As Flores Do Mal - Charles Baudelaire
As Flores Do Mal - Charles Baudelaire
As Flores Do Mal - Charles Baudelaire
Capa
Folha de rosto
Sumário
Introdução – Júlio Castañon Guimarães
Spleen e ideal
Quadros parisienses
O vinho
Flores do mal
Revolta
A morte
DESTROÇOS
Notas
Apêndices
As flores do mal — J. Barbey d’Aurevilly
Introdução — Guillaume Apollinaire
Situação de Baudelaire — Paul Valéry
CHARLES BAUDELAIRE nasceu em 1821, em Paris. Em 1827, aos seis anos, Baudelaire perde o pai. No
ano seguinte, sua mãe casa-se novamente. Em 1841, tendo em vista a vida sem perspectivas que Baudelaire
levava, a família faz com que o jovem parta numa viagem de navio para Calcutá, mas ele retorna à França
antes de completar o percurso. No ano seguinte, recebe a herança paterna, da qual, em dois anos, gasta a
metade. Fica então sob conselho judiciário, a partir de 1842, recebendo uma pequena quantia mensal. Nesse
mesmo ano conhece Jeanne Duval, que se torna sua amante e com a qual se relaciona até pelo menos 1856.
Já colaborando em diferentes periódicos, tem sua primeira publicação autônoma em 1845, um trabalho de
crítica intitulado Salão de 1845. Além dos poemas, publica outros textos sobre artes plásticas e traduz obras
de Edgar Allan Poe, sempre levando uma vida extremamente instável, mudando com frequência de
endereço e contraindo muitas dívidas. A todos os problemas de Baudelaire, acrescenta-se com o passar do
tempo uma saúde cada vez mais frágil. Em 1864 instala-se na Bélgica, onde em 1866 sofre um acidente
vascular cerebral, tornando-se afásico e hemiplégico. Falece em Paris, em 31 de agosto de 1867.
JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES, tradutor e escritor, traduziu Fragmentos do Narciso e outros poemas
de Paul Valéry (Ateliê, 2013) e Brinde fúnebre e outros poemas de Mallarmé (7Letras, 2007), além de
autores como Barthes, Apollinaire, Bataille e Sartre. Seu trabalho de poesia está reunido no volume Poemas
1975-2005 (Cosac Naify, 2006), a que se seguiu Do que ainda (Contracapa, 2009). Publicou também Por
que ler Manuel Bandeira (Globo, 2008) e Entre reescritas e esboços (Topbooks, 2010), tendo ainda
organizado a edição crítica de Poesia 1930-1962 de Carlos Drummond de Andrade (Cosac Naify, 2012) e
Crônicas inéditas I e II de Manuel Bandeira (Cosac Naify, 2008 e 2009).
JULES BARBEY D’AUREVILLY foi um escritor francês nascido em 1808. Conhecido por suas obras que
exploram aspectos de mistério e quase terror, influenciou autores como Auguste Villiers de l’Isle-Adam,
Henry James e Marcel Proust. Entre suas obras mais conhecidas estão Les diaboliques e L’ensorcelée.
Morre em 1889, em Paris.
GUILLAUME APOLLINAIRE foi um escritor e crítico francês nascido em 1880, em Roma, filho de uma
condessa polonesa e pai desconhecido, tendo passado a infância em Roma, Mônaco, Lyon, Nice, entre
outras cidades. Um dos mais conhecidos poetas do século XX, sua obra está ligada às vanguardas da época,
como o cubismo e o surrealismo (termos cuja criação lhe é atribuída). É autor, entre outras obras, dos livros
de poemas Alcoóis e Caligramas. Dois anos depois de ser ferido na Primeira Guerra Mundial, morre em
Paris, em 1918, vítima da gripe espanhola.
PAUL VALÉRY foi um escritor e pensador francês. Nascido em 1871, na cidade de Sète, foi criado em
Montpellier. Sua obra se estende por poesia, crítica literária, ensaios, ficção, teatro e outros gêneros. Entre
seus trabalhos mais conhecidos, estão a obra ficcional Monsieur Teste e o livro de poemas Charmes. Por
seus poemas, como o “Cemitério marinho”, é considerado um dos poetas mais importantes do século XX,
ao lado de nomes como Rilke, T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Ezra Pound. Valéry morre em 20 de julho de
1945, em Paris.
Introdução
JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES
As flores do mal é um título que de certo modo ultrapassa o livro para o qual foi
imaginado, já que se transformou numa expressão a que se pode recorrer sem
qualquer referência à obra de Baudelaire. Mas é claro que só ganha sua plena
significação no contexto dessa obra. Curiosamente, o título não teria sido criação
de Baudelaire; teria sido sugerido a ele por um amigo, Hippolyte Babou. Mas o
fato é que o poeta o adotou para um conjunto de poemas que lhe dão seu efetivo
sentido. Grafava-o sempre com maiúscula em Mal e minúscula em flores, o que
significava dar mais atenção ao Mal, indicando-o como uma noção, um conceito,
que subjaz ao longo do livro. Aproximações biográficas parecem facilitar a
percepção desse dado, mas podem também falseá-lo: é tentador associá-lo a uma
vida em que, entre fatos e lendas, se encontram conflitos familiares, dandismo,
drogas, prostituição, dificuldades financeiras, doenças, censura e assim por
diante. Some-se ao conjunto a denominação de poeta maldito, na classificação
de Verlaine.
Muitos dos retratos de Baudelaire permitem associar sua imagem a esse
contexto. No entanto, um dos melhores, o realizado por Courbet, mostra o poeta,
ainda jovem, numa atividade talvez mais próxima de sua produção literária —
está lendo, e nem sempre se lembra que ele foi um poeta culto, grande
conhecedor da tradição poética. Foi também retratado em algumas cenas de
grupo, como no célebre Música nas Tulherias de Manet, ou na obra de Fantin-
Latour Homenagem a Delacroix, em que está sentado, compenetrado, ao lado de
vários outros, em torno de um retrato de Delacroix. Contemporâneo deste, o
poeta interessou-se muito pela obra do pintor, que o inspirou em alguns
momentos.
Como também o campo da música está presente no universo de Baudelaire,
vale ainda lembrar que ele foi contemporâneo de Berlioz, com quem parece mais
do que natural que tivesse afinidades; seu interesse musical, no entanto, se
dirigiu para Wagner, sobre quem escreveu. Assim, as relações de sua poesia com
a música não ficam apenas nos elementos sonoros de seus poemas, mas talvez
seja em parte por esse aspecto que foram musicados por Fauré, Duparc, Debussy,
Alban Berg; além disso, inspiraram peças instrumentais, como algumas para
piano de Debussy (que têm como títulos versos de Baudelaire), a Suíte lírica de
Alban Berg e Tout un monde lointain de Henri Dutilleux.
Estudos sobre As flores do mal com frequência iniciam-se referindo a
importância da obra e o fato de se tratar de um dos livros de poesia que
exerceram maior influência na literatura. John E. Jackson, estudioso suíço de
Baudelaire, é um bom exemplo, quando de modo imediato afirma ser esta a “a
coletânea de poemas mais influente destes dois últimos séculos”.1 Jackson vai
além dessa relação com obras posteriores e reconhece um papel determinante de
natureza até mesmo conceitual para a obra: “Mudou até a ideia que temos da
poesia, do que estamos em condições de esperar dela, do que ela tem a nos
oferecer”.2 Essas mudanças acontecem, primeiro, na própria poesia de
Baudelaire e, a seguir, em consequência de sua repercussão, no âmbito da
produção poética posterior.
Pode-se ler na mesma perspectiva a afirmação de Marcel Raymond de que
“existe uma tradição estética fundada por As flores do mal (e prolongada,
magnificada em seguida por Mallarmé)”.3 Essa “tradição estética” estende-se
pela posteridade do autor de Un coup de dés. Certamente é muito difícil detectá-
la de modo específico nessa amplitude que ela vai ganhando — sua medida
estará sempre no impacto permanente causado pela leitura de As flores do mal. É
assim essa amplitude que permite ao crítico complementar com sua observação o
que ele dissera no início de seu texto: “há hoje uma concordância geral em
considerar Les fleurs du mal como uma das fontes vivas do movimento poético
contemporâneo”. As duas observações de Marcel Raymond na verdade ecoam
observações precursoras feitas por Paul Valéry. Talvez estas sejam mesmo até
mais radicais. Segundo Valéry, a poesia de Baudelaire “impõe-se como a própria
poesia da modernidade”.4 Enfatiza-se aí a inovação baudelairiana. A
modernidade já está nela. Valéry ainda salienta aquilo que vem antes de
Mallarmé “magnificar” essa inovação, o percurso em que Baudelaire é essencial
para essa poesia da modernidade: “Nem Verlaine, nem Mallarmé, nem Rimbaud
teriam sido o que foram sem a leitura que fizeram das Flores do mal na idade
decisiva”. Assim vai-se formando a tradição, certamente no âmbito da poesia,
mas talvez pouco tenha faltado a Valéry para ir além, como críticos posteriores
por fim o fizeram, e ver a presença baudelairiana em outros espaços que não
exclusivamente o poético.
