendido pelos leitores/receptores) de que não era o poeta, o sujeito
que escreve, que padecia dessa doença, mas, sim, o eu lírico, o qual compartilhava esse mal
conjuntamente com a sociedade/raça à que pertence.
Conforme Susan Sontag, a tuberculose era uma patologia completamente envolta em
metáforas e mistérios, sobretudo, enquanto não se possuía meios eficazes para combatê-la
e/ou para curá-la. Sobre essa questão, Sontag406 comenta:
Ainda sobre o caráter metafórico dessa doença, Sontag comenta que não era apenas o
contato com aqueles que dela padeciam que era uma espécie de transgressão. O próprio ato de
406
SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984, p.05.
225
dizer no nome da doença – na época tuberculose, hoje o câncer – só podia ser feito, em várias
circunstâncias, mediante toda sorte de eufemismos, diminutivos ou denominações figurativas.
A ocorrência da morte precoce de Augusto dos Anjos, em 1914, quando mal
completara trinta anos, terminou se constituindo como um forte elemento para a construção de
sua mitologia pessoal enquanto poeta. Pela inclusão contínua de poemas que tematizavam a
morte, o corpo morto ou doente, compiladas no “Eu”, pensou-se que seu livro de versos
consistia numa metáfora de sua personalidade sombria. Passou-se, então, e com certa
regularidade, a “coroar” a morbidez de sua personalidade atribuindo-lhe a tuberculose como
sendo a causa mortis que o vitimou. Dessa forma, a versão recorrente de que o poeta morreu
em decorrência dessa doença tornou-se um verdadeiro lugar comum.
Em meados de 1914, Augusto dos Anjos mudara-se com esposa e filhos, do Rio de
Janeiro para a cidade mineira de Leopoldina, visando ocupar o cargo como diretor de um
grupo escolar. Sua morte, ocorrida em 12 de novembro daquele ano, terminou repercutindo
nos jornais de ambas cidades.
O jornal A Época407 informou, com certo atraso, no dia 12 de novembro de 1914, que
o poeta estava “gravemente enfermo”, desejando-lhe melhoras. Esse mesmo jornal408, no dia
seguinte, atualizou a notícia, informando a ocorrência da morte numa coluna. A Gazeta de
Leopoldina, no dia seguinte ao falecimento, publicou três sonetos de Augusto, tendo sido
publicado, nesse mesmo jornal, no dia 24 de novembro do mesmo ano, uma nota409 de
condolências por parte do governo do Estado.
O primeiro elemento que reforçaria o rótulo de “poeta da morte” fora a crítica literária
escrita por Antônio Torres410, no periódico carioca Jornal do Commércio, no dia 27 de
dezembro de 1914, intitulada “O Poeta da Morte”. Nessa crítica, Torres inclui Augusto dos
Anjos entre os “poetas da morte” tal como Baudelaire. Ressalta a inclusão dos termos técnicos
e científicos, assim como, a recorrência do tema da “morte” e a ausência do tema do “amor” e
de temas “eróticos” em seus versos. Além disso, atribui à Augusto, senão o ateísmo, uma
forma de agnosticismo. Segundo Torres, “Eis porque lhe chamo <<poeta da morte>>, porque
não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.”.
Não é difícil perceber que Antônio Torres parte de uma perspectiva que associa com
certa rapidez o sujeito que escreve às imagens e temas expressos em seus versos. A existência
407
A ÉPOCA, 12 de Novembro de 1914, p.03.
408
A ÉPOCA, 13 de Novembro de 1914, p.02
409
MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora Ideia, 2001, p.201.
410
TORRES, Antônio. O Poeta da Morte. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 27 de Dezembro de 1914,
p.05
226
de outras temáticas poéticas exploradas por Augusto dos Anjos, com base nas discussões já
apresentadas, tais como aquelas derivadas de sua apropriação com o romantismo, por
exemplo, reafirmam as distâncias que separam o sujeito que escreve do eu lírico.
Quando da elaboração da segunda edição do “Eu”, o prefácio411 escrito por Órris
Soares (1884-1964), organizador desta edição, reforça outros tópicos que seriam associados à
imagem de Augusto dos Anjos enquanto “poeta da morte”:
Essa descrição de sua fisionomia, portanto, reforça a ideia de uma pessoa soturna,
sombria que, por conta de sua personalidade, só poderia escrever versos macabros, tais como
aqueles presentes em seu livro. Vão sendo atribuídas ao poeta os traços característicos de sua
identidade narrativa como “poeta da morte”: dotado de natureza sombria, a qual era expressa
em seus versos, morto de maneira precoce e vitimado por uma doença, àquela época,
carregada de simbolismos negativos, próximos aos citados anteriormente por Susan Sontag.
