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O Tempo, A Ficção e A Morte

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

DANILO LINARD TEODOSEO

O TEMPO, A FICÇÃO E A MORTE:


AS ESCRITAS DE AUGUSTO DOS ANJOS
(1901-1920)

FORTALEZA
2019
DANILO LINARD TEODOSEO

O TEMPO, A FICÇÃO E A MORTE:


AS ESCRITAS DE AUGUSTO DOS ANJOS
(1901-1920)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


História Social do Departamento de História
da Universidade Federal do Ceará, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Doutor em História, área de concentração
História Social.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Régis Lopes


Ramos

Fortaleza
2019
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Regional do Cariri – URCA
Bibliotecária: Ana Paula Saraiva CRB: 3/1000
_________________________________________________________________________________________________________________
Teodoseo, Danilo Linard.
T314t O tempo, a ficção e a morte: as escritas de Augusto dos Anjos (1901-1920)/ Danilo Linard Teodoseo. –
Fortaleza-CE, 2019
260p.

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em História Social do Departamento de História da Universidade


Federal do Ceará.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos

1. História, 2. Augusto dos Anjos, 3. Modernidade, 4. Morte,


5. Ficção; I. Título.

CDD: 981
_________________________________________________________________________________________________________________
DANILO LINARD TEODOSEO

O TEMPO, A FICÇÃO E A MORTE:


AS ESCRITAS DE AUGUSTO DOS ANJOS
(1901-1920)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


História Social do Departamento de História
da Universidade Federal do Ceará, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Doutor em História, área de concentração
História Social.

Aprovada em: ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Profa. Dra. Kênia Sousa Rios
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Antônio Luiz Macedo e Silva Filho
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Claudicélio Rodrigues da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Júlio Cezar Bastoni Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)
AGRADECIMENTOS

Não poderia deixar, antes de qualquer coisa, de agradecer à dois professores, Ivoney
Rodrigues e Nuno Gonçalves. Durante uma “Semana de História” realizada, em 2005, na
Universidade Regional do Cariri (URCA), ambos ministraram um minicurso no qual
discutiam as intercessões entre História e Literatura. Nessa ocasião, apresentaram fragmentos
de suas dissertações de mestrado, respectivamente, sobre os escritores Gustavo Barroso e José
Alcides Pinto. Lembro que, ao término do minicurso, já não tinha mais dúvidas sobre qual
campo de pesquisa escolher. Na época, pensar em cursar o Doutorado em História era,
simultaneamente, uma expectativa e uma incerteza. Fico mais do que grato por esse encontro.
Ao Professor Dr. Francisco Régis Lopes Ramos, agradeço pelo conhecimento
transmitido. Conhecimento este derivado tanto de sua experiência no ensino, como na
pesquisa, o que foi fundamental para incorporar, aprofundar e ampliar questões relacionadas
não somente ao presente trabalho, como também em relação aos fazeres historiográficos e ao
ofício do historiador. São ensinamentos que não poderei retribuir. Enquanto cursar o
Doutorado em História era ainda uma incerteza, tê-lo como Orientador era uma pretensão,
uma expectativa que, felizmente, se realizou.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela
concessão de bolsa de estudos, o que contribuiu para a execução deste trabalho.
Agradeço aos professores do Departamento de História da UFC, dentre eles, Meize
Regina de Lucena Lucas, Antônio Gilberto Ramos Nogueira, José Ernani Furtado Filho, Ana
Rita Fonteles Duarte e Kênia Sousa Rios, com os quais cursei disciplinas que contribuíram
para as discussões que seriam ampliadas e desenvolvidas ao longo de nossa pesquisa.
Agradeço, ainda, ao Kamillo, à Jormana, ao Ney, à Lucélia, ao Eduardo, ao
Wellington, ao Fábio, ao Jorge Luiz e ao José Maria, pela amizade e conhecimento
compartilhado, sobretudo, durante as disciplinas do curso.
Agradeço à Luciana, à Eliane e Nadja, sempre dispostas a ajudar e elucidar nossas
dúvidas na Secretaria do PPGH.
Agradeço, também, aos professores do Departamento de História da Universidade
Regional do Cariri (URCA), onde cursei minha graduação. Cada um compartilhou seu
conhecimento, contribuindo em minha caminhada. Em especial, agradeço ainda à Sandra
Batista e Sheva Alencar, que nos ajudavam na Secretaria do departamento de todas as formas
possíveis.
À Professora Sônia Meneses, agradeço em particular, não somente por orientar meus
primeiros trabalhos e pesquisas, mas, sobretudo, pelos contínuos ensinamentos e por ser um
exemplo como professora e pesquisadora. É um referencial constante, para a vida acadêmica,
profissional e pessoal.
Agradeço à Roberto Freire, Patrícia Alcântara, Thais Lucena e Cícero Varela, pela
amizade durante a graduação, pelas discussões políticas, teóricas e filosóficas, assim como,
por mostrar, já por essa época, os caminhos da pesquisa. Em particular, agradeço, ainda, à
Xico Fredson por sua valiosa amizade.
Agradeço ao amigo Benilson Ricarte, pelas conversas recorrentes, que vão do Xadrez
aos jogos de RPG, passando pela filosofia, política e música.
À Leydi Sousa, agradeço quando, junto com Lídia, saímos e ela nos brinda com suas
observações inteligentes, perspicazes e bem humoradas.
Agradeço à Marinila e Heitor, que nos mostram a inocência que só crianças podem ter.
À Lídia, agradeço por “tantas coisas” e “por tudo”. Agradeço pela presença, pelo
companheirismo, pela sensibilidade, pela paciência, pela atenção, pelo cuidado, pelo carinho,
pelo amor e pela amizade.
À minha tia Sônia Linard, também agradeço bastante, pelo incentivo e ajuda, sempre
fundamentais.
Agradeço, ainda, ao modo de dedicatória, à Vó Riza e Vó Agripina. Ambas estão
sempre ao nosso lado, em todos os momentos.
À minha irmã, Danielle Linard, agradeço pelo cuidado, por toda a ajuda, pela
presença, pela amizade, por dar risada de minhas besteiras e por nossas “conversas malucas”.
Aos meus pais, Aerton e Betânia, por fim, agradeço por tudo, pela segurança, pelo
cuidado, pelo amor, pelas advertências, pela educação e pelo exemplo.
“Considero a vida uma estalagem onde tenho
que me demorar até que chegue a diligência do
abismo. (...) Para todos nós descerá a noite e
chegará a diligência. (...) Se o que deixar
escrito no livro dos viajantes puder, relido um
dia por outros, entretê-los também na
passagem, será bem. Se não o lerem, nem se
entretiverem, será bem também.”
(Bernardo Soares/Fernando Pessoa)
RESUMO

A atividade poética do paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) normalmente é associada


ao seu único livro, “Eu”, publicado no Rio de Janeiro, em 1912, assim como, à sua segunda
edição, já póstuma, intitulada “Eu (Poesias Completas)”, cuja publicação ocorreu na Paraíba,
em 1920. Em razão do rótulo de “Poeta da Morte”, atribuído por conta da temática
predominante nas duas edições de seu livro de versos, alguns estudos interpretaram suas
imagens poéticas como sendo expressões de sua personalidade, a qual seria tão mórbida
quanto suas representações literárias. Outros estudos focam os traços estilísticos e seu
pertencimento, ou não, à escolas ou movimentos literários. Outros, por fim, procuram nos
aspectos sociais e econômicos os condicionantes para a forma e o conteúdo de seus versos.
Em nosso estudo, visamos elaborar uma análise de seus versos a partir de uma perspectiva
historiográfica. Em vista disso, nosso objetivo foi o de investigar os sentidos históricos
expressos nos versos de Augusto dos Anjos e suas articulações com as sensibilidades
derivadas da temporalidade moderna. Para tanto, incluímos em nosso corpo de fontes, além
dos textos poéticos compilados no “Eu”, em suas duas edições, aqueles que permaneceram
publicados apenas em jornais e periódicos paraibanos. Nosso recorte temporal, dessa forma,
compreende sua atividade com a poesia, iniciada em 1901, até a publicação da segunda edição
de seu livro, em 1920. Investigando esse período, foi possível identificar as articulações de
seus versos com os sentidos históricos presentes em seus estratos temporais. Para abordar
nossas fontes e elaborar as discussões pretendidas, tivemos como principais fundamentos
teóricos, metodológicos e conceituais algumas das reflexões propostas por Reinhart Koselleck
(2006, 2014), Pierre Bourdieu (2010), Luiz Costa Lima (1980, 2012), Wolfgang Iser (2002,
1999), Phillipe Lejeune (2008), Alain Corbin (1991), Phillpe Ariès (2012) e Paul Ricoeur
(2014). Através do diálogo com esses e outros autores, foi possível compreender as relações
da poesia de Augusto dos Anjos com as dinâmicas do campo literário, com as discussões
acerca da temporalidade e tempo histórico; com as possibilidades da mímesis e da ficção; com
as experiências de individualização; com a historicidade da morte, de seus espaços e agentes;
assim como, com as relações entre identidade e narrativa. Avaliando os resultados obtidos,
consideramos que a poética de Augusto dos Anjos, às vésperas de mais um centenário,
continua fértil em problematizações e sentidos históricos ao dialogar com três dimensões: o
Tempo, a Ficção e a Morte.

Palavras-Chave: História. Augusto dos Anjos. Modernidade. Morte. Ficção.


ABSTRACT

The poetic activity of Augusto dos Anjos (1884-1914), born in Paraíba, is usually associated
to his single book, “Eu”, published in Rio de Janeiro, in 1912, as well to its second,
posthumous edition named “Eu (Poesias Completas)”, whose publishing occurred in Paraiba,
in 1920. Due to the title “Poet of Death”, given to him because of the prevailing theme in both
editions of his book of verses, some studies read his poetic images as if they are expressions
of his own personality, which would be as morbid as his literary representations. Other studies
focus more on stylistic traits and its belonging, or not, to schools or literary movements.
Others, search on social and economic aspects as the reason for the shape and content of his
verses. In our research, we seek to elaborate an analysis of his verses from a historiographical
perspective. Knowing that, our goal has been to investigate the historical meanings expressed
on the verses of Augusto dos Anjos and its articulations with the sensibilities derived from the
modern temporality. To do so, alongside the compilation of poetic texts present in both
editions of “Eu”, we also included the texts that remained published only in newspapers and
periodicals from Paraíba. Our research takes in his poetic activity began in 1901, until the
publishing of the second edition of his book, in 1920. Researching this period of time, we
were able to identify articulations of his verses with the historical meanings present in its time
layer. To approach the source and elaborate the intended discussions, we had as our main
methodology, theoretical and conceptual foundation some thoughts proposed by Reinhart
Koselleck (2006, 2014), Pierre Bourdieu (2010), Luiz Costa Lima (1980, 2012), Wolfgang
Iser (2002, 1999), Phillipe Lejeune (2008), Alain Corbin (1991), Phillpe Ariès (2012) and
Paul Ricoeur (2014). Through the dialogue with these and other authors, it was possible to
understand the relation between Augusto dos Anjos‟ poetry and the dynamic of the literary
field, the discussions about temporality and historical time; the possibilities of mimesis and
fiction; the experiences that comes with individualization; the history of death even as its
agents and spaces; as well as the relations between narrative and identity. Evaluating the
results we gathered, we considered that the poetic by Augusto dos Anjos, on the brink of
another centenary, continues fertile of problematization and historical meanings when it
dialogues with three dimensions: the Time, the Fiction and the Death.

Keywords: History. Augusto dos Anjos. Modernity. Death. Fiction


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 10
2. AS DINÂMICAS DO CAMPO LITERÁRIO: ROMANTISMO, MODERNIDADE E
CIENTIFICISMO................................................................................................................. 19
2.1 O Ingresso no Campo Literário e o Caleidoscópio do Romantismo...................................... 19
2.2 A Temporalidade Moderna..................................................................................................... 43
2.3 O Cientificismo e a Poesia Científica..................................................................................... 57
3. O GOSTO PELA NOITE E OS IDEAIS DE AMOR “ROMÂNTICO” E “CARNAL” 73
3.1 O Gosto pela Noite................................................................................................................. 73
3.2 As Noções de Amor “Romântico” e “Carnal”........................................................................ 84
3.3 A Carne, o Osso e o Pó: Três Instâncias Temporais............................................................... 94
4. A IDENTIDADE NARRATIVA, A ESCRITA DE SI E A ILUSÃO BIOGRÁFICA.... 103
4.1 Identidade Narrativa e Experiências de Individualização....................................................... 103
4.2 O “Engenho” de Augusto dos Anjos: Poesia, Escrita de Si e as Armadilhas da Ilusão
Biográfica................................................................................................................................. 120
5. A MORTE DO PAI E DO FILHO: FINGIMENTO, AUTORIA E NARRATIVA....... 141
5.1 Os Atos de Fingir.................................................................................................................... 141
5.2 A Questão do “autor” e a Identidade Narrativa...................................................................... 153
6. OS ESPAÇOS DA MORTE E SEUS AGENTES.............................................................. 163
6.1 As Necrópoles e seus Boulevards........................................................................................... 163
6.2 Túmulos e Coveiros................................................................................................................ 182
7. O CORPO E SUAS DOENÇAS........................................................................................... 199
7.1 O Corpo e a Cinza................................................................................................................... 199
7.2 O Sentimento de Fracasso....................................................................................................... 208
7.3 Corpos, Doenças e Outras Metáforas...................................................................................... 219
7.4 Os Desconfortos da Vida Moderna na Capital Irradiante....................................................... 230
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 246
FONTES DE PESQUISA..................................................................................................... 252
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 254
10

1. INTRODUÇÃO

A leitura da poesia do paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), colhida em seu


único livro, intitulado “Eu”, publicado no Rio de Janeiro, no ano de 1912, causou, e ainda
causa, no leitor, sensações ambivalentes, de estranhamento. A segunda edição do “Eu”, já
póstuma, em razão da morte precoce do poeta, foi organizada por Órris Soares (1884-1964) e
publicada na Paraíba, em 1920, contando com o acréscimo de outras poesias, alguns dos
textos considerados inéditos. Nessa ocasião, o livro intitulava-se “Eu (Poesias Completas)”.
Esses conjuntos de textos poéticos publicados em 1912 e 1920, depois, receberam o título “Eu
e Outras Poesias”, configurando o padrão para as edições posteriores e atuais.
O estranhamento indicado acima deriva da estética apresentada por Augusto dos Anjos
nos versos selecionados para integrarem o referido livro. No que diz respeito à forma, muitos
de seus textos apresentam-se como sonetos. Alguns poemas são mais extensos, com
especulações filosóficas. Outros, incorporam uma métrica próxima à parnasiana, além de
incluírem, também, um vocabulário um tanto quanto rebuscado, somado à uma variada gama
de termos técnicos e científicos, vigentes na época.
Quanto ao conteúdo, a temática dos versos do “Eu” gira em torno, majoritariamente,
da contemplação da morte (expressa na forma de um processo absoluto de dissolução, ora
personificado, ora não) e de todo um conjunto de doenças que tomam de assalto os corpos e
mentes saudáveis, pondo fim à fruição da vida. Tanto a forma, quanto o conteúdo de seus
versos, podem se tornar obstáculos, afastando eventuais leitores.
Em razão da estética de seus versos, do seu conteúdo macabro e da linguagem fúnebre
e técnico-científica, rapidamente Augusto dos Anjos fora rotulado como sendo um “Poeta da
Morte”. Considerando as críticas literárias que conseguimos localizar, no imediato da
publicação da primeira edição, na cidade carioca, e após a morte do poeta, podemos apontar o
crítico literário Antônio Torres1 como o primeiro a atribuir esse rótulo. No prefácio da
segunda edição do “Eu”, Órris Soares2 ressalta, em Augusto dos Anjos, a imagem de uma
pessoa sombria, esquisita, tanto física, quanto psicologicamente.
A partir desses textos iniciais, diversos elementos aderiram à imagem de Augusto dos
Anjos: sua magreza, seu olhar soturno e, principalmente, seu padecer pela tuberculose,

1
TORRES, Antônio. O Poeta da Morte. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 27 de Dezembro de 1914.
2
SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesia Completa). Parahyba do
Norte, 1920. Págs. I-XIII.
11

patologia esta indicada como razão de sua estética poética e que, para o senso comum,
debilitou o poeta até a morte, aos trinta anos, mesmo que o testemunho de contemporâneos e
familiares, além do registro de cartas e documentos médicos, não comprovem essa questão.
Entrar em contato com a poesia de Augusto dos Anjos colhida em livro é, de fato,
adentrar num universo metafórico soturno, fúnebre. É caminhar pela noite, é transitar entre
cemitérios e túmulos, é conversar com coveiros, é sentir a fermentação de odores e licores
corporais, é manter contato com vírus, bactérias e vermes.
Algumas pesquisadoras3, além de estudiosos4 e biógrafos5, por exemplo, já
propuseram diversos prismas de interpretação acerca da poesia de Augusto dos Anjos, indo
desde a atribuição quase automática das imagens literárias expressas nos versos ao sujeito que
os escreveu, passando pela interpretação de cunho mais literário, buscando, então, identificar
apropriações e traços estilísticos, culminando até em análises de caráter psicologizante,
visando encontrar na biografia do poeta as causas de sua “morbidez” e, até mesmo, “loucura”.
Nosso interesse em relação à poesia de Augusto dos Anjos derivou tanto de
reminiscências dos estudos escolares, das aulas de literatura, quanto – e principalmente – das
(re)leituras, inicialmente ocasionais, feitas durante o período do mestrado (2009-2011),
cursado na Paraíba, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Nessa ocasião,
ainda que nossa pesquisa de mestrado se relacionasse com o campo de estudos que
aproximam história e literatura, as fontes então investigadas não consistiam em poesias, mas,
sim, em romances, contos e peças teatrais, assim como, o escritor pesquisado era outro, no
caso, o francês Jean-Paul Sartre (1905-1980).
As leituras ocasionais da poesia de Augusto dos Anjos foram se tornando mais
contínuas até resultar na elaboração da proposta de pesquisa de doutorado, submetida ao
PPGH da Universidade Federal do Ceará (UFC), cujos resultados aqui apresentamos. Desse
modo, a presente pesquisa significou uma mudança, no que diz respeito às fontes investigadas
e às questões propostas, mas também, um aprofundamento acerca de nosso estudo das
relações entre história, literatura e poesia.

3
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editora
Universitária UFPB, 2008.
4
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica de
Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007. Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015
5
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio. 1967. MAGALHÃES JÚNIOR,
Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978. NÓBREGA,
Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS, Neide Medeiros;
ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora Universitária/UFPB, 2012.
12

A elaboração de nosso objeto de estudo considerou alguns pontos de partida. Primeiro,


afastar nossa interpretação das explicações de cunho psicologizante, ou seja, não foi nossa
pretensão identificar ou diagnosticar nenhuma patologia na psiquê do poeta, expressa como
“sintoma” em seus versos. Segundo, tentamos evitar a perseguição de indícios, em seus
versos, de características derivadas de sua biografia. É certo que, em alguns momentos,
fazemos a indicação de algumas aproximações entre biografia e poesia. Quando isto ocorre, é
por exigência da análise e não como uma busca de causas biográficas que tenham
determinado a estética de sua atividade poética. Por fim, não visamos apenas identificar
aspectos sócio-históricos de sua experiência como determinantes para suas práticas literárias.
Nosso objetivo consistiu em tentar elaborar uma análise de sua poesia a partir de uma
perspectiva historiográfica. Para tanto, em nosso percurso, nos aproximamos de alguns
princípios e procedimentos teóricos, conceituais e metodológicos. No campo metodológico,
procuramos identificar em suas representações literárias alguns conjuntos temáticos que
servissem como matéria-prima, nos permitindo problematizar os sentidos históricos expressos
em seus versos. A leitura de seus textos poéticos, portanto, orientou-se pela identificação
desses conjuntos temáticos, os quais foram analisados em cada capítulo de nosso trabalho.
Esses conjuntos temáticos, por exemplo, mantém relações com as sensibilidades
modernas por indicarem, nos versos de Augusto dos Anjos, referências à ciência moderna, às
experiências de individualização e busca de si mesmo, às formas de lidar com a morte e
acerca dos espaços e agentes à ela associados. Há referências, também, à positividade das
imagens luminosas em contrapartida à noite e às trevas, mais negativas, o mesmo ocorrendo
em relação às representações literárias sobre o amor “romântico” e “carnal”. A concepção do
tempo na modernidade redefiniria esses e outros elementos com os quais sua poesia dialogou.
Inicialmente, nossa pesquisa compreenderia a análise de suas crônicas, críticas
literárias, cartas e poesias. Contudo, a quantidade de registros se tornou massiva, em
decorrência dos diversos gêneros textuais que seriam analisados, cada qual guardando
complexas particularidades. Em face disso, recortamos como fonte de pesquisa somente sua
poesia, sendo feitas alusões às suas crônicas e cartas, assim como, às críticas literárias, sempre
que as análises exigissem essa necessidade como complemento.
Ainda nesse recorte inicial, nosso intento consistia em investigar as poesias colhidas
no “Eu”, em suas duas primeiras edições (1912 e 1920). Contudo, no decorrer da pesquisa,
entramos em contato com diversas poesias que Augusto dos Anjos escreveu e publicou
principalmente em jornais paraibanos como O Commércio (entre 1901 e 1908) e A União
(entre 1909 e 1910). Textos do poeta também foram publicados em alguns periódicos
13

paraibanos (na revista Terra Natal e no Almanaque do Estado da Paraíba). Após 1910, quando
Augusto dos Anjos e sua esposa se mudaram para o Rio de Janeiro, o poeta também publicou
nos jornais A Época e no Almanaque Garnier, nos períodos imediatos e posteriores à
publicação do “Eu”, em 1912. Isso fez com que o recorte que focava apenas nas poesias do
“Eu” fosse ampliado, tendo em vista a existência desses textos poéticos não colhidos em livro.
Delimitar nosso corpo de fontes apenas em suas poesias tornou o percurso da pesquisa
mais operacional. Contudo, uma nova dificuldade surgiu em decorrência da inclusão das
poesias não colhidas em livro. Em sua primeira edição, o “Eu” contava com 56 textos
poéticos, aos quais foram acrescentados mais 46 poesias, quando da elaboração da segunda
edição. Contudo, as poesias que não foram publicadas em livro não somente eram inúmeras
(aproximadamente 195 textos poéticos e versos de circunstância), como apresentam
características estéticas e estilísticas completamente diferentes daquelas presentes nas poesias
selecionadas para compor seu único livro.
Essa dificuldade nos fez compreender um ponto importante. As poesias do “Eu” não
foram as únicas escritas e publicadas por Augusto dos Anjos. Dessa forma, cai por terra a
imagem de que sua poesia publicada em livro representaria um reflexo puro, tal e qual, de sua
personalidade, a qual seria fúnebre, mórbida. Inúmeras poesias que não integraram o livro
apresentam características totalmente diferentes daquelas que compuseram o “Eu”, diversas
sendo poesias românticas, quase frívolas.
Além disso, as poesias mais fúnebres e macabras não foram o resultado de uma “fase”,
ou seja, não foram todas escritas e publicadas em bloco, num momento precedente ou
subsequente à uma fase mais romântica. Augusto dos Anjos dedicou-se à prática da poesia a
partir de 1901, escrevendo e publicando continuamente. Nesse movimento, os textos mais
macabros, característica esta que rendeu notoriedade ao seu livro, se intercalavam com os
mais românticos. Essas poesias mais sombrias, selecionadas para o “Eu”, configuram um
recorte tímido se comparado à todos os textos escritos e publicados pelo poeta.
Considerando esses elementos, os contornos e caminhos da pesquisa foram se
delineando. Dessa forma, procuramos investigar, problematizar e compreender, em nosso
objeto de estudo, quais os sentidos atribuídos (e/ou apropriados) ao período que se
convencionou chamar “modernidade”, como sua atividade mimética, via poesia, constituiu
uma “identidade narrativa” para Augusto dos Anjos e como seus versos representavam e
expressavam sensibilidades históricas acerca do fenômeno morte (sobre seus espaços –
cemitérios e túmulos –, seus agentes e sobre o corpo envelhecido, doente e morto).
14

Para o desenvolvimento da pesquisa e composição de nosso objeto de estudo, nos


aproximamos do conceito de “campo”, tal como formulado por Pierre Bourdieu6. Através
dessa aproximação, nosso interesse foi o de tentar compreender como Augusto dos Anjos,
enquanto aspirante à poeta, tentou ingressar no campo literário, seja na Paraíba, seja no Rio de
Janeiro, identificando as posições por ele ocupadas no campo social, rastreando seus espaços
de publicação e os agentes do campo literário com os quais ele entrou em contato, quer de
maneira positiva, quer não.
Para abordar sua poesia, tornou-se fértil o diálogo com os conceitos de “mímesis da
representação” e “mímesis da produção”, ambos elaborados por Luiz Costa Lima 7. Este,
compreende a literatura em verso e prosa como uma atividade através da qual o fenômeno da
mímesis, ao invés de oferecer uma “cópia”, ou “miniatura”, de uma realidade considerada
externa ao texto, oferece, sim, uma concepção acerca deste referente tomado como “real” e
exterior, pautada pelos vetores da “semelhança”, ou seja, considerando os padrões e
convenções já aceitos no campo, e da “diferença”, questionando esses elementos ao passo que
deles se apropria. A partir desses conceitos, tornou-se possível não somente distinguir, como
também, compreender a razão dessa diversidade estética e temática entre seus versos
publicados em livro e aqueles que não foram nele incorporados.
Esses conceitos também nos permitiram compreender as apropriações feitas por
Augusto dos Anjos de alguns dos pressupostos do chamado pensamento cientificista. O poeta
introduziu em seus versos termos técnicos e científicos correntes nessa tendência, seja por sua
sonoridade, seja por comunicar determinados elementos que seu eu lírico expressava,
principalmente nos versos do “Eu”, tais como a ideia de um processo dissolutivo contínuo e
dinâmico, cujo símbolo mais evidente era a morte.
Dessa forma, fazendo certas apropriações e elaborando imagens poéticas específicas,
alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos se distanciaram de uma perspectiva mais
otimista acerca da ciência, presente no cientificismo, simbolizado pela noção de que o futuro
seria um tempo de realização e progresso, fenômenos esses praticamente inexistentes nos
versos do “Eu”. Seus versos exaltam mais aquele processo dissolutivo como uma espécie de
movimento dinâmico de criação e destruição da existência, ora personificado, ora não, sem
apontar, necessariamente, para uma perspectiva otimista convencional.

6
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. 2ª edição. São Paulo.
Companhia das Letras, 2010.
7
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980.
15

Ao visarmos interpretar a poesia de Augusto dos Anjos inscrevendo nossas análises


numa perspectiva historiográfica, a dimensão temporal é fundamental, pois atua como um
ambiente, uma atmosfera, na qual elementos significativos circulam. Nesse sentido, o diálogo
com Reinhart Koselleck, a partir de sua compreensão das articulações entre as dimensões
temporais8, sugere um jogo dinâmico entre experiência e expectativa. Desse modo, pudemos
utilizar a poesia de Augusto dos Anjos como uma espécie de caleidoscópio, nos permitindo
investigar os sentidos históricos com os quais sua poesia dialogou e ressignificou, seja em
relação à sua(s) experiência(s), seja em relação ao(s) horizonte(s) de expectativa(s).
Analisando as conexões da poesia de Augusto dos Anjos com sua época, pudemos
discutir certos temas presentes em seus versos que se aproximam e se distanciam das noções
de “novidade” e “aceleração”, tão caras à chamada modernidade, como observou Koselleck.
Além das conexões com essas noções, os versos de Augusto dos Anjos se apropriam de
elementos distintos, presentes em seu momento histórico, o que muitas vezes se apresentou de
maneira quase contraditória em seus versos.
A noção de estratos temporais9, também discutida por Koselleck, nos permitiu
perceber como diversos padrões estéticos e temáticos se apresentaram na poesia de Augusto
dos Anjos, na medida em que também integravam o espaço de experiência no qual sua poesia
veio à público, imprimindo determinados contornos aos horizontes de expectativas que seu eu
lírico transmitia em alguns textos poéticos.
Através da leitura de Marshall Berman10, foi possível perceber como os versos de
Augusto dos Anjos inscrevem-se na chamada modernidade, a qual, para além das noções de
“novidade” e “aceleração”, apontadas por Koselleck, também se configurava como uma
experiência histórica hesitante, cheia de incertezas e tensões. Os versos de Augusto dos
Anjos, desse modo, se apresentam como um tipo de fusão entre as noções de “modernização”
e “modernismo”, discutidas por Berman, sendo que, em Augusto dos Anjos, essa fusão ocorre
sob o signo de um processo dissolutivo, degenerativo.
Outro campo de discussão teórico e metodológico fundamental para o
desenvolvimento de nossa pesquisa consistiu nos debates acerca da escrita de si, das
experiências de individualização e das traduções narrativas que os indivíduos elaboram acerca

8
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro.
2006.
9
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014. p.142.
10
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007.
16

de si mesmos, seja num texto com qualidades estéticas, mas mais autorreferencial e não
necessariamente ficcional, seja em textos abertamente ficcionais.
Na medida em que a modernidade estimula uma ênfase no indivíduo, por meio das
discussões que orbitam o tema da escrita de si, analisados por Ângela de Castro Gomes 11 e
Phillipe Lejeune12, pudemos perceber como a poesia de Augusto dos Anjos se configura não
somente como um exercício próximo à escrita autorreferencial e, em menor grau,
autobiográfica, mas, principalmente, como ela reforça a experiência de individualização
vivida por Augusto dos Anjos enquanto sujeito histórico inscrito na dita “modernidade”.
Como as noções de indivíduo, de individualidade, foram enfatizadas radicalmente na
modernidade, o título do livro de Augusto dos Anjos, “Eu”, seria um sintoma da
temporalidade moderna e de sua reverência à individualidade/individualização. Seus versos
seriam uma forma de lidar com as expectativas então estimuladas, que exigiam o indivíduo
como produtor de uma imagem de si mesmo e como agente unificador de suas vivências. O
indivíduo, na modernidade, deveria ser um tipo de protagonista, o que nem sempre ocorria.
Ao dialogarmos com Paul Ricoeur13, e ao nos aproximarmos de suas discussões acerca
da noção de “identidade narrativa”, pudemos problematizar como a poesia de Augusto dos
Anjos, ainda que próxima da escrita autorreferencial e autobiográfica, está para além delas.
Isto porque o indivíduo, na modernidade, pode se transformar numa espécie de narrador de si
mesmo, elaborando uma imagem, seja pela via literária, ficcional, seja pelos caminhos mais
estéticos, autorreferenciais (em cartas, diários, memórias, etc.).
Ao utilizarmos a noção de “identidade narrativa”, foi possível compreender como
Augusto dos Anjos joga com a noção de individualidade, elaborando para si e para os outros
uma imagem, não contraditória, mas multidimensional, oposta àquelas interpretações
unilaterais que associam, mecanicamente, os valores expressos em seu texto ao sujeito que
escreve, como se não houvesse uma distância, dotada de contornos próprios, entre o sujeito e
sua(s) prática(s) de escrita. Através dessa noção, foi possível confirmar a hipótese de que as
práticas poéticas de Augusto dos Anjos estão para além do rótulo de “poeta da morte”, ainda
que a atribuição de tal rótulo não seja arbitrária, mesmo que ele seja um tanto simplificador.

11
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004.
12
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte.Editora UFMG,
2008.
13
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014.
17

As temáticas da morte e do corpo, mais predominantes em seus versos publicados em


livro, foram analisadas a partir dos diálogos com Phillipe Ariès14 e suas abordagens
conceituais e historiográficas acerca da morte, assim como, com os historiadores Fernando
Catroga15, José de Souza Martins16, Antônio Motta17, entre outros, os quais aprofundam a
discussão acerca da historicidade do fenômeno morte, seus agentes e espaços. Sobre as
ressignificações do corpo, foram de grande valia as reflexões de Georges Vigarello18, que
analisam a produção de um sentimento sobre si e a partir da percepção do corpo. As imagens
poéticas elaboradas sobre o corpo, na poesia de Augusto dos Anjos, são recorrentes.
Nosso corpo de fontes consistiu, fundamentalmente, nas poesias presentes nas duas
edições do “Eu”, assim como, nos textos poéticos não colhidos nesse livro, no estudo de
críticas e estudos literários acerca da poesia de Augusto dos Anjos, publicadas em diversos
jornais brasileiros, para os quais a consulta no arquivo da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional foi de fundamental importância. Aliado à esses registros, procuramos encontrar
fundamentação teórica, metodológica e conceitual em diversos referenciais bibliográficos que
versam sobre o poeta e sobre os fazeres historiográficos e áreas afins.
Para a apresentação dos resultados de nossa pesquisa, organizamos e distribuímos as
discussões ao longo de seis capítulos. O primeiro intitula-se “As Dinâmicas do Campo
Literário: Romantismo, Modernidade e Cientificismo”. Nesse momento, buscamos
compreender como Augusto dos Anjos ingressou no campo literário e como sua atividade
mimética se relacionou com as características da temporalidade moderna e com a estética da
chamada poesia científica e em quais sentidos dela se afasta e se aproxima.
O segundo capítulo, “O Gosto pela Noite e os Ideais de Amor Romântico e
Carnal”, tem como foco analisar as imagens que a poesia de Augusto dos Anjos elaborou
acerca do período noturno, assim como, sobre os pares dia-noite, trabalho-descanso, luz-
trevas, num misto entre simbolismo e romantismo, atravessado pelas tensões da modernização
e do modernismo. Discutimos, também, como o poeta, ainda no contexto paradoxal das

14
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro, Editora
Nova Fronteira. 2012.
15
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999.
16
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983.
17
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009.
18
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016.
18

sensibilidades derivadas do romantismo e do pensamento cientificista, formula imagens


acerca da mulher e da prostituta.
Em nosso terceiro capítulo, “A Identidade Narrativa, a Escrita de Si e a Ilusão
Biográfica”, aprofundamos a discussão acerca das relações entre modernidade e experiências
de individualização, assim como, discutimos a introdução, em seus versos, de certos aspectos
oriundos de sua biografia, a saber, as imagens poéticas acerca do engenho Pau d‟Arco, onde
nasceu e viveu quase dois terços de sua vida.
No quarto capítulo, “A Morte do Pai e do Filho: Fingimento, Autoria e Narrativa”,
ampliamos a discussão acerca da introdução de aspectos associados à biografia do poeta
(como os sonetos ao “Pai” e ao “filho nascido morto”) em seus versos, pontuando como a
atividade poética ficcionaliza determinadas experiências e vivências mediante o “fingimento”,
que é típico da atividade mimética em geral, e da poesia, em particular. Encerramos esse
capítulo colocando em questão as relações entre o sujeito que escreve e a noção de “autoria”,
problematizada por Chartier e Foucault, estabelecendo um contraponto com a noção, já citada,
de “identidade narrativa”, proposta por Ricoeur.
Em nosso quinto capítulo, “Os Espaços da Morte e seus Agentes”, adentramos nas
análises acerca das imagens poéticas que renderam maior notoriedade à Augusto dos Anjos, a
saber, as representações acerca dos cemitérios, túmulos e coveiros, espaços e personagens
estes que dão substância ao rótulo de “poeta da morte” que aderiu à sua atividade poética.
Por fim, em nosso último capítulo, “O Corpo e suas Doenças”, analisamos outros
conjuntos temáticos presentes em seus versos, sobretudo, as imagens do corpo morto, em
decomposição, que ocupa cemitérios, túmulos e valas comuns, assim como, do corpo doente e
envelhecido, prenunciador da morte iminente.
Nosso intuito, portanto, ao desenvolvermos a pesquisa e apresentarmos, aqui, seus
resultados, é o de oferecer ao leitor uma interpretação da poética de Augusto dos Anjos,
orientada pelos procedimentos próprios da operação historiográfica. Visamos compreender de
que maneira a temporalidade moderna trespassou as experiências de Augusto dos Anjos,
enquanto sujeito, e sua atividade mimética, via poesia, ao passo em que, simultaneamente,
analisamos os modos pelos quais seus versos elaboraram novas perspectivas acerca dos
fenômenos e sentidos históricos em relação aos quais se apropriou.
19

CAPÍTULO 2
AS DINÂMICAS DO CAMPO LITERÁRIO:
ROMANTISMO, MODERNIDADE E CIENTIFICISMO

2.1 O Ingresso no Campo Literário e o Caleidoscópio do Romantismo

Em fins do século XIX e no início do século XX emergiram diversas práticas literárias


no Brasil. Vários indivíduos, de maior ou menor renome, animaram com suas atividades a
dimensão da cultura letrada, muitos dos quais tornaram-se figuras quase icônicas ou canônicas
indo, por exemplo, de Machado de Assis à Olavo Bilac. Em vista disso, tornou-se comum
entre críticos literários e outros estudiosos o esforço de sistematizar os traços temáticos de tais
indivíduos/obras, enquadrando-os em “movimentos”, “escolas” ou “estilos” então vigentes.
Certos autores e obras são, inclusive, apontados como “fundadores/pioneiros” na
emergência/ruptura de determinados estilos e/ou movimentos.
Não será raro, portanto, nossa aproximação com tais sistematizações, visando um
diálogo que nos ajude a entender melhor as peculiaridades dos textos poéticos e
representações literárias de Augusto dos Anjos, ainda que nosso intuito não seja fixar seus
textos nesses enquadramentos. Certo é, também, que esse diálogo e essa aproximação não
deixam de levar em consideração o caráter didático que essas sistematizações possuem.
Aragão19 e Rubert20 oferecem um breve panorama acerca do modo como críticos
literários colocaram a poesia de Augusto dos Anjos em paralelo com vários estilos e escolas,
entre os quais o Simbolismo, o Parnasianismo, a Poesia Científica e o próprio Romantismo.
Ao longo de nosso trabalho, faremos maiores alusões a algumas dessas críticas.
Ressaltamos que as características, internas e/ou externas, observáveis nos produtos
culturais e artísticos e nos escritores e em suas obras literárias, não são “marcas naturais”,
inerentes a esses objetos e indivíduos. As peculiaridades de determinadas obras são a
resultante de um dinâmico processo de escolha, produção, circulação e
atribuição/reconhecimento de valor, processo esse que é social, cultural, histórico. Como
afirma Pierre Bourdieu21, verifica-se no campo literário que

19
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editor
Universitária UFPB, 2008.
20
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica
de Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015.
21
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. 2ª edição. São Paulo.
Companhia das Letras, 2010, p.235.
20

...as estratégias dos agentes e das instituições que estão comprometidos nas
lutas literárias ou artísticas não se definem na confrontação pura com
possíveis puros; dependem da posição que esses agentes ocupam na estrutura
do campo, ou seja, na estrutura da distribuição do capital específico, do
reconhecimento, institucionalizado ou não, que lhe é concedido por seus
pares-concorrentes e pelo grande público e que orienta sua percepção dos
possíveis oferecidos pelo campo e sua “escolha” dos que se esforçarão por
atualizar ou produzir. (...) as apostas da luta entre os dominantes e os
pretendentes (...), as próprias teses e antíteses que eles se opõem
mutuamente, dependem do estado da problemática legítima, isto é, do espaço
das possibilidades legadas pelas lutas anteriores que tende a orientar a busca
das soluções e, por conseguinte, o presente e o futuro da produção.

Desse modo, mais do que perseguir a natureza íntima e essencial da poesia de Augusto
dos Anjos ou, por outro lado, atribuir ao poeta uma genialidade inescrutável, visamos partir de
uma perspectiva que toma a obra e, por extensão, seu autor, como imersos numa rede de
historicidades. É nesse sentido que nos apropriamos do conceito de “campo” formulado por
Bourdieu22: “Os campos apresentam-se à apreensão sincrônica como espaços estruturados de
posições (ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que
podem ser analisadas independentemente das características dos seus ocupantes (em parte
determinadas por elas)”. Nessa ótica, tentaremos rastrear quais elementos históricos presentes
em seu campo literário sua poesia expressa.
A poesia de Augusto dos Anjos, tanto aquela colhida no livro que lhe rendeu
notoriedade, quanto às demais, publicadas apenas em jornais e periódicos, foi elaborada ao
longo da primeira década do século XX e não se isenta das marcas da temporalidade moderna.
Somando mais de uma centena de textos poéticos produzidos, apenas algumas dezenas
destes, após rigoroso crivo, foram selecionados para serem publicados no único livro desse
poeta, o “Eu”, de 1912. Seus versos, tanto os mais quanto os menos conhecidos, dialogam
com estilos, estéticas e escolas distintos, oriundos de diversos estratos temporais.
O Simbolismo, o Romantismo, o Parnasianismo, o Realismo-Naturalismo, entre
outros, apresentam traços mais ou menos comuns, tanto no seu contexto de emergência
inicial, na Europa, quanto nas apropriações feitas no Brasil. Tais estéticas literárias inserem-se
no que se convencionou chamar “Modernidade”, conceito variável em seus conteúdos e
formas, comumente associado às experiências históricas subsequentes à desestruturação da
sociedade feudal ocidental, do chamado Antigo Regime e paralela à ascensão do capitalismo.
As experiências e as expectativas europeias ocidentais passaram a ser alimentadas pelo
conceito “moderno”, cada época atribuindo-lhe um significado diferente ao mesmo tempo em
que se mesclava com ele. Na “modernidade”, surgiram novas configurações para a política, a
22
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa. Editora Fim de Século, 2003, p.119.
21

economia e a sociedade. A vida privada e as sensibilidades mais íntimas dos indivíduos e


grupos sociais também seriam transformadas.
A música, as artes plásticas e, em particular, a literatura em prosa e verso, nesse
momento dito “moderno”, adquiriram algumas características do romantismo. Para
Todorov23, um traço inicial permanecia, mesmo que de modo ambivalente:

...a estética romântica imposta a partir do início do século XIX não introduz
qualquer ruptura notável. Aos olhos dos primeiros românticos – sempre
próximos de Germaine de Staël e de Constant: os irmãos Schlegel, Schelling,
Novalis –, a arte continua a ser conhecimento do mundo. Se novidade há,
essa está no juízo de valor que eles atribuem aos diferentes modos de
conhecimento. Aquele ao qual se ascende através da arte parece-lhes
superior ao da ciência: por renunciar aos processos comuns da razão e tomar
o caminho do êxtase, esse conhecimento dá assim acesso a uma segunda
realidade, proibida aos sentidos e ao intelecto, mais essencial e mais
profunda que a primeira.

Dessa forma, a atividade mimética, seja em prosa, seja em verso, ofereceria outro
caminho de compreensão do mundo. Trilhando esse caminho, seria possível entender com
mais clareza, por meio da intuição, aquilo que a ciência, com seus métodos objetivos, ainda
não havia conseguido – ou não podia – compreender.
Nessa compreensão, na dita modernidade, a literatura e a poesia continuam
relacionadas ao mundo social, ou seja, a atividade mimética que lhes é própria e constituinte
não se desliga do mundo à sua volta: faz dele matéria-prima e da arte outro canal de acesso ao
(ou produtor de) conhecimento. Para Todorov24: “É apenas no começo do século XX que se
produz a ruptura decisiva. Ela se deve, por um lado, ao impacto das teses radicais de
Nietzsche, que questionam a própria existência tanto dos fatos independentes das suas
interpretações quanto a da verdade, qualquer que ela seja.”
Na modernidade, portanto, à literatura e à poesia ora são atribuídos uma função de
“meio de acesso diferenciado” em relação ao mundo social, ora à elas são atribuídas uma
postura, talvez quase um dever, de distanciamento da sociedade, de seus dilemas e
contradições. Num caso, as artes e a literatura seriam meios privilegiados de conhecimento
intuitivo do mundo. Noutro caso, aproximando-se do ideal de “arte pela arte”, o artista, o
escritor, produziria algo isolado das contaminações oriundas do mundo social, do qual se
distancia, conduzindo e colocando o leitor em contato com o “Belo”.
Como a atividade mimética de Augusto dos Anjos surge nesse período, seus versos
dialogam com todo um complexo de sentidos históricos, temas e questões, por vezes,

23
TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro. Difel. 2009. p.61-62.
24
TODOROV, 2009, p.66.
22

ambivalentes, presentes em seu campo literário. A poesia figura para esse autor como um
meio privilegiado de conhecimento do mundo, não apenas a partir de uma intuição
“romântica”, mas, também, através de uma percepção articulada com alguns pressupostos da
ciência/do cientificismo, como discutiremos mais adiante.
Para o teórico e crítico literário brasileiro Luiz Costa Lima25, a mímesis é um
fenômeno que não está encerrado apenas na atividade artística ou literária. Para esse autor, a
vida social é, em si mesma, simbólica, e disto surge outra questão. Considerando nossa
imersão no mundo social, que é cultural, simbólico, possuímos a tendência a naturalizar os
símbolos culturais que utilizamos na vida prática em sociedade e, com isso, não os colocamos
em questão. Considerá-los “simbólicos”, colocá-los em questão, seria “desnaturalizá-los”, o
que enfraqueceria sua “seriedade”, a naturalidade de seu ser. Por exemplo, para muitas
pessoas, a classe social a que pertencem, ou os preconceitos que, por vezes, possuem, são
fenômenos (quase) naturais, inelutáveis, como se não estivessem submetidos à condições
históricas e simbólicas, sociais e culturais, não sendo, portanto, imutáveis.
Quando aceitamos a existência de “símbolos”, podemos possuir a tendência em
restringir sua aparição à certas dimensões de nossa vida, já que não é possível eliminá-los,
alocando-os mais na linguagem, nas artes ou em outros domínios, como o da religião. O ponto
em questão é que, ao instituir essa restrição acerca do símbolo e de seu papel em nossa
existência, operamos com um recorte que não é meramente cultural, mas também, social. Para
Luiz Costa Lima26:

como (...) os membros de uma sociedade qualquer tendem a se ver nos que
lhes são iguais e a marcar sua diferença quanto aos outros (...), necessitam
identificar o simbólico com o espaço recortado dentro de certas áreas. Estes,
passam a ser os espaços e as áreas simbolicamente privilegiadas. Em nossa
cultura – se é que apenas nela – a área da linguagem é uma delas e, no seu
interior, o recorte abarca o poético, assim como o museu é o recorte da área
da visualidade e a sala de concerto, o recorte da área da audição. Os campos
recortados, enquanto encarnações do simbólico reconhecido, gozam do
privilégio de separação.

Considerando aqui que nossa visão do mundo decorre do lugar de onde o vemos, de
nosso lugar de fala, compreendemos melhor as relações que a poesia de Augusto dos Anjos
estabeleceu com as sensibilidades de seu tempo histórico, mediante o contato com redes
simbólicas específicas. Em certos momentos, seus textos poéticos parecem aproximar-se

25
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980.
26
LIMA, 1980, p.72.
23

desse recorte, do qual fala Costa Lima, que separa o “simbólico” do mundo social, encerrando
essa dimensão “simbólica” em áreas particulares, entre elas, a própria literatura e a poesia.
Nessa compreensão, cabe demarcar, desde já, que não interpretamos a poesia de
Augusto dos Anjos com a manifestação ou o desdobramento de uma inclinação totalmente
singular, essencialmente subjetiva, inexplicável. Não compreendemos sua poesia como o
resultado de uma potência única (próxima do imanentismo) que ele carregava consigo,
desligada das dimensões circundantes e transformada em ato pela escrita. Nossas indagações e
problematizações acerca de seus textos poéticos levam em consideração outra perspectiva
proposta por Luiz Costa Lima27, que perpassa a representação:

...para não confundirmos o poético com o zoológico da linguagem, temos


que ver a sua prática como a condensação de uma atividade, a atividade da
representação, sem a qual o indivíduo não se reconhece em comunidade
alguma. O que vale dizer, temos de reaproximá-lo da sociedade que o
motiva, não para vê-lo como seu reflexo – o que seria manter a ideia do
simbólico como subproduto, luxuoso epifenômeno – mas como um dos
núcleos necessários ao conhecimento de sua estrutura.

Ao afirmar que o poético não configura o “zoológico” da linguagem, o autor quer


dizer que as expressões manifestas na poesia não são “raras” ou “em extinção”, devendo ser
isoladas (preservadas) da vida social. A atividade poética seria a condensação particular de
uma atividade de representação geral. Poesia e representação social andam de mãos dadas, na
ótica de Costa Lima. A postura mais pertinente consistiria, antes de tudo, em indagar como a
poesia se aproxima da sociedade, como ela participa na dinâmica de suas experiências, não
como um mero reflexo passivo, mas como um de seus núcleos geradores de significado.
Conforme Luiz Costa Lima, ao aproximar-se de sistemas ou padrões classificatórios,
que ordenam (ou condicionam) culturalmente a percepção dos indivíduos ou grupos num
dado momento, as representações, sociais ou literárias, operam com os chamados “frames”,
entendidos como “topoi semiológicos”. Tais frames seriam configurações culturais, gestuais e
linguísticas vigentes num dado campo social e cultural e que servem como quadros
conceituais e interpretativos. “Portanto, o relacionamento da ficção com o mundo se cumpre
de maneira ternária, sendo os frames os mediadores entre os dois polos”, afirma Costa Lima28.

27
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980, p.72.
28
LIMA, Luiz Costa. A Ficção e o Poema – Antônio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchôa Leite.
São Paulo. 1ª ed. Companhia das Letras, 2012, p.104.
24

Alguns versos de Augusto dos Anjos aproximam-se de frames próprios da estética do


romantismo, assim como, de outras visões de mundo, literárias ou não. Alfredo Bosi29 indica
alguns traços e temas centrais do padrão estético romântico:

O fulcro da visão romântica do mundo é o sujeito. (...) O eu romântico,


objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à
evasão. No tempo, recriando uma Idade Média gótica e embruxada. No
espaço, fugindo para ermas paragens ou para o Oriente Exótico. (...) Prefere
a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na
treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho e a imaginação.
(...) O mundo natural encarna as pressões anímicas. E na poesia ecoam o
tumulto do mar e a placidez do lago, o fragor da tempestade e o silêncio do
ocaso, o ímpeto do vento e a fixidez do céu, o terror do abismo e a
serenidade do monte. (...) Infinito anelo. Nostalgia do que se crê para sempre
perdido. Desejo do que se sabe irrealizável (...) Na ânsia de reconquistar “as
mortas estações” e de reger os tempos futuros, o Romantismo dinamizou
grandes mitos: a nação e o herói.

A poesia de Augusto dos Anjos, em nossa perspectiva, também trabalha com algo
semelhante ao que Gaston Bachelard30 denominou como “operador de imagens”, ou seja,
determinadas palavras ou conceitos que podem se desdobrar em representações literárias ou,
até mesmo, em fecundas metáforas filosóficas. Em vista disso, um primeiro grupo temático
que podemos analisar em sua poesia e que está articulado com os frames da estética
romântica, diz respeito aos operadores de imagens da “pátria” e do “herói”.
Consideremos, como indicativo dessa articulação, o soneto intitulado “Triste
Regresso”31. Esse texto poético não fora colhido em livro, tendo sido publicado apenas no
jornal paraibano O Comércio, em 27 de janeiro de 1901. Para além da idealização da figura
feminina ou da temática sentimental, elementos comuns na estética romântica, entra em cena
outro elemento muito valorizado por esse padrão estético, no caso, o símbolo da “pátria”. Para
efeito de discussão, vejamos esse soneto na íntegra:

Uma vez um poeta, um tresloucado,


Apaixonou-se d‟uma virgem bela;
Vivia alegre o vate apaixonado,
Louco vivia, enamorado dela.

Mas a Pátria chamou-o. Era soldado,


E tinha que deixar p‟ra sempre aquela
Meiga visão, olímpica e singela?!
E partiu, coração amargurado.

29
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.93-95.
30
BACHELARD, Gaston. A Chama de uma Vela. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, 1989. p.09.
31
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.375.
25

Dos canhões ao ribombo, e das metralhas,


Altivo lutador, venceu batalhas,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela,

E voltou, mas a fronte aureolada,


Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da loura virgem bela.

A mulher surge de maneira idealizada, como visto na definição “virgem bela”


enquanto o poeta, preenchido de alegria em face dela, perde um pouco de sua razão por conta
da felicidade que sentia. Todavia, é o símbolo romântico da “pátria” que separa o poeta
enamorado de sua amada, pois ocorre o chamado ao dever cívico de combater numa guerra.
Ao retornar condecorado, a idealização sentimental permanece na medida em que a “virgem
bela” havia morrido, o que tornaria sua beleza imutável por toda a eternidade.
Ainda que Augusto dos Anjos tenha adquirido notoriedade após o “Eu”, publicado em
1912, diversas poesias suas, como o soneto acima, foram publicadas apenas em jornais e
periódicos, não tendo sido incluídas em livro. A busca pelo leitor, além de ser uma demanda
da literatura constitui um aspecto próprio da poesia lírica. Tal como Luiz Costa Lima
sugere32, o empreendimento literário se realiza na medida em que se torna público, ou seja,
em que demanda o leitor como consumidor ativo, assim como, o leitor demanda a literatura.
A contínua publicação de seus textos poéticos ao longo de treze anos pode ser vista como sua
demanda por leitores, reforçando seu compromisso com a literatura.
O “Eu”, de Augusto dos Anjos, publicado no Rio de Janeiro, resultou de pouco mais
de uma década de atividade poética. A primeira publicação do livro não se deu pela acolhida
de uma editora. Foi custeada pelo próprio autor, mediante aquisição de um empréstimo
contraído com um de seus irmãos. Já a segunda edição de 1920, póstuma, visto que o poeta
faleceu em 1914, foi organizada por um amigo de Augusto, Órris Soares, e teve sua tiragem
impressa pela Imprensa Oficial do Estado da Paraíba, órgão no qual Órris trabalhava.
Ainda que a publicação do livro tenha sido relevante na trajetória de Augusto dos
Anjos e na sua inscrição nos jogos do campo literário, seja na Paraíba ou no Rio de Janeiro,
não devemos desconsiderar a função dos jornais, diários ou semanais, juntamente com
periódicos literários mais especializados, que configuravam espaços e veículos nos quais
circulavam os autores e a crítica de textos e livros.
Os espaços de publicação da poesia de Augusto, para além do livro, consistiram,
principalmente, nos jornais paraibanos O Comércio (entre 1901 e 1908) e A União (1909-
32
LIMA, Luiz Costa (Org.). A Literatura e o Leitor: Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro. Editora Paz
e Terra, 2011.
26

1910). Os primeiros agentes que passaram a fazer parte da rede de sociabilidade através da
qual Augusto pretendeu entrar no campo literário eram notoriamente pessoas próximas à ele.
O primeiro jornal pertencia à Arthur Aquiles (1864-1916), o qual era pai de Santos
Neto, amigo de Augusto desde os estudos no Lyceu Paraibano. O segundo jornal consistia no
órgão oficial do governo estadual paraibano. Dois irmãos de Augusto, ele próprio e seu futuro
cunhado trabalharam nesse jornal, o que certamente facilitou a publicação de seus textos.
O jornal O Comércio, por exemplo, publicava, além dos versos de Augusto dos Anjos,
“...poesias de outros autores entre os quais Cruz e Souza, Guerra Junqueiro, Antônio Nobre,
Antero de Quental, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, entre outros.”33. Além dos jornais
já citados, alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos também foram publicados no
Almanak do Estado da Paraíba, logo no início de sua prática com a poesia e, posteriormente,
em 1917, três anos após a sua morte, como espécie de homenagem.
O Almanaque do Estado da Paraíba (cujo nome oficial era Almanak Administrativo,
Mercantil e Industrial do Estado da Paraíba) consistia numa espécie de publicação oficial do
governo desse Estado, sua primeira edição tendo ocorrido em 1898. Conforme Rodrigues e
Silva34, tal publicação contava com seções de notícias, de aspectos históricos, literários e
recreativos. A periodicidade de suas edições posteriores foi inconstante.
A relação entre os jornais e a produção literária, no Brasil e na Paraíba, foi essencial
para a apresentação/circulação de novos textos e autores, contribuindo na consolidação e
autonomização do campo literário.
Cabe ressaltar, no entanto, que o sentido atribuído ao texto considerado “literário”,
incluído em jornais em fins do século XIX, era bastante variável e, vez por outra, não somente
se mesclava com outros gêneros textuais (como a crônica), como também não possuía nem
defendia uma noção tradicional de “autoria” bem definida para cada texto publicado. Socorro
de Fátima Barbosa35 comenta que:

33
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Pequeno Dicionário dos Escritores/Jornalistas da Paraíba do
Século XIX: de Antônio da Fonseca a Assis Chateaubriand. 2009. P.25. Disponível em
<http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo/Pequeno_dic.pdf> Acesso: Mar/2015.
34
RODRIGUES, Melânia Mendonça; SILVA, Vívia Melo da. Anuários e Almanaques: Fontes para a História da
Educação e Organismos Formativos. In: IX SEMINÁRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA,
SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”. Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa. Anais
Eletrônicos ISBN 978-85-7745-551-5. Disponível em:
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/PDFs/8.13.pdf Acesso. Jul/2016.
P.4813.
35
BARBOSA, Socorro de Fátima. O Conceito de Literatura nos Periódicos e Jornais do Século XIX: Um Estudo
dos Jornais Paraibanos. Anais do X Encontro Regional da Abralic. Rio de Janeiro, 2005.
Disponível:http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/estudos/OconceitodeLiteraturanosperiodicosejornaisdos
eculoXIX.pdf. Acesso: Ago/2016. P.06-07.
27

[Em certas publicações], na coluna específica que os jornais chamavam de


Literatura encontramos uma variedade e diversidade de gêneros (...):
Sermão, Biografias, Poemas, Imitação, Crônica, Resenha, Conto, Ensaios,
Cartas, Prefácios, Ditos, Frases e aforismos, além de relatos de viagem. (...)
[O gênero “poema” nos jornais paraibanos de meados do século XIX possuía
em sua maioria] o caráter encomiástico ou didático, [elogiando] aos heróis
da terra, ou se dedicavam a assuntos e conflitos históricos. Sem falar dos
necrológicos e dos poemas de louvor à Virgem Maria (...). No início,
observamos uma tendência forte ao anonimato (...). Escritores e escritoras
(?) se escondiam atrás de pseudônimos – O Justiceiro, Um Paraibano, O
defensor do Povo –, de letras – K, **P, “C” –, e de pontos. Em muitos casos
verificamos até mesmo a total ausência de identificação, colocando em
xeque até a noção romântica de originalidade que circunscrevia o texto à
individualidade e à inspiração do autor.

Nesse sentido, o ingresso de Augusto dos Anjos no campo literário pode ser dividido
em dois momentos: o primeiro, compreendendo sua estadia na Paraíba, englobando toda sua
poesia escrita e publicada entre 1901 e 1910. O segundo momento refere-se à saída da Paraíba
em direção ao Rio de Janeiro e, posteriormente, à Minas Gerais, entre 1910 e 1914.
Durante o período de circulação no campo literário paraibano, Augusto dos Anjos
parece não ter tido que lidar com nenhum agente institucional “impessoal”, que dificultasse
seu ingresso, quer fosse esse agente responsável por uma editora ou por periódicos literários
especializados nos quais tentasse publicar. Houve apenas algumas polêmicas.
Segundo Magalhães Júnior36, em 1901, Augusto envolveu-se numa polêmica com
Eduardo Tapajós (que também colaborava no jornal O Comércio), o qual fez observações
negativas acerca de um dos seus sonetos, intitulado “Pecadora” (cf. p.88 de nosso trabalho).
Em 1905, envolveu-se em nova polêmica ao criticar o livro de Sebastião de Campos,
intitulado “Nuvens Errantes”.
Outro crítico literário, Mendes Freire, em defesa do texto de Sebastião de Campos,
passou a trocar farpas com Augusto através de crônicas mordazes, todas publicadas no jornal
O Comércio. Ao que tudo indica, por volta de 1910, quando contava com 26 anos de idade,
Augusto dos Anjos também não participava de nenhum círculo literário que contasse com
algum escritor de renome nacional ou regional.
Como Luiz Costa Lima37 observou, o círculo de admiradores da poesia de Augusto
deveria ser restrito quase que à suas amizades. Ainda na ótica desse crítico literário, as poesias
que não foram colhidas no “Eu” são textos “fraquíssimos”. Luiz Costa Lima pondera sobre o

36
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 1978. P.31-33/133-135.
37
LIMA, Luiz Costa. Augusto dos Anjos: A Origem como Extravio. In: Matraga: Estudos Linguisticos e
literários. v.21, n.35 (2014). Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/17481
Acesso em: Fev/2016.
28

que poderíamos chamar de terceiro momento de ingresso da poesia de Augusto dos Anjos no
campo literário, marcado pelo progressivo número de estudos críticos que passaram a tomar
seu livro de versos como objeto de análise, estudos esses que foram sendo publicados com
mais frequência a partir do ano de 192838, catorze anos após a morte do poeta, oito anos
depois da publicação da segunda edição do “Eu” e dezesseis anos depois da primeira edição.
Considerando a produção poética de Augusto dos Anjos numa ótica quantitativa,
podemos perceber alguns elementos de sua trajetória no campo literário paraibano. Augusto
publicou 126 poesias no jornal O Comércio (1901-1908), e 21 poesias no jornal A União,
(1909-1910). Nesse recorte temporal, e fora desses espaços de publicação regulares, apenas
um soneto seu fora publicado no Almanak do Estado da Paraíba, quatorze poesias foram
reaproveitadas, em 1912, no “Eu” (três delas publicadas de modo inédito nesse livro) e duas
republicadas após aparição inicial numa revista paraibana intitulada Terra Natal.39
De toda a poesia escrita e publicada por Augusto dos Anjos (quase três centenas de
textos, incluindo os circunstanciais), aquela colhida no livro “Eu” seria um recorte tímido. A
primeira edição de seu livro contava com apenas 56 textos poéticos. Na segunda edição de
1920, foram somadas mais 46 poesias, consideradas, na época, inéditas, ainda que algumas
destas já tivessem sido publicadas anteriormente em jornais e periódicos citados acima.
Analisando esses dados e levando em consideração a afirmação de Luiz Costa Lima de
que os textos poéticos de Augusto dos Anjos não colhidos em livro seriam “fracos”, ou seja,
que teriam uma qualidade estética “menor”, percebemos que seu ingresso e aceitação no
campo literário, em razão da recepção das poesias publicadas no “Eu”, não foi imediato e
consistiu num recorte específico dentro de sua atividade poética.
Nessa compreensão, caso não pareça adequado falar de uma aceitação tardia no campo
literário, talvez possa ser mais pertinente falar de um ingresso irregular, inconstante. Autor de
vários versos, mas apenas de um único livro, após a saída da Paraíba, em 1910, Augusto dos
Anjos viveria apenas mais quatro anos, sem conseguir experimentar de fato o renome como
poeta, salvo pelo contato com as críticas literárias feitas no imediato da publicação do livro.
Visamos inscrever, portanto, nossa análise de suas poesias numa perspectiva
historiográfica na medida em que enxergamos seus versos, sejam aqueles publicados em livro
ou não, como férteis em sentidos históricos. As relações que aproximam a história e a

38
MEDEIROS E ALBUBERQUE. Notas Litterarias. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 30 de Setembro
de 1928, p.02. Esta crítica literária, feita quando da terceira edição do “Eu”, pode ser apontada como uma das
primeiras a esboçar um olhar mais analítico acerca da poesia de Augusto dos Anjos.
39
Após a publicação do “Eu”, alguns poemas de Augusto dos Anjos foram publicados no jornal carioca “A
Época” (31/07/1913 e 17/05/1914), no Almanaque Garnier (edição 09, p.332 e edição 17, p.409). Outros
poemas seriam publicados posteriormente, mas inseridos como objeto de análise em críticas literárias.
29

literatura são fecundas porque as obras literárias funcionam como núcleos geradores de
interpretações e de significados, atribuindo sentidos para épocas e experiências históricas
distintas, idealizando o passado ou o futuro. Como observou Márcia Regina Naxara40:

Tanto na história como na literatura, verificaram-se construções importantes,


no sentido da construção de um passado, ou seja, de uma história da
formação da sociedade brasileira e de suas origens. Definição daquilo que,
no mundo dos eventos, deveria ser retido na memória e articulado para a
obtenção de um sentido explicativo.

É nesse sentido que a aproximação de alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos
com a estética romântica pode ser compreendida. Os elementos desse padrão estético (e de
outros) circulavam no campo literário não como algo desligado dos dilemas políticos e
sociais, mas, ao contrário, propondo outros prismas de interpretação sobre eles.
Ao apropriar-se de aspectos da estética romântica, Augusto dos Anjos aproximou-se
de alguns frames presentes na sociedade, frames esses mais passíveis de serem aceitos por já
circularem em seu campo literário na medida em que colaboravam na construção de uma
identidade nacional republicana.
As poesias de Augusto dos Anjos que dialogam mais fortemente com elementos da
estética romântica também podem ser interpretadas como um tipo de experimentação poética
(seja nos temas e na estética, seja ainda no sentido atribuído ao poético, ao literário), haja
vista que sua estética adquiriria outras características. Nesse sentido, sua prática literária não
se afasta muito do conceito de “mímesis da representação”, elaborado por Luiz Costa Lima41.
Não nos foi possível quantificar ou qualificar de maneira segura o “sucesso” das
poesias de Augusto dos Anjos não colhidas em livro, nem tampouco, avaliar a crítica dos seus
leitores. O único traço com o qual podemos especular, por enquanto, é que se seus textos não
tivessem sido recebidos com o mínimo de positividade, talvez sua colaboração nos jornais O
Comércio/A União, que se estendeu entre 1901-1910, tivesse sido interrompida.
Em nossa perspectiva, a aproximação de Augusto dos Anjos com a poesia, em alguns
textos, consistia numa atividade que pode ser compreendida pelo conceito de “mímesis de
representação”, ou seja, pela apropriação de padrões temáticos e estéticos já prefigurados e
aceitos em seu campo literário e social. Isto o aproximava, também, de questões presentes em
outros campos, como o político, no sentido de que havia a preocupação e o esforço em

40
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido
Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora UNB, 2004, p.115-116.
41
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.170.
30

constituir uma identidade nacional republicana, que se queria distinta do Brasil imperial e
escravocrata que, pelos idos de 1900, já fazia parte de um passado, de certo modo, superado.
Logo, alguns de seus versos operavam com imagens ligadas aos símbolos românticos
mais característicos, tais como a “pátria” e a “nação”, além dos tradicionais elementos dessa
estética (subjetividade excessiva, ermas paragens, escapismo, predileção pelo sonho e pela
noite, sentimentalismo, etc.). Outro poema indicativo desse primeiro conjunto temático
intitula-se “Ave Libertas”42. Nele, vemos versos que operam imagens literárias diretamente
relacionadas aos símbolos românticos citados acima. Essa poesia, que possui como tema
central a Proclamação da República brasileira, foi escrita e publicada no jornal O Comércio na
efeméride do décimo segundo ano após a proclamação, ou seja, em 15 de novembro de 1901:

Ao clarão irial da madrugada,


Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.

É que baqueia a vida escravizada!


Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro
Da república a nova sublimada.

E ali, do despotismo entre os escombros,


Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;

Enquanto fora na trevosa agrura


Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A liberdade assoma majestosa,
– Estrela d‟Alva imaculada e pura!

É livre a Pátria outrora opressa e exangue!


Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.

Não! Que esse ideal puro, risonho,


Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!

Esplende, pois, oh! Redentora d‟alma,


Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.

42
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.401.
31

Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,


Caia do Santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A benção do valor dos vossos filhos!

O eu lírico enaltece os mais sublimes valores republicanos, que não deixam de se


articular aos ideais do romantismo. Isso reforça a associação com o conceito de “mímesis da
representação”, mediante o exercício de uma atividade mimética que leva em consideração
valores já aceitos e prefigurados no campo social e literário. No caso em tela, tais valores são
os ideais do abolicionismo e do republicanismo, tal como visto em seus versos. Conforme
Bosi43, a adoção desses ideais e valores fazia parte do perfil da intelectualidade da época:

O tema da Abolição e, em segundo tempo, o da República serão o fulcro das


opções ideológicas do homem culto brasileiro a partir de 1870. Raras vezes
essas lutas estiveram dissociadas: a posição abolicionista, mas fiel aos
moldes ingleses da monarquia constitucional, encontrou um seguidor no
último grande romântico liberal do século XIX: Joaquim Nabuco [(1849-
1910)]. Mas a norma foi a expansão de uma ideologia que tomava aos
evolucionários as ideias gerais para demolir a tradição escolástica e o
ecletismo de fundo romântico ainda vigente, e pedia à França ou aos Estados
Unidos modelos de um regime democrático.

A Abolição e a República, fenômenos que seriam tomados pelo eu lírico como


“modernos”, como sinais de “progresso”, são identificados com uma série de imagens
luminosas (“Clarão irial da madrugada”, “Luz Auroreada”, “Estrela D‟alva Imaculada e
Pura”, “Luz Etereal”).
Vejamos como o historiador Antônio Luiz Silva Filho44 compreende a relação
dialética entre a luz e seus opostos: “Sem dúvida, a metáfora da luz é uma das mais
recorrentes imagens quando se fala de progresso. A escuridão sugere atraso, retrocesso,
opressão. A luz constitui abrigo da emancipação humana, supressão da autoridade tradicional,
reino da mudança histórica.”
As referências à escravidão operam com imagens que fazem menção à ausência de luz:
a “trevosa agrura” do “servilismo”, o qual sucumbia em face da “Luz que os negrores da
opressão espanca / Essa luz etereal bendita e calma”. Outras considerações acerca dessas
imagens “luminosas” e seus opostos estão presentes em nosso trabalho quando, no primeiro
tópico de nosso segundo capítulo, analisamos, entre outras coisas, a temática da “escuridão” e
da “noite” na poesia de Augusto dos Anjos.

43
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.164.
44
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza. Museu do Ceará /
Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.81.
32

Muitos dos textos poéticos de Augusto dos Anjos, não colhidos em livro, tais como
alguns que temos analisado, se mantêm, em linhas gerais, próximos da estética romântica,
fazendo referência constante aos seus “operadores de imagens” mais comuns (pátria/nação e
herói). Outro soneto que segue nessa direção, que retoma não somente o símbolo da “pátria”,
como opera com a imagem do “exílio”, igualmente cara aos românticos (vide, por exemplo, a
“Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias [1823-1864]) é “Versos d‟um Exilado”45:

Eu vou partir. Na límpida corrente


Rasga o batel o leito d‟água fina
– Albatroz deslizando mansamente
Como se fosse vaporosa Ondina.

Exilado de ti, oh! Pátria! Ausente


Irei cantar a mágoa peregrina
Como canta o pastor a matutina
Trova d‟amor, à luz do sol nascente!

Não mais virei, talvez, e lá sozinho,


Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho,
D‟onde levo comigo a nostalgia

E esta lembrança que hoje me quebranta


E que eu levo hoje como a imagem santa
Dos sonhos todos que já tive um dia!

O afastamento do eu lírico em relação à sua pátria é dramático, gerando um


sentimento de mágoa. A pátria permanece apenas como lembrança solene, alimento primeiro
da nostalgia sentida. Apesar de não ser apresentado o fator motivador do exílio, vê-se que o
ponto principal é reafirmar o papel da “terra natal” como espaço privilegiado, dotado de
“amor” e de imagens luminosas, tais como aquelas atribuídas à proclamação da república no
soneto “Ave Libertas”. A pátria é um lugar onde se realizam sonhos e promessas,
diferentemente das sensibilidades que normalmente são associadas ao emigrante, o qual
busca, justamente afastando-se de sua terra natal, melhores condições de vida em outro país.
Identificadas a presença de alguns “operadores de imagens” derivados da estética
romântica na poesia de Augusto dos Anjos, cabe interrogar alguns dos sentidos históricos
associados à essa apropriação. Nessa perspectiva, não interpretamos sua produção poética
como se esta expressasse em seus versos sensibilidades que são, mecanicamente, atribuídas ao
autor, ao sujeito que os escreveu, o qual as teria vivido efetivamente, como se não houvesse
distâncias entre o autor, enquanto sujeito, e o eu lírico expresso em seus textos.

45
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.404. Publicado no Jornal O Comércio, em 29 de novembro de 1901.
33

Consideramos que os elementos estéticos românticos presentes em muitos de seus


textos poéticos são indiciários de toda uma rede simbólica, presente no campo literário,
cultural e social brasileiro. Tais frames funcionavam como uma espécie de “ambiente”, como
uma “atmosfera” de sua atividade mimética. Esta articulação indica um diálogo entre a poesia
e as dinâmicas do momento histórico, através da “mímesis de representação”.
Augusto dos Anjos privilegia o uso da estética do romantismo em seus primeiros
textos, mesmo que não se prendesse apenas a esse padrão, haja vista que nesse momento já
circulavam outros padrões estéticos no Brasil e com os quais ele também trabalhava. A
apropriação desse padrão estético significa, de maneira mais prática, o reconhecimento da
circulação e aceitação, na cultura letrada de então, de aspectos da sensibilidade romântica.
Portanto, a presença de elementos dessa estética na poesia de Augusto dos Anjos não é
algo fortuito, casual. Nos círculos letrados, nas elites e setores mais privilegiados, os grandes
nomes das artes e da literatura, próprios da dita cultura oitocentista, associadas ao
romantismo, eram facilmente encontrados. No entanto, segundo Jurandir Malerba46

É muito delicado, inclusive, se falar de “cultura nacional” para o Brasil


oitocentista, pois a expressão comporta os principais dilemas de nossa
produção intelectual. Primeiro, porque “cultura”, no sentido oficial da
palavra – enquanto “norma culta” distinta de outra cultura “popular” – era
privilégio de uma minoria ínfima de pessoas ligadas ao poder político e/ou
econômico, num império formado por escravos e homens livres pobres e
analfabetos. (...) Segundo, porque a questão “nacional” é o centro de toda a
preocupação intelectual do período, seja na literatura, na filosofia, nas artes
plásticas ou na música. Era preciso criar, produzir valores e sentimentos que
dessem unidade e identidade a um país que se caracterizava pelo diverso –
diferenças regionais, raciais, de classe, de credo. Acima de tudo, era
fundamental vincar as particularidades que distinguiam o Brasil de seu
antigo colonizador. Na literatura isso significou imbuí-la da tarefa de
“exprimir a realidade nacional manifestando-se como ato de brasilidade.”