De fato, muito do que está presente em As flores do mal permite que se amplie
esse espectro conceitual. É o que se tem quando, dando exemplos dessa
progressão, diz Auerbach:
Auerbach refere-se à mistura de estilo elevado e estilo baixo, que pelo menos
em parte explicaria a relação com autores tão diversos. Mesmo que mais
evidente em certos autores, e de mais difícil percepção em outros, trata-se de
identificar a “tradição” já referida pelo exame mais estrito dos textos. E tal
tradição parece crescer com o tempo.
Nessa amplitude, podemos incluir as sucessivas traduções e a crescente
produção crítica sobre essa obra. A propósito da crítica, Claude Pichois indaga:
O único elogio que solicito para este livro é que se reconheça que ele não é
um puro álbum e que tem um começo e um fim. Todos os poemas novos
foram feitos para serem adaptados ao quadro singular que eu havia
escolhido.13
THÉOPHILE GAUTIER
AVEC LES SENTIMENTS
DE LA PLUS PROFONDE HUMILITÉ
JE DÉDIE
CES FLEURS MALADIVES
C. B.
AO POETA IMPECÁVEL
ao perfeito mago das letras francesas
a meu caríssimo e muito venerado
MESTRE E AMIGO
THÉOPHILE GAUTIER
COM OS SENTIMENTOS
DA MAIS PROFUNDA HUMILDADE
DEDICO
ESTAS FLORES DOENTIAS
C. B.
au lecteur
I
LES TÉNÈBRES
II
LE PARFUM
Lecteur, as-tu quelquefois respiré
Avec ivresse et lente gourmandise
Ce grain d’encens qui remplit une église,
Ou d’un sachet le musc invétéré?
III
LE CADRE
IV
LE PORTRAIT
i
as trevas
ii
o perfume
Leitor, você já terá respirado,
Com embriaguez e gula sobeja,
Esse grão de incenso que enche uma igreja,
Ou de um sachê o almíscar arraigado?
iii
a moldura
iv
o retrato
“Ó metamorfose e magia
Dos sentidos, que um só resume!
Seu respirar é melodia,
Como sua voz é perfume!”
xlii
“que diras-tu ce soir,
pauvre âme solitaire”
II
ii
É o espírito protetor
Da casa; inspira, julga, guia
Tudo em sua soberania;
Fada? deus? o que mais supor?
II
J’aime de vos longs yeux la lumière verdâtre,
Douce beauté, mais tout aujourd’hui m’est amer,
Et rien, ni votre amour, ni le boudoir, ni l’âtre,
Ne me vaut le soleil rayonnant sur la mer.
ii
Gosto em teus longos olhos da luz esverdeada,
Mas hoje tudo só me consegue amargar,
E nada — teu amor, lareira, alcova —, nada
Pode valer-me o sol brilhando sobre o mar.
Je t’adore, ô ma frivole,
Ma terrible passion!
Avec la dévotion
Du prêtre pour son idole.
Le désert et la forêt
Embaument tes tresses rudes,
Ta tête a les attitudes
De l’énigme et du secret.
Tu me déchires, ma brune,
Avec un rire moqueur,
Et puis tu mets sur mon cœur
Ton œil doux comme la lune.
Ó frívola, eu te quero,
Minha terrível paixão!
Com a mesma devoção
Que a um ídolo vota um clero.
A floresta e o deserto
Perfumam tuas tranças rudes,
Tem tua cabeça atitudes
Do enigma como do incerto.
Et je te donnerai, ma brune,
Des baisers froids comme la lune
Et des caresses de serpent
Autour d’une fosse rampant.
— Insatiablement avide
De l’obscur et de l’incertain,
Je ne geindrai pas comme Ovide
Chassé du paradis latin.
— Ávido, insaciavelmente,
Do incerto, obscuro e sibilino,
Não serei Ovídio gemente
Expulso do éden latino.
À J. G. F.
Je te frapperai sans colère
Et sans haine, comme un boucher,
Comme Moïse le rocher!
Et je ferai de ta paupière,
A J. G. F.
Sem cólera eu te baterei,
Tal um carniceiro sem medo,
Tal como Moisés o rochedo!
E de tua pálpebra farei,
Un malheureux ensorcelé
Dans ses tâtonnements futiles,
Pour fuir d’un lieu plein de reptiles,
Cherchant la lumière et la clé;
II
Um enfeitiçado deplorando,
A fim de, num fútil esgar,
Fugir aos répteis e ao lugar,
A luz e a chave vai buscando;
Um danado, na escuridão,
Beira um abismo, cujo odor
Trai profundidade e bolor,
Por escadas sem corrimão,
ii
Valetaille de rimeurs
Te dédiant leurs primeurs
Et contemplant ton soulier
Sous l’escalier,
Pérolas lúcidas ou
Poemas de mestre Belleau
Por galantes dedicados
Sempre ofertados,
Criadagem de rimadores
Dedicando-te labores
E te olhando do sopé
Da escada o pé,
De soslaio tu espias
Algumas bijuterias
Que não poderei sequer
Te oferecer.
À Victor Hugo
II
A Victor Hugo
ii
À Victor Hugo
Fourmillante cité, cité pleine de rêves,
Où le spectre en plein jour raccroche le passant!
Les mystères partout coulent comme des sèves
Dans les canaux étroits du colosse puissant.
A Victor Hugo
Fervilhante, repleta de sonhos, cidade
Onde o espectro, de dia, interpela o passante!
Tal seivas, os mistérios correm à vontade
Nos estreitos canais do colosso possante.
À Victor Hugo
II
III
IV
A Victor Hugo
ii
iii
iv
II
ii
À Ernest Christophe
Fière, autant qu’un vivant, de sa noble stature,
Avec son gros bouquet, son mouchoir et ses gants,
Elle a la nonchalance et la désinvolture
D’une coquette maigre aux airs extravagants.
A Ernest Christophe
Orgulhosa, tal ser vivo, de sua estatura
Nobre, com lenço, luvas, buquê abundante,
Tem a indiferença e a desenvoltura
De uma faceira magra com ar extravagante.
À Constantin Guys
De ce terrible paysage,
Tel que jamais mortel n’en vit,
Ce matin encore l’image,
Vague et lointaine, me ravit.
Insouciants et taciturnes,
Des Ganges, dans le firmament,
Versaient le trésor de leurs urnes
Dans des gouffres de diamant.
II
A Constantin Guys
Despreocupadas, taciturnas,
Torrentes no céu culminantes
Vertiam os bens de suas urnas
Nos sorvedouros de diamantes.
Arquiteto de fantasias,
Fazia, tal como pensado,
Sob um túnel de pedrarias
Passar um oceano domado;
ii
Na asa — embalançadamente —
Do redemoinho atilado,
Por desvairamento adjacente,
Vieux cul-de-lampe
II
ii
PRIÈRE
oração
À F. N.
Connais-tu, comme moi, la douleur savoureuse,
Et de toi fais-tu dire: “Oh! L’homme singulier!”
— J’allais mourir. C’était dans mon âme amoureuse,
Désir mêlé d’horreur, un mal particulier;
A F. N.
Conheces, tal como eu, essa dor saborosa,
Fazes de ti dizerem: “Homem singular!”
— Eu morreria. Havia em minha alma amorosa,
Desejo com horror, um mal particular;
À Maxime Du Camp
II
III
IV
V
Et puis, et puis encore?
VI
“Ô cerveaux enfantins!
VII
VIII
A Maxime Du Camp
ii
iii
iv
E depois, e depois?
vi
“Cérebros desmiolados!
vii
viii
La gerbe épanouie
En mille fleurs,
Où Phœbé réjouie
Met ses couleurs,
Tombe comme une pluie
De larges pleurs.
La gerbe épanouie
En mille fleurs,
Où Phœbé réjouie
Met ses couleurs,
Tombe comme une pluie
De larges pleurs.