Em vários momentos, a tuberculose foi apontada como a doença que o vitimou. Essa
atribuição se tornou recorrente. No Jornal Carioca “A Manhã”412, José Oiticica, num
comentário acerca dos vinte e sete anos da morte de Augusto dos Anjos, informa que este
teria se mudado para Leopoldina buscando novos ares para tratar a tuberculose, citando
inclusive trechos daquela descrição fisionômica feita por Órris Soares.
O poeta Manuel Bandeira413, num pequeno ensaio, em 1944, também parte do
princípio de que fora a tuberculose que vitimou Augusto dos Anjos. O mesmo pode ser visto,
411
ANJOS, Augusto. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.03/05.
412
OITICICA, José. Augusto dos Anjos 27 anos após a sua morte. In: A Manhã. Rio de Janeiro, 12 de novembro
de 1941, p.03.
413
BANDEIRA, Manuel. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por
Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994, p.144.
227
por exemplo, quando, em 2001, Ariano Suassuna414 (1927-2014), também afirmou que
Augusto dos Anjos teria morrido tuberculoso.
Em carta415 escrita pela esposa de Augusto dos Anjos, Esther Fialho, datando de 27 de
novembro de 1914, para Córdula dos Anjos, mãe do poeta, é informado que o que o vitimou
fora “...uma congestão pulmonar, que degenerou em pneumonia...”. A transcrição416 de sua
certidão de óbito também registra como causa mortis a pneumonia e não uma tuberculose.
Fora desse âmbito mais particular é possível citar um suplemento literário417 no qual João
Alfonsus, em seu ensaio, faz menção, tal como esses registros, que, de fato, a causa mortis foi
uma pneumonia súbita, doença que teria vitimado várias pessoas em Leopoldina no período.
Nesse sentido, nos detemos um pouco nessa questão, pois ela é indiciária,
precisamente, não somente de algo próximo àquela “função-autor” comentada por Chartier e
Foucault, quanto também da noção de “identidade narrativa” proposta por Paul Ricoeur. É
indiscutível a presença de um universo metafórico mais sombrio nas poesias de Augusto dos
Anjos colhidas em livro.
Contudo, Augusto dos Anjos não escreveu apenas essas poesias publicadas como
livro. As demais, que permaneceram publicadas apenas em jornais e periódicos, muitas vezes,
apresentavam uma estética, uma temática completamente diferente. Entretanto, se sua
“identidade narrativa” como poeta terminou sendo associada ao rótulo de “poeta da morte”,
sua personalidade, sua vida, seus amores, a brevidade de sua vida e a doença que o vitimou
teriam que compartilhar características sombrias. Sua vida e sua morte teriam que ser trágicas,
aproximando-se, assim, das imagens que os poemas do “Eu” expressavam.
Na última estrofe418 da primeira parte de “As Cismas do Destino”, o eu lírico afirma:
“Porque, si no orbe oval que os meus pés tocam / Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, /
Jamais exprimiria o acérrimo asco / Que os canalhas do mundo me provocam!”. De certo
modo, esses versos parecem destoar um pouco do sentido atribuído ao processo dissolutivo
representado nesses e em outros versos.
Nesse quarteto, a tuberculose sugerida parece funcionar como uma metáfora que deixa
velada uma possível crítica à sociedade e à alguns de seus membros (os “canalhas”),
414
SUASSUNA, Ariano. Viva Augusto dos Anjos. In: Folha de S. Paulo Ilustrada. São Paulo, 12 de março de
2001. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/fq1203200121.htm
415
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova
Aguilar, 1994, p.803.
416
ANJOS, 1994, p.802.
417
ALFONSUS, João. Augusto dos Anjos em Leopoldina. In: Autores & Livros. Suplemento Literário do Jornal
A Manhã, 30 de Novembro de 1941, p.327.
418
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.26.
228
419
FILHO, Cláudio José; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; Morte e Sociedade em Lima Barreto. In: In:
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.144.
229
social entre ricos e pobres. A percepção do aspecto social da morte, em Barreto, deriva das
dinâmicas da própria cidade carioca. De acordo com Sevcenko420,
Não por acaso, uma das mais sintomáticas revoltas populares cariocas teve como
contexto as tentativas de aplicação de todo um conjunto de medidas higienistas, sanitaristas e
de medicalização da sociedade/cidade, como podemos verificar na famigerada “Revolta da
Vacina”422. Nesse sentido, tanto a saúde quanto a presença de doenças, assim como o desejo
em evitá-las, eram traduzidas em metáforas significativas para ilustrar alguns dos caminhos
estimulados pela temporalidade moderna.
420
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
421
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
422
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo.
Companhia das Letras, 1987.
230
Esse soneto foi publicado pela primeira vez na Paraíba, no Jornal o Comércio, em
1906, tendo sido republicado na primeira edição do “Eu”. Contudo, as imagens que o eu lírico
elabora articulam-se com alguns dos elementos que temos apontado como presentes no
423
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.29.
424
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.68.
231
espaço urbano carioca. A morte é metaforizada como a asa de um corvo, que cobre e coloca
sob sua sombra o destino de todos os sujeitos.