Conforme Jurandir Malerba, espalhou-se pela literatura brasileira de fins do século


XIX, principalmente através da estética romântica, os imperativos de exprimir a “verdadeira”
brasilidade, a natureza mais íntima da nação. A presença da estética romântica nos textos de
Augusto dos Anjos também dialogou, mesmo indiretamente, com temas e questões de caráter
nacional (brasilidade, identidade, unidade, entre outros), sobretudo, se considerarmos o peso
do legado cultural produzido e difundido a partir da geração de intelectuais de 1870.
Ainda seguindo os passos de Jurandir Malerba, vemos que a questão cultural no Brasil
pré-republicano, que incluía a literatura/poesia, possuía interesses específicos: “A busca pela

46
MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): Panorama da História do Brasil no Século XIX.
Maringá. Eduem, 1999, p.110.
34

„cultura nacional‟ integrou-se, desde a independência, na luta da classe dominante no sentido


de manter a integridade do Império, que era em si algo estranho em meio às repúblicas
americanas.”47.
A poesia de Augusto dos Anjos, enquanto atividade mimética, leva em consideração
os padrões estéticos já aceitos e vigentes no seu campo artístico e social, tornando mais
compreensível a presença de elementos românticos em seus versos. A estética romântica teria
influenciado sobremaneira a dimensão cultural brasileira e muitos dos agentes de seu campo
intelectual, tanto no auge e desestruturação do Império, como, principalmente, nas primeiras
décadas após a proclamação da República.
Luiz Costa Lima afirma que a atividade mimética dialoga profundamente com as redes
simbólicas e com os sistemas de representação que circulam no mundo social no qual tal
atividade é praticada, mesmo quando estas foram elaboradas em momentos históricos
anteriores. Essas redes simbólicas e esses sistemas representacionais retornam ao mundo
social como “representação literária”, como “atividade literária”, como “obra”.
Os escritores, imersos em seu campo social, entram em contato com toda sorte de
experiências e expectativas, trazendo tais sensibilidades para a obra literária, seja em verso,
seja em prosa. Tais sensibilidades retornam ao campo social traduzidas, refiguradas
literariamente: é mais um movimento dinâmico, interativo, do que apenas a constituição,
através do texto literário, de reflexos passivos e inertes em face de algo tomado ou
considerado como referente, situado para além do texto.
A aceitação de um dado padrão estético, a condenação de outros padrões e temáticas, o
reconhecimento de “novos” escritores pelos “velhos”, ou seja, aqueles já estabelecidos, assim
como, a atribuição de valor às novas obras, integra-se na lógica mais viva do campo social48.
O escritor, em verso ou prosa, seria uma espécie de mediador situado entre o campo
social que habita, apropriando-se das redes simbólicas e sistemas representativos que nele
circulam, manipulando-os e reformulando-os, investindo nesse mesmo campo novos
significados, reintegrando essas sensibilidades no mundo social, através do texto literário.
Procurando estabelecer uma compreensão maior acerca desse “retorno” da mímesis ao
campo social como “obra”, como “mímema”, assim como, visando compreender também o

47
MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): Panorama da História do Brasil no Século XIX.
Maringá. Eduem, 1999, p.111.
48
“...Assim, o sujeito da obra de arte não é nem um artista singular, causa aparente, nem um grupo social (...) mas
o campo de produção artística no seu conjunto (que mantém uma relação de autonomia relativa, maior ou
menor segundo as épocas e as sociedades, com os grupos em que se recrutam os consumidores dos seus
produtos, quer dizer as diferentes fracções da classe dirigente). BOURDIEU, Pierre. Questões de
Sociologia. Lisboa. Editora Fim de Século, 2003, p.221-222.
35

ato que o constitui, Luiz Costa Lima fala em dois tipos de mímesis: a Mímesis da
Representação e a Mímesis da Produção. A atividade mimética de Augusto dos Anjos, em
nossa interpretação, transita entre esses dois conceitos, ou quais, nas palavras de Costa
Lima49, implicam numa relação dinâmica, dialética:

...se a “imitação” é, classicamente, o correlato das representações sociais e se


estas mostram ao indivíduo algo antes de si a que se amolda, de que é um
análogo, algo que não é a realidade, mas uma concepção da realidade. Este
algo antes permanece em vigor mesmo quando o produto mimético valoriza
o oposto do que seria destacável segundo os valores então dominantes. Neste
caso, falar-se-ia (...) em problematização da mímesis, ou, mais propriamente,
em questionamento da mímesis da representação.

Nas primeiras décadas do século XX não havia um único padrão estético em voga no
Brasil, mas correntes literárias não somente orientadas pelos padrões “importados” da Europa,
mas também apropriados aqui de maneira mais autônoma, original. Exemplos disso seriam
alguns escritores brasileiros afinados com o “romantismo”, com o “realismo” e com o
“simbolismo” (ainda abordaremos esses padrões estéticos nas próximas seções).
O que aproxima algumas poesias de Augusto dos Anjos da chamada “Mímesis da
Representação” é, justamente, os modos através dos quais alguns de seus textos poéticos se
manifestam, orientados pelos padrões próprios da estética romântica, já postos em circulação
em seu campo literário e social. Eles são empregados, mas não são colocados em questão.
Sua poesia produz um conjunto de (re)apresentações que dialogam com diversas
normas estéticas do romantismo, normas essas já estabelecidas e aceitas no mundo social e
cultural do leitor e dos demais escritores. Os versos de Augusto dos Anjos, portanto, não
oferecem “a” realidade, como imitação pura e simples, como reflexo passivo ou “maquete” do
real. Seus versos oferecem, sim, um “análogo”, não a realidade em si, mas uma concepção
desta. E esta concepção da realidade em forma de representação literária apresenta ao possível
leitor algo com o qual este já pode ter algum tipo de familiaridade.
O modo como Augusto dos Anjos ingressou e transitou no campo literário na Paraíba
não se afastava muito das redes de sociabilidade nas quais ele participava, seja no campo
social, econômico ou político. Apesar da contínua publicação de seus textos, quase
semanalmente, nos jornais O Comércio e A União, boa parte dessa produção não foi alvo de
maiores estudos críticos, até onde pudemos levantar, nem parece ter lhe rendido notoriedade
como literato. É certo que entre as poesias publicadas entre 1901-1910, já estavam presentes

49
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.169.
36

alguns dos textos pelos quais adquiriria renome, alguns destes posteriormente incluídos na
primeira e na segunda edição do “Eu”, que contava com outras poesias, então inéditas.
Conforme Bourdieu50, os trânsitos e as trajetórias dos agentes no campo (e entre os
campos) ativam capitais possuídos como “herança” ou adquiridos mediante investimento,
tanto escolar, educacional, quanto derivado de algum “talento”. Desse modo, o conceito de
capital extrapola seu sentido econômico, monetário, financeiro. Até mesmo esse tipo de
capital específico seria transformado no que ele chama de “capital simbólico”51.
Para Pierre Bourdieu, é na modernidade que a arte, a literatura e os escritores inserem-
se no chamado “mercado simbólico”. A inserção e a permanência dos escritores e suas obras
no campo literário depende de toda uma rede relacional de reconhecimento e atribuição de
valor, o que envolve tanto o público, quanto os editores, as livrarias e a crítica.
Bourdieu assevera ainda que o campo artístico não configura uma atmosfera
“desinteressada”, “pura”. Os escritores e suas obras, ao entrarem nesse mercado “simbólico”
do que também se chama “bom gosto”, marcam a interação entre os campos e seus agentes
entre si: “...a arte e o consumo artístico estão predispostos a desempenhar, independentemente
de nossa vontade e de nosso saber, uma função social de legitimação das diferenças sociais”,
afirma Bourdieu52. Consumir determinado tipo de arte torna-se traço distintivo de uma classe
(ou setores sociais) que se quer(em) “diferenciado(s)” em relação às demais.
Nesse sentido, a atividade poética de Augusto dos Anjos transfigurava-se como capital
simbólico. Por exemplo, quando participava da organização dos festejos de Nossa Senhora
das Neves, que ocorria na cidade de João Pessoa, então chamada Parahyba, entre os anos de
1908-1910, seu talento com a poesia terminava fomentando oportunidades para criar ou
estreitar vínculos sociais com os mais “ilustres” daquela cidade paraibana.
Conforme relata Humberto Nóbrega53, biógrafo e comentador das poesias de Augusto
dos Anjos, esse festejo era o mais importante do ano daquela cidade paraibana. Mobilizava
toda a comunidade e funcionava não somente como ocasião religiosa, mas também como

50
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação. Campinas. 9ª Ed. Editora Papirus, 2008.
51
Segundo Bourdieu (2008, p.107), “O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de
capital, físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são
tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor. (...) Mais precisamente, é
a forma que todo tipo de capital assume quando é percebido através das categorias de percepção, produtos da
incorporação das divisões ou das oposições inscritas na estrutura e na distribuição desse tipo de capital (como
forte/frágil, grande/pequeno, rico/pobre, culto/inculto,etc.).
52
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo. Edusp; Porto Alegre. Zouk,
2007.p.14.
53
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.45.
37

oportunidade para o estabelecimento de negócios e “vitrine” para os herdeiros, moças e


rapazes “de família”:

Por volta de 1900, o acontecimento religioso e social de maior relevo na


Província era, sem dúvida, a Festa das Neves. O povo se preparava durante o
ano, para viver aquelas dez noites tradicionais. (...) Os festejos se iniciavam
às cinco horas da manhã, e terminavam, praticamente, na madrugada
subsequente. (...) os jornais se enchiam de reclames. Casas comerciais a
anunciar a renovação de seus sortimentos. E como os chapéus eram de palha
da Itália; as meias, da Escócia; os calçados, de Viena; a seda, do Porto; o
figurino, parisiense – tudo importado – aqueles anúncios davam o câmbio da
transação. Os artistas também ocupavam as seções pagas das gazetas.

Humberto Nóbrega descreve com detalhes (deixando transparecer certo saudosismo)


as roupas das moças e rapazes, inclusive ilustrando sua narrativa com fotografias. Luvas,
vestidos longos, bordados, rendas e chapéus refinados compunham o figurino feminino. As
moças “de família” desfilavam seus trajes num baile, na “Noite das Moças”54. Os homens, por
sua vez, apelidados de “Smarts”, também tinham seu figurino próprio: fraque, sobrecasaca,
gravatas, cartolas e bengalas. Ainda conforme Nóbrega55, em 1908, o festejo ocupava, entre
outras ruas da cidade, todo o espaço da Avenida General Osório, em João Pessoa.
No campo, como bem observou Bourdieu, os capitais (herdados ou adquiridos)
tornam-se simbólicos. Não custa muito imaginarmos que o festejo das Neves podia ser
considerado uma ocasião na qual os agentes no campo exibiam, cada qual, o capital simbólico
de que dispunham, cada um visando distinguir-se dos demais56 e figurar entre seus “iguais”.
Ainda conforme Nóbrega57 os jornais da cidade abriam espaço em suas páginas para
que fossem publicadas notícias acerca do referido festejo. No entanto, essa prática feita por
jornais como “A Gazeta do Comércio”, propriedade de Manoel Henrique de Sá, e pelo jornal
“O Comércio”, de Arthur Aquiles, (no qual Augusto publicou praticamente todos os textos até
1908, quando este fecharia suas portas) foi interrompida em 1907.

54
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.47.
55
NÓBREGA, 2012, p.53.
56
“Portanto, nada há o que distinga tão rigorosamente as diferentes classes quanto à disposição
objetivamente exigida pelo consumo legítimo das obras legítimas, a aptidão para adotar um ponto de
vista propriamente estético a respeito de objetos já constituídos esteticamente (...) ou aplicar os
princípios de uma estética “pura‟ nas escolhas mais comuns da existência comum, por exemplo, em
matéria de cardápio, vestuário ou decoração de casa.” BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social
do Julgamento. São Paulo. Edusp; Porto Alegre. Zouk, 2007, p.42.
57
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. (Orgs. ARAGÃO, Maria do Socorro; SANTOS,
Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;). João Pessoa. 2ª Edição. Editora
Universitária/UFPB, 2012, p.57.
38

Em face disso, a organização do festejo decidiu editar um jornalzinho, intitulado


NONEVAR, que circulava durante os dias de festa. Augusto dos Anjos parece ter encontrado
aí a oportunidade de reforçar suas redes de sociabilidade elaborando uma série de textos
poéticos, denominados “perfis chaleiras”, dedicando pequenas poesias à algumas pessoas de
seu círculo social. Além desses “perfis poéticos”, Augusto dos Anjos elaborou, também, uma
série de quadras comerciais, para fazer propaganda dos principais estabelecimentos
patrocinadores do festejo.
Nesses perfis poéticos circunstanciais, as qualidades físicas e os dotes estéticos e
intelectuais de moças e rapazes integrantes de seu circulo de amizades eram enaltecidos.
Augusto dos Anjos e os demais colaboradores desse jornalzinho trocavam poesias entre si,
utilizando-se de pseudônimos.
Muitas das atividades relacionadas a esse festejo pareciam representar, em certo
sentido, as mudanças sociais então vigentes: de um lado, comerciantes, negociantes e suas
famílias, mostrando o poder simbólico do capital financeiro, e, de outro, os herdeiros do poder
tradicional, os filhos nascidos em engenhos, ou herdeiros dos senhores de engenhos que
souberam ler o sentido das mudanças e acompanhar esse processo, transformando suas
propriedades em usinas mais “modernas”, além, é claro, dos herdeiros de famílias em
decadência em busca de novo status, como era o caso da família de Augusto dos Anjos.
Com tais informações, ressaltamos que o ingresso e o trânsito de Augusto dos Anjos
no campo literário foram irregulares. Apesar de publicar com frequência, os espaços de
publicação eram muito familiares à ele, o que deve ter facilitado sobremaneira a continuidade
dessas publicações. Augusto dos Anjos não manteve laços com grandes escritores de renome
nacional, não participando, assim, de grandes círculos literários. Além disso, não obteve
imediato reconhecimento de sua atividade como poeta, não tendo chegado nem perto de
sobreviver apenas com o que ganhava com sua atividade literária.
Até 1910, os jornais eram majoritariamente os únicos espaços para publicação de sua
poesia. Esse ano marca, também, o último de sua estadia na Paraíba. Nesse mesmo ano, o
poeta e a esposa mudaram para a cidade do Rio de Janeiro. O livro “Eu” lhe rendeu renome
ambivalente, no imediato da publicação. Além disso, a elaboração de tal livro não figurou
desde sempre como projeto a ser realizado.
A primeira menção ao livro58 ocorre somente em abril de 1912, já na cidade carioca,
quando de uma carta do poeta endereçada à sua mãe, que continuava morando na Paraíba.

58
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.734.
39

Outras duas cartas59, em maio e junho do mesmo ano, para a mesma destinatária, também
indicam o livro como um projeto em vias de se realizar.
Para efeito de discussão, vejamos alguns aspectos relacionados ao ingresso da poesia
de Augusto dos Anjos no campo literário, agora em forma de livro, a partir da leitura de
algumas as críticas literárias imediatas ao ato de publicação. O poeta parecia acompanhar com
interesse a repercussão da publicação do “Eu”, referindo-se à recepção da crítica em suas
correspondências familiares60, destinadas à sua mãe e à sua irmã, enviando, quando possível,
cópias das críticas ao seu livro. Este, conforme registra o poeta em carta61, fora incluído na
biblioteca da “Academia Nacional de Medicina (...) por tratar do haeckelianismo e do
evolucionismo spenceriano.”, tendências que marcavam o cientificismo da época.
Ao analisarmos a crítica feita no semanário Fon Fon62, um dos periódicos mais
emblemáticos da modernidade carioca, podemos ter uma ideia aproximada da recepção
imediata em relação ao seu livro, que fora publicado nos primeiros dias do mês de junho de
1912. Numa seção intitulada “O Momento Literário”, escrita pelo articulista Mário
Pederneiras, identificado apenas como M.P., encontramos as seguintes impressões:

<<EU>> - livro de estréa do poeta Augusto dos Anjos, merece mais do que
uma simples nota rapida de impressões e de agradecimento.
É um livro extranho, cheio de altos e baixos, com um certo abuso exagerado
na exhibição de conhecimentos scientíficos, no uso dispensável de termos de
sciencia. A par disso tudo, entretanto, tem bellezas intensas e por todo elle
vibra uma encantadora nota de originalidade, que dá ao livro uma impressão
própria, individual, cousas que andam a faltar em muita producção
consagrada e applaudida (...)
Há nesse <<EU>> extranho um modo de sentir e de impressionar bem
diverso do comum (...)
Não lhe cabe decerto, a classificação entre os Poetas Macabros porque sua
emoção se ás vezes camba para os exaggeros desordenados dessa especie
litterária (...) outras vezes é de uma delicadeza que só pode ser attingida
pelos temperamentos de escol. (...)
O abuso do scientismo é uma influência que ha de passar no Poeta e livre
desse exaggero e encarando o Verso na sua perfeita funcção emotiva,
Augusto dos Anjos há de dar-nos outro livro independente, forte,
aproveitadas todas as incontestáveis qualidades que possue (...)

Com base nas impressões do articulista, vemos caracterizada a estética que marca os
poemas selecionados para compor o “Eu”: uso do jargão cientificista e a inclusão de seus
versos entre aqueles produzidos pelos chamados “poetas macabros”. Essas características não

59
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.735.
60
ANJOS, 1994, p.736/739.
61
Idem, Ibidem, p.737.
62
PEDERNEIRAS, Mário. O Momento Literário In: FON FON, 1912, p.23.
40

são as únicas, na medida em que, como já analisamos, havia outras apropriações estéticas
naqueles poemas que não fizeram parte do livro, principalmente do romantismo. Para o
articulista, chama atenção a “...grande força de originalidade e merito, que mais augmentarão
quando o poeta se libertar da compreensão scientífica [dando ao verso] toda a sua original e
bizarra concepção de Arte”63.
A publicação do livro de Augusto dos Anjos gerou na crítica literária reações
ambivalentes. No jornal carioca Gazeta de Notícias64, de 14 de junho de 1912, na seção “O
Livro do Dia”, o articulista Nazareth Menezes fez uma resenha do “Eu”:

O volume [do livro de versos de Augusto] revela, sem dúvida, a existência


de um robusto talento, de um poeta correcto, cultivador da forma e que sabe
fazer o verso sonoro e cantante. (...) Infelizmente, as demais poesias do poeta
não imitam essa sonoridade, envolvendo a pureza philosóphica de uma idéa
tão perfeita, tão justamente elevada e frisante. (...) [para além disso,] (...) é
um amontoado de palavras difíceis e nada mais.

Nesse sentido, vemos uma recepção por parte da crítica que, embora reconheça certo
talento nos versos publicados, os classifica de modo não tão positivo, sobretudo, pelo uso
exagerado de termos técnicos e cientificistas. Essa ambivalência pode ser percebida, por
exemplo, em mais duas críticas literárias, publicadas, respectivamente, nos jornais Diário de
Notícias65, em 16 de julho de 1912 e, mais uma vez, na Gazeta de Notícias. Na primeira
crítica, assinada por Hermes Fonseca, lemos:

No livro Eu, de Augusto dos Anjos, há muitas coisas que me desagradam, já


pela monotonia das ideias e de módulos, já pela insistência em certos
assuntos que perdem o condão de agradar e surpreender quando insistentes e
crebros, já porque o ilustre poeta forceja por unificar os pontos de vista e os
processos de sua arte, o que aliás, consegue, mas sem sutileza, sem essa
finura de exterioridades que é, sem dúvida, um elemento notável da arte. (...)
Assim, o livro de Augusto dos Anjos depende de muitas leituras. A primeira
estonteia, a segunda entusiasma, a terceira sensaciona, a quarta encanta e
conduz, não raro, à lagrima e ao êxtase. E, ainda, as coisas extravagantes e
disparatadas, adquirem forças novas, relâmpagos que nos haviam passado às
vistas deslumbradas e obnubiladas.

Para encerrarmos o presente tópico, vejamos algumas passagens de outras críticas


literárias. Uma delas, publicada na “Gazeta de Notícias”66, no dia 7 de Agosto de 1912,
assinada por Pereira da Silva, intitula-se “A Poesia e a Poética de Augusto dos Anjos”:

63
PEDERNEIRAS, Mário. O Momento Literário In:FON FON, 1912, p.23.
64
MENEZES, Nazareth. O Livro do dia In: Gazeta de Notícias, 1912, p.04
65
Diário de Notícias In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro.
Editora Nova Aguilar, 1994, p.49-50.
66
SILVA, Pereira. A Poesia e a Poética de Augusto dos Anjos In: Gazeta de Notícias, 1912, p.03.
41

[após informar que recebera de Augusto uma edição de seu livro, o crítico
diz:] A sua poética! É Ella, sem duvida, muito pessoal. Chega a ser mesmo
extravagante, exquisita, exdrúxula. É nessas qualidades excessivas,
classificadas por outros de defeitos, que se encontra, no entanto, a profunda
sinceridade do poeta complexo que é o Sr. Augusto dos Anjos. É impossível
acompanhá-lo nas suas cogitações, nas suas dúvidas, em todo o desespero
incontido de suas estrophes, por vezes antes de philósopho que de poeta, sem
sentir para logo o muito que há, nesse poeta, de intensa angústia inédita e
incontida – resultante lógica de uma concepção philosóphica um tanto
pessimista. (...) O Sr. Augusto dos Anjos, se não fosse fundamentalmente
poeta, não teria conseguido com sua téchnica scientífica os effeitos
emocionaes que dão a seu livro uma originalidade extravagante, mas
incontestavelmente esthética.

Outra crítica literária é publicada no jornal carioca “A Época”67, em 06 de outubro de


1912, assinada por José Oiticica. Em sua avaliação o crítico sublinha as relações entre poesia,
ciência e filosofia e, até mesmo, com religiões orientais:

Na geração recente, Augusto dos Anjos aparece como um decizivo


pesquizador de novos moldes na interpretação do mundo, denotando um
poder significativo de expressão e uma sensibilidade notavel. (...)
Tem, assim, a qualidade essencial ao poeta novo; – áqueles que entram no
rumo da arte universal, afastados do racionalismo de fancaria e ainda mais
do indianismo tacanho de um Gonçalves Dias; áqueles que fazem da forma,
não o fim da arte, mas o meio de revigorar e colorir a Idea. (...)
O espírito de Augusto dos Anjos é pois universal, abranje tudo, excava todos
os compartimentos da filosofia, apanha as formulas e os fenômenos fazendo
resaltar deles o brilho estético e emotivo. (...)
Mas, como a do budismo, a sua filozofia é ultra-pessimista. E para mim é um
grande defeito. (...)
Será possível que o poeta não veja no mundo sinão a dor, a podridão, os
intestinos e os vermes? (...)
O vocabulário técnico é por vezes rebarbativo. (...)
Evite o poeta esses graves defeitos, varie o metro, os modelos artísticos,
alargue o ambito espiritual, deixe o pessimismo doentio e insincero, entre na
larga via, reformadora e o Brazil se gloriará de mais um poeta de talento,
superior ao seu meio social e digno da sua formidável Natureza.
O Eu vale por uma promessa respeitável.

Não discutiremos as particularidades que marcam a crítica literária enquanto gênero


textual e suas abordagens quanto à questão da relação entre os “autores” e seus textos.
Contudo, pelas impressões apontadas nos parágrafos precedentes, a recepção inconstante de
seu livro reforça nossa compreensão de que o ingresso de Augusto dos Anjos no campo
literário, menos do que tardio, fora ambivalente. Mesmo marcando presença contínua no
campo literário, mediante a publicação de seus versos em jornais paraibanos, o poeta registra

67
OITICICA, José. A Poesia dos Novos. In: A Época, 06 de Outubro de 1912, p.07.
42

em carta destinada à sua irmã68, a ausência, na imprensa paraibana, de qualquer apreciação


crítica de seu livro de versos recém publicado.
Acreditamos ter conseguido explicitar alguns dos elementos da temporalidade
moderna que se encontram presentes na poesia de Augusto dos Anjos, a partir da análise de
sua inserção no campo literário, procurando identificar, em suas temáticas e em sua estética,
indícios das redes de historicidade nas quais se envolveu, entre os quais, e inicialmente,
resquícios da estética do romantismo.
Antes de prosseguirmos, uma observação se faz necessária. Nosso contato com alguns
pressupostos do pensamento de Pierre Bourdieu pode parecer tangente, na medida em que não
é tão fácil situar as posições ocupadas (e pretendidas) por Augusto dos Anjos no campo
literário. Em nossa ótica, isto se explica, precisamente pelo ingresso irregular do poeta no
campo. Este ingresso, por paradoxal que pareça, não se resume às publicações do poeta em
vida, seja em jornais, seja em livro, mas se complementa com a recepção e revisão crítica da
atividade literária do poeta após a sua morte.
É considerando esse cenário que embasamos nossa afirmação de que seu ingresso no
campo literário foi mais irregular, ambivalente, do que, necessariamente tardio. O poeta não
demorou a escrever nem à publicar seus textos, tendo dedicado aproximadamente 11 anos de
sua vida publicando continuamente, quase diariamente.
Apesar disso, não obteve um reconhecimento essencialmente positivo de seus pares,
nem da crítica ou dos leitores. Com a publicação do livro, há uma recepção imediata, mais
palpável, porém, ambivalente, apontada alguns parágrafos atrás. É somente após sua morte
que seu ingresso no campo literário se completa, ocorrendo, por fim, a atribuição de valor e o
reconhecimento da relevância de sua poesia. Dessa forma, é um ingresso no campo literário
que começa em vida, de modo ambivalente, mas que é finalizado após a morte.
Nas próximas seções, analisaremos outros elementos estéticos do romantismo, a
circulação de outros padrões, como o simbolismo, o parnasianismo, o realismo-naturalismo,
tanto no Brasil, quanto na Europa, além das tentativas de criação de uma estética literária
chamada “poesia científica”. Em contato com essas dimensões, problematizaremos como sua
atividade mimética era trespassada por diversos aspectos presentes em seu momento histórico.

68
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.779.
43

2.2 A Temporalidade Moderna

Um dos desafios para os teóricos e estudiosos do fenômeno da modernidade é


conseguir conceituá-lo e analisá-lo captando com propriedade algumas de suas principais
particularidades. Intrínsecas à ideia de modernidade estão, por exemplo, a noção de um
“tempo novo”, englobando também a noção de “aceleração”.
Para nos aproximarmos um pouco dessas questões, trazemos à baila algumas
observações a partir de um diálogo com Reinhart Koselleck (1923-2006) e Marshal Berman
(1940-2013). Cada um desses dois autores propuseram modos específicos para
compreendermos a modernidade e seus sentidos históricos.
Historiador dos conceitos e da semântica da temporalidade, Koselleck69 associa o
conceito de modernidade ao de “movimento”, assim como, ao de “aceleração”. Conforme
esse autor, a emergência de conceitos no seio mesmo da prática histórico-social é muito mais
do que um fenômeno linguístico. A formação e a circulação de conceitos não deixa de ser
uma sintoma e, ao mesmo tempo, um diagnóstico de um complexo de mudanças e
transformações ocorridas nas experiências históricas, em suas mais variadas dimensões:

Como realizações lingüísticas, os conceitos em que as experiências são


reunidas e as expectativas enfeixadas não são meros epifenômenos da assim
chamada história real. Os conceitos históricos, sobretudo os políticos e
sociais, foram cunhados para apreender os elementos e as forças da história.
É isto que os caracteriza dentro de uma linguagem. Mas, em virtude da
diferença que destacamos, eles possuem um modo de ser próprio, a partir do
qual influem sobre as diversas situações e acontecimentos, os a elas reagem.

Desse modo, quando o termo “modernidade” e seus afiliados (progresso, evolução,


etc.) são cunhados na linguagem, eles estão muito além de um fenômeno linguístico isolado
do campo social. Pelo contrário: como conceito, ele traduz, (res)significa e influencia as mais
diversas formas de experiência histórica, independentemente do lugar e da época, posto que
os conceitos são apropriados não somente em seu momento inicial de emergência, podendo,
inclusive, serem ampliados, englobando outras características, ou mesmo sendo distorcidos.
A mediação da experiência histórica pelas palavras e pelos conceitos pode ser
considerada como uma práxis na construção da vida social, tanto quanto o trabalho, entendido
como transformação da materialidade circundante. A criação de conceitos não somente leva
em consideração as vivências históricas, suas transformações e realizações, como também

69
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006, p.268.
44

eleva o nível das discussões em si, na medida em que o fenômeno/experiência que o conceito
define e ilumina se torna mais abstrato.
As experiências outrora vividas no período da sociedade feudal promoviam um olhar
para o passado que o definia como o momento em que a “promessa” havia sido feita. Entendia
o presente, por sua vez, como uma caminhada paulatina (uma peregrinação, como diria Santo
Agostinho) em direção à “Cidade de Deus”.
O futuro seria tomado como o momento em que a promessa seria cumprida.
Entretanto, na experiência da temporalidade moderna, o passado já teria “cumprido” seu papel
histórico, sendo substituído por um presente “melhor”. E o futuro, espécie de “novo presente”,
seria, nessa compreensão, um tipo de aperfeiçoamento contínuo da experiência vivida: um
futuro renovado continuamente no presente. Koselleck70 afirma ainda que:

No âmbito dessa experiência de surpresa permanente, que começava então a


impor-se, o tempo foi modificando em etapas o sentido quotidiano do seu
fluxo, ou do ciclo natural dentro do qual as histórias acontecem. Agora,
mesmo o próprio tempo podia ser interpretado como novo, pois o futuro
trazia outro futuro, e isto mais depressa do que parecia possível.

Nosso intuito aqui não é o de esmiuçar o percurso analítico de Koselleck na


composição de suas reflexões críticas às relações estabelecidas entre movimento/mudança,
aceleração e a ideia de modernidade, mas sublinhar que tais noções, através das mais variadas
formulações e apropriações, passaram a introjetar na experiência “moderna” do tempo a
perspectiva da novidade permanente, a qual seria sempre positiva, mesmo que imprevisível.
O presente, na lógica da modernidade, seria melhor do que o passado. E o futuro seria
um novo presente, ainda melhor. Não por acaso, no jargão “moderno”, termos como
mudança, movimento, progresso e até evolução/revolução, são constantemente utilizados e
associados com elementos, em sua maioria, positivos (o “progresso” é melhor, a “evolução” é
melhor, a “mudança” será para melhor, etc.). Disto resultaria o otimismo da modernidade.
Marshall Berman, teórico e estudioso do fenômeno histórico da modernidade, tal
como Koselleck, identifica a modernidade não somente como um tempo (do) novo, mas como
uma época ou fenômeno inconstante, instável. O “novo”, ao tomar espaço no campo das
experiências históricas, ocuparia o lugar de algo já estabelecido, nem sempre preservando-o.
Segundo Berman71

70
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.290.
71
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007. p.158.
45

Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e


o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao “modernismo”, encarado como
uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos
artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da
“modernização”, um complexo de estruturas e processos materiais –
políticos, econômicos, sociais – que, em princípio, uma vez encetados, se
desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos
espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura
contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da
vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a
interdependência entre o indivíduo e o ambiente.

A poesia de Augusto dos Anjos insere-se nessa discussão. Elabora um conjunto


diverso de imagens que podem funcionar como um prisma de interpretação acerca das
experiências modernas. Aproxima-se dessa noção de “fusão”, citada por Berman, das forças
materiais e espirituais. Alguns elementos dessa “fusão” serão indicados nessa seção; outros
serão apresentados mais adiante, em nosso quinto e sexto capítulos.
Berman utiliza largamente a obra de literatos tais como Baudelaire, Goethe,
Dostoiéviski, entre outros teóricos, como matéria de análise. Em suas reflexões, há a
utilização de três conceitos (modernidade, modernização e modernismo) os quais são
extremamente comuns nessa discussão acerca do fenômeno moderno, mesmo que cada um
dos três traga consigo uma profunda complexidade.
Sua perspectiva se soma aos elementos que colhemos da análise de Koselleck, e nos
permite afirmar que o tempo (do) novo é também um tempo tenso, contraditório, paradoxal,
que não somente pode nos oferecer aventuras e experiências fascinantes, positivas, mas
também pode nos privar de algo e, até mesmo, nos anular nesse movimento.
No bojo dessas transformações, os sujeitos históricos agem e sofrem as intempéries
das práticas, dos discursos e representações modernas. Assim, procuram adotar
comportamentos condizentes com o ritmo dessas mudanças. Essa adoção nem sempre será
exitosa; por vezes, será quase inalcançável. Para Berman72, o modernismo seria:

... qualquer tentativa feita por homens e mulheres modernos no sentido de se


tornarem não apenas objetos, mas sujeitos da modernização, de apreenderem
o mundo moderno e se sentirem em casa nele. (...) Se encararmos o
modernismo como um empreendimento cujo objetivo é fazer com que nos
sintamos em casa num mundo constantemente em mudança, nos damos
conta que nenhuma modalidade de modernismo jamais poderá ser definitiva.
Nossas construções e realizações mais criativas estão fadadas a se
transformarem em prisões e sepulcros caiados; para que a vida possa
continuar, nós ou nossos filhos teremos de escapar delas ou então
transformá-las.

72
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007, p.12/25-26.
46

Nesse sentido, a modernidade gestada na Europa Ocidental, e que progressivamente


tentava se espalhar por todo o globo terrestre (enfrentando tensões e/ou resistências), não se
configura como um momento utópico, de realização plena de um tempo (do) novo, de um
presente/futuro qualitativamente melhor, capaz de satisfazer todos os desejos de todos sujeitos
históricos que o experimentam/experimentaram. Tal como outros momentos históricos, o
fenômeno moderno também apresentava suas contradições internas, seus paradoxos.
Em meio à esse ímpeto “modernizante”, era exigido dos sujeitos históricos – como
sugere Marshall Berman – a adoção de certos comportamentos, de um tipo de “modernismo”,
ou seja, o exercício de práticas condizentes com esses novos tempos continuamente
emergentes. Entretanto, nem todos conseguiram ou possuíam as condições para se adaptar.
Além dessas características apontadas por Berman, lembremos ainda que Koselleck73
compreende a questão da modernidade como um tempo dotado de um ritmo cada vez mais
“acelerado”: “Minha tese será que a aceleração corresponde a uma desnaturalização da
experiência temporal que se conhecia até então. Ela é um indicador de uma história
especificamente moderna.”. O tempo moderno não é mais o das estações ou do ciclo dia/noite.
A poesia de Augusto dos Anjos aproxima-se dessas questões. Percebe a presença do
cientificismo e a celeridade das transformações, inclusive nas relações amorosas e íntimas.
Por um lado, retira da natureza seu tom idílico. Por outro lado, subordina a natureza à ciência.
Vemos aí traços iniciais da fusão indicada por Berman entre o “material” e o “espiritual”.
Apesar de ter escrito aproximadamente mais de uma centena de textos poéticos,
apenas algumas dezenas destes foram selecionados por Augusto para compor seu único livro
publicado em vida, o “Eu”. Como já indicado, grande parte da notoriedade e do
reconhecimento que suas poesias receberam ocorreram após a morte do poeta, em 1914.
Na seção anterior, sugerimos que alguns textos de Augusto dos Anjos podem ser
interpretados à luz do conceito de “mímesis da representação” o qual, em certo sentido,
pressupõe que a atividade mimética leva em consideração certos elementos já dispostos e
prefigurados no meio social. Desse modo, a atividade mimética atua a partir de um vetor
pautado pela noção de “semelhança”. Isto significa que, ao levar em consideração tais valores
já aceitos e em circulação, o mímema representaria algo semelhante ao já conhecido.
Por outro lado, quando essa atividade literária, mimética, coloca certos temas em
questão, ocorreria aquilo que Costa Lima denominou “mímesis da produção”. Nesse caso, o

73
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014, p.142.
47

vetor presente na atividade mimética já não é mais o da “semelhança”, mas o da “diferença”.


Vejamos o que nos diz Luiz Costa Lima74:

[Quando] (...) a mímesis parte da destruição daquele substrato, radicaliza seu


trabalho no sentido de despojar-se ao máximo dos valores sociais e da
maneira como eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade, já
não poderemos falar numa mesma mímesis da representação. E isso equivale
a dizer que o ato mimético já não pode ser interpretado como o correlato a
uma visão anteriormente estabelecida da realidade. (...) Para que o produto
que não segue os parâmetros da mímesis da representação – que não se apóia
ou apenas minimamente em algum dado externo – possa despertar uma
significação é preciso que o receptor apreenda seu significado pela análise de
sua produção.

Ambas as formas de mímesis são plausíveis. O que as distingue são seus vetores. No
caso da “mímesis da representação”, a familiaridade do receptor é maior, dada a semelhança
com aquilo que se toma como referente, enquanto que na “mímesis da produção”, prevalece a
diferença em relação àquilo que atua como referente. O receptor/leitor, então, decifra essa
diferença ao compreender sua “produção”. Para Costa Lima75, ocorreria um “...alargamento
do real, a partir mesmo de seu déficit anterior”. O receptor não entra em contato com o já
conhecido, mas com uma representação distinta de algo tomado como referente/real.
Como mostramos, houve um diálogo, pautado pelo vetor da “semelhança”, de algumas
poesias de Augusto dos Anjos com elementos da estética romântica. Todavia, sua poesia
também dialoga com outras dimensões e aspectos de seu momento histórico. Por exemplo,
mesmo que o romantismo ainda tivesse certa influência na virada para o século XX, outros
padrões estéticos e tendências de pensamento também marcavam sua presença.
Uma dessas tendências, que se convencionou denominar “cientificismo”, pode ser
encarada como espécie de vulgata da filosofia de Auguste Comte (1798-1857) e de certos
elementos do darwinismo, sendo difundido por alguns autores que ecoaram nos versos de
Augusto dos Anjos. Sobre a força da influência do pensamento positivista nos setores
intelectuais brasileiros, Márcia Sabino76 nos diz ainda que:

No Brasil, o positivismo foi especialmente importante, servindo de base


teórica para a implantação da República – é significativa a divisa Ordem e
Progresso, da bandeira nacional. Sua ação foi preponderante na renovação
das ideias filosóficas nacionais, contrapondo-se a posições filosóficas de
base espiritualista. A Escola de Recife, cuja trajetória iniciou-se em fins da

74
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.169-170.
75
LIMA, 1980, p.170.
76
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2006, p.19.
48

década de 60, no século XIX, permaneceu existindo até 1914, quando


ocorreu seu declínio; a partir de então, seus adeptos seriam apenas
remanescentes.

Cabe lembrar que na experiência histórica de Augusto dos Anjos, sua formação
cultural e educacional lhe dava certo capital simbólico para circular no campo social e tentar
entrar no campo literário. Deduzimos isto levando em conta tanto seus estudos com seu pai,
no engenho onde moravam, assim como, sua passagem pelo Lyceu Paraibano (1901-1904),
em João Pessoa, e, posteriormente, pela Faculdade de Direito, em Recife, no período de 1904
à 1907, onde bacharelou-se como advogado.
Nesse movimento, a poesia de Augusto dos Anjos não eliminou a utilização de
elementos derivados da estética romântica. Em meio à todo um complexo de práticas e
discursos vigentes no Brasil nos primeiros anos do século XX, sua poesia se apropriou dos
ideais e conceitos derivados da ciência, cujos postulados eram entendidos como
potencialmente positivos. Apropriou-se, também, de outros padrões estéticos, como o
Parnasianismo e o Simbolismo. Daí, as múltiplas interpretações possíveis e já estabelecidas
acerca de sua poesia. Tais apropriações proporcionaram diversos meios de expressão poética.
Márcia Regina Naxara observou como e em que medida todo um conjunto de
sensibilidades românticas se aliaram fortemente com alguns dos pressupostos do que se pode
chamar de pensamento cientificista. É possível verificar, na cultura letrada brasileira ao longo
do século XIX, um esforço conjunto que visava estabelecer uma compreensão da nação
brasileira, de suas origens e de seus horizontes. Buscava-se, segundo Naxara, formular uma
identidade que oferecesse um sentido explicativo plausível para o Brasil. Este, por sua própria
configuração histórica, apresentava-se heterogêneo, tanto numa perspectiva política, quanto
social, religiosa, étnica, etc. Disto derivaria essa aliança entre a intuição romântica e as teses
científicas, cientificistas e filosóficas da época. Conforme Naxara77, para forjar essa
identidade nacional

[combinaram] Dois mitos (...) importantes (...) para o estabelecimento das


origens e da identidade [do Brasil] no século XIX: o das três raças
formadoras da nacionalidade (o mestiçamento de brancos, negros e índios); e
o de um passado ancestral mítico idealizado na figura do índio, que se
misturando ao português teria formado a nova nacionalidade, com a exclusão
do negro no plano ideal, e que caracterizou o pensamento indianista
romântico (...) Em ambos, também, está presente a ideia de encontrar
formulações que escapassem ao enfrentamento com relação à escravidão.

77
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido
Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora UNB, 2004, p.116.
49

A poesia de Augusto dos Anjos inscreve-se nesse movimento, interagindo com essa
ambivalência, aproximando-se, paradoxalmente, pelo vetor da “semelhança”, como também,
pelo vetor da “diferença”, tanto da estética romântica, quanto de outros padrões estéticos em
voga, sobretudo, ao entrar em contato com o pensamento cientificista.
Nesse sentido, elaborava-se com a associação entre elementos românticos e
cientificistas, uma espécie de aliança entre a intuição subjetiva e a racionalidade objetiva. De
certo modo, isso está subtendido na dupla mitologia, centrada na fusão harmônica das “três
raças” e na idealização do “índio”. Através destes pilares, tentava-se fundamentar a identidade
brasileira na virada do século XIX para o século XX78.
Essa aproximação entre a intuição romântica e os louvores ao pensamento científico
pode ser verificada em outro soneto de Augusto dos Anjos, intitulado “A Aeronave”, o qual
tematiza à presença da técnica, da ciência, que marcava inúmeros aspectos da vida em
sociedade na virada do século XIX para o século XX. Esse soneto demonstra um misto de
intuição subjetiva (comum à sensibilidade romântica) com o reconhecimento incipiente da
ciência como portadora de valores objetivos e positivos, traduzindo-se como
confiança/esperança investida no progresso científico. Vejamos esse soneto de Augusto79:

Cindindo a vastidão do Azul profundo,


Sulcando o espaço, devassando a terra,
A aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera


Ei-la embalada n‟amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares,
Vencendo o azul que ante si s‟erguera.

Voa, se eleva em busca do Infinito,


É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.

Cheia de luz do cintilar de um astro,


Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

78
“Foram elaboradas “Representações que se interpenetram, em especial se considerarmos o momento de sua
formulação: momento de valorização da crença no progresso, mesmo quando tomando nuances diferenciadas,
nas teorias e doutrinas raciais; na influência do meio na formação dos povos; na evolução linear do mundo e no
crescente desenvolvimento em direção à civilização”. NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e
Sensibilidades Românticas: Em Busca do Sentido Explicativo para o Brasil no Século XIX. Brasília. Editora
UNB, 2004. p.116.
79
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar,
1994, p.398.
50

A ciência é indicada no último verso como “augusta”, como uma das manifestações
mais elevadas do espírito humano, ainda que também se mostre como técnica “misteriosa”, a
qual impulsiona a aeronave. Por conta disso, a aeronave (não conseguimos precisar se era um
avião ou zepelim) não conhece limites/limitações, seja percorrendo a vastidão azul do céu,
seja sobrevoando a imensidão dos mares. É como se essa aeronave fosse símbolo daquilo que
levaria a sociedade humana para outro estágio, elevando-se “em busca do infinito”.
Como já sugerimos, a chamada a temporalidade moderna é associada a todo um
conjunto de valores e temas: é um tempo (do) novo, da novidade constante, marcada pela
aceleração, pela rapidez. No soneto de Augusto dos Anjos há uma ambivalência, pois, apesar
de apreender e enaltecer a potência positiva da ciência, não faz menção em seus versos à esses
temas próprios do conceito moderno.
A aeronave parece superar o espaço (cinde a “vastidão”; “atravessa”; “sulca”;), mas
não há indicativos de aceleração, de rapidez. É como se a percepção do eu lírico em relação às
possibilidades da ciência, simbolizada pela aeronave, ainda fosse pautada por um misto de
sensibilidades de origem romântica somado à um olhar mais simpático à modernidade em
processo de consolidação.
Antônio Luiz Silva Filho80 discute de maneira fértil a dialética da relação entre espaço
e tempo, sobretudo, nas práticas da aviação. Sob as sensibilidades modernas, o avião seria um
dos emblemas desse período histórico na medida exata em que sintetiza o conhecimento
técnico e científico que permite ao avião atravessar o espaço de dezenas de milhares de
quilômetros numa velocidade cada vez maior. Ou seja, a aplicação da técnica/ciência, no caso,
em relação ao avião, não deve proporcionar apenas a travessia do espaço. Mais do que o
espaço, o que deve ser vencido é o tempo utilizado para percorrê-lo.
A prática inovadora, “moderna”, da aviação, encerrada a “Grande Guerra” (1914-
1918), apresentava-se como um desafio permanente. Com o avião, segundo nota Antônio Luiz
Silva Filho81, o espaço-tempo eram os “inimigos” primeiros da potente máquina voadora:

Em 1923 os aviadores Walter Hinton e Euclides Pinto Martins foram


aclamados “heróicos campeões das alturas”. (...) Conduzindo um hidroavião
Curtiss, com peso de oito toneladas e dotado de dois motores de 400 HP,
Hinton e Martins concluíram as 6.143 milhas do trajeto [Nova York e Rio de
Janeiro] em pouco menos de cinco meses. A partida do leito do rio Hudson,
em 17 de agosto de 1922, culminou com a amerissagem na baía de
Guanabara, em 8 de fevereiro do ano seguinte.

80
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Um Emblema da Modernidade. In: I Encontro Nacional Espaços e
Modernidade – UFRN, 2018. p.1-25. (No Prelo)
81
SILVA FILHO, 2018, p.01.
51

Nesse caso em tela, o hidroavião não apenas “cinde” a vastidão, “sulcando” o espaço,
“devassando a terra”: os referidos pilotos atravessam o percurso estabelecido na maior
velocidade possível. Ainda conforme Silva Filho82, “à diferença dos dias atuais, marcados
pela trivialidade massiva (e não raro maçante) das viagens de avião, essa forma de
deslocamento despertava outrora conotações de bravura pessoal e rara habilidade no trato com
as máquinas”.
Os pilotos eram tratados como verdadeiros heróis e a prática e a difusão da aviação
então nascente, não somente no Brasil, como no mundo, atrelava-se aos signos primeiros da
modernidade. Misturava-se, portanto, a técnica, a velocidade e a audácia desses homens que
desafiavam, em seus raids, não só o tempo e o espaço, como a própria morte.
Nicolau Sevcenko também observou como as sensibilidades modernas no Brasil, mais
especificamente em São Paulo, nas duas primeiras décadas do século XX, manifestavam-se.
Entre os símbolos primeiros do tempo moderno, nessa cidade, estavam os automóveis e os
aviões. Tanto um como o outro, associavam-se àquelas noções também observadas por
Antônio Luís Silva Filho: quer fosse com o automóvel, quer fosse com os aviões, seus pilotos
desejavam alcançar velocidades cada vez maiores, como visto nas corridas automobilísticas,
assim como, nos raids aéreos. Tomemos como contraponto àquele texto poético de Augusto
dos Anjos acerca da Aeronave, outra poesia, escrita e publicada por Luis Aranha (1901-1987),
intitulada o “Aeroplano”83. Vejamos a primeira, a segunda e a sexta estrofes:

Quisera ser ás para voar bem alto


Sobre a cidade de meu berço!
Bem mais alto que os lamentos bronze
As catedrais catalépticas

Dar cambalhotas repentinas


Loopings fantásticos
Saltos mortais
Como um atleta elástico de aço.
(...)
Riscando o céu na minha busca
Rápida e precisa,
Cortando o ar em êxtase no espaço
Meu corpo cantaria
Sibiliando
A sinfonia da velocidade.

82
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Um Emblema da Modernidade. In: I Encontro Nacional Espaços e
Modernidade – UFRN, 2018. p.10. (No Prelo).
83
ARANHA, Luís In: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.23-24.
52

Podemos verificar nesses versos imagens mais condizentes com os ícones associados à
modernidade científica. Esse poema de Luís Aranha pauta-se mais pelo vetor da
“semelhança” em relação aos ideias modernos da ciência, do que o texto de Augusto dos
Anjos, cujo vetor de “semelhança” o aproxima de forma mais direta com os padrões
românticos. O texto de Aranha opera com imagens muito mais próximas à da velocidade: o eu
lírico desse poeta não somente queria voar “bem mais alto”, como também dar “cambalhotas
repentinas”, “loopings fantásticos”, “saltos mortais”, “sibilando / a sinfonia da velocidade”.
As representações de Augusto, no texto poético “A Aeronave”, portanto, configuram-se num
misto entre sensibilidade romântica e enaltecimento da ciência.
Como observou Sevcenko, os carros, tais como os aviões, também associaram-se
intimamente com os ideias fundamentais da modernidade. No caso dos automóveis, “o
equipamento, indiferente à sua utilidade ou a quem os dirigia, sucumbira ao símbolo. Desde
cedo os mais jovens passaram a dispensar os choferes para porem à prova o desempenho dos
veículos.”84 Mais do que sua utilidade, visava-se testar sua aceleração máxima.
Sevcenko também registra o uso simbólico dos aviões, que na Grande Guerra
desempenharam o papel de “terceira arma”: “Recordes de velocidade, de distância, recordes
de altura, recordes de peso, de leveza, de mergulho livre”85 eram superados constantemente.
Os aviões, enquanto emblema da modernidade, instilavam no público e nos pilotos, a
sensação de desafio em face da morte: muitas vezes, os desafiantes não conseguiam de fato
vencer. Ainda sob seu aspecto simbólico, Sevcenko comenta a chegada, em São Paulo, da
missão fascista de aviação à convite de personalidades ligadas à comunidade italiana residente
nessa cidade. Após os visitantes marcharem com suas “camisas negras”, a exibição

...se concentrou sobre os bairros operários, onde era mais densa a presença
italiana, constando de apavorantes simulações de bombardeio aéreo em
escala. O clímax foi quando, de uma avião a 3 mil metros de altura, pela
primeira vez em São Paulo, para aflição do público, um dos rapazes se atirou
de pára-quedas.

Nesse caso, vemos aí, também, indícios da utilização desses símbolos modernos com
atividades políticas, como visto acima, claramente numa demonstração de força política por
parte de grupos fascistas, os quais, provavelmente tentavam conseguir novos adeptos entre a
população paulista. Na confluência desse conjunto de práticas, experiências e discursos,
desenvolviam-se, no Brasil, à época em que Augusto dos Anjos iniciou-se na escrita de

84
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.
São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.74.
85
SEVCENKO, 1992, p.78.
53

poesias, novas sensibilidades, sociais e literárias, afinadas com a ideia de modernidade, que
questionavam uma série de valores previamente estabelecidos. Segundo Bosi86,

O realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que


fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das “leis
naturais” que a ciência da época julgava ter decodificado; ou se dirá
parnasiano, na poesia, à medida que se esgotar no lavor do verso técnica e
metricamente perfeitos.

No soneto “A Aeronave” existem imagens ambivalentes, que ofereciam ao leitor uma


visão ao mesmo tempo intuitivamente romântica, mas que enaltecia os valores objetivos e
positivos da ciência. Em outros textos de Augusto dos Anjos, sua apropriação dos temas
derivados do cientificismo será bem mais cética. Entre os padrões com os quais também
dialogou estavam, além do Romantismo e do Realismo, o parnasianismo e o Simbolismo87.
Um indício dos contatos de Augusto dos Anjos com a estética simbolista pode ser
verificado no soneto “O Riso”88, em cuja epígrafe lemos “Ri, coração, tristíssimo palhaço!,
em alusão ao poema “Acrobata da Dor” do poeta Cruz e Sousa (1861-1898). O soneto de
Augusto fora publicado no jornal O Comércio, em 1902, mas não colhido em livro:

O riso – o voltairesco clown – quem mede-o?!


– Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via Láctea fria do Nirvana,
Alenta a vida que tombou o Tédio!

Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,


E ergue à sombra da dor a que se irmana
Lauréis em sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho em nimbos de epicédio!

Bendito seja, Riso, clown da Sorte,


– Fogo sagrado nos festins da Morte,
– Eterno fogo, saturnal do inferno!

E eu te bendigo! No mundano cúmulo


És a ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas dum desgosto eterno!

86
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.168.
87
Para Alfredo Bosi (2003, p.263), “O Parnaso legou aos simbolistas a paixão do efeito estético. Mas os novos
poetas buscavam algo mais: transcender os seus mestres para reconquistar o sentimento de totalidade que
parecia perdido desde a crise do Romantismo. (...) Visto à luz da cultura europeia, o Simbolismo reage às
correntes analíticas dos meados do século, assim como o Romantismo reagiria à Ilustração triunfante em
[17]89. Ambos os movimentos exprimem o desgosto das soluções racionalistas e mecânicas e nestas
reconhecem o correlato da burguesia industrial em ascensão; ambos recusam-se a limitar a arte ao objeto, à
técnica de produzi-lo, a seu aspecto palpável; ambos, enfim, esperam ir além do empírico e tocar com a sonda
da poesia, um fundo comum que susteria os fenômenos, chame-se Natureza, Deus, Absoluto ou Nada.”.
88
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.437.
54

O eu lírico sugere a existência de uma insatisfação indefinida, o “tédio” no qual tomba


a vida. Em face disto, a reação possível é o riso alentador. O mundo já não parece mais
“purificado”, “sublimado”, provedor de alegria e prazer. Antes, parece ser a causa geradora
desse tédio89. O mundo circundante parece ter perdido seu tom idílico.
Não é raro encontrar a operação de imagens mais céticas em relação à positividade da
ciência nos versos de Augusto dos Anjos. Essas imagens são elaboradas tanto como derivação
de uma recusa de certos traços negativos próprios da modernidade, nos moldes mais próximos
do romantismo, quanto por uma aproximação com a estética simbolista.
Segundo Lília Moritz Schwarcz, desde 1822, constituiu-se, no Brasil, o desejo de
formar quadros intelectuais independentes que se dispusessem a refletir acerca dos problemas
e dilemas essencialmente nacionais, identificando as questões mais imperativas, assim como,
fazendo a proposição de soluções adequadas às nossas circunstâncias. Disto resultou a
fundação de grandes centros de formação, como as faculdades de direito. Destes centros,
emergia a figura do “bacharel”, o que se tornaria um papel social dotado de grande prestígio
entre os setores mais privilegiados. Além disso, a autora90 comenta:

Depois de vários embates sobre a localização das escolas, definiu-se que as


duas sedes visariam atender às diferentes partes do país: a população do
Norte contaria com uma escola sediada em Olinda (que em 1854 se
transferia para Recife), enquanto a Região Sul teria na cidade de São Paulo o
mais novo centro de estudos jurídicos.

Como dissemos, é inegável o contato da poesia de Augusto dos Anjos com elementos
do pensamento cientificista. Sua passagem, entre 1904-1907, pela renomada Faculdade de
Direito, em Recife, o colocou em contato com todo um conjunto de reflexões elaboradas,
sobretudo, desde meados do século XIX, seja no âmbito especificamente literário, seja nos
âmbitos científicos e filosóficos. A poesia de Augusto dos Anjos não apresenta,
necessariamente, uma oposição total à ciência. Entretanto, o eu lírico expresso em muitos de
seus textos poéticos não comunga com um horizonte de expectativas que seja essencialmente
positivo para o qual o “progresso científico” nos conduziria.
89
“Os coetâneos dos “poetas malditos” chamaram-se decadentes. Como evasão, e mesmo loucura, foi sentido o
esforço desses homens que voltavam as costas ao prestígio das realidades “positivas” e se apoiavam em uma fé
puramente verbal, em uma liturgia magramente literária, enfim, numa “oração” veleitária e narcísica. O
malogro do Simbolismo, como visão de mundo, foi suscetível em toda parte. Mas, despojado das suas
ambições de abraçar a totalidade do real, o que restou dele? Um modo de entender e de fazer poesia, isto é,
aquela face estetizante do movimento que lembra o Parnasianismo, a arte pela arte, e, nos momentos de
entropia, o culto das fórmulas, o dandismo à Wilde e à D‟Annuzio, epígonos nos quais se aguou o vinho forte
dos profetas e fundadores.” BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo.
Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003. p.266.
90
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.142.
55

Alguns dos sentidos atribuídos aos valores da ciência, na modernidade, estão presentes
nos versos de um soneto91 publicado no jornal O Comércio, em 1905, período no qual
Augusto cursava faculdade em Recife. Tal soneto é dedicado ao filósofo Friedrich Nietzsche
(1844-1900):

Para que nesta vida o espírito esfalfaste


Em vãs meditações, homem meditabundo?!
– Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...

A loucura destruiu tudo que arquitetaste


E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!...
De que te serviu, pois, estudares, profundo,
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!

Pois, para penetrar o mistério das lousas,


Foi-te mister sondar a substância das cousas
– Construíste de ilusões um mundo diferente,

Desconheceste Deus no vidro do astrolábio


E quando a Ciência vã te proclamava sábio,
A tua construção quebrou-se de repente!

Neste soneto vemos uma mistura de elementos. Há uma crítica ao “filósofo moderno”,
que talvez tome como símbolo o pensador alemão a quem o texto foi dedicado. Vemos
lampejos do simbolismo, pois, na medida em que esse filósofo moderno, com suas meditações
vãs, nada achava, mesmo realizando uma espécie de autópsia da realidade (“escalpelaste todo
o cadáver humano”), é sugerida a existência de uma realidade que permanecia impenetrável,
ocultando “o mistério das cousas”. O poeta e a poesia parecem mais próximos dessa
“realidade oculta” do que a ciência, o cientista e o “filósofo-moderno”.
O contato com o pensamento cientificista não gerou otimismo nesse eu lírico: se a
ciência era uma ferramenta válida, se era um poderoso instrumento de transformação e
conhecimento, era também uma inelutável fonte que parecia rubricar um destino mais
pessimista do que otimista.
Não se trata de negação da ciência, mas da adoção de uma perspectiva marcada
simultaneamente pelo vetor da “semelhança” e da “diferença”, que aceita o que a ciência diz
principalmente porque seus pressupostos confirmavam, para nossa existência, um inexorável
processo de transformação e dissolução. Vejamos, sobre isso, o poema “Idealisação da
Humanidade Futura”92:

91
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.468.
92
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.17.
56

Rugia nos meus centros cerebraes


A multidão dos seculos futuros
– Homens que a herança de impetos impuros
Tornára ethinicamente irracionaes! –

Não sei que livro, em lettras garrafaes,


Meus olhos liam! No humus dos monturos,
Realisavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animaes!

Como quem esmigálha protozoários


Metti todos os dedos mercenarios
Na consciencia daquella multidão.

E, em vez de achar a luz que os Ceus inflama,


Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

Vemos traços de uma estética já distinta da romântica e mais próxima da


realista/simbolista. A tendência em idealizar os sujeitos e a natureza já não se faz mais
presente. Ao contrário, essa visão do futuro fala de uma humanidade “impura”, “irracional”,
cujo parto era o mais obscuro entre todas as espécies animais.
Ao invés de redenção, da aquisição de um estado utópico de perfeição, seja ele
realizado pelo progresso científico ou pela transformação social proporcionada por algum
movimento político, reformador ou revolucionário, o “horizonte de expectativa” seria apenas
lama e putrefação. Se existe evolução, esta conduz apenas à morte.
É certo que a identificação do contato de Augusto dos Anjos com elementos do
pensamento cientificista não significa dizer que as imagens que ele expressava em seus versos
manifestassem sua visão de mundo tal e qual, o que nos levaria a confundir obra, autor e o
sujeito que escreve de maneira rápida e automática.
Todavia, se essa aproximação é possível de ser identificada em seus versos, é flagrante
que seu eu lírico manifesta uma visão de mundo dessacralizada, sem idealizações que
ultrapassem o natural. E ainda que o “natural” ou “natureza” sejam idealizadas, o modo como
isso acontece é diferente. Segundo Berman93, seja nos textos de Marx, seja nos textos de
Baudelaire, a dessacralização das artes e do trabalho é tema central na modernidade. A
dicotomia entre a materialidade e a espiritualidade derivadas das experiências modernas
dificulta a compreensão desses fenômenos. Na poesia de Augusto dos Anjos, essa fusão das
dimensões materiais e espirituais da modernidade, como veremos em nossos capítulos finais,
é simbolizada pelo signo da morte, mas não se isenta de um diálogo com a ciência.

93
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007, p.188.
57

2.3 O Cientificismo e a Poesia Científica

Nos versos de Augusto dos Anjos abundam termos técnicos, científicos, assim como,
menções à religiões antigas e orientais. As palavras de potência em sua poesia, por outro lado,
eram basicamente derivadas da ciência e era com estas “palavras-mágicas” que o seu eu lírico
desvelava parcialmente o universo, mesmo que isso não implicasse em utopias e otimismo94.
Alguns “personagens” ligados, sobretudo, à ciência e à reflexão filosófica, também aparecem.
Vejamos o soneto “Agonia de um Filósofo”95:

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto


Rig-Veda. E, ante obras taes, me não consolo.
O Inconsciente me assombra e nelle rolo
Com a eólica fúria do harmatan inquieto!

Assisto agora á morte de um insecto!


Ah! todos os phenómenos do solo
Parecem realisar de polo a polo
O ideal de Anaximándro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo


Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel á alma cenobial!

Rasgo dos mundos o velário espesso;


E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

A agonia expressa pelo eu lírico tematiza um “filósofo”, não necessariamente aquele


estudioso profissional do campo da filosofia, mas representa o pensador por excelência. A
referência ao poeta alemão Goethe nos faz especular que esse “filósofo” em agonia descrito
no soneto pode se assemelhar ao Dr. Fausto, personagem desse poeta alemão “seduzido” pela
insídia de Mefisto. Ecoa nesse soneto uma sensibilidade similar àquela expressa no soneto
“Para que nesta vida...”, comentado no tópico anterior.
A sede de saber desse filósofo em agonia é tamanha que ele busca conhecimento em
textos antigos, do Egito e da Índia, na ciência moderna de Haeckel. Cita também o pré-
socrático Anaximandro, que postulava a existência de uma substância ou princípio primordial,

94
“Foi no contato com o ambiente acadêmico que o poeta familiarizou-se com a ciência em voga, especialmente
das doutrinas de Ernest Haeckel, muito lido na época. Absorve de tal modo aqueles termos que passa a usá-los
mesmo nas conversas íntimas, com amigos, sem perceber. Não é de admirar, também, que sua poesia esteja
coalhada dessas palavras...” REIS, Zenir Campos (Org.). Literatura Comentada: Augusto dos Anjos (Textos
Selecionados, Estudo Histórico-Literário e Atividades de Compreensão e Criação). São Paulo. Editora Abril,
1982. p.07.
95
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.12.
58

o Apeiron96, que não possuía forma ou conteúdo, mas que existiria subjacente à todas as
coisas, em todos os seres.
A agonia desse filósofo parece ser a de não conseguir, por mais que estude,
compreender essa “substância universal”97 e parece referir-se tanto àquele princípio postulado
pelo grego Anaximandro, quanto à pressupostos cientificistas.
Há a presença regular tanto de termos técnicos, como aqueles presentes no soneto
citado acima, quanto de nomes de pensadores eminentes no período cientificista, entre os
quais Ernst Haeckel (1834-1919) e Herbert Spencer (1820-1903), além de Buckle, Darwin,
Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau98, autores estes difundidos pelos principais expoentes da
Escola de Recife, por exemplo, por nomes como Sílvio Romero (1851-1914), Tobias Barreto
(1839-1889) e Clóvis Beviláqua (1859-1944).
Lilia Moritz ressalta que, a partir da Escola de Recife, “...se fez [uma aplicação] das
máximas deterministas a áreas distintas, como a literatura, a crítica e a poesia” 99. Por
exemplo, na terceira estrofe da primeira parte do longo poema intitulado “Os Doentes”100,
lemos: “Tentava comprehender com as conceptivas / funções do encephalo as substâncias
vivas / que nem Spencer, nem Haeckel comprehenderam...”.
É provável que o nível de compreensão do poeta em relação aos termos técnicos e
científicos empregados em seus versos possa não ter sido tão aprofundado, mas não podemos
dizer, também, que o uso de tais termos figurasse como gratuito em sua poética. Esses
empregos e apropriações ajudam na comunicação da visão de mundo que muitos de seus
poemas se empenham em transmitir. Para Ferreira Gullar101, “Dessas concepções
materialistas, atingiu-o sobretudo a noção da morte como fato material, da vida como
processo químico dentro do qual o corpo humano não era mais que uma organização “de
sangue e cal”, condenada inapelavelmente ao apodrecimento e à desintegração.”
Essa concepção poética que privilegia a morte e esse processo contínuo de
desintegração, como citado acima, pode ser observado em outro soneto de Augusto, intitulado

96
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Editora Martins Fontes. 2007, p.71.
97
“Lendo [Herbert] Spencer [Augusto dos Anjos] convenceu-se de que a ciência é incapaz de penetrar a essência
das coisas – o incognoscível –, a realidade absoluta que seria fonte de todo conhecimento humano; que o
evolucionismo não era uma fenômeno limitado aos seres vivos mas se estenderia a todo mundo material e
também à sociedade humana. Com Haeckel, aprendeu que a monera estava na origem de todos os seres vivos.”
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.16-17.
98
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.148.
99
SCHWARCZ, 1993, p.151.
100
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.50.
101
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.17.
59

“Budismo Moderno”102. Em nossa interpretação, esse soneto representa a potência dos saberes
médicos/científicos, simbolizados na figura do “Doutor”, do médico-cientista:

Tome, Dr., esta tesoura e... córte


Mina singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da minha morte?!

Ah! um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A cryptógama cápsula se esbrôa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida


Igualmente a uma céllula cahida
Na aberração de um ovulo infecundo;

Mas o agregado abstracto das saudades


Fique batendo nas perpetuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Nesse sentido, percebemos a subordinação do corpo do “paciente” em face dos saberes


médicos e científicos, representados na figura do “doutor”. Este, pelos saberes e pela
autoridade que possui e que representa, pode, com propriedade, utilizar suas “tesouras” para
cortar nosso corpo, investigar nossas entranhas.
Essa intervenção não é aceita pelo eu lírico como uma forma de “salvação”, pois, já no
primeiro quarteto, há a compreensão de que, no final, a “bicharia” vai roer nossos restos
mortais e que isto não pode ser anulado pela intervenção médica. Esta, ainda que possa, em
certos casos, prevenir, quando muito, apenas acompanha ou adia o inevitável.
Dessa forma, para o eu lírico, tanto o médico quanto o cientista-filósofo, por mais que
aumentem sua compreensão do mundo e dos corpos a partir de dados objetivamente
verificáveis e pela contínua dedicação em seus estudos, jamais conseguiriam alcançar a
compreensão total e plena de todas as coisas. O filósofo moderno/médico/cientista aparece
nos versos do poema de Augusto dos Anjos intitulado “Monólogos de uma Sombra”103, na
sétima e oitava estrofes, como “personagem”, sendo assim representado:

Ahí vem sujo, a coçar chagas plebéas,


Trazendo no deserto das idéas
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens
Que se chama o Philósopho Moderno!

102
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.38.
103
ANJOS, 1912, p.05.
60

Quiz comprehender, quebrando estéreis normas,


A vida phenoménica das Fórmas,
Que, iguaes a fogos passageiros, luzem.
E apenas encontrou na ideia gasta
O horror dessa mechanica nefasta,
A que todas as cousas se reduzem!

O cientista-filósofo é associado a uma imagem quase debochada: ele é


descrito/definido como um “mineiro das origens”, sujo de fuligem, coberto de feridas,
aproximando-se da loucura, por não compreender bem as “origens”, mesmo quebrando as leis
da “vida fenomênica”. Assim, ao tentar desvelar os fenômenos que se revelam à percepção, ao
invés de alcançar o pleno entendimento das coisas, tem apenas a confirmação, mediante a
própria ciência, da “mecânica nefasta / a que todas as cousas se reduzem”, ou seja, aquele
processo de dissolução inexorável da existência é mais uma vez reafirmado e ressaltado.
O contato e a apropriação com o pensamento cientificista se manifesta em sua poesia
pela utilização dos conceitos de monera/monismo, também relacionados à Haeckel. De acordo
com esses conceitos, haveria uma substância primordial, associada – biologicamente falando
– à bactérias e outros organismos microscópicos. Relacionado à essa questão, vejamos mais
um texto poético de Augusto dos Anjos intitulado “Sonho de um Monista”104:

Eu e o esqueleto esquálido de Eschylo


Viajávamos, com um ancia sybarita,
Por toda a pro-dynamica infinita,
Na inconsciência de um zoóphito tranquillo.

A verdade espantosa do Prothylo


Me aterrava, mas dentro da alma afflicta
Via Deus – essa mónada exquisita –
Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bemdizia, com o esqueleto ao lado,


Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Porsepina,


A energia intra-cósmica divina
Que é o pai e a mãe das outras energias!

Nesse soneto, em seu primeiro e sonoro verso, a figura do dramaturgo grego Ésquilo é
evocada, passeando junto com o eu lírico. Ambos vislumbram a ordem subjacente à todas as
coisas. Tal ordem seria condicionada pela ação da noção de “prótilo”, a qual faz menção a
uma hipotética substância primordial que estaria presente em todas as coisas. Nessa lógica,

104
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.39.
61

Deus é associado à mônada, que também pode ser entendida como essa substância ou
princípio primordial, algo quase espiritual. Ainda que escape à compreensão do cientista-
filósofo, a pressuposição dessas substâncias e energias intra-cósmicas parecem trazer senão
tranquilidade, pelo menos uma espécie de resignação.
A inclusão de termos deterministas e cientificistas, portanto, não era uma
peculiaridade vista apenas em Augusto dos Anjos. Do que se convencionou chamar “literatura
naturalista”, vários autores possuíram práticas semelhantes à dele. Para Lilia Moritz105

O romance se tingia assim naturalista quando as personagens e o próprio


enredo cediam lugar “às leis naturais” que lhes estreitavam os horizontes,
reduzindo-os a meras categorias da ciência. esses “juristas literatos”
chegavam mesmo a inserir em suas obras referências aos grandes cientistas
da época, fazendo, dessa forma, a ponte necessária para que tais romances se
tornassem quase literalmente científicos: (...) Júlio Ribeiro introduz em seus
escritos as máximas de Darwin, Haeckel, Von Martius, entre outros; Horácio
de Carvalho reproduz citações de Charcot e Berheim (...)

Além desses escritores citados acima, Lilia Moritz aponta, também, outros literatos,
tais como Raul Pompéia, Afrânio Peixoto e Graça Aranha106. Vemos uma prática semelhante
em outro soneto de Augusto dos Anjos, “Louvor à Unidade”107:

“Escaphandros, arpões, sondas e agulhas


“Debalde applicas aos heterogêneos
“Phenomenos, e, há innumeros millenios,
“Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!

“Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,


“Com essa intuição monistica dos gênios,
“A´ hirta fórma fallaz do aere perennius
“A transitoriedade das fagulhas!

– Era a estrangulação, sem retumbancia,


Da multi-millenaria dissonância
Que as harmonias sideraes invade

Era, numa alta acclamação, sem gritos,


O regresso dos átomos afflitctos
Ao descanso perpetuo da Unidade!

Na primeira estrofe, são representadas os “instrumentos” utilizados pelo cientista-


filósofo na busca de compreender a origem primeira das coisas, tal como tematizada na crítica
ao “filósofo moderno”, presente em “Monólogos de uma Sombra”. Novamente, é a intuição

105
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.151.
106
SCHWARCZ, 1993, p.152.
107
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.173.
62

“monista” que parece tranquilizar a percepção do eu lírico, indicado no verso “O regresso dos
átomos aflitos / Ao descanso perpétuo da unidade!”, pois, tudo que será dissolvido pelo
movimento natural da existência, seja orgânico ou inorgânico, retornaria à essa mônada, à
essa substância unitária original então presumida. Segundo José Paulo Paes108,

O levantamento do vocabulário científico do Eu e Outras Poesias revela de


pronto uma acentuada predominância de termos tomados de empréstimo à
Biologia. (...) Com o desembaraço e a audácia dos dogmáticos, Haeckel
transpunha a doutrina evolucionista de Darwin para campos tão distantes
dela quanto a imortalidade da alma, a natureza do Cosmos, a concepção de
Deus, os princípios éticos, a organização da sociedade, etc., propondo-se a
dar a solução a todos os “enigmas do universo” – título aliás do mais popular
dos seus livros – como o seu simplório materialismo...

Esses ecos filosóficos e cientificistas, por exemplo, também podem ser observados no
soneto “Minha Finalidade”109, incluído na segunda edição do “Eu”:

Turbilhão teleológico incoercível,


Que força alguma inhibitória acalma,
Levou-me o craneo e pôz-lhe dentro a palma
Dos que amam aprehender o Inaprehensível!

Pré-determinação imprescriptivel
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, apparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrivel!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
– A águia dos latifúndios florentinos!

Systematizo, soluçando, o Inferno


E trago em mim, num syncrhronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!

Novamente, é indicada a existência de uma potência misteriosa que tudo anima e que
incita os cientistas-filósofos a tentarem compreendê-la, ainda que tal energia permaneça
“inapreensível”, mesmo que tenha a capacidade de determinar todos os destinos estando,
portanto, presente em todos os seres. O primeiro verso do soneto (“turbilhão teleológico
incoercível”) faz referência à uma noção de “progresso” associada à de “evolução” como
transformação permanente. Ambas sugerem um movimento, senão rápido, acelerado, pelo
menos dinâmico e contínuo. Esse “turbilhão”, nos versos de Augusto dos Anjos, é uma
evolução para a morte, uma evolução que tem como pré-condição a dissolução.