La gerbe épanouie
En mille fleurs,
Où Phœbé réjouie
Met ses couleurs,
Tombe comme une pluie
De larges pleurs.
viii
o chafariz
Um só buquê faz-se
Com muitas flores
— Febe aí apraz-se,
Mostra suas cores —,
E, chuva, desfaz-se
Em pranto e dores.
Um só buquê faz-se
Com muitas flores
— Febe aí apraz-se,
Mostra suas cores —,
E, chuva, desfaz-se
Em pranto e dores.
Um só buquê faz-se
Com muitas flores
— Febe aí apraz-se,
Mostra suas cores —,
E, chuva, desfaz-se
Em pranto e dores.
ix
les yeux de berthe
II
ii
É um satírico, um brincalhão;
Mas sua energia — e é com ela
Que pinta o Mal e sua sequela —
Mostra seu belo coração.
reliquat et dossier
des fleurs du mal
Projetos de prefácios
Projets de préfaces
[i]
préface des fleurs
Ce n’est pas pour mes femmes, mes filles ou mes sœurs que ce livre a été écrit;
non plus que pour les femmes, les filles ou les sœurs de mon voisin. Je laisse
cette fonction à ceux qui ont intérêt à confondre les bonnes actions avec le beau
langage.
Je sais que l’amant passionné du beau style s’expose à la haine des
multitudes. Mais aucun respect humain, aucune fausse pudeur, aucune coalition,
aucun suffrage universel ne me contraindront à parler le patois incomparable de
ce siècle, ni à confondre l’encre avec la vertu.
Des poètes illustres s’étaient partagé depuis longtemps les provinces les plus
fleuries du domaine poétique. Il m’a parut plaisant, et d’autant plus agréable
que la tâche était plus difficile, d’extraire la beauté du Mal. Ce livre,
essentiellement inutile et absolument innocent, n’a pas été fait dans un autre but
que de me divertir et d’exercer mon goût passionné de l’obstacle.
Quelques-uns m’ont dit que ces poésies pouvaient faire du mal. Je ne m’en
suis pas réjoui. D’autres, de bonnes âmes, qu’elles pouvaient faire du bien; et
cela ne m’a pas affligé. La crainte des uns et l’espérance des autres m’ont
également étonné, et n’ont servi qu’à me prouver une fois de plus que ce siècle
avait désappris toutes les notions classiques relatives à la littérature.
Malgré les secours que quelques cuistres célèbres ont apporté à la sottise
naturelle de l’homme, je n’aurais jamais cru que notre patrie pût marcher avec
une telle vélocité dans la voie du progrès. Ce monde a acquis une épaisseur de
vulgarité qui donne au mépris de l’homme spirituel la violence d’une passion.
Mais il est des carapaces heureuses que le poison lui-même n’entamerait pas.
J’avais primitivement l’intention de répondre à de nombreuses critiques, et,
en même temps, d’expliquer quelques questions très simples, totalement
obscurcies par la lumière moderne: qu’est-ce que la Poésie? quel est son but? de
la distinction du Bien d’avec le Beau; de la Beauté dans le Mal; que le rythme et
la rime répondent dans l’homme aux immortels besoins de monotonie, de
symétrie et de surprise; de l’adaptation du style au sujet; de la vanité et du
danger de l’inspiration, etc., etc.; mais j’ai eu l’imprudence de lire ce matin
quelques feuilles publiques; soudain, une indolence, du poids de vingt
atmosphères, s’est abattue sur moi, et je me suis arrêté devant l’épouvantable
inutilité d’expliquer quoi que ce soit à qui que ce soit. Ceux qui savent me
devinent, et pour ceux qui ne peuvent ou ne veulent pas comprendre,
j’amoncellerais sans fruit les explications.
C. B.
[i]
prefácio das flores
Não é para minhas mulheres, minhas filhas ou minhas irmãs que este livro foi
escrito; assim como também não para as mulheres, as filhas ou as irmãs de meu
vizinho. Deixo essa função para aqueles que têm interesse em confundir as boas
ações com a bela linguagem.
Sei que o apreciador apaixonado do estilo belo se expõe ao ódio das
multidões. Todavia, nenhum respeito humano, nenhum falso pudor, nenhuma
coalizão, nenhum sufrágio universal irão obrigar-me a falar o dialeto
incomparável deste século, nem a confundir a tinta com a virtude.
Poetas ilustres partilharam há tempos as províncias mais floridas do domínio
poético. Pareceu-me prazeroso, e tanto mais agradável quanto mais difícil era a
tarefa, extrair do Mal a beleza. Este livro, essencialmente inútil e absolutamente
inocente, não foi feito com outro objetivo que o de me divertir e praticar meu
gosto apaixonado pelo obstáculo.
Alguns me disseram que estas poesias podiam fazer mal. Não fiquei satisfeito
com isso. Outros, boas almas, que elas podiam fazer bem; e isso não me afligiu.
O temor de uns e a esperança de outros espantaram-me igualmente e só serviram
para me provar uma vez mais que este século desaprendeu todas as noções
clássicas relativas à literatura.
Apesar do auxílio que alguns pretensiosos célebres deram à tolice natural dos
homens, eu jamais teria acreditado que nossa pátria pudesse andar com tal
velocidade no caminho do progresso. Este mundo adquiriu uma espessura de
vulgaridade que dá ao desprezo do homem inteligente a violência de uma
paixão. Há, porém, carapaças felizes que o próprio veneno não atacaria.
Inicialmente, eu tinha a intenção de responder a numerosas críticas e, ao
mesmo tempo, de explicar algumas questões muito simples, totalmente
obscurecidas pela luz moderna: que é a Poesia? qual é sua finalidade? da
distinção entre o Bem e o Belo; da Beleza no Mal; que o ritmo e a rima
correspondem no homem às imortais necessidades de monotonia, de simetria e
de surpresa; da adaptação do estilo ao assunto; da vaidade e do perigo da
inspiração etc. etc.; tive, porém, a imprudência de ler esta manhã algumas folhas
públicas; de repente, uma indolência, com o peso de vinte atmosferas, abateu-se
sobre mim, e me detive diante da assustadora inutilidade de explicar o que quer
que seja a quem quer que seja. Os que sabem, intuem-me, e para aqueles que não
podem ou não querem compreender, eu amontoaria infrutiferamente as
explicações.
C. B.
[ii]
préface
— Comment, par une série d’efforts déterminée, l’artiste peut s’élever à une
originalité proportionnelle;
comment la poésie touche à la musique par une prosodie dont les racines
plongent plus avant dans l’âme humaine que ne l’indique aucune théorie
classique;
que la poésie française possède une prosodie mystérieuse et méconnue,
comme les langues latine et anglaise;
pourquoi tout poète qui ne sait pas au juste combien chaque mot comporte de
rimes est incapable d’exprimer une idée quelconque;
que la phrase poétique peut imiter (et par là elle touche à l’art musical et à la
science mathématique) la ligne horizontale, la ligne droite ascendante, la ligne
droite descendante; qu’elle peut monter à pic vers le ciel, sans essoufflement, ou
descendre perpendiculairement vers l’enfer avec la vélocité de toute pesanteur;
qu’elle peut suivre la spirale, décrire la parabole, ou le zigzag figurant une série
d’angles superposés;
que la poésie se rattache aux arts de la peinture, de la cuisine et du
cosmétique par la possibilité d’exprimer toute sensation de suavité ou
d’amertume, de béatitude ou d’horreur, par l’accouplement de tel substantif
avec tel adjectif, analogue ou contraire;
comment, appuyé sur mes principes et disposant de la science que je me
charge de lui enseigner en vingt leçons, tout homme devient capable de
composer une tragédie qui ne sera pas plus sifflée qu’une autre, ou d’aligner un
poème de la longueur nécessaire pour être aussi ennuyeux que tout poème
épique connu.
Tâche difficile que de s’élever vers cette insensibilité divine! Car moi-même,
malgré les plus louables efforts, je n’ai su résister au désir de plaire à mes
contemporains, comme l’attestent en quelques endroits, apposées comme un
fard, certaines basses flatteries adressées à la démocratie, et même quelques
ordures destinées à me faire pardonner la tristesse de mon sujet. Mais MM. les
journalistes s’étant montrés ingrats envers les caresses de ce genre, j’en ai
supprimé la trace, autant qu’il m’a été possible, dans cette nouvelle édition.
Que je me propose, pour vérifier de nouveau l’excellence de ma méthode, de
l’appliquer prochainement à la célébration des jouissances de la dévotion et des
ivresses de la gloire militaire, bien que je ne les aie jamais connues.
Note sur les plagiats. — Thomas Gray. Edgar Poe (2 passages). Longfellow (2
passages). Stace. Virgile (tout le morceau d’Andromaque). Eschyle. Victor Hugo.