É indicada uma proximidade extrema entre vida e morte. Esta dualidade está presente
em cada mês do ano e no telhado das próprias casas. É metaforizada como a imagem dos
irmãos siameses, fazendo referência aos “irmãos gêmeos”, os “Goncourts”, escritores
franceses. Quando o fenômeno morte é personificado (“A costureira funerária”), o tecido a
partir do qual são feitas as mortalhas derivariam da asa deste pássaro associado à temas
macabros, sendo a mortalha de todos os indivíduos a sua “...última camisa”.
O enorme afluxo de habitantes na cidade do Rio de Janeiro, portanto, configurava uma
situação ideal para diversos tipos de sensibilidades. Como afirma Sevcenko425,
425
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
426
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.113.
232
uma espécie de doença da “alma”. É o corpo que a carrega a morte como potência e esta
morte em potencial, quando se realiza em ato, eliminando o corpo saudável, transforma-o em
“verme”. Esse organismo se transforma no novo receptáculo da morte, ou melhor, parece
personificá-la. Assim, a morte, a mágoa, ainda acompanha o indivíduo nesse novo estágio da
vida, metamorfoseado em verme.
A cidade do Rio de Janeiro, dessa forma, funcionava como um vetor indicativo da
modernização do país. Nessa cidade, as contradições então vivenciadas pareciam ser
interpretadas mais como um fenômeno de degeneração moral do que como problemas
derivados das dimensões sociais, políticas ou econômicas.
As modificações urbanísticas implementadas pelas elites cariocas, não por acaso, eram
definidas pelos contemporâneos como a “...regeneração da cidade, e por extensão, do país”,
como afirma Nicolau Sevcenko427. Isto parecia significar que, se tais problemas existiam na
cidade, eles se encontravam entre as camadas populares, portadoras tanto dos males sociais,
quanto das moléstias e enfermidades sanitárias. A associação entre a elite/cidade com o corpo
saudável e essas camadas populares com o corpo (potencialmente) doente figura no horizonte.
Com a ascensão vertiginosa de grupos sociais e políticos mais afinados com
determinados projetos socioeconômicos ditos “modernos”, próprios de uma burguesia que se
desenvolvia à brasileira, a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, tanto em seus espaços
físicos, quanto em seus costumes, se impôs sem piedade. Na ótica de Sevcenko428:
Não deve ser difícil imaginar como tais transformações invadiam as sensibilidades das
camadas mais populares em meio ao seu universo desfavorecido. No fulcro dos ideais da
modernidade, o indivíduo devia ser supervalorizado. Contudo, esses valores que ressaltam a
importância da individualidade pareciam ser propriedade apenas dos indivíduos situados nos
setores sociais mais privilegiados. A modernidade também era desconfortável.
427
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.30.
428
SEVCENKO, 1999, p.30.
233
429
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.553.
234
Richard Sennet, em relação aos quais tecemos comentários e cujos traços identificamos em
alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos, a partir da ideia de “vencido”.
As camadas populares pareciam “indesejáveis necessários”. Era dessas camadas que
provinham a força de trabalho que animava as fábricas, os estabelecimentos comerciais, o
trabalho nos portos, enfim, praticamente todas as atividades econômicas, domésticas ou não,
que os membros das elites/classe média consideravam impróprias para si mesmos.
No soneto “Insânia de um Simples”430, a doença que se abate sobre o corpo do eu
lírico também se mostra mais emocional e abstrata: é uma patologia psicológica. Nesses
versos, encontramos as seguintes imagens:
Considerando a tensão entre a presença das camadas mais privilegiadas, as quais, nos
ímpetos da modernização, marginalizavam os setores sociais mais pobres, podemos associar
essas tensões a partir da imagem que o eu lírico oferece nesse soneto, ao fazer alusões à
narrativa de Jonathan Swift (1667-1745), em “As Viagens de Gulliver” (1726/1735).
O eu lírico afirma que, em suas “cismas patológicas”, enxergava a si próprio como
comprimido entre formas vivas minúsculas, semelhante às “...organizações liliputianas”,
“Liliput” tornando-se célebre pela pequena estatura de seus habitantes, conforme a narrativa
ficcional de Swift. Assim comprimido, diminuído, miniaturizado, numa “micro-vida”, o eu
lírico aceita com gratidão ser semelhante aos “zoófitos” e “lianas”, formas orgânicas,
biológicas, situadas entre o animal e o vegetal.
Ao associar sua vida, seu destino, ao de uma “larva”, suas “células humanas” seriam
todas despejadas por uma “cloaca sombria”. Para esse eu lírico, portanto, é aprazível
430
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.49.