108
PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o Evolucionismo às Avessas. In: Revista Novos Estudos CEBRAP,
nº 33, julho de 1992, p.91.
109
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.195.
63

Tanto a noção de “progresso”, quanto a de “evolução”, podem possuir características


positivas. Contudo, o conceito de “evolução”, mesmo que se aproxime da noção darwinista de
sobrevivência do mais adaptado, não implica numa sobrevivência eterna. Por mais adaptado
que se esteja, a morte é um horizonte inelutável. A degradação, a dissolução da existência é
considerada pelo eu lírico como uma forma de evolução, mesmo que em direção à morte.
É possível entrever, aqui, a ambiguidade de alguns versos de Augusto dos Anjos em
relação à algumas sensibilidades estimuladas pela temporalidade moderna, compreendida,
aqui, através das categorias de “experiência” e “expectativa” propostas por Koselleck 110, “...a
expectativa abarca mais que a esperança, e a experiência é mais profunda que a recordação...”.
Na temporalidade moderna, segundo os pressupostos de Koselleck, o futuro, o
horizonte de expectativas, ao abarcar mais do que a esperança, pode implicar numa certeza de
que esse mesmo futuro será melhor, mais positivo do que o presente e o passado. Contudo,
nas imagens poéticas de Augusto dos Anjos, aquele “turbilhão teleológico incoercível”
somente “plasmou, aparelhou, talhou [sua] alma / Para cantar de preferência o Horrível!”.
Esse “horrível” que figura no horizonte de expectativas que o eu lírico contempla,
postula, nada mais é do que a morte, o fenômeno inexorável, imprevisível, que separa o
indivíduo da possível fruição daquele futuro “positivo”, aperfeiçoado, utópico.
Derivadas de um campo de estudos biológicos, foram formuladas abstrações
difundidas pelo pensamento de Haeckel, com as quais Augusto dos Anjos dialoga em alguns
de seus versos. Estas abstrações visavam unificar as dimensões da vida humana, biológica e
geográfica, haja vista que essas dimensões estariam unificadas por aquela suposta energia
potencial primordial, implícita e inerente à todas as coisas e seres.
Essa percepção que identifica uma unidade subjacente à todos os seres existentes,
orgânicos ou inorgânicos, derivada do cientificismo e do pensamento de Haeckel, pode ser
vista em outros dois textos poéticos de Augusto dos Anjos, intitulados, respectivamente,
“Mater”111 e “Mater Originalis”112, publicados no “Eu”. No primeiro texto, lemos nas três
primeiras estrofes:

Como a Crysalida emergindo do ovo


Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

110
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.308
111
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.106.
112
ANJOS, 1912, p.41.
64

E puzeste-lhe, haurindo amplo deleite,


No lábio róseo a grande têta farta
– Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éphebos de Esparta. –

Com que avidez elle essa fonte suga!


Ninguém mais com a Belleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

É interessante perceber que um dos traços da estética romântica era o animismo do


mundo natural, ou seja, a encarnação neste mundo objetivo, físico, natural, (ou em seus
fenômenos) de sensibilidades humanas (tédio, tristeza, alegria, fúria, etc.). A poesia acima
parece associar à figura da “mãe” atributos propostos pelas teses cientificistas do monismo.
Esse animismo “cientificista” que diversas poesias de Augusto dos Anjos expressam
difere do animismo “romântico”, pois, ao invés de uma representação de sensibilidades
humanas atribuídas ao mundo natural e a seus fenômenos, há uma percepção que faz a
natureza encarnar, não sentimentos, mas funções, tal como se fosse uma espécie de entidade
(semi)personalizada: não é, por exemplo, a “mãe-natureza” clássica, sentimental, mas uma
“natureza” que cumpre um papel “materno/maternal” impessoal. Vejamos o segundo texto:

Fórma vermicular desconhecida


Que estacionaste, misera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrómicos da vida;

O hierophante que leu a minha sina


Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo


A´contingência orgânica do sexo
A tua estacionaria alma prendeu

Ah! de ti foi que, autônoma e sem normas,


Oh! Mãe original das outras fórmas,
A minha fórma lúgubre nasceu!

Tal como nos versos do soneto “Mater”, nesse segundo soneto, “Mater Originalis”,
não somente há referência aos pressupostos cientificistas, quanto uma menção direta à Herbert
Spencer, o qual, junto com Haeckel, eram dois expoentes dessa tendência. Como afirma Paulo
Alves Porto113,

113
PORTO, Paulo Alves. Augusto dos Anjos: Ciência e Poesia. In: Química Nova Escola. Nº 11, maio de 2000,
p.31.
65

Embora não fosse um especialista em biologia, Spencer foi um dos mais


importantes representantes do pensamento evolucionista do final do século
passado. Acreditava Spencer que a filosofia deveria combinar, sob um ponto
de vista comum, os resultados obtidos por todas as ciências: física, química,
biologia, e também psicologia e sociologia. A evolução seria o ponto de
contato entre todas as ciências.

A perspectiva unitarista dos fenômenos, consoante com o chamado monismo


pressuposto por Haeckel e outros teóricos em fins do século XIX, por exemplo, é sentido nos
versos de Augusto dos Anjos. Há, para além de uma idealização da matéria, aquela espécie de
animismo já citada, como se a matéria orgânica adquirisse consciência de si.
A chamada “poesia científica”, tal como os versos de Augusto dos Anjos, dialoga com
elementos presentes no pensamento cientificista. Haveria, por parte de seus defensores, a
defesa de que o romantismo já não conseguia produzir uma obra elevada e que caberia à arte,
acompanhando os ditames da ciência, propor uma nova estética poética114.
Intelectuais oriundos da Escola de Recife alimentaram uma proposta estética que
aproximava arte e ciência. Segundo Lilia Moritz115, parafraseando Sílvio Romero, “...Se ao
poeta não cumpre fazer sciencia, deve ao menos apoderar-se dela para ter a nota de seu
tempo...o poeta deve da sciencia ter suas conclusões e os fins para não escrever tolices”.
Conforme Márcia Sabino116:

Apesar de afirmar que no Brasil não existiam, efetivamente, cultores da


poesia científica até aquele momento [fins do século XIX e princípios do
século XX], mas apenas precursores, ou seja, autores que se aproximavam
dela, tais como (...) Teixeira Sousa, Generino dos Santos (tio de Augusto dos
Anjos), Luiz de Lá Lima, Leovegildo Figueiras, Anízio de Abreu e
Phaelante da Câmara, Martins Júnior acreditava no futuro da poesia
científica brasileira – foi ele, inclusive, o primeiro a utilizar a nomenclatura
“poesia filosófico-científica”.

É certo que a mera utilização de um jargão técnico-científico em forma versificada não


faz do texto em si um texto poético. A própria poesia de Augusto dos Anjos, apesar de rica
em significados e sentidos históricos, não é de leitura fácil, tanto pelo uso de um vocabulário,
em linhas gerais, mais rebuscado, mesmo em seu sentido denotativo, quanto pelo uso desses

114
“(...) no último quartel do século XX, o sentimento geral era de que a poesia romântica havia sido
ultrapassada, não constituindo-se como meio legítimo de representação da nova mentalidade racionalista,
relativista, materialista, naturalista, anti-metafísica e anti-teológica surgida em meados do século.”. SABINO,
Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.14.
115
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo. Companhia das Letras, 1993. p.152.
116
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.21.
66

termos com uma finalidade poética, estética, ou seja, explorando o aspecto conotativo dessa
terminologia cientificista. Márcia Sabino117 afirma ainda que:

O pedantismo foi um dos maiores defeitos da poesia científica, de acordo


com seus críticos, que a acusaram frequentemente de ser didática. Tal
característica pode ser claramente notada, por exemplo, em um poema do
Visões de Hoje (1881) de Martins Junior, no qual encontramos ideias,
retiradas da filosofia positivista, que não ganham expressividade poética,
mas apenas expressam conhecimentos extravagantes, de forma versificada...

Nesse sentido, a indicação de Márcia Sabino, acerca do pedantismo da poesia


científica, merece algumas considerações. Não significa que essa indicação esteja equivocada,
mas pensamos que tal afirmação exige outros desdobramentos. É certo que o uso gratuito de
determinados termos técnico-científicos pode recender à pedantismo.
Entretanto, em se tratando de poesia, a apropriação desse ou de qualquer outro termo
deve ser subordinada ao seu emprego poético, estético, e isso dependerá – por subjetiva que
pareça nossa observação – das capacidades do indivíduo que escreve, mas, também, de como
a atividade mimética é colocada em prática, ou seja, por qual vetor ela se orienta.
Anteriormente, falamos dos conceitos de “mímesis de representação” e “mímesis de
produção”, indicando que, no primeiro, o vetor da atividade mimética é o da “semelhança”,
enquanto que, no segundo, tal vetor é o da “diferença”. Em nossa interpretação, a atividade
poética de Martins Junior, que o próprio associa à chamada poesia científica, orienta-se pela
“mímesis da representação”, ou seja, pelo vetor da “semelhança”, visando apresentar ao leitor
algo já presente num dado contexto. Por exemplo, ao analisarmos o prefácio de seu livro
“Visões de Hoje”118 (1881), percebemos claramente essa associação:

[Visões de Hoje] É um ensaio de poesia moderna, este livro. Melhor: Estes


versos são um ensaio de poesia scientifica. A razão de ser delles, ou a
justificativa dessa tendência que lhes assignalo, é esta: a Arte de hoje, creio,
se quizer ser digna de seu tempo, digna do seculo que deu ao mundo a ultima
das seis sciencias fundamentais da classificação positiva, deve ir procurar as
suas fontes de inspiração na Sciencia; isto é: na generalisação philosophica
estabelecida por Comte sobre aquelles seis troncos principaes de todo o
conhecimento humano. É para mim um princípio assentado, que ao estado
definitivo de positividade a que chegou a mentalidade do homem civilisado,
corresponde presentemente, no domínio do sentimento, esta escola de poesia
– a scientifica.

117
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.48.
118
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.01/12. p.09-10. Disponivel em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf
67

Como já indicamos, o vetor de sua prática é o da “semelhança”. Segundo Martins


Junior, na citação acima, a poesia moderna deve buscar na ciência positivista sua inspiração,
na medida em que a humanidade, segundo sua concepção, haveria alcançado (ou estaria
prestes à alcançar) o estado positivo comtiano. Dessa forma, a poesia científica deveria
reproduzir esse estado positivo que já pressupõe vigente. Martins Junior119 assevera ainda que
“Na applicação desse princípio eu não vou até o ponto de acceitar a Sciencia metrificada,
posta em versos (...) Assim apadrinhado, pois, eu posso dizer que este livro que ahí vae é um
ensaio de poesia scientifica, sem ser um punhado de apostillas rimadas, didacticas, seccas...”
Nesse caso, Martins Júnior afirma a postura de afastar-se da métrica poética, sendo fiel
apenas ao desejo de inspirar-se pelo “espírito” científico de sua época. A “mímesis de
representação”, utilizando como vetor a “semelhança”, leva em consideração os elementos e
valores já estabelecidos em seu campo social. De certo modo, tanto Martins Junior quanto
Augusto dos Anjos incorrem nesse tipo de prática mimética, haja vista dialogarem com os
preceitos e valores próprios do cientificismo, os quais circulavam em seu tempo.
Entretanto, a poesia de Augusto não permanece tão cativa quanto a de Martins Junior
em relação ao vetor da “semelhança”. Márcia Peters Sabino, em seu texto120, fez análise do
trecho de uma poesia de Martins Júnior, mostrando esse trecho citado como exemplo do
pedantismo que essa autora identifica na chamada poesia científica. Localizamos121, no livro
de Martins Júnior, o trecho da poesia por ela analisada, o qual apresentamos abaixo:

Buscando demonstrar pela transformação


De uma simples monera a genese do mundo
Organico; ensinando o dogma fecundo
Do progresso; affirmando a lei da seleção
E o seu correlativo: – a luta na existência!

[Tentam reconstruir, fieis á Experiência,


O vetusto Castello informe do Direito
Que precisa de ser, sob outra luz, refeito!]

Vemos: aqui – Littrè, Spencer, Buckle, Comte;


É a Philosophia alevantando a fronte.
Ali – Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Bróca;
É a Sciencia pura – a refulgente róca
Que serve á fiação methodica dos factos
Ou feios como a morte ou bellos como os cactos.

119
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.10/12. Disponível em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf
120
SABINO, Márcia Peters. Augusto dos Anjos e a Poesia Científica. Juiz de Fora. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006. p.48.
121
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de Hoje. 1881, p.72/73. Disponível em http://mafua.ufsc.br/wp-
content/uploads/2018/05/visoes_de_hoje_de_isidoro_martins_junior.pdf-completo.pdf Nota: incluímos, entre
colchetes, trechos que não foram citados por Márcia Sabino, quando a mesma incluiu esses versos em suas
análises.
68

Márcia Sabino caracteriza como pedantismo a inclusão dos traços cientificistas feita
sem produzir uma expressividade poética mais forte. Em nossa leitura, os versos de Martins
Junior, possivelmente por conta do recurso excessivo do vetor da “semelhança”, parece
apresentar-se mais como um conjunto de (re)afirmações ou elogios aos preceitos
cientificistas, sem muita qualidade poética. Nesse ponto, concordamos com Sabino, no que
diz respeito à uma menor intensidade da expressão poética. Contudo, como indicamos acima,
o próprio Martins Junior mostra no prefácio desse livro que daria uma atenção menor às
questões estéticas, haja vista que, na poesia científica, valia mais a inspiração no pensamento
científico/cientificista do que buscar o efeito estético propriamente dito.
Entretanto, ainda que em determinados versos de Augusto dos Anjos também haja
esse diálogo com o vetor da “semelhança”, pela inclusão de termos cientificistas em seus
textos poéticos, podemos verificar que seus versos mais significativos aproximam-se do vetor
da “diferença” e, portanto, daquilo que Luiz Costa Lima denominou como “mímesis da
produção”, além de investir mais energia na expressividade estética/poética em tais versos, o
que não ocorre com Martins Júnior.
De certo modo, o pensamento positivista e cientificista atribuíam à ciência uma
potência otimista. Seria com a ajuda da ciência que poderíamos construir um mundo e uma
sociedade melhores. A apropriação dessas correntes no campo intelectual brasileiro, portanto,
esteve associada ao esforço de forjar, para o Brasil, uma identidade cultural e social singular,
como já indicamos, centrada no mito da fusão das três raças.
Assim sendo, tendo como horizontes intelectuais a defesa da república e do
abolicionismo e a crítica da escravidão, criava-se um conjunto de frames possíveis para o
enquadramento de determinadas representações, quer fossem elas literárias, poéticas, ou não.
Sobre essa perspectiva, Mônica Velloso122 comenta que:

Assim como os intelectuais latinos da geração de 1898, os brasileiros


acreditavam-se investidos de ideais heróicos. O instrumental científico
configurou-se como arma que garantia passagem para a modernidade. Nessa
conjuntura, os ideais de observação precisa e laboriosa coleta de dados
exerceram atração irresistível entre os estudiosos da cultura e da civilização.
Inspirando-se nas teorias evolucionistas de Hippolyte Taine em Historie de
la Literature Anglaise (1863), definia-se a brasilidade como resultado físico-
geográfico, da raça e do momento. A nacionalidade era matéria-prima, uma
espécie de pedra bruta a ser trabalhada pelo saber científico das elites.

Essa perspectiva otimista, quase altruísta, não transparece nos versos de Augusto dos
Anjos, senão em todos, principalmente nos mais expressivos. Isto significa uma aproximação

122
VELLOSO, Mônica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte. Editora Autêntica. 2010, p.42.
69

com o vetor da “diferença”, mais do que com o da “semelhança” em relação aos seus versos
mais significativos. Se o meio, a raça e o momento definem o destino das sociedades e
nações, para o bem ou para o mal, como se acreditava, em diversas poesias de Augusto dos
Anjos, foi a vertente negativa dessa determinação que se enfatizou esteticamente.
Entretanto, há que se deixar rubricado o seguinte ponto. Na leitura dos versos de
Augusto dos Anjos, se definimos o processo dissolutivo que ele representa em suas imagens
poéticas como “negativo”, é somente em contraponto ao otimismo que marca aquele quadro
geral descrito, por exemplo, por Mônica Velloso um pouco acima.
Esse processo dissolutivo, descrito por suas imagens poéticas e em consonância com a
visão de mundo que seu eu lírico expressa, não é negativo por ser “maléfico”, “maligno”.
Essa dissolução existencial é natural, inevitável, inelutável. É negativa ao modo de uma
antítese dialética. Não há horizonte positivo para além dessa certeza, salvo se eliminássemos
da condição humana seus conflitos, suas doenças e a morte comum à todos.
Somos tentados à afirmar que essa inclusão de palavras e metáforas diferenciadas,
menos otimistas e mais céticas, pessimistas, seria a tentativa de uma espécie de
questionamento dos padrões estéticos com os quais ele dialogou. Sobre isso, Ferreira Gullar123
afirma que: “Questionar a literatura significa abandonar os esquemas, reencontrar a
experiência viva e palpitante do real, fonte da obra de arte. Sem esse questionamento, não há
criação literária propriamente dita, embora haja literatura.”.
A utilização do vetor “diferença” na raiz da atividade mimética não significa o
abandono ou a recusa imediata dos elementos presentes num padrão estético que já estão
aceitos num determinado campo social e literário. Tal questionamento consistiria mais em
forçar os limites desses instrumentos estéticos de reflexão e de representação, proporcionando
o aparecimento de outras formas de ficcionalização das sensibilidades e experiências
presentes num determinado momento histórico.
Isto significa que, na medida em que a atividade mimética não se resume à mera
imitação de algo que preexiste ao texto, mas, sim, na construção de um conjunto de
representações que, como núcleo gerador de significado, colabora na construção daquilo que
denominamos como “realidade” ou referente. Sobre isso, nos diz ainda Luiz Costa Lima124

A experiência ficcional supõe a experimentação do que não se conhece


empreendida a partir do que o produtor e o receptor tomam por verdadeiro.

123
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011. p.34.
124
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao Pensamento. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira. 2000,
p.65.
70

Aí se inclui mesmo o lírico, eliminado do campo da mímesis antiga porque


Aristóteles identificara a mímesis com a presença de “personagens em ação”.
O lírico não só participa da relação paradoxal do verossímil com a “verdade”
senão que é o seu sêmen. Pois, sem se obrigar ao desdobramento narrativo, a
lírica parte da maneira como uma mente sente a si mesma, sem a
necessidade de figurá-la (pela apresentação ou descrição de personagens,
pela indicação de sua psicologia, pela invenção de seus conflitos, etc.) Por
isso, mais do que na prosa ficcional, a lírica investe mais diretamente na
palavra que a constitui. A mente sente a si mesma à medida que encontra a
palavra que a formula.

Nessa compreensão, ao forçar os limites dos elementos representacionais de um


determinado padrão estético, haveria a possibilidade do estabelecimento de múltiplos
questionamentos: 1) um questionamento dos padrões estéticos já postos; 2) um
questionamento do papel do escritor e da literatura, seja em prosa ou verso; 3) um
questionamento do campo social que, de um modo ou de outro, instiga a criação de
determinadas representações literárias; por fim, 4) um questionamento, instigado pela obra,
que fará o leitor/receptor colocar sob nova ótica sua experiência, o papel atribuído ao escritor
e à literatura/poesia e os modos pelos quais a sociedade que o cerca encontra-se configurada.
Essas observações sugeridas por Luiz Costa Lima vêm se somar às nossas indagações
acerca dos textos poéticos de Augusto dos Anjos. Mesmo que alguns textos seus se apropriem
de elementos da estética romântica e que em determinados momentos sua atividade mimética
seja mais pautada pelo vetor da “semelhança”, percebemos em muitos de seus versos,
precisamente, esse questionamento dos elementos estéticos que circulavam em seu momento
histórico, aproximando-o de uma atividade mimética bem mais próxima ao vetor da
“diferença”: apropriou-se da influência cientificista atribuindo-lhe significados distintos,
diferentes, por exemplo, daqueles atribuídos por Martins Júnior.
Dessa forma, mesmo que a atividade mimética, via poesia, privilegie o investimento
na palavra, procurando traduzir como uma mente sente a si mesma, como ela vivencia suas
experiências e não através da descrição de personagens em ação, como sugere Luiz Costa
Lima, a poesia nos coloca em contato com as práticas e os discursos vigentes num
determinado período histórico. É nesse sentido preciso que podemos enxergar na poesia de
Augusto dos Anjos a representação literária, ficcional, de aspectos historicamente situados.
Portanto, a poesia de Augusto dos Anjos, em determinados momentos, encontra no
padrão estético romântico o meio de expressão poética que serve como veículo para a
comunicação de determinadas representações, lapidando metáforas e imagens. Outros padrões
estéticos já marcavam presença nos primeiros anos do século XX e sua poesia também
dialogou com esse conjunto de elementos.
71

Um exemplo disso é a chamada estética realista, que se contrapõe aos padrões


estéticos românticos. Acerca dos principais traços característicos do realismo, vejamos a
síntese proposta por Bosi125:

Tentando abraçar de um só golpe a literatura realista-naturalista-parnasiana,


é uma grande mancha pardacenta que se alonga aos nossos olhos: cinza
como o cotidiano do homem burguês, cinza como a eterna repetição dos
mecanismos de seu comportamento; cinza como a vida das cidades que já
então se unificava em todo o Ocidente. E é a moral cinzenta do fatalismo que
se destila na prosa de Aluísio de Azevedo, de Raul Pompéia, de Adolfo
Caminha, ou na poesia de Raimundo Correia. E, apesar das meias-tintas com
que soube temperar o gênio de Machado, ela não será nos seus romances
maduros menos opressora e inapelável.

Percebemos um diálogo, na poesia de Augusto dos Anjos, tanto com elementos do


padrão estético romântico, quanto com características que o aproximavam da tendência então
denominada “poesia científica” e com temas do realismo-naturalismo. Essa ambivalência não
nos espanta se não perdermos de vista a intensa confluência de práticas e discursos presentes
no campo cultural e literário na virada do século XIX e no início do século XX. Disto decorre
suas experimentações, poéticas inclusive com as estéticas parnasiana e simbolista.
Alguns estudos críticos126 tentam situar, localizar a poesia de Augusto dos Anjos na
confluência desses discursos e práticas literárias. Em nossa perspectiva, mais do que indicar
sua poesia como precursora/continuadora do simbolismo ou da poesia científica no Brasil,
consideramos mais fértil tentar conectar essas características com os sentidos presentes em
seu estrato temporal e como espécie de sintoma da modernidade brasileira emergente.
De um lado, houve a introdução de temas caros à estética romântica, tais como seus
símbolos primeiros representados pela idealização do feminino, exaltação da pátria/nação,
valorização do tempo e espaço românticos (a “noite”, as “ermas paragens”, o “exotismo
oriental”). De outro lado, a apropriação de temas próprios do cientificismo, referências à
autores consagrados nesse campo e o emprego de termos técnico-científicos.
Entretanto, como é próprio da atividade mimética, há a presença tanto do vetor da
“semelhança” quanto do vetor da “diferença” e é tomando tais noções como balizas que
podemos compreender algumas modificações verificáveis em seus versos. Através do
questionamento dos padrões estéticos utilizados, percebemos, por exemplo, a utilização

125
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo. Editora Cultrix. 41ª Edição. 2003.
p.168.
126
FARIA, José Escobar. A poesia cientifica de Augusto dos Anjos. In: Revista do Livro. Orgão do Instituto
Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Ano I, Nº 1-2, Junho de 1956, p.111-116. Outro
estudo crítico interessante é: BARROS, Eudes. Aproximações e Antinomias entre Baudelaire e Augusto dos
Anjos. In: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 1964, p.01.
72

inegável do jargão cientificista. Porém, já não percebemos tanto a confiança e o otimismo no


progresso científico, como se a ciência fosse um “ferramenta de redenção”, seja para a
sociedade como entidade coletiva, seja para o indivíduo como unidade e particularidade.
No próximo capítulo, continuaremos a discutir as dinâmicas vigentes no período que
se convencionou denominar “modernidade” e como as sensibilidades desse “novo tempo” se
fizeram em experiências próprias do domínio íntimo e privado. Veremos como a poesia de
Augusto dos Anjos dialoga com essa temática e quais são as imagens que suas representações
literárias tecem acerca dessas práticas, dos seus espaços e de seus agentes.
73

CAPÍTULO 3
O GOSTO PELA NOITE E OS IDEAIS DE
AMOR “ROMÂNTICO” E “CARNAL”

3.1 O Gosto pela Noite

Outros dois conjuntos temáticos associados aos elementos do padrão romântico podem
ser identificados na poesia de Augusto dos Anjos. O primeiro conjunto temático diz respeito à
predileção pelo período noturno, quase sempre correlato ao tema das “ermas paragens” e
associado às imagens do mundo natural encarnando pressões anímicas. O segundo conjunto,
por sua vez, aborda os ideais de amor “romântico” e amor “carnal”, atribuindo significados e
sentidos distintos à figura e à condição feminina.
Em relação ao primeiro conjunto temático, podemos analisar alguns textos poéticos de
Augusto dos Anjos. Por exemplo, em seu soneto “A Noite”127, publicado na segunda edição,
já póstuma, de seu livro “Eu”, em 1920:

A nebulosidade ameaçadora
Tolda o ether, mancha a gleba, aggride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, ha instantes fora,

A agua transubstancia-se. A onda estoura


Na negridão do oceano e entre os navios
Trôa barbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.

À custodia do anímico registro


A planetária escuridão se annexa...
Sómente, iguaes a espiões que acordam cedo,

Ficam brilhando com fulgor sinistro


Dentro da treva omnimoda e complexa
Os olhos fundos que estão com medo!

O período noturno é escolhido como atmosfera condicionadora de uma série de


percepções e sensações incertas, até mesmo ameaçadoras: a água se transforma; o oceano
enegrece. Em vista da escuridão que cerca o eu lírico expresso no verso, nada mais resta a não
ser sentir “medo”. Ao contrário do pleno dia, a “nebulosidade ameaçadora”, a “planetária
escuridão”, a “treva omnimoda” tudo envolve: é na noite que sensações, como o medo
descrito no último verso, afloram.

127
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920. p.229.
74

Segundo Antônio Luiz Silva Filho128, além dos elementos já indicados como inerentes
à modernidade, quais sejam os temas da “novidade” e da “aceleração”, a emergência desse
período histórico também compreende a dialética da luz e de seus opostos: “Sem dúvida, a
metáfora da luz é uma das mais recorrentes imagens quando se fala de progresso. A escuridão
sugere atraso, retrocesso, opressão. A luz constitui abrigo da emancipação humana, supressão
da autoridade tradicional, reino da mudança histórica.” Nessa compreensão, os versos acima
indicam, precisamente, a ausência do que podemos chamar de “luminosidade” moderna. A
atmosfera noturna proporciona o ambiente ideal para as incertezas sentidas pelo eu lírico.
Outro texto poético que tematiza uma sensação de incômodo, relativa à noite, é a
poesia intitulada “Insônia”129, publicada na primeira edição do “Eu”, em 1912. Atormentado
por uma “... voz a gemer...” continuamente, o eu lírico segue, paradoxalmente, insone e
sonâmbulo, quase como se estivesse numa espécie de transe hipnótico.
A luz do dia, que põe fim à noite, concede um breve momento de tranqüilidade.
Todavia, a certeza da chegada de uma nova noite não faz dessa tranqüilidade experimentada
um momento duradouro. Vejamos, respectivamente, como o tema da noite aparece na
primeira, na nona, na décima, na décima quinta e na décima sexta estrofes:

Noute. Da Magua o espírito noctâmbulo


Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em magua, eu também vou passando
Somnambulo... somnambulo... somnambulo...
(...)
A‟ proporção que a minha insomnia augmenta
Hieroglyphos e esphinges interrogo.
Mas, triumphalmente, nos ceus altos, logo
Toda a alvorada esplendida se ostenta.

Vagueio pela Noute decahída.


No espaço a luz de Aldebaran e de Argus
Vai projectando sobre os campos largos
O derradeiro phosphoro da vida.
(...)
Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noute, hedionda,
Em que o tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extradordinário

Outra vez serei pábulo do susto


E terei outra vez de, em magua immerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!

128
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza. Museu do Ceará /
Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.81.
129
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.117-119.
75

Novamente, é no meio da noite que o eu lírico é assolado por sensações incômodas,


por tormentos, por uma mágoa constante, ainda que não bem definida. Ao passo em que a
insônia se torna mais aguda, experimenta ilusões que se confundem com a realidade, lendo
hieróglifos e interrogando esfinges. A vida é comparada à luminosidade das estrelas que
constituem as constelações de Aldebaran e Argos, assim como, também equipara-se à luz de
um fósforo que esmaece.
Dialogando com aquela oposição entre “escuridão” e “luminosidade”, identificada por
Antônio Luiz Silva Filho como sintoma da temporalidade moderna, vemos outras imagens
poéticas, nesse mesmo soneto130 indicado acima:

O Sol, equilibrando-se na esphera,


Restitue-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorphose
Nas minhas arcas cerebraes opera.

O odor da margarida e da begônia


Subitamente me penetra o olfato.
Aqui, neste silencio e neste matto,
Respira com vontade a alma campônia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.


Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corymbos.,
Recordam santos nos seus próprios nichos.

Com o olhar, a verde periphéria abarco.


Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
As maravilhas reaes do meu Pau d‟Arco!

A luz/luminosidade traz vida, simbolizada pela noção de “hematose”, grosso modo, a


oxigenação do sistema circulatório. A positividade da luz faz a própria natureza circundante,
sua fauna e flora, adquirir plena “satisfação”. A luz permite enxergar as “maravilhas” do Pau
d‟Arco, engenho no qual Augusto dos Anjos viveu e sobre o qual elaborou alguns versos. É o
oposto direto àquilo que o eu lírico sente durante a noite.
Numa sociedade que aspirava alcançar os valores liberais-burgueses, o dia deveria ser
marcado pela produtividade e, da mesma forma, a noite deveria compreender o período de
descanso, para que um novo dia de trabalho, produtivo, se tornasse possível. No entanto,
envolto por sensibilidades românticas, o eu lírico somente encontra na noite um momento de
tormento e atribulação, vivido entre a ausência de sono e o vagar sonâmbulo, que impede o
descanso e atrapalha uma experiência produtiva.

130
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.118-119.
76

Ainda que o dia sobrevenha à noite, esta também sobrevém ao dia. O ciclo de
produtividade-descanso não ocorre para esse eu lírico. Nos versos, é expresso um processo
marcado por uma espécie de tormento noturno sucedido por um breve momento de sossego
diurno, pouco antes do cair de uma nova noite, como ressalta a décima quinta estrofe.
Como indicamos anteriormente, o campo literário apresenta imperativos e ícones
próprios, tais como escritores consagrados, aspirantes e “malditos”, cânones temáticos e
estilísticos, a existência de críticos literários e periódicos mais ou menos especializados.
Desse modo, a emergência da poesia de Augusto dos Anjos efetiva-se como a realização de
uma possibilidade inscrita em seu campo social e literário. Para Bourdieu131:

Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimensional de


posições tal que qualquer posição actual pode ser definida em função de um
sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos
valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim
nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que
possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital –
quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto das
suas posses.

Oriundo dos setores privilegiados da sociedade do interior da Paraíba, integrante da


camada dos proprietários de engenho, o poeta do “Eu”, portanto, inseria-se num campo social
e econômico específico. Sua atividade mimética relacionava-se com as particularidades
inscritas em seu campo e apresentavam-se como possibilidades num determinado horizonte.
Nessa lógica, a atividade mimética através da poesia, enquanto condensação de uma
atividade de representação, como sugere Luiz Costa Lima, emerge, precisamente, no seio de
um dado campo social. A atividade mimética leva em consideração, em sua constituição mais
íntima, as práticas sociais, discursivas e suas redes simbólicas então vigentes, seja para
reafirmá-las, seja para negá-las, criticá-las.
A mímesis se relaciona com as representações sociais, mas não se “reduz” ou se
confunde com elas. Uma distinção essencial entre a atividade mimética e a atividade de
representação social é marcada, segundo Luiz Costa Lima132, em três pontos iniciais

a) os sistemas de representação funcionam como uma linguagem


semiológica. Menos socialmente estável (...) nem por isso ela deixa de
cumprir a função básica a toda linguagem, i.e., servir de meio de
comunicação. (...) enquanto a linguagem verbal se destina em princípio à
comunicação, os sistemas de representação estabelecem sobre esta uma
segunda rede (grille): a da diferenciação social. (...) Isto significa dizer que

131
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1989. p.135.
132
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.74-75.
77

tais sistemas fornecem tanto o cimento para a identidade social (...) quanto
para a separação; b) embora menos estáveis que as formas verbais, os
sistemas de representação são dotados de força coercitiva (...) c) Não é por
acidente que, no início da reflexão grega sobre a mímesis, esta não se
dirigisse especificamente à arte.

Indagar a poesia de Augusto dos Anjos não é pressupor uma redução mecânica à mera
representação social, o social entendido como algo monolítico que preexiste ao texto e que o
determina, a poesia sendo, então, um reflexo passivo desse “algo anterior”, seja visto como
condição social, econômica ou outra equivalente.
Tampouco podemos dizer que é o desdobramento de um gênio imanente, ininteligível.
Mais do que isso, a poesia é ato de (re)criação ao mesmo tempo em que é a condensação de
uma atividade de representação que não é determinada por uma única dimensão, mas, sim,
pelos elementos que se fazem presentes em seu estrato temporal. Evitando essas reduções, ao
indagarmos a poesia, indagamos o momento histórico que a envolve133.
Sem perder de vista a relação intrínseca entre a atividade mimética, pela poesia, e a
atividade de representação, que não se isenta de seu lastro social, uma das questões essenciais,
para Luiz Costa Lima, é que a atividade mimética não constitui uma linguagem secundária
(ou menor) em relação à linguagem semiológica que perpassa os sistemas de representação e
que contribui na instituição de formas de diferenciação social.
A poesia de Augusto dos Anjos, enquanto atividade mimética, consistiu na utilização
da linguagem em sua função estética, diferente de sua função cotidiana, pragmática. Os
sujeitos apropriam-se da linguagem (falada ou escrita) para agir diretamente no mundo que os
cerca, para normatizá-lo, ordená-lo.
Através da utilização da linguagem (seja em sua função pragmática ou estética) os
indivíduos nomeiam as coisas, criam rótulos, definições, organizam, classificam,
discriminam, aproximam e separam os espaços e as pessoas, criam leis, permitem e
interditam. Pela linguagem, investe-se o mundo com sentidos e significados práticos, diretos,
mas também simbólicos, indiretos, que nos ajudam em nosso “estar no mundo”134.

133
“...inexiste a poeticidade em si mesma, até porque o reconhecimento do valor poético não é função da
qualidade, pretensamente objetiva, do texto, mas o resultado de um acordo entre a proposta do texto e a
aceitação do leitor; aceitação, ademais, que não há de ser interpretada como um ato individual, pois ela não se
cumpre sem a admissão, a presunção ou a premonição de uma norma estética, que, como qualquer norma, é
sempre de ordem social. O que vale dizer, o valor estético não existe por si.”. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e
Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980, p.76.
134
“Pelo uso pragmático da linguagem, pretende-se uma atuação direta sobre a realidade (...) Face à função
pragmática, a estética se diferencia por ser uma forma sui generis de comunicação. Sui generis porque só
indiretamente estabelece uma relação com o real. E nisto a mímesis se distingue das outras formas de
representação social. (...) sem dúvida, a mensagem ficcional provoca uma atuação, pelo conhecimento, sobre o
real. (...) Em consequência do exposto, resultam dois efeitos: a) a obra poética não se pode considerar
78

A discussão acerca da dialética entre “luz” e “escuridão” como traço da temporalidade


moderna e sua presença na poesia de Augusto dos Anjos pode, aos nossos olhos
contemporâneos, parecer anedótico. Contudo, como afirmamos, indagar sua poesia é, ao
mesmo tempo, indagar os estratos temporais nos quais ela emergiu.
Como afirmou Bachelard135, o tipo ou a intensidade da luminosidade que nos cerca
condiciona e dá forma àquilo que enxergamos, ou não. Seja a luz natural, seja a chama de
uma vela, seja a luz elétrica, cada qual dá contornos aos fenômenos e sujeitos que
contemplamos, assim como, condicionam nossas relações, tanto íntimas, quanto sociais, além
de influenciar nossa imaginação, nossos temores e sonhos.
Augusto dos Anjos e família, após a venda dos engenhos que integravam seu
patrimônio, ocorrida em 1908, instalaram-se, definitivamente a partir desse ano, na cidade de
João Pessoa/Parahyba do Norte. Como observou Waldeci Chagas136, a iluminação elétrica
consistia num símbolo fundamental da modernidade, haja vista proporcionar a vivência de
nossas atividades e experiências, íntimas, de lazer ou de trabalho, dentro ou fora de casa, para
além dos ritmos naturais do ciclo dia-noite:

A luz elétrica constituiu a novidade do século, pois possibilitou substituir os


bondes de tração animal por bondes modernos e velozes, e promoveu a
instalação e manutenção dos novos equipamentos urbanos, a exemplo das
praças e jardins públicos (...) a cidade da Parahyba do Norte [João Pessoa]
entrou no século XX na escuridão, iluminada por apenas 300 lampiões
alimentados a azeite de mamona e querosene, os quais não funcionavam nas
noites de luar e estavam restritos às ruas onde se localizavam as igrejas, os
seminários, conventos, e prédios do erário público.

Vejamos outro soneto de Augusto dos Anjos que novamente privilegia o período
noturno. Intitulado, “O Morcego”137, esse texto fora publicado na primeira edição do “Eu”,
em 1912, sem ter sido publicado anteriormente em periódicos ou jornais:

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.


Meu Deus! E este morcêgo! E, agora, vêde:
Na bruta ardencia orgânica da sede,
Morde-me a guéla ígneo e escaldante molho.

realizada, a não ser no estrito sentido material, senão acolhida pelo leitor. Em si mesma, em sua textualidade, a
obra é apenas um quadro de indicações que só se ativam pela participação ativa do leitor. b) a produção ativa
do leitor torna o esquema da obra em representação de realidades diversas, de acordo com a ativação que dela
faz.”. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. Rio de Janeiro. Editora Graal. 1980,
p.76-77.
135
BACHELARD, Gaston. A Chama de uma Vela. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, 1989. p.39-59/91-
107.
136
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004. p.52-53.
137
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.13.
79

<<Vou mandar levantar outra parêde.>>


– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobe a minha rêde!

Pégo de um pau. Esforços faço. Chego


A tocal-o. Minh‟alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcêgo!


Por mais que a gente faça, á noite, elle entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Como dissemos, a noite parece configurar uma atmosfera propícia às reflexões que
capturam o eu lírico. Traço do romantismo, é nesse período que os sonhos e outras
sensibilidades afloram, quer sejam positivas, ou não. Georges Vigarello138 assinala que desde
o século XVIII e, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, teóricos,
biólogos e outros estudiosos se debruçaram sobre os sons e sinais que nosso corpo manifesta.
O pressuposto seria que, dentro de nós, haveria um tipo de núcleo constitutivo daquilo que
nós somos. Deveríamos, então, tentar compreender o que era esse ser que parecia
internamente nos habitar.
Nos versos de Augusto dos Anjos, se nos orientarmos pela noção de que “quarto” e
“morcego” constituem metáforas para nosso corpo e consciência, percebemos: que o morcego
faz movimentos circulares sobre a rede; tenta-se atingi-lo, mas em vão; não se consegue
expulsar do quarto esse animal, fruto de “...tão feio parto”. Explorando a metáfora, ao
pressupormos a consciência como sentido íntimo de nosso ser, não podemos dissociá-la de
nós mesmos e de nosso corpo, assim como, não foi possível expulsar o “morcego” do quarto.
Como já foi mencionado, a instalação da luz elétrica, na cidade de João Pessoa, assim
como, em outras cidades brasileiras, terminou por modificar as práticas e as sensibilidades.
Não somente permitia uma nova forma de lidar com a luminosidade, como também
prenunciava a instauração de novos ritmos sociais, já não mais “presos” à luminosidade
natural, ou à falta dela. Novos costumes surgiram, assim como, novos espaços.
Entre os espaços derivados da instalação da iluminação elétrica em João Pessoa,
segundo Chagas139, “...os cinemas [em conjunto com], cafés e salões noturnos [foram] os
lugares que mais se afirmaram como espaços de lazer e principais denotativos da nova

138
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016.
139
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004. p.150.
80

época.”, em que pese, por exemplo, grupos mais religiosos enxergarem com maus olhos esses
estabelecimentos, sobretudo, o cinema, em cujo espaço poderiam ocorrer práticas que seriam
contrárias ao que se considerava ser “bons modos”.
Nos próximos textos selecionados para análise, intitulados “A Ilha de Cipango” e
“Uma Noite no Cairo”, ambos publicados no “Eu”, vemos a já referida articulação da
temática da noite com os tópicos românticos das “ermas paragens” e do “oriente exótico”.
Nos primeiros versos de “A Ilha de Cipango”140, o eu lírico é apresentado como
solitário e sua percepção da realidade se torna confusa: nas metáforas apresentadas, as
estradas se transformam em serpentes e o eu lírico é associado a um verme que passeia em
meio à podridão que o cerca. A luz do sol, ao contrário das poesias analisadas anteriormente,
não faz os conflitos cessarem, nem mesmo momentaneamente. É o deslocamento para outro
espaço que cumpre essa função. A partir da sexta e na oitava estrofe do poema, esse eu lírico
é arrebatado e jogado na referida ilha:

Mas de repente, num enleio doce,


Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cypango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A arvore da perpetua maravilha,
A‟ cuja sombra descansou Colombo!
(...)
Lembro-me bem. Nessa maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um paiz de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil Oasis
E em cada rocha um crystallino veio.

As imagens são marcadas por traços oníricos e paradisíacos. A ilha, na sétima


141
estrofe , é descrita como “rica”, “encantada”, possuidora de um “amplo floral risonho”. O
espaço como um todo é “edenizado”. Todas as suas características positivas são
hiperbolizadas. Esse espaço/tempo utópico é distinto e despojado de características modernas
(urbanização, eletricidade, poluição sonora, tráfego de automóveis, etc.).
No espaço da ilha, há uma sublime manifestação de amor, proporcionada por um
gênio que conduziu o eu lírico para tal espaço edenizado e o fez sentir esse amor etéreo,
incomparável. Entretanto, a situação positiva logo mudaria por conta da intervenção desse
mesmo gênio. Na nona, assim como, na décima e na décima segunda estrofes, lemos142:

140
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.104.
141
ANJOS, 1912, p.104.
142
Idem, Ibidem, p.105.
81

Gozei numa hora séculos de affagos,


Banhei-me na agua de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com um panno de mortalha
Que estou cosendo para meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!


Um penetrante e corrosivo frio
Anesthesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
(...)
E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via Lactea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!

Vemos o tópico romântico das “ermas paragens”. Seria somente nesse lugar,
inacessível pelos meios comuns, que a felicidade plena foi possível. Todavia, a estadia nesse
local paradisíaco não pode ser contínua. Da mesma forma que em outros versos comentados
anteriormente, é a noite que faz cessar o estado positivo então vivido, por exemplo, no verso
presente na décima primeira estrofe143, “A tarde morre. Passa seu enterro.”, assim como, o
primeiro verso da última estrofe: “e a treva ocupa toda a estrada longa...”144.
Já no poema “Uma Noite no Cairo”145, que retoma o tópico das “ermas paragens”, a
estadia do eu lírico parece ter sido não somente mais breve, quanto o papel por ele assumido é
o de um simples observador: não há vivência ou experiência efetiva daquilo que é descrito,
apenas a observação, a contemplação. Vejamos146 a primeira, a quarta, a quinta, a sexta e a
oitava estrofes:

Noite no Egypto. O céu claro e profundo


Fulgura. A rua é triste. A lua cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Pharaós anda e vagueia.
(...)
Como um contraste áquelles miseréres,
Num kiosque em festa a alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.

143
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.105.
144
ANJOS, 1912, p.105.
145
Idem, Ibidem, p.69.
146
Idem, Ibidem, p.69-70.
82

Tonto do vinho, um saltimbanco da Asia,


Convulso e rôto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epiléptico de injúria!

Em derredor duma ampla mesa preta


– Última nota do connubio infando –
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.
(...)
Vaga no espaço um sylpho solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...
Apenas, como um velho stradivário,
Soluça toda a noite a agua do Nilo!

Percebemos que, nas poesias anteriores, a noite é sempre tenebrosa, sobretudo, quando
o próprio eu lírico toma a si mesmo como objeto de reflexão, ou seja, quando tematiza os
sentimentos que possui, ou almeja possuir. Da mesma forma, na “Ilha de Cipango”, ele
somente sofre em função daquilo que viveu, isto é, naquele espaço, num momento, ele gozou
“séculos de afagos”. No entanto, tudo lhe foi, em seguida, retirado.
Já nos versos acima, o eu lírico não vivencia, não tem experiência daquilo que
testemunha: não sai de sua posição como observador. Talvez seja essa a razão da presença de
imagens poéticas mais positivas do que negativas, então apresentadas, na medida em que o eu
lírico não é sujeito ativo em face daquilo que presencia.
Em outro poema, intitulado “Queixas Noturnas”147, mais uma vez a noite é o ambiente
para o aflorar de sensações incômodas. Composto por dezenove estrofes, vemos lamentações
derivadas de um profundo conflito interno. Tem-se consciência do dilema que o constitui, ao
mesmo tempo em que se padece diante da incapacidade de resolvê-lo. Na primeira estrofe,
vemos o eu lírico vagando pela noite: “Quem foi que viu a minha Dor chorando?! / Saio.
Minh‟alma sáe agoniada. / Andam monstros sombrios pela estrada / E pela estrada, entre estes
monstros, ando!”.
A noite termina sendo apresentada como o cenário ideal para a percepção da
incapacidade de resolver os dilemas e aflições então vividos. Na quarta estrofe 148, em
contraposição à noite, é a luz do sol que se almeja obter: “Como um ladrão sentado numa
ponte / Espera alguém, armado de arcabuz, / Na ancia incoercível de roubar a luz, / Estou a´
espera de que o Sol desponte!”
Logo, apresenta-se o eu lírico como sofrendo por conta da incapacidade de poder amar
e ser amado. O desejo de superar essa incapacidade é metaforizado como sendo uma luta “Da

147
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.114.
148
ANJOS, 1912, p.114.
83

Creatura contra a natureza!”149. A consciência dessa incapacidade é sentida e percebida no


período noturno, como podemos ver na sétima estrofe. Além desta, vejamos150 também a
décima terceira e a décima quarta estrofes:

A Noite vae crescendo apavorante


E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante
(...)
Sobre histórias de amor o interrogar-me
E‟ vão, é inútil, é improfícuo, em summa;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem ha mulher talvez capaz de amar-me

O amor tem favos quentes e tem caldos quentes


E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal:
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

As duas últimas estrofes acima, assim como outras, que serão analisados em seguida,
reforçam uma imagem que alguns leitores e autores atribuem à Augusto dos Anjos, que seria
um poeta avesso ao tema do amor. Contudo, se este tema é menos frequente nas poesias
colhidas em livro, se faz mais presente, mesmo de modo ambivalente, nos textos que foram
publicados apenas em jornais e periódicos. Alguns críticos e biógrafos comentam que
Augusto dos Anjos teria tido, antes de se casar, experiências amorosas mal fadadas, além da
insinuação de um suposto incesto151 o que teria152 estimulado versos mais sombrios. Contudo,
nossa análise focará mais os sentidos históricos do que a investigação biográfica em si.
Isto nos conecta com o segundo conjunto temático que discutiremos nas próximas
seções, nas quais tomamos como ponto de análise os ideais de amor “romântico” e amor
“carnal”, os quais também se relacionam com diversas sensibilidades intrínsecas à
modernidade. Muitas das novas formas de sentir terminaram transformando diversas
dimensões da vida social, seja nos seus aspectos coletivos, seja na esfera privada.

149
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.115.
150
ANJOS, 1912, p.115-116.
151
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio. 1967, p.79-82/90; RAMOS,
Adauto. Augusto dos Anjos: Resgate Histórico. Sapé, Prefeitura Municipal de Sapé, 2002, p.19; Um romance,
intitulado “Proibição”, escrito por Alexandre dos Anjos, um dos irmãos de Augusto dos Anjos, também
alimenta essas especulações In: MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora
Ideia, 2001, p.57-71
152
VINAGRE, José Caó. O Terrível Segredo de Augusto dos Anjos. Revista O Cruzeiro, 30 de Outubro de
1974, p.52-57.
84

3.2 As Noções de Amor “Romântico” e “Carnal”

As noções de amor “romântico” e amor “carnal” serão utilizadas, aqui, como definição
para a distinção entre determinadas práticas e imagens poéticas. A poesia de Augusto dos
Anjos também dialogou com essas noções, mesmo que, entre seus textos mais conhecidos, a
temática do amor não seja predominante, nem mesmo no modo romântico mais convencional.
Em sua poesia, identificamos a ambivalência entre imagens que operam com
representações de um amor mais “idealizado”, enquanto outras imagens tematizam o amor em
suas manifestações “carnais”. Como teremos oportunidade de ver, as manifestações “carnais”
são postas numa ótica mais negativa, em contraponto às representações mais romantizadas.
Em nossa leitura, essa distinção observada se relaciona com a dinâmica de seu tempo.
Cabe lembrar, como sugeriu Marshal Berman, que exigia-se dos sujeitos sob o signo
da modernidade um constante esforço para que fosse possível acompanhar as dinâmicas então
vividas. Como a ideia de novidade adere ao ideal de modernidade, o presente deve ser sempre
“novo” e, para permanecer assim, deve ser entendido como uma novidade em contínua
atualização. Para que essa atualização contínua se processe, ocorre um choque, pois, como
observou Koselleck153, o passado ocupa o presente como experiência “acumulada”, como
conhecimento do “já vivido”.
Dessa forma, para que a “novidade” seja uma constante contínua e progressiva, aquilo
que é considerado “tradicional” passa a ser colocado em questão, quando não,
verdadeiramente rechaçado. Em face de uma ambivalência como essa, Marshal Berman154
sugere que um dos efeitos colaterais da modernidade é nos encontrarmos “...hoje em meio a
uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria modernidade.” Isto porque,
como a novidade é anexada à todo um conjunto de valores positivos, da mesma forma, o
“tradicional”, ou antigo, passa a ser concebido, muitas vezes, negativamente. No tocante às
relações íntimas, amorosas, isso também ocorre.
Numa ótica mais próxima do amor “romântico”, os amantes, o casal, devem jurar
fidelidade um ao outro. Em compensação, para ambos, em tese, fecha-se a possibilidade de
encontrar novos parceiros. Assim sendo, o ideal de amor “romântico” preza mais a
estabilidade e a continuidade. O ideal de amor “carnal” proporcionaria a “novidade” contínua:
ausentes a fidelidade e a monogamia, vários poderiam ser os novos parceiros.

153
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: Contribuição à Crítica da Semântica dos Tempos Históricos. Rio
de Janeiro. 2006. p.309.
154
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007. p.26.
85

Além disso, nas experiências de individualização que são estimulados pelo advento da
modernidade, há a elaboração de duas dimensões, ao mesmo tempo complementares e
opostas: a esfera pública e a privada. Se na primeira dimensão prevalece o exercício funcional
dos papéis sociais, na segunda dimensão, seria possível aos indivíduos criarem um mundo
íntimo, à sua imagem e semelhança.
Contudo, como as sensibilidades modernas se impuseram com uma velocidade
progressiva, exigindo, por sua vez, uma rápida mudança nos costumes e práticas, o que levar
em consideração, por exemplo, na vivência e construção da esfera íntima: o passado, o já
conhecido, a continuidade, ou o instante presente, a mudança, a novidade? Ou seja, como as
experiências e relações íntimas foram reformuladas e ressignificadas em face da emergência
da temporalidade moderna, sobretudo, na virada para o século XX?
Diante desse dilema, e, de certo modo, acompanhando a distinção entre a dimensão
pública e a privada, exigiu-se, antes de tudo, um maior empenho em relação àquele processo
de individualização sugerido acima. Este processo exige que o indivíduo busque uma
compreensão de si mesmo, investigando e conhecendo sua natureza mais íntima.
Nessa compreensão, essa natureza interior, íntima, passou a ser relacionada com o
corpo em sua materialidade, de um modo dualista (tal como a distinção entre o público e o
privado), operando-se uma oposição entre a “alma” e o “corpo”. Para Alan Corbin155, “é inútil
tentar compreender o sentimento de identidade que orienta a vida privada no século XIX sem
uma reflexão preliminar sobre esta permanente dicotomia entre alma e corpo que gera as
atitudes de então.”
Dessa forma, a partir do século XIX, postula-se que, na natureza mais íntima e interior
de nossa individualidade, existiria uma espécie de substância, de “ego”, de “eu”, que não se
resume na matéria, mas que também não possui um “ser” cuja natureza seja bem definida ou
compreendida, apenas pressuposta e perseguida. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, tal
substância associada ao imaterial existiria em nosso corpo, este, matéria perecível, sujeito ao
envelhecimento, à inércia, às doenças.
A influência das dualidades apontadas (esfera pública e privada, “alma” e “corpo”),
por sua vez, passa a ser transposta para a temática dos relacionamentos íntimos e amorosos.
De um lado, existiria o relacionamento amoroso, que tende à vida conjugal, e que é associado
a uma dimensão mais idealizada e positiva. Do outro lado, haveria toda sorte de
relacionamentos íntimos que nem sempre têm como pressuposto um vínculo amoroso,

155
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.436.
86

sentimental. A relação íntima poderia ser pautada exclusivamente pelo desejo e busca da
satisfação carnal, sem a exigência e os imperativos que conduzissem à maiores compromissos
para além do próprio ato. Daí, já se percebe o aprofundamento da dualidade indicada acima,
estabelecida entre “alma” e “corpo”.
Para efeito de discussão, analisaremos alguns textos de Augusto dos Anjos que se
relacionam com a problemática dessa dualidade, inicialmente apontando e discutindo os
textos que operam com imagens mais associadas à noção de ideal romântico. Em seguida,
veremos como o amor “carnal” é expresso em seus versos. Inicialmente, observemos um de
seus primeiros sonetos, intitulado “Noivado”156:

Os namorados ternos suspiravam,


Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser?! O noivo então dizia
E a noiva e ambos d‟amores s‟embriagavam.

E a mesma frase o noivo repetia;


Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser?! E os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.

Vinha rompendo a aurora majestosa,


Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.

Chegara enfim o dia desejado,


Ambos unidos, soluçaram um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!

O tema central do poema, o noivado, cerimônia íntima, é cercado por um conjunto de


imagens solares (“venturoso dia”; “luz do sol esplendorosa”; “aurora majestosa”;), sendo
associado, também, à expressões positivas da natureza (“pássaros trinando”; “brisa suave”;
“rouxinóis sonoros;”). Todas essas metáforas reforçam a idealização da circunstância. Esse
texto poético apresenta uma leveza quase frívola.
Dada a sua natureza associada à idealização, muitas vezes esse amor “romântico” é
metaforizado como sendo aquele sentimento que permanece mais sugerido do que realizado
efetivamente. Realizar esse amor “romântico”, idealizado, é rebaixá-lo a um patamar menos
sublime, o que o aproxima perigosamente não somente das armadilhas do cotidiano, como
também da dinâmica carnal, da manutenção ou ausência de desejo. Outro soneto, intitulado
“Ara Maldita”157, em nossa leitura, opera bem com essas representações:

156
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.378.
157
ANJOS, 1994, p.420.
87

Como um‟ave, cindindo os céus risonhos,


Meiga, tu vinhas a cindir os ares,
E, qual hóstia caindo dos altares,
Foste caindo n‟ara dos meus sonhos.

E eu vi os seios teus virem inconhos,


– Esses teus seios que os cerúleos lares
Branquejaram de eternos nenúfares,
Para nunca tocarem negros sonhos!

Caíste, enfim, no meu sacrário ardente,


Quiseste-me beijar a ara do peito,
E eu quis beijar-te o lábio redolente.

E beijei-te, mas eis que neste enleio


Tocando n‟ara a negra no níveo seio,
Caíste morta ao celestial preceito.

A mulher e as referências ao seu corpo são idealizadas. No entanto, no momento em


que a consumação da relação amorosa começa a ser efetivada, a morte ceifa a vida da mulher
amada. Em que pese a idealização, bastante recorrente, da figura da mulher na estética
romântica, ressaltamos que tanto a noção de amor “romântico” quanto a de amor “carnal”,
atribuem valores ambivalentes à figura feminina. Como observou Alain Corbin158:

[A bipolaridade da natureza feminina é fortemente caracterizada, pois] ...


pelo sinete da antiga aliança com o demônio, a filha de Eva a cada instante
corre o risco de precipitar-se no pecado; sua própria natureza reclama o
exorcismo. A mulher, próxima do mundo orgânico, beneficia-se de um
íntimo conhecimento dos mecanismos da vida e da morte. Ela, que tende a
identificar-se com a natureza, vive sob a permanente ameaça de forças
telúricas cuja existência se manifesta nos excessos da ninfomania e da
histeria.

Nesse sentido, a figura feminina é enquadrada naquele binômio que opõe “alma” e
“corpo”, sendo que, por sua própria natureza, a mulher estaria muito mais próxima e
vulnerável aos desejos nocivos e maliciosos do “corpo”, do que do bom senso e da
temperança da “alma”. Desse modo, é por intermédio da figura feminina que os homens tanto
poderiam encontrar o amor doméstico, conjugal, cotidiano, positivo, quanto a paixão
avassaladora, a sedução, o adultério, as relações íntimas descompromissadas, mas negativas.
Em outro soneto, há mais indícios dessa ambivalência. As metáforas e imagens
poéticas ainda estão elaboradas a partir de uma estética romântica mais convencional.

158
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
88

Contudo, a atração exercida pela figura feminina apela, de certo modo, mais às características
físicas, carnais. Nesse texto, intitulado “Pecadora”159, é a mulher que é a portadora do pecado:

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,


A chama cruel que arrasa os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb‟lo do pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado


No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,


Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria


Uma noute entre as vastas agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!

A ambiguidade que é atribuída à figura feminina está representada desde os primeiros


versos. O olhar da mulher, ao mesmo tempo em que é descrito como dotado de características
suaves (“cetíneo”; “aveludado;”), traz consigo “a chama cruel que arrasa os corações”. Com
os contornos do corpo similares ao mármore, seus seios parecem símbolos que convidam ao
pecado. Contudo, não fica claro qual pecado essa mulher teria cometido.
Os dois tercetos finais desse soneto dão pistas do que pode ter lhe acontecido.
Certamente, a mulher morreu, ao que parece, em profunda agonia. A palavra “verme”,
indicada no último verso, que estaria presente em seu corpo, talvez signifique uma gestação
não desejada, fruto de um relacionamento íntimo “ilegal”, extraconjugal.
Para Corbin, quando se associa a figura feminina à natureza, ressalta-se sempre a sua
condição volátil, imprevisível. É como se a mulher fosse mais sujeita às condutas passionais,
irracionais, do que o homem, o qual seria naturalmente mais sensato e equilibrado. De acordo
com Corbin160, “quando essas lavas incandescentes conseguem escapar sem controle, o sexo
frágil rompe os grilhões, insaciável em seus amores, fanático em suas crenças, assustador
como o louco em sua gesticulação.”.
Estes são alguns traços atribuídos à figura feminina. Em sua associação com a
“natureza”, ou seja, na medida em que a “natureza” seria, também, feminina, uma “mãe”,

159
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno). p.384.
160
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
89

como já se representou, a mulher seria capaz de proporcionar ao homem as mais sublimes


emoções da vida, nutrindo-o, acalentando-o, dando-lhe a própria vida. Entretanto, haveria na
condição feminina, da mesma forma que na “natureza”, uma potência virtualmente
destruidora, avassaladora. Ainda conforme Corbin161,

[A mulher é definida como] Simultaneamente marmórea e bestial, a mulher


esfinge, cingida pela serpente, os olhos iluminados por um brilho feroz...(...)
Os romancistas, especialmente Zola, farão com que este inquietante modelo
de devoradora se insinue até o ambiente popular dos subúrbios. Para os
homens da época, atormentados pelo medo da mulher, mais do que nunca é
preciso aplacar a sexualidade da companheira e submetê-la à ordem
masculina.

Como a poesia de Augusto dos Anjos dialoga com variados polos de influência, tanto
temática, quanto esteticamente, assim como, com as sensibilidades da temporalidade
moderna, as menções ao tema do amor, em muitos de seus versos, também apresentam aquela
ambivalência associada à condição feminina.
Um soneto capaz de indicar essa questão intitula-se “Versos de Amor”162, o qual, em
sua epígrafe, é dedicado “A um poeta erótico”, porém, sem maiores identificações. Em suas
duas primeiras estrofes, lemos:

Parece muito doce aquella canna.


Descásco-a, provo-a, chupo-a Illusão trêda!
O amor, poeta, é como a canna azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,


E hoje que, enfim, conheço seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as sciencias menos esta sciencia!

Estas estrofes sugerem, precisamente, a ambivalência do amor, o qual, nesse caso


específico, implica implicitamente ao gênero feminino, pois é a mulher que conduziria o
homem àquele sentimento. Numa metáfora que pode ser identificada com o ambiente do
nordeste, dos engenhos produtores de cana de açúcar, universo no qual o poeta vivia, o amor,
apesar de parecer “doce”, iludiria aquele que o prova.
É por essa razão que o eu lírico, após buscar conhecer o amor por experiência, afirma
que preferiria ter o conhecimento de todas as ciências, menos a deste sentimento. Novamente,

161
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.519.
162
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.86.
90

é sugerida uma espécie de dualidade: o amor seria doce somente enquanto permanecesse não
experimentado. Nas estrofes seguintes163, vemos

Certo, este o amor não é que, em ancias, amo


Mas certo, o egoísta amor é este que acinte
Amas, opposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquillo que eu não chamo.

Opposto ideal ao meu ideal conservas.


Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, observas.

O eu lírico opõe dois pontos de vista, sugerindo que o fenômeno do amor também é
uma questão de perspectiva. Talvez essa oposição indicada seja a noção de que haveria um
amor, mais egoísta, provavelmente aquele que deseja apenas possuir o corpo do outro, em
contraponto à outro tipo de amor, menos possessivo, mais relacionado com a “alma”. Nas
estrofes164 finais, lemos ainda:

Porque o amor, tal como eu o estou amando,


E‟ espírito, é éther, é substância fluida,
E‟ assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

E‟ a transubstanciação de instinctos rudes,


Imponderabilíssima e impalpável
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento


Daqui por diante, attenta a orelha cauta,
Como Marsyas – o inventor da flauta –
Vou inventar outro instrumento!

Mas de tal arte e especie tal fazê-lo


Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas declinal-o
Possam todos os homens comprehendel-o!

Para que, emfim, chegando á ultima calma


Meu pôdre coração rôto não role,
Integralmente desfibrado e molle,
Como um saco vasio dentro d‟alma!

Nesse sentido, o poema se encerra sem romper com uma perspectiva romântica, haja
vista a sugestão de que seria necessário inventar outra linguagem para os interlocutores

163
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.87.
164
ANJOS, 1912, p.87.
91

adquirirem uma compreensão similar do que seja o verdadeiro amor, para que, então, os
corações se preencham com o sentimento adequado e adequadamente correspondido. Isto
evitaria que, quando a morte chegasse, “meu pôdre coração roto não role, / integralmente
desfibrado e mole, / como um saco vazio dentro d‟alma!”.
O amor “romântico”, tal como a figura feminina, seria ambivalente, paradoxal. A
vivência desse sentimento tanto pode ser prenúncio de uma saudável vida conjugal, atmosfera
primeira para a construção da moderna família nuclear, quanto pode ser o gatilho inicial para
a eclosão de relacionamentos íntimos, mas sem significado imediato ou à longo prazo.
Voltado para um horizonte mais amplo, o amor “romântico” seria, inicialmente, pautado pelo
desejo, mas é transubstanciado em algo mais elevado. Como afirma Corbin165, “A paixão
passa a ser unicamente energia; provoca o choque elétrico do ser, que preludia o amor.”
Nessa concepção, a figura feminina seria o vórtice que proporciona ao homem tanto a
vida virtuosa, quanto a vida pecaminosa. Se o homem é conduzido pela mulher para esse
primeiro caminho, isto significaria a construção de um relacionamento mais etéreo, espiritual.
Se, por outro lado, é o segundo caminho que é trilhado, a mulher tornar-se-ia uma espécie de
responsável pelo desvio de seu companheiro. Para Corbin166: “A virgem etérea, diáfana, nega
a tal ponto a sexualidade de seu companheiro que se torna inquietante, insidiosamente
castradora. O homem volta a ser vítima daquela que o elevou ao nível dos anjos a fim de
melhor exorcizar sua animalidade.”
O elemento contraditório em relação à vida íntima orientada por essas duas noções de
“amor” (romântico e carnal) é que um pressupõe o outro, ao mesmo tempo, que ambos
parecem se negar mutuamente. A vivência da sexualidade, no amor “romântico”, possuiria
uma funcionalidade e uma finalidade “naturalizada” (o sexo sendo necessário para a
reprodução), o prazer proporcionado pelo amor “romântico” devendo ser espiritual.
Enquanto isso, há uma dimensão da vida amorosa, íntima, totalmente voltada ao
prazer sexual, carnal, que não pode ser negligenciada. De um lado, a esposa suscita no homem
um amor abstrato. Contudo, como sua sexualidade é normatizada por valores sujeitos à
determinadas regras morais, terminaria “negando” ao homem outros tipos de prazeres sexuais
que podem ser considerados “imorais”. De outro lado, e por conta disso, o homem justificaria
sua busca por tais prazeres da carne fora de casa.

165
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.522.
166
CORBIN, 1991, p.522.
92

Essa ambivalência em relação aos significados e sentidos atribuídos ao amor também é


percebida nos versos de Augusto dos Anjos. Como vimos, há poesias suas nas quais o eu
lírico canta o amor “romântico”, idealizado, abstrato, espiritual. Em outros versos, elabora
imagens que rubricam o caráter menos espiritual e mais carnal do amor natural.
No longo poema “Monólogo de uma Sombra”167, existe um solilóquio de falas e
afirmações feitas pela “Sombra”, a qual personificaria a morte. Em determinado momento do
poema, a “Sombra” apresenta o personagem “Sátiro Peralta”, oposto ao outro personagem, no
caso, o “filósofo moderno”, cuja presença nesse poema foi indicada no capítulo anterior. Ao
contrário do “filósofo-cientista” moderno, empenhado em conhecer os mistérios últimos do
mundo através da ciência, e mesmo para além dela, o “Sátiro” entrega-se, sem culpa e sem
receio, aos prazeres da carne:

Est‟outro agora é o satyro peralta


Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo.
Como que em suas céllulas vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.


Suas artérias hircicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E á noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo aphrodisiaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,


Toda a sensualidade da symbiose,
Uivando, á noite, em lúbricos arroubos,
Como no babylonico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancára
A mucosa carnívora dos lobos.

Vemos como a prática da sexualidade desregrada (ou não normatizada pela tradição ou
moral convencional), atribuída ao “sátiro”, possui características completamente diferentes
daquelas associadas ao amor “romântico”. O sátiro, embriagado pelo desejo é atraído pela
sensualidade sodomita, frequenta bordéis (o bazar do meretrício), beija bacantes bêbadas, etc.
É no espaço do bordel, portanto, que o sátiro consuma seu desejo carnal. A
sensualidade que ele encontra nas “bacantes” é definida como afrodisíaca, mas associada ao
“cuspe”, o que sugere certa impureza. Além disso, a conjunção carnal é metaforizada como
uma mistura, uma simbiose: um uivo é o resultado do choque entre os corpos dos amantes. O

167
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.08.
93

desejo que o Sátiro buscava saciar é metaforizado como “a mucosa carnívora dos lobos”,
sempre famintos. O aflorar dessa sexualidade desregrada é associada à natureza do ser
humano como a expressão de uma “animalidade sem castigo”.
O amor “carnal”, portanto, é associado à “animalidade” que estaria presente em nosso
ser. É como se, na ausência de uma educação sentimental/sexual, pudéssemos ser facilmente
seduzidos pela possibilidade da fruição desregrada da sexualidade. Na poesia de Augusto dos
Anjos, em sua maioria, as referências ao amor “carnal” estão sempre envolvidas por uma
perspectiva negativa.
A ambivalência da qual falamos alguns parágrafos atrás se radicaliza. Ao passo em
que o amor “romântico” pressupõe convivência, muitas vezes o amor carnal não necessitaria,
senão, de conveniência. Logo, imerso na temporalidade moderna, e ainda no espírito daquelas
dualidades (“público” e “privado”; “alma” e “corpo”, “espiritual” e “carnal”), o amor
“romântico” mantinha ligações com a linguagem religiosa, ao passo em que o amor “carnal”
rapidamente tornava-se assunto médico168:

Segundo Bronislaw Baczko, a palavra “sexualidade” só aparece em 1859 –


talvez em 1845. Ela designa então apenas o(s) caráter(es) do que é sexuado.
Antes da elaboração de nossa scientia sexualis, fala-se de “amor” e “paixões
amorosas”, de “desejos” e “instinto genesíaco”, de “atos carnais” e “atos
venéreos”; os médicos, de copulação e de coito.

Nessa lógica, há o entendimento de que a sexualidade é parte integrante e necessária


para a manutenção e renovação da vida e da espécie. Todavia, enquanto fato natural, ao ser
inserida no contexto humano, que é sempre histórico, ela passa a ser envolvida e significada
segundo as sensibilidades culturais e valorativas do momento então vivido.
Desse modo, na modernidade, a experiência da sexualidade continuava sendo colocada
num duplo prisma de interpretação. No primeiro, a prática sexual, que passa a ser normatizada
pela tradição, diria respeito à reprodução. Ela seria domestica(da), haja vista que a paixão
inicial entre os amantes teria se transformado no amor “romântico”, conjugal. O sexo seria um
dos encargos matrimoniais.
Numa segunda ótica, a vivência da sexualidade seria totalmente inserida num contexto
que visava apenas a satisfação imediata do desejo, ou seja, a paixão não se converteria em
amor “romântico”: ela apenas incitaria a consumação do ato. Nesse sentido, o amor “carnal”
não estaria subordinado à nada que não fosse a satisfação do próprio desejo.

168
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.528.
94

3.3 A Carne, o Osso e o Pó: Três Instâncias Temporais

A presença de referências sexuais e sensuais na poesia e na literatura não é rara.


Dependendo das representações propostas pelo romancista ou poeta, elas poderiam acenar
tanto para o “espírito”, quanto para a “carne” (lembremos, por exemplo, o romance “A Carne”
(1888), de Júlio Ribeiro). No prazer solitário da leitura, seja por um livro que se comprou,
seja pelo compartilhar de um livro emprestado por algum conhecido, determinadas imagens
literárias, por exemplo, poderiam excitar a imaginação de uma mulher casada, porém,
insatisfeita ou infeliz, de moças apaixonadas, mas ainda sem experiência, ou mesmo de
rapazes solteiros ou adolescentes em busca de iniciação. Para Corbin169,

O amor físico domina o romance e a poesia. A obscenidade, a um só tempo


onipresente e oculta nos volteios do texto, impõe ao leitor uma permanente
decodificação que atiça o prazer da transgressão. A elipse, a lítotes, a
perífrase ou ainda a metáfora convidam a imaginação a trabalhar. Assim
funcionam as evocações do paroxismo do gozo. Nesta literatura, pode-se
“tomar uma mulher”, que “se entrega”; então “a felicidade” – às vezes o
coito, às vezes o orgasmo – é feita de “indizíveis gozos, de “insólitas
delícias”, de um “prazer louco, quase convulsivo”.

Enquanto que a literatura podia, ou não, atiçar as práticas solitárias de mulheres e


moças, de rapazes adolescentes ou homens adultos, comprometido(a)s ou não, com ou sem
experiência, os canais de vazão da imaginação erótica já eram outros. Proibidos às mulheres
“honestas”, parcialmente interditados aos rapazes muitos jovens, os bares e os bordéis eram
espaços majoritariamente ocupados pelos homens “feitos”, casados ou solteiros.
Na poesia de Augusto, o espaço do bordel, assim como, a figura das prostitutas, é
representado de maneira negativa. Vejamos, a esse respeito, o soneto “O Lupanar”170:

Ah! Porque monstruosíssimo motivo


Prenderam para sempre, nesta rêde,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polygamo e lascivo?!

Este logar, moços do mundo, vêde:


E‟ o grande bebedouro coletivo,
Onde todos os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!