[iii]
— Como, por uma série determinada de esforços, o artista pode elevar-se a uma
originalidade proporcional;
como a poesia tem a ver com a música por uma prosódia cujas raízes
mergulham mais fundo na alma humana do que o indica alguma teoria clássica;
que a poesia francesa tem uma prosódia misteriosa e desconhecida, como as
línguas latina e inglesa;
por que todo poeta que não sabe exatamente quanto cada palavra comporta de
rimas é incapaz de exprimir qualquer ideia;
que a frase poética pode imitar (e aí ela tem a ver com a arte musical e a
ciência matemática) a linha horizontal, a linha reta ascendente, a linha reta
descendente; que pode subir a pino para o céu, sem falta de ar, ou descer
perpendicularmente para o inferno com a velocidade de todo o peso; que pode
seguir a espiral, descrever a parábola ou o zigue-zague figurando uma série de
ângulos superpostos;
que a poesia se liga às artes da pintura, da cozinha e da cosmética pela
possibilidade de exprimir toda sensação de suavidade ou de amargor, de
beatitude ou de horror, pela junção de tal substantivo com tal adjetivo, análogo
ou contrário;
como, apoiado em meus princípios e dispondo da ciência que me encarrego de
lhe ensinar em vinte lições, todo homem se torna capaz de compor uma tragédia
que não será mais vaiada que outra, ou de alinhar um poema com a extensão
necessária para ser tão tedioso quanto qualquer poema épico conhecido.
Tarefa difícil é elevar-se a essa insensibilidade divina! Pois eu mesmo, apesar
dos mais louváveis esforços, não pude resistir ao desejo de agradar a meus
contemporâneos, como o atestam em alguns lugares, apostas como uma
maquiagem, certas baixas lisonjas dirigidas à democracia e mesmo certo lixo
destinado a fazer com que eu perdoe a tristeza de meu tema. No entanto, como
os senhores jornalistas se mostraram ingratos para com as carícias desse gênero,
suprimi seu vestígio, tanto quanto me foi possível, nesta nova edição.
Que eu me proponha, para verificar de novo a excelência de meu método, a
aplicá-lo proximamente à celebração dos prazeres da devoção e dos
inebriamentos da glória militar, embora eu nunca os tenha conhecidos.
Nota sobre os plágios. — Thomas Gray. Edgar Poe (2 passagens). Longfellow
(2 passagens). Estácio. Virgílio (todo o trecho de Andrômaca). Ésquilo. Victor
Hugo.
[iv]
projet de préface pour
les fleurs du mal
(à fondre peut-être avec d’anciennes notes)
S’il y a quelque gloire à n’être pas compris, ou à ne l’être que très peu, je peux
dire, sans vanterie, que, par ce petit livre, je l’ai acquise et méritée d’un seul
coup. Offert plusieurs fois de suite à divers éditeurs qui le repoussaient avec
horreur, poursuivi et mutilé, en 1857, par suite d’un malentendu fort bizarre,
lentement rajeuni, accru et fortifié pendant quelques années de silence, disparu
de nouveau, grâce à mon insouciance, ce produit discordant de la Muse des
Derniers jours, encore avivé par quelques nouvelles touches violentes, ose
affronter aujourd’hui pour la troisième fois le soleil de la sottise.
Ce n’est pas ma faute; c’est celle d’un éditeur insistant qui se croit assez fort
pour braver le dégoût public. “Ce livre restera sur toute votre vie comme une
tache”, me prédisait, dès le commencement, un de mes amis qui est un grand
poète. En effet, toute mes mésaventures lui ont, jusqu’à présent, donné raison.
Mais j’ai un de ces heureux caractères qui tirent une jouissance de la haine et
qui se glorifient dans le mépris. Mon goût diaboliquement passionné de la bêtise
me fait trouver des plaisirs particuliers dans les travestissements de la calomnie.
Chaste comme le papier, sobre comme l’eau, porté à la dévotion comme une
communiante, inoffensif comme une victime, il ne me déplairait pas de passer
pour un débauché, un ivrogne, un impie et un assassin.
Mon éditeur prétend qu’il y aurait quelque utilité, pour moi comme pour lui, à
expliquer pourquoi et comment j’ai fait ce livre, quels ont été mon but et mes
moyens, mon dessein et ma méthode. Un tel travail de critique aurait sans doute
quelques chances d’amuser les esprits amoureux de la rhétorique profonde.
Pour ceux-là, peut-être l’écrirai-je plus tard et le ferai-je tirer à une dizaine
d’exemplaires. Mais, à un meilleur examen, ne paraît-il pas évident que ce serait
là une besogne tout à fait superflue, pour les uns comme pour les autres, puisque
les uns savent ou devinent, et que les autres ne comprendront jamais? Pour
insuffler au peuple l’intelligence d’un objet d’art, j’ai une trop grande peur du
ridicule, et je craindrais, en cette matière, d’égaler ces utopistes qui veulent, par
un décret, rendre tous les Français riches et vertueux d’un seul coup.
Et puis, ma meilleure raison, ma suprême, est que cela m’ennuie et me
déplaît. Mène-t-on la foule dans les ateliers de l’habilleuse et du décorateur,
dans la loge de la comédienne? Montre-t-on au public affolé aujourd’hui,
indifférent demain, le mécanisme des trucs? Lui explique-t-on les retouches et
les variantes improvisées aux répétitions, et jusqu’à quelle dose l’instinct et la
sincérité sont mêlés aux rubriques et au charlatanisme indispensable dans
l’amalgame de l’œuvre? Lui révèle-t-on toutes les loques, les fards, les poulies,
les chaînes, les repentirs, les épreuves barbouillées, bref toutes les horreurs qui
composent le sanctuaire de l’art?
D’ailleurs telle n’est pas, aujourd’hui, mon humeur. Je n’ai désir ni de
démontrer, ni d’étonner, ni d’amuser, ni de persuader. J’ai mes nerfs, mes
vapeurs. J’aspire à un repos absolu, et à une nuit continue. Chantre des voluptés
folles du vin et de l’opium, je n’ai soif que d’une liqueur inconnue sur la terre, et
que la pharmaceutique céleste elle-même ne pourrait pas m’offrir — d’une
liqueur qui ne contiendrait ni la vie/ vitalité ni la mort, ni l’excitation, ni le
néant. Ne rien savoir, ne rien enseigner, ne rien vouloir, ne rien sentir, dormir et
encore dormir, tel est aujourd’hui mon unique vœu. Vœu infame et dégoûtant,
mais sincère.
Toutefois, comme un goût supérieur nous apprend à ne pas craindre de nous
contredire un peu nous-mêmes, j’ai rassemblé, à la fin de ce livre abominable,
les témoignages de sympathie de quelques-uns des hommes que je prise le plus,
pour qu’un lecteur impartial en puisse inférer que je ne suis pas absolument
digne d’excommunication et qu’ayant su me faire aimer de quelques-uns, mon
cœur, quoi qu’en ait dit je ne sais plus quel torchon imprimé, n’a peut-être pas
“l’épouvantable laideur de mon visage”.
Enfin, par une générosité peu commune, dont MM. les critiques…
Comme l’ignorance va croissant…
Je dénonce moi-même les imitations…
[iv]
projeto de prefácio para
as flores do mal
Bien que je te prie de servir de parrain aux Fleurs du mal, ne crois pas que je
sois assez perdu, assez indigne du nom de poète pour m’imaginer que ces fleurs
maladives méritent ton noble patronage. Je sais que dans les régions éthérées de
la véritable Poésie, le Mal n’est pas, non plus que le Bien, et que ce misérable
dictionnaire de mélancolie et de crime peut légitimer les réactions de la morale,
comme le blasphémateur confirme la Religion. Mais j’ai voulu, autant qu’il était
en moi, en espérant mieux peut-être rendre un hommage profond à l’auteur
d’Albertus, de La Comédie de la Mort et d’España, au poète impeccable, au
magicien ès langue française, dont je me déclare, avec autant d’orgueil que
d’humilité, le plus dévoué, le plus respectueux et le plus jaloux des disciples.