235
“...apodrecer sozinho / no silêncio de minha pequenez”. Naquele paralelo que fizemos, entre a
sociedade/cidade carioca como um “corpo vivo”, sua elite como seus “anticorpos” e sua
população mais pobre, como “microorganismos” difusores de doenças, a “insânia”
representada não deixa de encontrar eco com tais imagens, haja vista que esses setores sociais
desprivilegiados seriam esses microorganismos potencialmente nocivos, dificultando o bem-
estar saudável do corpo social/urbano carioca.
Tais setores sociais carentes, “indesejáveis necessários”, podem ser associados à essas
imagens sugeridas pelo eu lírico. Ao terem sido diminuídos em sua existência, não sofreriam
tanto com a chegada da morte, como podemos ver no último terceto do soneto: “Apraz-me,
adstricto ao triangulo mesquinho / De um delta humilde, apodrecer sosinho / no silêncio de
minha pequenez!”.
Como já foi ressaltado em outros momentos, o processo de decadência da existência,
tematizado poeticamente nos versos de Augusto dos Anjos, ao contrário, por exemplo, de
algumas representações literárias presentes nos textos de Lima Barreto, não possuem uma
finalidade voltada para a crítica social, não toma a literatura como “missão”.
Mesmo que o soneto “Insânia de um Simples” tenha sido escrito e publicado ainda na
Paraíba, e não no imediato das experiências que Augusto dos Anjos possa ter sofrido ao
passar a viver na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1910, em nossa leitura, as imagens
poéticas desse soneto dialogam com essa atmosfera de inferiorização atribuídas aos setores
sociais mais marginalizados derivada das experiências de modernização.
Nas constantes referências acerca da morte, do corpo e de suas doenças, que Augusto
dos Anjos introjeta em seus versos, não somente as doenças físicas são tematizadas
poeticamente. Como no caso do soneto discutido acima, a insanidade também era uma
patologia, mesmo não sendo considerada uma enfermidade física, mas psicológica.
Na atmosfera de fins do século XIX e na virada para o século XX, a associação de
todo tipo de moléstias, mesmo as subjetivas, psicológicas, ao corpo, o qual as manifestava
através de “sinais”, era forte, mesmo nos casos em que essa associação entre o psicológico e o
corporal fosse mais evasiva. Sobre a esquizofrenia, nesse período indicado, Vigarello431 diz:
431
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.189.
236
Podemos imaginar como devia ser difícil, para um indivíduo pobre, nos primeiros anos
do século XX, receber tratamento para uma enfermidade psicológica, justamente pela
natureza dessa doença ser mais abstrata. Podemos até mesmo afirmar que o caso da internação
de Lima Barreto, por conta da depressão e do alcoolismo, seria indiciário dessa dificuldade.
Sevcenko432 também observara essa questão:
Na trilha dessas questões, podemos até encontrar alguns “ecos” que relacionam essa
ancoragem corporal com o tratamento dispensado aos pobres cariocas. As elites do Rio de
Janeiro podiam ser associadas à subjetividade “sadia”, à consciência “moderna”, positiva.
Este corpo social/orgânico estaria cotidianamente “ameaçado” por patógenos internos e
externos (seus pobres nativos, somados aos pobres imigrantes), restando às elites (a
subjetividade/consciência individual) não dispensar outro tratamento possível aos pobres
(corpos, mas não indivíduos) a não ser a segregação, a marginalização.
Contudo, na poesia de Augusto dos Anjos, é a morte, a experiência incontornável da
dissolução, que continua a ser tematizada poeticamente como fenômeno que a todos ataca.
Em “Monólogo de uma Sombra”, percebemos mais algumas imagens poéticas que
representam o corpo e suas doenças. Como já indicamos em outros momentos, esse longo
poema apresenta ao leitor três personagens: a “Sombra”, o “Filósofo-Moderno” e o “Sátiro
Peralta”. As imagens mais cruas do corpo doente são atribuídas ao segundo personagem.
432
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.62-63.
433
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.189.
237
434
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.07-08.
238
Contudo, sua poesia não deixa de dialogar, também, com toda uma gama de temáticas
modernas. Emergiu no âmago de um processo que imprimiu à todas as dimensões da vida em
sociedade um ideal de novidade e de aceleração. Somava-se à isto o acúmulo de pessoas, num
crescimento demográfico progressivo e desordenado. Este crescimento se dava em passo
contínuo com a difusão das mais variadas doenças. Viver em meio à essa dinâmica moderna,
para inúmeras pessoas, era, também, desconfortável.
Em face dessas doenças e no interior dessas experiências, os indivíduos buscavam
resguardar a própria individualidade, ao mesmo tempo, assegurando a saúde de seu corpo e de
sua “alma”. Acerca disso, também devemos somar a busca por lucros, inerentes à
racionalidade capitalista, burguesa e pequeno-burguesa, das grandes farmácias e empresas
fabricantes de remédios, como veremos mais adiante.