E‟ o aphrodistico leito do hetairismo,


A antecâmara lúbrica do abysmo,
Em que é mister que o gênero humano entre,

169
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.529.
170
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.42.
95

Quando a promiscuidade aterradora


Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

O ambiente do bordel, nos versos de Augusto, é um espaço desregrado, ou, de certo


modo, dotado de regras próprias. Há certa censura aos homens que o frequentam, definidos no
soneto acima como “polígamos” e “lascivos”. O bordel é metaforizado como um “bebedouro
coletivo”, e os homens, entregues à vazão de sua própria sexualidade, têm a sua natureza
reduzida à do animal, quando comparados ao “gado”. O bordel parece configurar o espaço por
excelência do desregramento sexual, ou não normatizado tradicionalmente. A existência
desses espaços parecem decorrer de uma ressignificação, talvez uma negociação, paralela aos
valores vigentes que os condenam.
Logo, se o sexo tem sua relevância, ele teria que ser normatizado. Por outro lado, o
bordel configura-se como “a antecâmara lúbrica do abysmo”, ou seja, os desregramentos ou
práticas não normatizadas tradicionalmente que lá existem (a “promiscuidade aterradora”),
faria definhar o organismo dos frequentadores, sejam homens, cuja “força geradora” é
enfraquecida, ou mulheres, que têm seus “óvulos” devorados, desperdiçados.
Reforçando aquela dualidade entre “alma” e “corpo”, entre amor “romântico” e
“carnal”, a sociedade, mesmo aquela que pode ser definida como a mais conservadora, tolera
a existência dos bordeis e das prostitutas, ainda que o bordel configure-se como o exato
oposto do lar, da residência conjugal, do domicílio familiar. Apesar de ser tolerado e de não
ser normatizado pelos mesmos valores que orientam o amor conjugal, haveria, nos espaços,
práticas e discursos que expressam o amor carnal, também o seu nível de ordenamento,
interno e autônomo, e uma funcionalidade social.
O desregramento que lá existe não seria, necessariamente, a ausência de todas as
normas, mas, apenas, a subversão ou o distanciamento em relação às normas e valores
convencionais, socialmente aceitos como “normais”, “sensatos”, não maliciosos ou
pecaminosos. Como Corbin171 observou em relação ao fenômeno do bordel,

A casa de tolerância de bairro vive [desempenha] (...) tripla função:


oficiosamente, pois o regulamento o proíbe, opera a iniciação dos menores,
sobretudo colegiais; satisfaz o “instinto genesíaco” dos solteiros encerrados
nos guetos sexuais, o que lhe confere uma clientela majoritariamente
popular; mas apazigua também, discretamente, os esposos frustrados.

171
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.538.
96

A manifestação do desregramento sexual no espaço bordel é a orgia, seja ela realizada


entre poucos parceiros, seja entre vários, simultaneamente. Há um soneto que opera com
imagens acerca do momento posterior à essa prática desregrada pelos valores convencionais,
intitulado, precisamente, “Depois da Orgia”172, publicado na primeira edição do “Eu”.
Vejamos:

O prazer que na orgia a hetaira goza


Produz no meu sensorium de bacchante
O effeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrophulosa!

Troveja! E anhélo ter, soffrega e anciosa,


O systema nervoso de um gigante
Para soffrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, emfim, despindo a última alfaia


Que ao commercio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha.

Similhante a um cachorro na atalaia


A‟s decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!

O momento de realização da orgia é associado à um prazer intenso, mas que encobre,


como sugere o termo “apostema”, algum tipo de mal estar, seja físico ou moral. O eu lírico
sugere ainda que o homem tem consciência desse mal que lhe incomoda. No entanto, realiza a
prática mesmo assim, pois sua “carne estuante” o move nessa direção.
A efetivação do ato, como conota os termos “despindo a última alfaia...” parece
proporcionar ao sujeito um esquecimento breve em face daquilo que lhe incomoda, mesmo
que isto retorne com o tempo, pois a decomposição do corpo agiria como resultante dessas
práticas, como um “cão vigia”, reafirmando a permanência do incômodo sentido.
O agente que estimula esse universo paralelo à sociedade “sensata” não parece ser o
homem, mas a mulher. Seria ela que excitaria a sexualidade natural do homem, tendo em vista
que, para ela, sua própria sexualidade fosse vista como uma ameaça constante de desvio.
Haveria algumas características e códigos imagéticos que são atribuídas à prostituta, tanto à
cortesã que circula em camadas mais privilegiadas, quanto àquelas mulheres presentes nos
círculos mais pobres. Algumas imagens atribuídas à prostituta/cortesã, citadas por Corbin173,
são associadas “... ao mau cheiro do lixo, ao dejeto orgânico, à enfermidade, ao cadáver;”.

172
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.91.
173
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.539.
97

O espaço do bordel, ocupado por homens de diferentes tipos e origens, assim como a
prática das prostitutas, terminavam configurando uma ocasião perfeita para a junção de
diferentes tipos de vício, os quais iam muito além do comércio de favores sexuais,
fomentando a decadência do espírito e do organismo. Por exemplo, a partir da vigésima
terceira até a vigésima sétima estrofes da segunda parte do longo poema intitulado “As
Cismas do Destino174”, vemos algumas representações desse tema:

(...)
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos Álvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterelisavam
A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das guélas,


E sacudidos de um tremor indômito
Expelliam, na dor forte do vomito,
Um conjuncto de gosmas amarellas.

Iam depois dormir nos lupanares


Onde, na gloria da concuspiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam, dest‟arte os blastodermas,


Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,


Por tua causa, embora o homem te acceite,
E‟ que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pae morrem de fome!

Nessas imagens poéticas, o alcoólatra anda de mãos dadas com a prostituta. Para o eu
lírico, é como se não houvesse nenhuma possibilidade para uma prática saudável da
sexualidade no espaço do bordel e entre esses agentes citados. O “bêbado”, por conta do seu
alcoolismo e pela convivência com prostitutas, “esterilizava” seu próprio sêmen,
“depositando” no bordel, semiconsciente, suas “...derradeiras forças musculares”.
Como resultante da união entre ambos, alcoólatra e prostituta, derivaria uma “progênie
idiota de palermas”. Disto resultaria “mulheres sem leite” cujos filhos, “..meninos sem pai,
morrem de fome”. Cabe observar, também, que a última estrofe citada acima ainda deixa
transparecer algo semelhante ao que discutíamos alguns parágrafos atrás, acerca da aceitação
da prática da prostituição pela sociedade.

174
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.29-30.
98

Em outro poema, mais longo do que os usuais sonetos, Augusto dos Anjos novamente
opera com a imagem da prostituta. Esse texto, composto por, aproximadamente, vinte e três
estrofes, intitula-se “A Meretriz”175. Foi publicado na segunda edição do “Eu”, em 1920,
mesmo com suas estrofes finais inacabadas. As estrofes iniciais apresentam a personagem:

A rua dos destinos desgraçados


Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da damnação carnal Lúbrica, á lua,
Na sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se, em chóreas doudas,
Uma mulher completamente nua!

E´ a meretriz que, de cabellos ruivos,


Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma esteira publica, recebe,
Entre farraparias e esplendores,
O erethismo das classes superiores
E o orgasmo bastardíssimo da plebe!

A meretriz, nesses versos, possuiria os caracteres negativos vistos na poesia anterior:


era simultaneamente ébria e lasciva. Além disso, ela é um alvo de dupla espoliação, tanto por
homens oriundos das classes mais privilegiadas, quanto por homens vindos das camadas mais
pobres. Protagonista de uma situação degradante, a meretriz rapidamente percebe a dissolução
que padece, através dos sinais presentes em seu próprio corpo, em sua carne.
Na quarta na quinta estrofes176 percebemos isso melhor. Se há uma tendência
interpretativa, como apontou Corbin177 para determinar o destino feminino a partir de seus
traços orgânicos, biológicos, anatômicos, ou seja, se o destino feminino, por sua condição
biológica, natural, fosse a maternidade, a prostituta seria o oposto direto desse ideal:

E‟ ella que, hirta, a archivar credos desfeitos,


Com as mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos, por fim, a ambulas molles,
Soffre em cada molécula a angustia alta
De haver secado, como o steppe, á falta
Da água creadora que alimenta as proles!

É ella que, arremessada sobre o rude


Despenhadeiro da decrepitude,
Na vizinhança aziaga dos ossuários
Representa, através os meus sentidos,
A escuridão dos gyneceus fallidos
E a desgraça de todos os ovários!

175
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.179.
176
ANJOS, 1920, p.180.
177
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.437.
99

Esses versos sugerem que a possibilidade de uma maternidade minimamente saudável,


para a prostituta, seria praticamente nula e, quando ocorre, não é difícil imaginarmos outras
dificuldades. A prática do meretrício anularia todos os elementos biológicos que
proporcionariam uma gravidez normal, assim como, dificultaria os cuidados mais básicos,
como o amamentar, exigidos pelo recém-nascido.
Como podemos ver nos últimos três versos da terceira estrofe178, seu corpo é invadido,
ou exaurido, por algo extremamente nocivo: “Sente, alta noite, em contorsões sombrias / Na
vacuidade das entranhas frias / O exgottamento intrínseco da besta!”. Para o eu lírico, na nona
estrofe179, todo esse processo de degradação,

E‟ o pseudo regosijo dos eunuchos


Por natureza, dos que são caducos
Desde que a Mãe-commum lhes deu início
E‟ a dor profunda da incapacidade
Que, pela própria hereditariedade
A lei da selecção disfarça em Vício!

Nessa perspectiva, o comércio dos favores sexuais é, simultaneamente, misto de


vício(s), lasciva e sensualidade, mas, também, de decadência do corpo (e da alma) e
proximidade com a morte. Além disso, os versos sugerem que esse processo seria um tipo de
mecanismo seletivo naturalmente aplicado, numa associação inadequada à ótica evolucionista
de Charles Darwin (1809-1882) e sua noção de “seleção natural”.
Outro texto que tematiza o papel e a condição da prostituta em seus versos é o longo
poema “Os Doentes”, que apresenta uma série de personagens e espaços próprios do ambiente
urbano. A sexta parte desse poema é dedicado às prostitutas. Os espaços destinados ao
comércio sexual continuam sendo representados de maneira negativa. Nesses lugares, tudo
começava desde o amanhecer: “Mas, para além, entre oscillantes chammas, / Acordavam os
bairros da luxuria. /As prostitutas, doentes de hematuria, / Se extenuavam nas camas”180.
A prática da prostituição e os espaços nos quais ela ocorria são associados à toda sorte
de enfermidade, a qual, no fim das contas, estaria no horizonte de todos os seres humanos, de
uma forma ou de outra. De certo modo, para o eu lírico, tudo figura como se esses
personagens e práticas simbolizassem uma espécie de tradução social de um processo de
dissolução que é natural. Vejamos181, na terceira à sexta estrofe da sexta parte do referido
poema, com uma dessas prostitutas é representada:

178
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.180.
179
ANJOS, 1920, p.181.
180
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p. 60.
181
ANJOS, 1912, p.60.
100

Uma, ignóbil, derreada de cansaço,


Quase que escangalhada pelo vício,
Cheirava com prazer no sacrifício
A lepra má que lhe roia o braço!

E ensangüentava os dedos da mão nívea


Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria barbara que cobre
Os saracoteamentos da lascívia.

De certo, a perversão de que era preza


O sensorium daquella prostituta
Vinha da adaptação quase absoluta
A‟ ambiência microbiana da baixeza!

Emtanto, virgem fostes, e, quando o éreis,


Não tínheis ainda essa erupção cutânea,
Nem tínheis, victima ultima da insânia,
Duas mammarias glândulas estéreis!

A dissolução do corpo feminino, em decorrência da prostituição, impediria até mesmo


o ato de amamentar uma criança. Toda a vitalidade que essa mulher possuía, quando era
virgem, jovem, havia se esvaído no exercício de sua profissão, associada ao vício. Seu corpo
está doente, marcado por feridas de lepra e erupções cutâneas. Sua sensibilidade já teria se
adaptado à atmosfera microbiana do ambiente em que vive/frequenta. O corpo masculino
participaria dessa dissolução ao entrar em contato com o corpo feminino, em meio à essas
práticas censuráveis.
Entretanto, se à condição feminina é postulada uma natureza ambivalente, cuja
tendência podia ser tanto negativa, quanto positiva, nos versos da oitava, da nona e da décima
estrofes da sexta parte, há uma indicação de possíveis causas sociais que motivariam a entrada
das mulheres nessa vida, conduzindo-as a seu trágico destino. Vejamos182:

Talvez tivésseis fome, e as mãos, em balde,


Estendestes ao mundo, até que, a toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.

E estais velha! – De vós o mundo é farto,


E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Frequentam diariamente vosso quarto!

Promettem-vos (quem sabe?!) entre os cyprestes


Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvanicas mais doces,
O noivado que em vida não tivesses!

182
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.60-61.
101

A fome pode ter impelido a moça a vender “...sua virginal coroa” ao ingressar na
prostituição. Após ter sido “consumida” pelos adeptos dos serviços oferecidos pelo
meretrício, a sociedade, ainda que não elimine essa prática e seus espaços, marginaliza e
“enxota” seus agentes. É interessante ver a indicação de causas sociais que motivariam a
entrada no meretrício, o que diminui um pouco a atribuição de uma condenação num sentido
moral geralmente feita à essa prática e às mulheres desse ofício.
Em que pese os sentidos negativos atribuídos ao amor “carnal”, a percepção da
sexualidade como uma atividade fundamental para a vida também é representada, como no
soneto intitulado “Volúpia Imortal”183:

Cuidas que o genesíaco prazer,


Fome do átomo e eurythmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!

Não! Essa luz radial, em que arde o Sêr,


Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continúa a arder!

Surdos destarte a apostrophes e brados,


Os nossos esqueletos descarnados,
Em convulsivas contorções sensuaes,

Haurindo o gaz sulphydrico das covas,


Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!

Na primeira estrofe, atenta-se ao fato de que o “genesíaco prazer”, o desejo sexual


mais instintivo cessaria tão logo que nosso corpo envelhece, apodrece, ou seja, anexa-se a
prática do sexo à saúde e jovialidade da atividade corporal, da carne. Todavia, na segunda
estrofe, há a antítese dessa tese inicial: a energia potencial do sexo “continua a arder” mesmo
depois da morte, trabalhando para “a perpetuação da Espécie forte”.
Desenvolvendo as imagens propostas no primeiro terceto, “...os esqueletos
descarnados” continuariam a praticar o sexo e expressar o desejo, “em convulsivas contorções
sensuais”. A prática da sexualidade possuiria como “combustível” “o gás sulfídrico das
covas”, derivado da putrefação. O sexo seria uma característica da matéria, fundamental para
a perpetuação da vida, da espécie.
De certo modo, é como se houvesse a sugestão de três instâncias temporais distintas,
por exemplo, da temporalidade moderna tal como concebe Koselleck. Se, para este, o tempo

183
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.220.
102

moderno implica numa dinâmica que toma como alvo a ser perseguido um futuro que deve se
comportar novidade e aperfeiçoamento contínuos, essas três instâncias temporais sugeridas
pelas imagens poéticas de Augusto dos Anjos, menos do que novidade e aperfeiçoamento,
indicam uma espécie de eternidade, de um tempo que perdura.
Três tipos de matéria em particular simbolizam essas três instâncias temporais: a
carne, os ossos e o pó/cinzas. Partindo do princípio de que a temporalidade moderna traz
consigo a novidade, a aceleração, projetando um conjunto de expectativas mais positivas do
que negativas para o futuro, há, nessa dinâmica, uma passagem, um fluir do tempo.
Na medida exata em que o ser humano é temporal, é finito, no mesmo movimento em
que ocorre essa dinâmica da temporalidade moderna, o tempo, nas imagens poéticas de
Augusto dos Anjos, impactaria os indivíduos de maneira negativa. Para o ser humano, finito,
a passagem do tempo, mais do que uma novidade ou um aperfeiçoamento, é um desgaste,
uma corrupção. Cada dia vivido é um dia a menos, não um dia acrescentado.
Esse fluxo temporal seria visto, primeiramente, no tempo da carne. A cada dia, seu
envelhecimento se intensifica. Dores e doenças se tornam mais presentes, mais comuns.
Como vimos no primeiro quarteto do soneto “Volúpia Imortal”, depois que a carne apodrece,
haveria o tempo do osso, este, mais perene do que a carne. Nele, ainda se faz presente o
“genesíaco prazer”, a “luz radial” necessária à perpetuação da “espécie forte”.
Acerca da terceira instância temporal, o tempo do pó, da cinza, simbolizaria um tempo
para além do tempo do osso, quando esse já não existisse mais, quando tivesse se tornado pó,
“cinzas”184. Ao contrário da temporalidade moderna, que sugere mudança, novidade,
melhoria, essas três instâncias temporais identificadas na poesia de Augusto dos Anjos
simbolizariam a finitude da carne e um tempo que perdura, que está para além do cronológico.
Como pudemos ver, há na poesia de Augusto dos Anjos diversas referências ao amor,
seja em sua interpretação romântica, seja naquela visão mais voltada para a dimensão carnal.
Essa distinção, por sua vez, aponta um conjunto de pares que as sensibilidades modernas
estimularam, a saber, o público e o privado, a alma e o corpo, o amor romântico e o carnal.
Neste domínio específico, as representações literárias acerca do amor carnal são
envoltas numa ótica mais negativa, haja vista que tais práticas contribuiriam para a aceleração
da degradação do corpo e da alma, ainda que esse processo de dissolução fosse tomado como
naturalmente inevitável.

184
Teceremos mais alguns comentários acerca das imagens do pó, da cinza, em nosso sexto capítulo.
103

CAPÍTULO 4
A IDENTIDADE NARRATIVA, A ESCRITA
DE SI E A ILUSÃO BIOGRÁFICA

4.1 Identidade Narrativa e Experiências de Individualização

“Eu”. Em nossa leitura, esse monossílabo é um indicativo de uma das principais


questões que marcavam as sensibilidades modernas ao longo do século XIX e na virada para o
século XX, a saber, a individualização dos sujeitos e a busca de si. Em decorrência dessas
experiências configuraram-se, como um labirinto, diversos desdobramentos e sensibilidades.
Uma porta de entrada para esse campo de discussões consiste na temática da identidade.
A partir de um contato com algumas reflexões propostas por Paul Ricoeur185, podemos
colocar a discussão da identidade em perspectiva e compreender com mais precisão os modos
pelos quais os sujeitos, para forjar essa identidade de si, recorrem à narrativa, seja ela literária
ou não. Dessa forma, conforme Ricoeur, investigar a temática da identidade exige a
compreensão da identidade pessoal, da elaboração do “Si” e das articulações destes aspectos
com a questão da narrativa.
Essas discussões se aproximam do nosso objeto de estudo porque, ao entrarmos em
contato com algumas poesias de Augusto dos Anjos, sobretudo, aquelas publicadas como
livro, podemos ser tentados à interpretá-las como sendo a expressão privilegiada de seu “eu”,
em sua pureza, coesão e transparência. Entretanto, ainda que sua poesia seja uma forma de
narrativa, deve-se evitar atrelar mecanicamente as representações literárias de um escritor ou
poeta como sendo manifestações automáticas do sujeito que escreve.
Desse modo, interpretamos o livro “Eu”, em suas duas edições, além de outras poesias
de Augusto dos Anjos, como expressões de uma experiência de individualização e busca de si
inerentes à modernidade. A compreensão da dialética entre modernidade e individualização
exige a discussão de seu desdobramento a partir de práticas narrativas. Assim, não podemos
perder de vista o fato de que as representações poéticas de Augusto dos Anjos, se apontam
para um indivíduo, este existe também, senão principalmente, enquanto um sujeito narrativo.
Para Paul Ricoeur, existem algumas dimensões constituintes da noção de identidade, a
primeira delas sendo a “identidade pessoal”. No seio da experiência de individualização e
busca de si, o primeiro aspecto a ser forjado é a identidade que o sujeito atribui a si mesmo
enquanto “pessoa”. Refletir acerca dessa identidade pessoal é aproximar-se da experiência
temporal vivida pelo sujeito. Contudo, as questões iniciais acerca da identidade pessoal

185
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014.
104

perpassam a elucidação das distinções entre “mesmidade” e “ipseidade”. Para Ricoeur186, “de
um lado, a identidade como mesmidade (latim: idem; inglês: sameness; alemão: Gleichheit);
Do outro, a identidade como ipseidade (latim: ipse; inglês: selfhood; alemão: selbstheit;).
Ipseidade, como afirmei tantas vezes, não é mesmidade.”
Caso interpretássemos as poesias de Augusto dos Anjos como uma expressão tal e
qual dele enquanto sujeito histórico, sem levar em consideração as distâncias entre sujeito,
autor e eu lírico, ancoraríamos suas representações poéticas como expressão dessa
“mesmidade”, ou seja, da “identidade-idem”, distinta da “identidade-ipse”. Para Ricoeur187

A mesmidade é um conceito de relação e uma relação de relações. Em


primeiro lugar, vem a identidade numérica; (...) Identidade, aqui, significa
unicidade: o contrário é pluralidade. Em segundo lugar, a identidade
qualitativa, em outras palavras, a semelhança extrema: dizemos que X e Y
usam o mesmo traje, ou seja, roupas tão semelhantes que é indiferente se
uma é confundida com a outra. (...) [o terceiro componente da noção de
identidade denomina-se] continuidade ininterrupta entre o primeiro e o
último estágio do desenvolvimento daquilo que consideramos o mesmo
indivíduo.

Dessa forma, a identidade numérica pressupõe vários seres/objetos, entre os quais um


é diferente dos demais, pois é idêntico apenas a si mesmo (p.ex., há inúmeros homens, mas
apenas um Augusto dos Anjos). A identidade qualitativa refere-se, precisamente, à uma
qualidade compartilhada, mas que não anula, em si, a identidade do sujeito (p.ex., há vários
poetas, e entre eles, Augusto dos Anjos). O terceiro componente, a continuidade ininterrupta,
é o que mais enfatiza o que podemos chamar de historicidade do sujeito (p.ex., um sujeito
chamado Augusto dos Anjos nasceu em 1884, viveu uma série de experiências distintas,
praticou a atividade mimética via poesia e morreu em 1914). Ela remete a um sujeito que
vivencia experiências históricas distintas, mas mantém uma identidade pessoal reconhecível.
Essas instâncias da discussão relativa à identidade-idem, ou mesmidade, apontam,
cada qual, à um sujeito que constituiu-se como um “mesmo”, seja em relação aos “outros”,
seja compartilhando uma qualidade/propriedade, seja constituindo-se como unidade sintética
de experiências distintas, que podem ser atribuídas a um “indivíduo” em específico. Esse
trinômio (número, qualidade e continuidade) integra o primeiro polo dessa discussão.
O segundo polo desse campo de reflexão acerca da identidade pessoal diz respeito à
ipseidade. Enquanto que a identidade-idem, ou mesmidade, aponta diretamente para o “Si”

186
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.114.
187
RICOEUR, 2014, p.115-116.
105

[mesmo], a identidade-ipse, ou ipseidade, faz menção direta ao sujeito, ao “Si-mesmo” como


sendo simultaneamente um “Outro”. Da confluência entre idem e ipse, Ricoeur188 comenta

A polaridade (...) sugere uma intervenção da identidade narrativa na


constituição conceitual da identidade pessoal, ao modo de uma medianidade
específica entre o polo do caráter, em que o idem e o ipse tendem a coincidir,
e o polo da manutenção de si mesmo, em que a ipseidade se desvencilha da
mesmidade.

A polaridade que Ricoeur comenta refere-se às experiências vividas por um sujeito,


que o definem como um “Si-mesmo” que também é um “Outro”. Refere-se a tudo aquilo que
o sujeito pensa que é e sobre tudo o que ele narra acerca de si, ou seja, sobre como ele se faz
imagem para o(s) outro(s), como ele se descreve. Ricoeur sugere que o idem alude ao caráter,
enquanto o ipse, às disposições adquiridas e mantidas. Sobre o caráter, Ricoeur189 diz:

Entendo aqui por caráter o conjunto das marcas distintivas que possibilitam
reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo. Pelos traços
descritivos que vão ser ditos, ele acumula a identidade numérica e
qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É assim
que ele designa de modo emblemático a mesmidade da pessoa.

Tentemos observar isso melhor a partir de um soneto de Augusto dos Anjos intitulado
“Debaixo do Tamarindo”190, publicado no “Eu”, em 1912.

No tempo de meu Pae, sob estes galhos,


Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei billiões de vezes com a canceira
De inexorabilissimos trabalhos!

Hoje, esta arvore, de amplos agasalhos,


Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brazileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios


De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando á pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

Nos versos do soneto “Debaixo do Tamarindo”, o eu lírico faz menção à uma situação
específica, qual seja, os momentos em que Alexandre dos Anjos, pai do poeta, ministrava

188
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.118.
189
RICOEUR, 2014, p.118-119.
190
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.21. Publicado inicialmente no jornal A União, em
18/04/1909.
106

lições escolares à Augusto dos Anjos, durante sua infância, lições estas que ocorriam sob a
sombra de um tamarindo existente no engenho no qual viviam, no interior da Paraíba.
Alude-se, nesses versos, à aspectos que estariam presentes no caráter de Augusto dos
Anjos, por exemplo, a imagem de uma criança dedicada aos estudos, apesar de que, na
ficcionalização dessa experiência, também seja reforçada a imagem da suposta rigidez do pai,
ao ministrar suas lições ao filho, extenuando-o por conta “de inexorabilíssimos trabalhos”.
Outro traço de seu caráter diz respeito ao seu contato com os saberes da ciência e do
pensamento cientificista, largamente utilizada em muitos de seus poemas. Isto se faz presente
nesses versos quando elabora a associação da história de sua família, os Carvalhos (haja vista
que sua família deriva da união de três grupos, as famílias “Carvalho” “Rodrigues” e “Anjos”)
com a espécie arbórea dos carvalhos. Sua história familiar é descrita como uma
“paleontologia”, ou seja, como um material que estaria fossilizado, como algo muito antigo,
subterrâneo. Dessa maneira, reforça a imagem de alguém apegado à sua terra natal.
Aquela perspectiva cientificista unitarista, próxima ao monismo, vista em outros textos
poéticos seus é retomada nesse soneto. Após a morte do eu lírico, que enseja o retorno “à
pátria da homogeneidade” (a fusão com a substância original que os monistas acreditavam
existir em todos os seres, o que também nos faz lembrar o mito do eterno retorno), sua
história familiar é anexada à essa árvore: nela, sua “sombra” residiria por toda a eternidade.
Nessa ótica, ainda que seja possível relacionar o conteúdo desses versos com aspectos
oriundos de sua biografia, ou seja, traços de seu caráter, familiares e locais onde viveu, não
podemos encarar essa descrição poética como um relato biográfico tradicional. Ao ser
envolvido e absorvido pela linguagem literária, aquilo que pode ter sido vivido já se torna
“outra coisa” através da elaboração de uma identidade narrativa que combina o idem e o ipse.
Isto ocorre através de uma ficcionalização do vivido por aquele que elabora a
identidade narrativa. Esta, conforme Ricoeur191, situada à meio caminho entre o idem e o ipse,
torna-se a identidade de um personagem e os fatos, circunstâncias, sensações, sentimentos ou
experiências então (ou supostamente) vividas, associadas à esse “personagem-narrador”
transformam-se em “acontecimentos narrativos”. Nessa perspectiva, qualquer tipo de
experiência, banal ou não, ao ser inserida numa organização narrativa, passa a ser configurada
numa espécie de “enredo”. Ainda seguindo os passos de Ricoeur, essa configuração de enredo
opera com um paradoxo192:

191
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.146.
192
RICOEUR, 2014, p.148.
107

O paradoxo da composição do enredo é que ele inverte o efeito de


contingência, no sentido daquilo que poderia ter ocorrido de outro modo ou
não ter ocorrido em absoluto, incorporando-o de alguma forma no efeito de
necessidade ou de probabilidade, exercido pelo ato configurante. A inversão
do efeito de contigência para o efeito de necessidade ocorre no próprio cerne
do acontecimento: (...) Essa necessidade é uma necessidade narrativa, cujo
efeito de sentido procede do ato configurante enquanto tal;

Nesse sentido, tomando como exemplo o soneto “Debaixo do Tamarindo”, podemos


perceber algumas desses aspectos. O acontecimento narrado faz alusão à aplicação, pelo pai,
de estudos e lições, definidas como exaustivas pelo filho. Contudo, nem o pai, nem o filho,
constituem o foco central do verso. Essa circunstância banal é narrada, incluída numa reflexão
sobre a história de sua família, associada não somente ao “tamarindo”, mas ao “carvalho”.
Os aspectos do caráter, que remetem ao “si-mesmo”, vão sendo somados a toda uma
gama de sensibilidades adquiridas nas mais variadas experiências vividas pelo sujeito,
aderindo à ele, também, como “disposições”. A lida do sujeito na tentativa de equilibrar os
aspectos que identifica em seu caráter com a adoção de disposições, hábitos ou práticas,
derivadas das experiências vividas, tornar-se-ão compreensíveis pela narrativização.
Entre os polos do “mesmo” e do “outro”, ou seja, entre o “idem” e o “ipse”, há um
elemento mediador, a saber, essa identidade narrativa elaborada pelo sujeito que busca
individualizar-se, seja fazendo uso da linguagem em sua função estética, literária, seja
utilizando-a em outras práticas de escrita ou gêneros textuais. Conforme Ricoeur193, “...parece
plausível a seguinte cadeia de asserções: a compreensão de si é uma interpretação; a
interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos,
mediação privilegiada; esta última se abebera tanto na história quanto na ficção...”
As reflexões de Ricoeur acerca dos polos constituintes da identidade pessoal, portanto,
não operam com uma dissociação entre o idem e o ipse. Pelo contrário, “aqui os polos da
identidade se compõem. Isso prova que não se pode pensar até o fim o idem da pessoa, sem o
ipse, visto que um se sobrepõe ao outro”, afirma Ricoeur194. O espaço possível entre os polos
da identidade-idem e da identidade-ipse implica numa aproximação com a dimensão
temporal. E é nesse ponto específico que enxergamos a fecundidade do diálogo com Ricoeur
para o desdobramento das análises acerca da poesia de Augusto dos Anjos e dos sentidos
históricos que ela manifesta nos interstícios dessa experiência moderna de individualização.
Isto porque, nosso objeto de investigação inscreve-se nesse espaço de mediação
identificado entre o idem e o ipse. Seguindo essa lógica, sua poesia constitui-se como uma

193
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.112.
194
RICOEUR, 2014, p.122.
108

forma de identidade narrativa, como uma face entre sua identidade-ipse e sua identidade-
idem. Assim, a narrativa, em nosso caso, poética, se aproxima da dimensão histórica,
temporal. Para Ricoeur195, “É na ordem da temporalidade que se deve buscar a mediação. Ora,
é esse “ambiente” que (...) vem a ser ocupado pela noção de identidade narrativa.”
As experiências de individualização dos sujeitos, como dissemos anteriormente, foram
estimuladas ao longo do século XIX, transformando-se num dos ícones primeiros da
modernidade, somado aos temas da “novidade” e da “aceleração”. O indivíduo torna-se o
centro e sua vontade em decifrar-se como sujeito particular se diversifica em várias direções.
Paul Ricoeur assinala196 que um dos ícones do empirismo inglês, David Hume (1771-
1776) ao se propor discutir a questão da identidade, partindo em busca desse núcleo interno
que habitaria cada sujeito, dotando-lhe de identidade, chega a conclusão de não ter
encontrado, em si mesmo, em seu íntimo, nada que não fosse a própria percepção dessa busca.
De certa forma, é como se lançássemos um olhar sobre os recantos mais profundos de
nossa subjetividade, na profunda intimidade de nosso Ser, visando encontrar aquilo que nós
somos, e não encontrássemos nada além do próprio ato de olhar. A busca desse “eu”, desse
“ego”, dessa substância íntima, tornou-se quase uma espécie de obsessão na modernidade.
Um soneto de Augusto dos Anjos, incluído na segunda edição do “Eu”, publicado no
ano de 1920, e previamente apresentado no Almanaque do Estado da Paraíba, no ano de 1917,
três anos após a sua morte, discute essa temática da interiorização como parte desse processo
de individualização.
Este soneto, intitula-se “Natureza Íntima”197 e fora dedicado ao filósofo brasileiro
Raimundo Farias Brito (1862-1917) e este, tal como Augusto dos Anjos, também havia
estudado na Faculdade de Direito de Recife.

Cansada de observar-se na corrente


Que os acontecimentos reflectia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A natureza olhou-se interiormente!

Baldada introspecção! Noumenalmente


O que Ella, em realidade, ainda sentia
Era a mesma immortal monotonia
De sua face externa indifferente!

E a natureza disso com desgosto:


<<Terei sómente, porventura, rosto?!
<<Serei apenas mera crusta espessa?!
195
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.126.
196
RICOEUR, 2014, p.130.
197
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.177.
109

<<Pois é possível que Eu, causa do Mundo,


<<Quanto mais em mim mesma me aprofundo,
<<Menos interiormente me conheça?!

As imagens desse soneto conectam-se com as sensibilidades relacionadas à


individualização, ainda que o eu lírico não fala sobre si. Ao invés disso, é a “Natureza” que é
personificada como indivíduo que busca a si mesmo a partir de uma interiorização. A
realidade empírica, identificada com os acontecimentos que ocorrem externamente ao sujeito,
por sua vez, é considerada como um reflexo de si mesmo.
Atingida pelo tédio que apenas observar-se desdobrada como “realidade” e ao
interiorizar-se perseguindo seu “eu” mais íntimo, nada encontra a não ser a “...mesma
immortal monotonia / De sua face externa indifferente”. É postulada a inexistência desse
núcleo íntimo e fundamental no terceto final do soneto.
Na modernidade, essa busca por si mesmo exigia um constante desejo de interpretar-
se, de adquirir para si autocontrole. Era necessário submeter-se a uma autocrítica, realizar
exames de consciência. As formas pelas quais essa busca e esses exercícios se processam,
como dissemos, pressupõem modos de escrever sobre si mesmo (próximos ao que observou
Ricoeur com a noção de identidade narrativa). Esta escrita sobre si mesmo, fora do âmbito
ficcional, circunscreve-se, principalmente, pela redação de cartas e diários.
Alain Corbin198 olha com atenção para tais práticas ao analisar emergência das
sensibilidades que reforçam essas experiências de individualização. O autoconhecimento e a
introspecção seriam atividades imprescindíveis para o indivíduo moderno estar no mundo,
acompanhar seu próprio desenvolvimento, imprimir sua marca e deixá-la como “legado”.
O mergulho em si mesmo, a perseguição para encontrar o núcleo gerador daquilo que
nós somos, tem alguns correlatos e atividades práticas. A escrita epistolar, em certa medida,
implicaria numa quebra tímida do caráter singular dessa busca de si, posto que a
correspondência necessita de “interlocutores”, implica um remetente e um destinatário. Nesse
mesmo movimento, o texto autobiográfico e o texto memorialístico, ainda que partam do
sujeito como fonte e unidade discursiva, também pressupõem um leitor em potencial.
Certamente, tanto cartas, memórias, autobiografias e diários (que podem possuir forte
carga estética, ainda que não possam ser consideradas “ficcionais”) precisamente pelo fato de
serem práticas de escrita, já dão margem para que outros indivíduos, além do próprio autor,
entrem em contato com as narrativas então elaboradas e com os segredos registrados.

198
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.413-614.
110

Todavia, entre esses gêneros textuais, a escrita e a manutenção de um diário íntimo pode ser
visto como o exercício por excelência na procura de si mesmo que essa experiência de
individualização estimula.
No pensamento, também desenvolvido em fins do século XIX, que consistia em
associar manifestações psíquicas ou patológicas aos “sinais” emanados por nosso corpo, a
prática dos diários também se verificou. Segundo Vigarello199, os indivíduos que se
dedicavam aos seus diários íntimos teriam que registrar o mais inofensivo sinal corporal,
incluindo em suas páginas, todas as demais impressões que julgasse necessário:

[Para o desenvolvimento dos diários íntimos, o autor deveria] ...não


simplesmente “ressentir” ou comprazer-se, cujas vias foram traçadas no
século XVIII, mas “avaliar-se”, “medir-se”, “apreender-se” a partir dessa
profundidade sensível presumida, cujo alcance nossa própria modernidade
encarregar-se-á de desenvolver. O diário é feito para seu autor, e somente
para ele, privilegiando toda ocorrência sensível, toda surpresa, sem censura e
sem partido. Uma única exigência: entregar-se sem máscara, deixar emergir
o “de dentro” em total espontaneidade.

Entretanto, mesmo que na escrita de um diário o interlocutor seja, de maneira direta,


mas figurada, o próprio diário, todos os segredos que são registrados por escrito correm o
risco de serem “descobertos” pelo(s) outro(s). Talvez a finalidade do registro escrito seja essa
mesma, esse desejo por alguém que “descubra” o que (e como) nós somos. Segundo Alain
Corbin200, a escrita de um diário íntimo como exercício de interiorização, por exemplo, exige
disciplina e sinceridade. No diário, tudo pode ser confessado e, então, analisado: culpas,
aspirações, desejos sexuais reprimidos ou audaciosamente satisfeitos, entre outras coisas.
Nossa aproximação com os debates acerca dos gêneros textuais próprios da escrita de
si complementa-se com a discussão da noção de identidade narrativa proposta por Ricoeur.
Isso pode nos permitir uma maior compreensão da atividade mimética de Augusto dos Anjos,
na medida em que seus textos, pelo recurso/referência ao “eu”, que é próprio do projeto
poético lírico, também sugerem uma suposta exposição ou exploração de si mesmo, por conta
de alguns aspectos biográficos que esse autor ficcionaliza em seus versos.
A atividade mimética pela poesia, para Augusto dos Anjos, parece ter se constituído
como sua principal forma de expressão através da escrita. Contudo, não devemos esquecer de

199
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.145.
200
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.457.
111

que o poeta também se empenhava na escrita epistolar. Sua correspondência passiva já foi
publicada201 e explorada por outros autores, como Ademar Vidal202 e Humberto Nóbrega203.
A poesia de Augusto dos Anjos parece configurar uma espécie de veículo por meio do
qual esse escritor tentou encontrar a linguagem privilegiada para expor aos outros uma
imagem, uma figuração de si mesmo, ainda que uma exposição plena e completa seja
impossível.
Sua poesia, portanto, funciona tanto como uma espécie de escrita de si, quanto como
uma forma de constituição de sua identidade narrativa. Podemos afirmar que, com base em
sua concepção de literatura, apenas o poeta, através de seus versos, possuiria as ferramentas e
a sensibilidade adequadas para empreender essa busca em relação a si e efetivar tal exposição.
Por exemplo, vejamos um de seus sonetos, intitulado “Vencedor”204.

Toma as espadas rutilas, guerreiro,


E á rutilancia das espadas,
Toma a adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – extranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro


E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais prompto, e qual mais presto assoma,
Nenhum poude domar o prisioneiro.

Meu coração triumphava nas arenas.


Veio depois um domador de hyenas
E outro mais, e, por fim, veio um athleta,

Vieram todos, por fim, ao todo, uns cem...


E não poude domal-o enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

O eu lírico apresenta seu próprio coração como um prisioneiro, ou seja, se a imagem


do “coração” figura como espécie de centro vivo do indivíduo, nessas imagens poéticas, tal
núcleo já encontrava-se cativo; já não mais é perseguido. Todavia, o “coração” reage e recusa
toda e qualquer tentativa de domesticação, porque tal “coração” não é o de um indivíduo
ordinário, mas de um poeta, o qual seria capaz de experimentar sensações ímpares. O contato
com (ou a produção do) o texto literário seria uma forma de manutenção da própria
individualidade, seja aquela do escritor, seja a do leitor. Ambas individualidades se
reforçariam.

201
ANJOS, Augusto dos dos Anjos. Obras Completas. Editora Nova Aguilar, 1994. (Org.) Alexei Bueno.
202
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Editora José Olympio, 1967.
203
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. João Pessoa. 2ª Ed. Editora UFPB, 2012.
204
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.102. Publicado inicialmente no jornal O Comércio,
26/11/1903.
112

A busca de si mesmo e as tentativas de conhecer mais profundamente a própria


identidade termina sendo motivada pelos mais diversos fenômenos, sobretudo, aqueles que
instalam no sujeito insegurança ou instabilidade, derivados de mudanças históricas ou de
crises na condição socioeconômica dos indivíduos. Daí, a necessidade de se autoconhecer.
205
Para Corbin , “o novo feitio das relações interpessoais ditados pela urbanização multiplica
as feridas narcíseas, gera uma frustração que convida ao recolhimento neste refúgio interior.”
Assim, o escritor e o leitor tentam (re)encontrar sua(s) individualidade(s) ao refugiarem-se no
texto literário ou no nos exercícios de escrita de si não marcadamente ficcionais.
No diálogo que estamos tentando estabelecer, colocando em contato a poesia de
Augusto dos Anjos e as práticas de escrita de si, já observamos que nos gêneros textuais que
presidem a escritura sobre si mesmo, busca-se estabelecer uma unidade ou coerência.
Todavia, esses gêneros também podem fornecer um momento de autocrítica, de autorreflexão.
Como indicativo dessa questão em particular, vejamos o soneto “Ricordanza della Mia
Gioventú”206, publicado inicialmente no jornal O comércio, em 31 de julho de 1907, e
republicado no “Eu”, no qual o poeta elabora versos sobre aspectos de sua infância:

A minha ama de leite, Guilhermina


Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava.
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hypócrita, affectava


Susceptibilidades de menina:
<<– Não, não fora ella! – E maldizia a sina,
Que ella absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,


Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,


Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

Os versos desse soneto ficcionalizam elementos que, em tese, relacionam-se com


aspectos da biografia do poeta. Isto porque, em sua infância, Augusto dos Anjos, juntamente
com seus outros cinco irmãos, viviam num engenho chamado Pau d‟Arco, no interior do
estado da Paraíba. Essa propriedade, juntamente com outro engenho, denominado Coité,

205
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.458.
206
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.75.
113

integrava a totalidade do patrimônio de sua família. Tais propriedades já estavam em pleno


funcionamento aproximadamente duas décadas antes da abolição da escravidão, em 1888.
Desse modo, trabalhavam nessas propriedades, inclusive no Pau d‟Arco, escravos, ex-
escravos libertos e trabalhadores livres. Tanto Augusto, quanto seus os outros irmãos,
segundo pudemos levantar, possuíam amas de leite, como a personagem Guilhermina, que
figura nesses versos.
Em face desses elementos, configurou-se uma ficcionalização de determinadas
experiências que o poeta teria vivido, ou seja, houve uma transfiguração de algo que pode ter
sido vivido efetivamente, mas que, nos versos, subordina-se a outros imperativos, próprios da
atividade mimética via poesia.
Nesse sentido, na escrita de si tradicional, a matéria-prima é a vida do próprio
indivíduo que escreve. Este, coloca-se como objeto para si mesmo, tenta observar-se sob
ângulos diversos. Pela escrita autorreferencial, menos formalmente na escrita de diários (que
pressupõe “segredo” do que é escrito), e mais em cartas, autobiografias e textos
memorialísticos, o outro é convidado para conhecê-lo.
A poesia lírica também parte desse princípio, pois é o “eu” que é tomado como ponto
de partida, como a unidade discursiva fundamental. Pela lírica, o poeta experimenta-se, sente-
se, reflete sobre si e oferece-se ao leitor. Entretanto, há um forte nível de seletividade na
escritura sobre si mesmo, seja qual for seu gênero. Luigi Pareyson207 ressalta esse ponto
quando afirma que, por exemplo, uma biografia não é a descrição exata e contínua dos atos de
uma vida tal como eles foram vividos, mas, sim, a reconstrução de fatos selecionados e
interpretados em consonância com uma determinada personalidade que se deseja caracterizar.
A seletividade no ato da escritura, independentemente de qual seja seu gênero, é
inevitável e ela também se manifesta na poesia. Nos versos de Augusto dos Anjos, a
referência à sua ama de leite possui uma conotação valorativa positiva, ou mesmo
moralizante. Podemos especular: o furto supostamente cometido por Guilhermina poderia ser
uma espécie de tática de resistência? Em outra imagem poética, no primeiro quarteto, sua
mãe, Córdula dos Anjos, então apelidada no seu círculo íntimo e familiar como “Sinhá-
Mocinha”, censurava a prática do furto cometido pela subalterna, pois isto prenunciaria a
“ruína” da família.
Ainda nas representações poéticas que esse soneto oferece, a ama de leite, em face das
acusações, parecia encenar teatralmente a inocência que arrogava para si, efetivando

207
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo. Editora Martins Fontes, 200, p.94.
114

“suscetibilidades de menina”, reforçando seu argumento ao associar a acusação, considerada


injusta, como mais um aspecto negativo presente em sua “sina”. Essa espécie de autoexame
de consciência viria precisamente da constatação de que o verdadeiro furto teria sido
cometido, não pela ama de leite, mas, sim, pelo eu lírico que, em sua infância, furtava “...o
peito / Que dava leite para a tua filha!”.
Não podemos esquecer que as amas de leite, tal como a Guilhermina, tematizada
poeticamente nesse soneto de Augusto dos Anjos, constituíam outro traço indicativo da
historicidade presente em seus versos. Inseridas numa sociedade escravista, as amas de leite
figuravam no imaginário208 social de variadas formas. Atuavam como figuras “quase”
maternas, apesar de sua condição subalterna, assim como, também eram utilizadas como
meros objetos nas transações comerciais: muitas escravas eram alugadas como amas de leite
em seu período pós-natal209.
Montegomery José de Vasconcelos210, por seu lado, reafirma esse soneto de Augusto
dos Anjos como forma de subverter algumas das normas sociais então vigentes, haja vista que
o “personagem-autor” passa de transgredido para transgressor quando bebe o leite de outra
mãe. Surge uma confirmação por escrito, fruto de reflexões inquietas provocadas por crises de
consciência...”. O soneto seria indicativo do declínio patrimonial vivido por sua família.
Essas sensibilidades, cujo grau de ancoragem na experiência vivida pode ainda ser
tema de outras reflexões, e que foram transfiguradas pela atividade mimética, aproximam-se,
portanto, daquela dupla seletividade inerente à prática da escritura, seja aquela elaborada
sobre si mesmo, seja aquela, voltada à dinâmica poética.
No soneto “Debaixo do Tamarindo”, citado há pouco, o caráter que é selecionado para
ser apresentado é uma face do poeta que ressalta sua possível relação com seu pai, durante os
estudos em sua infância. No outro soneto, “Riccordanza...”, o que é apresentado é uma
reflexão quase moralizante acerca de outra personagem, também relacionada à sua infância.
Além disso, cabe lembrar, como já apontamos em páginas precedentes, que
conotações negativas à escravidão integravam o perfil da intelectualidade brasileira e
republicana nos primeiros anos do século XX. Daí, talvez uma razão para que as imagens

208
QUINTAS, Georgia. Amas-de-leite e suas representações visuais: símbolos socioculturais e narrativos da vida
privada do Nordeste patriarcal-escravocrata na imagem fotográfica. In: RBSE – Revista Brasileira da
Sociologia da emoção, v.8, n.22, pp.11 a 44, abril de 2009. ISSN: 1676-8985. Disponível em:
http://paginas.cchla.ufpb.br/rbse/QuintasArt.pdf. Acesso: 08 de novembro de 2018.
209
ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luís Felipe
(Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras, 1997, p.63.
210
VASCONCELOS, Montgomery José de. A Poética Carnavalizada de Augusto dos Anjos. São Paulo.
Anablume Editora, 1996, p.193.
115

poéticas desse soneto fossem favoráveis à (ex)escrava ali representada e, talvez, uma crítica
velada à escravidão, mesmo que sua família tivesse sido proprietária de escravos.
Em que pese a referência à experiências que podem ser rapidamente associadas à
biografia do poeta, tais referências não configuram, por essa característica, um relato
biográfico. Essas menções seriam uma forma de elaborar a chamada identidade narrativa, da
qual fala Ricoeur, situada à meio caminho entre o sujeito que escreve, a identidade-idem, e o
eu lírico presente nos versos, a identidade-ipse.
A poesia em sua manifestação mais lírica dialogaria com a chamada escrita de si por
privilegiar o “eu” entendido como espécie de núcleo de nossa subjetividade e como ponto de
partida para a aquisição de um maior autoconhecimento, fenômeno esse próprio das
experiências de individualização, inerentes à temporalidade modernidade. A escrita de si
aproxima-se desse diálogo, como reflete Ângela de Castro Gomes211:

A escrita auto-referencial ou escrita de si integra um conjunto de


modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo
ocidental. Essa denominação pode ser mais bem entendida a partir da ideia
de uma relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus
documentos (...) pode-se datar a divulgação de sua prática [ou seja, da
emergência de uma “escrita de si”], grosso modo, do século XVIII, quando
indivíduos “comuns” passaram a produzir, deliberadamente, uma memória
de si.

A poesia de Augusto dos Anjos, entendida aqui como uma atividade próxima aos
imperativos do que pode se chamar “escrita de si”, apropria-se de aspectos de sua “realidade”,
de sua experiência autorreferencial, tornando-a matéria-prima a ser transfigurada
mimeticamente, associando-a ao eu lírico. Vejamos, na sequencia, mais um texto poético de
Augusto dos Anjos, intitulado, “O Martírio do Artista”212. Nessas estrofes, lemos:

Arte ingrata! E comquanto, em desalento,


A órbita ellipsoidal dos olhos arda,
Busca exteriorisar o pensamento
Que em suas phronetaes céllulas guarda!

Tarda-lhe a Idéa! A Inspiração lhe tarda!


E eil-o a tremer, rasga papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...


E´ como o paralytico que, á míngua
Da própria voz e na ardente o lavra

211
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.10-11.
212
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.71.
116

Febre de em vão falar, com os dedos brutos


Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem á boca uma palavra!

Não vemos, no soneto acima, qualquer ideia que atribua ao artista ou à sua poesia, um
comprometimento social, tal como se a literatura fosse uma “missão”, ou seja, não é um
“martírio” que possua como valor uma função social. Mais do que compromisso com a
sociedade, no sentido de tentar “esclarecer” seus membros, o compromisso do artista, o seu
martírio, consistiria, antes, em tentar expressar-se. É como se o objeto que exige atenção não
fosse a sociedade dos anônimos, mas a individualidade ainda mal compreendida.
Em nossa leitura, esses versos representam, justamente, a dificuldade que se possui
quando se tenta exteriorizar aquilo que pressupomos possuir dentro de nós mesmos. Se
houvesse facilidade, a busca por si mesmo não seria “busca”, mas “contemplação”. O eu
lírico torna-se quase incapaz de realizar essa exteriorização. O incômodo é sentido, como
indicam os versos, no próprio corpo: treme; rasga o papel; tenta chorar; sente febre; puxa a
própria língua. Mesmo assim, não consegue realizar esse impulso em expressar-se. Essa
dificuldade é própria do eu lírico, que perde-se em si mesmo, mergulhado em suas sensações.
O desejo em expressar a própria individualidade, portanto, é um dos traços mais fortes
da temporalidade moderna. Alimentou consigo a construção de uma esfera privada, de uma
dimensão particular. É no cerne das transformações que moldaram o chamado mundo
moderno que se percebe uma progressiva valorização do indivíduo e um contínuo
fortalecimento da noção de individualidade, a qual é vista como elemento central e
fundamental da vida em sociedade e da própria modernidade.
Desse modo, a sociedade moderna já não se configura presumindo para si um sentido
de “comunidade”, um tom “comunitário”. A sociedade é composta por uma série de
indivíduos isolados. Estes, criam uma esfera pública para organizar sua vida em comum.
Contudo, na modernidade, a “verdadeira” sociedade parece residir na esfera privada, naquela
dimensão que só diz respeito ao próprio indivíduo e, no máximo, aos membros de sua família.
Conforme Ângela de Castro Gomes213, isto produz “uma ideia que confere à vida individual
uma importância até então desconhecida, tornando-a matéria digna de ser narrada como uma
história que pode sobreviver na memória de si e dos outros.”
Há um vazio, uma distância incontornável entre a experiência vivida e a sua captura
pela escrita, pela narrativa. Esse fenômeno se faz presente tanto na linguagem literária,

213
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.12.
117

poética, ficcional, quanto na escrita sobre si mesmo. Pressupor uma identificação total entre o
eu lírico e o sujeito que escreve seria equivalente a considerar que os fatos narrados, p.ex.,
numa biografia/autobiografia, ocorreram exatamente tal como são descritos.
A produção de uma escrita sobre si mesmo, em seus gêneros textuais tradicionais
(diários, cartas, autobiografias), mesmo visando capturar o indivíduo em sua integralidade e
continuidade, não se afasta daquele critério de seletividade já comentado. Ocorre a escolha de
determinados ângulos que desejamos apresentar ao “outro”, para reforçar a imagem que
tencionamos construir quando nos propomos a reconstituir, através da escrita, determinada
experiência vivida. Essa escrita autorreferencial é uma narrativa que pode ser dotada de apelo
estético, sem necessariamente configurar-se como ficcional214.
A escrita, na modernidade, não pode ser recusada como sendo uma atividade vazia de
sentido e conteúdo, ou seja, não é porque, pela escrita, não podemos reconstituir (ou
transfigurar mimeticamente) um complexo de experiências vividas integralmente que não
podemos fazer menção a tais experiências narradas/escritas e nelas encontrar significados.
A escrita, mesmo que não consiga recuperar totalmente o objeto que pretende capturar,
nem por isso configura-se como um discurso comprometido com a mentira, com a enganação,
mesmo que essa possibilidade exista. Numa narrativa mentirosa, aquele que a elabora está
ciente de uma verdade que ele conhece (ou presume saber) e, portanto, a oculta. Na escrita de
si não há, necessariamente, verdade ou mentira. Na ficção, mais do que verdade ou mentira,
há o que Wolfgang Iser215 denominou como “atos de fingir”, o que ainda discutiremos.
Para além das questões que se aproximam do tópico da verdade/inverdade, o que a
escrita na modernidade, tanto na linguagem poética, quanto na escrita sobre si mesmo, parece
permitir é a expressão de uma verdade individual, de uma verdade do indivíduo sobre si, da
criação de uma imagem de si em face de determinados fatos, elaborada pelo sujeito que a
enuncia. Tal verdade não pode se apresentar de modo absoluto: a verdade que um sujeito
elabora e faz circular, emerge conjuntamente com outras verdades, constituídas e postas em
jogo no campo social por outros sujeitos.
Em sua análise acerca da emergência do indivíduo em face das sensibilidades
modernas, além de outros sinais percebidos, tais como a questão do “nome próprio”, da

214
“a análise desse tipo de registro escrito deve ser rigorosa. Contudo, sua crítica não pressupõe a busca pelo
erro, pela mentira, isto é, se determinada circunstância ou fenômeno aconteceu, ou não. Além disso, a autora
afirma ainda que o que importa é analisar “...a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa.”
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro. FGV Editora, 2004, p.15.
215
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.955-985.
118

prática de fotografar-se, do desejo por individualizar-se nos menores detalhes, Alain Corbin216
chama atenção, também, para o tema do “espelho”.
Em nosso tempo presente, apesar de poder ser considerado um objeto mais do que
banal, na consolidação da modernidade o espelho pode ser apontado como um objeto
metafórico para o processo de individualização no qual o indivíduo mergulhou. É através do
espelho que os indivíduos adquirem uma consciência visual de sua própria corporeidade.
É com a popularização desse simples objeto que o obstáculo de ser consciente de si
sem possuir uma autoimagem mais ou menos definida das particularidades de seu corpo é
superado. Nesse sentido, a escrita de si e a poesia lírica seriam formas, em que pese as
particularidades dessas duas linguagens, através das quais os indivíduos modernos desejam
elaborar um “espelho” no qual veriam uma imagem fiel de si mesmos. Todavia, essa metáfora
da escrita como um “espelho” que refletiria nossa individualidade pode ir além.
De certo modo, esse “espelho” elaborado pela prática da escrita, poética ou não,
parece transformar-se num tipo de labirinto. Ao esperarmos do “espelho” uma imagem fiel de
nós mesmos, corremos o risco, pelo contrário, de entramos numa “sala de espelhos”, tais
como aquelas presentes em parques de diversão, cujos espelhos, com superfícies esféricas,
côncavas ou convexas, apresentam àqueles que se contemplam imagens distorcidas.
Quanto mais os sujeitos procuram compreender a sua singularidade, a sua
interioridade, mais se arriscam a se perderem nesse processo. Enxergamos essa temática no
soneto de Augusto dos Anjos intitulado “Vandalismo”217:

Meu coração tem cathedraes imensas


Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a alleuia virginal das crenças.

Na ogiva fulgida e nas columnatas


Vertem lustraes irradiações intenças
Scintillações de lâmpadas suspensas
E as amethystas e os florões de pratas.

Como os velhos Templarios medievaes


Entrei um dia nessas cathedraes
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,


No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

216
CORBIN, Alain. Bastidores. In: História da Vida Privada, 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra
Mundial. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1991. p.421.
217
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.100. Publicado no jornal O Comércio, em 02/01/1904.
119

O eu lírico empreende uma viagem dentro de si mesmo, como simboliza o termo


“coração”. A imensidão que se pressupõe existir dentro de si mesmo é associada à imagem
das “catedrais” e dos “templos”, repleta de objetos, pedras preciosas e dotada de uma
arquitetura própria. Adentrando nesse labirinto subjetivo, interno, o eu lírico age como um
iconoclasta, destruindo elementos que o constituiriam tal como ele é, talvez em busca de algo
mais significativo, mais valioso, por ser ainda mais interior.
Logo, tais versos sugerem que buscar a compreensão dessa realidade que se pressupõe
ser interior a nós mesmos pode ser considerada uma espécie de viagem de descoberta, mas,
também, não deixa de se relacionar como o sentimento de estar perdido em si mesmo. Dessa
forma, tanto a escrita de si, quanto a poesia lírica, convida aquele que a pratica a empreender
uma espécie de dobra sobre si mesmo, o que pressupõe que o indivíduo, enquanto sujeito,
coloque a si mesmo como objeto de reflexão.
O ato de registrar a si mesmo (em diários, cartas, memórias, autobiografias), de refletir
sobre si através da linguagem poética, literária, rubricam a valorização do indivíduo nas
tramas da modernidade. Estes atos de registro configuram, também, tentativas de constituição
de uma memória, a qual deveria ser deixada para os outros como espécie de legado.
No campo literário, em prosa ou verso, esse dobrar-se sobre si mesmo, esse reforço da
subjetividade, associa-se às sensibilidades modernas vividas a partir de meados do século
XVIII e XIX. Essa ênfase na subjetividade, essa perseguição do “eu”, ocorre num momento
em que o “eu” só pode configurar-se de maneira descontínua. Flora Sussekind218 comenta:

É também no século XVIII que se estrutura o espaço público burguês. Do


ponto de vista da subjetividade, o que muda? Personagem de duas esferas
que se desejam complementares (a pública e a íntima), cabe ao habitante das
grandes cidades industriais um papel peculiar. (...) Tratava-se aí de afirmar a
divisão, de manter a separação do indivíduo em duas metades, uma pública e
outra privada. Entre o indivíduo e o cidadão, um hiato no qual se afirma a
subjetividade como “segredo”. No espaço público da sociedade burguesa de
início do século XIX, ao contrário, a representação dolorosa culmina naquilo
que Benjamim, em “Paris, capital do século XIX”, chama de “fantasmagoria
do interior”. (...) Privatização do ego, o interior como refúgio, a crença na
própria personalidade: estas as fantasias a que se permite no domínio
privado.

A poesia de Augusto dos Anjos continua relacionada com os temas próprios da


modernidade, considerando os elementos estéticos inerentes à atividade mimética vigente
nesse momento e dialogando com outras temáticas do período, como a valorização do ego,
com as experiências de individualização e com a busca por essa realidade interior.

218
SUSSEKIND, Flora. Papéis Colados: Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 1993. p.315-316.
120

A inclusão, em sua poesia, de aspectos que podem ser associadas à sua biografia não
constitui, uma violação da mímesis poética, nem configura-se como o exercício tradicional da
escrita de si. Essas atividades orbitam o “eu”, a individualidade, cada linguagem utilizando
suas particularidades para elaborar imagens e representações sobre esse “si mesmo”.
Por fim, cabe lembrar que, se a poesia de Augusto dos Anjos dialoga com
determinadas experiências que se ancoram em sua biografia, seus versos não se configuram
como um relato biográfico. As imagens poéticas que ela comunica, ainda que não totalmente
desligadas do indivíduo enquanto sujeito que escreve, condiciona-se pelas sensibilidades de
sua época, principalmente relacionadas à essa perseguição da própria
individualidade/interioridade, mas também estão submetidas à uma preocupação estética.

4.2 O “Engenho” de Augusto dos Anjos: Poesia, Escrita de Si e as Armadilhas da Ilusão


Biográfica

Como tentamos mostrar anteriormente, a poesia de Augusto dos Anjos mantém


algumas relações com a noção de identidade narrativa e com o complexo de práticas,
estimuladas pela temporalidade moderna, que se convencionou chamar “escrita de si”, apesar
das distinções entre as peculiaridades desse gênero textual e as especificidades da linguagem
poética. Um traço que aproxima essas atividades é, precisamente, a atenção voltada para si
mesmo e a exploração de um universo não somente individual, mas, sobretudo, interior.
Nessa seção visamos discutir, a partir de alguns elementos presentes na poesia de
Augusto dos Anjos, como esse poeta elaborou representações literárias acerca de um espaço
que possui relevância em sua experiência: o engenho onde ele e sua família viveram
aproximadamente por duas décadas. Repensar as representações sobre esse lugar também
perpassa as relações de proximidade entre poesia e autobiografia, assim como, não deixa de
dialogar com a discussão acerca da escrita de si, esboçada na seção anterior.
Muitas das interpretações já elaboradas sobre Augusto dos Anjos e sua poesia se
debruçaram sobre os textos colhidos e publicados no livro intitulado “Eu”, de 1912. Rubert219
e Aragão220, por exemplo, ressaltam a diversidade dos estudos críticos já elaborados. Diversas
pesquisas/críticas giram em torno de elementos biográficos, psicológicos e/ou

219
RUBERT, Nara Marley Aléssio. O Lugar de Augusto dos Anjos na Poesia Brasileira. In: Revista Eletrônica
de Crítica e Teoria de Literaturas. PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre. Vol.03, N.02 – Jul/Dez 2007.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/5088 Acesso: Jan/2015
220
ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão;
BORGES, Francisca Neuma Fechine. Augusto dos Anjos – Uma Biobliografia. João Pessoa. Editora
Universitária UFPB, 2008.
121

psicanalíticos221, ou seja, aproximam-se dessas áreas e abordagens para tentar compreender


(ou explicar) as razões da morbidez e do caráter sombrio que muitas das poesias do “Eu”
apresentam, traços transmitidos pelo eu lírico e atribuídos ao sujeito que escreve.
O aspecto estético fúnebre de sua poesia, desse modo, derivaria de um conjunto de
experiências que o poeta teria vivido em sua juventude e vida adulta. Todavia, para
compreendermos essa relação, dialogamos com as observações que têm sido feitas sobre a
chamada “escrita de si”, sobre a identidade narrativa, proposta por Ricoeur, e sobre as
relações entre poesia e “pacto autobiográfico”, tal como entende Phillipe Lejeune222, sem
desconsiderarmos, aqui, as dificuldades que tais articulações ensejam.
Nessa compreensão, o livro de versos publicado por Augusto dos Anjos é
sintomaticamente intitulado “Eu” e isso relaciona-se diretamente não só com o elemento
fundamental do projeto poético lírico, mas com todo um conjunto de sensibilidades modernas,
que orbitam a valorização do indivíduo e suas experiências de individualização.
Cabe relembrar que a produção poética desse autor não está condicionada apenas aos
versos publicados em livro. De sua atividade poética, resultaram centenas de versos, muitos
destes publicados em jornais paraibanos (como O Comércio e A União). Somente alguns
desses textos poéticos foram selecionados para integrarem o livro, em sua primeira edição.
Na segunda edição, póstuma, outros textos considerados inéditos foram adicionados.
Notamos ainda que as poesias selecionadas para publicação em livro (em suas duas edições)
apresentam uma unidade estética maior, por vezes, distintas tanto na forma, quanto no
conteúdo, daqueles textos poéticos cuja publicação ocorreu apenas em jornais e periódicos.
Desse modo, a constituição de seu livro, intitulado “Eu”, é sintomática porque, tal
como o “eu”, o “ego”, esse livro não foi elaborado de modo contínuo, linear, ao contrário do
que se possa presumir. Logo, esse livro não pode ser considerado como expressão unívoca de
um “eu” homogêneo, presente internamente no sujeito que o escreveu.
Esse livro é uma espécie de compilação de textos cuja produção iniciou-se a partir de
1901. As poesias foram submetidas a um crivo que orientou a posterior seleção dos textos que
seriam considerados suficientemente bons, ou não, para integrarem a referida obra. Desse
modo, as poesias que compõem o “Eu”, em suas duas edições, não foram as únicas
produzidas por Augusto e nem traduzem mecânica ou automaticamente sua personalidade.

221
Um exemplo interessante, nesse sentido, é: RAMOS, Arthur. LITTERATURA E SCIENCIA: Augusto dos
Anjos à luz da psychanalyse. In: O Jornal. 19 de Setembro de 1926. p.18.
222
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008.
122

Ainda que esse livro de versos não possa ser considerado como um espelho puro e
direto da alma do poeta, ou seja, mesmo que tanto a obra quanto aquele sujeito que a escreveu
não sejam dotados pela unidade e continuidade que já se pressupôs como inerente ao
indivíduo, algumas poesias suas relacionam-se, direta ou indiretamente, com aspectos
presentes em seu tempo histórico, seja num âmbito particular, seja coletivo.
Tal como Phillipe Lejeune223 sugeriu, existe uma espécie de “pacto” que um indivíduo
se autoimpõe no sentido de, ao escrever sobre si mesmo, desejar revelar-se por completo
nessa escrita. A escrita de si autobiográfica articula-se com gêneros textuais mais ou menos
clássicos, tais como “memórias”, “biografias”, “romance pessoal”, “poema autobiográfico”,
“diário”, “autorretrato” ou “ensaio”.
Nessa lógica, da mesma forma que nenhum tipo de escrita de si consegue promover
uma revelação transparente e integral de um indivíduo, o mesmo ocorre com as relações entre
autobiografia e poesia. O poeta pode decidir elaborar versos, assim como, um sujeito pode
querer deixar registrada “sua vida”, mas essas duas atividades guardam particularidades que
enganam à primeira vista. Para Lejeune224,

A poesia não está em toda parte, a autobiografia também não. Uma pode ser
instrumento da outra. Não há mal nenhum em reconhecer que são duas
coisas diferentes e, ao mesmo tempo, admitir-se a possibilidade de que têm
muitas interseções. Pode-se tomar o termo autobiografia num sentido amplo
e vago, ou estrito e preciso. Assim como a poesia.

Cabe observar que o universo no qual a poesia de Augusto dos Anjos veio à tona
acompanha os primeiros momentos do que se convencionou chamar de “república velha”. Na
tentativa de articular os ímpetos modernizantes com elementos tradicionalistas, teria sido
construído, seja no “Norte” onde o poeta nasceu e viveu, seja no Rio de Janeiro, onde também
morou, um quadro histórico com elementos paradoxais.
Ao passo em que as sensibilidades modernas se disseminavam, vivia-se no Norte (hoje
nordeste, mas não somente aqui), um misto entre uma sociedade mais tradicional,
conservadora, dotada com elementos patriarcais, orbitando casas grandes e engenhos. Para
Telma Fernandes225,

223
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.14.
224
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.88.
225
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.133.
123

A República familiar não é privilégio, entretanto, da história paraibana. As


oligarquias grassaram pro todo o país, assumindo diversas regiões uma cor
local atrelada às condições gerais do Estado brasileiro e às relações
internacionais, sobretudo, no aspecto econômico. (...) A Constituição de
1891 optou pelo sistema federativo e este, a partir das especificidades
brasileiras, privilegiou os Estados mais ricos e não a economia nacional.
Assim como estimulou a concentração de poder nas elites estaduais de toda a
Federação, legitimando e reforçando as oligarquias (...).

Desse modo, o universo dos engenhos também se tornou um dos temas iniciais para
sua produção poética, o que resultou na inclusão de referências à esses espaços em alguns de
seus poemas. Uma primeira referência que indicamos encontra-se no longo poema “As
Cismas do Destino”226, publicado no “Eu”. Tal poema é composto por quatro partes e possui
105 estrofes. A referência ao engenho encontra-se na 28ª estrofe da segunda parte: “Porque há
de haver aqui tantos enterros?! / Lá no <<Engenho>> também, a morte é ingrata... / Há o
malvado carbúnculo que mata / A sociedade infante dos bezerros!”.
O patrimônio da família de Augusto dos Anjos era composto por dois engenhos de
cana de açúcar, denominados Pau d‟Arco e Coité. Augusto dos Anjos, que morreu em 1914,
aos trinta anos, viveu aproximadamente dois terços de sua vida nesse lugar, acerca do qual
fazia referências. Em sua atividade como cronista, paralela à atividade como poeta, exercida
nos mesmos jornais paraibanos onde publicava suas poesias, intitulava seus textos em prosa
como “crônicas paudarquenses” e “cartas do Pau d‟Arco”.
Na estrofe citada acima, a referência ao engenho é associada à imagem da morte, então
manifesta nos carbúnculos que dizimavam os animais da propriedade, sugerindo certa ideia de
decadência. O tema geral de “As Cismas do Destino” é demasiado mórbido. Todavia, pela
temática e pela extensão desse poema, faremos novas menções em outros momentos.
Antes de darmos continuidade nas análises, é preciso tecer comentário sobre duas
questões. Primeiro, sobre a ideia de “obra” e as armadilhas de retrodicção. Segundo, colocar
em perspectiva o sujeito, sua intencionalidade ao escrever e seu papel como autor. Ao
articularmos as noções de escrita de si, de pacto autobiográfico e suas relações com a poesia,
exige-se certa compreensão da ideia de “autor”, que não deve ser naturalizada ou vista de
maneira simplificada.
Em primeiro lugar, a vantagem da retrodicção nos permite analisar a “obra” poética de
Augusto dos Anjos já sabendo quem esse poeta foi. Possuímos, assim, uma visão de conjunto

226
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.30. Publicado no periódico paraibano Terra Natal, em
04/07/1908.
124

maior, o que nos faz perceber melhor a (des)continuidade de suas experiências históricas,
assim como, as múltiplas relações de sua atividade mimética com seu próprio tempo.
Dessa forma, percebemos a (des)continuidade de sua experiência, pois conseguimos
observar que sua atividade poética não é homogênea, contínua, linear. Apesar do exercício
constante com a poesia, esta variou no que diz respeito à forma e ao conteúdo. O próprio livro
que lhe renderia notoriedade não figurava como projeto a ser realizado desde o início de sua
atividade poética, conforme pudemos levantar, sendo mencionado em carta227 algumas
semanas antes da efetiva publicação ocorrer. Esse livro, ressaltamos, é antes uma compilação
de textos selecionados por uma unidade temática, do que um projeto único e homogêneo.
Assim sendo, esse livro não brotou in vácuo, out of the blue; não nasceu já completo e
homogêneo no imediato de sua publicação, em 1912, nem tampouco desde o início de sua
atividade poética, expressando, com isso, a essência de seu autor. Todo um período de
“gestação” e de hesitação (que varia bastante entre escritores, romancistas, poetas, etc.), se
assim podemos dizer, foi necessário. Da mesma forma, ocorreu um processo de seleção. Cabe
lembrar, as palavras de Michel Foucault228:

Quanto à [noção] obra, os problemas levantados são mais difíceis ainda.


Aparentemente, entretanto, o que há de mais simples? [A obra seria] Uma
soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio.
Ora, essa denotação (...) não é uma função homogênea: o nome de um autor
denota da mesma maneira um texto que ele próprio publicou com seu nome,
um texto que apresentou sob pseudônimo, um outro que será descoberto
após sua morte, em rascunho, um outro ainda que não passa de anotações,
uma caderneta de notas, um “papel”?. A constituição de uma obra completa
ou de um opus supõe um certo número de escolhas difíceis de serem
justificadas ou mesmo formuladas: será que basta juntar aos textos
publicados pelo autor os que ele planejava editar e que só permaneceram
inacabados pelo fato de sua morte? Será preciso incluir, também, tudo que é
rascunho, primeiro projeto, correções e rasuras dos livros? Será preciso
reunir os esboços abandonados? E que importância dar às cartas, às notas, às
conversas relatadas, aos propósitos transcritos por seus ouvintes, enfim, a
este imenso formigamento de vestígios verbais que um indivíduo deixa em
torno de si...

Nessa compreensão, a poesia de Augusto dos Anjos não era a manifestação pura e
transparente de sua essência, mas um momento incluído dentro de um conjunto de
(des)continuidades, tal como sugere Foucault, o qual diz ainda229 “A obra não pode ser

227
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Editora Nova Aguilar, 1994, p.734-735. (Cf. pág.29 de nosso
trabalho).
228
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2008. p.26.
229
FOUCAULT, 2008, p.27.
125

considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade
homogênea”.
Aquela representação poética, citada acima, que faz menção ao engenho numa
associação com a morte, possui relação com sua experiência pessoal. Por conta da dinâmica
socioeconômica vivida no Brasil a partir da virada para o século XX, a falência bateu à sua
porta, o patrimônio da família do poeta se deteriorou e os engenhos tiveram que ser vendidos
por volta de 1908. Tal representação pode ser uma ficcionalização poética relacionada à essa
circunstância, mas também não deixa de estar atravessada pela historicidade de seu tempo, se
considerarmos as transformações que atingiram os engenhos e a sociedade ao seu redor.
No bojo desse fenômeno de modernização, foram produzidos e veiculados diversos
discursos, visando preservar um conjunto de valores mais associados à esfera masculina,
patriarcal, enquanto que as sensibilidades modernas, por vezes, foram associadas ao feminino.
Estes e outros discursos constituiriam, para Durval Muniz, uma “invenção” do
Nordeste/Nordestino, difundida por diversos intelectuais, articulando e (res)significando
conceitos, imagens e símbolos que até hoje permeiam nosso imaginário. Para Durval230,

Esses discursos masculinos falam, com temor, de um alastramento do


feminino [modernidade] pela sociedade, trazido pela supressão das fronteiras
entre etnias e raças, conseqüente à Abolição; pelo progressivo acesso ao
mundo da política de parcelas da sociedade, antes excluídas, com o advento
da República; pela necessária ampliação do espaço social, para a inclusão de
novos grupos sociais que emergiam com maior influência e poder, como: os
comerciantes, os industriais, os operários, a classe média, surgidos todos
com o processo de urbanização e industrialização, vistos como agentes
principais nesse processo de desvirilização da sociedade, tradizo pela perda
progressiva dos valores, sociabilidades e sensibilidades descritas como
patriarcais.

