Psicanálise em Imersão
Psicanálise em Imersão
Psicanálise em Imersão
PSICANÁLISE EM IMERSÃO
Jacques-Alain Miller
Hoje eu vou me dedicar às reflexões sobre a psicanálise que chegaram até mim
como um praticante, um praticante em cuja prática real desperta interrogações*1. De certa
forma, são reflexões realistas. Eu digo pensamentos sobre a psicanálise; sem dúvida seria
melhor dizer em psicanálise, porque essas reflexões não vêm a mim de uma posição
transcendente ou externa, mas de uma posição que é de inclusão na psicanálise, mesmo,
se me atrevo a usar essa palavra, de imanência. Um psicanalista reside na psicanálise. Ele
está contido nela. Uma posição de imanência, essa é a palavra que me ocorreu - já que
direi hoje apenas o que chega a mim por meio de associação livre. Estou imerso nisso.
FLUIDIFICAÇÃO
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Lição de 12 de março de 2008 do curso de J.-A. Miller “Orientação lacaniana. Todo mundo é louco”, ensinamento proferido na
cátedra do departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Versão estabelecida por Pascale Fari a partir de uma transcrição
de Jacques Peraldi. Texto não relido por J.-A. Miller e publicado com sua amável autorização.
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Como a psicanálise se tornou líquida? Como nós praticamos isso hoje em uma
forma que não é mais - para colocar aqui de forma muito simples - a psicanálise sólida do
tempo da estrutura?
O estado atual da psicanálise enquanto líquida também pode explicar o fato de
que os recursos que encontramos na história da psicanálise - os casos originais de Freud,
suas construções teóricas, as diferentes épocas do ensino de Lacan ... - agora estão
imbuídos de uma certa nostalgia.
É apenas uma imagem que me ocorre, mas vou usar a metáfora para tentar ser
autêntico. Girar a metáfora é adotar - no que diz respeito à psicanálise, ao tratamento
analítico, à experiência de quem se dedica a ela, que se apega a ela - a imagem do fluido,
do que não é sólido, que flui, que escapa como indescritível. As modulações e
temperamentos que foram feitos para a noção do final da análise que constitui o passe
contribuem ainda para essa fluidificação. Como se diz hoje, lamentamos que o passe não
tenha mais as arestas de antes. De onde, na ocasião, uma incerteza sobre o caminho que
Lacan havia traçado e que um certo nome, aqui como em outros lugares, tinham tomado
emprestado dele. Esse caminho propiciou uma garantia que parece abalada hoje em dia.
Fluido é também o termo para um corpo que se deforma sob a ação de forças
mínimas. Isso não pode deixar de nos lembrar do nó a que Lacan recorreu em seu último
ensino e que ele promoveu, em grande parte em vão, como a referência da psicanálise.
Alguns tentaram ou estão tentando desenvolver esta cartilha. Não acho exagero dizer que
essas tentativas não levam à aquiescência da comunidade informal daqueles que a
praticam. Talvez essa referência não fosse mais do que uma metáfora e que a psicanálise
nodal se beneficiaria disso que chamei de psicanálise líquida.
A psicanálise nodal foi proposta por Lacan ao final de sua trajetória de estudos
das deformações. Por que não? Ela estuda deformações que respondem à ação de uma
força mínima, inteiramente concentrada na ação de puxar as cordas - não vejo outra
maneira de colocar isso. Quando passamos por onde Lacan passou, como chegamos a nos
concentrar nessa ação de puxar os pauzinhos e propô-lo como referência para a
psicanálise? Eu realmente vos dou como reflito sobre isso, com esse personagem
incipiente, emergente, mal formado. Como alguém passa a focar, a partir da psicanálise,
na ação de puxar as cordas?