Uma forma de pensar elaborada ao longo do século XIX e que influenciou os
primeiros anos do século XX (se é que não influencia ainda hoje) associa-se a ideia da
cenestesia. Por este conceito, entende-se que os indivíduos, quer sejam dotados de saber
médico/científico, quer não, deveriam dedicar contínua atenção aos sinais emanados por
nosso corpo. Cada sinal, cada mensagem, seria indicativo de um determinado estado, seja
físico, seja de consciência. Alain Corbin435 comenta que a cenestesia teria sido
435
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.439.
436
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.159.
239
437
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.439.
438
CORBIN, 1991, p.439.
240
consigo mesmo, sobre como ele “sente” o mundo e as pessoas à sua volta. Contudo, como a
modernidade estimula a individualidade, não deixa, também, de ameaçá-la, por exemplo,
através do traço coletivo (não necessariamente comunitário) que marca a vida nas grandes
cidades. Nelas, o indivíduo é “só mais um” numa espécie de “luta” para ter sua
individualidade reconhecida e valorizada. Revisitando o mito de Narciso e suas implicações
alegóricas, Sennet afirma439:
Em fins do século XIX e na virada para o século XX, variadas foram as formas e os
métodos inventados pelos sujeitos para empregarem a observação cenestésica e para fornecer
as compensações às instabilidades que sitiam o “eu”.
A observação cenestésica não demorou muito para aproximar-se de tentativas de
criação artificial das sensações internas a serem exploradas, mediante o uso de substâncias
alcoólicas ou alucinógenas que facilitassem ao indivíduo acessar seu “eu” com mais
facilidade, tornando sua compreensão efetiva mais próxima. Podemos lembrar, por exemplo,
das atividades poéticas de Baudelaire e Rimbaud, no século XIX ou, no século XX, dos usos
de substâncias químicas (derivadas da maconha, LSD, ópio, etc.) inicialmente permitidas e,
posteriormente, proibidas e criminalizadas.
A poesia de Augusto dos Anjos, nesse movimento, ainda que não fizesse menção ao
uso de substâncias químicas ou alucinógenas, oferece ao leitor um conjunto de representações
que operam com imagens diretamente associadas ao indivíduo e à certeza inelutável de sua
própria finitude.
Sua poesia elabora imagens acerca da morte, quando esta deveria ser assunto interdito,
da mesma forma que tematiza poeticamente o corpo completamente indefeso em face das
mais variadas doenças, quando este deveria ser objeto de atenção cotidiana, pelo sujeito, em
busca de sinais que indicassem qualquer patologia, orgânica ou psíquica.
Sobre essas questões indicadas acima, vejamos o soneto intitulado “O Poeta do
Hediondo”440. Este texto poético não foi incluído na primeira edição do “Eu”, em 1912, nem
fora publicado anteriormente. Foi incluído como inédito na segunda edição do livro, em 1920:
439
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.395.
440
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.192.
241
Em allucinatorias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciencia
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neoronas acordadas!
441
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.84-85.
242
Nessa compreensão, ao mesmo tempo em que um grande espaço urbano moderno, tal
como a cidade do Rio de Janeiro, apresentava-se como o palco por excelência no qual todas as
expectativas individuais poderiam se realizar, nem todos os indivíduos conseguiam, de fato,
efetivar positivamente sua individualidade.
A natureza urbana desses espaços, progressivamente impessoal e individualista, de
certo modo colocava nas sombras as experiências de diversos indivíduos, sobretudo, daqueles
circunscritos na busca por sua própria sobrevivência que tentavam escapar da marginalização
social total. Assim, todos os sujeitos terminavam, em larga medida, uns alheios em relação
aos outros, ainda que habitassem um único e mesmo espaço. A indiferença era mútua.
Dessa forma, nas análises elaboradas por Sevcenko, o mundo moderno carioca, no
qual emergiu a poesia de Augusto dos Anjos publicada em livro, encontrava-se
irremediavelmente marcado pela aceleração, pelo movimento, pela ideia de novidade
permanente, pela dinamicidade das relações sociais, políticas e econômicas.
442
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.551.
243
443
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.551-552.
444
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.20.
244
Nesse caso, a morte não somente é um fenômeno universal, como também não se
encerra em representações espirituais, através de entidades de cunho religioso. Ao contrário, a
morte seria, precisamente, essa divindade-verme, “livre das roupas do antropomorfismo”. É,
assim, ressaltado o seu caráter biológico, orgânico.
Talvez o que seja mais assustador, nessa “divindade”, é o fato de que ela não seja algo
que pode atormentar, assombrar os indivíduos, externamente, como uma fantasmagoria:
onipresente, o verme estaria no interior de nossa carne, em nossos alimentos, na água que
bebemos, em nosso organismo e em nosso corpo, aquele que pretendemos não somente curar,
mais prevenir de todo tipo de doença.
Nesse caso, se a publicidade emergente nos cartazes e anúncios de jornais que se
espalhavam pela cidade não se limitava à propagandear objetos, roupas e acessórios,
dedicando-se também às propagandas de remédios e elixires, tal dedicação pode ser melhor
compreendida pela perspectiva de Sevcenko445
A cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX, ainda estava
reelaborando sua estrutura urbanística e sanitária conforme os saberes e as técnicas da época,
o que se constituía, de certo modo, como frente de combate às constantes epidemias já
constatadas nesta cidade e neste período.