A paisagem construída historicamente pela intervenção dos sujeitos históricos, na


virada do século XIX para o século XX, sobretudo na região nordeste, anteriormente
denominada apenas como “Norte”, possuía o engenho como um tipo de propriedade que
simbolizava e materializava diversas sociabilidades e sensibilidades históricas. Como afirma
Telma Cristina Fernandes231,

Os engenhos de açúcar no nordeste, inclusive na Paraíba, foram montados no


início da colonização e, como já é de conhecimento comum, voltada para a
produção do mercado externo, privilegiadamente. Este padrão perdurou por

230
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino, Uma Invenção do Falo: Uma História do
Gênero Masculino (Nordeste 1920/1940). Maceió. Edições Catavendo, 2003, p.33.
231
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.135.
126

todo o período colonial, foi dominante durante o período imperial e


estendeu-se pela república. Os engenhos de açúcar encampavam as
atividades agrícolas e industrial, modelo mantido pelas instalações usineiras
a partir do final do século XIX, uma vez que as tentativas de montagem dos
Engenhos Centrais, destinados unicamente à produção industrial e
comercial, foram um fracasso, principalmente no Estado paraibano, onde
apenas um foi inaugurado e mesmo esse com vida curta [A autora refere-se,
aqui, ao Engenho Central São João, em Santa Rita, próximo à capital do
Estado, fundado em 1888].

Outras referências, em seus versos, sobre do engenho onde ele e sua família moravam,
podem ser encontradas na poesia “Gemidos da Arte”232, também publicada no “Eu”. É um
poema mais longo, composta por 42 estrofes, em três partes. A primeira menção ao engenho
pode ser encontrada na oitava estrofe da primeira parte, assim como na terceira, quarta e
quinta estrofes da terceira parte. Vejamos tais menções respectivamente:

(...)
Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d‟Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na manjedoura dos cavalos!
(...)
III
(...)
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos valles,
Como pela avenida das Mappales
Me arrasta á casa do finado Tôca!

Todas as tardes a esta casa venho.


Aqui, outr‟ora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava as canas para o engenho!

Noutros tempos e nas outras eras,


Quantas flores! Agora, em vez de flores,
Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam caretas verdes nas taperas.

Há imagens poéticas que conotam certa decadência ao engenho (“beber a acre e


estagnada agua do charco”; “noutros tempos e noutras eras, / quantas flores!”;), mas, ao
mesmo tempo, também é sugerido certo apego àquele espaço (“dormir na manjedoura dos
cavalos!”). Já os elementos que fazem menção ao cotidiano de trabalhos então executados no
engenho são representados pela figura do “Toca”, que seria empregado/residente no engenho.
Novamente, a imagem de decadência é associada ao engenho transfigurado
poeticamente: na humilde casa do finado Toca: nela, os musgos pintavam “caretas” e marcas

232
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.80/83.
127

peculiares em contraste com os “outros tempos” e as “outras eras”. Ainda em “Gemidos da


Arte”233, na décima estrofe da segunda parte, vemos mais uma imagem poética que articula
sua poesia à aspectos da biografia: “Eu, depois de morrer, depois de tanta / Tristeza, quero,
em vez do nome – Augusto, / Possuir ahi o nome dum arbusto / Qualquer ou de qualquer
obscura planta!”. Assim, o eu lírico aproxima seu destino, após a morte, ao espaço
relacionado à biografia do poeta, tal como já visto no soneto “Debaixo do Tamarindo”.
As experiências históricas de Augusto dos Anjos não são marcadas por uma espécie de
desdobramento contínuo de uma essência pré-definida, mas, sim, pelas descontinuidades
estimuladas pela modernidade. Quando nos aproximamos, por arriscado que seja, de noções
discursivas mais didáticas, como a ideia de “obra”, isto ocorre sem pressupor essa ideia como
“desdobramento” progressivo e contínuo, próximo à uma perspectiva substancialista.
Isso nos conduz a nossa segunda questão, a da intencionalidade do autor. Em meio às
(des)continuidades que marcam as experiências dos sujeitos na modernidade, não podemos
deixar de considerar que a poesia de Augusto dos Anjos foi o resultado de um conjunto de
ações que foram transfiguradas em seus versos. No âmbito da teoria da literatura e da crítica
literária, a reflexão sobre o papel do autor em relação àquilo que ele faz, diz ou escreve, já
(res)suscitou acalorados debates.
Antoine Compagnon234, em seu livro “O Demônio da Teoria”, aborda essa
problemática. A questão inicial, por ele apontada como tese intencionalista, mais simplista,
parte do princípio de que “...a intenção do autor é o critério pedagógico ou acadêmico
tradicional para estabelecer-se o sentido literário. (...) o sentido de um texto é o que o autor
quis dizer (...) se sabemos o que o autor quis dizer (...) não é preciso interpretar o texto.”.
Segundo essa tese, compreender a poética de Augusto dos Anjos seria investigar as
intenções que o levaram a escrever. A ênfase na análise do texto é minimizada, assim como,
há a sugestão de que as distâncias entre o autor e seu eu literário praticamente inexistem.
Contudo, nos informa Compagnon que, durante a década de 1960, autores como Foucault (em
O que é um Autor? [1969]) e Roland Barthes (em A Morte do Autor [1968]), entre outros,
dão forma e conteúdo à chamada tese da “morte do autor”.
No texto literário, “o autor cede, pois, o lugar principal à escritura, ao texto, ou ainda
ao „escriptor‟, que não é jamais senão um „sujeito‟ no sentido gramatical ou linguístico, um
ser de papel, não uma „pessoa‟, (...) o sujeito (...) que não preexiste à enunciação mas se

233
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.83.
234
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.49.
128

produz com ela, aqui e agora.”, comenta Compagnon235 . Seguindo essa perspectiva, uma
compreensão possível da poética de Augusto dos Anjos pressuporia considerar que é o texto
que o torna um “autor” e não o fato de que ele escreveu texto(s), pois ele não preexistiria ao
texto. Não seria o ato de escrever que o constituiria como autor, mas o texto escrito.
Esse debate retrocede em séculos, tematizado desde a antiguidade clássica e durante o
período feudal. Nas reflexões sobre retórica, nesses momentos, havia uma distinção sutil
(perpassando autores como Platão, Aristóteles, Agostinho e outros) entre a vontade do autor
em escrever algo (voluntas) e aquilo que ele conseguiu, de fato, escrever (actio). Isso
explicaria a razão de, muitas vezes, um autor escrever algo e ser interpretado de outra
maneira, posto que os leitores não conhecem sua “voluntas” primordial, mas apenas o seu
“actio”, ou seja, compreendem o que foi dito, não aquilo que o autor queria dizer.
Nesse sentido, a interpretação que estamos tecendo acerca das práticas poéticas de
Augusto dos Anjos procura se basear na análise dos registros que conseguimos estabelecer e
na consonância com os rigores teóricos e metodológicos de inerentes à nossa ciência. Caso
fosse possível, Augusto dos Anjos, ao ler minha interpretação, poderia afirmar que eu não
compreendi o que ele queria dizer através de seus versos.
Na discussão proposta por Antoine Compagnon, uma série de pares conceituais e
temas de análise são apontados: “Alegoria e Filologia”, “Filologia e Hermenêutica”,
“Intenção e Consciência”, “Intenção ou Coerência”, entre outros. Disto decorrem várias
questões: um texto literário faz referências alegóricas sobre aspectos de sua sociedade? Esse
texto alegoricamente “anteciparia” certos temas, de maneira “visionária”? As análises devem
focar apenas as mudanças estritas da linguagem, numa ótica filológica? As bases conceituais
da filologia bastam para compreender a atividade literária? A hermenêutica e sua teoria da
compreensão contribuem de alguma forma? Um autor, ao escrever seu texto, coloca nele,
intencionalmente, tudo o que queria dizer/representar ou insere, inconscientemente, certos
temas que nem mesmo ele percebe? A intenção de um autor pressupõe sempre a escrita sobre
um mesmo tema, ao longo de sua vida, ou a mudança de posicionamentos e temas, refletida
em seus textos, implica uma suposta “incoerência”, enfraquecendo a tese intencionalista?
Todas essas questões implicam num debate astronômico. Contudo, Compagnon
assinala um tipo de “retorno” à tese intencional. Na trilha desse retorno há que se considerar,
em certo sentido, a existência de uma intenção do autor em escrever sobre um determinado

235
COMPAGNON, 1999, p.50-51.
129

tema, num determinado estilo, etc. No entanto, Compagnon236 afirma que o sentido (ou
intenção inicial) atribuído por um autor ao seu texto não determina o seu significado final,
único, nem os modos pelos quais os receptores irão interpretá-los:

As obras de arte transcendem a intenção primeira de seus autores e querem


dizer algo de novo a cada época. A significação de uma obra não poderia ser
determinada nem controlada pela intenção do autor, ou pelo contexto de
origem (histórico, social, cultural) sob o pretexto de que algumas obras do
passado continuam a ter, para nós, interesse e valor. Se uma obra pode
continuar a ter interesse e valor para as gerações futuras, então seu sentido
não pode ser paralisado pela intenção do autor nem pelo contexto de origem.

É nesse sentido que abordamos a poética de Augusto dos Anjos. Mais do que
expressão do desdobramento progressivo de uma substância essencial, homogênea e contínua,
ela é a expressão de sua historicidade. Evidentemente, o sentido original atribuído pelo autor
ao seu texto não pode não ser recuperado e não se resume aos significados que atribuímos.
Essa propriedade, como afirma Compagnon, é própria da arte, em geral, e da literatura
e da poesia, em particular. As poesias de Augusto dos Anjos manifestam uma intenção sua,
“original”, mas manifestam também outros sentidos, que são históricos. Além disso, as
distâncias entre o eu lírico e o sujeito que escreve esses textos são variáveis e insuperáveis.
Não consideramos equivocado, por exemplo, perceber que em determinadas poesias
de Augusto, para além de uma atividade mimética de condensação e representação social, há
o desejo de expressar algo associado à sua biografia. Contudo, isto não nos permite afirmar
que seu texto seja essencialmente biográfico. Nesse ponto, nos aproximamos novamente de
Compagnon237:

A presunção de intencionalidade permanece no princípio dos estudos


literários, mesmo entre os antiintencionalistas mais extremados, mas a tese
antiintencional, mesmo se ela é ilusória, previne legitimamente contra os
excessos da contextualização histórica e biográfica. A responsabilidade
crítica, frente ao sentido do autor, principalmente se esse sentido não é
aquele diante do qual nos inclinamos, depende de um princípio ético de
respeito ao outro.

Nesse sentido, a poesia de Augusto foi pautada tanto pela apropriação convencional do
padrão estético do Romantismo, quanto pelo questionamento dos padrões estéticos vigentes,
por experimentações e busca de novas formas e conteúdos para sua atividade poética.

236
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.85.
237
COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Teoria da Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte.
Editora da UFMG, 1999, p.95.
130

Em seu contexto original, na Europa, na virada do século XIX para o século XX, os
padrões estéticos transformavam-se ao passo em que a própria sociedade se transformava.
Mais do que sobrevoando a sociedade, os padrões estéticos, em prosa ou verso, por exemplo,
participavam da própria dinâmica dessas transformações.
Entretanto, em meio à essas transformações, uma característica vai permanecendo.
Mesmo forçando os limites da linguagem poética, introduzindo novos temas e termos,
Ferreira Gullar afirma238: “Augusto dos Anjos é o poeta do Engenho do Pau D‟Arco, da
Paraíba, do Recife”. Algumas referências poéticas ao engenho reforçam essa afirmação.
Os engenhos de cana de açúcar passaram a fazer parte, na virada para o século XX, de
um contexto socioeconômico dinâmico, em meio à consolidação do capitalismo industrial.
Nesse momento, era próprio do mercado, nacional e internacional, forte oscilação e
instabilidade, como observa Telma Fernandes239: “...uma vez que na segunda metade do
século XIX, em função, no final do século, da abolição e, principalmente, pela concorrência
com o açúcar de beterraba, e das produções açucareiras de Cuba e Java, a produção açucareira
nordestina conheceu novo surto de crise.”
Considerando estas e outras transformações, Durval Muniz afirma que o próprio
espaço historicamente construído, por volta dos anos 1920, já se encontrava modificado por
práticas e intervenções que emergiram algumas décadas antes e, sobretudo, em fins do século
XIX. Segundo Durval Muniz, “O espaço „natural‟ do antigo Norte cedera lugar a um espaço
artificial, a uma nova região, o Nordeste, já prenunciada nos engenhos mecânicos ciclópicos
usados nas obras contra as secas, no final da década anterior.”240. Outros sentidos dessas
modificações foram, ainda conforme Durval Muniz241, expressos através de outros sinais:

Beirando os canaviais e os algodoais, corriam agora as linhas telegráficas,


fios de telefone, vias férreas. E ao longo dos caminhos movimentados pela
“Great Western”, e pelos “Hudsons”, “Fords” e “Studbakers” contrastavam
os montes a sangrar e como que raspados à unha de sua vegetação.
Rompem-se os padrões de sociabilidade tradicional. As cidades muito se
modificavam com a construção, sobre modelos europeus do século XIX, de
gares, de mercados, bancos; com os novos tipos de arquitetura de confeitaria,
com a preocupação da linha reta à americana, que por completo alterara, no
Recife, o à-vontade das antigas ruas. Os casarões vastos de outrora, de uma

238
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011, p.47.
239
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.142.
240
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo. Editora
Cortez, 2011. p.51.
241
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.51.
131

alvura franciscana ao sol, eram agora substituídos pelas arrivistas usinas,


fumando seus indolentes charutos.

Nesse sentido, do mesmo modo que o engenho era símbolo de uma época e de um
conjunto de relações socioeconômicas, as emergentes usinas passaram a representar um papel
semelhante. Os engenhos mais arcaicos alimentavam o mercado com sua produção, ainda que
houvesse fortes laços entre a produção para o mercado e a agricultura familiar. Os engenhos
centrais, modernos, procuraram, de forma malograda, dicotomizar a produção para o mercado
de suas finalidades mais “locais”, de subsistência. Para Telma Cristina Fernandes242,

Os senhores de engenho tradicionais protestaram e resistiram à Usina. Estas


foram interpretadas como a decadência dos senhores proprietários e muitos,
realmente, vieram a sucumbir – não, necessariamente, pela criação da Usina
em si, que poderia ser uma medida de restauração eficiente do setor, mas
porque as Usinas foram criadas e incentivadas pelo Estado sob os auspícios
de sair de uma crise que já estava assolando e empobrecendo muitos
produtores de açúcar. Com ou sem Usina, a decadência do mundo açucareiro
tradicional já estava definida.

Tal como num parto, portanto, a modernização, ou “invenção” do Nordeste, ocorrida


na virada para o século XX e ao longo de suas primeiras décadas, não sobreveio sem dor, sem
tensões e contradições. Um novo mundo foi criado, enquanto outro se desagregava, se
desestruturava. Durval Muniz243, em sua análise, tece ainda críticas à contribuição que José
Lins do Rego teria dado, com seus escritos literários, para a formação de um tipo particular de
imagem atribuída ao Nordeste, qual seja, aquela do nordeste “saudosista”, “melancólico”,
“bucólico”, centrado nos engenhos e em seus agentes.
Como traço dessa questão, vejamos algumas das impressões que José Lins do Rego244
teria elaborado acerca do engenho Pau d‟Arco, pertencente à família de Augusto dos Anjos,
transfigurado por ele, como vimos, em algumas imagens poéticas:

A casa grande era vasta, de muitas salas, a senzala ao lado, o engenho d‟água
lá embaixo, o canavial na várzea, e pelo altos, o agreste, onde floriam no
verão pau d‟arco roxo de outubro e os paus d‟arco amarelos de novembro
(...) atrás era o açude, e o tamarindo entre a casa-grande e a senzala fazia às
vezes de sala de estar, nos dias de muito calor.

242
FERNANDES, Telma Cristina Delgado Dias. Uma Representação da Modernidade por Intelectuais
Paraibanos (1830-1930). Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.144.
243
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo. Editora
Cortez, 2011, p.148.
244
REGO, José Lins do Apud MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora Ideia,
2001, p.32-33.
132

José Lins do Rego reforça determinados aspectos daquele lugar, mas o envolve,
também, tanto nos labirintos da memória, quanto da ficção. Entretanto, não custa imaginar
esse lugar como cenário para contradições profundas: um passado opulento, mas rústico,
provavelmente autoritário, patriarcal, o qual perdia força como modelo e medida para o
presente; “sinhozinhos” e seus herdeiros brincando lado a lado com filhos de (ex)escravos e
trabalhadores do campo; os homens e as mulheres da casa “carinhosamente” apelidadas pelos
subordinados como “Sinhá”, Iaiá”, “Ioiô”.
Esses elementos teriam sido desestabilizados ao serem trespassados pelos ideais da
modernidade. Isto reforçaria a tensão, que também é característica da temporalidade moderna,
entre um passado cujos vestígios e rastros destoavam do presente que se impunha. Um dos
parentes de José Lins do Rego teria comprado o engenho Pau d‟Arco em 1908, o qual fora
vendido por não produzir mais nada, a não ser dívidas. Disto se explica as referências feitas
por José Lins do Rego245, que escreve ainda:

... Um banco do Recife avança sobre o Engenho triste [por conta de


empréstimos realizados]. As lições do Doutor [Aprígio Pessoa de Melo]
criavam bacharéis, mas não faziam safras rendosas. O Doutor estava pobre
como Job. Contou-me um velho da terra: „só não levaram a santa da capela‟.
Os Carvalhos tinham se consumido nos Anjos letrados. As maravilhas reais
passavam às de meu parente, o Dr. Quincas do Engenho Novo. Vi depois o
Pau d‟Arco ainda engenho bangüê. Corri os quartos grandes de telha vã. Vi o
tamarindo cercado de manjedoura para os cavalos, a árvore sagrada do poeta
amofinada pelo desprezo, degradada a estrebaria, e vi o açude quando já não
havia as garças tristonhas. (...) E se o Pau d‟Arco não mais existe nos
cadastros rurais, devorado pelas usinas, existe para sempre nas poesias do
poeta grande que suas terras paririam.

As considerações de José Lins do Rego aproximam-se de outra característica das


transformações derivadas da modernidade. Em linhas gerais, segundo Durval Muniz246,
“havia uma valorização crescente do que era novo, moderno, e um abandono e até um
desrespeito pelo que era velho e tradicional. (...) Uma vergonha crescente de tudo que
lembrava o rural, o rústico, o colonial.”
Num processo de modernização, como o brasileiro, que se tinge com cores
tradicionalistas/conservadoras, havia choques entre o mundo patriarcal e esse novo mundo em
emergência. O mundo patriarcal, centrado na casa grande, no engenho, assentava-se, em tese,
na autoridade do “patriarca”, este, afeito aos trabalhos administrativos da produção, da lida
com a terra e com os trabalhadores, livres ou (ex)escravos.

245
REGO, José Lins do Apud MELO, 2001, p.35.
246
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió. Edições Catavento. 2003, p.52-53.
133

Todo esse mundo perdia espaço para os novos bacharéis. Ao contrário dos antigos
senhores de engenho e coronéis, os bacharéis não eram portadores da “autoridade” e do
“poder”, mas, sim, do saber técnico, muitas vezes mais teórico do que prático. Para Durval247,

Os netos de senhor de engenho, quando não desprezam a vida de seus


antepassados, olham para trás com nostalgia, sentindo-se incapazes de
reviver, a não ser como memória ou literatura, aquela vida de seu povo, de
seus antepassados, dos velhos duros, retos e brabos; das velhas boas, ásperas,
generosas; dos tios, primos, parentes pobres, das lutas de família.

Não percebemos nas representações literárias de Augusto dos Anjos esse “desprezo”
acerca do engenho, mas, sim, um esforço positivo de transfiguração literária desse elemento
presente em sua biografia. Contudo, é inegável que o tornar-se bacharel, após cursar a
faculdade de Direito, em Recife, contribuiu decisivamente na constituição do arsenal temático
que seria expresso em seus versos e, talvez, na falta de tino para os negócios do engenho.
Isto porque, os antigos engenhos disputavam espaço nas paisagens nordestinas com as
novas usinas, mais “impessoais”. A oportunidade de se tornar bacharel figurava no horizonte
como uma forma de ascensão social. Sobre essa cultura de bacharéis, Durval Muniz248, ao
comenta que:

O bacharelismo era mais uma forma de desvirilização. Homem que era


homem, na sociedade do tempo dos patriarcas rurais, não gostava de livros,
apreciava era “uma boa pinga, um bom cavalo, uma boa briga de galo e uma
boa mulata”. Muitos haviam abraçado a vida literária e acadêmica como
alternativa à débâcle econômica da família. Outros tiveram no serviço
público a única saída para aproveitar o capital simbólico que possuíam e
conseguirem se manter pelo menos nos setores médios da sociedade. Muitos,
no entanto, fracassavam não só no serviço publico, como no próprio
comércio, por não terem uma subjetividade preparada para isto.

Levando isso em consideração, a poesia de Augusto dos Anjos possui pontos de


contato com a produção de uma escrita sobre si mesmo, centrada no “eu”, a partir da inserção,
em seus versos, de elementos relacionados à sua biografia, no caso, na inclusão do engenho
como temática poética.
Pela escrita de si, os indivíduos buscam atribuir certa unidade à sua própria existência.
A prática da poesia também pode ensejar um esforço autobiográfico (em maior ou menor
grau). Um determinado autor pode utilizar seus versos para tentar estabelecer mecanismos
estéticos e narrativos, inserindo em suas experiências vividas uma lógica biográfica, mais
coerente, contínua e menos fragmentada.
247
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do gênero
masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió. Edições Catavento. 2003, p.55.
248
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p.56.
134

De acordo com Paulo Henriques Britto, a poesia relaciona-se com a memória através
de dois tipos diferentes de atividade poética: a poesia épica e a poesia lírica, cada qual
ganhando contornos próprios. Para Britto249,

A memória épica é coletiva. O poeta-cantor de uma cultura ágrafa tem a


função básica de lembrar os feitos da sua tribo. Ele tenta encontrar no
passado de sua gente os prenúncios de sua grandeza atual, ou a promessa de
uma grandeza futura, e é para facilitar a memorização de seu relato que ele
apela para os recursos repetitivos e mnemônicos da poesia. (...) O tempo da
memória épica passou há muito. A última epopéia a não ser recebida como
um anacronismo gritante (...) foi a de Camões.

A atmosfera impregnada pelo ideal de modernidade, além de afetar as esferas da vida


em sociedade e fortalecer a noção de indivíduo, também transforma a poesia. Esse é o mesmo
contexto no qual emerge a produção de uma escrita sobre si. No que diz respeito à atividade
poética, Paulo Henriques Britto250 afirma em complemento que

A construção do Estado-nação moderno é um processo simultâneo à


construção do indivíduo moderno, e ao fortalecimento do gênero lírico como
o poético por excelência. A memória lírica é de natureza individual. O poeta
lírico afirma uma individualidade, e, com o desenvolvimento do sujeito
moderno a partir do Renascimento, uma subjetividade única e inconfundível.
Tal como o épico, o poeta lírico tenta forjar um mito, só que o mito em
questão é individual e não coletivo: ele busca nos diversos momentos do seu
passado individual elementos que permitam elaborar uma história pessoal
que tenha coerência e sentido.

É nesse sentido que as práticas de uma escrita de si, assim como, a noção de um pacto
autobiográfico, se articulam com a poesia, quando um sujeito tenta, como já afirmou Phillipe
Lejeune251, “escrever sua vida em versos”. Incluindo em seus versos alguns elementos de seu
cotidiano, como a referência ao engenho, Augusto dos Anjos registrava impressões sobre si
mesmo, sobre seu passado e seu presente.
Isso não anula as distâncias entre o sujeito que escreve e o eu lírico, ou seja, não há
uma transposição total entre o que pode ser visto como vivência efetiva e aquilo que é
representado na poesia. Haveria uma ficcionalização de experiências e lembranças, ainda que
isto também não configure um relato biográfico ou memorialístico em sua forma tradicional.

249
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124.
250
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124-125.
251
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.89.
135

Tomemos como ponto para análise mais um texto poético de Augusto dos Anjos
intitulado “Tristezas de um Quarto Minguante”252, incluída no “Eu”, de 1912. Composto por
vinte e seis estrofes, novamente o engenho Pau d‟Arco é utilizado como temática poética e
sobre ele algumas imagens são formuladas. Vejamos sua primeira estrofe: “ Quarto-
Minguante! E, embora a lua o aclare, / Este Engenho Pau d’Arco é muito triste. / Nos
engenhos da várzea não existe / Talvez um que se lhe equipare!”
Novamente, a atmosfera que enseja a reflexão poética encontra-se no período noturno,
temática presente em seus versos já discutida em nosso primeiro capítulo. O eu lírico atribui
ao espaço do engenho uma tristeza ímpar, como se esta não pudesse ser encontrada em
nenhuma outra propriedade da região, ressaltando a tristeza particular, singular, desse espaço.
Todavia, como Ferreira Gullar reflete253, se, no âmbito privado e familiar, era enfrentado um
contexto de crise financeira, patrimonial, “é a penetração do capitalismo que, se por uma lado
significa progresso, por outro, agrava a miséria lendária da região”.
Assim sendo, como é próprio do projeto lírico, o “eu” é o ponto de partida para a
construção de uma mitologia pessoal e, como vimos no gênero textual da escrita de si, um dos
traços da modernidade, há o reforço de uma experiência de individualização. Em vista disso, o
eu lírico afirma a singularidade essencial da tristeza que recai sobre o engenho e sobre seus
moradores como algo exclusivo, ainda que, como Gullar aponte, se houve crise, esta se
estende por todo o setor social e econômico nordestino que orbitava os engenhos.
A partir dessa associação entre acontecimentos particulares, familiares, privados e
sociais, coletivos, indicada acima, não poderíamos deixar de reforçar a presença de Koselleck
em nossa abordagem. A poesia de Augusto dos Anjos relaciona-se com inúmeros elementos
presentes nos estratos temporais nos quais ela emergiu, mesmo com apropriações de traços
que não foram gestados em seu momento histórico mais imediato. Seguindo, ainda, a trilha de
Koselleck254 e considerando que a modernidade é marcada, simultaneamente, pela novidade e
pela aceleração, suas reflexões sobre o ser e a natureza da temporalidade também nos
permitem perceber essa dialética entre o singular e o regular:

Situo-me no campo das metáforas: a expressão “estratos do tempo” remete à


formações geológicas que remontam à tempos e profundidades diferentes,
que se transformaram e se diferenciaram uma das outras em velocidades
distintas no decurso da chamada história geológica. (...) os tempos históricos

252
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.123.
253
GULLAR, Ferreira. Vida e Morte Nordestina In: Toda Poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro. Editora
José Olympio. 2011, p.57.
254
KOSELLECK, Reinhardt. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro. Editora Contraponto:
PUC-RIO. 2014, p.19/-20/21.
136

consiste em vários estratos que remetem uns aos outros, mas que não
dependem uns dos outros (...) Quando investigamos o tempo nos processos
históricos, a primeira constatação experiencial é, evidentemente, a
singularidade. (...) experimentamos os acontecimentos como ocorrências
surpreendentes e irreversíveis. (...) Mas essas singularidades são apenas parte
da verdade. (...) a história também repousa em estrutura de repetição que não
se esgotam nas singularidades.

Isto significa que a atividade mimética de Augusto dos Anjos, suas representações e
imagens poéticas, assim como, diversos elementos de sua biografia são, sim, experiências
singulares. Todavia, pela dinâmica dos estratos temporais, como bem observou Koselleck,
elas se integram em estruturas de historicidade mais regulares.
Tais regularidades apresentam-se como as condições socioeconômicas, indicadas por
Gullar, ou os padrões estéticos da poesia na modernidade, além de outras sensibilidades
presentes no campo cultural ou social. Compreende-se, assim, a existência de uma relação
dialética entre a singularidade e a regularidade das dimensões de sua historicidade, o que nos
permite entender os modos pelos quais a poesia desse indivíduo relaciona-se com os estratos
temporais de sua época, indo além de uma análise psicologizante.
Ainda em “Tristezas de um Quarto Minguante”255, são construídas outras imagens
poéticas acerca do engenho e seus espaços. A percepção do quarto, pelo eu lírico, é aguçada
novamente durante a noite, como lemos na décima primeira e na décima segunda estrofes:
(...)
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.


Cinco lençóes balançam num corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóes desmancho.

Mais uma vez, a exemplo, do soneto “O Morcego”, o quarto transforma-se num


espaço reflexivo, onde a percepção do eu lírico mistura objetos cotidianos com referências
fúnebres, de maneira que, em determinados momentos, parece não conseguir distinguir entre
o que seria percepção do “real” da alucinação/imaginação.
A individualidade do eu lírico é reforçada como vetor e receptor de intensas
sensações, as quais são refletidas em seu corpo, como lemos nas estrofes256 quinze, dezessete
e dezoito:

255
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.124-125.
256
ANJOS, 1912, p.125.
137

Figuras espectraes de boccas tronchas


Tornam-me o pesadelo duradouro.
Choro e quero beber a agua do choro
Com as mãos dispostas á feição de conchas.
(...)
Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cahe sobre o meu estomago vasio
Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;


O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

As sensações descritas nessas estrofes ocorrem num período em que se supõe a noite
mais intensa e escura. O engenho é o centro desse universo. Os tormentos são traduzidos em
sinais corporais e sua percepção invadida por alucinações. Todavia, é com o surgimento da
luz de um novo dia que faz cessar todo esse cenário tortuoso que envolve o eu lírico.
É como se fosse reforçada a dicotomia, que discutimos em nosso segundo capítulo,
que atribui a produtividade ao período diurno em contraponto à noite, a qual, ao invés de
condicionar o descanso, estimula sensações, por vezes, torturantes. Logo, o ciclo
produtividade-descanso é quebrado. Além disso, indiferente aos tormentos do eu lírico, sob a
luz solar, a natureza, a fauna e a flora circundante, presentes no engenho, seguem seus rumos.
Em seus versos257, lemos:

Abro a janella. Elevam-se fumaças


Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez de do sepulcral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos


Dos poros vegetaes, no acto da entrega
Do matto verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa


A universal creação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da humida herva.

Babujada por baixos beiços brutos,


No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarchia da arvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos fructos.

257
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.126.
138

Enquanto a natureza segue seu rumo, indiferente, o eu lírico esboça sua tristeza em
face de um contexto de decadência que parece recair sobre o espaço do engenho 258: “Ah!
Minha ruína é peor que a de Thebas / Quizera ser, numa ultima cobiça, / A fatia esponjosa de
carniça, / Que os corvos comem sobre as jurubebas!”.
Percebemos nesses versos uma articulação próxima de uma forma de escrita de si,
elaborada num sentido mais lírico do que épico. A escrita de si e a poesia lírica contribuem
decisivamente na mitologia que o indivíduo cria para si mesmo. Logo, não é difícil
encontrarmos nas poesias de Augusto elementos que remetem não somente ao seu momento
histórico, como também à sua “biografia”, assim como, aos aspectos estéticos que podem ser
considerados mórbidos, sombrios, que aderem à sua mitologia pessoal.
A questão essencial não é demarcar com exata precisão se as representações poéticas
remetem à circunstâncias biográficas verdadeiras ou não, haja vista que a inclusão de aspectos
biográficos, em que pese o caráter individualizante do projeto poético lírico, não se propõe a
“descrever uma vida”, mas, sim, a utilizar dados da vida, individual ou social, como matéria
para poesia. Em resumo, não se trata de tentar distinguir radicalmente se as representações
poéticas que aludem à biografia são verdadeiras ou falsas. Sobre as relações entre
autobiografia e ficção e, por extensão, entre mentira e verdade, Lejeune259 afirma:

A promessa de dizer a verdade, a distinção entre verdade e mentira


constituem a base de todas as relações sociais. Certamente é impossível
atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo
de alcançá-la define um campo discursivo e atos de conhecimento, um certo
tipo de relações humanas que nada têm de ilusório. A autobiografia se
inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e
compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos
outros), tanto quanto no campo da criação artística.

Ainda que seja viável rastrear possíveis associações entre essas referências poéticas
acerca do engenho e a relevância e a significação desse espaço na experiência histórica e
pessoal de Augusto dos Anjos, cumpre lembrar que o objetivo de suas representações
literárias, mesmo não visando alcançar a finalidade biográfica, inserem-se num campo
(juntamente com a biografia) de construção de conhecimento, de compreensão de si mesmo e
do mundo. O conhecimento gerado pela (auto)biografia e/ou pela poesia não é ilusório.
Nessa compreensão, já tendo em mente que não pretendemos encontrar na poesia de
Augusto dos Anjos a descrição “verdadeira” de sua vida, sua autobiografia, cabe interrogar os

258
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.126.
259
LEJEUNE, Phillipe (Org.). O Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte. Editora UFMG,
2008, p.104.
139

sentidos históricos de sua atividade poética, analisando, sim, as estratégias que estruturam seu
desejo de “inventar-se a si mesmo”, mediante uma identidade narrativa, através de sua poesia
e as relações dessa “invenção” com seus estratos temporais.
Inscrevemos a poesia de Augusto dos Anjos na perspectiva sugerida por Britto260: “O
poeta lírico tenta construir uma mitologia pessoal completa, que inclui desde um mito de
origem até uma teleologia.”. Isto não se afasta da reflexão proposta por Paul Ricoeur, pois, a
identidade narrativa, elaborada por um sujeito, seja pela escrita ficcional, ou não, constrói
uma espécie de personagem.
Desse modo, esse personagem construído é integrado numa narrativa de (ou sobre) si
mesmo, tornando-se o centro de um ato configurante que elabora um enredo no qual o sujeito
narrador é o próprio personagem, e vice-versa. Para Paul Ricoeur261: “Ser afetado por um
curso de acontecimentos narrados, eis aí o princípio organizador de toda uma série de papéis
pacientes, segundo a ação exercida seja uma influência, uma melhoria, uma deterioração, uma
proteção ou uma frustração.”
Nesse sentido, a poesia de Augusto dos Anjos aproxima-se dessa noção de identidade
narrativa, pela via da ficção poética, na medida em que o eu lírico é o sujeito que experimenta
determinadas sensações e sentimentos, ou seja, é esse eu lírico que é afetado por
determinados acontecimentos (quer tenham sido vivenciados efetivamente, ou não).
Estes “acontecimentos” são configurados num enredo no qual o sujeito “Augusto dos
Anjos”, essa “identidade-idem” que escreve versos, constrói narrativamente um outro “eu”,
nesse caso lírico, sua “identidade-ipse”, tornando-se, assim, o personagem e narrador da
narrativa poética então elaborada. A questão é que entre “identidade-idem” e “identidade-
ipse”, há uma relação dialética. Para Ricoeur262

A pessoa, entendida como personagem de narrativa, não é uma entidade


distinta de suas experiências. Ao contrário, ela compartilha o regime de
identidade dinâmica própria à história narrada. A narrativa constrói a
identidade da personagem, que pode ser chamada de identidade narrativa,
construindo a identidade da história narrada. É a identidade da história que
faz a identidade da personagem.

260
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
261
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.151.
262
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.155.
140

É essa proximidade compartilhada entre a identidade da personagem e a identidade da


narrativa que pode conduzir à armadilha da “ilusão biográfica”, como definiu Pierre
Bourdieu263:

...o relato autobiográfico se baseia, sempre, ou pelo menos em parte, na


preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao
mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consciência e uma
constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa
eficiente ou final, entre estados sucessivos, assim construídos em etapas de
um desenvolvimento necessário.

Assim, é atribuída unidade e continuidade à narrativa das experiências supostamente


vividas pelo sujeito (que, em muitos casos, é simultaneamente o personagem da narrativa e o
próprio narrador), de tal modo que as distâncias entre o vivido e a orgnização do vivido pela
narrativa são atenuadas, mal compreendidas, ou mesmo eliminadas. Como a trajetória do
indivíduo é descontínua, confundimos e transpomos a ordem e a unidade da narrativa para os
acontecimentos que foram supostamente vividos.
Dessa forma, concebemos Augusto dos Anjos, a identidade-idem, como um narrador
de si mesmo, sendo seu eu lírico, sua identidade-ipse, o personagem central de suas narrativas
poéticas, ou seja, dos “acontecimentos” que o afetam. Deriva, daí, a aproximação, muitas
vezes rápida e confusa, que identifica o eu lírico do poeta àquele que o elabora, ignorando as
distâncias entre um e outro. Isso pode colocar nas sombras o fato de sua poesia ser uma
expressão das experiências de individualização do sujeito, estimuladas pelas sensibilidades
características da temporalidade moderna.

263
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e
Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006, p.184.
141

CAPÍTULO 5
A MORTE DO PAI E DO FILHO:
FINGIMENTO, AUTORIA E NARRATIVA

5.1 Os Atos de Fingir

No capítulo anterior, tentamos abordar a questão das relações possíveis entre


identidade narrativa, poesia e experiências de individualização. Isto nos colocou em contato
com as reflexões acerca da escrita de si, enquanto prática que visa estabelecer para o
indivíduo moderno uma identidade mais estável, assim como, com a poesia lírica que,
consoante seus imperativos estéticos, parte do “eu” do poeta, transfigurando-o literariamente.
Nesse sentido, haveria um ponto de contato, na modernidade, entre o projeto poético
lírico e a produção dessa escrita sobre si mesmo, autorreferencial. Tanto num caso, como no
outro, sugere-se a ideia de que é possível, para o indivíduo, traduzir-se por escrito, seja nos
versos de uma poesia, seja na prosa de uma carta, de um diário, de uma autobiografia.
Ainda que esse projeto não seja necessariamente inválido, a ambição em realizar essa
tradução de si de modo integral e transparente não é possível, pois há uma distância
incontornável entre a experiência vivida e o registro dela, através da narrativa, da escrita. Isto,
obviamente, não implica em afirmar que toda escrita seja um falseamento, mas, que não se
pode esperar que a escritura seja um instrumento que garanta a plena transparência, o que nos
permitiria capturar a nós mesmos e aos demais sujeitos no mundo em sua total pureza.
Por outro lado, vimos, ao dialogarmos com Lejeune, que é possível, ao poeta, fazer de
seus versos um espaço para tentar colocar em prática o pacto autobiográfico. Para a presente
seção, continuaremos colocando em discussão as aproximações entre poesia, identidade
narrativa e escrita de si, trazendo à baila alguns diálogos acerca da questão do “autor” e suas
articulações com a noção de “atos de fingir”, tal como propôs Wolfgang Iser. Tais discussões
convergem a partir de certas imagens poéticas associadas à temática da morte.
Quando, na modernidade, o indivíduo passa a ser enfatizado como um sujeito
autônomo, dotado de razão, capaz de deixar registrado, por escrito, sua singularidade, isto
pressupõe considerá-lo, também, como um autor de/para si mesmo. Nesse caso, surge a
questão: como a problemática do “autor” relaciona-se com esses imperativos modernos?
Anteriormente, indicamos que se há, na modernidade, uma distância incontornável
entre o vivido e o escrito, tal distância se configura, também, como um espaço possível para a
ficcionalização de determinadas experiências, tanto individuais, quanto coletivas, sociais. É
com base nesse quadro geral que procuramos indagar em algumas poesias de Augusto dos
142

Anjos a presença dos temas da morte, assim como, colocá-lo em questão enquanto sujeito que
se assume como “autor” de si, para si e para os outros.
Isto porque, como sugeriu Paulo Henriques Britto264, ao contrário de uma poesia épica,
a poesia lírica, que não deixa de ser mais uma das facetas da valorização do indivíduo sob o
signo da modernidade, contribui para que o poeta repense aspectos sobre si mesmo. Desse
modo, através dela, o poeta oferece ao(s) Outro(s) uma imagem de si, ao mesmo tempo, em
que cria uma mitologia pessoal. Logo, é possível, para o poeta, ficcionalizar elementos
derivados de suas experiências vividas, inclusive oriundas de sua biografia.
Para efeito de análise, discutiremos nesse capítulo quatro sonetos de Augusto dos
Anjos. Os três primeiros sonetos tecem um conjunto de representações literárias sobre a
ocasião da morte de Alexandre dos Anjos, pai de Augusto. Os dois primeiros desses três
textos poéticos intitulam-se, respectivamente, “A meu Pai Doente” e “A meu Pai Morto”.
Estes, também foram incluídos no “Eu”. Apenas o terceiro soneto, “No Sétimo dia de seu
Falecimento”, por sua vez, não foi colhido no referido livro, tendo sido publicado somente no
jornal O Comércio.
O quarto soneto a ser analisado, que, com base no seu primeiro verso, intitulamos
“Agregado Infeliz de Sangue e Cal”, tematiza o aborto que Ester Fialho, esposa de Augusto
dos Anjos, sofrera em 1911, enquanto o casal, no Rio de Janeiro, esperava seu primeiro filho.
Em nossa interpretação, a seleção desses sonetos para análise justifica-se por nos
manter em contato com as temáticas que discutimos nos capítulos anteriores (identidade
narrativa, escrita de si, experiência de individualização). A presente discussão funciona,
também, como mais uma porta de entrada para compreendermos a elaboração da identidade
narrativa que Augusto dos Anjos teceu para si enquanto poeta, identidade esta que foi
simplificada pelo rótulo de “poeta da morte”. A temática da morte, mesmo que presente nos
poemas analisados neste capítulo, por sua relevância na poética de Augusto dos Anjos, será
analisada também em nosso quinto e sexto capítulos.
A temática da morte em seus versos, como dissemos, funciona como elo de
convergência que unifica as discussões já elencadas nos capítulos anteriores. Seus versos,
para além de apresentar ligações com elementos presentes nos estratos temporais de sua
época, também fazem menção à aspectos de sua biografia, ou seja, ficcionaliza determinados
elementos que podem ser associados à sua vida. Conforme Wolfgang Iser, os textos literários,
ficcionais, funcionam como um “ato de fingir” levado à cabo pela atividade mimética,

264
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.124-132.
143

ficcional, seja em prosa, seja em verso. O texto ficcional, para o senso comum, por sua
natureza pressuposta, apresentaria um conjunto de experiências que seriam o exato oposto
daquilo que se convencionou chamar “realidade”. Entretanto, Wolfgang Iser265 afirma que:

Os textos ficcionais serão de fato tão ficcionais e os que assim não se dizem
serão de fatos tão isentos de ficções? (...) Se os textos ficcionais não são de
todo isentos de realidade, parece conveniente renunciar a este tipo de relação
opositiva como critério orientador para a descrição de textos ficcionais (...).
Aparece (...) algo mais que uma oposição, de modo que a relação dupla da
ficção com a realidade deva ser substituída por uma relação tríplice. Como o
texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na descrição
deste real, então seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade
em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário.

Na compreensão de Iser, portanto, o texto ficcional não é caracterizado apenas por não
possuir as mesmas qualidades e predicados que são, normalmente, atribuídos àquilo que se
denomina “realidade”. Na concepção de Iser, a relação dualista entre “real” e “ficcional” deve
ser superada por um trinômio que compreende o “real”, o “fictício” e o “imaginário”. Isto
porque, uma narrativa não ficcional esgota-se na descrição, ou na enunciação, de algo
considerado real. Por exemplo, se afirmo que “Augusto dos Anjos foi um poeta que viveu
num engenho, no interior da Paraíba”, este enunciado esgota-se na medida em que comunica
um significado específico, afirmando ou negando algo.
Entretanto, o texto ficcional não se esgota na descrição, na enunciação. As diversas
(re)leituras de um texto ficcional visam, para além da descrição, afirmação ou negação,
produzir um “efeito” no leitor/receptor, efeito este que permanecerá presente em seu
imaginário, em sua imaginação, e que pode ser experimentado novamente a cada leitura.
A discussão que se desdobra a partir daquele trinômio (o real, o fictício e o
imaginário), proposto por Wolfgang Iser, pode ser articulada com nosso objeto de estudo. Ao
afirmarmos que há na poesia de Augusto dos Anjos a ficcionalização de algumas experiências
associadas à sua vivência, tais experiências são presumidas como vivências “reais”, as quais
foram ficcionalizadas, fazendo-as adentrar, assim, no imaginário do leitor/receptor.
Em relação ao primeiro aspecto proposto por Iser, “o real”, cabe lembrar que, por
volta dos primeiros anos do século XX, Augusto dos Anjos e família atravessavam uma
progressiva decadência. Os engenhos constituintes de seu patrimônio estavam em crise; as
dívidas só aumentavam. Somado a isso, o pior: membros de sua família adoeceram em meio à
um cenário cujos recursos estavam cada vez mais parcos.

265
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.957.
144

A percepção da desestruturação de seu universo familiar pode ter deixado profundas


marcas em Augusto dos Anjos, o que pode ter sido ficcionalizado em algumas de suas
imagens poéticas, tais como aquelas relacionadas ao engenho. Em face desse processo de
crise, manter certos elementos vivos na memória, transformar experiências vividas em
imagens ficcionais, pode ter contribuído para atravessar esse momento, fornecendo ao poeta
um eixo, uma identidade, aspectos para uma figuração de si mesmo transfigurada como
mitologia pessoal. Sobre a relação entre poesia e memória Britto266 afirma:

Para o poeta lírico, a memória individual é um repertório de causas,


explicações e justificativas que lhe permitem criar o seu mito pessoal de
individualidade única e singular, a ser fruído pelo leitor – o qual, por meio
de um processo de identificação, sente-se gratificado ao constatar que
também seu eu, tão único e singular quanto o do poeta, tem algo em comum
com ele.

O pai de Augusto dos Anjos, o Dr. Alexandre dos Anjos, encontrava-se enfermo no
Engenho Pau d‟Arco desde aproximadamente 1902-03. Os negócios da família, a partir de
fins do século XIX, estavam sob responsabilidade do Dr. Aprígio Pessoa de Melo (O
“Doutor” que dava as moedas, mencionado na poesia “Riccordanza della Mia Gioventú”),
segundo marido de D. Juliana Ludgero, avó materna do poeta. O Dr. Alexandre dos Anjos
parecia não possuir tino para gerenciar o patrimônio familiar e a enfermidade que se abateu
sobre ele somente “oficializou” sua distância dos negócios domésticos.
O segundo aspecto daquele trinômio sugerido por Iser, o “ficcional”, pode ser
vislumbrado, por exemplo, na ficcionalização presente em alguns versos de Augusto dos
Anjos elaborados em decorrência do falecimento do pai, versos estes que tomaram forma em
três sonetos, publicados em jornais paraibanos e, dois deles, depois, em livro, no “Eu”.
Cabe ressaltar que, ainda que a temática central desses sonetos seja a morte,
aproximamos e enfatizamos nossa análise atual com o tema da ficcionalização. Isto porque, o
eu lírico desses sonetos elabora imagens acerca da morte, não num âmbito geral, mas, numa
instância mais particular.
Analisaremos as imagens da morte nesse âmbito mais amplo, para além dessas
instâncias particulares, em nosso quinto e sexto capítulos. Nas reflexões elaboradas por

266
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
145

Wolgang Iser, a tríade do “real”, do “fictício” e do “imaginário” apresenta um potencial


heurístico como razão de sua aplicabilidade. Na ótica de Iser267

A relação opositiva entre ficção e realidade retiraria da discussão sobre o


fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto
ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade
social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. (...) Se
o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referência, então a
repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não
pertencem à realidade repetida. (...) Assim, o ato de fingir ganha sua marca
própria, que é a de provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por
esta repetição atribuindo uma configuração ao imaginário, pela qual a
realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que é
assim referido.

Nessa compreensão, os sonetos que analisaremos, os quais tematizam a morte do pai


de Augusto dos Anjos em três ocasiões distintas, configuram-se em sua ficcionalidade na
medida em que não se esgotam apenas na comunicação do dito falecimento, pois, atribuem a
essa ocasião uma forma estética que visa gerar um efeito no leitor/receptor.
Enquanto texto ficcional, a enunciação da doença do pai, de seu falecimento e de sua
missa de sétimo dia, estão para além da mera função comunicativa. A repetição destas
circunstâncias, através da leitura do texto ficcional, tal como sugeriu Iser na citação acima,
transforma esses acontecimentos em signos que passam a povoar o imaginário de quem os lê.
As representações poéticas elaboradas acerca da doença, da morte e da missa de
sétimo dia, apresentam características estéticas que já não estão totalmente pautadas pela
predominância de um padrão estético em particular, seja ele romântico, simbolista, parnasiano
ou poético-científico. Antes, podem ser consideradas como uma mistura dessas apropriações.
Os sonetos que selecionamos para análise relacionam-se com essas discussões:
articulam-se com algo considerado não ficcional, no caso a morte do pai do poeta e as
experiências correlatas à esse fenômeno (doença; missa de sétimo dia;), ao mesmo tempo, em
que faz dessa circunstância objeto de ficcionalização, através da utilização das ferramentas da
poesia, efetivando a transfiguração de algo que “já passou” em versos.
O soneto abaixo não foi publicado na edição do “Eu”, ainda que, tal como os demais,
tenha como tema a morte do pai, tornado objeto ficcional a partir da atividade mimética.
Vejamos esse primeiro soneto268:

267
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.958.
268
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.460. Foi publicado apenas no Jornal O Comércio, no dia 19 de janeiro de 1905.
146

Ao sétimo dia de seu falecimento

E ele morreu. Ele que foi um forte


Que nunca se quebrou pelo Desgosto
Morreu... mas não deixou na ara do rosto
Um só vestígio que acusasse morte!

O anatomista que investiga a sorte


Das vidas que se abismam no Sol-posto
Ficaria admirado do seu rosto,
Vendo-o tão belo, tão sereno e forte!

Quando meu Pai deixou o lar amigo


Um sabiá da casa muito antigo
Que há muito tempo não cantava lá,

Diluiu o silêncio em litanias...


E hoje, poetas, fazem sete dias
Que eu ouço o canto desse sabiá.

Desde o primeiro verso, verifica-se a ficcionalização a partir do fenômeno da morte, já


ocorrida (“e ele morreu”). Nas imagens poéticas então elaboradas, a percepção do corpo
morto do pai, para o eu lírico, nesse soneto, não apresenta características mais “cruas” ou uma
linguagem fúnebre. Os traços físicos/fisionômicos transfigurados em verso são outros, mais
positivos: “rosto belo”; “sereno”; “forte”.
Cabe ressaltar que não estamos propondo uma análise psicológica do poeta, pois isto
consistiria em apagar/diminuir as distâncias existentes entre o sujeito que escreve e o eu lírico
exposto em seus versos. A indicação de que há uma distância, uma distinção, entre o “real” e
o ficcional já sublinha que uma análise psicológica automática do poeta, a partir de seus
versos, pode ser problemática. Nosso intuito é indicar com quais temáticas essas imagens
poéticas dialogam, ou seja, como as referências literárias ao seu pai falecido e ao seu filho não
nascido, não deixam de se relacionar, também, com aspectos estéticos e históricos próprios da
modernidade, ao mesmo tempo, em que se constituem como um “ato de fingir”.
Como a compreensão das relações entre o “real” e o “ficcional”, a partir da ótica de
Wolfgang Iser, pressupõem a inclusão do fator “imaginário”, percebemos que a morte do pai,
representada nos versos, já não se esgota numa referência à efetividade de seu falecimento,
nem tampouco pode ser considerada puramente ficcional. Ao ser incluída nos versos, o
fenômeno ocorrido da morte passa a integrar uma dimensão imaginária.
147

Para Wolfgang Iser269, “no ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que
não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; (...) Na verdade, o
imaginário não se transforma em um real por efeito da determinação alcançada pelo ato de
fingir, muito embora possa adquirir aparência de real...”. É em razão desse contato, mediante
a “aparência”, que as imagens poéticas enunciadas podem reforçar a ideia de que o eu lírico e
o sujeito que escreve “sentem” a mesma coisa, vive(ra)m as mesmas experiências, ou são “a
mesma pessoa”, anulando a distancia existente entre eles. Voltaremos a esse ponto.
Dessa forma, esse primeiro soneto de Augusto dos Anjos configura-se como um “ato
de fingir”, pois, ao tomar a morte de seu pai como tema poético, tece sobre ele e sobre o
fenômeno de seu falecimento, um conjunto de imagens e impressões que podem fazer com
que o leitor desconsidere, ou veja como inexistente, a distancia indicada acima, entre o eu
lírico e o sujeito que escreve. O fingimento então elaborado a partir das representações
poéticas pode induzir o leitor à pensar dessa forma, sobretudo, quando o efeito gerado pelo
contato com o texto poético, no leitor/receptor, é significativo, até mesmo catártico.
Compreendendo o ficcional no texto literário, e este como um “ato de fingir”,
podemos perceber a fecundidade da atividade mimética. A narrativa em prosa ou verso fixa-se
em nossa imaginação, povoando nosso imaginário. Ainda como afirma Iser270, seria “o ato de
fingir, [uma espécie de] irrealização do real [assim como,] a realização do imaginário...”. A
morte do pai do poeta “irrealiza-se” ao tornar-se para o leitor objeto de imaginação.
O soneto seguinte271, tematiza o período no qual o pai de Augusto de Augusto dos
Anjos ainda estava doente e demarca outros modos pelos quais o poeta ficcionaliza a
dimensão da enfermidade, articulada ao fenômeno da morte que recaiu sobre seu pai:

A meu Pae Doente

Para onde fores, Pae, para onde fôres,


Irei também, trilhando as mesmas ruas.
Tu, para amenisar as dores tuas,
Eu, para amenisar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,


E eu tão sem crença, e as árvores tão nuas,
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Maguas crescendo e se fazendo horrores!

269
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.959.
270
ISER, 2002, p.959.
271
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.88.
148

Maguaram-te, meu Pae!? Que mão sombria,


Indifferente aos mil tormentos teus
De assim maguar-te sem pezar havia!?

– Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim


É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de maguar-te assim!

Nesses versos, por exemplo, vemos que a percepção do eu lírico em relação ao pai
doente gerava uma espécie de revolta, mas também, a perspectiva de que ambos, pai e filho,
trilhariam o mesmo caminho, ou seja, a morte seria o horizonte comum e inevitável a ambos.
A revolta, nesse caso, decorre da percepção de que a ausência daquele objeto amado em breve
se tornaria fato, na medida em que, nesses sonetos, a ficcionalização dos momentos da
enfermidade, da morte e da missa são retrospectivos ao fenômeno efetivamente ocorrido. Isto
é, cada um desses momentos são tornados signos constituintes do imaginário, não somente
daquele que o poeta elabora para si, através de seu eu lírico, quanto do imaginário do(s)
leitor(es) que podem se identificar com tais versos.
Podemos perceber como a relação triádica sugerida por Wolgang Iser nos permite
compreender melhor o fenômeno da atividade mimética, para além daquela oposição binária
entre “real” e “ficcional”. Isto porque, não se coloca em questão se as impressões, sensações
ou sentimentos expressos pelo eu lírico foram efetivamente vividas pelo sujeito que escreve,
haja vista que isso não importa necessariamente. O efeito causado pela atividade mimética
não ancora-se exclusivamente na pressuposta vivência efetiva. Wolgang Iser272 reforça essa
percepção, quando afirma: “Tal fingimento nos leva como leitores a certos atos e parecemos
apreciar tal atividade, apesar de saber que se trata de uma ilusão”, pois, “...ler uma obra de
ficção sempre significava viver outra vida.”
O terceiro soneto273, na verdade, é composto por dois sonetos que formam um texto
só. Nele, não se representa o período de sete dias decorrido após a morte, nem os momentos
antecedentes, de enfermidade, mas, sim, a condição própria de “estar morto”. No soneto da
primeira parte, lemos:

A meu Pae morto

Madrugada de Treze de Janeiro,


Rezo, sonhando, o offício da agonia.
Meu Pae nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

272
ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. In: Teoria da Ficção: Indagações à Obra de Wolfgang Iser.
ROCHA, João Cézar de Castro (Org.). Rio de Janeiro. EDUERJ, 1999. P.65-66.
273
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.89.
149

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!


Quando acordei, cuidei que elle dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
<<Acórda-o>>! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E sahi para ver a Natureza!


Em tudo o mesmo abysmo de belleza,
Nem uma nevoa no estrellado veu...

Mas pareceu-me, entre estrellas floreas,


Como Elias, num carro azul de glorias,
Ver a alma de meu Pae subindo ao Céu!

O soneto dessa primeira parte, que tematiza a passagem da vida para a morte, ainda
elabora imagens positivas, sobretudo, mediante símbolos articulados com a natureza
circundante, ou seja, pela identificação da “alma” com a “estrela”. Contudo, no soneto da
segunda parte274, as imagens tornam-se mais cruas, talvez até mesmo mórbidas:

Pôdre meu Pae! A morte o olhar lhe vidra.


Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pullulam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hydra


A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsydra!...

Podre meu Pae! E a mão que enchi de beijos


Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a meza de orgíacos festins!...

Amo meu Pae na atômica desordem


Entre as bocas necróphagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Observamos que as imagens poéticas no “soneto ao pai morto” apresentam distinções


evidentes em relação às representações literárias oferecidas nos sonetos anteriores, “Ao Pai
Doente” e “Ao Sétimo Dia de seu Falecimento”. Esses dois sonetos apresentam imagens
menos “fúnebres”: falam de “dores”, “mágoas”, “tormentos”, mas também indicam aspectos
positivos: o rosto “sereno”, “belo” e “forte”, quase sem vestígio de morte.
Entretanto, no soneto “Ao Pai Morto”, as imagens poéticas já são mistas. No soneto da
primeira parte, ressalta-se o caráter doméstico da morte, na medida em que é sugerido que o

274
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.90.
150

pai morrera durante à noite, seus familiares pensando que ele ainda estava dormindo. Além
disso, há a imagem poética que associa a chegada da alma do pai no Céu, como uma estrela.
Por outro lado, nas estrofes seguintes, quando a morte já está constatada, os aspectos
representados são outros: o corpo do pai está podre; seu olhar apresenta um aspecto vítreo; em
sua pele “microorganismos fúnebres pululam / Numa fermentação gorda de cidra”.
O humano e o animal, representado pela figura da “hidra”, estão sujeitos à mesma “lei
biológica”. “Bichos” roem as mãos do pai, beijadas pelo eu lírico. A morte é metaforizada
como uma “atômica desordem”, ressaltando-se, por fim, a inumação do corpo, simbolizada
pela “...terra infecta que lhe cobre os rins”.
Esses três sonetos analisados até o momento oferecem imagens poéticas significativas
acerca da morte do pai de Augusto dos Anjos, transfigurando possíveis experiências vividas
em verso. Os textos poéticos de Augusto dos Anjos, em nossa ótica, configuram-se pela
noção de “atos de fingir”, elaborada por Wolfgang Iser. Tais atos de fingimento, segundo esse
autor, são compostos por outras condutas de fingimento, a saber, a “seleção”, a “combinação”
e o “desnudamento” da ficcionalidade. Antes de discutirmos as articulações possíveis dos
versos de Augusto dos Anjos com esses três conceitos constituintes do “fingimento”, vejamos
ainda o que afirma Iser275

...este mundo do texto não teria nada de idêntico ao mundo dado, pois a
intencionalidade e o relacionamento, que constituem a base de sua forma de
organização, não são qualidades do mundo dado. O mundo do texto, como
análogo assim constituído, permite portanto que por ele se vejam os dados
do mundo empírico por uma ótica que não lhe pertence, razão porque
constantemente ele pode ser visto de forma diferente do que é.

Assim sendo, ao tomar a morte do pai como tema poético, Augusto dos Anjos não
apenas nos comunica a enfermidade, a morte e a ocorrência da missa de sétimo dia. Através
da atividade mimética nos apresenta outra perspectiva acerca desse fenômeno, ou seja,
podemos enxergar não somente a doença e a morte de seu pai pelos olhos de seu eu lírico,
como também, o leitor/receptor pode associar essas imagens poéticas com suas próprias
experiências e expectativas. Aqueles atos reais “irrealizam-se” pela ficcionalização poética,
na medida em que o imaginário se realiza.
Como temos discutido, é próprio da temporalidade moderna dispensar atenção à
dimensão subjetiva, individual. Não foi à toa que a psicologia e a psicanálise desenvolveram-
se muito nas primeiras décadas do século XX. Nesse movimento, não é de se espantar o fato
275
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.978.
151

de que o poeta, através de seu eu lírico, transforme experiências associadas à sua


individualidade em tema poético, visando comunicá-las, expressá-las, à outro(s) indivíduos(s),
semelhantes ao próprio poeta, por compartilharem a mesma condição de individualidade, a
qual então se reforçava nesse período histórico.
Caso fôssemos organizar temática e cronologicamente os “sonetos ao pai...”,
estabelecendo um fio condutor para essas experiências então ficcionalizadas, percebemos uma
espécie de unidade: “O Soneto ao Pai Doente”, depois o “Soneto ao Pai Morto” e, por fim, o
“Soneto ao sétimo dia...”. De certo modo, haveria a atribuição de uma ordem, mediante a
refiguração poética, que unificaria esses três momentos específicos, numa narrativa marcada
pela presença da doença e da morte.
O soneto “Ao Pai Doente” expressa revolta, mas também aceitação da morte, que é
inevitável, fazendo cessar as inquietações: “Pai, para onde fores, Irei também, trilhando as
mesmas ruas... / Tu, para amenizar as dores tuas, Eu, para amenizar as minhas dores”. Já o
soneto “Ao Pai Morto” é bem mais denso, apresenta a morte como afecção do corpo, que lhe
retira a vida: “Podre Pai / A morte o olhar lhe vidra” e “Amo meu Pai na Atômica desordem /
entre as bocas necrófagas que o mordem”.
Por fim, o soneto “Ao Sétimo Dia de Seu Falecimento” é mais complacente; as
características mais “cruas” que identificam a morte no corpo, como no soneto anterior, são
suavizadas: “O anatomista que investiga a sorte (...) ficaria admirado do seu rosto vendo-o tão
belo e forte”, “e ele morreu, ele que foi um forte”. Por fim, o eu lírico identifica o falecimento
de seu pai com uma estrela brilhante no céu: “Mas pareceu-me, vendo estrelas flóreas (...) /
Ver a alma de meu pai subindo ao céu”.
Na concepção de Iser, os “atos de fingir”, como indicamos acima, seriam compostos
por duas condutas iniciais: a “seleção” e a “combinação”. Em relação à essa primeira conduta,
vejamos como Iser276 a compreende:

A seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos


acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação semântica ou
sistemática dos sistemas de que foram tomados. Isso tanto vale para os
sistemas contextuais, quanto para os textos literários a que novos textos se
referem. (...) A seleção retira-os dessa identificação e os converte em objeto
da percepção. (...) Daí, se segue que a seleção dá a conhecer os campos de
referência do texto como sistemas existentes em seu contexto, campos que se
dão a saber no momento em que, através do ato de seleção, serão
transgredidos. (...) Os elementos contextuais que o texto integra não são em

276
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.960-961.
152

si fictícios, apenas a seleção é um ato de fingir pelo qual os sistemas, como


campos de referência, são entre si delimitados, pois suas fronteiras são
transgredidas.

Desse modo, Augusto dos Anjos, nesses textos poéticos em particular, seleciona três
ocasiões distintas, não fictícias: a enfermidade, a morte e a cerimônia religiosa de sétimo dia.
No “soneto ao pai doente”, a enfermidade é associada à tristeza, à ausência de flores nos
campos, à um padecimento que se traduz em gemidos. Nas imagens poéticas relacionadas à
esse momento, o sofrimento é mais abstrato, menos carnal e mais simbólico.
Caso sejam comparados os sonetos “Ao pai doente” e “Ao Sétimo dia de seu
falecimento”, as palavras, imagens e sensações que se intenta expressar permanecem numa
ordem estética semelhante. Sete dias após o falecimento, o eu lírico ficcionaliza a ocasião
associando o pai que já jazia às ideias de força, de serenidade, de beleza. Com relação ao
soneto “Ao pai morto”, tudo se modifica. A linguagem se torna fúnebre, mórbida, macabra,
quase insensível. Fala-se da carne podre, dos micro-organismos que fermentam, dos bichos
que roem a carne, da terra utilizada na inumação.
Dessa forma, cada metáfora, cada símbolo e palavra oferece ao leitor uma percepção
distinta inscrita nesse fenômeno da morte. O efetivo falecimento do pai, as circunstâncias que
o precederam e sucederam não são, em si mesmas, ficcionais. Contudo, é pela seleção destas
circunstâncias que os textos poéticos em questão se transformam mimeticamente num
“fingimento”. É como se fosse buscada, mediante os mais variados meios, uma ligação, uma
comunhão com o leitor/receptor. Paulo Henriques Britto277 afirma que:

...o poeta lírico, ao recorrer à memória vivida, estabelece com seu leitor um
diálogo de semelhanças e diferenças: essas foram minhas vivências, pessoais
e únicas, porém reconhecíveis por qualquer outro ser humano. (...) Para o
poeta lírico, a memória individual é a principal [mas não única] matéria-
prima.

Nos poemas analisados até aqui, ocorre a ficcionalização a partir da seleção de alguns
elementos presentes efetivamente no cotidiano do poeta, vestígios do passado que foram
evocados e transfigurados: o Engenho Pau d‟Arco, a ama de leite escrava/ex-escrava; o
apelido “patriarcal” de sua mãe, “Sinhá-Mocinha”, a menção ao “Doutor”, no caso, Aprígio
de Melo, segundo marido de sua avó, D. Juliana. É através da seleção e ficcionalização dessas
circunstâncias que se efetiva o “fingimento” e o “efeito” estimulado no imaginário do leitor.

277
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.128-129.
153

5.2 A Questão do “autor” e a Identidade Narrativa

O quarto texto poético de Augusto dos Anjos que analisaremos neste capítulo, que
também nos conecta com o próximo capítulo, é o soneto “Agregado Infeliz de Sangue e
Cal”278. Vejamos na íntegra:

Ao meu primeiro filho nascido


Morto com 7 mezes incompletos.
2 Fevereiro 1911
Aggregado infeliz de sangue e cal,
Fructo rubro de carne agonisante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embryológico fatal


Destruiu, com a synergia de um gigante,
Em tua morphogénese de infante
A minha morphogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,


Em que logar irás passar a infância,
Tragicamente anonymo, a feder?!

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,


Pantheisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

Em nossa leitura, o soneto acima, assim como os anteriores, também se inscreve nesse
esforço de ficcionalização a partir de experiências vividas. Pelo projeto da poesia lírica, esses
sonetos não deixam de cumprir seu papel, além de contribuírem na elaboração de sua
mitologia pessoal como poeta, cuja identidade narrativa seria sintetizada pelo rótulo de “poeta
da morte”. Nesses versos, o eu lírico está sempre atento ao processo dissolutivo que, segundo
a interpretação de Augusto dos Anjos expressa em muitos de seus textos, associada ao
pensamento cientificista, é inerente à toda a existência, orgânica e inorgânica.
Nesse soneto, também é ressaltada a marca temporal da anterioridade do tema
abordado, ou seja, é a ocorrência do aborto recém ocorrido do filho que sua mulher esperava
que se transforma em matéria para a poesia. Tal como o soneto “ao pai morto”, as imagens
poéticas elaboradas nesses versos também são bastante sóbrias, “cruas”, sem idealizações.
Esse texto poético, por exemplo, ainda nos permite compreender não somente o ato de
“fingir”, marcado pelo conceito de “seleção”, quanto pelo conceito de “combinação”. Para

278
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.18.
154

Wolfgang Iser279, “como um ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual
na combinação dos elementos textuais, que abrange tanto a combinabilidade do significado
verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos
personagens e de suas ações.”
Os versos desse soneto trazem consigo muitos dos elementos estéticos que
encontramos em sua poética, sobretudo, nos textos colhidos em livro e, principalmente, pelo
uso recorrente de termos técnicos, científicos e filosóficos (“morfogênese”; “trama
neuronial”; “plásmica substância”; “noumenalidade”;). Isto é, o fenômeno selecionado (o não
nascimento do filho) é expresso através da combinação de uma série de termos
cientificistas/filosóficos.
O uso desses termos no soneto citado, também presentes em muitas de suas poesias,
reforça a compreensão da morte como um fenômeno natural, não sobrenatural, assim como,
um entendimento naturalizado do corpo. O eu lírico, ao referir-se ao corpo do filho natimorto,
o define como “feto esquecido”, “agregado infeliz de sangue e cal”, divagando sobre o lugar
onde o feto abortado iria “... passar a infância / tragicamente anônimo, a feder?!”.
O problema que impediu o nascimento de seu filho não é identificado. Porém, é
metaforizado como um “poder embriológico fatal”. Após ter seu nascimento impedido, a
morte do seu filho não é representada como um fato sobrenatural, mas, natural, associado à
elucubrações filosóficas, como designa os versos “...panteísticamente dissolvido / na
noumenalidade do NÃO SER!”. Dessa forma, percebemos na configuração desse e dos outros
três sonetos analisados na seção anterior a emergência de um ato de “fingimento”. Para Iser280

Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traço


geral dominante: serem atos de transgressão. Na seleção, são transgredidos
os sistemas contextuais do texto, mas também o é a imanência do próprio
texto, por incluir em seu repertório a transgressão dos sistemas contextuais
selecionados. Na combinação, ocorre uma transgressão dos espaços
semânticos intertextualmente constituídos, o que vale tanto para a ruptura de
limites do significado lexical, quanto para a constituição do acontecimento
central da narração....

Nessa compreensão, a enfermidade, a morte e a cerimônia de sétimo dia do pai de


Augusto dos Anjos, assim como, o não nascimento de seu primeiro filho, são selecionados e
combinados, transformando-se em temática poética, cada texto em específico sendo envolvido
numa rede de relações (intra)textuais, contextuais e lexicais.

279
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.963.
280
ISER, 2002, p.982.
155

Conforme Ricoeur, a variação temática possível às narrativas, principalmente às


abertamente ficcionais, é imensa, o que se soma à unidade atribuída quando nos propomos
narrar algo. Tal como pudemos observar, o trânsito entre identidade narrativa, escrita de si e
ficcionalização sobre a morte ganham relevo nos textos poéticos de Augusto dos Anjos,
analisados nas páginas precedentes. Ainda segundo Paul Ricoeur281,

Quanto à morte, as narrativas que a literatura faz dela acaso não têm a
virtude de embotar o aguilhão de angústia em face do nada desconhecido,
dando-lhe imaginariamente o contorno desta ou daquela morte, exemplar por
uma razão ou por outra? Assim, a ficção pode concorrer para a
aprendizagem do morrer. (...) Aqui pode instaurar-se um intercâmbio
frutuoso entre a literatura e o ser-para-a (ou em direção à) morte.

Antes de encerrarmos a presente discussão, e ao considerarmos a inclusão e mistura,


em sua poesia, da ficcionalização de aspectos advindos de sua biografia, colocaremos em
questão o papel do sujeito que escreve enquanto “autor”, seja em relação à escrita de si
mesmo, seja enquanto “função” à qual seus textos literários são associados. Tanto num caso,
quanto no outro, é forte a tendência à associar, automaticamente, os textos literários
(principalmente os poéticos) àquele sujeito que escreve.
Na compreensão de Wolfgang Iser, a relação entre o “real”, o “fictício” e o
“imaginário” constitui-se de forma triádica. Os dois primeiros atos de “fingir”, já comentados,
a “seleção” e a “combinação”, complementam-se por um terceiro ato, qual seja, a noção de
“desnudamento” da ficcionalidade. O texto ficcional, em prosa ou verso, não pode ser
compreendido com os mesmos critérios que utilizamos para compreender o mundo comum à
que chamamos “realidade”. Para Iser,282

...o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade,


que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural, quanto
da literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao texto ficcional uma realidade
de todo reconhecível, posta agora, entretanto, sob o signo do fingimento. Por
conseguinte, este mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que o
mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas
entendido como se o fosse.

Desse modo, a “seleção” e a “combinação” se complementam pelo “desnudamento”


da ficcionalidade do texto. Esta, pressupõe que o leitor/receptor compreenderá que o texto
ficcional não é uma duplicação do que se chama mundo “real”. O texto ficcional apenas finge

281
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.173.
282
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.972-973.
156

ser real, ou seja, deve ser compreendido “como se fosse real...”. Assim, os textos poéticos de
Augusto dos Anjos são ficcionais e sugere-se que sejam entendidos a partir do “como se...”.
A atribuição de um “autor” a um texto é historicamente variável e não deve ser
concebida de maneira naturalizada. Ao longo dos tempos, nem sempre houve a necessidade
de identificar, num texto, sua autoria. Para Foucault283, mesmo quando se passa a enfatizar
essa atribuição, ainda não é ao sujeito que escreve que apontamos, mas, sim, para aquilo que
esse filósofo chama de “função-autor”.
Um conjunto de observações acerca dessa problemática elencada por Foucault foi feita
pelo historiador Roger Chartier. Esse historiador coloca os pressupostos de Foucault sob
avaliação, nos fornecendo uma ampliação dessa perspectiva. Conforme Chartier284,

A “função-autor”, portanto, pressupõe uma radical distância entre o próprio


indivíduo e a construção do sujeito a quem o discurso é atribuído. (...) Por
um lado, a unidade da “função-autor” como princípio para garantir a
coerência do discurso pode referir-se a vários indivíduos que competem
entre si. Por outro lado, a pluralidade das vozes e das posições do autor no
mesmo texto é remetida de volta a um único criador. Nesse sentido, a
“função-autor” está fundamentalmente separada da realidade
fenomenológica e da experiência do escritor como indivíduo.

Nessa ótica, quando nos referimos à poesia de Augusto dos Anjos, o eu lírico que nela
encontramos pode ser associada à essa noção de “função-autor”. Assim, Augusto dos Anjos,
enquanto sujeito que escreve, encontra-se numa posição distinta e distante do “autor” para
quem o texto escrito aponta. Entretanto, ao reavaliar essa noção derivada do pensamento
foucaultiano, Chartier285 considera que:

Foucault apresentou três suposições fundamentais (...) Primeiro, fez uma


distinção radical entre dois problemas, frequentemente confundidos pelos
historiadores: por um lado, a “análise sócio-histórica do autor como
indivíduo” e as inúmeras questões que exigem atenção nesse contexto (...) e,
por outro lado, o problema mais fundamental da construção de uma “função-
autor”, ou seja, “a maneira pela qual um texto aponta para essa figura [o
autor] que está fora dele e o precede.