CHARLES BAUDELAIRE
[primeira versão da dedicatória]
a meu caríssimo e muito venerado mestre
e amigo
théophile gautier
Embora eu lhe peça que sirva de padrinho às Flores do mal, não creia que eu
esteja suficientemente perdido, que eu seja suficientemente indigno do nome de
poeta, para imaginar que essas flores doentias mereçam teu nobre patrocínio. Sei
que nas regiões etéreas da verdadeira Poesia o Mal não existe, assim como o
Bem, e que esse lamentável dicionário de melancolia e de crime pode legitimar
as reações da moral, como o blasfemador confirma a Religião. Eu quis, porém,
tanto quanto me era possível, esperando talvez melhor prestar uma homenagem
profunda ao autor de Albertus, de La Comédie de la mort e de España, ao poeta
impecável, ao mago da língua francesa, de que me declaro, com tanto orgulho
quanto humildade, o mais devotado, o mais respeitoso e o mais invejoso dos
discípulos.
CHARLES BAUDELAIRE
bribes
ORGUEIL
Anges habillés d’or, de pourpre et d’hyacinthe.
LE GOINFRE
DAMNATION
Le banc inextricable et dur,
La passe au col étroit, le maëlstrom vorace,
Agitent moins de sable et de varech impur
SPLEEN
restos
ORGULHO
Anjos vestidos de ouro, púrpura e jacinto.
O GLUTÃO
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O sulco de seu dorso é o que o desejo segue.
*
Grande anjo que no rosto orgulhoso trazeis,
Do Inferno de onde viestes, a obscuridade;
Domador suave e rígido que me meteis
Na jaula em espetáculo para a crueldade,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
DANAÇÃO
O banco emaranhado e duro,
A passagem no estreito, o maëlstrom voraz,
Mexem menos areia e sargaço impuro
[i]
épilogue
[ii]
Tranquille comme un sage et doux comme un maudit, J’ai dit:
Je t’aime, ô ma très belle, ô ma charmante…
Que de fois…
Tes débauches sans soif et tes amours sans âme, Ton goût de l’infini,
Qui partout, dans le mal lui-même, se proclame…
Tes bombes, tes poignards, tes victoires, tes fêtes,
Tes faubourgs mélancoliques,
Tes hôtels garnis,
Tes jardins pleins de soupirs et d’intrigues,
Tes temples vomissant la prière en musique,
Tes désespoirs d’enfant, tes jeux de vieille folle, Tes découragements,
[I]
EPÍLOGO
[ii]
Tranquilo como um sábio e suave tal maldito,
Eu havia dito:
Eu te amo, ó minha bela, ó minha encantadora…
Quantas vezes…
Boêmia sem sede e amores sem alma nem chama,
Teu gosto pelo infinito,
Que em toda parte, no próprio mal, se proclama…
Tuas bombas, teus punhais, tuas vitórias, tuas festas,
Tuas melancólicas imediações,
Teus quartos mobiliados,
Teus jardins de suspiros e de intrigas cheios,
Teus templos vomitando em música orações,
Tuas crises infantis, jogos de velha doida,
Teus desânimos,
C. B.
C’est ce que j’ai fait dans mon livre d’une manière lumineuse; plusieurs
morceaux non incriminés réfutent les poèmes incriminés. Un livre de poésie doit
être apprécié dans son ensemble et par sa conclusion.
Le Livre doit être jugé dans son ensemble, et alors il en ressort une terrible
moralité.
Donc, je n’ai pas à me louer de cette singulière indulgence qui n’incrimine que
13 morceaux sur 100. Cette indulgence m’est très funeste. C’est en pensant à ce
parfait ensemble de mon livre, que je disais à M. le juge d’instruction:
mon unique tort a été de compter sur l’intelligence universelle, et ne pas faire
une préface où j’aurais posé mes principes littéraires et dégagé la question si
importante de la Morale.
(Voir, à propos de la Morale dans les œuvres d’Art, les remarquables lettres de
M. Honoré de Balzac à M. Hippolyte Castille, dans le journal La Semaine.)
———
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Cette morale-là irait jusqu’à dire: DÉSORMAIS ON NE FERA QUE DES LIVRES
CONSOLANTS ET SERVANT À DÉMONTRER QUE L’HOMME EST NÉ BON, ET QUE TOUS LES
HOMMES SONT HEUREUX, — abominable hypocrisie!
c. b.
Foi o que fiz em meu livro de maneira luminosa; vários textos não
incriminados refutam os poemas incriminados. Um livro de poesia deve ser
apreciado em seu conjunto e por sua conclusão.
O Livro deve ser julgado em seu conjunto, e então dele ressalta uma terrível
moralidade.
Portanto, não tenho que me louvar dessa singular indulgência que só incrimina
13 textos de 100. Essa indulgência é para mim muito funesta. Foi pensando
nesse perfeito conjunto de meu livro que eu dizia ao senhor juiz de instrução:
meu único erro foi contar com a inteligência universal, e não fazer um
prefácio em que eu teria exposto meus princípios literários e ressaltado a
questão tão importante da Moral.
(Ver, a propósito da Moral nas obras de Arte, as notáveis cartas do sr. Honoré
de Balzac ao sr. Hippolyte Castille, no jornal La Semaine.)
———
O volume tem, no tocante à redução geral dos preços nas livrarias, um preço
alto. Isso já é uma garantia significativa. Não me dirijo, portanto, às multidões.
———
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Há também vários outros tipos de Liberdade. Há a Liberdade para o Gênio, e
há uma liberdade muito restrita para os malandros.
———
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———
O senhor ministro do Interior, furioso por ter lido um grande elogio de meu
livro em Le Moniteur, tomou suas precauções para que essa desventura não se
reproduzisse.
O sr. D’Aurevilly (escritor plenamente católico, autoritário e não suspeito)
levou ao Pays, ao qual está ligado, um artigo sobre As flores do mal; e foi-lhe
dito que uma instrução recente proibia de se falar do sr. Charles Baudelaire em
Le Pays.
Ora, há alguns dias, eu exprimia ao senhor juiz de instrução o temor de que o
rumor da apreensão congelasse a boa vontade das pessoas que viessem a
encontrar alguma coisa de louvável em meu livro. E o senhor Juiz (Charles
Camusat Busserolles) respondeu-me: Senhor, todo mundo tem perfeitamente O
DIREITO de o defender em TODOS os jornais, sem exceção.
Os senhores diretores da Revue Française não ousaram publicar o artigo do sr.
Charles Asselineau, o mais sensato e o mais moderado dos escritores. Esses
senhores se informaram junto ao Ministério do Interior (!), e responderam-lhes
que haveria para eles perigo em publicar esse artigo.
Assim, abuso de poder e entraves impostos à defesa!
———
O MAU MONGE
“Monge”: alusão a um dos afrescos do Campo Santo de Pisa, O triunfo da Morte, então atribuído a Andrea
Orcagna, e hoje, a Francesco Traini. No manuscrito, o verso 12 dizia: “Impuissant Orcagna...” (Impotente
Orcagna).
CIGANOS EM VIAGEM
Este poema foi inspirado por uma água-forte de mesmo título de Jacques Callot, acompanhada do seguinte
dístico: “Ces pauvres gueux pleins de bonadventures/ Ne portent rien que des Choses futures” (Esses
mendigos cheios de boas venturas/ Não levam nada além de umas Coisas futuras).
CASTIGO DO ORGULHO
“Doutor”: Trata-se de Simon de Tournai, teólogo do século XIII.
O IDEAL
A “noite de Miguel Ângelo” refere-se a uma escultura do artista (que Baudelaire conhecia por reprodução)
em que a noite é representada como uma mulher (capela dos Médicis, em Florença). A Noite era a mãe dos
Titãs. O crítico Jacques Dupont vê na menção a Lady Macbeth também uma provável alusão a um quadro
de Delacroix.
A MÁSCARA
Poema inspirado por uma escultura de Ernest Christophe, La comédie humaine.
DE PROFUNDIS CLAMAVI
A expressão em latim “De profundis clamavi” — “das profundezas, clamei” — inicia o salmo 130.
DUELLUM
Duellum é, em latim, a forma antiga de bellum, ou guerra; no poema, significa simplesmente “duelo”.
O RETRATO
“A três lápis”: Trata-se de uma técnica de desenho em que se empregam sanguínea, branco e preto.
SEMPER EADEM
A expressão em latim “Semper eadem” significa “sempre a mesma”.
CONVITE À VIAGEM
O título talvez tenha sido inspirado pela peça musical Convite à valsa de Weber.
SISINA
“Sisina” é o nome que Baudelaire dá a uma amiga italiana de Mme. Sabatier (amante de Baudelaire e
inspiradora de alguns de seus poemas), Elisa Nieri (ou Neri, ou Guerri), que talvez fosse ligada a
revolucionários italianos.
“Théroigne”: Trata-se de Théroigne de Méricout, que atuou na Revolução Francesa.
LOUANGES DE MA FRANÇOISE
Je te chanterai sur des cordes nouvelles,
Ô ma bichette qui te joues
Dans la solitude de mon cœur.