Ao encerrarmos este capítulo, consideramos ter conseguido mostrar como a poesia de
Augusto dos Anjos fazia referência ao corpo e suas doenças e como tais representações
literárias operavam com imagens elaboradas em articulação direta com algumas das práticas e
445
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.552-553.
245
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa ótica, é mais indicado enxergar nos versos de Augusto dos Anjos não somente esse
traço das experiências de individualização, como também, uma proximidade com as práticas
de uma escrita de si, sem perder de vista as distâncias existentes entre a mímesis poética e
essa escrita autorreferencial.
Tanto o projeto lírico, ou pós-lírico, podem fazer alusões à aspectos oriundos da
memória, da experiência vivida. Contudo, seja na poesia, seja na escrita de si, é impossível
oferecer uma imagem integral, coerente, homogênea e contínua, daquilo que o indivíduo
pressupõe ser. Não compreender bem essas distâncias pode fazer com que o leitor/receptor
“caia” nas armadilhas da ilusão biográfica, transplantando a ordem estruturante da narrativa,
do enredo, para a vida, como se não houvesse lacunas entre o viver e narrar o vivido.
Desse modo, nos esforçamos por compreender a poética de Augusto dos Anjos como
atos de “fingimento”, como a proposição de um conjunto de imagens que devem ser
entendidas “como se fossem reais”, e não como um reflexo puro, e real, de algo supostamente
vivido, ou sentido, pelo poeta e expresso em seus versos tal e qual.
Logo, os textos elaborados e publicados por Augusto dos Anjos como livro constituem
um material a partir do qual ele próprio operou com seleções, visando, com isso, construir-se,
para si mesmo e para os outros, como um “autor”, criando uma mitologia pessoal. Dessa
maneira, os poemas publicados como livro não foram os únicos, nem foram escritos todos de
uma só vez. Ao contrário, o livro consistiu numa complicação de textos escolhidos entre um
material que já estava sendo produzido desde 1901.
Foi, ao levar esse ponto em consideração, observando que os textos publicados no
“Eu” são um recorte tímido em face da quantidade de poemas por ele publicados antes de
1912, que compreendemos seu livro, e o personagem “macabro” que ele expressa, definida
por críticos literários através do rótulo de “poeta da morte”, como uma identidade narrativa
sustentada pelo sujeito fenomênico que escreve versos.
A inclusão, em seus versos, de temáticas e imagens acerca da morte e do morrer, mais
do que expressar a pressuposta morbidez de sua personalidade, termina por nos apresentar
diversas sensibilidades acerca do fenômeno morte, de seus espaços e agentes, sensibilidades
estas, por sua vez, trespassadas pela temporalidade moderna.
Na medida em que a concepção de tempo, na modernidade, pressupõe um tom
positivo para o futuro, a morte e seus temas correlatos tornaram-se um assunto interditado.
Foi necessário, antes e durante o período no qual a poesia de Augusto dos Anjos emergiu,
encontrar novas formas de lidar com a morte, de normatizar espaços como o cemitério, os
túmulos, carneiros e valas comuns.
250
inquietante. As referências às doenças, à morte e aos seus espaços e agentes, podem ser vistas
como metáforas para esse sentimento de desconforto, de estranheza, de deslocamento e mal
estar. Isto não se resume numa prática da literatura como “missão”.
Nesse sentido, o monossílabo “Eu”, que dá título ao seu livro de versos, é indicativo
de um “Outro”. Ou de “vários”. Ao mesmo tempo em que há o Augusto dos Anjos autor do
“Eu”, há também aquele que escreveu versos para sua mãe, ao fim de uma carta para ela
enviada; aquele que traçava perfis poéticos para amigos e amigas, assim como, aquele outro
Augusto, autor de poemas românticos e/ou que apresentavam a edição do NONEVAR,
jornalzinho que circulava nos dias da Festa de Nossa Senhora das Neves, na cidade paraibana
de João Pessoa. Havia, ainda, outro Augusto dos Anjos que escreveu versos improvisados na
ocasião do aniversário de um de seus irmãos mais novos.
Além disso, estamos comentando apenas o sujeito que escrevia versos, os quais foram
o foco principal de nossa pesquisa. A atividade com a poesia não fora seu único exercício com
a escrita, pois o poeta também se dedicava à produção de outros tipos de gêneros textuais, tais
como crônicas e cartas, paralelamente aos versos. Estes, não foram escritos e publicados em
“bloco”, como num tipo de “fase”, nem foram “períodos” que se sucederam. A escrita dos
versos colhidos em livro, daqueles que permaneceram publicados apenas em jornais, assim
como, das crônicas e cartas, intercalavam-se.