Em nossa interpretação, a partir do momento em que inicia-se (e insiste) na prática


com a poesia, seja ficcionalizando elementos derivados de suas experiências vividas em seu
cotidiano, ou não, Augusto dos Anjos assume a intencionalidade de produzir textos. Ainda
que inclua certos temas deliberadamente em seus versos, há neles elementos inscritos,

283
FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, música e cinema. Ditos e Escritos, Vol. 3. MOTTA,
Manoel Barros da (Org.). Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2009.
284
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.38-39.
285
CHARTIER, 2012, p.38.
157

associados aos estratos de sua temporalidade histórica, que ele não controla, assim como, não
controla as interpretações feitas pelos diversos receptores, em outros momentos. Quando faz
menção, em seus versos, à elementos de sua vida, elabora transfigurações ficcionais. Todavia,
seja no tocante à refiguração de memórias, seja escrevendo sobre si mesmo, seja fazendo
poesia na sua forma mais imaginativa, mais ficcional possível, há a construção de um “outro”
para além dele mesmo. Chartier286 comenta:

Considerando o autor “como uma função do discurso”, Foucault afirma que,


longe de ser relevante a todos os textos, em todas as épocas, a atribuição de
uma obra a um nome próprio não é nem universal, nem constante: “a função
de um autor, é caracterizar a existência, a circulação e o funcionamento de
certos discursos dentro da sociedade (...)” A “função-autor situa-se a uma
certa distância da evidência empírica, segundo a qual, cada texto foi escrito
por alguém.

Na perspectiva foucaultiana, haveria uma confusão, por parte dos historiadores, entre
considerações sócio-históricas sobre o autor enquanto sujeito e essa chamada “função-autor”.
Tais análises sócio-históricas, continua Chartier287, privilegiam “...o status social dos autores,
as origens e carreiras familiares dos escritores, a estrutura do campo literário, etc.”
Ao indicarmos as proximidades entre a poesia de Augusto dos Anjos com a escrita de
si e com a identidade narrativa e suas interfaces com os atos de fingir e com o tema da morte,
nos referimos à alguns daqueles elementos que são privilegiados nas análises sócio-históricas.
Contudo, se há a inclusão em sua poesia de personagens e lugares relacionados à sua
biografia, não entendemos que tais elementos sejam determinantes para o surgimento de sua
poética, nem consideramos que esta seja mero reflexo passivo de sua vida.
Considerado um ato de fingir, como sugere Iser, o texto ficcional, em prosa ou verso,
pressupõe ser compreendido “como se fosse...”, ou seja, deve-se perceber como o texto
ficcional se despe da pretensão de ser “real”: à ele, basta que pareça real, que seja
compreendido “como se fosse real”. Ainda para Iser288, “torna-se deste modo claro que a
ficção do como se utiliza o mundo representado para suscitar reações afetivas nos receptores
dos textos ficcionais.”.
Talvez a distinção texto/autor seja mais perceptível quando se trata de outras formas
de ficção, como nos romances mais convencionais, nos contos ou peças teatrais, nas quais o

286
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.38. (ênfase em itálico do
autor).
287
CHARTIER, 2012, p.38.
288
ISER, Wolfgang. Os Atos de Fingir ou O que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.).
Teoria da Literatura em suas Fontes. (Vol.2). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002. 3ªed.,
p.977.
158

sujeito que escreve/autor é visto como distinto dos personagens que habitam suas tramas. Já
no caso da poesia, a percepção desta distinção pode ser mais difícil, pois, muitas vezes, o
receptor pode confundir um poeta, como Augusto dos Anjos, com seu personagem, o eu lírico
presente em seus versos. Porém, prosa e poesia apelam às reações afetivas do leitor.
Através da atividade mimética de Augusto dos Anjos, a inclusão de temas
identificáveis em sua biografia não se processa como uma mera atividade de imitação, mas,
sim, como a criação de uma nova forma de conceber à realidade referencial para a qual o
texto pode apontar. A dialética entre o indivíduo que escreve e essa “função-autor”, tal como
analisa Chartier, foi pensada de modo bastante fecundo pelo escritor argentino Jorge Luis
Borges (1899-1986) em seu texto intitulado “Borges e Eu”. Nesse texto, Borges considera as
distâncias que separam ele, como indivíduo/escritor dotado de certas peculiaridades, do
“Borges”, o autor como figura pública. Nas palavras de Chartier289

A ficção mostra a relação recíproca que liga o “eu” a “Borges”. A realidade


fenomenológica do indivíduo é a condição de possibilidade da existência do
autor, de sua obra e “literatura”. (...) Por outro lado, o indivíduo só pode
sobreviver por meio da figura, da ficção e da função do autor (...). A
dissociação entre o “eu” e “Borges” é, assim transformada em uma forma de
identificação que é a única que pode permitir ao sujeito sobreviver e, talvez,
mais fundamentalmente, existir. Nesse sentido, o “autor” não é apenas uma
função que desloca e transforma a personalidade de um indivíduo que
escreve; é também uma ficção que proporciona a realidade a uma ausência.

Ao tomarmos, aqui, como tema de discussão algumas poesias de Augusto dos Anjos
enquanto indiciárias de um conjunto de experiências de individualização, inerentes à chamada
modernidade, percebemos uma relação com as observações feitas acima por Chartier.
Augusto dos Anjos, enquanto sujeito que escreve, sustenta em sua “fenomenalidade” esse
“outro eu”, que adere aos textos escritos. Esse “outro” Augusto dos Anjos com o qual os
leitores de seus versos entram em contato, por vezes, pode parecer tão ou mais real do que
aquele sujeito fenomênico.
Chartier observa que, no pressuposto foucaultiano, a “função-autor”, ou seja, o “nome
próprio” ao qual o texto é atribuído, não seria universal. Anteriormente, textos “científicos”
normalmente eram atribuídos a um autor, ao passo em que textos “literários” nem sempre
identificavam com clareza sua “autoria”, muitos permanecendo como anônimos ou
indeterminados, até mesmo atribuídos à “autores” distintos.

289
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.40.
159

Entretanto, por volta dos séculos XVII ou XVIII, como sugere Foucault, verdades
“científicas” já não eram necessariamente associadas a um autor, ao contrário dos textos
“literários”, que fortaleceram progressivamente essa associação, sobretudo, com o advento da
modernidade de fim de século.
Contudo, Chartier290 apresenta alguns exemplos históricos de que, mesmo no período
em que Foucault sugeria um predomínio (ou inconstância) do anonimato da “autoria” em
relação aos textos ditos “literários”, já existiam autores que disputavam com editores e
livreiros a propriedade intelectual de seus textos e os direitos comerciais sobre eles, seja sobre
a venda, seja sobre o direito de realizar encenações/apresentações; ou seja, disputava-se a
autoria e os direitos dela derivados. Em síntese, Chartier291 propõe que:

A genealogia da autoria literária é mais antiga do que Foucault pensava. (...)


Primeiro, na Idade Média e na Renascença, uma grande parte do discurso
que podemos classificar como “científico” (...) não se referia à auctoritates
canônicas, era, ao contrário, um conhecimento coletivo e anônimo. (...)
Segundo, (...) a revolução científica ocorrida no século XVII (...) não
significou de forma alguma a expulsão do nome próprio das afirmações de
conhecimento. (...).

Nessa lógica, ao indicarmos na poesia de Augusto dos Anjos as referências à


personagens e lugares relativos à sua biografia, situamos a existência social e histórica de um
indivíduo que escreve. Entretanto, tais referências indicadas são consideradas indícios das
condições de possibilidade que permitiram a existência de sua “função-autor”. Tal como
sugere Roger Chartier, a partir das reflexões elaboradas por Borges, as relações entre o
indivíduo que escreve e a “função-autor” elaborada, são mais complementares entre si do que
excludentes, isto é, há uma distância entre essas instâncias, mas não uma cisão completa.
É com base nessas observações que acreditamos chegar num ponto fundamental não
somente para nosso capítulo, mas para nossa pesquisa. O “Eu” de Augusto dos Anjos (assim
como suas demais poesias publicadas apenas em jornais e outros periódicos) não é um livro
que expressa sua essência mais íntima, revelando-o tal qual ele era, como se pode pensar.
Como discutimos anteriormente, a identidade narrativa, situada entre o idem e o ipse,
atribui ao sujeito que escreve ou narra algo sobre si mesmo, pela via ficcional ou não, a
potência de transformar-se num personagem inscrito numa narrativa dotada de enredo
próprio. Segundo Ricoeur292

290
CHARTIER, Roger. História Cultural do Autor e da Autoria. In: FAULHABER, Priscila Lopes; LEITE, José
Sérgio (Orgs.). Autoria e História Cultural da Ciência. Rio de Janeiro. 2012, p.45-50.
291
CHARTIER, 2012, p.62-63.
292
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. São Paulo. Editora Martins Fontes, 2014, p.155.
160

Essa função mediadora que a identidade narrativa da personagem exerce


entre os polos da mesmidade e da ipseidade é essencialmente comprovada
pelas variações imaginativas a que a narrativa submete essa identidade. (...)
Nesse sentido, verifica-se que a literatura consiste num vasto laboratório
para experiências intelectuais nas quais passam pela prova narrativa os
recursos de variação da identidade narrativa.

Verificamos as variações presentes na identidade narrativa que Augusto dos Anjos


elabora para si mesmo através de sua poesia. Como já vimos, circulam em sua poesia
elementos estéticos românticos, simbolistas, parnasianos, cientificistas, além das referências à
aspectos derivados de sua biografia, já aludidas aqui. Cada uma dessas dimensões, em cada
texto poético, apontam para um eu lírico dotado de uma (ou várias) identidade(s) narrativa(s).
A inclusão de certas experiências pessoais nos versos de Augusto dos Anjos, como
afirmamos, não é extrínseco à poesia lírica, mas uma de suas marcas, possuindo laços com a
memória (ou com uma forma de representá-la) por parte do poeta e não está desligada das
sensibilidades presentes na modernidade, nem das experiências de individualização do sujeito.
O indivíduo (seja o autor, seja o leitor), via poesia, é valorizado. Para Britto293

... tal como o poeta, o leitor foi criança e jovem, com as delícias e terrores
peculiares a cada idade; também ele amou, e teve seu amor correspondido ou
não; temeu a morte e ansiou por alguma espécie de imortalidade, ou pelo
menos de compensação à mortalidade; e, se não viveu, ao menos imagina o
que seja viver as experiências do exílio, da velhice, da desgraça. (...) o mito
do poeta lírico (...) perfaz uma singularidade inconfundível, a persona do
poeta (...). O prazer proporcionado pela poesia lírica depende dessa
paradoxal coexistência entre identificação e diferenciação, entre, de um lado,
o lastro de experiências vividas ou concebidas comum ao poeta e ao leitor, e
de outro, a certeza de que tanto a personalidade que escreveu aqueles versos
quanto a que os lê são singulares.

Há inúmeras possibilidades interpretativas acerca da poética de Augusto dos Anjos.


Em nossa interpretação, acreditamos que é necessário cautela ao realizar uma aproximação
rápida entre o eu lírico e o indivíduo autor de versos. As perspectivas, por exemplo, que
separam radicalmente o indivíduo e o autor não deixam de se relacionarem com o que pode
ser chamado de “crise do lirismo” ou com o que Foucault denominou como “morte do autor”.
Somos reticentes em separar radicalmente indivíduo e (função)autor, mas
consideramos que aproximações rápidas ou automáticas entre esse dois elementos devem ser
evitadas ou submetidas à rigorosa crítica e reflexão. Como afirma Britto294,

293
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
294
BRITTO, 2000, p.126.
161

...o poeta lírico de hoje entrega-se ao projeto de forjar para si próprio um eu


coerente e único num momento em que o próprio conceito de sujeito
individual é apontado como anacronismo. (...) é frágil a distinção entre
recriação e criação, entre a ficcionalização da experiência vivida e a
elaboração de uma ficção pura e simples. (...) Qual a validade do projeto
lírico? Qual a relevância da vivência pessoal, da memória individual, para a
elaboração de uma obra poética? O que significam palavras como “real” e
“falso”, “sentir” e “fingir”, no contexto da poesia?

Ao dialogarmos com Paulo Henriques Britto, comungamos com sua observação no


tocante às relações entre poesia lírica e a construção de uma mitologia pessoal. No entanto,
Britto afirma que, no contexto do que ele chamou de “crise do lirismo”, que é paralela à uma
crise do “eu”, ambos fenômenos são próprios da temporalidade moderna. E ainda nesse
contexto, para Britto295, surge um outro tipo de estética poética:

...duas figuras importantes para o desmonte do projeto lírico romântico


foram Eliot e Pound. (...) Se em Wordsworth a experiência de vida e a
personalidade forte do autor constituem matéria-prima do poema, Eliot e
Pound vão colocar, em lugar da memória do vivido, a memória do lido.
Enquanto Wordsworth explica e justifica sua individualidade genial com
base na rememoração de sua infância, Eliot e Pound vão elaborar seus eus
líricos em oposição ao estado de coisas do mundo em que vivem, recorrendo
para isso a um mosaico de citações e alusões a obras por eles lidas. (...)
Temos aqui um novo tipo de poesia, que podemos denominar de pós-lírica: o
eu por trás dos poemas é essencialmente uma encruzilhada de textos.

De certo modo, as poesias de Augusto dos Anjos inserem-se nessa dialética do lírico e
do pós-lírico. Seja através de uma apropriação mais convencional de certos padrões estéticos,
seja experimentando novas formas e conteúdos poéticos, Augusto constrói um eu lírico mais
tradicional. Por outro lado, misturando tendências e apropriações diversas, investindo mais
energia nas experimentações poéticas que elabora, aproxima-se do que foi denominado acima
de pós-lírico: exemplo disso seria o uso recorrente de termos técnicos e científicos que
permanecem herméticos àqueles que não possuem as mesmas leituras que ele.
Se a poesia de Augusto dos Anjos não o revela integralmente, se ela é uma figuração
de si por ele elaborada, se ela pode ficcionalizar suas experiências vividas, se ela constitui sua
mitologia pessoal na forma de uma identidade narrativa, se o indivíduo não consegue
encontrar em si mesmo aquele que ele pressupõe ser em essência, haja vista que essa essência
não existe, o indivíduo, portanto, seria sua própria ausência. Logo, a poesia de Augusto dos
Anjos é a ficção que, parafraseando Chartier, dá realidade à essa ausência que ele era
enquanto indivíduo historicamente situado.

295
BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e Memória. In: PEDROSA, Célia (Org.). Mais Poesia Hoje. Rio de
Janeiro. Editora 7 Letras, 2000, p.125.
162

Tomando a noção de “identidade narrativa”, proposta por Ricoeur, uma hipótese que
surge é que os versos de Augusto dos Anjos transformam-no de “narrador” em “personagem”.
Talvez a noção de “autor”, próxima à “função-autor” da qual fala Foucault e Chartier, seja,
também, um personagem da(s) narrativa(s) elaborada(as) pelo sujeito que escreve.
O diálogo entre a questão do autor, a identidade narrativa e atos de “fingir” nos
permitiram compreender diversos elementos nos versos de Augusto dos Anjos. Sua poesia é
indiciária de atitudes em face da morte, é ficcionalização de experiências vividas, é
transfiguração mimética com finalidades estéticas, assim como, é busca de uma identidade e a
perseguição de um “eu”. É a construção de uma imagem para si mesmo e para os outros.
163

CAPÍTULO 6
OS ESPAÇOS DA MORTE E SEUS AGENTES

6.1 As Necrópoles e seus Boulevards

Além das temáticas já indicadas nos capítulos e seções anteriores, a poesia de Augusto
dos Anjos também opera com imagens relacionadas à morte e ao morrer, elaborando
representações acerca de seus espaços mais consagrados e sobre os agentes relacionados a
esse fenômeno, assim como, sobre o corpo e suas doenças. Nesse sentido, não poderia faltar
em sua poética representações literárias acerca dos cemitérios.
Como já observamos, a poesia de Augusto dos Anjos foi elaborada nos primeiros anos
do século XX, a partir de um complexo movimento de apropriações de elementos associados
aos ímpetos da modernidade vividos no sul e nordeste, mais especificamente, no interior do
Estado da Paraíba, nas cidades de João Pessoa, Recife e, posteriormente, Rio de Janeiro e
Leopoldina, em Minas Gerais.
As sensibilidades da temporalidade moderna, os pressupostos oriundos do
cientificismo e de outras estéticas literárias, convergem em sua poesia de maneira intrigante e
não brindam o leitor com uma perspectiva otimista. Na virada para o século XX, a
modernização das relações sociais, econômicas, culturais e políticas tornou-se horizonte a ser
perseguido. A ciência apresentava-se quase como uma nova fé. Em contraponto à esse
cenário, sua poesia publicada em livro falava, quase exclusivamente, da morte e do morrer.
O historiador francês Philippe Ariès conceituou algumas das principais atitudes dos
homens perante a morte na cultura ocidental. Para tanto, tomou de empréstimo da ciência
linguística as noções de “sincronia” e “diacronia” para mapear e rastrear tais atitudes e suas
mudanças, o que nem sempre é fácil. Segundo Ariès296:

Como muitos outros fatos de mentalidade que se situam em um longo


período, a atitude diante da morte pode parecer quase imóvel através de
períodos muito longos de tempo. Aparece como uma crônica. Entretanto, em
certos momentos intervém mudanças, frequentemente lentas, por vezes
despercebidas, hoje mais rápidas e mais conscientes. A dificuldade para o
historiador está em ser sensível às mudanças e, ao mesmo tempo, em não se
deixar obcecar por elas, nem esquecer as grandes inércias que reduzem as
dimensões reais das inovações.

No quadro conceitual que Philippe Ariès propõe, derivado da dialética entre sincronia
e diacronia, algumas atitudes diante da morte são caracterizadas, em linhas gerais, como:

296
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.31.
164

“Morte Domada”, vista em sua familiaridade com a própria vida, ainda que se mantenham
certas distâncias entre mortos e vivos; “Morte de si mesmo”, entendida como a tomada de
consciência, pelo sujeito, da morte como fato inevitável da vida; “Morte do Outro”, que
enseja, p.ex., práticas de culto tumular; e, por fim, a “Morte Interdita”, mais comum a partir
da modernidade, principalmente de fins do século XIX até aos nossos dias. Nesta atitude,
procura-se ocultar, ou controlar, os sinais mais evidentes da morte e do morrer (como nas
condutas de luto e nas configurações de espaços, como o cemitério e o hospital, este o novo
lugar onde se morre, ao invés de se morrer em casa, como era mais comum anteriormente).
José de Souza Martins297, visando compreender aspectos da historicidade da morte na
sociedade brasileira, ressalta uma espécie de inconveniência da presença desse fenômeno em
nossa experiência histórica: “O tema da morte é um tema interditado, banido, nos centros
urbanos e nas regiões “mais cultas” e desenvolvidas da sociedade brasileira. Sobre a morte
pesa o silêncio civilizado, a indiferença aparente, a atitude racional e prática que remove
rapidamente da vida o peso dos mortos.”
De acordo com Antônio Motta298, tornou-se necessário estabelecer “...uma rígida
demarcação entre metrópolis e necrópolis [o que] concorreu para que houvesse maior
disseminação da crença no poder da ciência sobre a morte”. É num momento dotado com tais
características que a poesia de Augusto dos Anjos emerge, em sincronia com certas atitudes
perante a morte, cujos traços ainda eram vigentes, ao mesmo tempo em que também se
mostra, de certo modo, diacrônica, pois canta a morte na poesia, quando não se devia falar
sobre ela, principalmente utilizando termos técnicos e científicos para afirmar sua presença.
Mesmo que não tenha sido um caso único e excepcional, haja vista que outros poetas e
literatos299, brasileiros ou não, também já utilizaram uma linguagem fúnebre e refletiram
sobre a temática da morte em seus versos, a poética de Augusto dos Anjos terminou
chamando atenção. Alguns elementos já discutidos, assim como outros que elencaremos daqui
por diante, contribuíram para a popularização de seus textos poéticos, os quais foram
envolvidos por uma espécie de “mística trágica”.
Analisaremos alguns textos poéticos que operam com imagens relativas ao espaço dos
cemitérios. Uma observação inicial é que existem duas formas de representação poética nos
versos de Augusto acerca desse espaço: uma, mais “simbólica”; a outra, mais “mórbida”. Na

297
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
298
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009, p.31.
299
Podemos citar Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Cesário Verde (1855-1886), Álvares de Azevedo (1831-
1852), Cruz e Sousa (18861-1898), além do próprio Charles Baudelaire (1821-1867), entre outros.
165

primeira forma, menos frequente, as sensibilidades associadas ao espaço do cemitério são


mais abstratas. Por outro lado, na segunda forma de representação, mais constante em sua
poesia publicada em livro, o cemitério é o espaço privilegiado onde o corpo morto apodrece.
Podemos ver traços dessa primeira forma no soneto “N‟augusta solidão dos cemitérios”300:

N‟augusta solidão dos cemitérios,


Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.

São minhas crenças divinais, ardentes


– alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos.

Quando da vida, no eternal soluço,


Eu choro e gemo e triste me debruço
Na lájea fria dos meus sonhos pulcros,

Desliza então a lúgubre coorte,


E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.

Nos versos acima, o poeta inscreve seu eu lírico no espaço tumular dos cemitérios,
representando a morte e o morrer mais em seu caráter “simbólico”, abstrato, do que em seu
aspecto mórbido, macabro, orgânico. O espaço do cemitério é continuamente sugerido a partir
de alusões à sua materialidade: “brancos sepulcros”, “túmulos tristes...”, “umbrais
marmóreos”, “lájea fria”. Apesar da alusão a esses objetos e espaços físicos, vemos que não
há indicação de que lá estejam depositados material biológico em processo de putrefação. O
que ali jaz seriam “sonhos”, “crenças divinais”.
Outro texto poético que pode se inscrever nessa primeira forma, menos frequente, de
representar a morte e o espaço cemiterial é o soneto intitulado “O Mar”. Este texto poético,
também permaneceu apenas publicado em jornal, não tendo sido, como o soneto anterior,
incluído na edição do “Eu”.
Ressaltamos que esses sonetos, escritos e publicados apenas no jornal paraibano O
Comércio, em 1901 e 1902, respectivamente, também aproximam-se dos elementos próprios
da estética romântica, como discutimos na primeira seção de nosso primeiro capítulo. O vetor
mimético da “semelhança” orienta a elaboração desses versos. No soneto “O Mar”301,
verificamos algumas imagens semelhantes às indicadas mais acima:

300
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.377. Soneto publicado apenas no Jornal O Comércio.
301
ANJOS, 1994, p.410.
166

O mar é triste como um cemitério;


Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num alvor etéreo.

Ah! dessas vagas no bramir funéreo


Jamais vibrou a sinfonia pura
Do amor; lá, sé descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,


Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrarse tão fugaz se esfuma,

Reflete a luz do sol que já não arde,


Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a Saudade envolta nesta espuma!

Tanto nesse soneto citado, quanto no anterior, as imagens e metáforas associadas ao


cemitério são simbólicas, abstratas e não deixam de se aproximar das sensibilidades
românticas. O “mar” possuiria a “tristeza” do cemitério, sugerindo as já comentadas
encarnações do mundo objetivo por sensibilidades humanas. Não há nesses versos a
morbidez, nem a linguagem fúnebre, que veremos em outros textos poéticos a seguir. Essa
mudança indica uma seleção, ou seja, os textos escolhidos para integrarem o “Eu”,
representam a morte e o morrer numa linguagem menos “espiritual” e mais “material”.
Cada forma de lidar com a morte, com o corpo morto, e com a organização dos
espaços, práticas e rituais funerários, possuem uma historicidade. Como afirma José de Souza
Martins302, “A concepção da morte revela a concepção da vida.”. Na atitude que pode ser
definida como “morte domada”, haveria maior familiaridade dos vivos com a morte e os
mortos. Entretanto, não se via com bons olhos uma aproximação total, como afirma Ariès303:

Apesar de sua familiaridade com a morte, os antigos temiam a proximidade


dos mortos e mantinham a distância. Honravam as sepulturas – nossos
conhecimentos das antigas civilizações pré-cristãs provém em grande parte
da arqueologia funerária, dos objetos encontrados nas tumbas. Mas um dos
objetivos dos cultos funerários era impedir que os mortos voltassem para
perturbar os vivos.

Nesse sentido, apesar da existência de uma compreensão da morte como um fenômeno


natural da própria vida, estabelecia-se uma fronteira entre vivos e mortos, apesar de sua
proximidade. Essa concepção se materializava na prática do sepultamento, na organização dos

302
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
303
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41.
167

espaços cemiteriais/sepulcrais e dos ritos funerários que normatizavam tanto essas práticas,
quanto esses lugares. Sobre isso, Ariès304 comenta:

O mundo dos vivos deveria ser separado do mundo dos mortos. É por isso
que em Roma a Lei das Doze Tábuas proibia o enterro in urbe, no interior da
cidade. O código teodosiano repete a mesma proibição, a fim de que seja
preservada a sanctitas das casas dos habitantes. A palavra funus significa ao
mesmo tempo o corpo morto, os funerais e o assassinato. Funestus significa
a profanação provocada por um cadáver. Em francês, resultou na palavras
funeste (funesto).

De certo modo, é como se o espaço cemiterial funcionasse como a cidade dos mortos,
isto é, ele seria o espaço do morto em sua coletividade e de lá eles não poderiam sair, assim
como, recomendava-se que somente lá eles poderiam jazer em paz. A literatura e a ficção,
desenvolvendo seus enredos, apresenta forte fecundidade ao imaginar circunstâncias nas quais
esse “pacto” é quebrado, quando o morto retorna para con(viver) entre os “vivos”. Exemplo
disso, como nos indicou Teófilo de Queiroz Júnior305, são textos de escritores tais como
Ariano Suassuna, Jorge Amado e Érico Veríssimo, entre outros. O esperto “João Grilo”, o
“boêmio” “Vadinho” e os sete mortos de “Incidente em Antares” retornam para o convívio
entre os vivos, violando o pacto que antes os separava.
O segundo conjunto de representações poéticas acerca do cemitério, nos versos de
Augusto dos Anjos, como sugerimos, é mais constante. Podemos associar muitas das imagens
então elaboradas com os contatos que esse poeta manteve com os pressupostos do pensamento
cientificista e com a estética própria da chamada poesia científica e simbolista.
Apesar da desejada instituição de uma distância entre vivos e mortos, simbolizada pela
existência do cemitério, o contínuo hábito da inumação geraria, por sua vez, a lotação dos
espaços próprios para essa prática. Dessa forma, ficava cada vez mais difícil manter os
limites, as fronteiras, entre os espaços dos vivos e dos mortos. Já não se recomendava aos
familiares, desde os interstícios da sociedade feudal, enterrarem seus entes queridos dentro do
espaço domiciliar, nem em suas adjacências. Contudo, ainda que permanecessem fora das
residências, os cadáveres já haviam sido trazidos para dentro do espaço urbano. Na ótica de
Phillipe Ariès306:

304
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41.
305
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Dos Mortos e Sua Volta. In: MARTINS, José de Souza. A Morte e os
Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC, 1983, p.103-112.
306
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.41-42.
168

(...) Os mortos [entraram] nas cidades, de onde estiveram afastados durante


milênios. (...) Isso começou não tanto com o Cristianismo, mas com o culto
dos mártires, de origem africana. Os mártires eram enterrados nas necrópoles
extraurbanas, comuns aos cristãos e pagãos. Os locais venerados dos
mártires atraíam, por sua vez, as sepulturas.

Como observou José de Souza Martins, as concepções acerca da morte derivam


daquelas elaboradas sobre a vida, e vice-versa. Na sociedade feudal ocidental cristã, como
indicamos ao citar Ariès, desejava-se enterrar os mortos ao lado de mártires para garantir-lhes
proteção, libertação dos pecados e uma boa vida após a morte. Com a progressiva difusão dos
saberes médicos e científicos, outras sensibilidades acerca da morte seriam gestadas.
Nas imagens poéticas elaboradas por Augusto dos Anjos, nas quais identificamos
traços cientificistas, as referências mais constantes ao cemitério não possuem nenhuma
conotação religiosa, ainda que possam apresentar características sobrenaturais. Considerada
sempre como fenômeno natural/naturalizado, a morte, em seus versos, é metaforizada,
paradoxalmente, como espécie de interrupção e continuação da vida.
Enquanto interrupção, a morte seria o encerramento completo dos mecanismos
biológicos que simbolizam a vida orgânica e a fazem funcionar. Por outro lado, a continuação
da vida após essa interrupção somente ocorreria pela reanimação biológica daqueles mesmos
mecanismos que haviam sido interrompidos.
Em suas imagens poéticas, essa retomada, essa continuidade, seria um fenômeno não
religioso, mas sobrenatural. Essa vida após a morte seria apenas os mecanismos biológicos da
vida reanimados por alguma energia potencial, e não a posse do corpo por uma “alma” ou
equivalente, derivado de algum pensamento religioso, nem o trânsito em seus locais mais
tradicionais, como “céu”, “purgatório” ou “inferno”.
As cidades, sobretudo as mais populosas, podem ser apontadas como um dos símbolos
próprios da modernidade. Sempre agitadas, marcadas pela quantidade e velocidade dos
transeuntes, dos bondes e automóveis, é no espaço urbano e em seus boulevards, que os
indivíduos tinham seus sentidos excitados por todas as sensibilidades modernas: desde o
barulho incessante de pessoas e veículos, até a poluição visual e sonora das mais diversas
propagandas comerciais. A poesia de Augusto ficcionaliza alguns desses elementos.
Interpretamos as referências à cidade, em seus versos, como sintomas da relevância
que esses espaços passaram a possuir como emblemas da temporalidade modernidade
emergente. Augusto dos Anjos, depois de ter morado mais da metade de sua vida no interior
da Paraíba, no Engenho Pau d‟Arco, frequentava com regularidade as cidades de João Pessoa
169

(onde moraria, após a venda dos engenhos), Recife, Rio de Janeiro e Leopoldina. No que diz
respeito às sensibilidades modernas em João Pessoa, Chagas307 afirma:

...a partir de 1910 a cidade da Parahyba passou por mudanças significativas,


desde a implementação da luz elétrica, a abertura e o melhoramento das ruas,
praças, até as novas formas de comportamento das elites (...), representadas
principalmente pelos grandes comerciantes, políticos, proprietários de terra e
da classe média. Esses personagens comuns às cenas urbanas da cidade
moderna constituíam apenas uma pequena minoria da cidade. A grande
maioria, em torno de 25.000 habitantes, era composta por trabalhadores,
desempregados e mendigos...

Certamente, as imagens da vida no engenho devem ter se contrastado, não somente


com o cenário de Recife e João Pessoa, mas, principalmente, com a vivência nos espaços
urbanos cariocas. Nos versos de Augusto dos Anjos, entre determinadas imagens poéticas,
percebemos uma associação que não deixa de ser significativa, entre o cemitério e a cidade.
Ambos espaços seriam essencialmente espaços humanos, ou seja, criados pela intervenção
dos homens, mas dotados de finalidades específicas e totalmente distintas.
Caso consideremos o espaço urbano, a metrópole, como um lugar privilegiado de
celebração da vida, sempre agitada, barulhenta e luminosa, o cemitério, ou necrópole, seria
seu exato oposto. Neste local, a vida é apenas uma presença eventual, por parte dos parentes
que vêm visitar – ou sepultar – seus entes queridos ou, de modo mais constante, pelos agentes
profissionais que trabalham nesse espaço e em sua atividade fim. A necrópole, ao contrário da
metrópole, seria um espaço embaçado, soturno, vazio. Algumas dessas características
transitam em seus versos quando a cidade e o cemitério se tornam imagens poéticas.
Nos textos poéticos mais longos de Augusto dos Anjos, podemos perceber uma
espécie de exercício de reflexão poética dotado de maior fôlego, um pouco mais liberto das
possíveis “amarras” da métrica, em que pese não abandoná-la por completo. Exemplo disso é
o longo o poema “Os Doentes”, publicado de maneira inédita na primeira edição do “Eu”.
Nesse poema, Augusto dos Anjos apresenta uma série de impressões acerca de um
espaço urbano mais ou menos indeterminado. Todo o texto se configura como se o eu lírico
perambulasse, à maneira de um flâneur (o qual seria, em linhas gerais, um observador
anônimo, boêmio quase sempre, imerso na multidão, pertencente à cidade, mas nela sentindo-

307
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As Singularidades da Modernização na Cidade da Parahyba do Norte nas
Décadas de 1910-1930. Recife. Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pernambuco, 2004, p.161-162.
170

se deslocado, segundo caracterizou Walter Benjamin)308 pela cidade durante o período


noturno, vislumbrando seus espaços e, principalmente, alguns de seus habitantes.
Algumas características atribuídas à cidade pela qual passeia o eu lírico se contrapõem
à cidade moderna, dos “vivos” e “saudáveis”. Essa cidade soturna, assemelha-se à uma
“cobra”. É “vazia”, dotada de um “ar convulso”. Era a “Urbe natal do Desconsolo”. Funde-se,
em um verso ou outro, com o cemitério. Nela, encontram-se “túmulos” e a luz de “cem
velas”. Na sexta estrofe309, é indicado o cair de uma chuva, a “Benigna agua, magnânima e
magnífica, / Em cuja álgida uncção, branda e beatifica / A Parahyba indígena se lava!”.
Os residentes dessa cidade seriam, em sua maioria, representados como personagens
excluídos/marginalizados, tanto em relação à história, entendida enquanto experiência vivida
e narrativa histórica, quanto da própria imagem da cidade saudável: todos os residentes
possuiriam algum tipo de patologia. Exemplo disso são as referências aos índios, alcoólatras,
enfermos e prostitutas. Estão num espaço sem movimento, velocidade e luz. Nele padecem.
Como bem observou Zenir Campos Reis310, “Os Doentes”

É o poema mais longo e talvez o mais importante de Augusto dos Anjos. O


vocabulário é complexo. (...) Repare (...) que existe nele uma narrativa: é o
poeta percorrendo, à noite e até amanhecer, os lugares “doentes” de uma
cidade. (...) Sugerimos um título para cada parte do poema, que corresponde
ao conteúdo de cada uma delas: I – O Poeta; II – Contemplação da Paisagem
Noturna; III – Os Tuberculosos; IV – Os Indígenas; V – Angústia e Desejo
de Morte; VI – As Prostitutas; VII – Os Bêbedos e os morféticos; VIII – O
Cemitério, os Túmulos dos Negros e o amanhecer; IX – A desagregação e o
sonho do surgimento de um mundo novo.

Para o presente momento, voltaremos nossa atenção para a sexta parte desse poema, a
qual tematiza o espaço cemiterial, visitado pelo eu lírico em seu “passeio” noturno pela
cidade. Nas seções seguintes retornaremos à esse poema, conforme a temática então discutida.
Focando nossa atenção na referida parte, ressaltamos que já nas duas primeiras estrofes da
primeira parte de “Os Doentes”311, a cidade assemelha-se ao cemitério:

I
Como uma cascavel que se enrosca,
A cidade dos lázaros dormia.
Somente, na metrópole vasia,
Minha cabeça autônoma pensava!

308
BENJAMIN, Walter. O Flâneur In: KOTHE, Flávio (Org.); FERNANDES, Florestan (Coord.). Walter
Benjamin: Sociologia. São Paulo. Editora Ática, 1991, p.65-92.
309
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.51.
310
REIS, Zenir Campos (Org.). Literatura Comentada: Augusto dos Anjos (Textos Selecionados, Estudo
Histórico-Literário e Atividades de Compreensão e Criação). São Paulo. Editora Abril, 1982. p.38.
311
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.50.
171

Mordia-me a obsessão má de que havia,


Sob os meus pés, na terra onde eu pizava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de orphã que gemia!

Quando o eu lírico afirma que a “cidade dos lázaros dormia”, sugere uma referência à
metrópole dos vivos, estes, porém, já doentes, haja vista o uso do termo “lázaro”, eufemismo
(pejorativo) para o Mal de Hansen. Ao mesmo tempo, a “metrópole dos vivos” também era
uma “metrópole vazia”, reforçando a sobreposição, a fusão, entre a cidade e o cemitério.
Numa leitura que reforça a percepção dessa “fusão” entre “metrópole” e “necrópole”,
vemos, nesses versos iniciais, o vislumbre do eu lírico, que vê a terra sob seus pés como um
tipo de organismo vivo, dotado de garganta e fígado, pronto para consumir aqueles que
morrem. Na primeira estrofe da oitava parte do poema312, lemos ainda: “Em torno a mim,
nesta hora, estryges voam, / E o cemitério em que eu entrei adrede, / Dá-me a impressão de
um boulevard que fede, /Pela degradação dos que o povoam.” Essa associação entre
metrópole e necrópole indica a existência de certos elementos relativos à historicidade do
desenvolvimento dos cemitérios, simultâneo ao das cidades. Como observa Ariès313,

Esta associação [ou seja, o desejo de sepultar entes queridos próximo ao


túmulo de mártires] começou nos cemitérios extraurbanos, onde foram
colocados os primeiros mártires. (...) Chegou um momento em que
desapareceu a distinção entre bairros periféricos – onde se enterrava ad
sanctos porque se estava extra urbem – e a cidade, sempre proibida às
sepulturas. (...) [Em pouco tempo,] Os mortos, já misturados com os
habitantes dos bairros populares da periferia, que se haviam desenvolvido
em torno das abadias, penetrava também no coração histórico das cidades.

Dessa forma, a atração exercida pelos túmulos de mártires, sepultados próximos às


igrejas, estimulou a aglomeração de outros túmulos e, próximo das igrejas e abadias, muitas
destas já dotadas de seus próprios cemitérios, nasceram bairros populares e periféricos. Nesse
movimento, estabelecia-se um contato cotidiano entre a cidade dos vivos e a cidade dos
mortos, mesmo situados em espaços distintos e com clara delimitação entre eles.
Ariès314 aponta que a ideia de espaço cemiterial, sobretudo, quando inserido na
sociedade feudal ocidental, sofre uma mudança expressa inclusive na linguagem: “Na língua
medieval, a palavra igreja não designava apenas o edifício da igreja, mas todo o espaço que o
cercava”. Assim, havia uma espécie de átrio (atrium) em torno da igreja ou à ela anexado.

312
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.63.
313
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.43.
314
ARIÈS, 2014, p.44.
172

Ainda nessa lógica, Ariès315 complementa: “A palavra aître desapareceu do francês moderno,
mas seu equivalente germânico, churchyard, permaneceu em inglês, alemão e holandês.
Existia outra palavra empregada em francês com o sinônimo de aître: charnier.”
O cemitério indicava um espaço público no qual se acumulavam as sepulturas, o
atrium, também identificado na língua francesa como charnier. Essa palavra não deixa de
fazer referência à noção do cadáver como carne morta, como carniça. Tal noção ainda se
desenvolveria posteriormente e com mais força.
O que nos chama atenção, aqui, é o fato de que essa associação entre metrópole e
necrópole, nos versos de Augusto dos Anjos, não é apenas uma metáfora poética, mas, sim,
um fenômeno que possui traços de historicidade próprios. Numa sensibilidade muito ligada às
sociedades feudais, o espaço cemiterial é fortemente compreendido como um espaço público,
tal como a própria cidade. Conforme Ariès316,

O cemitério designava, então, senão um bairro, ao menos um quarteirão de


casas gozando de certos privilégios fiscais e dominiais. Enfim, este asilo
tornou-se um local de encontro e de reunião, como o Foro Romano, a Piazza
Major ou o Corso das cidades mediterrâneas, um local destinado ao
comércio, à dança e aos jogos, simplesmente pelo prazer de se estar junto.

Não demoraria para que as sensibilidades históricas relacionadas ao espaço cemiterial


fossem modificadas. Esse caráter público, dinâmico, como citado acima, pouco antes do
século XVI, já havia sido restringido. Contudo, essa proximidade entre os espaços dos vivos e
mortos estendeu-se por um longo período, tendo sido enfraquecida e ressignificada com a
consolidação das experiências inerentes à temporalidade moderna.
Fernando Catroga317 ressalta a inconveniência da presença do cadáver entre os vivos, o
que exigia atitudes por parte das autoridades, eclesiásticas ou não. Supunha-se que os corpos
mortos exalavam gases e odores nocivos à saúde, definido como “mefitismo”. Em vista disso,

...o horror perante a putrefacção do corpo foi correlato da recusa da


concepção pessimista da morte e do apodrecimento, no seio das elites mais
cultas, de uma nova sensibilidade higiênica e olfactiva. No século XIX, o
cientismo antimetafísico reforçará o sonho do possível controlo da morte
através da ciência (...) acentuando a estranheza da consciência moderna no
que respeita ao definhamento humano, ao mesmo tempo que impulsionará o
aparecimento de uma atitude exorcista que dará uma maior ênfase à vivência
(...) do drama ontológico derivado do choque entre a sede humana da
amortalidade e a certeza da inevitabilidade da morte.

315
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.45.
316
ARIÈS, 2014, p.47.
317
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.44-45.
173

Com os avanços próprios da chamada modernidade e com uma progressiva


valorização da noção de indivíduo, as atitudes diante da morte vão perdendo seu caráter mais
social/socializado, tornando-se, portanto, mais individualizadas, dizendo respeito apenas
àquele que morre e/ou aos seus familiares e pessoas mais próximas.
A passagem de uma concepção que pode ser denominada como “morte domada” para
outra, definida como “morte de si mesmo”, não configurou, de acordo com os pressupostos de
Ariès318, uma ruptura radical, uma substituição total, imediata. O que se enfatiza nessa nova
concepção para esse autor, são “...modificações sutis que, pouco a pouco, darão um sentido
dramático e pessoal à familiaridade tradicional do homem com a morte”.
Conforme os traços observados por Ariès, na atitude diante da morte denominada
como “morte de si mesmo”, três características podem ser destacadas: a) a morte como uma
espécie de representação particular/individual do juízo final; b) a transformação do quarto do
moribundo como sendo o palco dessa passagem da vida para a morte; e c) uma série de
representações que enfocam imagens acerca do corpo morto e sua decomposição.
Na poesia de Augusto dos Anjos, essas duas características iniciais citadas acima
praticamente não aparecem. Entretanto, as imagens poéticas acerca do corpo doente e em
decomposição são mais do que abundantes. Por exemplo, nos versos citados anteriormente,
quando o cemitério é comparado à uma metrópole e os caminhos que nele se entrecruzam são
comparados aos boulevards das cidades modernas, tais “ruas” e “avenidas” estão impregnadas
pelo odor pútrido que a degradação dos materiais orgânicos que lá jazem exalam
continuamente.
Ainda no poema “Os Doentes”319, essa imagem do odor exalado pelo cadáver em
decomposição aparece na quarta estrofe da sétima parte, quanto o poeta escreve: “Scismava
no propósito funéreo / Da mosca debochada que fareja / O defunto, no chão frio da igreja, / E
vai depois levá-lo ao cemitério!”.
Nessa estrofe, o poeta faz menção a mosca que orbita o cadáver quando este ainda se
encontra no interior da igreja, antes de ser levado ao cemitério. Nos versos, é indicado que a
mosca acompanha o corpo morto até lá, farejando seus odores e emanações. Em meados do
século XVII, o local designado aos corpos sepultados configurava-se como um espaço
público, contando com a presença de diversos agentes e sujeitos em contato com tais
emanações.

318
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.49.
319
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.61.
174

Em vista disso, devia-se retirar daquele espaço os corpos ainda não decompostos
totalmente, sepultando-os noutro lugar, pois, como ressalta Phillipe Ariès320 “...com o tempo
mais frio, o chão do cemitério exalava odores fétidos”. Essa referência aos odores exalados
pelos cadáveres também é encontrada nos versos de Augusto dos Anjos.
O poema “Noite de um Visionário”321 faz uma referência ao universo do sujeito que
escreve, pois, no primeiro verso lemos “Número cento e três. Rua Direita”, o qual era,
precisamente, o novo endereço de Augusto dos Anjos e de sua família, quando se mudaram
do engenho para a cidade de João Pessoa. Mais uma vez, cidade e cemitério se confundem.
Entre a décima terceira e a décima sétima estrofes322, encontramos as seguintes imagens:

E no estrume fresquissimo da gleba


Formigavam, com a símplice sarcóde,
O vibrião, o ancylóstomo, o colpóde
E outros irmãos legítimos da ameba!

E todas essas fórmas que Deus lança


No Cosmos, me pediam, com ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a philogenetica vingança!

A cidade exalava um podre báfio:


Os annuncios das casas de commercio,
Mais tristes que as elegias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitaphio.

O motor teleológico da Vida


Parára! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor da matéria dissolvida.

A chimica feroz do cemitério


Transformava porções de atomos juntos
No oleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.

O local da inumação do corpo é definido como possuidor de um “fresquíssimo


estrume” que, paradoxalmente, também possui bactérias e vermes, “...irmãos legítimos da
ameba”, ou seja, a terra na qual tais organismos vivem seria, justamente, o ambiente no qual o
corpo morto se deterioraria.
Novas associações entre cemitério e cidade podem ser vistas nesses versos, nos quais
também vemos ecos da noção de “miasma”, que seriam as já citadas exalações infecciosas

320
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.49.
321
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.95.
322
ANJOS, 1912, p.97-98.
175

que, segundo se acreditava, emanavam de locais insalubres, tais como os cemitérios, noção
esta muito utilizada antes do estabelecimento de uma compreensão mais adequada das
infecções e epidemias virais ou bacteriológicas.
O cemitério, como cidade dos mortos, “exalava um podre bafo”, assim como, os
anúncios comerciais espalhados pelas ruas das cidades eram associados aos epitáfios dos
túmulos. A putrefação do material orgânico é descrita como um rumor subterrâneo, oriundo
do “coração quente da terra”. A imagem mais crua em relação aos odores fétidos emanados
dos corpos encontra-se na metáfora da “química feroz dos cemitérios”, a partir da qual um
tipo de chorume “...escorre dos defuntos”, semelhantes aos jatos dos gêiseres.
Nas representações de Augusto dos Anjos sobre a morte e sobre os espaços do
cemitério, reafirma-se a morte como uma circunstância naturalizada. Também percebemos em
suas imagens a morte como um fenômeno que, mesmo comum a todos, é vivida de maneira
particular: o indivíduo sempre morre sozinho, mesmo quando, junto ao moribundo,
encontram-se pessoas que assistem seu falecimento. Isto reforça a experiência da morte como
algo que alude àquele que morre, ao “si mesmo” ciente de sua finitude.
Seguindo na trilha sugerida por Ariès, esse processo de individualização da
experiência da morte não deixa de estar intimamente ligada com as sensibilidades da
modernidade. Nesse momento histórico, que representou um reforço extraordinário em
relação à noção de indivíduo, dificilmente a morte escaparia desse processo. Em vista disso,
Ariès323 comenta ainda:

Com a morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não
cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas
com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas
que cada vida devia sempre transpor.

Essa atitude diante da morte não deixa de sinalizar uma mudança nas experiências
histórico-sociais. Enquanto que, como herança da sociedade feudal europeia ocidental, os
homens possuíam uma concepção mais coletiva em relação ao seu próprio destino, e se a
morte era o destino coletivo de todos, ressalta Ariès324 que, “a família não intervinha para
atrasar a socialização da criança” em relação ao fenômeno da morte.
Como a sociedade feudal ainda possuía uma proximidade maior com as dimensões
“naturais” da vida, não surpreende o fato de que a morte também fosse concebida como uma

323
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.50.
324
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.49.
176

experiência a ser vivida com “naturalidade”, mesmo por crianças. Entretanto, com a
progressiva emergência das sensibilidades modernas, nascidas no interior da própria
sociedade feudal, essa familiaridade da sociedade e dos seus indivíduos em relação à morte
iria se enfraquecer, se desnaturalizar. Tornar-se-ia mais artificial, menos espontânea.
Na compreensão de Phillipe Ariès, para além da particularização das representações
do juízo final e da eleição do quarto do moribundo como espaço privilegiado para a passagem
da vida para a morte, é o aparecimento das representações sobre o cadáver decomposto que
ressalta esse processo de individualização.
A morte continua um fenômeno coletivo, no sentido de que ninguém escapará dela.
Não deixa de ser o destino comum a todos nós. Entretanto, é através das transformações de
nosso próprio corpo, de seu envelhecimento, de suas doenças, que podemos perceber a
progressiva chegada da morte.
Nesse sentido, a percepção não recai apenas sobre as transformações ocorridas no
corpo do outro, mas, principalmente, naquelas mudanças que os indivíduos verificam, cada
um, em seu próprio corpo. Em nossa ótica, isso dá nova ênfase ao processo de
individualização das atitudes em face da morte na modernidade.
A percepção do corpo que fenece, que adoece ou apodrece, na poesia de Augusto dos
Anjos, além de ressaltar o caráter natural desse fenômeno, parece constituir, também, um
meio de acesso diferenciado a outras experiências, proporcionando ao sujeito uma maior
compreensão de si mesmo e do mundo que o cerca. Podemos apontar traços desses elementos
no soneto “Solilóquio de um Visionário”325:

Para desvirginar o labyrinto


Do velho e metaphysico Mysterio,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa anthropophagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo


Tornado sangue transformou-me o instincto
De humanas impressões visuaes que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola ethereo!”

Vestido de hydrogenio incandescente,


Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias sideraes.

Subi talvez ás máximas alturas,


Mas, si hoje volto assim, com a alma ás escuras,
E‟ necessário que inda eu suba mais!

325
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.46.
177

Novamente, o espaço do cemitério é apresentado como local privilegiado para a


aquisição de uma nova percepção do mundo e de si mesmo. Comumente ao espírito
cientificista, mas também ao simbolista, numa espécie de fusão dessas duas linguagens
estéticas, haveria uma realidade a ser decifrada (“o velho e metafísico mistério”), comum ao
cientificismo, mas que está além do fenômeno sensível empírico, tal como no simbolismo.
O acesso a tal visão somente ocorre com o devorar dos órgãos de percepção por
excelência (“comi meus olhos crus” (...) “numa antropofagia de faminto”). Contudo, ainda
que após a “digestão desse manjar funéreo” a percepção tenha se ampliado e que o eu lírico
tenha se misturado com substâncias químicas, vagando as vastidões siderais, é reafirmada a
existência de uma realidade, de uma dimensão primordial que ainda permanece incognoscível.
São imagens como estas que reforçam a sensação de naturalidade que subjaz a atitude
e as representações do eu lírico em face da morte. Contudo, após a morte, nenhuma
dimensão/fenômeno religioso é postulada. Nada “espiritual” é encontrado pelas “monotonias
siderais”, implicando apenas que o eu lírico sinta a necessidade de continuar vagando.
A referência aos “olhos” também é um traço da modernidade. O conjunto de
experiências e vivências históricas que podem, adequadamente, serem definidas como
modernas, são, também, vivências e experiências a serem vistas: elas apelam ao olhar – ver a
beleza das coisas, das roupas, das pessoas e lugares.
Segundo Berman326, Charles Baudelaire, um dos poetas e ensaístas mais icônicos a
“pintar” a vida moderna, faz alusão ao tema dos “olhos” e sua relação com a modernidade.
Essa alusão ocorre no poema em prosa “Os olhos dos pobres”: um casal apaixonado, que
discutia, encontrava-se num reluzente café, num bulevar francês. Uma família pobre (o pai,
uma criança e um bebê) observava-os, o café e o casal,

...embevecida, [com] o brilhante mundo novo, lá dentro [do café]. (...) Os


olhos do pai parecem dizer: “Como isso é belo! Parece que todo o ouro do
mundo foi se aninhar nessas paredes.” Os olhos do filho parecem dizer:
“Como isso é belo! Mas é um lugar que só pode ser frequentado por pessoas
que não são como nós”. Os olhos do bebê “estavam demasiado fascinados
para expressar qualquer coisa além de alegria, estupidez e intensidade.

Isto significa que a modernidade também é a exposição da beleza. Contudo, o casal de


namorados, citado no poema de Baudelaire, comenta Berman327, discutia. Nesse ínterim, o
homem, “surpreendeu-se tocado por essa família de olhos”, ao passo em que a mulher
comentou: “Essas pessoas de olhos esbugalhados são insuportáveis! Você não poderia pedir
326
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 2007, p.178.
327
BERMAN, 2007, p.179.
178

ao gerente que os afastasse daqui?” A modernidade, portanto, não somente deve ser vista,
porque é “bela”, como deve ocultar a fealdade do mundo e das pessoas, tal como se oculta a
morte, sua presença e seus sinais.
A percepção, ou insinuação da morte, a partir de sinais visíveis no corpo se
transformaria num tema inconveniente. Como observou Ariès328, houve a introdução cada vez
mais recorrente das imagens do cadáver decomposto que representavam a “morte seca”, o
corpo morto esquelético e descarnado.
De um lado, Phillipe Ariès assinala duas percepções: Huizinga teria enxergado nessa
mudança de atitude uma espécie de crise moral, presente na sociedade feudal, que parecia
antever seu próprio final. Por outro lado, Tenenti teria interpretado tal mudança como o sinal
de um maior amor ou apego à vida. De um modo ou de outro, Ariès329 comenta:

O horror à morte física que o cadáver poderia significar encontra-se


totalmente ausente nos testamentos, o que permite supor que também não
estava presente na mentalidade comum. Em contrapartida – trata-se aqui de
uma observação capital – o horror à morte física e à decomposição é tema
familiar da poesia dos séculos XV e XVI “Sac a fiens” [sacos de
excrementos].

Com a emergência contínua das sensibilidades modernas e com o reforço da


individualização e distanciamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativas,
podemos supor que o bem estar do corpo poderia significar uma vida boa, bem vivida,
saudável. Numa oposição direta a esta suposição, quanto mais sofrido, quanto menos saudável
o corpo do indivíduo estivesse, isso nada mais rubricaria do que as dificuldades atravessadas,
e nem sempre superadas, durante a vida.
Como ressaltou Phillipe Ariès330, “... o horror não está reservado à decomposição post
morte – é intra vitam, na doença e na velhice.”, e isto não é eliminado com a promessa de um
futuro “luminoso”. Um conjunto de sensibilidades próximas à essas questões podem ser vistas
no soneto intitulado “Solitário”331, escrito e publicado, em 1905, no jornal paraibano O
Comércio, tendo sido republicado na primeira edição do “Eu”:

Como um fantasma que se refugia


Na solidão da natureza morta,
Por traz dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

328
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.58.
329
ARIÈS, 2014, p.58.
330
Idem, Ibidem, p.59.
331
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.40.
179

Fazia frio e o frio que fazia


Não era esse que a carne nos conforta.
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!


E eu sahi, como quem tudo repelle,
– Velho caixão a carregar destroços –

Levando apenas na tumbal carcassa


O pergaminho singular da pelle
E o chocalho fatídico dos ossos!

O eu lírico faz referência à materialidade do seu corpo, que reflete em sua própria
carne os dissabores então sofridos. Diante da indiferença que lhe atinge, seu corpo é associado
a um caixão e seus sentimentos aos detritos orgânicos que ele carrega. Além dessas imagens,
que identificam o próprio corpo à tumba e a pele ao pergaminho, faz menção, também, ao
barulho derivado do atrito dos seus ossos.
Este fenômeno, conforme Phillipe Ariès332, vai se tornando mais comum entre os
séculos XVI e XVIII. Talvez visando ocultar seus vestígios sempre que possível, cuidar com
mais afinco da morte dos outros poderia ajudar a esquecer um pouco a morte de si mesmo.
Disto, teria resultado não somente um incremento no culto aos cemitérios, como também, um
medo maior em relação à morte do outro, mesmo que esta morte ainda continue mais
aceitável do que a morte de si mesmo.
Em meio as sensibilidades modernas, não bastava normatizar os espaços da morte e as
práticas que nele podiam ser realizadas. Para além disso, o próprio espaço deveria receber um
tratamento estético. Isto significava que, tanto não se deveria sentir o cheiro da morte, quanto
não se devia, também, ver seus traços: aceitando a impossibilidade de sua invisibilidade, que
pelo menos sua presença fosse esteticamente agradável: “A evolução do cemitério testemunha
ainda, num outro registro, o propósito de se instalar uma ruptura na coexistência entre vivos e
mortos. Exilado para a periferia das povoações, cercado por um muro e dissimulado por
árvores, ele esteticiza (...) a nova atitude de expulsão e de encobrimento.”, observa Catroga333.
O temor em face da morte tanto é uma concepção acerca dela, quanto da vida. Apesar
das promessas derivadas das religiões, cada qual ofertando um horizonte próprio após a
morte, possuímos expectativas mais ou menos comuns de que a vida deve ser usufruída ao
máximo e em todos os sentidos. Daí que a morte termina sendo uma interrupção dessa

332
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.74.
333
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.45
180

fruição, o que nos impele a, em meio à modernidade, desejar afastá-la, ocultá-la, adiá-la, de
todas as formas possíveis. José de Souza Martins334 comenta ainda:

Estamos vivendo esse momento, de perda, de falta de sentido. Já não


sabemos mais o que é a morte, porque já não sabemos com clareza o que é a
vida. Não sabemos lidar com o enfermo que pode morrer, por isso aliviamos
a nossa consciência mandando-a para o hospital, para a agonia e a morte
limpas, higiênicas, técnicas, mas solitárias e desumanas. Não sabemos mais
lidar com a morte, porque transformamos a doença e a morte num problema
técnico e para isso criamos as empresas, os técnicos mais qualificados, os
equipamentos mais sofisticados, capazes de prolongar a agonia de um
homem durante meses, anos, mas incapazes de devolver-lhe a vida, a vida
verdadeira, a vida com sentido.

Dessa forma, podemos perceber como a poesia de Augusto dos Anjos elabora
representações acerca do fenômeno morte, do morrer, de seus espaços e agentes. Certamente,
não estamos afirmando, aqui, que se deva desejar a morte, ou mesmo antecipá-la. A questão é
outra. Se antes a morte era encarada com mais “naturalidade”, passamos a viver experiências
cada vez mais “artificiais”, não somente em relação à vida, quanto também acerca da morte, o
que é um traço da historicidade presente no que chamamos modernidade.
Essa preocupação “técnica”, “artificial”, com a morte, como José de Souza Martins
ressalta no fim da citação acima, tem como objeto um fenômeno “natural” imerso na
historicidade de cada época. Nesse caso, a técnica, a ciência e os equipamentos modernos
contribuem na lida com a morte, em função de nossas expectativas e a partir de nossas
experiências.
A celebração da vida, propagandeada pela publicidade moderna, apesar de tentar, não
nos faz esquecer de nossa finitude. Não deixa de ser uma perspectiva contraditória, haja vista,
que toda essa técnica publicitária e toda a ciência moderna não nos encorajou a aceitar a
morte enquanto fenômeno que é parte da vida.
Isto porque, segundo os elementos inscritos na temporalidade moderna, o futuro é um
horizonte no qual as expectativas serão satisfeitas, realizadas. O futuro não somente é
aguardado, mas estimula otimismo. Contudo, a morte também está inscrita nesse futuro, na
medida em que atingirá à todos. Enquanto na temporalidade moderna, a passagem do tempo
aproxima o futuro, então tomado como algo positivo, a poesia de Augusto dos Anjos parece
sugerir que essa passagem do tempo é, antes de qualquer coisa, um desgaste. A ciência
moderna, ao invés de prolongar a vida (ainda que de certo modo, faça isto) não retira a morte
do horizonte. Em muitos casos, apenas constata sua chegada iminente.

334
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.09.
181

Os versos de Augusto dos Anjos, ao incorporarem essas temáticas, terminam por


apresentar ao leitor uma visão que reforça o fenômeno da morte como parte integrante da
vida, inclusive sob a rubrica da própria ciência. Ou seja, a morte indesejável permanece
imbatível no horizonte humano, como atesta a própria ciência: esta, por enquanto, nada pode
fazer. Vejamos os versos presentes no soneto intitulado “Vozes de um Túmulo”335:

Morri! E a Terra – a mãe commum – o brilho


Destes meus olhos apagou!... Assim
Tantalo, aos reaes convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Porque para este cemitério vim?!


Porque?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o phrónema exalta


Construi de orgulho ênea pyramide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pyramide real do meu orgulho,


Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

O eu lírico sugere que, em vida, erguera uma pirâmide com seu próprio orgulho,
provavelmente atribuindo a si mesmo um sentido radicalmente positivo. Entretanto, a morte o
transforma em “matéria” e “entulho” e o faz perceber a sua insignificância, apesar dos
sentidos outrora atribuídos. Percebemos nesses versos justamente o olhar reflexivo que aquele
que morre lançaria sobre si mesmo, sobretudo, no verso inicial. Todo o brilho de uma vida é
encoberto pela terra, durante a inumação.
Novamente, não há nos versos qualquer referência à uma dimensão religiosa. O espaço
do cemitério termina sendo a morada final para um indivíduo submetido a um fenômeno que
não tem fim, pois, para que a morte fosse eliminada, nada que fosse vivo poderia continuar a
existir. O cemitério figura como um local passível de proporcionar uma ampliação da
percepção e da compreensão sobre si, além de ser, também, definido com o já tradicional
rótulo de “última morada”. De uma forma ou de outra, é um local a ser habitado.

335
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.77.
182

6.2 Túmulos e Coveiros

Como observou Nicolau Sevcenko336, “Nenhuma impressão marcou mais fortemente


as gerações que viveram entre o final do século XIX e o início do século XX do que a
mudança vertiginosa dos cenários e dos comportamentos, sobretudo no âmbito das cidades.”
É no espaço urbano que se acumulam contradições e paradoxos, colocando em choque,
inclusive, as dimensões do público e do privado.
Uma massa cada vez maior de pessoas, com as mais variadas origens, credos e
culturas passou a habitar um mesmo e único lugar. Profissões e serviços são ofertados
diariamente, tanto aqueles que celebram ou pretendem conservar a vida (simbolizados, por
exemplo, em bares, restaurantes, farmácias e hospitais), quanto aqueles que se ocupam com os
ofícios da morte (tais como os agentes funerários e coveiros).
Já indicamos no poema “Noite de um Visionário” a aproximação irônica entre os
anúncios das casas comerciais com os epitáfios nos túmulos. No longo poema “Os
Doentes”337, no qual é sugerida a associação entre metrópole e necrópole, percebemos na
segunda e na terceira estrofes da oitava parte desse texto poético como a morte alimenta
práticas comerciais:

Quanta gente, roubada à humana coorte,


Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;

E nua, após baixar ao chaos budhista,


Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1$200 ao logista!

O espaço urbano, a metrópole, passa, portanto, a acolher todo tipo de pessoa e todo
tipo de prática, desde as legais, até as ilegais. Da mesma forma, o cemitério passa a acomodar
os mortos, na medida em que há a organização, no interior das cidades, de um espaço
dedicado exclusivamente à eles.
O cemitério, a necrópole, por sua vez, seria uma espécie de imagem da cidade e de
suas configurações, ou seja, da concepção de vida predominante entre os sujeitos históricos
numa determinada época. Sendo normatizado e justificado inclusive por preocupações
higienistas, o espaço do cemitério também evocava um desejo de preservar a saúde pública,
336
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.514.
337
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.63.
183

sobretudo, porque se via a própria sociedade/cidade como uma espécie de organismo vivo,
passível de contrair alguma enfermidade. Assim, o espaço organizado como cemitério, e os
túmulos em seu interior, além de sugerir uma medida de cunho sanitarista, também tratava-se,
na ótica de Ariès338

...de um culto privado, mas também, desde a origem, de um culto público. O


culto da lembrança imediatamente estendeu-se do indivíduo à sociedade,
seguindo um mesmo movimento de sensibilidade. Os autores de projetos de
cemitérios do século XVIII desejam que estes sejam ao mesmo tempo
organizados para a visita familiar e museu de homens ilustres, como a
catedral de Saint-Paul, em Londres. Os túmulos dos heróis e grandes homens
seriam venerados pelo Estado em tal local.

Nessa lógica, podemos perceber como a necrópole, mesmo estando situada dentro da
metrópole, parecia tanto ser um espaço contrário a ela, quanto uma continuação dela. No
cemitério, haveria lugares tanto para os populares, quanto para os ditos “grandes homens”,
ilustres na vida e na morte. Considerando a ênfase da modernidade em relação à noção de
“individualidade”, não é de se espantar o fato de que, ao reproduzir a dinâmica e as
configurações da cidade/sociedade, o túmulo adquiria significados para além de sua
finalidade. Como observou Catroga339

Pode concluir-se que, se a sepultura individualizada e o jazigo corporizavam


as condições semióticas necessárias à reconstituição imagética da memória
individual e familiar dos defunto, o monumento funerário acabava por criar a
a ilusão da eternidade do grupo, bem como as diferenças sociais que
atravessavam a cidade dos vivos.

Nesse sentido, o túmulo significaria a continuidade da individualidade adquirida em


vida. Nas quadras dos cemitérios, cuja funcionalidade se assemelha à dos bairros, podemos
perceber com clareza a natureza distinta dos túmulos dos pobres dos jazigos e mausoléus das
grandes famílias, bastante ostensivos.
Desse modo, o espaço do cemitério termina reproduzindo a mesma ordem vigente na
sociedade e na cidade, pois seria uma extensão de ambas, guardando consigo suas
configurações. Com o adentrar do século XX, essa percepção permanece. Podemos citar, por
exemplo, alguns sentidos atribuídos ao túmulo, à cova, no poema “Morte e Vida Severina”340,
no qual João Cabral de Melo Neto escreve:

338
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.77-78.
339
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.98
340
Seguimos, aqui, o trecho citado por MEYER, Marlyse In: MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos
na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC, 1983, p.113-139.
184

– Esta cova em que estás,


com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
– É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio
– Não é cova grande,
É cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
– É uma cova grande
para teu pouco defunto.
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
– É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
– É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada não
se abre a boca

Nas imagens de João Cabral de Melo Neto, o túmulo terminou tornando-se a


propriedade privada, a terra desejada em vida, porém, somente conseguida com a morte.
Como veremos, há uma espécie de simbologia atribuída ao ato da inumação e à forma como
ela é feita. Por exemplo, nas imagens do poema, por mais subalterna que tenha sido a
condição de vida do “Severino”, sua morte é “coroada” com um túmulo individual, mesmo
que simplório. Voltaremos a esse ponto.
Outro soneto de Augusto dos Anjos, intitulado “Contrastes”341, oferece mais algumas
imagens acerca da dualidade da vida e da morte, fazendo referencias não somente ao espaço
da morte/dos mortos, como a um de seus agentes. Vida e morte se implicariam mutuamente,
como uma tese e sua antítese. Esse soneto fora escrito e publicado no jornal O Comércio, em
1907, e republicado em 1912, na primeira edição do “Eu”. Vejamos:

A antíthese do novo e do obsoleto,


O Amor e a Paz, o Odio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convem para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo recto,


Uma feição humana e outra divina
São como a exhymenina e a endhymenina
Que servem ambas para o mesmo feto!

341
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.78.
185

Eu sei tudo isto mais do que o Ecclesiastes!


Por juxtaposições destes contrastes,
Junta-se um hemispherio a outro hemispherio,

A‟s alegrias juntam-se as tristezas,


E o carpinteiro que fabrica as mezas
Faz também os caixões do cemitério!

A existência seria o resultado de fatores opostos entre si, tal como a vida e a morte.
Daí a referência ao carpinteiro que, com seu ofício, tanto fabrica as mesas, como os caixões,
que receberão nossos restos mortais. A associação entre metrópole e necrópole é reafirmada
pela identificação entre esses dois ofícios. Sobre o cemitério e seus túmulos, Ariès342 comenta

Uma nova representação da sociedade nasce neste fim do século XVIII,


tendo se desenvolvido no século XIX e encontrado sua expressão no
positivismo de Augusto Comte, forma erudita do nacionalismo. Pensa-se, e
mesmo sente-se, que a sociedade é composta ao mesmo tempo de mortos e
vivos, e que os mortos são tão significativos e necessários quanto os vivos. A
cidade dos mortos é o inverso da sociedade dos vivos ou, mais que o inverso,
sua imagem, e sua imagem intemporal. Pois os mortos passaram pelo
momento da mudança, e seus monumentos são os signos visíveis da
perenidade da cidade. Assim, o cemitério retomou um lugar na cidade, lugar
ao mesmo tempo físico e moral, que havia perdido na Idade Média mas que
havia ocupado durante a Antiguidade.

O cemitério e seus túmulos, como lugares para os mortos, encontram a justificativa de


sua presença entre os vivos. A poesia de Augusto dos Anjos, para além dos sentidos que já
problematizamos, termina reafirmando a presença constante da morte entre nós e em nós
mesmos a partir das imagens elaboradas sobre esse lugar e sobre seus espaços internos.
Entretanto, e em certo sentido, a poesia de Augusto dos Anjos adentra em sendas
distintas daquelas sugeridas pela temporalidade moderna. Esta, significaria a possibilidade
(senão, certeza) de aperfeiçoamento: é uma mudança para melhor. Numa direção oposta a
esta, as imagens poéticas de Augusto dos Anjos, se se esforçam em ressaltar a morte como
parte integrante da vida, não reforçam, nem propõem, nenhum sentido de melhoria.
O indivíduo, protagonista/testemunha da temporalidade moderna, tem, em tese, um
lugar garantido, tanto na vida, quanto na morte, dependendo dos modos como ele “realizou-
se”. A vida, sob a modernidade, teria a possibilidade de “melhoria” como traço intrínseco. E,
na morte, os “grandes indivíduos”, aqueles que tiveram “importância histórica”, continuariam

342
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.78.
186

sendo “celebrados”. Conforme Catroga343” ...a campa individual, o túmulo de pedra, o jazigo,
o epitáfio, o busto, a estátua de corpo inteiro e, posteriormente, a fotografia, mais não são do
que expressões iconográficas, ainda que em graus diferentes, de um processo dissimulador da
morte e simulador da presença (ausente) do morto.”
A “melhoria”, o “aperfeiçoamento”, a “celebração” seja na vida, seja na morte,
sugerida pela temporalidade moderna, inclui o indivíduo, senão como protagonista, como
testemunha. As imagens poéticas de Augusto dos Anjos, quando sugerem algo próximo à essa
noção de “aperfeiçoamento”, nem sempre rubricam a presença do indivíduo como
protagonista/testemunha. O processo de criação e destruição, postulado pela poesia de
Augusto dos Anjos, tanto pode fazer surgir novos indivíduos, como pode transcorrer sem eles.
O indivíduo não é imprescindível: imerge num processo que está para além dele mesmo.
Como observou Ariès, mesmo em tempos mais remotos, quando a presença da morte
entre os vivos era aceita de maneira mais “familiar”, mais “naturalizada”, ainda assim havia o
cuidado de estabelecer um limite, uma fronteira entre vivos e mortos. Além do espaço do
cemitério propriamente dito, que tentamos discutir na seção anterior, o espaço do túmulo, do
sepulcro em si mesmo, também ganha relevo em suas representações poéticas.
Tornava-se necessário um agente para efetivar a prática da inumação, sobretudo, no
sentido de preparar o local do repouso final. Esse agente podia ser, normalmente, alguém
relacionado à família daquele que falecia. Todavia, com a transição da sociedade feudal para a
sociedade moderna e com a emergência de uma profissionalização das atividades relacionadas
à morte/morrer, o coveiro termina por simbolizar esse agente.
Nos versos de Augusto dos Anjos, para além do espaço cemiterial propriamente dito,
há, também, algumas imagens literárias criadas e atribuídas à esse agente, assim como, ao
sepulcro. As imagens relacionadas ao coveiro, por exemplo, também apresentam duas
tendências: uma, mais romântica e menos constante; a outra, bem mais recorrente, que já
apresenta um caráter mais mórbido e orgânico, demarcando o tom predominante e presente na
estética desse poeta e em seus textos mais significativos, publicados em livro.
Um exemplo dessa primeira tendência pode ser visto nos versos de “O Coveiro”344,
publicado originalmente em 1901, no jornal paraibano O Comércio. Esta poesia não foi
republicada no “Eu”, provavelmente por sua dissonância estética e temática, se comparados
àqueles textos poéticos que foram selecionados para compor a primeira edição em livro. Isto

343
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.106.
344
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.383.
187

porque a maioria dos poemas selecionados para o “Eu” possuem uma identidade estética e
temática mais comum. Nesse soneto, podemos constatar:

Uma tarde de abril suave e pura


Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.

Lá encontrei um pálido coveiro


Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh‟alma entristecida

E interroguei-o: “eterno companheiro


Da morte, quem matou-te o coração?”
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!

Depois, tomando a enxada, gravemente,


Balbuciou, sorrindo tristemente:
– “Aí, foi por isso que me fiz coveiro!”

As imagens estão mais próximas daquelas características próprias do romantismo. A


tônica recai sobre o sentimentalismo de um amor interrompido. È possível perceber a menção
à prática já comentada de visitar o espaço do cemitério e o túmulo de um ente querido como
forma de prestar homenagem ou mesmo celebrar sua memória345.
O sepulcro indicado pelo eu lírico cumpre sua finalidade, resguardando os restos
mortais de alguém. No entanto, a imagem poética enfatiza mais o amor interrompido do que o
material orgânico propriamente dito que ali poderia ser encontrado. A razão para o exercício
da atividade como coveiro derivaria, como é sugerido, da tristeza pela morte do ser amado,
que ali jazia. Isto ressalta ainda que, nessas imagens, a preocupação não era resguardar
material orgânico, mas um amor não realizado, ou sequer plenamente vivido.
Outro soneto de Augusto dos Anjos que tematiza essas imagens mais próximas ao
padrão estético romântico, nas representações acerca do coveiro, é “Ouvi, Senhora, o
Cântico”346. Este foi um dos primeiros textos poéticos de Augusto dos Anjos, publicado em
janeiro de 1901, no jornal paraibano O Comércio. Vejamos o primeiro quarteto e seus dois
tercetos finais:

345
“...embora cessando suas relações jurídicas como pessoas, os mortos, na maioria dos casos, continuam a
deixar marcas indeléveis sobre os mais próximos, sejam elas motivadas por crenças religiosas, por razões
afetivas ou orientadas por outros elementos reguladores da vida social. (...)”. MOTTA, Antônio. À Flor da
Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros. Recife. Fundação Joaquim Nabuco.
Ed. Massangana, 2009, p.27.
346
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org.Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.374.
188

Ouvi, senhora, o cântico sentido


Do coração que geme e se estertora
N‟ânsia letal que mata e que o devora
E que tornou-o assim, triste e descrido.
(...)
E como a luz do sol vai-se apagando!
E eu triste, triste pela vida afora,
Eterno pegureiro caminhando.