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(Esquema gráfico)
Um mesmo nó, que faria sua mesmice, seria identificável por sua estrutura
matemática. Lacan manteve essa estrutura matemática à distância, ele não a adotou de
fato, mas a guardou como referência, me parece. Ela carrega com ela a noção do nó fora
de todos os aspectos. Em outras palavras, Lacan explorou repetidamente a divisão entre
estrutura e aparência. Ele se esforçou para mostrar em que sentido uma multiplicidade de
aspectos poderia estar relacionada a uma unidade, à singularidade do mesmo objeto. Essa
multiplicidade de aspectos é uma multiplicidade da qual os elementos, capturados
visualmente, passam um para o outro sem uma quebra de continuidade. Nós puxamos as
cordas, nós puxamos, e isso se apresenta de uma outra maneira. É sempre o mesmo nó
que se apresenta em vários estados conforme o manipulamos?
(Esquema gráfico)
(Esquema gráfico)
A PALAVRA LÍQUIDA
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que eu diria hoje, em vez disso, que ela responde ao estado líquido da fala. Essa báscula,
que Lacan introduz de uma forma que ainda me parece surpreendente em seu último e
ultimíssimo ensino, ocorre no final do Seminário XX, Mais ainda.
O conceito de lalíngua pretende arruinar a psicanálise sólida. Este conceito
anuncia que a fala é da ordem da secreção, que ela é um fluido linguístico. Ele já anuncia
que o significante não é mais do que o produto do discurso "científico" sobre lalíngua -
"científico" entre aspas, uma vez que não estamos mais em tempos de podermos dizer
que a linguística de Saussure é a ciência da linguagem. A linguística saussuriana era uma
forma de captar a fala líquida. O que Lacan, no rastro de Saussure, chamou de linguagem
era uma estrutura a qual ele acabou por descobrir que ela estava distante da lalíngua; sem
dúvida é por esse motivo que ele então preferiu o nó, em que a estrutura do nó é adequada
para o aspecto do nó. Por outro lado, no limiar de seu último ensino, Lacan colocou, não
apenas que há lalíngua, mas também que há uma lacuna necessária entre lalíngua e a
linguagem.
(Esquema gráfico)
Esse é o valor a ser dado ao esboço da cronologia que ele apresenta ao dizer -
eu o estou citando – que a linguagem, antes de mais nada, ela não existe. Só vem a existir
uma vez que tentamos descobrir algo sólido sobre a lalíngua. Assim, desenvolvemos a
estrutura da linguagem que é, diz ele, apenas uma elucubração do conhecimento sobre
lalíngua.
Essa me parece realmente a principal lacuna a partir da qual girar, não somente
a teoria, mas também a prática da psicanálise. A partir daí, a teoria da psicanálise se
desprende de sua herança - Lacan tentando garantir um tênue laço com a sua psicanálise
nodal. Portanto, entramos na prática contemporânea da psicanálise, sem dúvida, ao
mesmo tempo em que falamos mais amplamente de uma civilização onde o Outro não
existe, onde a evidência da inexistência do Outro está sempre mais presente - o que
poderia ser traduzido nos termos da sociedade líquida. Isso cai, tem repercussões muito
diretas na prática da análise, na prática do analista, em seu - se assim posso dizer - nível
de percepção da fala, da fala do analisando.
PRESENÇA DE LALANGUE
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depoimento). Se levamos a sério que isso lhe escapa, devemos dizer, como fez Lacan,
que se qualifica de afetos, afetos que mais tarde ele também chamará de acontecimentos
de corpo - eu entendo este termo até agora – de afetos que permanecem enigmáticos e
que são relacionados com a presença de lalíngua.
Há uma lacuna entre o que o sujeito é capaz de afirmar e seus afetos fechados
sobre seu enigma. Pelo menos é assim que entendo o que Lacan formula nos termos
seguintes - os efeitos da lalíngua vão muito além de qualquer coisa que o ser falante
possa denunciar. Essa frase, é preciso dizer, abre um campo não balizado pela estrutura
da linguagem. Ela não diz que o que o sujeito é suscetível de enunciar nos permite
alcançar todos os efeitos de lalíngua mas, ao contrário, que o que se anuncia não nos
permite alcançar todos os seus efeitos. E o que é dito, mesmo para ser decifrado pelo
analista, não nos permite alcançar todos os efeitos da lalíngua. Se é à palavra que pode
ser atribuído o resort desses efeitos, eles são, apesar de tudo, empurrados para fora do
reino da declaração.