Nessa compreensão, os modos pelos quais Augusto dos Anjos se fez, através da
escrita, foram tantos quanto os tipos de escrita aos quais ele se dedicou. Em que pese seus
poemas colhidos em livro serem considerados mais significativos, pela força das imagens ali
presentes e por conta dos efeitos causados no leitor, todos os seus versos são relevantes por
nos apresentarem vestígios oriundos de seus estratos temporais. São férteis em sentidos
históricos.
Não parece adequado tentar confinar Augusto dos Anjos somente nos versos de seu
livro, nem tampouco naqueles publicados apenas em jornais e periódicos. Seu livro “Eu” o
constituiu como um “Outro”. E cada texto, cada crônica ou poema por ele escrito o constituía
de uma maneira diferente, criava um novo “eu”, um novo “outro”. Todos se equivaliam,
nenhum deles sendo nem mais verdadeiro, nem mais falso. Ele se fez pela escrita e as escritas
o fizeram.
252
FONTES DE PESQUISA
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912. Cópia digitalizada do original disponível em
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4608 Acesso: Jan/2015
ATHAYDE, Tristão. Bibliographia. In: O Jornal. Rio de Janeiro, 03 de Maio de 1920, p.02.
ALFONSUS, João. Augusto dos Anjos em Leopoldina. In: Autores & Livros. Suplemento
Literário do Jornal A Manhã, 30 de Novembro de 1941, p.327.
A VIDA DE AUGUSTO DOS ANJOS In: Autores & Livros. Suplemento Literário de A
Manhã, 30 de Novembro de 1941. Pág.321-344. Número 16.
BARROS, Eudes. Aproximações e Antinomias entre Baudelaire e Augusto dos Anjos. In:
Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 6 de Dezembro de 1964. Pág. 01. Suplemento Literário.
CUNHA, Fausto. Augusto dos Anjos Salvo pelo Povo. In: Correio da Manhã. Rio de
Janeiro, 15 de Junho de 1963, pág. 10.
FARIA, José Escobar. A poesia cientifica de Augusto dos Anjos. In: Revista do Livro. Orgão
do Instituto Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Ano I, Nº 1-2, Junho de
1956, p.111-116
MENEZES, Nazareth. O Livro do Dia – Eu In: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 1912,
p.04
OITICICA, José. A Poesia dos Novos In: A Época. Rio de Janeiro, 06 de Outubro de 1912.
Pág.07
______, Augusto dos Anjos (27 anos depois de sua morte). In: A Época. Rio de Janeiro, 12
de Novembro de 1941.p.03
PINTO, José Alcides. Augusto dos Anjos – Cinquenta anos após a sua Morte. In: Correio da
Manhã. 8 de Fevereiro de 1961, p.01.
SILVA, Pereira da. A Poesia e a Poética de Augusto dos Anjos In: Gazeta de Notícias. Rio
de Janeiro, 1912, p.03.
253
SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesia
Completa). Parahyba do Norte, 1920. Págs. I-XIII.
SUASSUNA, Ariano. Viva Augusto dos Anjos. In: Folha de S. Paulo Ilustrada. São Paulo, 12
de março de 2001. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/fq1203200121.htm Acesso: Fev/2015
VINAGRE, José Caó. O Terrível Segredo de Augusto dos Anjos. Revista O Cruzeiro, 30 de
Outubro de 1974. Págs. 52-57.
254
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Editora Martins Fontes. 2007.
_______. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo. Editora Cortez. 2011.
ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO,
Luís Felipe (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras,
1997.
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994.
(Organizada por Alexei Bueno).
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de
Souza Leão; BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma
Biobibliografia. João Pessoa. Editora Universitária UFPB, 2008.
______. Memorial Augusto dos Anjos: Um roteiro cultural e poético. João Pessoa. Editora
Ideia, 2008.
______. Conversando Sobre Augusto dos Anjos: Uma História Oral. João Pessoa. Editora
Ideia, 2009.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro, Editora Nova Fronteira. 2012.
BACHELARD, Gaston. A Chama de uma Vela. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil,
1989.
BANDEIRA, Manuel. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa.
(Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994.
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Pequeno Dicionário dos Escritores/Jornalistas da
Paraíba do Século XIX: de Antônio da Fonseca a Assis Chateaubriand. 2009. Disponível
em <http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo/Pequeno_dic.pdf> Acesso: Mar/2015.
______. O Conceito de Literatura nos Periódicos e Jornais do Século XIX: Um Estudo dos
Jornais Paraibanos. Anais do X Encontro Regional da Abralic. Rio de Janeiro, 2005.
Disponível:http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/estudos/OconceitodeLiteraturanosperio
dicosejornaisdoseculoXIX.pdf. Acesso: Ago/2016.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª
Edição. 2003.
______. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo. Edusp; Porto Alegre. Zouk,
2007.
______. A Ilusão Biográfica In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e
Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006.
______. Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação. Campinas. 9ª Ed. Editora Papirus, 2008.
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia
Hoje. Rio de Janeiro. Editora 7 Letras, 2000.
BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: Origens de uma Poética. In: ANJOS, Augusto dos.
Obra Completa. Editora Nova Aguilar, 1994.
CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo. Editora Companhia das Letras, 2005.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. São Paulo.
Fundação Editora da UNESP. 1999.
EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmácias: Uma História Ilustrada da Farmácia no
Brasil. Rio de Janeiro. Editora Casa da Palavra, 2006, p.80.
FILHO, Cláudio José; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; Morte e Sociedade em Lima Barreto.
In: In: MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo.
Editora HUCITEC, 1983, p.144.
FILHO, Antônio Martins. Reflexões Sobre Augusto dos Anjos. Fortaleza. Casa José de
Alencar Programa Editorial, 1998.
FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, música e cinema. Ditos e Escritos, Vol.
3. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2009.
______, A Escrita de Si. In: Ética, Sexualidade, política (Ditos e Escritos Vol. V). Rio de
Janeiro. Forense Universitária, 2006, p.145.
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro.
Editora FGV, 2004.
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de
Janeiro. Editora José Olympio. 2011.
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz
Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 2002. 3ªed., p.955-985.
ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. In: Teoria da Ficção: Indagações à Obra de
Wolfgang Iser. ROCHA, João Cézar de Castro (Org.). Rio de Janeiro. EDUERJ, 1999. P.65-
66.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora
Graal. 1980.
______. Augusto dos Anjos: A Origem como Extravio. In: Matraga: Estudos Linguisticos e
literários. v.21, n.35 (2014). Disponível em: www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/17481 Acesso em: Fev/2016.
LIMA, Michelle; CURY, Cláudia Engler. O Liceu Paraibano Entre os Anos de 1899 e
1903: Uma visão sobre a crise a partir do discurso oficial. Anais do II Simpósio de História
do Maranhão Oitocentista. Disponível em
http://www.outrostempos.uema.br/anais/pdf/lima2.pdf Acesso: Set/2017
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira, 1978.
MEDEIROS, Irani. Cartas e Crônicas de Augusto dos Anjos. João Pessoa. A União, 2002.
MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora Ideia, 2001.
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios
Brasileiros. Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009
NETO, Henrique Duarte. A Recepção Crítica à Obra de Augusto dos Anjos. In: Anuário de
Literatura, Número 5, 1997, pp. 225-240. Disponível em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/viewFile/5402/4763
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012. p.45 (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS, Neide
Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;)
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o Evolucionismo às Avessas. In: Revista Novos
Estudos CEBRAP, nº 33, julho de 1992, p.89-102. Disponível em
http://novosestudos.org.br/v1/files/upload/contents/67/20080625_augusto_dos_sanjos.pdf
PAIM, Antônio. Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas
no Brasil. Vol. V. Londrina. Editora UEL, 1997.
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2001.
p.94.
PORTO, Paulo Alves. Augusto dos Anjos: Ciência e Poesia. In:Química Nova na Escola. Nº
11, maio de 2000. Disponível em <http://qnesc.sbpc.org.br/online/qnesc11/v11a07.pdf>
PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo horizonte. Editora Autêntica. 2008.
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Dos Mortos e Sua Volta. In: MARTINS, José de Souza. A
Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC, 1983.
RAMOS, Adauto. Augusto dos Anjos: Resgate Histórico. Sapé, Prefeitura Municipal de
Sapé, 2002
259
RODRIGUES, Melânia Mendonça; SILVA, Vívia Melo da. Anuários e Almanaques: Fontes
para a História da Educação e Organismos Formativos. In: IX SEMINÁRIO DE ESTUDOS
E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”. Universidade
Federal da Paraíba – João Pessoa. Anais Eletrônicos ISBN 978-85-7745-551-5. Disponível
em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/PDFs/8.13.pdf
Acesso: Jul/2016. P.4813.
______. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014.
REIS, Zenir Campos (Org.) Literatura comentada: Augusto dos Anjos. (Textos Selecionados,
Estudo histórico-literário e atividades de compreensão e criação). São Paulo. Abril, 1982.
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In:
Revista Eletrônica de Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre.
Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Dez/2016
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora,
2006.
______, A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São
Paulo. Editora Companhia das Letras, 2006.
______, Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos
20. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.23.-24.
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza. Museu do
Ceará / Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.81
SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Genética e Crítica Biográfica. In: Letras de Hoje. Porto
Alegre, v.45, n.4, p.25-26, ou/dez. 2010. Disponível em
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/8549 Acesso: Mai/2016
______, Crítica Cult. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2002.
VELLOSO, Mônica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte. Editora Autêntica.
2010.
VERDE, Cesário. Desastre In: Obras Completas. Lisboa. Livros Horizonte. 4ª Edição, 1983.
(Org. Joel Serrão), p.162-164.
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio. 1967.