Revolvo as cinzas de passadas eras,


Sombrio e mudo e glacial, senhora,
Como um coveiro a sepultar quimeras!

A estética romântica perpassa o texto, enfatizando a temática sentimental. No que diz


respeito à representação do coveiro, o tom idealizante é evidente, pois, o que o coveiro sepulta
são “quimeras” do eu lírico, não material orgânico, tal como poderemos ver mais adiante. A
presença dos elementos estéticos românticos pode ser compreendida, inclusive, por tal soneto
ser um dos primeiros a ser escrito pelo poeta, ainda segundo o vetor da “semelhança”.
À titulo de contraponto inicial, podemos apontar o soneto “Último Credo”347, escrito
em 1908 e incluído entre as poesias do “Eu”. No início deste soneto, já é possível perceber
com mais clareza a diminuição do tom idealizante semelhante àquele visto no soneto anterior:
“ Como ama o homem adúltero o adulterio / E o ebrio a garrafa tóxica de rhum, / Amo o
coveiro – este ladrão commum /Que arrasta a gente para o cemitério!”
Nesses versos, um tanto quanto satíricos, irônicos, o coveiro já não sepulta
“quimeras”, nem se tornou aquilo que é por ter perdido um amor de juventude: é um “ladrão
comum”, que nos “arrasta” para o cemitério. O ofício do coveiro seria um mau hábito, como o
adultério, ou um vício, como aquele existente no ébrio.
Em relação aos túmulos, outro texto poético de Augusto dos Anjos é o soneto “Súplica
num Túmulo”348. Este soneto também data, como o anterior, do início do século XX, mais
precisamente, 1902. Estes versos foram publicados apenas no jornal paraibano O Comércio,
não sendo selecionado para compor o “Eu”. Vejamos seus dois quartetos iniciais:

Maria, eis-me a teus pés. Eu venho arrependido,


Implorar-te o perdão do imenso crime meu!
Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o vencido,
Açucena de Deus, lírio do Céu!

Perdão! E a minha voz estertora um gemido,


E o lábio meu para sempre apartado do teu
Não há de beijar o teu lábio querido!
Ah! Quando tu morreste, o meu Sonho morreu!

347
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.44.
348
ANJOS, 1912, p 428.
189

De início, percebemos as características que aproximam esses versos da estética


romântica. Há a referência ao túmulo, mas o foco do poema é o sentimento expresso pelo eu
lírico que implora o perdão em vista de um crime cometido. O nome “Maria” parece sugerir
conotações religiosas, mas logo vemos que se trata de uma mulher idealizada conforme as
sensibilidades do romantismo.
Novamente, quando há a referência acerca da morte, esse fenômeno é associado à
abstrações: Maria é o “lírio morto do Céu!”, a “açucena de Deus”. Quando se confirma a
morte dessa personagem poética, é o “sonho” do eu lírico que “morre”, não a sua carne, o seu
corpo. Nos dois tercetos finais349, lemos ainda:

Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho!


– Irei agora, assim, pelo mundo, para onde
Me levar o Destino abatido e tristonho...

Perdão! E este silêncio e esta tumba que cala!


Insânia, insânia, insânia, ah! ninguém me responde...
Perdão! E este sepulcro imenso que não fala!

Podemos ver que as referências à morte, então associadas às sensibilidades


românticas, colocam as imagens poéticas numa abstração diferente. Marca presença dos dois
símbolos mais recorrentes do romantismo, a “pátria” e o “exílio”, assim como, uma referência
ligeira às “ermas paragens” e à encarnação de sensações humanas pela natureza/entidades
temáticas (“...para onde / Me levar o Destino abatido e tristonho”).
Outro texto poético de Augusto dos Anjos, cujo título é “Decadência 350”, já apresenta
imagens opostas àquelas percebidas no soneto “Súplica num Túmulo”. Elaborado na forma de
soneto, “Decadência” fora escrito e publicado inicialmente no jornal paraibano “A União”,
em 1909, no qual Augusto dos Anjos também trabalhou como colaborador, publicando nesse
periódico outros textos seus. O soneto “Decadência” acabou sendo incorporado ao “Eu”, no
ano de 1912. Nesses versos, podemos ler:

Iguaes ás linhas perpendiculares


Cahiram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!

A frialdade dos círculos polares,


Em sucessivas actuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragará-lhe os centros medullares!

349
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.428.
350
ANJOS, 1912, p.74.
190

Como quem quebra o objecto mais querido


E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,

Elle hoje vê que, após tudo perdido,


Só lhe restam agora o ultimo dente
E a armação funerária das clavículas!

Quando da inumação, as pedras tumulares (que nos versos não possuem uma forma
definida) caem diretamente sobre o corpo do defunto. Ressalta-se, justamente, o oposto àquele
caráter abstrato do soneto “O Coveiro”, ou do soneto “Suplicas num Tumulo”: as vértebras
estão gastas; neuroplastas e medulas são penetradas e esmagadas. Todo o corpo se parte em
pedaços, restando apenas o último dente e as clavículas. Ou seja, nesse espaço tumular, jaz o
que sobrou de um conjunto de material biológico, orgânico, restando apenas alguns poucos
fragmentos. Aqui, retomamos o ponto acerca dos tipos de inumação.
Gonçalves de Magalhães351 (1811-1882), por exemplo, também elaborou imagens
acerca da morte e do túmulo em um de seus poemas, intitulado “Mysterio IV”:

Para um longo soffrer o céo formou-nos,


Pois que o sonho nos dêo – esquecimento
Do mal passado, que restaura as forças
Para fadigas e tormentos novos.
Assim esses da terra ímpios tyrannos
Parco sustento ás victimas concedem,
Para co‟a vida as dores prolongar-lhes.
Mas si o sonno nos é da morte imagem,
O sonho o que será? – Um prévio annuncio
Do futuro viver alêm da campa.

Visando não perder o foco, não nos aprofundaremos no estilo e nas temáticas da
poética de Gonçalves da Magalhães. Contudo, podemos apontar, a partir dos versos indicados,
um estilo mais semelhante ao exercitado por Augusto dos Anjos, ainda que este poeta tenha se
apropriado com mais vigor da morte como um fenômeno secularizado, natural, biológico.
Os versos de Augusto se aproximam, ainda, de vestígios derivados da atitude que pode
ser denominada como “morte do outro”. Todos nós morreremos e nós, como indivíduos,
podemos morrer a qualquer instante. Contudo, o outro, tal como nós, padece dessa mesma
sina. Assim, não somente a minha própria morte vai me assustar, mas, sobretudo, a morte do
“outro”, daquele próximo à mim. A morte do outro também assusta, pois reafirma a morte do

351
MAGALHÃES, Gonçalves. Canticos Fúnebres. Rio de Janeiro. Livraria de B. L. Garner. Rua do Ouvidor, nº
09. 1864, p.72-73. Disponível em
https://digital.bbm.usp.br/view/?45000017248&bbm/4171#page/82/mode/2up Acesso 10 Novembro 2018.
191

indivíduo. Entre a vigésima nona e a trigésima primeira estrofe da segunda parte de “As
Cismas do Destino”352, percebemos imagens relacionadas à essa temática:

Quantas moças que o tumulo reclama!


E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida á lama!

Morte, ponto final da ultima scéna,


Fórma diffusa da matéria imbelle,
Minha philosofia te repelle,
Meu raciocínio te condemna!

Diante de ti, nas cathedraes ricas,


Rolam sem efficacia os amuletos
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diarias que fabrícas!

O túmulo é representado como o espaço que “demanda” o corpo morto, quase como se
este fosse uma espécie de alimento, roubando das moças, não somente a juventude, como a
virgindade. A morte do(s) outros(as) reafirma a morte do indivíduo, o “...ponto final da última
cena”, que em vão, raciocínio, filosofia e amuletos religiosos tentam repelir ou impedir.
Vejamos acerca dessa temática, mais um texto poético de Augusto dos Anjos. O texto
em questão não fora publicado nos veículos mais usuais de divulgação de sua poesia, no caso
os jornais paraibanos A União e O Comércio. Intitulado “Versos a um Coveiro”, teve sua
primeira publicação efetiva no Almanaque do Estado da Paraíba, em 1917, numa homenagem
póstuma, tendo em vista o falecimento do poeta em 1914.
Esse poema também não foi incluído na primeira edição do “Eu”. Fora Órris Soares,
organizador da segunda edição, em 1920, que incluiu esse soneto nas chamadas “Outras
Poesias”, que foram acrescentadas àquelas lançadas na primeira edição e que, desde então,
têm sido publicadas sob o título “Eu e Outras Poesias”. Muitas das poesias acrescentadas
foram consideradas inéditas equivocadamente, pois desconsideravam a primeira publicação
ocorrida em jornais e periódicos paraibanos, anteriores à publicação do livro. Nesse soneto353,
encontramos as seguintes imagens

Numerar sepulturas e carneiros


Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados sylogismos,
A arithmetica hedionda dos coveiros!

352
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.30.
353
ANJOS, 1920, p.214.
192

Um, dois, três, quatro, cinco Esoterismos


Da morte! E eu vejo, em fulgidos lettreiros,
Na progressão dos números interior
A genese de todos os abysmos!

Oh! Pytagoras da última arithmetica,


Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulchraes

Tíbias, cérebros, craneos, rádios e húmeros,


Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

Nesses versos percebemos justamente algumas das sensibilidades que se relacionam,


também, com uma espécie de racionalidade dita “moderna”. Em face da inexorabilidade da
morte, exige-se o profissional que lide com esse fenômeno, representado pelo coveiro.
Este profissional é representado como alguém que lida com a morte adotando uma
lógica quase matemática. Ao invés de ser pensado como uma figura soturna, ligada à
temáticas sobrenaturais, ele é apenas alguém que numera “sepulturas e carneiros” e que reduz
“as carnes podres a algarismos”.
Nesse sentido, “a arithmetica hedionda dos coveiros”, é uma operação prática, que não
está, necessariamente, nesse caso, para além do “natural”. O coveiro, portanto, seria um
agente que transforma em atividade cotidiana, senão burocrática, entediante, a ocasião que,
para muitas pessoas, é excepcional, singular, trágica.
O coveiro é o profissional que realiza, numa alusão ao filósofo e matemático grego
Pitágoras, “a última aritmética”. Assim, pela naturalidade do próprio processo, partes do
corpo humano, tal como os ossos indicados nos versos do último terceto, vão apenas se
acumulando numa soma infinita, pois enquanto houver humanos (e seres vivos em geral) a
morte atingirá a todos, o que faz com que sua somatória “não acaba mais”.
Além disso, é sugerido, no primeiro verso do primeiro quarteto, e no terceiro verso do
primeiro terceto, a existência dos “carneiros”, muito comuns em cemitérios, sobretudo, os
mais antigos. Tais “carneiros” seriam locais de inumação próprios para guardar ossadas, tanto
de pessoas mais pobres ou indigentes, que não possuíam recursos suficientes para pagarem
por um túmulo mais convencional, quanto um depósito coletivo no qual são guardadas as
ossadas de corpos exumados por alguma razão, como, por exemplo, pela reorganização do
espaço do próprio cemitério, devido não haver mais espaço para túmulos individuais.
193

Phillipe Ariès354 nos dá mais algumas informações acerca desses carneiros, muito
comuns, principalmente, em cemitérios vigentes durante a sociedade feudal e até mesmo entre
os séculos XVII e XVIII. Ressalta-se seu uso para guardar restos mortais dos mais pobres.
Não era incomum a literatura ao longo do século XIX e na virada para o século XX
explorar metáforas e imagens que envolviam a morte e o corpo morto. Fernando Catroga nos
oferece alguns exemplos disso ao perceber, no campo literário, traços característicos desse
universo metafórico em textos tais como “O Primo Basílio” (1878), de Eça de Queiroz (1845-
1900), no qual a empregada Juliana (antagonista da personagem Luísa, dona da casa e amante
de Basílio) é enterrada numa vala comum355.
Outro texto citado por Catroga é o poema “Desastre” (1875), de Cesário Verde (1855-
1886), poema esse que também tematiza a vala comum. Ao localizarmos esse poema,
podemos perceber alguns sentidos atribuídos à esse espaço. Este poema enfoca a morte de um
trabalhador braçal, que morre ao cair de um andaime durante o trabalho, tendo sido enterrado,
também, numa vala comum, tal como a personagem de Eça de Queiroz. Desse poema,
vejamos a primeira, a segunda, a nona, assim como, suas duas estrofes finais356

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,


Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,


Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue rubro os membros ensopados.
(...)
Era enjeitado o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
(...)
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.

354
“De onde vinham os ossos assim apresentados nos carneiros? Principalmente das grandes fossas comuns, ditas
“fossas dos pobres”, largas e com vários metros de profundidade, onde os cadáveres eram amontoados,
simplesmente cosidos em seus sudários, sem caixão. Quanto uma fossa estava cheia, era fechada, reabrindo-se
uma mais antiga e levando-se os ossos secos para os carneiros”. ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no
Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2014, p. 46.
355
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.81.
356
VERDE, Cesário. Desastre In: Obras Completas. Lisboa. Livros Horizonte. 4ª Edição, 1983. (Org. Joel
Serrão), p.162-164.
194

E antes, ao soletrar a narração do facto,


Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
<<Morreu!? Pois não caísse! Alguma Bebedeira!>>

Tanto a personagem Juliana, em “O Primo Basílio”, quanto o operário que protagoniza


o referido poema, são oriundos das camadas pobres, desprivilegiadas. Juliana, empregada
doméstica frustrada por ainda ser solteira e virgem, detestava sua profissão e sua patroa,
chantageando-a por conta do adultério praticado. O operário anônimo, por sua vez, é descrito
como um “enjeitado” pobre e analfabeto, tendo sido acusado de ter caído durante o trabalho
na obra por conta de “alguma bebedeira”. Ambos personagens encontram seu lugar final
numa vala comum, num dos carneiros, tal como os citados nos versos de Augusto dos Anjos.
Como já ressaltamos, a modernidade enfatiza a noção de “indivíduo”, de
“individualidade”. Encontrar um lugar de destaque na sociedade seria equivalente a “vencer
na vida”, imprimindo sua marca na sociedade e/ou em alguma de suas dimensões. Após a
morte, esse sujeito “vencedor” (mesmo que de modo tímido) encontraria repouso final num
túmulo individualizado, particularizado, ou num mausoléu familiar mais ostensivo. Por outro
lado, aqueles que não “venceram na vida”, que nela não encontraram um lugar satisfatório ou
confortável, vivendo nas margens da sociedade, não seriam reconhecidos, após a morte, como
sujeitos merecedores de uma sepultura individualizada, mesmo daquelas mais simples.
No soneto “Versos a um Coveiro”, Augusto dos Anjos atribuí à esse personagem um
trabalho quase burocrático, monótono. O coveiro simplesmente realizava uma operação
aritmética, separando corpos e ossos não por sua singularidade, por sua individualidade, mas
por sua quantidade. Nas análises de Fernando Catroga357 observamos essa característica:

...a vala comum, em contraste com as outras modalidades de enterramento,


patenteava, sem ambiguidades, um mundo de distinção social que feria o
próprio preceito evangélico de igualização na morte e destruía as bases
semióticas necessárias para se fugir à “condenação da memória”; ela era, em
síntese, o mais flagrante desmentido da idealização utópica do cemitério...

De modo análogo à metrópole moderna, o cemitério seria um agrupamento de


indivíduos. Enquanto “vivos”, possuíam posições sociais distintas. Mortos, todos deveriam,
em tese, compartilhar uma nova e mesma condição. Contudo, na medida em que o fenômeno
da morte é tratado a partir dos elementos orientadores vigentes em vida, os ímpetos pela
perpetuação da distinção social terminaram sendo projetados no cemitério, tal como antes se
plasmavam na cidade dos “vivos”.

357
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.77.
195

Nessa compreensão, a vala comum, os “carneiros” nos quais eram depositados os


restos mortais de diversos cadáveres, equivaleria a uma espécie de anulação da
individualidade. Já não se fazia a menor distinção, nos restos mortais que nelas eram
acumulados, acerca de quem eram, em vida, os indivíduos ali sepultados.
Ter como lugar final a vala comum, portanto, representaria – ou rubricaria – uma
existência marginalizada ou predominantemente subalterna. A vala comum, tal como no
poema de Cesário Verde, seria adequada para os indigentes, para aqueles que são inumados
sem presença de alguém (amigo ou parentes), a não ser a do próprio coveiro. Do morto, nada
restaria, nem um lugar próprio, nem mesmo um nome. Para Catroga358

Na prática, eram ainda maiores a promiscuidade e o anonimato dos defuntos.


Ora, este colectivismo da vala tendia a transformar os traços do morto num
“nada semiológico” (...) porque ela colocava directamente o corpo no
insofismável ciclo biológico da putrefacção; ao mesmo tempo, o seu cariz
anônimo, ou meramente numérico, impedia o jogo dissimulador necessário à
re-presentificação mnemónica. Assim, dir-se-ia que o âmbito da
sobrevivência estava directamente dependente da escala social: os pobres
teriam tanto direito à sobreviver como tiveram a viver!

Através da anulação do indivíduo, por meio de sua inumação numa vala comum,
rubricava-se, dessa forma, a experiência de secularização que passou a envolver o fenômeno
da morte e do corpo morto. Para os indivíduos – mesmo pobres – que conseguiram garantir
um túmulo individualizado, tal como o “Severino”, de João Cabral, os traços semiológicos
são preservados. Há a possibilidade do morto de ter seu nome lembrado. Aos indigentes, aos
mais pobres, aos sobreviventes situados nas margens da sociedade, restariam, após a morte, o
recebimento de um tratamento derivado de preocupações sanitaristas. Como afirma Motta359

...a repulsa pelo sepultamento anônimo, cuja versão mais aviltante era a
inumação coletiva nas valas, não tardou de lograr adeptos nas camadas
populares urbanas do século XIX, especialmente com a criação, na
Inglaterra, do chamado mutualismo ou sociedades funerárias (burial clubs)
que reivindicavam para si uma condição mais digna na hora da morte, já que
a desigualdade em vida inevitavelmente se reproduzia, e talvez de forma
ainda mais flagrante, no espaço póstumo.

Para encerrarmos a discussão do presente capítulo, a análise de mais dois textos


poéticos de Augusto dos Anjos podem nos ajudar a compreender a tônica das representações
feitas em seus versos acerca dos túmulos. O primeiro intitula-se “O Sarcófago” e o segundo,

358
CATROGA, Fernando. O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra, Editora Livraria Minerva, 1999, p.79.
359
MOTTA, Antônio. À Flor da Pedra: Formas Tumulares e Processos Sociais nos Cemitérios Brasileiros.
Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2009, p.32.
196

“À Mesa”. Ambos foram incluídos apenas na segunda edição do “Eu”, o primeiro sendo
inédito, e o segundo já tendo sido publicado, em 1917, no Almanaque do Estado da Paraíba.
No primeiro soneto360, em seus dois primeiros quartetos, podemos ver:

Senhor da alta hermeneutica do Fado


Perlustro o atrium da Morte É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcophago molhado!

Ah! Ninguém ouve o soluçante brado


De dor profunda, acerrima e latente,
Que o sarcophago, erecto e immóvel, sente
Em sua própria sombra sepultado!

Neste soneto, o eu lírico informa que adentra o domínio da Morte, ressaltando a


temperatura fria do ambiente, vislumbrando o sarcófago sob a chuva. Este objeto transmitiria
uma dor profunda, a qual é explicada nos tercetos finais:

Dóe-lhe (quem sabe?) essa grandeza horrível,


Que em toda a sua mascara se expande,
Á humana commoção impondo-a, inteira

Dóe-lhe, em summa, perante o Incognoscível,


Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!

Nessas imagens, mais próximas de elementos estéticos simbolistas, sobretudo, o


postulado de uma realidade transcendente “incognoscível”, é atribuída ao sarcófago uma dor
por constituir-se como um depósito de poeira, fazendo nova alusão ao pressuposto bíblico do
retorno ao pó.
Numa aproximação simples de sua raiz etimológica, a palavra “sarcófago” significaria
literalmente algo que “come”, que “devora” carne. Contudo, como vimos, no último verso de
seu último terceto, o que ali restaria seria apenas “poeira”. O processo de putrefação não é,
necessariamente, mencionado, ou já teria se encerrado. No soneto intitulado “À Mesa”361,
vemos essa característica da “carne” que se devora/é devorada de maneira mais clara:

Cedo á soffreguidão do estomago. É a hora


De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensangüentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus proprios similhantes
Eis-me sentado á mesa!

360
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Org. Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994,
p.187.
361
ANJOS, 1920, p.209.
197

Como porções de carne morta. Ai! Como


Os que, como eu, têm carne; com este assomo
Que a especie humana em comer carne tem!
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a Terra vingar-se do meu crime,
Comendo-me também.

Nos versos acima, a ideia mais próxima do sentido literal da palavra “sarcófago” já se
encontra bem mais desenvolvida. O eu lírico afirma que o aspecto carnívoro seria inerente à
nossa espécie, o que nos faz devorar a carne de outros animais, quase sem distinção. Ao
entregar-se sem culpa à esse traço da condição humana, o eu lírico parece se comprazer ao
perceber que ele também é carne, tal como os animais com os quais se alimenta.
Esse jogo de imagens se encontra presente em outro texto de Augusto dos Anjos,
intitulado “Poema Negro”362, publicado inicialmente em 1906 e incluído no “Eu”, seis anos
depois: “E‟ a Morte – esta carnívora assanhada – / Serpente má de língua envenenada / Que
tudo que acha no caminho, come... / – Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, / Sae para
assassinar o mundo inteiro / E o mundo inteiro não lhe mata a fome!”
Para Lúcia Helena363, haveria nos versos mais significativos de Augusto dos Anjos, ou
seja, aqueles publicados no “Eu”, a proposição de uma estética poética que promove a
contemplação de uma movimentação cósmica, definida por ela como “cosmo-agonia”, a qual
se desenvolveria em três momentos:

1.º) Intuição monística (a força de proveniência e de fecundação), que é


resultante da tensão semanticamente produtiva do embate entre o caos e o
cosmos; 2.º o fagismo (a força de corrosão), que revela os princípios de
desagregação e agregação contidos no próprio embate entre o caos e o
cosmo; e, 3.º) o transformismo, o vir-a-ser, a genealogia de tudo, a eterna
transitoriedade, que é a garantia da permanência do incessante embate entre
o caos e o cosmos.

O eu lírico de Augusto dos Anjos expresso, principalmente, nos poemas publicados


em livro, enxerga a realidade a partir do trinômio indicado acima, o que estrutura um processo
unitário de transformação contínuo impulsionado por essa potência fágica, consumidora, que
pode ser identificada com a “morte”, espécie de agente/energia simultaneamente
criadora/destruidora. É esse fagismo que podemos associar ao que chamamos anteriormente
de “tempo da carne”, haja vista, que é a carne o alvo imediato da passagem do tempo,
tornando-se envelhecida, apodrecida, reduzida ao osso e, depois, ao pó.

362
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.108-109.
363
HELENA, Lúcia. A Cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro, 2ª.edição. Editora Tempo
Brasileiro. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura da Paraíba, 1984, p.117-118.
198

É como se sua poesia operasse com a fusão das experiências da modernização, entre
elas, a aceleração, o progresso técnico, a mudança, os saberes científicos e filosóficos, as
sensibilidades intersubjetivas, sociais, artísticas, entre outras, inclusive no domínio das
práticas religiosas, experiências estas inscritas sob o signo da morte.
Por fim, esses são alguns dos sentidos atribuídos pela poesia de Augusto dos Anjos ao
fenômeno morte, aos seus agentes (como o coveiro) e aos lugares da morte, quais sejam, os
túmulos, os locais onde os corpos mortos jazem e são devorados. No próximo capítulo,
discutiremos algumas imagens associadas ao corpo e suas doenças.
199

CAPÍTULO 7
O CORPO E SUAS DOENÇAS

7.1 O Corpo e a Cinza

A poesia de Augusto dos Anjos, como já observamos, apresenta diversas referências


ao “eu”, ao “ego”, à dimensão individual e aos modos como o sujeito sente a si mesmo e
explora essas sensações. Contudo, tais características presentes em seus versos não
configuram uma exclusividade de sua atividade poética. Esses traços são, antes de qualquer
coisa, aspectos próprios da poesia lírica, assim como, sentidos históricos de sua época.
Como pudemos identificar no capítulo anterior e como iremos procurar aprofundar
neste capítulo, diversas imagens poéticas suas relacionam-se com uma espécie de universo
metafórico a partir do qual determinados significados são atribuídos à morte e ao morrer,
significados estes indiciários de sua historicidade e da temporalidade moderna.
Na presente seção, analisaremos alguns textos poéticos nos quais Augusto dos Anjos
elabora imagens não somente em relação ao corpo, como à uma espécie de sentimento de
“fracasso”. A emergência da modernidade configurou-se como uma época dotada de uma
temporalidade que enfatizava sobremaneira uma série de expectativas projetadas no futuro,
expectativas essas que deveriam ser perseguidas pelos indivíduos como projetos pessoais. Na
modernidade, o indivíduo precisa “vencer na vida”.
A partir da emergência das sensibilidades modernas, os indivíduos pareciam, muitas
vezes, não se sentirem realizados com aquilo que já possuíam, derivados dos projetos
individuais que conseguiram efetivar. Como a temporalidade moderna aponta sempre para o
futuro, uma conquista já alcançada, tornada passado/presente, poderia apresentar-se como
“menor” se comparada ao próximo/novo projeto que se buscava realizar.
Na poesia de Augusto dos Anjos, as referências à morte e ao morrer, ao corpo que
adoece e apodrece se contrapõem à essa busca por realização pessoal, busca essa que pode até
existir, mas será anulada pela chegada da morte. Isto não constitui, pura e simplesmente, um
pessimismo abstrato. Esse pessimismo, em seus versos, existe, mas é rubricado mais pela
certeza inevitável da morte, do que por algum fator abstrato, indeterminado. Essa visão
pessimista pode ser interpretada como uma forma de seguir, ou se desviar por uma tangente,
200

em relação às expectativas oriundas da temporalidade moderna, a qual concebe o futuro


sempre como uma dimensão propícia à realização, ao aperfeiçoamento. Para Alexei Bueno364

Esse caráter pessimista da poesia de Augusto dos Anjos quanto ao pretenso


poder da ciência contra o mistério do universo, essa falta de crença na
eficácia de todo o esforço humano (...) [traduzem-no como] muito mais do
que poeta da morte, como popularmente o cognominaram, Augusto dos
Anjos é o poeta do fracasso do enfrentamento do mistério, da impotência
perante o incognoscível, conclusão igual à que chegaria o místico; e a morte
comparece, antes de tudo (...) como o último e maior de todos os fracassos,
como a mais absoluta e definitiva forma de impotência.

O poema “Mistérios de um Fósforo”365 nos servirá como mais uma porta de entrada
para essas questões, pois, apresenta um conjunto de imagens nesse sentido. Este texto fora
publicado inicialmente no jornal paraibano A União, em 1910. Reaparece como poema que
encerra a primeira edição do “Eu”. Nele, podemos encontrar algumas especulações mais
filosóficas. Logo nas primeiras estrofes do poema, o eu lírico, ao riscar um fósforo, divaga:

Pego de um phosphoro. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o


Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo


Que a individual psychê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

O fósforo queimado é associado ao túmulo que abriga os sonhos do indivíduo. Isto


parece colocar o poema numa estética mais romântica. Entretanto, aqui o túmulo não é um
local, mas, antes, uma substância residual. Logo nos vem à mente a ideia de que a imagem do
fósforo queimado se aproxima do pó ao qual se retorna, de acordo com o pressuposto bíblico.
Simbolizaria, também, ao contrário do tempo da carne e do osso, o tempo do pó, da cinza,
uma espécie de tempo atemporal, eterno, que perdura, que é duração plena.
A própria cinza restante seria um túmulo que abriga dois sonhos mortos: o sonho do
indivíduo e o sonho individual da espécie humana. Este túmulo representa o horizonte
inevitável para os sonhos de cada sujeito. O eu lírico sugere que tendemos a enquadrar nossos
sonhos individuais em conformidade com aquilo que sonhamos para nós enquanto espécie.
Daí, a referência negativa à cor cinza, na terceira e quarta366 estrofes:

364
BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: Origens de uma Poética. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa.
Editora Nova Aguilar, 1994, p.23-24.
365
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.128.
366
ANJOS, 1912, p.128.
201

E exclamo ébrio, a esvasiar bácchicos odres:


– <<Cinza, synthese má da podridão,
<< miniatura allegorica do chão,
<< onde os ventres maternos ficam podres;

<<Na tua clandestina e erma alma vasta,


<<Onde nenhuma lâmpada se accende,
<<Meu raciocínio sóffrego surprehende
<<Todas as fórmas da matéria gasta!>>

A cor cinza do fósforo queimado é tomada como uma metáfora para o horizonte
humano, seja aquele individual, seja o da própria espécie. Independentemente de quais sejam
os sonhos e expectativas, individuais ou coletivas, tudo resultaria em pó, por mais brilhantes
que sejam as realizações humanas, semelhantes à chama de um fósforo enquanto acesa. A cor
cinza simbolizaria a matéria gasta e, provavelmente, a vida já vivida. Esta imagem é reforçada
entre a décima e a décima terceira estrofes367, nas quais a morte é reafirmada como horizonte
comum de toda a espécie humana:

De certo, o architectónico e integro aspecto


Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nelle
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquelle
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abysmos


– Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. –

Depois, é o céu abscôndito do Nada,


É este acto extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, attender
Ao pedido da céllula cansada!

Um dia restará, na terra instável,


De minha anthropocéntrica matéria
Nunma concava chicara funérea
Uma colher de cinza miseravel!

Novamente, reafirma-se a morte como uma certeza inalterável que o indivíduo adquire
sobre si e sobre a qual nada pode fazer. Todo indivíduo tem plena consciência de sua finitude.
Dessa forma, a arquitetura da existência, da vida, como o eu lírico comenta na décima estrofe,
tem a morte como resultado: tudo o que nasce no mundo, somente nasce para morrer.
O mundo seria palco da morte e esta a condição coletiva de todos: (“...o que nelle /
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquelle / Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto”).
Parece existir, nos versos de Augusto dos Anjos, uma ideia de temporalidade que, se mantém

367
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.129-130.
202

conexões com a temporalidade moderna, desta recusa o pressuposto de uma melhoria


contínua, de um aperfeiçoamento progressivo, a ser realizado sempre no futuro368.
Assim sendo, o indivíduo moderno, ao invés de nascer para realizar seus projetos e
expectativas, nasceria antes sujeito à “... fatalidade dos tropismos”, ou seja, estaria muito mais
inclinado à sofrer uma influência negativa do mundo que o cerca, do que predisposto a
“vencer” esse próprio mundo.
Novamente, o horizonte de expectativa não seria coroado com a realização do projeto
perseguido. Ao contrário, seria um encontro com o “...céu abscôndito do Nada”, efetivado
pela morte, a qual nada mais seria do que a resposta finalmente dada ao pedido semanalmente
(re)feito pela “célula cansada!”.
Com a morte, os sujeitos não deixariam um legado, uma herança. Correm, inclusive, o
riso de serem esquecidos. O resíduo restante dos indivíduos, derivado de sua “antropocêntrica
matéria”, estaria para além do tempo da “carne”, pois esta já não existe mais. O resultado
seria apenas a cinza miserável que caberia numa xícara/colher. A imagem da cinza do fósforo
queimado ganha força, pois é como se os homens se transformassem na terra que cobre seu
corpo, a “terra instável” na qual ele descansa. É possível interpretar que a vida seria o breve
instante da luz acesa, semelhante ao fósforo enquanto queima, que, em seguida, se reduz à
cinza. Vejamos as estrofes finais do poema369:

Em scismas philosophicas me perco


E vejo, como nunca outro homem viu,
Na amphigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mónada vil, cósmico zero,


Migalha de albumina semi-fluida,
Que fez a bocca mystica do druida
E a língua revoltada de Luthero;

Há uma associação rápida entre sexo e morte, já observada por Ariès370, representado
pelo termo “anfigonia”, que faz menção à reprodução sexuada. Na metáfora apresentada por
esse eu lírico, o sexo produz esterco ao invés de vida plena. Esta é definida apenas como
sendo um “cósmico zero”. Além dessas imagens, vemos ainda371:

368
Na seção 3.3, indicamos a existência de três instâncias temporais, sugeridas pelos versos de Augusto dos
Anjos, no caso, o tempo da “carne”, que sofre a ação da passagem do tempo de modo mais imediato, como
também, o tempo do “osso” e o tempo do “pó”. Estes últimos, seriam indicativos de um tempo que perdura,
menos dinâmico e mais próximo à noção de eternidade e/ou de atemporalidade.
369
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.132.
370
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.140.
371
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.131.
203

Teus gyneceus prolíficos envolvem


Cinza fetal!. Basta um phosphoro só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o connúbio incestuoso


Dessas affinidades electivas,
De onde chimicamente tu derivas,
Na acclamação symbiótica do gozo!

O enterro de minha última neurona


Desfila. E eis-me outro phosphoro a riscar,
E esse accidente chimico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise arthritica não tarda.


Adeus! Que eu vejo emfim, com a alma vencida,
Na abjeccção embryológica da vida
O futuro cinza que me aguarda!

Percebemos, então, a imagem da cor cinza sempre associada à um tom mais negativo,
fúnebre. A cinza residual, como a terra, seria um tipo de túmulo em si mesmo, tal como se o
corpo morto fosse inumado diretamente na terra, transformando-se ele mesmo no “pó”, na
própria terra que o envolve.
Ainda explorando os sentidos da metáfora, a cinza do fósforo configura-se de maneira
indeterminada, anônima, sem poder ser sujeita a particularizações, a individualizações. A vida
seria um “acidente químico vulgar” e a morte um simples acúmulo de pó. A temporalidade
moderna, otimista em relação ao futuro, parece ser questionada, pois, no futuro, apenas a
cinza nos aguarda.
Contudo, a partir das transformações que foram transcorrendo sob o signo da
modernidade, nas relações do homem com os espaços, com os seres e com os fenômenos que
o cercam, assim como, com a consciência de sua própria finitude, novos horizontes de
expectativa foram elaborados e novas imagens vão sendo propostas e difundidas.
Um dos sintomas dessas mudanças, que podem ser percebidas no movimento de
emergência das sensibilidades modernas, é a noção de “fracasso”, noção esta bastante
característica das sociedades capitalistas e industriais, na medida em que progressivamente
era reforçada a ideia de indivíduo e de que este deveria “vencer na vida”, realizando seus
projetos individuais, tornando presente as promessas inscritas e projetadas no futuro. Segundo
Phillipe Ariès372:

372
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.60.
204

Hoje o adulto experimenta, cedo ou tarde, e cada vez mais cedo, o


sentimento de que fracassou, de que sua vida adulta não realizou nenhuma
das promessas de sua adolescência. Este sentimento é a origem do clima de
depressão que se alastra pelas classes abastadas das sociedades industriais.

Augusto dos Anjos, enquanto indivíduo historicamente situado no seio de uma


sociedade devota de sua própria modernização, e que enaltece a perseguição e o reforço de
sua individualização, não deve ter escapado desse sentimento. Se voltarmos nossos olhos para
elementos específicos de sua biografia, torna-se difícil não ficarmos tentados a apontar em sua
experiência histórica a falência patrimonial que atingiu sua família como rubrica do fracasso.
Contudo, sendo sua poesia nosso objeto de análise, vemos que esse sentimento de
“fracasso” é perceptível. É a morte que assinala, para a existência humana, a derrota final, da
qual não se pode escapar. Mesmo que contra ela seja possível lutar, tal luta não configuraria
mais do que um esforço inútil. A morte é, não somente inevitável, como invencível.
Além disso, em suas imagens poéticas, a noção de “fracasso” não aparece somente nas
representações do corpo morto, reanimado, ou do corpo doente, apodrecendo/apodrecido. O
“fracasso” seria uma espécie de força própria que atuaria diretamente sobre o indivíduo.
Identificamos esse sentimento de fracasso em seus versos pelo uso recorrente da palavra
“vencido”, a qual tanto figura em rimas, quanto nos títulos de alguns de seus poemas.
Um primeiro soneto que elabora imagens acerca dessa noção de “fracasso” intitula-se
“Psycologia de um Vencido”373, publicado no jornal paraibano A União, em 1909, e incluído
no “Eu”, em suas duas edições (1912/1920):

Eu, filho do carbono e do ammoniaco,


Monstro de escuridão e rutilancia,
Soffro, desde a epigénesis da infancia,
A influencia má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hypocondriaco,
Este ambiente me causa repugnancia.
Sobe-me á boca um ancia análoga á ancia
Que escapa da bocca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –


Que o sangue pôdre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roêl-os,


E ha de deixar-me apenas os cabellos,
Na frialdade inorganica da terra!

373
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.14.
205

O insucesso que atingirá o eu lírico é derivado de uma influência astrológica negativa,


para além das forças do sujeito, acompanhando-o desde sua formação embrionária. A morte é
indicada indiretamente: primeiro, pela referência às doenças, as quais sua hipocondria
profunda visava evitar; segundo, pela representação do “verme”, termo pelo qual o poeta
personifica a morte em alguns de seus poemas, ressaltando o fenômeno da morte, portanto,
como derivado de uma corrupção biológica, orgânica. A certeza da derrota, afirmada pela má
influência do zodíaco e pela ânsia que o aproxima do cardíaco, é representada pelos restos
mortais não consumidos pelo verme devorador: apenas os cabelos restarão intactos.
Quando focamos especificamente em sua poesia, ainda que esta mantenha alguma
relação com aspectos de sua biografia, ela também relaciona-se diretamente com os estratos
temporais de sua historicidade. Por um lado, todo um conjunto de sensibilidades modernas
prometiam a realização de uma série de aventuras e inovações. Por outro, a própria ciência
que proporcionava algumas dessas transformações, não conseguiu, jamais, eliminar do
horizonte humano a presença inevitável da morte. Quando muito, foi útil em retardá-la. Se há,
em seus versos, indícios de uma perspectiva temporal, esta, ao contrário da temporalidade
moderna, não atribui ao futuro nenhuma perspectiva otimista, positiva. Seria uma noção de
temporalidade predominantemente descrente da possibilidade de aperfeiçoamento.
A modernidade apresentava ao hipocondríaco mais convicto, assim como ao enfermo
já diagnosticado, através dos últimos avanços da ciência, os mais “modernos” fármacos que
contribuiriam para a manutenção de um corpo e de uma mente sã. Contudo, como observou
Flávio Edler374

As desigualdades sociais e culturais, herdadas do período colonial e


acentuadas até o limite com a escravidão, se refletiram também no uso dos
remédios. O acesso aos produtos das farmácias, boticas e drogarias – muitos
deles importados – era quase sempre uma prerrogativa dos brancos ricos. Os
setores subalternos, formados pela imensa população (...) contavam com
remédios caseiros, fórmulas feitas com ervas nacionais e outros produtos
recomendados ou administrados por curandeiros, mezinheiros, barbeiros e
sangradores.

Dessa forma, se um dos ideias da modernidade era evitar o “fracasso” e “vencer na


vida”, tais objetivos não prescindiam de uma boa constituição física e mental. Sem a saúde do
corpo – e mesmo com ela – os desafios cotidianos tornavam-se ainda mais difíceis de serem
superados. O receio de adoecer e morrer era uma constante. E esses temas foram privilegiados

374
EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmácias: Uma História Ilustrada da Farmácia no Brasil. Rio de
Janeiro. Editora Casa da Palavra, 2006, p.80.
206

como temática poética por Augusto dos Anjos. Ao mesmo tempo em que os saberes
científicos e modernos ofereciam antídotos e remédios, nem todos poderiam adquiri-los.
Não é por acaso que, com as transformações derivadas da chamada modernidade, o
tema da morte “tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo”,
afirma Ariès375. Isto porque, na medida exata em que alguns indivíduos conseguem aproveitar
diversos elementos positivos durante suas vidas, a consciência de sua própria finitude pode
atrapalhar essa fruição, mesmo que, em parte, os sujeitos fiquem mais resignados ao deixar
como herança à seus filhos o patrimônio que conseguiram acumular.
No soneto “Vozes da Morte”376, publicado em 1909 no jornal paraibano O Comércio,
e republicado no “Eu”, essa presença contínua da morte é ressaltada. A atenção se volta ao
corpo e seus sinais:

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,


Tamarindo da minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nevrura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta é a noite dos Vencidos!


E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultra-fatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!


E assim, para o Futuro, em differentes
Florestas, valles, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,


Pelo muito que em vida amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

A temática do indivíduo “vencido” retorna nas rimas do segundo quarteto. O soneto


faz referência ao tamarindo que existia no engenho onde o poeta morava, no interior da
Paraíba. A morte atinge tanto a árvore, quanto o eu lírico. O corpo, mais uma vez, é apontado
como o portador dos signos da morte iminente (“E a podridão, meu velho! / E essa futura /
Ultra-fatalidade de ossatura”), associada ao envelhecimento do tronco do tamarindo.
Contudo, nesse soneto, ocorre a indicação de um horizonte de expectativa
minimamente positivo, haja vista que, se a morte é inevitável, se faz parte da vida, haveria
vida ainda, após a morte, na medida em que a árvore deixaria “herdeiros” através de suas
sementes, reforçando a ideia de vida, de criação, como subsequente à destruição.

375
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.61.
376
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.48.
207

Os sentidos presentes nesses versos aproximam-se do que Ariès denominou “morte de


si mesmo”. A consciência da própria finitude evidentemente não é uma percepção inédita,
somente realizada na modernidade. Contudo, é em meio à essas experiências históricas que tal
percepção se radicaliza, na medida em que o futuro ganha uma significação positiva, como
uma espécie de tempo no qual as promessas feitas e os projetos perseguidos serão realizados:
é um tempo no qual o indivíduo ainda estará vivo. A noção de “morte de si mesmo”, segundo
Ariès377, sugere uma modificação bastante sutil, mas não menos significante:

No espelho de sua própria morte, cada homem redescobria o segredo da sua


individualidade. Essa relação, entrevista pela individualidade Greco-romana
– mais especificamente pelo epicurismo – e logo a seguir, perdida, nunca
deixou depois de impressionar nossa civilização ocidental. O homem das
sociedades tradicionais, que era não só o da primeira fase da Idade Média
mas também o de todas as culturas populares e orais, resignava-se sem
grande dificuldade à ideia de sermos todos mortais. Desde meados da Idade
Média, o homem ocidental rico, poderoso ou letrado reconhece a si próprio
em sua morte – descobriu a morte de si mesmo.

Para além de suas qualidades estéticas e pelos sentidos históricos que carrega e
expressa, podemos dizer que uma força incômoda da poesia de Augusto dos Anjos é,
precisamente, transformar em versos – e não de uma maneira positiva – essa sensação
contínua de termos a morte não somente como horizonte final, mas como companheira
constante, cotidiana.
Na sexta estrofe de “Monólogos de uma Sombra”378, lemos: “Tal qual quem para o
proprio tumulo olha, / Amarguradamente se me antolha, /Á luz do americano plenilúnio, / Na
alma crepuscular de minha raça / Como uma vocação para a Desgraça / E um tropismo
ancestral para o infortúnio.”. É o túmulo que simboliza essa “vocação” para uma espécie de
“fracasso”, para a morte, pois ele é a “morada” final. O túmulo está no horizonte.
Vemos características presentes nos versos de Augusto dos Anjos que podem ser
associadas, em maior ou menor grau, àquelas quatro atitudes diante da morte conceituadas por
Ariès. Da “morte domada”, sua poesia apresenta a característica do “Et moriemur, morremos
todos.379”. A morte figura em seus versos como nosso horizonte, não sendo sugerida nenhuma
realidade espiritual que o supere. A reanimação/continuação da vida após a morte é
sobrenatural, mas não religiosa.

377
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.65.
378
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.06.
379
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.66.
208

Os modos pelos quais a poesia de Augusto dos Anjos coloca o leitor em contato com
imagens e sensibilidades sobre a morte e o morrer aproximam-se, ou se afastam, do conjunto
semântico de significados identificados por Phillipe Ariès em algumas das atitudes diante da
morte por ele analisadas e conceituadas.
As imagens poéticas de Augusto não somente afirmam que todos nós morreremos,
como reafirma que esse “horizonte coletivo” pode ser encontrado por nós individualmente,
possivelmente, no próximo instante que viveremos: “todos morremos”, “eu vou morrer”, a
qualquer instante. Isto, por si só, apresenta sensibilidades distintas, quando comparadas aos
estímulos derivados da temporalidade moderna, não por se afastar completamente dos
elementos presentes nesses estratos temporais modernos, mas, sim, por reapresentar, na
poesia, sensibilidades incômodas, inconvenientes, sobre as quais não se devia falar.

7.2 O Sentimento de Fracasso

A noção de “fracasso” não implica, necessariamente, numa existência improdutiva.


Isto significa que um sujeito que não conseguiu efetivar um plano ou projeto de vida pode vir
a considerar-se “fracassado”. Porém, mesmo indivíduos “produtivos” também podem
experimentar esse sentimento de “fracasso”. No soneto “Vencido”380, publicado em 1909, no
jornal A União, e incluído no “Eu”, vemos algumas imagens associadas à essa questão:

No auge da atordoadora e ávida sanha


Leu tudo, desde o mais prístino mytho,
Por exemplo: o do boi Apis do Egypto
Ao velho Nibelungen da Allemanha.

Accometido de uma febre estranha


Sem o escándalo phónico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabellos na montanha!

Desceu depois á gleba mais bastarda,


Pondo aurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vomito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário á bocca fria


O vencido pensava que cuspia
Na céllula infeliz de onde nasceu.

A insatisfação do personagem representado no soneto pode se aproximar do Fausto


goethiano. Leitor voraz, a cultura que supostamente possuía não lhe arrancou do peito a
“atordoadora e ávida sanha”. Novamente, é o corpo que sinaliza – e também é alvo do – o mal

380
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.93.
209

estar, mediante a “febre estranha”, a vontade ineficaz de gritar, de arrancar os cabelos. O


fracasso parecia acompanhar esse personagem e a revolta, simbolizada pelo ato de cuspir,
parecia ineficiente, pois retornaria à ele próprio.
As sensibilidades modernas estimulam, no indivíduo, uma atenção e um interesse
demasiado acerca da própria individualidade, fomentando a investigação/compreensão de seu
“eu”, de seu “ego”. Ao dialogarmos com Richard Sennet, podemos encontrar mais alguns
elementos que reforçam tanto essa perseguição desmedida acerca da própria individualidade,
um dos sintomas da modernidade, quanto outros elementos que nos permitem compreender
melhor aspectos próximos à noção de “fracasso”, comentada por Phillipe Ariès.
Segundo Sennet, os desdobramentos da modernidade implicaram numa relação
paradoxal entre as dimensões da vida pública e da vida privada. O nascimento, tanto da
psicologia, quanto da psicanálise, são indicativos de como a atenção sobre si mesmo passou a
demandar um estudo mais sistemático, assim como, demonstrou a complexidade que reside na
existência subjetiva dos sujeitos. Segundo Sennet381,

O eu de cada pessoa se tornou seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo


tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o
mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos
extremamente difícil chegar a um princípio privado, dar qualquer explicação
clara para nós mesmos e para os outros daquilo que são nossas
personalidades. A razão está em que, quanto mais privatizada é a psique,
menos estimulada ela será e tanto mais nos será difícil sentir ou exprimir
sentimentos.

Cabe relembrar que, ao contrário da poesia épica, essa busca incessante por expressar
a si mesmo é uma das características primeiras da poesia lírica. E essa dificuldade da qual fala
Sennet não deixa de se verificar nos diversos modos pelos quais o eu lírico explora-se,
expressa-se, apresenta-se ao outro, ao leitor.
A modernidade configura-se como uma sociedade individualizada e com tendências
individualistas. Seguindo esse caminho, o poeta reforça o olhar sobre si mesmo e sobre sua
individualidade, desbravando as dimensões mais profundas de seu eu lírico, o qual sempre
encontra dificuldade para se expressar. Um soneto de Augusto dos Anjos que segue nessa
trilha intitula-se “Vae Victis”382. Esse texto poético fora publicado somente no jornal
paraibano O Comércio, em 1905, não tendo sido republicado nem na primeira, nem na
segunda edição do “Eu”. O título do soneto faz alusão à frase latina “Ai dos Vencidos”:

381
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.16.
382
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.462.
210

A dor meu coração torça e retorça


E me retalhe como se retalha
Para escárnio e alegria da canalha
Um leão vencido que perdeu a força!

Sobre mim caia essa vingança corsa,


Já que perdi a última batalha!
E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,
A Dor meu coração torça e retorça!

Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!


Os vibriões, os vermes vis, os sapos
Encontrem nele pábulo eviterno...

Repositório de milhões de miasmas


Onde se fartem todos os fantasmas,
Primavera, verão, outono e inverso!

O “vencido” apresentado nesse soneto encontra-se subjugado de todas as formas.


Atingido por uma dor profunda, que toma como alvo seu coração e seu corpo, nenhuma
possibilidade de resistência é sugerida. A indicação dos males que atingem seu corpo reforça
os traços mais constantes de seus versos, a saber, a referência aos males orgânicos, biológicos,
corporais (“vibriões”, “vermes” e “miasmas”) que encontram/transformam seu próprio corpo
num ponto de apoio infindável.
Desse modo, as sensibilidades modernas estimulam essa atenção desmedida em
relação à própria individualidade, promovendo a busca por sua “garantia” (aquisição de
objetos ou participação em espaços “vitais” ao próprio indivíduo), assim como, a sua
apresentação ao outro, pelos mais variados modos, inclusive pela via da poesia. Na
perspectiva de Richard Sennet383

O narcisismo, no sentido clínico, diverge da ideia popular do amor de


alguém por sua própria beleza; (...) Assim, o narcisismo é uma obsessão com
“aquilo que esta pessoa, este acontecimento significam para mim”. (...) Essa
introjeção no eu, por estranho que possa parecer, impede a satisfação das
necessidades do eu; faz com que, no momento de se atingir um objetivo, ou
de se ligar a outrem, a pessoa sinta que “não é isto que eu queria”. Assim, o
narcisismo tem a dupla qualidade de ser uma voraz introjeção nas
necessidades do eu e o bloqueio de sua satisfação.

Nessa compreensão, a modernidade estimula a perseguição por si mesmo e a


apresentação de uma imagem desse si mesmo ao outro. Todavia, a temporalidade moderna,
devota da aceleração e da novidade, impõe à esse indivíduo que persegue a si mesmo uma
constante perda de valor, haja vista que o “novo”, o futuro, deve ser sempre buscado, na

383
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.21.
211

medida em que é melhor do que o presente e o passado. Talvez nessa dinâmica resida essa
“dupla qualidade” da qual fala Sennet, que sugere que o indivíduo deva conhecer-se e
realizar-se ao mesmo tempo em que sugere, também, a necessidade de uma “novidade”
contínua, o que pode colocar num terreno instável a busca empreendida pelos indivíduos.
Essa instabilidade na busca por si mesmo, estimulada pela modernidade e pelo ideal de
temporalidade nela vigente, pode ser correlata ao desejo contínuo do poeta de, através de seu
“eu lírico”, expressar-se, apresentando diversas faces de si mesmo ao leitor, explorando, desse
modo, os traços de historicidade presentes na sociedade que o cerca.
Na poesia de Augusto dos Anjos, podemos indicar mais dois textos poéticos que
operam com a imagem do “vencido”, intitulados, respectivamente, “História de um Vencido”,
publicado no jornal O Comércio, em 1905, não colhido em livro, e “Viagem de um Vencido”,
cuja publicação ocorreu apenas na segunda edição do “Eu” (1920). Ambos textos poéticos são
mais longos do que a média dos textos por ele escritos e publicados. O primeiro possui
dezesseis estrofes, enquanto que o segundo, bem mais longo, conta com trinta estrofes. No
poema “História de um Vencido”384, dividido em duas partes, vemos circunstâncias vividas
por um velho que sente a chegada de seu último instante. Vejamos suas cinco estrofes iniciais:

Sol alto. A terra escalda: é um forno. A flama oriunda


Da solar refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o mar e por tudo se estende
E arde em tudo, mordendo a atra terra infecunda.

E o velho veio para o labor cotidiano,


Triste, do alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para aí, desoladamente
A revolver da terra o atro e infecundo arcano.

Por seis horas seu braço empenhado na luta,


Fez reboar pelo solo, alta e descompassada
A dura vibração incômoda da enxada,
Rasgando, do agro solo, a superfície bruta.

Mas o braço cansou! Trabalhou... e o trabalho


– Do Eterno Bem motor principal e alavanca –
Arrancara-lhe a Crença assim como se arranca
De um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!

Sangrou-lhe o coração e a saudade da Aurora!


– O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido viu que um abismo se erguera
Entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!

384
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
212

O sentimento de “fracasso” é sinalizado, antes de qualquer coisa, pelo cansaço de seu


braço. Separando a juventude e a velhice, o vigor e o cansaço, o passado e o presente, o
“Velho” vê erguer-se um “abismo” “entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!”
Esse abismo simboliza a chegada da morte, como podemos verificar na sexta estrofe385: “Pois
havia de assim, nesta maldita senda / De sofrimento ignaro em sofrimento ignaro / Ir
caminhando até tombar sem um amparo / No tremendo marnel da Desgraça tremenda?!”.
O sentimento de “fracasso”, portanto, está associado, no presente, à falta de vigor e
juventude, outrora vigente, mas, naquele momento, transformada em passado. E o futuro, a
expectativa, seria, justamente, evitar a queda no abismo mortal. Na segunda parte do poema,
já não há mais luz do dia. É noite, período no qual tudo se torna incerto. Vejamos mais quatro
estrofes386 desse poema

Noute! O silêncio vinha entrando pelo mundo


E ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleando
Foi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas fatais dum precipício fundo!

Quis um momento ainda olhar para o Passado...


E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreo
Horrorizado viu, como num cemitério
Cadáveres de um lado e cinzas de outro lado!

De súbito, avistando uma frondosa tília


Julgou, louco, avista a Árvore da Esperança...
E bateram-lhe então de chofre na lembrança
A casa que deixara, os filhos, a família!

Não morreria, pois! Somente morreria


Se da Vida, sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era viver! Portanto, viveria!

Como temos analisado, a noção de “fracasso”, a sensação de insatisfação que pode


recair sobre o indivíduo na modernidade está atrelada aos mais diversos fatores. No caso em
tela nos versos, o fracasso está relacionado à velhice, mas, principalmente, à morte. O
personagem parece sentir mais pelos que deixará (esposa e filhos) do que pela própria morte,
pois, como afirma, se na vida ele “...pisasse os trilhos” sozinho, talvez aceitasse de maneira
mais resignada seu destino."

385
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
386
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
213

Entretanto, a morte constitui-se como fenômeno inevitável. E este talvez seja o


elemento causador da sensação de “fracasso” mesmo entre os indivíduos que conseguiram
adquirir bens, construir um patrimônio, pois a morte seria, precisamente, o momento de
ruptura que separaria o morto de usufruir sua vida confortável e segura.
A perspectiva de que a morte pode ocorrer a qualquer instante não assusta tanto os
indivíduos quanto a tomada de consciência de que se tem pouco tempo de vida. No poema,
em sua décima segunda estrofe387, ocorre a queda no abismo: “E aos tropeços, trombando, o
Velho caminhava... / Caminhava, e a sonhar, bêbado de miragem, / Nem viu que era chegado
o termo da viagem, / E amplo, a rugir-lhe aos pés, o precipício estava.”
A casualidade da chegada da morte adiciona um ingrediente a mais na sensação de
“fracasso”. Os indivíduos, dependendo de sua condição, podem tentar adiar o instante final,
mediante toda sorte de práticas ou hábitos. Contudo, ainda que diversos cuidados possam ser
tomados, a inevitabilidade anda de mãos dadas com a imprevisibilidade.
Na última estrofe388 do poema, é ressaltado o caráter particular, individual, da morte,
haja vista que o personagem parece ter morrido, ao cair nas águas de um rio (que também
pode representar o rio do tempo, uma das imagens metafóricas associadas ao fluxo da
temporalidade), longe dos olhares de qualquer pessoa: “E o cadáver, a toa, a flux d‟agua,
flutua” / Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta... / Somente entre a negrura atra da
terra poenta / Alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!”
Antes de analisarmos mais alguns textos poéticos, e dialogando, ainda, com Richard
Sennet, podemos trazer à baila outra hipótese acerca desse sentimento de “fracasso”, ou seja,
se esse sentimento, nas sociedades modernas e liberais, não teria se tornado um temor mais
comum entre os setores sociais intermediários, entre a classe média, do que entre as elites e os
setores subalternizados.
É certo que a morte, as doenças, os males que afligem o corpo e a “alma”, podem
tomar como alvo indivíduos situados em qualquer posição no campo social. Contudo, se entre
as elites as possibilidades de tratamento efetivo ou preventivo podem ser maiores ou mais
frequentes, e, se entre as camadas subalternas tais tratamentos eram, provavelmente, mais
difíceis, fazendo da morte e das doenças uma presença mais constante, é possível que, entre a
classe média emergente, os temores e os cuidados com o corpo e com a “alma” exigissem
mais atenção. Isto porque, em tese, os males e doenças não seriam, necessariamente, tão

387
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
388
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994. (Organizada por Alexei
Bueno), p.470.
214

presentes quanto nos setores sociais mais pobres, assim como, os recursos para cuidados e
tratamentos não eram tão abundantes quanto entre as camadas mais privilegiadas.
Caso voltássemos nossos olhos para alguns aspectos da biografia de Augusto dos
Anjos, podemos situá-lo, não entre os setores mais pobres, assim como, também não podemos
colocá-lo entre as camadas privilegiadas, haja vista que sua família entrou em falência
patrimonial.
O poeta, sua esposa e filhos (ao contrário de seus outros irmãos que conseguiram fazer
“bons casamentos” – leia-se: casaram com mulheres oriundas de famílias ricas) podem ser
situados na “corda bamba” dos setores sociais intermediários. Não conseguiu viver de sua
poesia, atuava como professor em escolas cariocas, procurava alunos para aulas particulares e,
perto do fim de sua vida, fora nomeado diretor escolar, em Leopoldina, cidade mineira, cargo
esse que ocupara alguns meses antes de falecer.
Segundo Richard Sennet, é com o adentrar no século XX que surgiria esse novo setor
social intermediário, essa nova classe média, que ganharia um status mais identificável,
mesmo que com fronteiras mal definidas, na medida em que a demanda por formas de
trabalho mais especializadas, e não necessariamente braçais, manuais, passava a recrutar um
número progressivo de pessoas. A “classe média” seria constituída, segundo Sennet389

[Por] pessoas que fazem trabalho quase-técnico, quase-funcional: (...)


Nenhum deles controla o uso de suas próprias especializações, nem realiza
tarefas tão rotineiras e funcionais que qualquer pessoa das ruas pudesse
imediatamente realizar; os membros dessa categoria especial das classes
moyennes ainda não têm uma identidade de grupo, nenhuma cultura de
classe onde se retratar a si próprios. São uma classe de recém-chegados.

Esses “recém-chegados” dos quais fala Sennet, portanto, poderiam ser oriundos tanto
da classe operária, que, por alguma razão, tenham conseguido ascender socialmente, quanto
das antigas e tradicionais camadas privilegiadas que não conseguiram manter seu status, tal
qual foi o caso de Augusto dos Anjos e sua família. Não se trata, aqui, de apontar esse fator
como causa para a estética e a temática de sua poesia como um todo.
Entretanto, aquele sentimento de “fracasso” do qual falou Ariès e esse “narcisismo”
comentado por Sennet podem ser associados à temática do “vencido”, inclusa em algumas das
poesias de Augusto dos Anjos. O “vencido” tematizado por seus versos não é,
necessariamente, alguém que tenha perdido o emprego ou a fortuna acumulada/herdada.

389
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.399.
215

É, antes disso, um indivíduo que sabe que vai morrer, independentemente de já estar
doente, ou não, que vê a aproximação fatídica e inevitável da morte através da progressiva
sinalização emitida não somente por sua aparência, mas, também, pelo “mal funcionamento”
de suas funções orgânicas, vitais. É alguém que vê seu reflexo no espelho envelhecer, que vê
doenças tomarem de assalto a saúde de seu corpo. É alguém que vê, em suma, um processo de
degeneração natural e inevitável. É alguém que sente, em si mesmo, o desgaste derivado da
passagem do tempo.
Um último poema de Augusto dos Anjos que podemos discutir, e que tematiza essa
noção de “vencido”, o qual, como indicamos, fora publicado unicamente na segunda edição
do “Eu”, em 1920, intitula-se “Viagem de um Vencido”390. É um dos seus poemas mais
longos, contando com trinta estrofes. Em suas três primeiras estrofes, vemos que o eu lírico
caminha numa atmosfera mais do que sombria:

Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio.


E, emquanto eu tropeçava sobre os paus,
A effigie apocalyptica do Cháos
Dançava no meu cérebro sombrio!

O céu estava horrivelmente preto


E as arvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!

Sósinho, uivando hoffmaniacos dizeres


Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.

Toda a atmosfera ressalta as características de um lugar, ou estado de consciência,


soturno. O eu lírico parece carregar consigo a fonte do mal que (pres)sente (“a efígie
apocalíptica do Caos”). São ressaltadas como elemento sombrio as imagens do corpo
“descarnado”, figurado pelo corpo-esqueleto, em face do qual as árvores se admiravam. O
poeta faz ainda alusões ao escritor alemão Ernest Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822),
o qual publicou textos de literatura fantástica, nos quais a linguagem sombria predominava.
Os versos ressaltam, também, a condição de individualidade que parece precondição
(tal como a imersão na noite mais escura) para a aquisição de uma percepção de tal ordem que
permitisse desvelar a “...intimidade noumenal dos seres”, ou seja, uma realidade (que se)

390
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.222.
216

oculta, tema da estética simbolista. Vemos na quarta e quinta estrofes391, a reincidência de


imagens que se aproximam dessa noção de “fracasso” com a qual estamos dialogando:

Eu procurava, com uma vela accesa,


O fecto original, de onde decorrem
Todas as moleculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.

Mas o que meus sentidos apprehendiam


Dentro da treva lúgubre, era só
O occaso systemático do pó
Em que todas as fórmas humanas se sumiam!

A imagem da luz, simbolizada pela chama da vela, é a “ferramenta” utilizada para o


desvelar da realidade oculta que se visa compreender. Contudo, a ideia da morte presente não
somente é ressaltada na quarta estrofe, como também na quinta: primeiro, pela referência às
“moléculas que morrem” como exigência natural das “transubstanciações da natureza”,
retomando a noção de criação a partir da destruição. Do mesmo modo, vemos a imagem do
“pó”, já discutida no poema “Místérios de um Fósforo”. Entre a oitava e a décima estrofes 392,
podemos perceber o indivíduo testemunhando uma “realidade” que o supera:

Dentro de mim, como num chão profundo,


Choravam, com soluços quasi humanos,
Convulsionando Céus, almas e oceanos
As fórmas microscópicas do mundo!

Era a larva agarrada a absconsas landes,


Era o abjecto vibrião rudimentar
Na impotencia angustiosa de falar,
No desespero de não serem grandes!

Vinha-me á bocca, assim, na ancia dos párias,


Como o protesto de uma raça invicta,
O brado emocionante de vindicta
Das sensibilidades solitárias!

O indivíduo, em muitas das imagens poéticas de Augusto dos Anjos, apesar de ser o
centro ativo da percepção, da convergência e divergência em relação ao que acontece na
atmosfera poética que o cerca, é considerado um ser “menor”. Existiria todo um complexo de
fenômenos que ultrapassam o indivíduo: tais fenômenos seriam ciclos naturais de criação e
destruição, movimentações siderais, reações físico-químicas, em face das quais o indivíduo se
equipara ao verme, à larva, ao vibrião, às “formas microscópicas” que se desesperam com a
possibilidade “...de não serem grandes”.
391
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.223.
392
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.223-224.
217

O indivíduo seria testemunha de fenômenos que ultrapassam sua existência e encarna


em seu ser as forças conflitantes que parecem inscritas na própria realidade, seja aquela dos
fenômenos observáveis, empíricos, seja aquela que se ocultaria nas instâncias mais íntimas,
tanto dos indivíduos, quanto do “mundo” circundante. Vemos isso na décima terceira e na
393
décima quarta estrofes : “ Eu, perdido no Cosmos, me tornara / A assembléa belligera
malsã, / Onde Ormuzd guerreava como Ahriman, / Na discordia perpétua do sansára / (...) Já
me fazia medo aquella viagem / A carregar pelas ladeiras tétricas, / Na ossea armação das
vértebras symetricas / A angústia biológica da engrenagem!” Existe nos indivíduos princípios
opostos (Ormuz-Ariman), assim como, a natureza cíclica (o sansara budista). Em “Viagem de
um Vencido” há um monólogo de uma “entidade” que personifica esse processo caótico de
transformismo. Entre a décima nona394 e a vigésima terceira estrofe, lemos:

Mas das arvores, frias como lousas,


Fluia, horrenda e monótona, uma voz
Tão grande, tão profunda, tão feroz
Que parecia vir da alma das cousas:

<<Se todos os phenomenos complexos,


Desde a consciencia á antithese dos sexos
Vêm de um dynamo fluídico de gaz,
Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade botânica das algas
De que grandeza não será capaz?!

Quem sabe, emquanto Deus, Jehovah ou Siva


Occulta á tua força cognitiva
Phenomenalidades que hão de vir,
Se a contração que hoje produz o chôro
Não ha de ser no século vindouro
Um simples movimento para rir?!

Que especies outras, do Equador aos pólos,


Na prisão millenaria dos subsolos,
Rasgando avidamente o humus malsão,
Não trabalham, com a febre mais bravia,
Para erguer, na ancia cósmica, a Energia!
A´ ultima etápa da objectivação?

É inútil, pois, que a espiar enigmas, entres


Na chimica genésica dos ventres,
Porque em todas as cousas, afinal,
Craneo, ovario, montanha, arvore, iceberg,
Tragicamente, deante do Homem, se ergue
A esphinge do Mistério Universal!

393
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.224.
394
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.226.
218

A partir desse trecho do monólogo, podemos perceber um sentido atribuído à esse


conjunto de fenômenos, os quais, são geradores de profunda tristeza, na medida em que
implicam na dissolução, na degeneração e morte daquilo que é vivo. O aspecto trágico e
perturbador decorre do fato de que a ocorrência desses processos incluem a anulação da
existência dos indivíduos, ou seja, o eu lírico sabe que desaparecerá e que isto em nada afeta,
para o mal ou para o bem, a energia que impulsiona esse movimento criativo-destrutivo.
Para a entidade enunciadora desse monólogo, personificada na “árvore”, o que seria
destruição, na perspectiva do indivíduo, poderia ser prenúncio da criação de outros
fenômenos, como vemos nas linhas finais da vigésima primeira estrofe: “Se a contração que
hoje produz o choro / Não há de ser no seculo vindouro / Um simples movimento para rir?!”.
Entretanto, numa cultura e numa sociedade que colocou a noção de “individualidade”
numa espécie de altar, a ocorrência de um conjunto de fenômenos que, em sua emergência e
em seu desenvolvimento, anule a existência do indivíduo como um de seus possíveis
desdobramentos, não parece algo a ser desejado.
Na sensibilidade moderna, o indivíduo deve ser um tipo de “protagonista”,
sustentando uma imagem de si para os outros. Deve narrar/expressar o modo como ele “sente”
as coisas que o cercam, como sugeriu Richard Sennet, ao ponderar sobre a dinâmica de uma
sociedade moderna narcisista. Caso o indivíduo não consiga realizar-se (ou perseguir novos
projetos), pode definir a si mesmo como “fracassado”. A anulação da própria existência é
assustadora. Vemos essas sensibilidades nas quatro395 estrofes finais:

Na avançada epileptica dos medos,


Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,
A voz cavernosíssima de Deus
Reproduzida pelos arvoredos!

Agora, astro decrépito, em destroços,


Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,
Tinha a necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos!

Restava apenas na minha alma bruta


Onde fructificára outr‟ora o Amôr
Uma volicional fome interior
De renuncia budhistica absoluta!

Porque, naquella noite de ancia e inferno,


Eu fora, alheio ao mundanario ruído,
A maior expressão do homem vencido
Deante da sombra do Mysterio Eterno!

395
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.228.
219

Esse processo “cosmo-agônico”, na definição de Lúcia Helena, cujo emblema é a


morte do indivíduo, assim como, de qualquer espécie viva, ainda que aproximado à uma
dimensão simbólica religiosa (como nas referências à Deus, Jeová e Shiva), parece encontrar-
se para além das religiões e das próprias divindades, as quais podem até parecer avatares
desse processo dinâmico, dialético, que ultrapassa e faz mover a existência.
Como indicamos alguns parágrafos atrás, a noção de “fracasso”, que emerge
juntamente com a ideia de modernidade “narcísica”, nos versos de Augusto dos Anjos, está
relacionada com a morte, traço mais evidente, e com o “Mistério Eterno”, em face do qual o
indivíduo, que na modernidade deve ser o protagonista, encontra-se subordinado.

7.3 Corpos, Doenças e Outras Metáforas

Podemos afirmar que, entre as sensibilidades modernas, na virada para o século XX,
os cuidados com o corpo, através do uso de remédios e recomendações derivadas dos saberes
médicos, científicos e da sabedoria popular, estavam na ordem do dia. Os indivíduos
procuravam manter seus corpos saudáveis, visando evitar a contração de doenças de toda
sorte, potencializando seu bem-estar. Na concepção da ensaísta Susan Sontag396,

A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa.


Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra
no reino da doença. Embora todos prefiram usar somente o bom passaporte,
mais cedo ou mais tarde cada um de nós será obrigado, pelo menos por um
curto período, a identificar-se como cidadão de outro pais.

A observação cotidiana acerca do próprio corpo, investigando a possível existência de


qualquer doença, física ou não, pode aproximar-se de um traço inerente à atitude em face da
denominada como “morte de si mesmo”: a doença, sobretudo, quando grave/incurável,
funciona como a percepção de uma espécie de “sinal”, como uma “advertência”.
Segundo Ariès397, através da identificação de determinados tipos de doenças, o
indivíduo “sabe”, ou pressente, que vai morrer em breve. Ciente desse sinal, os indivíduos
podem tomar as devidas providências necessárias ao seu falecimento: comprar objetos
relacionados à morte iminente (caixão, mortalha, um jazigo no cemitério), como também,
podem tentar desfazer qualquer intriga com desafetos. A doença, tal como Susan Sontag
aponta, funciona como uma metáfora: pode ser vista não somente como um sinal de que se vai

396
SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984. p.05.
397
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.31.
220

morrer, mas também, como um sinal de que se deve mudar a forma como se vive, além de
poder significar, em outros casos, uma espécie de “castigo”.
A poesia de Augusto dos Anjos dialoga com sensibilidades relacionadas à morte, já
em voga nos séculos séculos XVI e XVII, sobretudo, com a imagem do corpo/cadáver
decomposto. Phillipe Ariès398 assinala uma presença progressiva dessa característica, nas artes
e na literatura, comentando ainda que:

Os poetas tomam consciência da presença universal da corrupção. Ela está


nos cadáveres mas também no decurso da vida, nas “obras naturais”. Os
vermes que comem os cadáveres não vêm da terra, mas do interior do corpo,
de seus “licores” naturais. (...) A decomposição é o sinal do fracasso do
homem, e neste ponto reside, o sentido desse macabro que faz desse um
fenômeno novo e original.

Nesse sentido, a busca pela “cura” ou pelo adiamento da contração de doenças torna-
se um desejo constante para indivíduos ansiosos por aproveitarem, dentro das limitações de
suas condições, as benesses da modernidade. Na poesia de Augusto dos Anjos, são inúmeras
as representações do corpo que padece, que apodrece, que marca sua cidadania nesse outro
“reino” do qual fala Susan Sontag. No soneto “Apóstrofe à Carne”399, vemos algumas
imagens acerca do sentimento do corpo

Quando eu pego nas carnes de meu rosto,


Presinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o húmus necróphago estraçalha,
Diaphragmas, decompondo-se, ao sol posto.

E o homem – negro e heteróclito composto,


Onde a alva flamma psychica trabalha,
Desaggrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de moléculas bastardas,


Comquanto em flammeo fogo ephemero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dóe-me ver, muito embora a alma te accenda,


Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para meus filhos!

O eu lírico representa a percepção no corpo dos sintomas da morte iminente e


inevitável. Ressalta no “homem” sua constituição heterogênea (heteróclita) a partir da
dualidade entre a consciência (a “flama psíquica”) e o corpo, o qual, ao desagregar-se e

398
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.59.
399
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.172.
221

deteriorar-se, deixa vestígios na mortalha que o envolve e no “húmus necrófago que o


estraçalha”. A dissolução do corpo é associada à noção de “podridão”. No futuro, enquanto
horizonte de expectativa, a podridão seria deixada como única herança possível à prole
descendente.
O espaço urbano carioca, nos primeiros anos do século XX, no qual Augusto passou a
viver após sua chegada, em 1910, apresentava-se como um local que celebrava a vida
moderna, em sua velocidade e dinamicidade. A percepção acerca dos espaços urbanos nos
quais transitou deve ter marcado as imagens enunciadas pelo seu eu lírico.
O historiador brasileiro Nicolau Sevcenko foi sensível ao perceber essas
transformações quando se propôs analisar os espaços do Rio de Janeiro e os seus sujeitos,
anônimos ou não. Por exemplo, ao problematizar a materialidade desse espaço urbano,
Sevcenko400 afirma que:

O novo cenário suntuoso e grandiloqüente exigia novos figurinos. Daí a


campanha da imprensa, vitoriosa em pouco tempo, para a condenação do
mestre-de-obras, elemento popular e responsável por praticamente toda
edificação urbana até aquele momento [anos iniciais do século XX], que foi
defrontado e vencido por novos arquitetos de formação acadêmica. Ao estilo
do mestre-de-obras, elaborado e transmitido geração a geração desde os
tempos coloniais, constituindo-se ao fim em uma arte autenticamente
nacional, sobrepôs-se o Art-Noveau rebuscado de fins da Belle Époque.