MŒSTA ET ERRABUNDA
Em latim, “triste e erradia”.
SPLEEN (“Sou tal como o rei de um país muito chuvoso.”) Era crença romana que banhar-se em sangue
podia restaurar o vigor e a força do corpo.
HORROR SIMPÁTICO
O adjetivo “simpático” aqui deve ser compreendido como “o que pertence à teoria das simpatias”, sendo
“simpatia” a correspondência que se julgava haver entre as qualidades de certos corpos.
O HEAUTONTIMOROUMENOS
Esta palavra significa, em grego, “o que se pune, o que se vinga de si mesmo”. É também o título de uma
peça do dramaturgo romano Terêncio.
Não há identificação do nome indicado pelas iniciais da dedicatória.
O RELÓGIO
Remember e Esto memor são equivalentes inglês e latino de “lembra-te”.
AS VELHINHAS
Frascati era um luxuoso café, restaurante e casa de jogos em Paris. Tivoli era um parque de diversões
existente em Paris entre o século XVIII e o XIX.
O ESQUELETO LAVRADOR
A crítica em geral vê aqui uma alusão a gravuras feitas a partir de desenhos de Ticiano para ilustrar o
tratado do médico holandês Vesalius, De corporis humani fabrica libri septem (Da estrutura do corpo
humano em sete livros), publicado em Basileia em 1543.
O JOGO
Considera-se que este poema foi inspirado por uma estampa referida por Baudelaire em “Quelques
caricaturistes modernes” (Alguns caricaturistas modernos).
DANÇA MACABRA
O poema foi inspirado por uma estatueta de Ernest Christophe, descrita por Baudelaire em seu “Salon de
1859” (Salão de 1859).
UMA MÁRTIR
Jacques Dupont considera que talvez a fonte visual do poema seja imaginária; caso contrário, permanece
misteriosa, embora seja possível ter havido influência de um quadro de Delacroix, A morte de Sardanápalo.
John E. Jackson sugere que o mestre seria o próprio Baudelaire, no sentido então da fonte visual imaginária.
A FONTE DE SANGUE
“Essas mulheres” talvez seja referência às duas “irmãs” do poema anterior.
O AMOR E O CRÂNIO
“Antiga vinheta”: Trata-se de uma gravura de Hendrik Goltzius.
“Revolta”
Na primeira edição de As flores do mal, havia a seguinte nota do autor para esta seção: “Entre os trechos a
seguir, o mais evidenciado já apareceu em uma das principais coletâneas literárias de Paris, onde só foi
considerado, pelo menos pelas pessoas inteligentes, por aquilo que é na verdade: o pastiche de raciocínios
da ignorância e da fúria. Fiel a seu doloroso programa, o autor das Flores do mal deve ter tido, como
perfeito ator, de amoldar seu espírito a todos os sofismas como a todas as corrupções. Essa declaração
espontânea sem dúvida não impedirá os críticos sinceros de o incluir entre os teólogos do populacho e de o
acusar de ter lamentado que nosso Salvador Jesus Cristo, que a Vítima eterna e voluntária, não tivesse tido
o papel de um conquistador, de um Átila igualitário e devastador. Mais de um dirigirá sem dúvida ao céu as
ações de graças habituais do Fariseu: ‘Obrigado, meu Deus, que não permitistes que eu fosse semelhante a
esse poeta infame!’”.
O SONHO DE UM CURIOSO
“F. N.”: Félix Nadar.
A PRECE DE UM PAGÃO
A expressão em latim “Supplicem exaudi” significa “ouve a minha súplica”.
AS LAMENTAÇÕES DE UM ÍCARO
Segundo Jacques Dupont, Baudelaire aqui teria se lembrado de gravuras de Goltzius — uma representa a
queda de Ícaro, outra, Íxion (que, ao querer conquistar Juno, abraçou na verdade uma nuvem, tendo os
braços quebrados), e a terceira, Faetonte (que, ao se dirigir para o sol, foi consumido).
LESBOS
N. E. (1866): “Esta peça e as cinco seguintes foram condenadas em 1857 pelo tribunal correcional e não
podem ser reproduzidas na coletânea das Flores do mal”.
O MONSTRO
O subtítulo do poema em francês emprega a palavra “paranymphe”, que, além dos sentidos mais correntes
similares aos de “paraninfo” em português, tem o sentido em desuso de discurso de elogio, tendo sido termo
empregado em antigas faculdades de medicina e teologia; há consenso entre vários críticos de que
Baudelaire utilizou a palavra com esse sentido em desuso.
“Àquelas do rei Salomão”, N. E. (1866): “Eis um trocadilho malicioso: Nós não cabalaremos contra”.
Clavículas de Salomão é o título de um livro atribuído a Salomão.
“Dança o cancã com exaltações”, N. E. (1866): “Sem dúvida uma alusão a alguma particularidade das
dissipações dessa mulher. Prévost-Paradol lhe teria observado que ela dançava o cancã sobre um vulcão”.
“Beijar o cu de Satanás”: Trata-se de parte do ritual da Missa Negra, referido também no poema “O
imprevisto”. Sobre cas, a palavra empregada no poema por Baudelaire, este, em carta a Poulet-Malassis, de
23 de janeiro de 1866, escreveu: “A palavra cas pode aplicar-se tanto à bunda quanto ao pau, ou é o
antípoda” (esta construção um tanto estranha deve-se provavelmente à escrita talvez rápida de uma carta). A
palavra, proveniente do italiano cazzo, passou ao francês no século XVII.
N. E. (1866): “Na Missa negra. Como esses poetas são supersticiosos!”.
“Epígrafes”
“Epígrafe” tem aqui o sentido de versos que acompanham obras de arte, como por exemplo legendas em
gravuras antigas.
N. E. (1866): “Estas estrofes foram feitas para um retrato do sr. Daumier, gravado a partir do notável
medalhão do sr. Pascal e reproduzido no segundo volume da Histoire de la caricature (História da
caricatura), do sr. Champfleury, onde esse escritor fez justiça ao caricaturista com a razão apaixonada que
lhe é habitual”.
LOLA DE VALÊNCIA
Lola de Valência foi uma dançarina espanhola que estreou em Paris em 1862, quando foi pintada por Manet.
O poema relaciona-se com a pintura.
N. E. (1866): “Estes versos foram elaborados para servir de inscrição para um maravilhoso retrato da srta.
Lola, bailarina espanhola, de Édouard Manet, que, como todos os quadros do mesmo pintor, fez escândalo.
A musa de Charles Baudelaire é tão geralmente suspeita que ele teve críticos de botequim para desencavar
um sentido obsceno na joia rosa e negra. Acreditamos, de nossa parte, que o poeta quis simplesmente dizer
que uma beleza, de aspecto ao mesmo tempo tenebroso e brincalhão, levava a sonhar na associação do rosa
e do negro”.
O IMPREVISTO
N. E. (1866): “Aqui o autor das Flores do mal se volta para a Vida Eterna. Isso devia acabar desse jeito.
“Observemos que, como todos os novos convertidos, ele se mostra muito rigoroso e muito fanático.”
“Traseiro imundo”, N. E. (1866): “Ver, a propósito da missa e do traseiro, La sorcière, de Michelet, La
monographie du Diable, de Charles Louandre, Le rituel de la haute magie, de Eliphas Lévi, e, em geral,
todos os autores que tratam da feitiçaria, da demonologia e do rito diabólico”.
A PROPÓSITO DE UM IMPORTUNO
Nord: Trata-se de uma companhia ferroviária.
Niboyet, N. E. (1866): “Não sabemos o que vem fazer aqui o sr. Niboyet, mas como Baudelaire não é um
escravo da rima, devemos supor que o importuno se gabou de ter lido as obras de Niboyet, como se tivesse
muita disposição”.
UM BOTECO ENGRAÇADO
Monselet, N. E. (1866): “A malícia é costurada com fio branco; todo mundo sabe que o sr. Monselet faz
profissão de gostar muito do rosa e do alegre. Certo dia, Monselet reprovou Baudelaire por ter escrito esse
verso abominável, a propósito de um enforcado cujo ventre foi aberto pelos pássaros: ‘Seu intestino pelas
pernas lhe corria’.
“‘Mas’, diz o poeta impaciente, ‘eu não podia fazer de outro modo. O tema queria isto. O que o senhor teria
preferido a essa imagem?’ ‘Uma rosa!’, respondeu Monselet.