Lacan, então, dará a esses efeitos seu desenvolvimento completo, sua essência
plena – sua Wesen no sentido em que Heidegger usa essa palavra (o tradutor de seu Cours
recentemente publicado sublinha que, com ele, Wesen significa essência plena, esplendor
da essência) – envolvendo acontecimentos de corpo. Já enfatizei essa expressão, que
desde então floresceu. Lacan finalmente a citou apenas uma vez, mas indicando, parece-
me, uma direção essencial. Aqui sou levado para mais perto do que estou imerso, para
diferenciar entre formações inconscientes e acontecimentos de corpo.
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dos quais nada demonstra que eles têm a mesma estrutura que as chamadas formações do
inconsciente.
As formações do inconsciente são uma categoria da psicanálise sólida, se eu
posso dizer. O gráfico de Lacan é feito para dar conta das formações do inconsciente
sobre o fundamento da existência do Grande Outro, ou seja, sobre o fundamento de que
a hipótese é uma tese. O Grande Outro, quer dizer, o lugar das estruturas, no plural, porque
se estendem a tudo que chamamos de sociedade, história ou civilização. Podemos também
dizer estrutura, no singular, se relacionarmos todas essas estruturas à estrutura da
linguagem.
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afetos singulares que ele gera no corpo. O fim que surge é da ordem, não da solução, mas
antes de tudo de uma nova satisfação. A conexão do sujeito e do corpo impõe sua presença
na experiência, na medida em que o corpo é o lugar do gozo.
Claro, os dois níveis se articulam, se estamos dispostos a admitir com Lacan em
seu último ensino escreve que a miragem da verdade não tem outro fim senão a satisfação
que marca o fim da análise. É um curto-circuito; ele promete, se assim posso dizer, que
o início, que se organiza na psicanálise do sujeito, encontra como em diagonal seu fim na
psicanálise do parlêtre. A questão sobre o sentido do desejo e a verdade encontra sua
resposta na satisfação, o que supõe que as memórias da verdade tenham se extinguido e
sua miragem volatizada. Estou falando de diagonal porque foi sob a espécie de uma
diagonal que Lacan escreveu ao final da análise em um de seus Seminários.
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CORTE DO ACONTENCIMENTO
Nesse sentido, onde acredito ser o mais realista possível como um praticante
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Mas isso também abre a questão de saber o que, do gozo, pode ser deslocado
em uma psicanálise. Quais são os acontecimentos de gozo que ocupam o que chamei de
curso de análise, em que a fala líquida mostra ser capaz de deslocar o gozo?
Não devemos esquecer a distância que separa a clínica-estrutura da clínica-
acontecimento. A prática de controle que mencionei anteriormente se encaixa nessa
lacuna. Há espaço para o controle porque há um hiato entre a clínica-estrutura e a clínica-
acontecimento. Não podemos deduzir o acontecimento a partir da estrutura. E essa
dedução impossível mistura precisamente o lugar da interpretação.
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Pode ser que seja não a decifração, mas o corte, o que é essencial; que é o corte
o que pode ser realizado no nível do acontecimento de gozo. Pode ser então que o que foi
chamado de sessão curta (mencionada em um outro contexto de Lacan no início de seu
ensino) ou a sessão dos tempos da psicanálise líquida, aquela que não é ordenada pelas
formações do inconsciente, mas pelos acontecimentos de gozo.
Portanto, como a experiência mais autêntica revela, a contingência, que é o que
qualifica o amor, é também o destino do psicanalista em sua interpretação.