Dessa forma, na modernização que se consolidava nos principais centros urbanos


brasileiros, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, os saberes “modernos”, derivados da
academia, dos centros universitários, entravam em choque com os saberes e práticas
populares, seja em relação às formas de construção, seja acerca das práticas medicinais
caseiras, como veremos mais adiante. Além disso, essas sensibilidades modernas também
instituíam novas formas de perceber não somente a morte, como também, o próprio corpo.
Inicialmente, o olhar sobre o “si mesmo” permanecia externo, ou seja, somente os
médicos, com seus instrumentos e técnicas, seriam capazes de perscrutar as sendas mais
íntimas de nosso organismo. Em paralelo à isso, foi se tornando cada vez mais comum que os
próprios indivíduos se engajassem nessa observação sobre si. Acerca desse primeiro
momento, no qual o olhar externo do médico predominava, Vigarello401 afirma:

A medicina do século XIX, mais do que nunca, ilustra um corpo


funcionando à revelia do indivíduo, ela sugere um “de dentro”, cujos

400
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.31.
401
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.131.
222

enfraquecimentos, estados sucessivos, são ignorados pelo doente e apenas


percebidos pelo médico. A bem da verdade, nada aqui é surpreendente: a
velha “exterioridade corporal nunca abandonou realmente a sua estranheza.
Uma “mecânica” orgânica existe, mas que recusa toda sujeição à vontade e
ao afeto. A “nova” medicina apenas impõe esta constatação com um
inigualável rigor. O “de dentro” visto pelo médico não é o experimentado
pelo paciente. O “físico” pura e simplesmente, e mais do que nunca
permanece independente de um “si”. (Grifo nosso).

A dualidade inicial entre o “si” e o corpo, já indicada, pode ser vista nos versos de
Augusto dos Anjos, quando associa a consciência com a imagem de uma chama (a “flama
psíquica”) que habita o corpo. Este é animado por uma espécie de “mecânica orgânica”, a
“orgânica batalha” para o eu lírico, cujo movimento independe de nossa vontade.
Nos versos de Augusto dos Anjos, essas sensibilidades sobre o corpo são articuladas
com a percepção do mundo objetivo, do espaço urbano, como podemos verificar no longo
poema “As Cismas do Destino”. Neste poema, que conta com 105 estrofes, a linguagem
fúnebre se verifica novamente. Outras imagens poéticas reforçam a ideia do corpo como
organismo doente, que padece. Em seus versos, o eu lírico transita por um tipo de cidade.
Como um flâneur pelos espaços urbanos, encontra seus habitantes. Inicialmente, nesse
poema402, o caminhar desse eu lírico começa na cidade de Recife:

Recife. Ponte Buarque de Macedo.


Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com minha sombra magra,
Pensava no Destino e tinha medo!

Na austera abóbada alta o phósphoro alvo


Das estrellas Luzia. O calçamento
Saxeo, de asphalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um cráneo calvo.

O eu lírico parece pressentir a proximidade da morte a partir de alguns sinais


verificados em seu corpo, por exemplo, ao observar sua “sombra magra”. Sua percepção de si
e do mundo confunde-se, misturando esta sensação da presença iminente da morte em si
mesmo com a materialidade das ruas e calçadas. O “destino” causa medo, o que vai numa
direção oposta às sensibilidades da temporalidade moderna, as quais atribuem ao futuro um
significado mais positivo do que negativo.
É possível afirmar que, ao identificarmos traços de uma noção de temporalidade no
poeta/eu lírico, não significa que não haja um futuro, mas, sim, que esse futuro pode ser um
devir no qual a presença/ausência dos indivíduos não importa, não é uma conditio sine qua

402
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.23.
223

non. No poema, o próprio calçamento por onde andava “copiava a palidez de um crânio
calvo”. Há a referência à casa do Agra403, a primeira casa funerária estabelecida na cidade do
Recife, por volta de 1850 e que encerrou suas atividades em 2004. Entre a oitava e a décima
estrofes404, nesse mesmo poema, lemos:

Livres de microscopios e escalpellos,


Dansavam, parodiando saraus cynicos,
Billiões de centrossomas apollinicos
Na camara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os glóbos oculares,


Apregoando e alardeando a côr nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível


Dessa fatalidade egualitaria,
Que fez minha família originária
Do antro daquella fábrica terrível!

O processo dissolutivo, o transformismo fágico, portanto, manifestava-se


intrinsecamente em todos os espaços e em todos os sujeitos, inclusive naqueles que ainda não
haviam abandonado a forma fetal. Esse processo é reafirmado como um “apriorismo”, ou
seja, como se tudo que existisse tivesse como finalidade primeira a própria extinção. O corpo
do eu lírico sinalizava esse processo decadente. Entre a décima nona e vigésima oitava
estrofes405, ao fazer menção à tuberculose, encontramos um traço que reforça a versão de que
Augusto dos Anjos havia morrido em decorrência dessa doença:

Na ascenção barométrica da calma,


Eu bem sabia, anciado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio em minha alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse


Golphava, á guisa de acido resíduo,
Não era o cuspo de um só indivíduo
Minado pela tísica precóce.
(...)
E a saliva daquelles infelizes
Inchava, em minha bocca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda parte,
Ia engolindo, aos poucos a hemoptisis!

403
Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-
urbana/2013/08/11/interna_vidaurbana,455318/primeira-funeraria-do-recife-se-recusa-a-descansar-em-
paz.shtml Acesso: 20 de Setembro de 2017.
404
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.23.
405
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.25-26.
224

Na alta allucinação de minhas scismas,


O microcosmos líquido da gotta,
Tinha a abundância de uma artéria rôta,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado maximo da magua!


Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujos caudaes meus beiços regam,


Sob a fórma de mínimas camandulas,
Bemditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente te segregam!

Escarrar de um abysmo n‟outro abysmo,


Mandando para o Céu o fumo de um cigarro,
Ha mais philosophia neste escarro
Do que em toda a moral do christianismo!

O eu lírico afirma sentir no âmago de seu peito uma “população doente” que tossia
irremediavelmente. É sugerido que a secreção expelida durante a tosse, derivada dessa
doença, não pertence apenas ao indivíduo, mas à toda uma raça. A imagem parece sugerir o
aspecto coletivo e, provavelmente, social, da enfermidade então representada. Talvez seja um
indício (não tão bem compreendido pelos leitores/receptores) de que não era o poeta, o sujeito
que escreve, que padecia dessa doença, mas, sim, o eu lírico, o qual compartilhava esse mal
conjuntamente com a sociedade/raça à que pertence.
Conforme Susan Sontag, a tuberculose era uma patologia completamente envolta em
metáforas e mistérios, sobretudo, enquanto não se possuía meios eficazes para combatê-la
e/ou para curá-la. Sobre essa questão, Sontag406 comenta:

As fantasias inspiradas pela tuberculose no século passado, e pelo câncer,


agora, constituem reflexos de uma concepção segundo a qual a doença é
intratável e caprichosa – ou seja, um mal não compreendido numa era em
que a premissa básica da medicina é a de que todas as doenças podem ser
curadas. Tal tipo de enfermidade é misterioso por definição. Pois enquanto
não se compreendeu a sua causa, e as prescrições dos médicos mostraram-se
ineficazes, a tuberculose foi consederada uma insidiosa e implacável ladra de
vidas. (...) Embora o modo mistificador da doença seja colocado contra um
cenário [atual] de novas expectativas, a enfermidade em si (outrora a
tuberculose, hoje o câncer) desperta tipos de pavor inteiramente obsoletos.

Ainda sobre o caráter metafórico dessa doença, Sontag comenta que não era apenas o
contato com aqueles que dela padeciam que era uma espécie de transgressão. O próprio ato de

406
SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984, p.05.
225

dizer no nome da doença – na época tuberculose, hoje o câncer – só podia ser feito, em várias
circunstâncias, mediante toda sorte de eufemismos, diminutivos ou denominações figurativas.
A ocorrência da morte precoce de Augusto dos Anjos, em 1914, quando mal
completara trinta anos, terminou se constituindo como um forte elemento para a construção de
sua mitologia pessoal enquanto poeta. Pela inclusão contínua de poemas que tematizavam a
morte, o corpo morto ou doente, compiladas no “Eu”, pensou-se que seu livro de versos
consistia numa metáfora de sua personalidade sombria. Passou-se, então, e com certa
regularidade, a “coroar” a morbidez de sua personalidade atribuindo-lhe a tuberculose como
sendo a causa mortis que o vitimou. Dessa forma, a versão recorrente de que o poeta morreu
em decorrência dessa doença tornou-se um verdadeiro lugar comum.
Em meados de 1914, Augusto dos Anjos mudara-se com esposa e filhos, do Rio de
Janeiro para a cidade mineira de Leopoldina, visando ocupar o cargo como diretor de um
grupo escolar. Sua morte, ocorrida em 12 de novembro daquele ano, terminou repercutindo
nos jornais de ambas cidades.
O jornal A Época407 informou, com certo atraso, no dia 12 de novembro de 1914, que
o poeta estava “gravemente enfermo”, desejando-lhe melhoras. Esse mesmo jornal408, no dia
seguinte, atualizou a notícia, informando a ocorrência da morte numa coluna. A Gazeta de
Leopoldina, no dia seguinte ao falecimento, publicou três sonetos de Augusto, tendo sido
publicado, nesse mesmo jornal, no dia 24 de novembro do mesmo ano, uma nota409 de
condolências por parte do governo do Estado.
O primeiro elemento que reforçaria o rótulo de “poeta da morte” fora a crítica literária
escrita por Antônio Torres410, no periódico carioca Jornal do Commércio, no dia 27 de
dezembro de 1914, intitulada “O Poeta da Morte”. Nessa crítica, Torres inclui Augusto dos
Anjos entre os “poetas da morte” tal como Baudelaire. Ressalta a inclusão dos termos técnicos
e científicos, assim como, a recorrência do tema da “morte” e a ausência do tema do “amor” e
de temas “eróticos” em seus versos. Além disso, atribui à Augusto, senão o ateísmo, uma
forma de agnosticismo. Segundo Torres, “Eis porque lhe chamo <<poeta da morte>>, porque
não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.”.
Não é difícil perceber que Antônio Torres parte de uma perspectiva que associa com
certa rapidez o sujeito que escreve às imagens e temas expressos em seus versos. A existência

407
A ÉPOCA, 12 de Novembro de 1914, p.03.
408
A ÉPOCA, 13 de Novembro de 1914, p.02
409
MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: Uma Biografia. João Pessoa. Editora Ideia, 2001, p.201.
410
TORRES, Antônio. O Poeta da Morte. In: Jornal do Commércio. Rio de Janeiro, 27 de Dezembro de 1914,
p.05
226

de outras temáticas poéticas exploradas por Augusto dos Anjos, com base nas discussões já
apresentadas, tais como aquelas derivadas de sua apropriação com o romantismo, por
exemplo, reafirmam as distâncias que separam o sujeito que escreve do eu lírico.
Quando da elaboração da segunda edição do “Eu”, o prefácio411 escrito por Órris
Soares (1884-1964), organizador desta edição, reforça outros tópicos que seriam associados à
imagem de Augusto dos Anjos enquanto “poeta da morte”:

Foi magro o meu desventurado amigo, de magrém esquálida – faces


reentrantes, olhos fundos, olheiras violaceas e testa descalvada. Sua bocca –
um córte macabro – fazia a catadura crescer de soffrimento, por contraste do
olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demonio torturado.
(...) Os cabellos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme
trigueira. A clavícula arqueada. No omoplata, o corpo estreito quebrava-se
numa curva para deante. Os braços pendentes, movimentados pela dansa dos
dedos, semelhavam duas rabecas tocando a allegoria dos seus versos. o andar
tergivesante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que
lhe agitavam o cerebro. (...) Essa physionomia, por onde erravam tons de
catastrophe, traia-lhe a psychê. (...) Feriu-me de chofre o seu typo excêntrico
de passaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva.

Essa descrição de sua fisionomia, portanto, reforça a ideia de uma pessoa soturna,
sombria que, por conta de sua personalidade, só poderia escrever versos macabros, tais como
aqueles presentes em seu livro. Vão sendo atribuídas ao poeta os traços característicos de sua
identidade narrativa como “poeta da morte”: dotado de natureza sombria, a qual era expressa
em seus versos, morto de maneira precoce e vitimado por uma doença, àquela época,
carregada de simbolismos negativos, próximos aos citados anteriormente por Susan Sontag.
Em vários momentos, a tuberculose foi apontada como a doença que o vitimou. Essa
atribuição se tornou recorrente. No Jornal Carioca “A Manhã”412, José Oiticica, num
comentário acerca dos vinte e sete anos da morte de Augusto dos Anjos, informa que este
teria se mudado para Leopoldina buscando novos ares para tratar a tuberculose, citando
inclusive trechos daquela descrição fisionômica feita por Órris Soares.
O poeta Manuel Bandeira413, num pequeno ensaio, em 1944, também parte do
princípio de que fora a tuberculose que vitimou Augusto dos Anjos. O mesmo pode ser visto,

411
ANJOS, Augusto. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.03/05.
412
OITICICA, José. Augusto dos Anjos 27 anos após a sua morte. In: A Manhã. Rio de Janeiro, 12 de novembro
de 1941, p.03.
413
BANDEIRA, Manuel. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por
Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1994, p.144.
227

por exemplo, quando, em 2001, Ariano Suassuna414 (1927-2014), também afirmou que
Augusto dos Anjos teria morrido tuberculoso.
Em carta415 escrita pela esposa de Augusto dos Anjos, Esther Fialho, datando de 27 de
novembro de 1914, para Córdula dos Anjos, mãe do poeta, é informado que o que o vitimou
fora “...uma congestão pulmonar, que degenerou em pneumonia...”. A transcrição416 de sua
certidão de óbito também registra como causa mortis a pneumonia e não uma tuberculose.
Fora desse âmbito mais particular é possível citar um suplemento literário417 no qual João
Alfonsus, em seu ensaio, faz menção, tal como esses registros, que, de fato, a causa mortis foi
uma pneumonia súbita, doença que teria vitimado várias pessoas em Leopoldina no período.
Nesse sentido, nos detemos um pouco nessa questão, pois ela é indiciária,
precisamente, não somente de algo próximo àquela “função-autor” comentada por Chartier e
Foucault, quanto também da noção de “identidade narrativa” proposta por Paul Ricoeur. É
indiscutível a presença de um universo metafórico mais sombrio nas poesias de Augusto dos
Anjos colhidas em livro.
Contudo, Augusto dos Anjos não escreveu apenas essas poesias publicadas como
livro. As demais, que permaneceram publicadas apenas em jornais e periódicos, muitas vezes,
apresentavam uma estética, uma temática completamente diferente. Entretanto, se sua
“identidade narrativa” como poeta terminou sendo associada ao rótulo de “poeta da morte”,
sua personalidade, sua vida, seus amores, a brevidade de sua vida e a doença que o vitimou
teriam que compartilhar características sombrias. Sua vida e sua morte teriam que ser trágicas,
aproximando-se, assim, das imagens que os poemas do “Eu” expressavam.
Na última estrofe418 da primeira parte de “As Cismas do Destino”, o eu lírico afirma:
“Porque, si no orbe oval que os meus pés tocam / Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, /
Jamais exprimiria o acérrimo asco / Que os canalhas do mundo me provocam!”. De certo
modo, esses versos parecem destoar um pouco do sentido atribuído ao processo dissolutivo
representado nesses e em outros versos.
Nesse quarteto, a tuberculose sugerida parece funcionar como uma metáfora que deixa
velada uma possível crítica à sociedade e à alguns de seus membros (os “canalhas”),

414
SUASSUNA, Ariano. Viva Augusto dos Anjos. In: Folha de S. Paulo Ilustrada. São Paulo, 12 de março de
2001. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/fq1203200121.htm
415
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. (Organizada por Alexei Bueno). Rio de Janeiro. Editora Nova
Aguilar, 1994, p.803.
416
ANJOS, 1994, p.802.
417
ALFONSUS, João. Augusto dos Anjos em Leopoldina. In: Autores & Livros. Suplemento Literário do Jornal
A Manhã, 30 de Novembro de 1941, p.327.
418
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.26.
228

significando menos a naturalidade normalmente atribuída pelo eu lírico à esse processo de


degeneração, que tudo corrompe, tão constantemente reafirmada, e mais o seu aspecto social.
Ao indicar o processo dissolutivo como uma “fatalidade igualitária”, o eu lírico de
Augusto dos Anjos aproxima-se, em parte, das sensibilidades atribuídas à morte por outro
escritor, o carioca Lima Barreto (1881-1922). De acordo com Cláudio Bertolli e José Carlos
Meihy419, “Para se compreender, em um sentido amplo, o significado da morte, é preciso
admiti-la, como um fato social em um quadro mais abrangente, não registrado apenas no
momento de sua caracterização”.
Isto significa que as formas de imaginar e representar o fenômeno morte, na literatura
e na poesia, não se relacionam somente com as sensibilidades vigentes no momento histórico
imediato à emergência dessa representação/imaginação, transfiguradas literariamente. Pelo
contrário, dialogam com temáticas derivadas do passado e que encontram-se acumuladas
como experiência nos estratos do tempo presente.
Essa é a razão, por exemplo, das poesias de Augusto dos Anjos apresentarem imagens
que podem se aproximar com atitudes em face da morte distintas, conceituadas à partir da
perspectiva de Phillipe Ariès. Da mesma forma, essa é a razão, também, do fato das imagens
literárias de Augusto dos Anjos serem distintas daquelas elaboradas por Lima Barreto. Isto
porque, Augusto dos Anjos e Lima Barreto, apesar de terem vivido num mesmo momento
histórico e na mesma cidade, estavam localizados em espaços e setores sociais distintos.
Nesse caso, se a morte, no soneto “As Cismas do Destino”, pode ser definida pelo
verso “fatalidade igualitária”, esta igualdade continua compreendida com “naturalidade” pelo
eu lírico de Augusto dos Anjos, em que pese às referências à “população doente que tossia em
seu peito” ou aos “canalhas do mundo” que lhe provocavam “asco” e que eram alvos de seus
“cuspos carrascos”. A morte, então, nos versos de Augusto dos Anjos, é uma “fatalidade
igualitária”, porque atingiria todo mundo, naturalmente, tendo sido ressaltados seus traços
biológicos, orgânicos. A tuberculose atribuída à Augusto dos Anjos, por conta das menções
feitas por seu eu lírico, terminou efetivamente vitimando o próprio Lima Barreto.
Por outro lado, em Lima Barreto, a morte é vista mais em seus significados sociais.
Apesar de viverem numa mesma cidade e num mesmo momento histórico, estes indivíduos
vivenciaram experiências distintas. Para Barreto, a morte seria uma espécie de niveladora

419
FILHO, Cláudio José; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; Morte e Sociedade em Lima Barreto. In: In:
MARTINS, José de Souza. A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo. Editora HUCITEC,
1983, p.144.
229

social entre ricos e pobres. A percepção do aspecto social da morte, em Barreto, deriva das
dinâmicas da própria cidade carioca. De acordo com Sevcenko420,

A insalubridade da capital, foco endêmico de Varíola, tuberculose, malária,


febre tifóide, lepra, escarlatina e sobretudo da terrível febre amarela, já era
tristemente lendária nos tempos áureos do II Reinado, sendo o Rio de
Janeiro, cantado por um poeta alemão como „a terra da morte diária / túmulo
insaciável do estrangeiro”.

Nessa compreensão, a cidade do Rio de Janeiro, palco primeiro da modernização


brasileira, configurava-se como uma espécie de um complexo teatro social. Os mais diferentes
papéis eram lá representados. Pessoas oriundas dos mais variados lugares buscavam encontrar
lá um meio de vida minimamente satisfatório.
A aglomeração de inúmeras pessoas, muitas das quais vivendo em condições
degradantes, não deixava de constituir a atmosfera mais do que propícia à propagação de
doenças. Isto não significa, evidentemente, que as camadas mais pobres fossem as únicas
portadoras/difusoras de doenças, mas, sim, que a ausência de um sistema de saneamento
urbano básico terminava por atingir, em primeira instância, precisamente aqueles setores
sociais menos privilegiados. Sobre a densidade populacional, Sevcenko421 afirma:

Assim, a maior cidade brasileira veria a sua população no período de 1890 a


1900 passar de 522651 habitantes para 691565, numa escala impressionante
de 33% de crescimento (3% ao ano!). Mas o mais notável é que esse mesmo
ritmo extraordinário de crescimento se manteria e seria até mesmo elevado
nos anos que se sucedem de 1900 a 1920, com a população do Distrito
Federal passando de 691565 para 1157873 habitantes, realizando um
crescimento de 68%, numa média anual de 3,2%.

Não por acaso, uma das mais sintomáticas revoltas populares cariocas teve como
contexto as tentativas de aplicação de todo um conjunto de medidas higienistas, sanitaristas e
de medicalização da sociedade/cidade, como podemos verificar na famigerada “Revolta da
Vacina”422. Nesse sentido, tanto a saúde quanto a presença de doenças, assim como o desejo
em evitá-las, eram traduzidas em metáforas significativas para ilustrar alguns dos caminhos
estimulados pela temporalidade moderna.

420
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
421
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
422
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo.
Companhia das Letras, 1987.
230

7.4 Os Desconfortos da Vida Moderna na Capital Irradiante

No quadro das tentativas de implantação de um projeto “civilizador”, implementado


por uma elite que queria erigir um mundo à sua imagem e semelhança, cabia a completa
modificação dos cenários urbanos, “suavizando” a presença das camadas mais populares nos
novos espaços que emergiam.
Buscava-se, assim, elaborar uma nova imagem para a cidade do Rio de Janeiro,
imagem esta que deveria estar mais afinada com os padrões estéticos e urbanísticos presentes
nas cidades europeias. Segundo afirma Sevcenko423 “Era preciso, pois, findar com a imagem
da cidade insalubre e insegura, com uma enorme população de gente rude plantada bem em
seu âmago, vivendo no maior desconforto, imundície e promiscuidade e pronta para armar em
barricadas as vielas estreitas do centro ao som do primeiro grito de motim.”
Desse modo, podemos afirmar que pairava sobre as cabeças dos habitantes do Rio de
Janeiro um temor cotidiano, recorrente, associado à ideia de contrair alguma patologia,
adoecer e morrer, por conta das continuas epidemias que lá se difundiam e grassavam a
cidade. No soneto “Aza de Corvo”424, podemos ver algumas imagens relacionadas aos
aspectos dessa atmosfera. Vejamos:

Aza de corvos carniceiros, aza


De mau agouro que, nos doze mezes,
Cobre ás vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os revezes,


E‟ meu destino viver junto a essa aza,
Como a cinza que vive junto á braza,
Como os Goncourts, como os irmãos siamezes!

E‟ com essa aza que eu faço esse soneto


E a industria humana faz o panno preto
Que as famílias de luto martyrisa.

E‟ ainda com essa aza extraordinária


Que a Morte – a costureira funerária –
Coze para o homem a última camisa!

Esse soneto foi publicado pela primeira vez na Paraíba, no Jornal o Comércio, em
1906, tendo sido republicado na primeira edição do “Eu”. Contudo, as imagens que o eu lírico
elabora articulam-se com alguns dos elementos que temos apontado como presentes no

423
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.29.
424
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.68.
231

espaço urbano carioca. A morte é metaforizada como a asa de um corvo, que cobre e coloca
sob sua sombra o destino de todos os sujeitos.
É indicada uma proximidade extrema entre vida e morte. Esta dualidade está presente
em cada mês do ano e no telhado das próprias casas. É metaforizada como a imagem dos
irmãos siameses, fazendo referência aos “irmãos gêmeos”, os “Goncourts”, escritores
franceses. Quando o fenômeno morte é personificado (“A costureira funerária”), o tecido a
partir do qual são feitas as mortalhas derivariam da asa deste pássaro associado à temas
macabros, sendo a mortalha de todos os indivíduos a sua “...última camisa”.
O enorme afluxo de habitantes na cidade do Rio de Janeiro, portanto, configurava uma
situação ideal para diversos tipos de sensibilidades. Como afirma Sevcenko425,

...a oferta de mão-de-obra abundante excedia (...) a demanda do mercado,


aviltando os salários e operando com uma elevada taxa de desemprego
crônico. Carência de moradias e alojamentos, falta de condições sanitárias,
moléstias (alto índice de mortalidade), carestia, fome, baixos salários,
desemprego, miséria: eis os frutos mais acres desse crescimento fabuloso e
que cabia à parte maior e mais humilde da população provar.

Nesse sentido, todas as experiências derivadas da modernização dos espaços urbanos


cariocas exigiam dos habitantes a adoção de uma série de comportamentos e vivências,
exigências estas que a maioria da população apenas sonhava em poder experimentar. Essa
modernização compulsória impunha-se com força total e nem todos possuíam os requisitos
mínimos para acompanhá-la.
No soneto “Eterna Magua”426, a morte é associada à um sentimento desagradável,
ressentido, sentimento esse que o eu lírico carrega consigo por toda a vida. Nessa associação
entre “morte” e “mágoa”, o caráter transcendente da morte é ressaltado em seus dois últimos
quartetos, como podermos ver:

Sabe que soffre, mas o que não sabe


É que essa magua infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa magua infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;


E quando esse homem se transforma em verme
É essa magua que o acompanha ainda!

A alusão ao corpo permanece. É no corpo do sujeito que a morte, sob a metáfora da


“mágoa”, se instala, se faz presente. A doença, nesse caso, é algo abstrato, emocional. Seria

425
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.52.
426
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.113.
232

uma espécie de doença da “alma”. É o corpo que a carrega a morte como potência e esta
morte em potencial, quando se realiza em ato, eliminando o corpo saudável, transforma-o em
“verme”. Esse organismo se transforma no novo receptáculo da morte, ou melhor, parece
personificá-la. Assim, a morte, a mágoa, ainda acompanha o indivíduo nesse novo estágio da
vida, metamorfoseado em verme.
A cidade do Rio de Janeiro, dessa forma, funcionava como um vetor indicativo da
modernização do país. Nessa cidade, as contradições então vivenciadas pareciam ser
interpretadas mais como um fenômeno de degeneração moral do que como problemas
derivados das dimensões sociais, políticas ou econômicas.
As modificações urbanísticas implementadas pelas elites cariocas, não por acaso, eram
definidas pelos contemporâneos como a “...regeneração da cidade, e por extensão, do país”,
como afirma Nicolau Sevcenko427. Isto parecia significar que, se tais problemas existiam na
cidade, eles se encontravam entre as camadas populares, portadoras tanto dos males sociais,
quanto das moléstias e enfermidades sanitárias. A associação entre a elite/cidade com o corpo
saudável e essas camadas populares com o corpo (potencialmente) doente figura no horizonte.
Com a ascensão vertiginosa de grupos sociais e políticos mais afinados com
determinados projetos socioeconômicos ditos “modernos”, próprios de uma burguesia que se
desenvolvia à brasileira, a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, tanto em seus espaços
físicos, quanto em seus costumes, se impôs sem piedade. Na ótica de Sevcenko428:

Assistia-se à transformação do espaço público, do modo de vida e da


mentalidade carioca, segundo padrões totalmente originais; e não havia
quem lhe pudesse opor. Quatro princípios fundamentais regeram o
transcurso dessa metamorfose, (...) a condenação dos hábitos e costumes
ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer
elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da
sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos
populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o
desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo
agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.

Não deve ser difícil imaginar como tais transformações invadiam as sensibilidades das
camadas mais populares em meio ao seu universo desfavorecido. No fulcro dos ideais da
modernidade, o indivíduo devia ser supervalorizado. Contudo, esses valores que ressaltam a
importância da individualidade pareciam ser propriedade apenas dos indivíduos situados nos
setores sociais mais privilegiados. A modernidade também era desconfortável.

427
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.30.
428
SEVCENKO, 1999, p.30.
233

Somente os membros dos setores privilegiados podiam ser denominados “indivíduos”,


pois possuiriam a “individualidade” como uma de suas “propriedades”. Por outro lado, os
indivíduos das camadas populares pareciam não ter o direito a sua “individualidade”: estes,
não eram indivíduos; eram antes (ou somente) corpos amontoados uns sobre os outros.
Em seção anterior, quando comentávamos os sentidos atribuídos não somente ao
espaço do cemitério, como também ao túmulo e à vala comum, podemos perceber essa
dialética entre as noções de “indivíduo”/“corpo”. Os sujeitos pertencentes às camadas
privilegiadas poderiam experimentar sua “individualidade” de modo mais efetivo.
Os sujeitos oriundos das classes médias e pobres, em certo sentido, também poderiam
vivenciar uma experiência de individualização. Contudo, os sujeitos das camadas mais
marginalizadas estariam distantes dessa noção de “individualidade”. Os mausoléus ostensivos
e os túmulos individualizados seriam próprios para os membros oriundos das elites e das
classes médias e pobres. Aos marginalizados, restaria apenas a vala comum, na qual não há
individualização possível, somente o acúmulo de corpos.
Nessa ótica, se a cidade, se a sociedade, poderia ser interpretada como um organismo
vivo, como um corpo, este deveria manter-se saudável. As camadas mais privilegiadas seriam
os “anticorpos” que defenderiam o “corpo social”, ou seja, seriam “contra os corpos” dos
menos privilegiados que “contaminariam” os ambientes urbanos com sua presença nociva,
dificultando o desenvolvimento saudável da sociedade/cidade como um todo.
Numa sociedade configurada dessa forma, como escapar de tais sensibilidades que
cercavam os indivíduos diariamente? Sevcenko429 anota que “...as próprias condições de
aceleração, concorrência, isolamento, individualismo, ansiedade e a crescente carência de
contatos efetivos tinham um indubitável reflexo na somatização de indisposições, instilando o
proverbial „mal-estar da vida moderna‟”. A entrada acelerada de cidades como o Rio de
Janeiro, São Paulo, Recife, entre outras, nesse novo mundo moderno exigiu seus custos.
Paradoxalmente, estimula-se a atenção sobre a própria individualidade, mas, para os
setores sociais menos privilegiados, seus membros, enquanto indivíduos, poderiam não
encontrar um “lugar” nessa sociedade moderna emergente. Eram negados, não somente em
sua individualidade, mas, também, em sua coletividade, pois eram “indesejáveis”.
É numa atmosfera social dotada com tais características que poderia florescer aquele
sentimento de “fracasso” e aquele “narcisismo” social, do qual falaram Phillipe Ariès e

429
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.553.
234

Richard Sennet, em relação aos quais tecemos comentários e cujos traços identificamos em
alguns textos poéticos de Augusto dos Anjos, a partir da ideia de “vencido”.
As camadas populares pareciam “indesejáveis necessários”. Era dessas camadas que
provinham a força de trabalho que animava as fábricas, os estabelecimentos comerciais, o
trabalho nos portos, enfim, praticamente todas as atividades econômicas, domésticas ou não,
que os membros das elites/classe média consideravam impróprias para si mesmos.
No soneto “Insânia de um Simples”430, a doença que se abate sobre o corpo do eu
lírico também se mostra mais emocional e abstrata: é uma patologia psicológica. Nesses
versos, encontramos as seguintes imagens:

Em scismas pathológicas insanas,


E‟-me grato adstringir-me, na hierarchia
Das formas vivas, á categoria
Das organisações liliputianas;

Ser similhante aos zoóphytos e ás lianas,


Ter o destino de uma larva fria,
Deixar, emfim, na cloáca mais sombria
Este feixe de céllulas humanas!

E emquanto arremedando Eólo iracundo,


Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,

Apraz-me, adstricto ao triangulo mesquinho


De um delta humilde, apodrecer sosinho
No silencio de minha pequenez!

Considerando a tensão entre a presença das camadas mais privilegiadas, as quais, nos
ímpetos da modernização, marginalizavam os setores sociais mais pobres, podemos associar
essas tensões a partir da imagem que o eu lírico oferece nesse soneto, ao fazer alusões à
narrativa de Jonathan Swift (1667-1745), em “As Viagens de Gulliver” (1726/1735).
O eu lírico afirma que, em suas “cismas patológicas”, enxergava a si próprio como
comprimido entre formas vivas minúsculas, semelhante às “...organizações liliputianas”,
“Liliput” tornando-se célebre pela pequena estatura de seus habitantes, conforme a narrativa
ficcional de Swift. Assim comprimido, diminuído, miniaturizado, numa “micro-vida”, o eu
lírico aceita com gratidão ser semelhante aos “zoófitos” e “lianas”, formas orgânicas,
biológicas, situadas entre o animal e o vegetal.
Ao associar sua vida, seu destino, ao de uma “larva”, suas “células humanas” seriam
todas despejadas por uma “cloaca sombria”. Para esse eu lírico, portanto, é aprazível

430
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.49.
235

“...apodrecer sozinho / no silêncio de minha pequenez”. Naquele paralelo que fizemos, entre a
sociedade/cidade carioca como um “corpo vivo”, sua elite como seus “anticorpos” e sua
população mais pobre, como “microorganismos” difusores de doenças, a “insânia”
representada não deixa de encontrar eco com tais imagens, haja vista que esses setores sociais
desprivilegiados seriam esses microorganismos potencialmente nocivos, dificultando o bem-
estar saudável do corpo social/urbano carioca.
Tais setores sociais carentes, “indesejáveis necessários”, podem ser associados à essas
imagens sugeridas pelo eu lírico. Ao terem sido diminuídos em sua existência, não sofreriam
tanto com a chegada da morte, como podemos ver no último terceto do soneto: “Apraz-me,
adstricto ao triangulo mesquinho / De um delta humilde, apodrecer sosinho / no silêncio de
minha pequenez!”.
Como já foi ressaltado em outros momentos, o processo de decadência da existência,
tematizado poeticamente nos versos de Augusto dos Anjos, ao contrário, por exemplo, de
algumas representações literárias presentes nos textos de Lima Barreto, não possuem uma
finalidade voltada para a crítica social, não toma a literatura como “missão”.
Mesmo que o soneto “Insânia de um Simples” tenha sido escrito e publicado ainda na
Paraíba, e não no imediato das experiências que Augusto dos Anjos possa ter sofrido ao
passar a viver na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1910, em nossa leitura, as imagens
poéticas desse soneto dialogam com essa atmosfera de inferiorização atribuídas aos setores
sociais mais marginalizados derivada das experiências de modernização.
Nas constantes referências acerca da morte, do corpo e de suas doenças, que Augusto
dos Anjos introjeta em seus versos, não somente as doenças físicas são tematizadas
poeticamente. Como no caso do soneto discutido acima, a insanidade também era uma
patologia, mesmo não sendo considerada uma enfermidade física, mas psicológica.
Na atmosfera de fins do século XIX e na virada para o século XX, a associação de
todo tipo de moléstias, mesmo as subjetivas, psicológicas, ao corpo, o qual as manifestava
através de “sinais”, era forte, mesmo nos casos em que essa associação entre o psicológico e o
corporal fosse mais evasiva. Sobre a esquizofrenia, nesse período indicado, Vigarello431 diz:

O fenômeno (...) é mais complexo e, sem dúvida, mais profundo. A anatomia


patológica pode permanecer silenciosa, o escalpelo nada detectar, a
desorganização local revelar-se nem verificável, tampouco acentuada. (...) A
Loucura pode desenvolver-se sem que nenhuma lesão fisiológica seja
revelada.

431
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.189.
236

Podemos imaginar como devia ser difícil, para um indivíduo pobre, nos primeiros anos
do século XX, receber tratamento para uma enfermidade psicológica, justamente pela
natureza dessa doença ser mais abstrata. Podemos até mesmo afirmar que o caso da internação
de Lima Barreto, por conta da depressão e do alcoolismo, seria indiciário dessa dificuldade.
Sevcenko432 também observara essa questão:

[Apenas no Hospital Nacional] No ano de 1889, registraram-se 77 entradas


no Hospício; (...) 498, em 1890; (...) 5546 em 1898; (...) No período de 1889
a 1898, houve 6121 internamentos, assinalando um crescimento de 7848%
(...) e esse circo de horrores se fecha com a crônica dos suicídios, prática
tornada endêmica...

Aquele espírito investigador que buscava encontrar no próprio corpo os sinais da


doença que o afetava, também influenciou, em parte, os estudos sobre a “loucura” na época e
os modos sobre como tratá-la, sobretudo, mediante o enclausuramento do “louco”. De acordo
com Georges Vigarello433,

Os alienistas do início do século XIX não podem afastar-se do organicismo,


com risco de conciliar-se com uma tradição antiquada: a crença em alguma
desordem exclusiva da alma, ou em alguma maldade intrínseca do louco. A
ancoragem corporal impõe-se como horizonte incontornável.

Na trilha dessas questões, podemos até encontrar alguns “ecos” que relacionam essa
ancoragem corporal com o tratamento dispensado aos pobres cariocas. As elites do Rio de
Janeiro podiam ser associadas à subjetividade “sadia”, à consciência “moderna”, positiva.
Este corpo social/orgânico estaria cotidianamente “ameaçado” por patógenos internos e
externos (seus pobres nativos, somados aos pobres imigrantes), restando às elites (a
subjetividade/consciência individual) não dispensar outro tratamento possível aos pobres
(corpos, mas não indivíduos) a não ser a segregação, a marginalização.
Contudo, na poesia de Augusto dos Anjos, é a morte, a experiência incontornável da
dissolução, que continua a ser tematizada poeticamente como fenômeno que a todos ataca.
Em “Monólogo de uma Sombra”, percebemos mais algumas imagens poéticas que
representam o corpo e suas doenças. Como já indicamos em outros momentos, esse longo
poema apresenta ao leitor três personagens: a “Sombra”, o “Filósofo-Moderno” e o “Sátiro
Peralta”. As imagens mais cruas do corpo doente são atribuídas ao segundo personagem.

432
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República.
São Paulo. Editora Brasiliense, 1999, p.62-63.
433
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.189.
237

O “filósofo-moderno” é caricaturado como sendo um pensador que fracassa em sua


ambição de conhecer a realidade última das coisas, mesmo sendo o portador dos instrumentos
e ferramentas teóricas e conceituais mais refinados. Esse personagem não encontrou em suas
pesquisas e reflexões filosóficas nada mais do que uma “mecânica nefasta”, cuja presença ele
sente em seu próprio corpo, confirmando os sinais típicos de tal “mecânica”. Entre a décima
segunda e a décima quarta estrofes434, podemos ler:

E o que elle foi: clavículas, abdômen,


O coração, a bocca, em synthese, o Homem.
– Engrenagem de vísceras vulgares –
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares”

A desarrumação dos intestinos


Assombra! Vêde-a! Os vermes assassinos
Dentro daquella massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadellas que as dentuças trincam
No espasmo physiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!


A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece.
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um S

O “filósofo-moderno” teria consumido toda sua energia vital e intelectual em seus


estudos e reflexões. Todavia, isto em nada deteve a incessante dinâmica da “mecânica
nefasta”, da “orgânica batalha”, que ele termina por identificar como causa de tudo e de todos.
A criação de novos seres exigia como condição primeira a dissolução: tudo que viesse a ser
criado derivaria da própria destruição. Nesse movimento, o filósofo é reduzido à vulgaridade
de suas vísceras, aos seus intestinos “desarrumados”, a um corpo que se transforma num
banquete farto para bactérias, vermes e larvas.
A poesia de Augusto dos Anjos, publicada em livro na cidade do Rio de Janeiro, em
1912, terminava por destoar de um conjunto de sensibilidades modernas. Primeiro, se
considerarmos que esse momento histórico pode ser marcado, sobretudo, pela atitude em face
da morte conceituada por Ariès como “morte interdita”, na medida em que utiliza, de maneira
abundante, uma linguagem fúnebre, falando da/sobre a morte continuamente. Nesse sentido,
sua poesia, ainda que não fosse dedicada à denúncia social, causava “desconforto”.

434
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.07-08.
238

Contudo, sua poesia não deixa de dialogar, também, com toda uma gama de temáticas
modernas. Emergiu no âmago de um processo que imprimiu à todas as dimensões da vida em
sociedade um ideal de novidade e de aceleração. Somava-se à isto o acúmulo de pessoas, num
crescimento demográfico progressivo e desordenado. Este crescimento se dava em passo
contínuo com a difusão das mais variadas doenças. Viver em meio à essa dinâmica moderna,
para inúmeras pessoas, era, também, desconfortável.
Em face dessas doenças e no interior dessas experiências, os indivíduos buscavam
resguardar a própria individualidade, ao mesmo tempo, assegurando a saúde de seu corpo e de
sua “alma”. Acerca disso, também devemos somar a busca por lucros, inerentes à
racionalidade capitalista, burguesa e pequeno-burguesa, das grandes farmácias e empresas
fabricantes de remédios, como veremos mais adiante.
Uma forma de pensar elaborada ao longo do século XIX e que influenciou os
primeiros anos do século XX (se é que não influencia ainda hoje) associa-se a ideia da
cenestesia. Por este conceito, entende-se que os indivíduos, quer sejam dotados de saber
médico/científico, quer não, deveriam dedicar contínua atenção aos sinais emanados por
nosso corpo. Cada sinal, cada mensagem, seria indicativo de um determinado estado, seja
físico, seja de consciência. Alain Corbin435 comenta que a cenestesia teria sido

[inspirada] pela persistência de um neo-hipocratismo vulgarizado, que


enfatiza os efeitos do ar, da água e da temperatura, [de modo que] o
indivíduo espreita a influência do tempo e da estação sobre a facilidade e o
ritmo da respiração, sobre a intensidade do reumatismo ou a estabilidade do
humor; desta forma, desenvolve-se uma espécie de meteorologia interna da
“alma”. Empreende-se igualmente uma atenta escuta do desenvolvimento
das funções orgânicas e suas repercussões no plano mental; vigilância
permanente que privilegia a análise da fisiologia digestiva e do ciclo
menstrual, perturbados pela frequência de disenterias e doenças
ginecológicas.

Nessa compreensão, através da cenestesia, caberia aos indivíduos transformarem-se


numa espécie de espectadores de si mesmos, não somente no que diz respeito à dimensão
subjetiva, mas, principalmente, à tudo o que acontece no campo orgânico, biológico. Isto,
porque a subjetividade seria condicionada, senão mesmo, determinada por esse movimento
biológico, orgânico. Vigarello436 identifica a cenestesia como uma espécie de

435
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.439.
436
VIGARELLO, Georges. O Sentimento de Si – História da Percepção do Corpo. Rio de Janeiro. Editora
Vozes, 2016, p.159.
239

Sentimento novo, decisivo, (...) que permitiu a apropriação mais primitiva do


corpo. Com [a cenestesia] existe um novo objeto: não mais “as” sensações
que “não nos abandonam jamais”, não mais exclusivamente o esforço
primário, mas “essa” impressão de uma secreta disponibilidade física, tão
potencial, quanto acessível, global também, coincidindo com a própria
consciência. Certeza obscura, sem dúvida, que, em contrapartida, existe
antes de toda percepção e que permite todas as outras...

Através destas observações, podemos compreender como a poesia de Augusto dos


Anjos, mais do que a expressão literária de um indivíduo isoladamente mórbido, funéreo, é
trespassada pelos sentidos históricos presentes em seus estratos temporais. Seus versos,
sobretudo, aqueles colhidos em livro, atentam para o sujeito em sua individualidade.
Por meio de sua atividade mimética, o eu lírico mergulha em si mesmo. Contudo,
além de articular-se com a historicidade de algumas das atitudes em face da morte, quer
imediatamente presentes e vigentes em seu momento histórico, quer não, seus versos também
funcionam como esse exercício de observação cenestésica. Há diversas alusões aos estados do
corpo e da mente em seus versos: um corpo que “treme”, que “transpira”, que “apodrece”,
assim como, uma mente que se angustia, que sonha, que delira e se desespera.
Isto significa que a atenção cenestésica não era propriedade exclusiva apenas dos
portadores de saberes médicos ou científicos. Augusto dos Anjos possuía um mínimo de
conhecimento em relação à essas áreas. Contudo, ele não era médico ou profissional das
ciências biológicas ou da saúde. Ele era bacharel em direito e poeta, explorando as dimensões
íntimas de seu “eu lírico” como parte/momento de sua experiência de individualização.
Alain Corbin definiu a cenestesia como uma espécie de vulgarização da doutrina dos
“temperamentos”437, já cientificamente superada. Com base em tal doutrina, haveriam
humores (o bilioso, o linfático, o sanguíneo e o nervoso) que condicionariam nossos estados
de consciência. A partir da difusão de alguns elementos dessa doutrina, Corbin438 comenta:

[Construiu-se] assim, no cotidiano, um grosseiro sistema de imagens da


saúde física e psíquica, que permite gerar comportamentos individuais,
elaborar estratégias com relação aos outros. (...) No século XX, essa forma
de vigilância privilegia os anseios do corpo; daí por diante ela objetiva
fornecer a este compensações justificadas pela vida urbana, as condições de
trabalho, a poluição; proporcionar-lhe o prazer físico, ditado pelo
narciscismo.

Podemos observar nas afirmações de Corbin, ecos da tendência narcísica já


identificada por Richard Sennet. O indivíduo na modernidade está atento sobre o que acontece

437
CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4 Da Revolução Francesa à
Primeira Guerra Mundial. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p.439.
438
CORBIN, 1991, p.439.
240

consigo mesmo, sobre como ele “sente” o mundo e as pessoas à sua volta. Contudo, como a
modernidade estimula a individualidade, não deixa, também, de ameaçá-la, por exemplo,
através do traço coletivo (não necessariamente comunitário) que marca a vida nas grandes
cidades. Nelas, o indivíduo é “só mais um” numa espécie de “luta” para ter sua
individualidade reconhecida e valorizada. Revisitando o mito de Narciso e suas implicações
alegóricas, Sennet afirma439:

O narcisista não está faminto de experiências; está faminto da Experiência.


Buscando sempre uma expressão ou um reflexo de si mesmo na Experiência,
ele desvaloriza cada interação ou cenário particular, pois nunca será o
bastante para acompanhar o que ele é. O mito de Narciso capta nitidamente
isso: a pessoa se afoga no eu; é um estado entrópico.

Em fins do século XIX e na virada para o século XX, variadas foram as formas e os
métodos inventados pelos sujeitos para empregarem a observação cenestésica e para fornecer
as compensações às instabilidades que sitiam o “eu”.
A observação cenestésica não demorou muito para aproximar-se de tentativas de
criação artificial das sensações internas a serem exploradas, mediante o uso de substâncias
alcoólicas ou alucinógenas que facilitassem ao indivíduo acessar seu “eu” com mais
facilidade, tornando sua compreensão efetiva mais próxima. Podemos lembrar, por exemplo,
das atividades poéticas de Baudelaire e Rimbaud, no século XIX ou, no século XX, dos usos
de substâncias químicas (derivadas da maconha, LSD, ópio, etc.) inicialmente permitidas e,
posteriormente, proibidas e criminalizadas.
A poesia de Augusto dos Anjos, nesse movimento, ainda que não fizesse menção ao
uso de substâncias químicas ou alucinógenas, oferece ao leitor um conjunto de representações
que operam com imagens diretamente associadas ao indivíduo e à certeza inelutável de sua
própria finitude.
Sua poesia elabora imagens acerca da morte, quando esta deveria ser assunto interdito,
da mesma forma que tematiza poeticamente o corpo completamente indefeso em face das
mais variadas doenças, quando este deveria ser objeto de atenção cotidiana, pelo sujeito, em
busca de sinais que indicassem qualquer patologia, orgânica ou psíquica.
Sobre essas questões indicadas acima, vejamos o soneto intitulado “O Poeta do
Hediondo”440. Este texto poético não foi incluído na primeira edição do “Eu”, em 1912, nem
fora publicado anteriormente. Foi incluído como inédito na segunda edição do livro, em 1920:

439
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988, p.395.
440
ANJOS, Augusto dos. Eu (Poesias Completas). Parahyba do Norte, 1920, p.192.
241

Soffro acceleradissimas pancadas


No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescencia
Das desgraças humanas congregadas!

Em allucinatorias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciencia
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neoronas acordadas!

Quanto me dóe no cerebro esta sonda!


Ah! Certamente, eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto

Eu sou aquelle que ficou sosinho


Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

Os traços característicos da observação cenestésica podem ser vistos nos primeiros


versos do primeiro quarteto: o corpo sinaliza o mal-estar sentido. Na medida em que a
temporalidade moderna aponta para o futuro como uma dimensão potencialmente realizadora
das expectativas dos sujeitos, enaltecendo a novidade e o aperfeiçoamento da vida, a poesia
de Augusto dos Anjos segue numa direção oposta, indicando no horizonte, não a melhoria,
mas a morte. O “eu lírico” apresenta-se como sendo o poeta de tudo aquilo que pode causar
repulsa, pavor.
Tudo quanto possa ser designado como hediondo é tratado como matéria-prima para a
poesia. É no corpo, mais uma vez, que esse eu lírico sente a pungente sensação de
“desconforto”. Tal desconforto existencial é desencadeado por um profundo sentimento de
adesão, de união, com a mortificadora desgraça humana. Os batimentos cardíacos se aceleram
com a intensidade de golpes. O corpo manifesta sinais de toda sorte.
A percepção de participar de tais desgraças humanas invade seu cérebro como uma
sonda perfurante, causando-lhe alucinações intensas. No último terceto do soneto, o eu lírico
reafirma seu papel solitário como poeta da morte e de suas vítimas. Tais versos reforçam a
ideia de um tipo de cenestesia em relação ao próprio corpo. Elabora imagens poéticas acerca
da morte, assunto interdito. Para Ariés441, “A morte, (...) tão presente no passado, familiar, vai
se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição. (...) encontramos, na
origem, um sentimento já expresso na segunda metade do século XIX: aqueles que cercam o
moribundo tendem a poupá-lo e a ocultar-lhe a gravidade de seu estado.”

441
ARIÈS, Phillipe. A História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro.
Editora Nova Fronteira, 2014, p.84-85.
242

Seguindo os caminhos indicados por Sevcenko, os grandes espaços urbanos


brasileiros, como o carioca, implicavam na concentração de grandes contingentes
populacionais, compostos por pessoas das mais variadas regiões do país, assim como, de
outros lugares do mundo.
Isto desemboca na adoção de práticas e sensibilidades cada vez mais impessoais,
entrando em choque com a tendência “narcisística” comentada anteriormente. Como mais um
paradoxo da modernidade, ao mesmo tempo em que os centros urbanos se tornavam
densamente habitados, o que conduzia a uma vida social mais dinâmica, tal vida se tornava
mais e mais individualista. Sobre isso, afirma Sevcenko442

Outro modo elegante de referir-se ao hábito inovador de caminhar pelas ruas


sozinho e às pressas era chamá-lo de “andar à americana”. Diferentemente
da curiosidade escrutinadora do flâneur ou do envolvimento afetivo com a
paisagem urbana, típico da derive, o que caracteriza o (...) “andar à
americana” é (...) a atitude de total desprendimento por tudo e por todos que
estão ao redor. (...) Paradoxalmente portanto, ampliação do tempo e espaço
privados para o interior do âmbito público e inserção da experiência íntima
no plano regulado das energias aceleradas e dos mecanismos massificantes.
No primeiro caso há um desinvestimento do público em favor do privado; no
segundo, é o privado que passa a se modular por uma norma cada vez mais
coletiva. Essa antítese caracteriza a condição por excelência do homem
moderno.

Nessa compreensão, ao mesmo tempo em que um grande espaço urbano moderno, tal
como a cidade do Rio de Janeiro, apresentava-se como o palco por excelência no qual todas as
expectativas individuais poderiam se realizar, nem todos os indivíduos conseguiam, de fato,
efetivar positivamente sua individualidade.
A natureza urbana desses espaços, progressivamente impessoal e individualista, de
certo modo colocava nas sombras as experiências de diversos indivíduos, sobretudo, daqueles
circunscritos na busca por sua própria sobrevivência que tentavam escapar da marginalização
social total. Assim, todos os sujeitos terminavam, em larga medida, uns alheios em relação
aos outros, ainda que habitassem um único e mesmo espaço. A indiferença era mútua.
Dessa forma, nas análises elaboradas por Sevcenko, o mundo moderno carioca, no
qual emergiu a poesia de Augusto dos Anjos publicada em livro, encontrava-se
irremediavelmente marcado pela aceleração, pelo movimento, pela ideia de novidade
permanente, pela dinamicidade das relações sociais, políticas e econômicas.

442
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.551.
243

Esse espaço urbano imerso num processo vertiginoso de modernização de seus


costumes, hábitos, práticas e lugares, também assistia a emergência e o bombardeio constante
dos sentidos pelo mercado publicitário, cuja voracidade era progressiva. Para Sevcenko443

... o suporte privilegiado das primeiras campanhas publicitárias com cartazes


eram as paredes internas e externas dos bondes. Enquanto as antigas caleças,
landôs, “aranhas” ou charretes (como os futuros táxis) eram alugadas por um
grupo de pessoas que se conheciam, os bondes (como os futuros ônibus e
metrôs) introduziram a convivência de multidões de estranhos, anônimos e
desconhecidos uns aos outros, além de competidores irascíveis pelo espaço e
conforto limitados. A luta na refrega dos bondes era por um respeito mínimo
à privacidade de cada um, mantida como última defesa naquele veículo
público, e às vezes, demarcada pelos próprios limites do corpo de cada um.
Isolar-se na privacidade significava em geral absorver-se no silêncio das
próprias reflexões ou, na falta delas, do mero tédio. Era dessa
disponibilidade da imaginação que publicidade carecia, captando-a com
truques sensoriais, cativando-a pelas promessas e seduzindo-a pelo desejo.

A partir dessas observações feitas por Sevcenko, percebemos um espaço significativo


que seria predominantemente ocupado pela publicidade. Em meio à todos os outros e, muitas
vezes, perdido em si mesmo na vivência de seus cotidianos, os indivíduos modernos eram
seduzidos pelas promessas das peças publicitárias. Um dos principais produtos inseridos na
lógica mercadológica e publicitária dessa época eram os remédios, os quais prometiam, não
somente a cura, como a prevenção.
A poesia de Augusto dos Anjos, publicada em livro, destoa desse cenário, não
oferecendo nem o otimismo da ciência, nem versos frívolos. Ao contrário, seu eu lírico
sublinha o contínuo envelhecer e apodrecer do corpo através de variadas representações da
morte. A figura do “verme”, portanto, seria uma das faces, uma das manifestações da morte
em suas imagens poéticas. No soneto intitulado “Deus-Verme”444, esse micro-organismo é
personificado como uma divindade, senão onisciente, certamente, onipresente e onipotente:

Factor universal do transformismo,


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome de baptismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo


Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorphismo.

443
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.551-552.
444
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro, 1912, p.20.
244

Almoça a podridão das drupas agras,


Janta hydrópicos, roe vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão.

Ah! Para elle é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

Nesse caso, a morte não somente é um fenômeno universal, como também não se
encerra em representações espirituais, através de entidades de cunho religioso. Ao contrário, a
morte seria, precisamente, essa divindade-verme, “livre das roupas do antropomorfismo”. É,
assim, ressaltado o seu caráter biológico, orgânico.
Talvez o que seja mais assustador, nessa “divindade”, é o fato de que ela não seja algo
que pode atormentar, assombrar os indivíduos, externamente, como uma fantasmagoria:
onipresente, o verme estaria no interior de nossa carne, em nossos alimentos, na água que
bebemos, em nosso organismo e em nosso corpo, aquele que pretendemos não somente curar,
mais prevenir de todo tipo de doença.
Nesse caso, se a publicidade emergente nos cartazes e anúncios de jornais que se
espalhavam pela cidade não se limitava à propagandear objetos, roupas e acessórios,
dedicando-se também às propagandas de remédios e elixires, tal dedicação pode ser melhor
compreendida pela perspectiva de Sevcenko445

Se o desenvolvimento das técnicas publicitárias era compreensível nesse


período marcado por um grande salto na produção e consumo de
mercadorias, a pergunta que fica, porém, é: por que tanta ênfase para os
remédios? Uma razão bastante evidente para isso é que o intenso surto de
urbanização, trazendo para as cidades gentes sobretudo de origem rural,
rompeu o contexto da família ampla e a cadeia de transmissão de
conhecimento das ervas, tratamentos e processos tradicionais de cura. O
lapso foi rapidamente preenchido pelos novos laboratórios químicos e,
sobretudo, pela rapidez dos oportunistas em se dar conta da nova situação.

A cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX, ainda estava
reelaborando sua estrutura urbanística e sanitária conforme os saberes e as técnicas da época,
o que se constituía, de certo modo, como frente de combate às constantes epidemias já
constatadas nesta cidade e neste período.
Ao encerrarmos este capítulo, consideramos ter conseguido mostrar como a poesia de
Augusto dos Anjos fazia referência ao corpo e suas doenças e como tais representações
literárias operavam com imagens elaboradas em articulação direta com algumas das práticas e

445
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio In: NOVAIS, Fernando A. (Org.)
História da Vida Privada no Brasil: República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2006, p.552-553.
245

das sensibilidades que emergiam em meio às experiências de modernização, sobretudo,


aquelas vividas na cidade do Rio de Janeiro, onde o poeta efetivou a publicação de seu livro.
Levando em consideração as experiências de modernização vividas e identificadas na
cidade do Rio de Janeiro, ainda que a modernidade se apresente como um conjunto de
sensibilidades que atribuem um sentido positivo em relação ao futuro, as poesias de Augusto
dos Anjos publicadas em livro reafirmavam, justamente, o desconforto derivado da
consciência da própria finitude e da existência da morte no horizonte.
246

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Propusemos, ao longo deste trabalho, investigar a atividade poética de Augusto dos


Anjos a partir de uma perspectiva historiográfica. Em vista disso, nos afastamos de
interpretações de cunho “psicologizante”, próximas à ideia de que seus versos eram
manifestações de uma personalidade sombria, esquizofrênica, resultante de vivências sociais,
familiares ou amorosas malogradas.
Em que pese termos identificado, em certas circunstâncias de sua experiência vivida,
traços que podem ser associados à essas questões, nossa discussão se concentrou na análise
das imagens poéticas expressas em seus versos e suas relações com os sentidos históricos
presentes nos estratos temporais nos quais seus textos foram escritos e publicados. Nossas
menções à aspectos biográficos, desse modo, ocorreram sempre como complemento – e pela
exigência – das análises e não como foco central.
Procurando observar os imperativos da operação historiográfica, tentamos não perder
de vista a questão da dimensão temporal. Através da análise da temporalidade moderna,
mediante diálogo com Reinhart Koselleck e Marshall Berman, assim como, com outros
autores, percebemos que a modernidade e sua concepção de tempo estimulavam um complexo
de sensibilidades que, se por um lado, sugeriam a “aceleração”, a “novidade”, a expectativa
de aperfeiçoamento, de otimismo, inscritas no futuro, por outro lado, essas experiências de
modernização implicavam, também, em incertezas, em tensões e perdas.
O ingresso de Augusto dos Anjos no campo literário não foi tardio, mas, de certo
modo, foi ambivalente. Circulou por espaços de publicação (predominantemente os jornais
paraibanos “O Comércio” e “A União”) mais “familiares”, não encontrando, aí, maiores
obstáculos, salvo algumas polêmicas. Apesar de publicar continuamente, Augusto dos Anjos
não obteve renome imediato, nem conseguiu viver apenas de suas atividades como literato.
Considerando os ímpetos da modernização no Brasil, no início do século XX, que já
vivia sob a República, encontramos traços, nos seus versos, de elementos próprios do
romantismo, sobretudo, os símbolos românticos da “Pátria”, do “Herói” e do “Exílio”, além
de outras características desse padrão, nos quais vimos idealizações da mulher e do amor,
imagens “luminosas”, positivas, em contraposição à noite, às trevas, assim como, acerca das
“ermas paragens” e da atribuição de sensibilidades humanas à natureza. Os textos, nos quais
essa apropriação do romantismo se verifica, parecem experimentações de forma e conteúdo.
247

A circulação de elementos românticos, a valorização do republicanismo, a crítica da


escravidão e o elogio da Abolição faziam parte do perfil de setores da intelectualidade da
época, pois eram vistos como posicionamentos ditos “modernos” e, por conseguinte,
condizentes com as expectativas projetadas naquele período. A indicação da presença desses
elementos na poética de Augusto dos Anjos, por si só, pode causar estranhamento, sobretudo,
aos olhos dos leitores mais ocasionais, que travam contato só com os versos publicados no
“Eu” e que têm a impressão de que o poeta escreveu apenas sobre morte, vermes e doenças.
A publicação do “Eu”, em 1912, no Rio de Janeiro, recebeu criticas positivas, apesar
de muitas destas indicarem a estranheza derivada da estética dos poemas compilados nesse
livro. Enquanto a ideia de modernidade atribuía, para o futuro e para o desenvolvimento
científico, um tom positivo, otimista, a poesia de Augusto dos Anjos colhida nesse livro,
muitas vezes, caminhou numa direção oposta. Não haveria uma negação da ciência e de seu
desenvolvimento, mas esta rubricaria, no destino de todos, a doença e a morte, não havendo,
portanto, espaço para um otimismo mais “convencional” em relação ao futuro.
Em algumas imagens, a ciência, apesar de enaltecida, é marcada ainda por
sensibilidades românticas, que aproximavam a “técnica” ao “mistério", de modo que, apesar
da identificação entre ciência e modernidade, as marcas da temporalidade moderna
(aceleração, novidade, etc.) não se verificaram. Em outras imagens, por sua vez, o
conhecimento científico assinala, sobretudo, com os contatos com o cientificismo, tão
somente a chegada inevitável das doenças e da morte no horizonte humano.
As imagens da morte, do morrer e das doenças que atacam nosso corpo e alma, assim
como, as representações do que poderíamos chamar de “vida após a morte”, não possuem
sentido religioso, espiritual, ainda que se apresentem como sobrenaturais. Seria um tipo de
pós-vida baseado mais numa “reanimação” das funções vitais e biológicas, do que a posse dos
corpos por um espírito, ou a existência independente de uma “alma”.
O “filósofo-moderno”, muitas vezes, é caricaturado como o pensador que visa
desvendar todos os mistérios, mas que sucumbe em face de uma realidade, ora incognoscível,
ora pautada por um processo de transformação tão dinâmico e amplo, que se torna quase
incompreensível aos sujeitos. Estes, quando muito, são mais testemunhas do que
protagonistas. Sua poética, apesar do contato com os pressupostos cientificistas, que resultou
na introdução em seus versos de termos técnicos e/ou filosóficos, está para além da chamada
“poesia científica”. Augusto dos Anjos utiliza termos técnico-científicos de maneira mais
fecunda.
248

Ainda num misto entre romantismo e cientificismo, as referências ao tema da “noite”


se afastam de sensibilidades mais modernas. Isto porque, o período noturno quebrava o ciclo
de produtividade-descanso. Era à noite que o eu lírico adquiria uma percepção mais intensa,
assim como, atravessava os ermos de ilhas, cidades e cemitérios. Assim, durante a noite, não
havia descanso e espera para um novo dia de trabalho. O período noturno era propício ao
vagar, ao divagar, aos tormentos e angústias.
Nesse mesmo movimento, enquanto as representações do amor “romântico” eram
pautadas por imagens mais convencionais, quase frívolas, aquilo que definimos como amor
“carnal”, em seus versos, está mais associado ao vício, à moléstia, à degradação dos corpos e
da energia vital de homens e mulheres. Encerra-se o amor “carnal” em um conjunto de
imagens negativas. Nesse caso, o sexo termina se tornando quase um assunto “médico”, ou
que necessitasse ser “medicalizado”, por ser potencialmente patológico.
As apropriações e contatos com o romantismo não consistiram na proposição de uma
negação do tempo moderno, visando um retorno à um tempo de “antes”, à um passado
idealizado, harmônico. A aceitação e a proximidade com as sensibilidades modernas não
estimularam, em seus versos, a proposição de um otimismo em relação ao futuro.
Ao contrário, identificamos em seus versos três instâncias temporais associadas à
“carne”, ao “osso” e ao “pó”. A passagem do tempo, além de ressaltar nossa finitude, deixa
marcas imediatas em nossa “carne”, mediante o envelhecimento e o apodrecimento, ao passo
em que o “osso” e o “pó” indicariam um tempo que perdura, que passa mais lentamente, mais
próximo de uma noção de eternidade, de atemporalidade.
Imersos pelas sensibilidades da temporalidade moderna, a poesia de Augusto dos
Anjos relaciona-se diretamente com as experiências de individualização. Isto porque, na
modernidade, a individualidade, a busca e a experiência de si mesmo, são reforçadas,
estimuladas. Nesse sentido, o título de seu livro é mais indiciário desses traços da
modernidade, do que um indicativo de que o sujeito que o escreveu expressasse em seus
versos, de maneira integral, sua personalidade.
Ainda que a associação entre vida e poesia possa ser encontrada em alguns estudos
acerca da poética de Augusto dos Anjos, mostramos que as referências à locais (como o
engenho onde viveu) e pessoas (seu pai, sua mãe, sua ama de leite) relacionados à sua
biografia, encontradas em alguns de seus poemas, não confirmam que seus versos expressam,
integralmente, sua personalidade, o seu “si-mesmo”.
Mesmo sendo possível exercitar o pacto autobiográfico através da poesia, afirmar que
os versos de Augusto dos Anjos se inscrevem nesse exercício corre o risco da simplificação.
249

Em nossa ótica, é mais indicado enxergar nos versos de Augusto dos Anjos não somente esse
traço das experiências de individualização, como também, uma proximidade com as práticas
de uma escrita de si, sem perder de vista as distâncias existentes entre a mímesis poética e
essa escrita autorreferencial.
Tanto o projeto lírico, ou pós-lírico, podem fazer alusões à aspectos oriundos da
memória, da experiência vivida. Contudo, seja na poesia, seja na escrita de si, é impossível
oferecer uma imagem integral, coerente, homogênea e contínua, daquilo que o indivíduo
pressupõe ser. Não compreender bem essas distâncias pode fazer com que o leitor/receptor
“caia” nas armadilhas da ilusão biográfica, transplantando a ordem estruturante da narrativa,
do enredo, para a vida, como se não houvesse lacunas entre o viver e narrar o vivido.
Desse modo, nos esforçamos por compreender a poética de Augusto dos Anjos como
atos de “fingimento”, como a proposição de um conjunto de imagens que devem ser
entendidas “como se fossem reais”, e não como um reflexo puro, e real, de algo supostamente
vivido, ou sentido, pelo poeta e expresso em seus versos tal e qual.
Logo, os textos elaborados e publicados por Augusto dos Anjos como livro constituem
um material a partir do qual ele próprio operou com seleções, visando, com isso, construir-se,
para si mesmo e para os outros, como um “autor”, criando uma mitologia pessoal. Dessa
maneira, os poemas publicados como livro não foram os únicos, nem foram escritos todos de
uma só vez. Ao contrário, o livro consistiu numa complicação de textos escolhidos entre um
material que já estava sendo produzido desde 1901.
Foi, ao levar esse ponto em consideração, observando que os textos publicados no
“Eu” são um recorte tímido em face da quantidade de poemas por ele publicados antes de
1912, que compreendemos seu livro, e o personagem “macabro” que ele expressa, definida
por críticos literários através do rótulo de “poeta da morte”, como uma identidade narrativa
sustentada pelo sujeito fenomênico que escreve versos.
A inclusão, em seus versos, de temáticas e imagens acerca da morte e do morrer, mais
do que expressar a pressuposta morbidez de sua personalidade, termina por nos apresentar
diversas sensibilidades acerca do fenômeno morte, de seus espaços e agentes, sensibilidades
estas, por sua vez, trespassadas pela temporalidade moderna.
Na medida em que a concepção de tempo, na modernidade, pressupõe um tom
positivo para o futuro, a morte e seus temas correlatos tornaram-se um assunto interditado.
Foi necessário, antes e durante o período no qual a poesia de Augusto dos Anjos emergiu,
encontrar novas formas de lidar com a morte, de normatizar espaços como o cemitério, os
túmulos, carneiros e valas comuns.
250

Era necessário, já que é impossível eliminar a morte do horizonte humano, pelo


menos, tornar sua presença menos desagradável, mais estética. Em meio à essas
sensibilidades, a poesia de Augusto dos Anjos circula, reafirmando através de seus versos,
justamente, aquilo que indivíduos e grupos desejavam dissimular. Desse modo, muitos de
seus versos são inconvenientes, criando um efeito desconfortável para alguns leitores.
Seguindo na trilha das experiências de modernização, os indivíduos foram estimulados
a se exercitarem na compreensão de si mesmos, quase que “cultuando” sua individualidade,
mas, também, alimentando uma percepção, um sentimento de si, enquanto “corpo”. Nas
grandes cidades, ícones da modernidade, percebe-se um dos paradoxos fundamentais desse
novo tempo: o indivíduo é (ou deve ser) valorizado, mas encontra-se num mesmo espaço com
outros tantos indivíduos. Cada um, perseguindo sua própria valorização e a realização de seus
projetos, termina por se tornar indiferente em relação aos outros. Na cidade, habita um
conjunto de indivíduos, assim como, um amontoado de corpos.
Nesse caso, a poesia de Augusto dos Anjos, colhida em livro, também produz imagens
provocativas que se aproximam dessas questões. Todavia, a atenção cenestésica dispensada
em relação ao corpo, aos sinais que ele manifesta, ao seu “funcionamento”, apenas comunica
o progressivo envelhecimento, a vulnerabilidade e a presença de enfermidades.
Nessa lógica, da mesma forma que a sensibilidade moderna estimula a noção de
individuo como “protagonista”, indivíduo este que deve buscar realização pessoal, há também
o sentimento de “fracasso”, por parte dos sujeitos que não conseguiram “vencer na vida”.
Alguns textos de Augusto dos Anjos desenvolvem esse tema do “fracasso” sob a perspectiva
do “vencido”. Contudo, em seus versos, a derrota, o fracasso fundamental, seria aquele
experimentado com a chegada da morte, que se mostra sempre inconveniente e imprevista.
Sua poesia não se configura, portanto, como portadora de uma “missão”, isto é, ela
não visa denunciar as desigualdades sociais, a exploração, a miséria. Ao mostrarmos algumas
das contradições inerentes à modernização do Rio de Janeiro, por exemplo, numa articulação
com seus versos, procuramos ressaltar que, para além das promessas de velocidade e
novidade, há uma dimensão desconfortável na modernidade. Ao mesmo tempo em que as
grandes cidades simbolizavam a modernidade, a dinamicidade, o progresso, nelas se faziam
presentes, também, miséria, pobreza e epidemias.
É possível afirmar que sua poesia, principalmente seus textos mais significativos,
colhidos em livro, propõe uma reflexão incisiva sobre a vida como um todo e sobre a
integração e presença da morte enquanto fato inevitável nas experiências vividas. E este
conjunto de reflexões, tal como as contradições da modernidade, é desconfortável, estranho,
251

inquietante. As referências às doenças, à morte e aos seus espaços e agentes, podem ser vistas
como metáforas para esse sentimento de desconforto, de estranheza, de deslocamento e mal
estar. Isto não se resume numa prática da literatura como “missão”.
Nesse sentido, o monossílabo “Eu”, que dá título ao seu livro de versos, é indicativo
de um “Outro”. Ou de “vários”. Ao mesmo tempo em que há o Augusto dos Anjos autor do
“Eu”, há também aquele que escreveu versos para sua mãe, ao fim de uma carta para ela
enviada; aquele que traçava perfis poéticos para amigos e amigas, assim como, aquele outro
Augusto, autor de poemas românticos e/ou que apresentavam a edição do NONEVAR,
jornalzinho que circulava nos dias da Festa de Nossa Senhora das Neves, na cidade paraibana
de João Pessoa. Havia, ainda, outro Augusto dos Anjos que escreveu versos improvisados na
ocasião do aniversário de um de seus irmãos mais novos.
Além disso, estamos comentando apenas o sujeito que escrevia versos, os quais foram
o foco principal de nossa pesquisa. A atividade com a poesia não fora seu único exercício com
a escrita, pois o poeta também se dedicava à produção de outros tipos de gêneros textuais, tais
como crônicas e cartas, paralelamente aos versos. Estes, não foram escritos e publicados em
“bloco”, como num tipo de “fase”, nem foram “períodos” que se sucederam. A escrita dos
versos colhidos em livro, daqueles que permaneceram publicados apenas em jornais, assim
como, das crônicas e cartas, intercalavam-se.
Nessa compreensão, os modos pelos quais Augusto dos Anjos se fez, através da
escrita, foram tantos quanto os tipos de escrita aos quais ele se dedicou. Em que pese seus
poemas colhidos em livro serem considerados mais significativos, pela força das imagens ali
presentes e por conta dos efeitos causados no leitor, todos os seus versos são relevantes por
nos apresentarem vestígios oriundos de seus estratos temporais. São férteis em sentidos
históricos.
Não parece adequado tentar confinar Augusto dos Anjos somente nos versos de seu
livro, nem tampouco naqueles publicados apenas em jornais e periódicos. Seu livro “Eu” o
constituiu como um “Outro”. E cada texto, cada crônica ou poema por ele escrito o constituía
de uma maneira diferente, criava um novo “eu”, um novo “outro”. Todos se equivaliam,
nenhum deles sendo nem mais verdadeiro, nem mais falso. Ele se fez pela escrita e as escritas
o fizeram.
252

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