“Todavia não seria necessário acreditar que a indispensável melancolia não irrompe de tempos em tempos
sob esse verniz anacreôntico. Vimos recentemente uma pequena composição dele em que, reprovando-se
por ter rejeitado uma mulher muito pobre, o poeta põe-se à sua procura e deita muito triste por não a ter
encontrado. Essa peça é de um homem verdadeiramente sensível, mesmo em jejum.
“Lamentamos que o sr. Monselet não ceda com mais frequência a seu temperamento lírico, que uma alegria,
um pouco artificial, com muita frequência contrariou.”
“Projetos de prefácios”
Não é possível definir, segundo Jaques Dupont, para quais edições se destinavam esses projetos, que
ficaram inacabados, a não ser no caso do quarto, destinado à terceira edição.
RESTOS
Estes fragmentos, provavelmente de épocas diferentes, foram passados a limpo por Baudelaire, talvez com a
intenção de os vir a utilizar — chegou a fazê-lo no caso de alguns, ainda que os tenha modificado.
Apêndices
As flores do mal*
J. BARBEY D’AUREVILLY
II
Dito isso, não seremos nós a afirmar que a poesia das Flores do mal é poesia
pessoal. Sem dúvida, sendo o que somos, usamos todos (e mesmo os mais fortes)
em nossas obras algum farrapo a sangrar de nosso coração, e o poeta das Flores
do mal, como cada um de nós, está submetido a essa lei. Empenhamo-nos apenas
em constatar que, contrariamente à maioria dos líricos atuais, tão preocupados
com seu egoísmo e suas pobres e pequenas impressões, a poesia do sr.
Baudelaire é menos o derramamento de um sentimento individual que uma
segura concepção de seu espírito. Embora muito lírico na expressão e no elã, o
poeta das Flores do mal é, no fundo, um poeta dramático. Como tal, ele tem todo
o futuro. Seu livro atual é um drama anônimo de que ele é o ator universal, e eis
por que ele não tergiversa nem com o horror, nem com o asco, nem com nada do
que a natureza humana corrompida pode produzir de mais horrível. Shakespeare
e Molière também não tergiversaram com o detalhe revoltante e a expressão
quando pintaram, um, seu Iago, o outro, seu Tartufo. Toda a questão para eles era
esta: “Há hipócritas e pérfidos?”. Se havia, era preciso então que se exprimissem
como hipócritas e pérfidos. Os celerados é que falavam; os poetas eram
inocentes! Certo dia (a história é conhecida), Molière lembrou isso na margem
de seu Tartufo, ao lado de um verso por demais odioso, e o sr. Baudelaire teve a
fraqueza… ou a precaução de Molière.*
Neste livro, onde tudo é em verso, até o prefácio, encontramos uma nota em
prosa* que não pode deixar nenhuma dúvida não apenas quanto à maneira de
proceder do autor das Flores do mal, mas também quanto à noção que formou
sobre a Arte e a Poesia; pois o sr. Baudelaire é um artista de vontade, de reflexão
e de combinação, antes de tudo. “Fiel”, diz ele, “a seu doloroso programa, o
autor das Flores do mal deve ter tido, como perfeito ator, de amoldar seu espírito
a todos os sofismas como a todas as corrupções.” Isso é certo. Só os que não
querem compreender não compreenderão. Portanto, como o velho Goethe, que
se transformou em comerciante turco de pastilhas em seu Divan e nos deu assim
um livro de poesia — também mais dramático que lírico, e que talvez seja sua
obra-prima —, o autor das Flores do mal fez-se, pelo pensamento, celerado,
blasfemador, ímpio, exatamente como Goethe fez-se turco. Representou uma
peça, mas é a peça sanguinolenta de que fala Pascal. Esse profundo sonhador
que está no fundo de todo grande poeta perguntou-se, no sr. Baudelaire, o que se
tornaria a poesia ao passar por uma cabeça organizada, por exemplo, como a de
Calígula ou Heliogábalo, e as Flores do mal — essas monstruosas —
desabrocharam para a instrução e a humilhação de todos nós; pois não é inútil
saber o que pode florescer no estrume do cérebro humano, decomposto por
nossos vícios. É uma boa lição. Todavia, por uma incoerência que nos diz
respeito e cuja causa conhecemos, a essas poesias, imperfeitas então do ponto de
vista absoluto de seu autor, misturam-se gritos de alma cristã, doente de infinito,
que rompem a unidade da obra terrível e que Calígula e Heliogábalo não teriam
dado. O cristianismo penetrou-nos tanto que deturpa até nossas concepções de
arte voluntária, nos espíritos mais enérgicos e mais preocupados. Quando se é o
autor das Flores do mal — um grande poeta que não se julga cristão e que, em
seu livro, positivamente não o quer ser — não se tem impunemente 1800 anos
de cristianismo por trás de si. Isso é mais forte que o mais forte de nós! É inútil
ser um artista formidável, do ponto de vista mais decidido, para a vontade mais
firme, e ter-se jurado ser ateu como Shelley, arrebatado como Leopardi,
impessoal como Shakespeare, indiferente a tudo, exceto à beleza, como Goethe;
segue-se assim por algum tempo — miserável e esplêndido —, ator à vontade na
máscara bem-sucedida de seus traços pintados; acontece, porém, que, de repente,
no pé de uma de suas poesias mais amargamente calmas ou mais cruelmente
selvagens, nos vemos cristãos numa meia-tinta inesperada, numa última palavra
que destoa — mas que para nós destoa deliciosamente no coração:
Todavia, devemos admitir, essas incoerências, quase fatais, são bastante raras
no livro do sr. Baudelaire. O artista, vigilante e com perseverança inaudita na
fixa contemplação de sua ideia, não foi muito derrotado.
III
lembramos do sr. Auguste Barbier, por toda parte, de resto, o autor das Flores do
mal é ele próprio, e se distingue ousadamente de todos os talentos dessa época.
Um crítico dizia-o outro dia (o sr. Thierry, do Moniteur), numa apreciação
superior: para encontrar algum parentesco para essa poesia implacável, para esse
verso brutal, condensado e sonoro, esse verso de bronze que sua sangue, é
preciso voltar até Dante, Magnus Parens! É uma honra para o sr. Charles
Baudelaire ter evocado, num espírito delicado e justo, uma tão grande
lembrança!
De fato, há algo de Dante no autor das Flores do mal, mas é um Dante de uma
época decaída, é um Dante ateu e moderno, um Dante que veio depois de
Voltaire, numa época que não terá são Tomás. O poeta dessas flores, que ulceram
o seio sobre o qual repousam, não tem a grandiosa aparência de seu majestoso
antecessor, e não por sua culpa. Ele pertence a uma época conturbada, cética,
escarnecedora, nervosa, que se enrosca nas ridículas expectativas das
transformações e das metempsicoses; ele não tem a fé do grande poeta católico,
a qual lhe dava a calma augusta da segurança em todas as dores da vida. O
caráter da poesia das Flores do mal, com exceção de alguns raros trechos que o
desespero acabou por congelar, é a perturbação, é a fúria, é o olhar
convulsionado, e não o olhar sombriamente claro e límpido do Visionário de
Florença. A Musa de Dante viu sonhadoramente o Inferno, a das Flores do mal
respira-o com uma narina crispada como a do cavalo que cheira o obus! Uma
vem do inferno, a outra vai para o inferno. Se a primeira é mais augusta, a outra
talvez seja mais emocionante. Ela não tem o maravilhoso épico que arrebata tão
alto a imaginação e acalma seus terrores na serenidade com que os gênios,
verdadeiramente excepcionais, sabem revestir suas obras mais apaixonadas. Ao
contrário, tem horríveis realidades que conhecemos, e que repugnam demais
para permitir mesmo a opressora serenidade do desprezo. O sr. Baudelaire não
quis ser em seu livro das Flores do mal um poeta satírico, e no entanto ele o é, se
não por conclusão e ensinamento, pelo menos por elevação de alma, por
imprecações e gritos. Ele é o misantropo da vida repreensível, e com frequência
imaginamos, ao lê-lo, que se Timon de Atenas tivesse tido o gênio de Arquíloco,
teria podido escrever assim sobre a natureza humana e a insultar ao relatá-la!
IV
Não podemos nem queremos citar nada da coletânea de poesias em questão, e eis
por quê: uma peça citada só teria seu valor individual, e nisso não devemos nos
equivocar, no livro do sr. Baudelaire cada poesia tem, além do êxito dos detalhes
ou da fortuna do pensamento, um valor muito importante de conjunto e de
situação que não devemos, destacando-a, fazer com que o perca. Os artistas que
veem linhas sob o luxo e a eflorescência da cor perceberão muito bem que há
aqui uma arquitetura secreta, um plano calculado pelo poeta, meditativo e
voluntário. As Flores do mal não estão na sequência umas das outras como
tantos trechos líricos, dispersos pela inspiração e reunidos numa coletânea sem
outra razão que a de os reunir. Elas são menos poesias que uma obra poética da
mais forte unidade. Do ponto de vista da Arte e da sensação estética, elas
portanto perderiam muito por não serem lidas na ordem em que o poeta, que
sabe bem o que faz, as dispôs. Mas perderiam mais ainda do ponto de vista do
efeito moral que assinalamos no início deste artigo.
Esse efeito, ao qual é muito importante voltar, evitemos debilitá-lo. O que
impedirá o desastre desse veneno, servido nessa taça, é sua força! O espírito dos
homens, que ele transtornaria em átomos, não é capaz de o absorver nessas
proporções, sem o rejeitar, e uma tal contração dada ao espírito desse tempo,
insulso e debilitado, pode salvá-lo, arrancando-o pelo horror a sua informe
fraqueza. Os solitários têm junto deles cabeças de morto, quando dormem. Eis
um Rancé, sem a fé, que cortou a cabeça ao ídolo material de sua vida; que,
como Calígula, buscou dentro o que ele amava e que grita o nada de tudo,
olhando-a! Acreditam então que isso não seja algo patético e salutar?… Quando
um homem e uma poesia desceram até esse ponto — quando resvalaram tão
baixo, com a consciência da incurável infelicidade que está no fundo de todas as
volúpias da existência —, poesia e homem só podem voltar a subir. O sr. Charles
Baudelaire não é desses poetas que só têm um livro no cérebro e que o vão
repisando sempre. Mas quer ele tenha ressecado sua veia poética (o que não
pensamos) porque exprimiu e torceu o coração do homem quando ele não é mais
do que uma esponja podre, ou quer o tenha, ao contrário, esvaziado de uma
primeira espuma, considera-se agora que deva calar-se, pois disse as palavras
supremas sobre o mal da vida, ou então falar uma outra linguagem. Depois das
Flores do mal, só há dois partidos a tomar para o poeta que as fez desabrochar:
ou dar um tiro na cabeça… ou fazer-se cristão!
* Artigo escrito por ocasião do processo de censura movido contra alguns poemas das Flores do mal, tendo
sido publicado em 1857 no livreto que reuniu mais três textos, intitulado Articles justificatifs pour Charles
Baudelaire auteur des “Fleurs du mal”. Aí vinha antecedido pelo bilhete com que o autor o enviou a
Baudelaire: “Meu caro Baudelaire,/ Envio-lhe o artigo que me pediu e que uma conveniência, fácil de
compreender, impediu Le Pays de publicar, já que você estava em causa. Eu ficaria muito feliz, meu caro
amigo, se esse artigo tivesse um pouco de influência no espírito daquele que o vai defender e na opinião
daqueles que serão chamados a julgá-lo./ Seu/ Jules Barbey d’Aurevilly”. (N. T.)
Introdução*
GUILLAUME APOLLINAIRE
Exprimir com liberdade aquilo que é do âmbito dos costumes — não se conhece
coragem maior em um escritor. Choderlos de Laclos dedicou-se a isso com uma
precisão pela primeira vez verdadeiramente matemática.
Baudelaire é portanto filho de Laclos e de Edgar Poe, mas seu filho cego e
louco que, todavia, antes de escalar os cimos, havia olhado com admirável
precisão as artes e a vida.
É verdade também que nele se encarnou pela primeira vez o espírito moderno.
Foi a partir de Baudelaire que nasceu alguma coisa que só fez medrar, enquanto
naturalistas, parnasianos, simbolistas passavam perto disso sem nada ver;
enquanto os naturistas, tendo voltado a cabeça, não tinham a audácia de
examinar a novidade sublime e monstruosa.
Àqueles aos quais causaria espanto seu nascimento insignificante a partir da
lama revolucionária e da sífilis americana, seria preciso responder com o que a
Bíblia ensina no tocante à origem do homem oriundo do limo da terra.
É verdade que a Novidade assumiu antes de tudo a face de Baudelaire, que foi
o primeiro a soprar o espírito moderno na Europa, mas seu cérebro profético não
soube profetizar, e Baudelaire não penetrou esse espírito novo de que ele mesmo
estava penetrado, e cujas sementes descobriu em alguns outros que vieram antes
dele.
E valeria a pena que fosse abandonado, como foram abandonados líricos de
grande talento, tais como Jean-Baptiste Rousseau, assim que, remoído por uns e
outros, e posto ao alcance do comum das pessoas, o lirismo deles tivesse
envelhecido.
Todavia, mesmo em domínio público, Baudelaire ainda não está nesse ponto e
pode sempre nos ensinar que uma atitude elegante não é de modo algum
incompatível com uma grande franqueza de expressão.
As Flores do mal são nesse aspecto um documento de primeira ordem.
A liberdade que reina nessa coletânea não a impediu de dominar sem
contestação a poesia universal em fins do século XIX.
Sua influência interrompe-se atualmente, o que não é um mal.
Dessa obra rejeitamos o lado moral que nos fazia mal, forçando-nos a encarar
a vida e as coisas com certo diletantismo pessimista de que não somos mais
vítimas logradas.
Baudelaire encarava a vida com uma paixão enfastiada, que intentava
transformar árvores, flores, mulheres, todo o universo e a própria arte em algo
pernicioso.
Era sua fixação, e não a realidade normal.
Todavia, não se deve deixar de admirar a coragem que Baudelaire teve de não
velar os contornos da vida.
Hoje essa coragem seria a mesma.
Os preconceitos em relação à arte não cessaram de aumentar, e aqueles que
ousariam exprimir-se com tanta liberdade quanto Baudelaire nas Flores do mal
encontrariam contra eles, se não a autoridade judiciária, pelo menos a
desaprovação de seus pares e a hipocrisia do público.
O retorno à escravidão, que hoje em dia adornam com a palavra “liberdade”,
já teve como primeiro resultado, no tocante às letras (pelas quais, em particular,
o estado de coisas em vias de se decidir tem aversão), o de suprimir a elite
independente, bem como quase toda a crítica digna desse nome, e o pouco que
dela resta não ousaria hoje falar das Flores do mal.
Se não participa mais desse espírito moderno que provém dele próprio,
Baudelaire serve-nos de exemplo para reivindicar uma liberdade que se concede
cada vez mais aos filósofos, aos sábios, aos artistas de todas as artes, para a
restringir cada vez mais no que diz respeito às letras e à vida social.
O uso social da liberdade literária tornar-se-á cada vez mais raro e precioso.
As grandes democracias do futuro serão pouco liberais para os escritores; é bom
plantar bem alto poetas-bandeira como Baudelaire.
Poderemos agitá-los de tempos em tempos, a fim de sublevar o pequeno
número dos escravos ainda vibrantes.
Mas repitamos a Homenagem** de Stéphane Mallarmé:
* Texto publicado originalmente como introdução a uma edição francesa das Flores do mal de 1917: Les
fleurs du mal. Introduction et notes par Guillaume Apollinaire. Paris: Bibliothèque des Curieux, 1917. (N.
T.)
** Depois de criada uma comissão que cuidaria de erguer um monumento a Baudelaire, um grupo de
escritores decidiu também publicar uma plaquete intitulada Le tombeau de Baudelaire, na qual se
publicariam poemas de membros da comissão em homenagem ao poeta. O poema de Mallarmé, com o
título “Hommage”, posteriormente mudado para “Le tombeau de Charles Baudelaire” (O túmulo de Charles
Baudelaire), foi publicado, em 1895, num número da revista Plume consagrado a Baudelaire, e a seguir
incluído na plaquete, publicada em 1896. É considerado um dos poemas mais enigmáticos de Mallarmé
(pela sintaxe, pela ausência de pontuação, pelas imagens). (N. T.)
Situação de Baudelaire*
PAUL VALÉRY
Baudelaire está no auge da glória. Esse pequeno volume das Flores do mal, que
não chega a trezentas páginas, se equipara, na estima dos letrados, às obras mais
ilustres e mais vastas. Foi traduzido na maioria das línguas europeias: este é um
fato sobre o qual me deterei por um instante, pois, acredito, não tem similar na
história das Letras francesas.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.
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Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (USA) Inc.
TÍTULO ORIGINAL
Les fleurs du mal
CAPA
Raul Loureiro
PREPARAÇÃO
Mariana Delfini
REVISÃO
Angela das Neves
Jane Pessoa
ISBN 978-85-5451-525-6